O TRAÇO DO DEVIR LATINO-AMERICANO: OSMAN LINS POR UM
BARROCO MENOR
João Guilherme DAYRELL1
Resumo: Para Gilles Deleuze, as dobras são levadas “ao infinito” no barroco, fazendo
com que ele não se configure como essência, mas como “um traço”. Sendo o barroco a
condição “sob a qual a verdade de uma variação aparece ao sujeito”, faz-se pertinente
um movimento anacrônico subjacente a uma produção literária moderna, próximo ao
que Sarduy chamava de neo-barroco. Analisar-se-á, neste trabalho, os textos “O ponto
no círculo” e “Conto barroco ou unidade tripartida”, de Osman Lins, presentes em Nove
novena, que fazem uso das citadas características barrocas, todavia, solapando os
vínculos metafísicos presentes na literatura produzida no âmbito da Igreja.
PALAVRAS-CHAVE: Osman Lins; Dobras barrocas; América-latina.
Abstract: According to Gilles Deleuze, the folds are taken to infinity in Baroque,
making them more like “a trait” then the essence itself. If Baroque is the condition “in
which the truth of a variation appears to the subject”, it becomes pertinent to consider an
anachronistic movement subjacent to modern literature, close to what Sarduy called
neo-baroque. This essay will investigate the texts O ponto no círculo and Conto barroco
ou unidade tripartida, by Osman Lins, present in the work "Nove novena". These texts
contain the Baroque characteristics mentioned, but undermine the metaphysical
connections present in the literature produced in the church's ambit.
KEYWORDS: Osman Lins; Barroque folds; Latin America.
É preciso demarcar um ponto, a partir do qual, saltarão as linhas. Ele, no
entanto, nos advém, como se as linhas que o precedessem jamais pudessem encontrar
repouso em outro ponto fixo. Em outras palavras, pouco se sabe acerca das causas da
querela responsável pela descida do anônimo capanga pernambucano às cidades
mineiras no intuito de matar José Gervásio – e, como nos é revelado mais tarde, José
1
Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre
em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e graduado em
Comunicação Social - Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2007)-. Email:
[email protected] . CEP: 30240510. Belo Horizonte, Minas Gerais.
Pascásio ou Artur –, panorama que enceta “Conto barroco ou unidade tripartida”2. Daí,
seu encontro com a prostituta negra, momento no qual a diluição tripartite passa a
assolar os diversos momentos da narrativa. Ou; uma imagem-lembrança (DELEUZE,
1985) sobrevém à mente da personagem-homem de “O ponto no círculo” (LINS, 1999,
p. 10), caracterizada, por sua vez, por um quadrado, figura geométrica designadora do
gênero, em contraposição ao triangulo, singularidade da personagem feminina. Esta, por
sua vez, não incide de maneira atuante na percepção do homem-quadrado, mas como
um sopro, um gesto, ela é: a imagem de uma figura feminina sem rosto desatando os
cabelos. O citado gesto, segundo Ana Luiza Andrade, é capaz de “desdobrar o tempo
presente em outros tempos”, nos remetendo ao início do século XIX, conforme
demarcava Baudelaire, citado pela autora: “quando os cabelos das mulheres se
mantinham presos em público e se soltavam somente para o marido, num gesto íntimo”
(BAUDELEIRE apud ANDRADE, 2004, p. 78).
É preciso estriar as linhas (DELEUZE; GUATTARI, 2008c). Temos, no
primeiro conto, um quadrado, no qual presenciamos em cada um dos vértices figuras
triláteras. Expliquemos: o narrador-capanga nos informa acerca da saga, quando, por
meio de um “ou”, somos levados a possibilidades outras, a um desenrolar diverso do
inicial. Tiradentes, onde o assassino desembarca ou Ouro Preto ou Congonhas, cidades
do barroco colonial mineiro – espaços estriados de captura –, num vértice. O
envolvimento do capanga com a prostituta – uma figura menor (DELEUZE;
GUATTARI, 2003) –, desdobrado em três etapas, noutro vértice. Por fim, o
encontro/busca do caçador pernambucano pela sua vítima e três possibilidades de
encerramento da pendência são postuladas, compondo as duas quinas restantes. Em “O
ponto no círculo”, ao passo que percebemos que quadrado e triângulo designam,
respectivamente, homem e mulher, nota-se que ambos se encaminham ao encontro
amoroso-sexual em um quarto quadrado, localizado na Rua Gervásio Pires, em Recife,
espaço no qual triângulo e quadrado se subsumiriam ao ponto que penetrará o círculo,
concedendo-lhe espécie de eixo firme de basculação. A mulher, rumo à fusão
geométrica, demarca o ímpeto de circunscrever seus devires, ou, nas palavras – talvez,
2
LINS, 1999, p. 118. Primeira publicação da obra Nove novena, na qual encontra-se os contos
usados aqui, data de 1966.
perigosas aqui3 – de Jacques Lacan, tornar todo seu aspecto não-todo (LACAN, 2008).
Cito:
Quanto à minha vida, tento convertê-la em círculo e encontrar o
Ponto, situado no triângulo e no quadrilátero, ponto a que aludiam os
talhadores góticos de pedra, para quem, se não alcançamos tal ciência,
será em vão todo esforço no sentido da lógica e da harmonia. (LINS,
1999, p. 23)
Em tal testemunho, o triângulo-mulher deixa entrever, pelo vindouro parceiro,
contumaz entusiasmo, subordinado, por sua vez, ao olho de vidro que compunha a face
do homem. A insólita peça seria oposta ao olho natural, sendo que neste, a visibilidade
se restringiria ao transitório, e, naquela, a supressão do vazio pelo rigor técnico seria
capaz de perceber os mais frágeis objetos. (LINS, 1999, p. 23) O olho de vidro não vê,
apenas contempla o eterno com exatidão e máxima objetividade e imparcialidade,
fazendo a mulher vislumbrar a oportunidade de sublimar a anátema de seu devir:
“Assim talvez não se perca, diante deste homem, meu lado geométrico”. (LINS, p.23)
Ou: malgrado as fotografias que possuía em mãos para reconhecer suas vítimas, o
bandido-narrador de “Conto barroco” via-se impotente de estabelecer correlação com as
figuras reais, vá dizer, reconhecer os futuros assassinados devido à vida própria que as
imagens ganhavam ao seu olhar. (LINS, p. 121) A captura pelo aparelho fotográfico
coadunada à fixação do capanga pelas imagens produzidas ali gerava um ser qualquer,
irreconhecível. Este fato adquire consubstancialidade ao próprio método de
aniquilamento do assassino, como o que se mostra no diálogo com a prostituta:
-Vai embora por quê?/ - Você agora existe. Infelizmente./ - Que foi
que eu fiz de errado? / - Passou a ser. Não posso lhe explicar. Mas
uma puta, uma vítima, não podem existir. Se existem, abrem uma
chaga no carrasco. (LINS, 1999, p. 124)
Sabemos de um ponto bastante caro a Gilles Deleuze, que o faz, inclusive,
preferir Lewis Carroll a Albert Camus, qual seja: “o sentido não existe, mas subsiste e
insiste” (DELEUZE, 2009, p. 34), marcando como corolário o rechaço ao vazio, pelo
filósofo, em detrimento da pletora, do excesso. Onde, supostamente, não há nada, na
3
Tratando-se de um trabalho com viés deleuziano, alertamos quanto à querela do último relativa
aos trabalhos do psicanalista francês.
imagem sem correspondente, o sentido inflecte, dobra e desdobra, é aquilo que é numa
singularidade momentânea. Frente a tal panorama, o triângulo-mulher deseja se
enrijecer, anulando sua não coincidência consigo para, finalmente, ser presença, agir,
corroborar a exatidão da figura triangular. O capanga, ou seja, aquele cuja obediência se
restringe às normas superiores, anseia a inexistência dos outros perante si, impedindo-se
de se conectar a qualquer coisa (DELEUZE; GUATTARI, 2008a, p. 39), projetando-se,
finalmente, apenas em sua destruição fascista. Contudo, como num fortalecimento de
sua soberania e de seu poder de captura, as vítimas devem permanecer como uma
verdade posta em variação, e, de tal forma, se mostrando ao sujeito (DELEUZE, 1991,
p. 40), no caso, ao assassino. A aspiração do bandido é que a existência do outro se dê
apenas no instante de sua captura, de sua subsunção. Para tanto, as imagens, os corpos,
são privados da capacidade de ação, restando-lhes a condição de uma espécie de
espectadoras (DELEUZE, 1985) virtuais: Gervásio, ou Pascásio, ou Artur, a
metamorfose da personagem, sua indescidibilidade entre um e outros, gerando um
inominável, contudo, subserviente à soberania. O olho de vidro, a câmera fotográfica, o
bandido-soberano, podem moldar seus objetos – e não talhá-los na pedra, mas na murta
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002) constituindo moldes em variação –, entretanto, de
forma constante, ou seja: tendo como objeto uma “pura forma vazia e sem conteúdo”,
passam a operar por meio da modulação (DELEUZE; GUATTARI, 2003), enunciando,
entretanto, somente a sentença de castigo. (DELEUZE; GUATTARI, p. 80)
Comprazendo-se mais ao tecnológico contemporâneo que ao início da era
industrial, padronizada, a flutuação da norma que substitui a constância da lei
(DELEUZE; GUATTARI) – poderíamos também chamá-la de força-de-lei4 –, marca
conspícua da modulação numérica do dispositivo (DELEUZE, 1991, p. 38), permite a
captura incessante, tendo em vista que ela varia de acordo com a verdade em variação.
Ou seja, tal qual demonstrava Franz Kafka, segundo Deleuze e Guattari, a lei, destituída
de objeto de conhecimento, em correlação às vontades de um soberano, produz apenas
efeito de culpa, de castigo no corpo e na carne. (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 80)
Destarte, o sujeito que captura não faz nada além que propor a convergência das linhas
em fuga (DELEUZE; GUATTARI, 2008c) em detrimento da constituição total de sua
figura, não obstante sua modulação sugira sempre compossibilidade – ainda que como
4
AGAMBEN, 2004. Destaco a leitura de Giorgio Agamben a Jacques Derrida que grafa força-delei riscando a última palavra da expressão, ou seja: a lei se ausentando de seu próprio lugar.
uma amálgama se instalando por meio da sujeição – em relação às coisas, aos seres.
Assim, há apenas compares5, espécie de equiparação, responsável por coadunar
elementos de naturezas distintas em prol de um todo maior.
O poder de captura do bandido de “Conto barroco”, todavia, se alquebra na
modulação textual, que, ao permitir que as tripartições se conectem umas as outras –
caracterizadas, por sua vez, pela incompletude –, metamorfoseia a lógica o “ou” em “e”.
Se a tripartição católica pai, filho e espírito santo, desce, do primeiro ao segundo andar
da casa barroca às figuras menores (DELEUZE; GUATTARI, 2003) de assassino –
Deus pai que decide sobre a vida –, explorador/vítima – Filho, falsificador da imagem
de Cristo - e prostituta como Espírito Santo, que não une, mas separa pela traição pai e
filho, de acordo com Ana Luiza Andrade (ANDRADE, 1997), mesmo o poder
pertencente ao assassino de decidir sobre a vida, ou da oportunidade de opção entre
separação ou união, próprio prostituta, são aviltados. O bandido mata a prostituta, ou
Gervásio – Pascásio ou Artur? – ou seu pai que, por sua vez, possuía a face sem um dos
olhos. Todos morrem, ou; nenhum deles sucumbe, seja em Ouro Preto, ou Tiradentes ou
em Congonhas. Outrossim, a possibilidade de a prostituta ter traído o pernambucano
permanece em aberto, dependendo do desenrolar da saga, na qual o comprovante da
traição se daria por meio da morte da negra. O bandido-narrador, como já descrito,
torna-se imóvel ao perceber diluídos os efeitos de suas causas, gerando, como corolário,
sua opaca anomia postulada enquanto tal: não há soberania, não há narrador, e, sim,
infinitas montagens barrocas (DELEUZE, 1991) que levam as dobras ao infinito, à
saturação.
Como marca de um barroco citado e ex-citado (COMPAGNON, 2007) no
contemporâneo, deflagra-se, em Osman Lins, a mudança de pólos constitutivos da
modulação, conforme a postula Gilles Deleuze: a passagem da “variação da verdade
para o sujeito para a condição sob a qual a verdade de uma variação aparece ao sujeito”.
(DELEUZE, 1991, p. 48) Tal panorama se firma pela incompossibilidade entre os
fragmentos de “Conto barroco”, de forma que elementos de distintas naturezas não
formam um todo, mas a natureza de um só elemento não coincide consigo, ou, ainda, a
natureza, sua essência, é o próprio devir, admitindo/sendo sempre outros. Não há
metáforas, mas metamorfoses de uma linguagem sempre nascendo com a escrita, e, com
5
Notar a passagem acerca dos conceitos de “cômpar” e “díspar” realizada pelos autores, tomando
o os conceitos platônicos. A ver: DELEUZE; GUATTARI, 2008c, p. 36.
elas, a leitura: a desmontagem da máquina (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 82) de
escrever, de ler, ou, ainda: a passagem das máquinas geométricas, como em “Ponto no
círculo”, às abstratas, protagonistas de montagens heterogêneas, como diz Guattari.
(GUATTARI, 2008, p. 47)
Os espaços, as personagens, a pletora de animais 6 descrita de modo igualmente
excessivo em ambos os contos, faz com que os elementos sejam colocados enquanto
tais, ou que os objetos sejam confundidos com uma percepção pura virtual, uma
percepção ela mesma, percepção da percepção: afecção (DELEUZE, 2008). Como se o
olho de vidro fosse trazido ao uso (AGAMBEN, 2007) por meio de seu devir, sua
duração, ou: jogado numa zona de indeterminação, uma pura subjetividade e uma pura
objetividade. (DELEUZE, 2008, p. 41)
O olho, por sua vez, símbolo de um interstício entre o presente e o ausente,
coaduna em sua imagem não só uma subjetividade e uma pré-subjetividade, como
ambas as narrativas de Osman Lins. Em “Conto barroco”, sua figura irrompe por meio
da imagem do pai de Gervásio, que roga ser morto em lugar do seu filho. Quando de seu
assassinato pelo bandido, ao olho que faltava em sua face – substituído por um de vidro
–, soma-se um terceiro, na testa. (LINS, 1999, p. 136) De um olho a menos, incompleto,
sempre um que resta, um a mais, despejado, ímpar, não equiparável7, que se desdobra:
como a câmera que filma o personagem caolho, em Filme, de Beckett – personagem
caolho que contempla personagem caolho, puro afecto (DELEUZE, 2011, p. 38). Por
outro lado, é este mesmo olho que continua a vigiar o assassino, numa espécie de
imaginário castrador (LACAN, 2009) onisciente.
Contudo, não nos é permitido, nos textos de Osman Lins, escolher entre um
imaginário ou real, luz e trevas, subsistindo antes o vestígio, o brilho intermediário que
caracteriza o barroco em prejuízo da oposição binária. (DELEUZE, 1999, p. 61)
Portanto, se a lógica romana de um estado linear, cujo corolário manifesta-se pela
transformação do mundo em cidade, ainda se faz presente (DELEUZE; GUATTARI,
2008a, p. 88), as cidades, como em “Conto barroco”, acolhendo a contrarreação a tal
6
LINS, 1999, p. 125. Destacamos em “Conto barroco” uma passagem localizada como um
interstício em meio às tripartições, na qual é narrada uma espécie de sonho do capanga-narrador : “Minha
irmã aponta o pão no meio da mesa. É um menino! Você vai comê-lo? Respondo que não é um menino,
sim um escorpião. Nossos pratos e xícaras vivem transbordados de crianças, jacarés, lacraias, búfalos,
cavalos, mães e flores, que devoramos sorrindo.”
7
DERRIDA, 2004. Deleuze, como já mostrado, lê o incompossível em Leibniz como diferença.
Esta, talvez, próxima à diferencia derridiana.
panorama, cumprem, assim como olho, a função de um indescidível. Congonhas, Ouro
Preto ou Tiradentes, como o quadrado que abriga o encontro dos corpos geométricos de
“O ponto no círculo”, se configuram, inicialmente, como pontos que comandam as
linhas, as suas conexões, que estabelecem e indicam caminhos: primeiro, Tiradentes,
depois, Ouro Preto, por fim, Congonhas, ou; o triângulo encontra o quadrado, o olho, o
ponto, equilibra o círculo. De tal forma, se a cidade é o espaço estriado por excelência, é
justamente nela que se deixa emergir o espaço liso (DELEUZE; GUATTARI, 2008c, p.
188). De dobra em dobra, é preciso lembrar que para Deleuze uma monadologia evoca
uma nomadologia (DELEUZE, 1991, p. 228), polarizando não liso e estriado, captura e
dissolução, mas debruçando-se sobre um dos pólos, tal qual o faz Osman Lins, em que
ambos se fazem presentes. Vá dizer: Tiradentes, Ouro Preto e Congonhas, de superfícies
marcadas por sua dureza por meio de capturas incessantes, encontram na multiplicação
de combinações entre elas – uma ou outra, uma e outra, alhures, nenhuma, todas – a
lisura, a dissolução preponderante. Os pontos, para tanto, tornam-se submissos aos
trajetos, abertos, à escolha da leitura, à infinidade de horizontes flutuantes (DELEUZE;
GUATTARI, 2008d, p. 184). O que quer dizer: não há quadrado algum, pois as linhas
fazem conexões por todos os lados, como num rizoma (DELEUZE; GUATTARI,
2008a), ou; a partir de um devir-mulher do homem, do circulo passamos à elipse, tal
qual constatava Severo Sarduy (SARDUY, 1999, p. 1195) ao escrever e propor uma
leitura anacrônica do barroco – quando postulava o termo neobarroco – cerca de dez
anos antes de Gilles Deleuze. E como o último diria: no (neo) barroco temos apenas
“arredondamentos mas não círculos, alinhamentos mas não linha reta.” (DELEUZE;
GUATTARI, 2008a, p. 89)
No contemporâneo, na singularidade de um (neo) barroco, não há descida a
partir de um andar superior, contudo, o “desfraldar de séries divergentes no mesmo
mundo”. (DELEUZE, 1991, p. 141) Isto, pois parte-se da consciência de que “não há
nada por de trás da cortina da linguagem, que o segredo é que não há segredo”
(HYPPOLITE apud DELEUZE, 2010, p. 25), conforme estabelece Deleuze a partir de
Hyppolite. O fracasso da mulher, marcada pelo triângulo, em imitar os egípcios que, por
sua vez, “transmudam a índole mutável dos animais através da escrita” (LINS, 1999, p.
25), capturando-os por meio da lapidação firme na pedra, a regressa – pois, embora o
contorno do triângulo esteja desenhado, ele se põe quase como uma utopia ao ser
feminino – a uma figura qualquer protogeométrica (DELEUZE; GUATTARI, 2008b, p.
201). Sua geometria primitiva se manifesta nos animais do Rio Nilo, inconstantes, sem
lógicas ou harmonias, todavia, seu desejo seja de estriá-los: daí, o amor pelo olho de
vidro, para dar forma a sua pré-individualidade. A mulher como devir a ser evitado se
liquefaz, portando sua “saia de pérola (...), estampada com rododendros negros” (LINS,
1999, p. 22), deleitando-se no que, para Deleuze, configura a vestimenta barroca: saias,
dobras. (DELEUZE, 1991, p. 201) A partir de então, quando, finalmente, encontra seu
parceiro, um quadrado-homem-músico, que ganha a vida tocando saxofone e trompa, e
não seu verdadeiro instrumento, o oboé, seu caráter dual se explicita. Os instrumentos
musicais, pelas suas formas geométricas, evidenciam o aspecto fálico (ANDRADE,
2004, p. 79), tornando presença firme o homem que, além disso, ao portar seu olho de
vidro, que tudo vê, configura-se como um ser total. Porém, no outro lado da sua face,
resta o olho-devir, finito, sujeito ao tempo, à duração.
Por um instante, triângulo e quadrado se desfazem iniciando uma dança, pois,
como diz Deleuze, “monadas são dançantes, a dança é a dança barroca.” (DELEUZE,
1991, p. 119) Permeado pela propulsão musical transfigurada em gestos num momento
de crise, tudo passa a anteceder à linguagem. Cito: “éramos, ambos, servos de leis que
ignorávamos e tínhamos as línguas cortadas, para que tudo se cumprisse com justeza em
silêncio. Uma dança.” (LINS, 1999, p. 27) Marcando-se como sujeitos de seus próprios
devires (DELEUZE; GUATTARI, 2008c, p. 135), entre algo potencial e atual, logo na
passagem subseqüente, a personagem feminina, demarca-se como duplo irremediável, o
hiato entre linha de fuga e captura:
Somos dois corpos, somos um corpo. O olho verdadeiro colhe minhas
asperezas, minha imperfeição, o que sou de inacabado e portanto de
contíguo à sua natureza. Enquanto isso, perante a outra pupila,
estranho como em frente ao universo da jovem que lembra Ana de
Áustria, apaga-se meu lado mortal. Trasformo-me, assim, numa
entidade que, dual, é visível a um olho humano e resgatada a um olho
mecânico, em sua fria e lúcida dureza. (LINS, 1999, p. 27)
Espaço inominável, liso, no qual decide ficar a mulher, é congenial à sua
existência, “entre ângulos dos geômetras e os bichos do furacão”. (LINS, 1999, p. 29)
Entre os dois olhos do rosto do homem, ou no assassinato sempre porvir, escondido
insistentemente nos desvãos fragmentários da narrativa de “Conto barroco”, explode no
excesso barroco, a exceção de um Estado (AGAMBEN, 2004) sempre reafirmado sob a
lei como pura forma. A modulação, do horror ao êxtase, de um sujeito soberano,
estando sempre num hiato entre sub – subserviente – e sob – da própria soberania –
(DELEUZE, 2005, p. 92), encontra sua singularidade nos espaços das Américas.
Ora, em seus escritos acerca do poeta e ensaísta estadunidense Whitman,
Deleuze (DELEUZE, 2011, p. 76) nos lembra que os europeus possuem enraizado um
“senso intacto de totalidade orgânica” (DELEUZE, p. 77), só conhecendo as
implicações do fragmento a partir de uma reflexão trágica ou de uma experiência do
desastre, em clara remissão ao livro de Blanchot (BLANCHOT, 1995). “Os americanos,
ao contrário”, diz Deleuze, “possuem um senso natural do fragmentário”, sendo que o
“próprio da América é a espontaneidade do fragmentário”. (DELEUZE, 2011, p. 76)
Opondo-se ao solipsismo europeu, a experiência do escritor americano é, para Deleuze,
correlativa a de seu país, qual seja: composta por minorias e migrantes e perpassada por
enunciações coletivas, nas quais toda história privada é também pública, política,
popular, de singularidades. (DELEUZE, p. 77) Em Whitman, o fragmentário não
separa, mas propõe um “tipo particular de frase que modula o intervalo” (DELEUZE, p.
78). Deste modo, “a lei do fragmento vale tanto para a natureza como para história,
tanto para Terra como para guerra, tanto para o bem quanto para o mal” (DELEUZE, p.
79), conclui Deleuze.
Porém, a lógica descrita seria mais intensa em um espaço no qual as linhas de
africanos, europeus e índios se cruzam e se conectam com assídua frequência, como
aconteceria no espaço latino americano, segundo o cubano Severo Sarduy. Prefigurando
um espaço “lateral e aberto” propício à explosão de um “barroco furioso” nas ruínas da
renascença (SARDUY, 1999, p. 1308), a América Latina adota uma tarefa abandonada
pela Europa a partir da potência dos traços de um devir europeu-indígena-africano. As
singularidades das formas por fazer, para Sarduy, coadunar-se-iam aos limiares do
fragmentário: a festa e o carnaval, o dispêndio, a libertinagem e a suspensão das
hierarquias, numa mão, e na outra a barbárie, os destroços de um estado de exceção que
é regra, no qual os pobres, negros e indígenas subsumem nos instrumentos de tortura
dos sistemas escravagistas dos canaviais pernambucanos ou da mineração mineira. No
entreato das modulações barrocas surge, como dizia Sérgio Buarque de Holanda, a
cordialidade, concernente de caráter de ficcionalidade às leis brasileiras, aprovando
tanto a barbárie quanto desarticulando capturas hierárquicas.8
8
HOLANDA, 2009, p. 182. Texto de 1936.
O ensaísta, no entanto, apenas lamenta, no
Osman Lins, em sua formação nordestina, nos faz evocar também Gilberto
Freyre, a quem atribuímos profícuo olhar ao caráter duro de uma sociedade autoritária,
escravocrata e patriarcal, obnubilado pelo ciclo do açúcar. Ana Luiza Andrade, em
comentário a ambos os autores, nos propõe o termo “docilizante” para a “civilização do
açúcar”, utilizando-o para demarcar o aspecto fluído da mistura de raças, tão observado
por Freyre, quanto o aspecto dócil, subserviente dos escravos e índios em relação aos
senhores.
Este espaço cuja história começa do meio não se compraz de modo fortuito ao
barroco, que, por sua vez, insurge em um aiôn9, exaurindo vínculos de causa e efeito
com a Renascença, propondo dobras, saturações e rizomas. Por tais características, o
barroco se encaixa, ou até mesmo se consusbistancializa ao programa filosófico de
Gilles Deleuze. E, talvez, como corolário da falta de um olhar sobre a América Latina,
torna-se evidente no estudo mais longo de Deleuze acerca do barroco, a pouca remissão
a um amplo trabalho de retomada anacrônica da arte barroca como os realizados, a
partir de meados dos anos 50, pelos cubanos Alejo Carpentier e Lezama Lima. Se
Severo Sarduy se colocava como herdeiro direto de Lezama Lima, mas também voraz
leitor de Jacques Lacan, sua remissão, feita por Deleuze apenas em uma breve nota de
rodapé, encontra-se, obliquamente, justificada.
Tanto é necessário trazermos Deleuze à América Latina – como a que descreve
Sarduy, preterido por Deleuze, ou a de Osman Lins, que descrevemos –, às nossas
máquinas de guerra, quanto levar as línguas, construídas pelas minorias daqui “no seio e
contra uma língua maior” (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 38), ao seu pensamento.
É preciso desdobrá-lo em nossas afetações por “coeficientes de desterritorialização”, em
triângulos e quadrados informes que desterritorializam a língua oficial, assim como nos
devires prostitutas-negras e assassinos anônimos, sem rostos, solitários, propulsores, no
entanto, de agenciamentos coletivos. É o nosso terceiro mundo mesmo aqui, no terceiro
mundo. Se Judeus em Praga só podem escrever em alemão (DELEUZE; GUATTARI,
p. 38), putas, mestiços, bandidos, só podem se valer, como em 1966 destacava Osman
especificado texto, o caráter fictício das leis.
9
D´ORS, s.d. Lembramos do termo empregado por um dos primeiros estudos propondo uma
leitura anacrônica da arte barroca, de Eugênio D’ors, em 1930. Tal abordagem se enceta a partir da
postulação do termo éon, derivado do aiôn grego, representando um instante imensurável que, todavia,
toca a roda da eternidade. O termo é fortemente trabalhado por Deleuze em A lógica do sentido. A ver:
DELEUZE, 2009.
Lins, da característica primordial do barroco, demarcada por Deleuze vinte e dois anos
depois: o traço.
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O TRAÇO DO DEVIR LATINO-AMERICANO: OSMAN LINS POR UM