A ponte que atravessa o rio
Patrus Ananias, ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
Falar do combate à fome no Brasil requer falar de combate à desigualdade social.
Requer compreender que o problema ultrapassa a discussão sobre disponibilidade de
alimentos porque sabemos que há pessoas que comem num dia sem saber o que
acontecerá no outro e há quem passe fome enquanto assiste a muito desperdício.
O genial João Cabral de Melo Neto nos legou o poema-síntese de nossa realidade em
“Morte e Vida Severina”, desenhando ao longo do Rio Capiberibe um contundente
retrato dos desafios que se nos apresentam para cumprir a meta estabelecida pelo
presidente Lula de erradicar a fome e a miséria no país. O retirante Severino sai da serra
da Costela, no profundo sertão de Pernambuco, nos “limites da Paraíba”, para buscar
uma vida menos Severina mais adiante, onde o rio traga abundância em terra fértil. Ele
sai de onde o Capiberibe é ainda uma criança fraca e só pode correr quando chove, até
chegar ao litoral, onde o rio, forte e perene, rasga o Recife em suas águas a caminho do
mar. A fome que doía a alma do retirante na nascente pobre do rio continuou a consumilo também na terra da fartura. Então ele deixou-se tomar pelo desespero sem saber o que
fazer “quando os vazios da fome / não se tem com o que cruzar”.
A responsabilidade do Estado é interferir ao longo de todo o trecho do rio para estancar
um ciclo que produz a miséria e faz com que tantos vivam uma “vida a retalho”, “cada
dia adquirida”. Numericamente, disponibilidade de alimentos no Brasil não é o grande
problema. Dados da FAO dão conta de que em 2001 atingimos a disponibilidade de
3.002 calorias/pessoa ao dia; cerca de mil calorias a mais do que o recomendado para o
Brasil segundo padrões internacionais de saúde. No entanto, na última Pesquisa de
Orçamentos Familiares realizada pelo IBGE, 47% dos adultos brasileiros consideram a
quantidade de alimentos adquiridos insuficientes para suas necessidades diárias. Isso
acontece principalmente por causa de insuficiência de renda. A comida está disponível,
mas nem todo mundo tem acesso em quantidade e qualidade suficiente e nem com a
regularidade necessária e a dignidade de escolher o que comer. Temos aí um grave
quadro de insegurança alimentar, provocado pela perversa associação da pobreza com
desigualdade social, e que o Fome Zero quer combater. É importante entender que o
Fome Zero não é um único programa, mas uma estratégia definida pelo governo federal
para assegurar a todos o direito humano à alimentação, priorizando as pessoas, famílias
e comunidades com dificuldade de acesso aos alimentos.
Quando o presidente Lula colocou a estratégia como prioridade de governo, assumiu o
desafio de transformar as ações estatais de maneira integrada e articulando com a
sociedade para implantar uma política de segurança alimentar. A estratégia do governo
consiste em implementar, de maneira integrada e articulada, programas, planos e ações
emergenciais e estruturais de modo a promover e proteger as famílias pobres,
impedindo que elas resvalem para a indigência. O que queremos é evitar a fome, a total
iniqüidade.
Partimos, então, do pressuposto de que a fome é parte de um problema maior, estrutural.
O mesmo problema que levou o retirante Severino do poema a deixar os limites da
Paraíba para procurar vida melhor no litoral. Assim o Fome Zero consolidou-se como o
articulador das nossas políticas sociais, unificadas em torno de um projeto de
desenvolvimento nacional com vistas à inclusão social; um projeto que vincula
desenvolvimento econômico e desenvolvimento social. Nesse projeto, a ação pública é
norteada pelo princípio da segurança alimentar e nutricional, nosso ponto de
convergência entre várias ações estruturantes, articuladas interministerialmente, entre as
esferas de governo e também com amplo diálogo com setores da sociedade civil
comprometidos com esse objetivo.
Nesses quase dois anos à frente do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome, nossas ações seguem esse norte e assim, estamos conseguindo vencer a luta
contra a pobreza, contra a fome e a desnutrição.
Para as famílias severinas do semi-árido brasileiro, o Fome Zero chega, por exemplo,
por meio das cisternas de captação de água de chuva que, junto com o Programa de
Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), ajudam a fixar o homem no
campo ao mesmo tempo em que ampliam acesso à comida. Das 200 mil cisternas, cerca
de 160 mil foram construídas com recursos do Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome. Os R$ 660 milhões investidos no PAA desde 2003, garantiram a
compra da produção de 120 mil pequenos produtores e atenderam 6 milhões de pessoas.
O PAA está presente em várias regiões no Brasil e, no semi-árido, trabalha também com
a modalidade do Programa do Leite, responsável pela compra da produção de 25 mil
pequenos produtores e distribuição de leite para 2,7 milhões de pessoas. O leite é
comprado daqueles agricultores que produzem não mais do que 100 litros de leite dia,
dando a eles o incentivo que faltava para continuar com o trabalho e até mesmo
melhorando a produção.
Mas como já dizia o saudoso Betinho, “quem tem fome tem pressa”, o Fome Zero
também prevê ações emergenciais para aquelas famílias e comunidades que precisam da
ajuda direta do governo para se alimentarem. O programa de distribuição de cestas
alimentares, destinado principalmente para famílias sem terra acampadas, comunidades
indígenas e quilombolas e comunidades atingidas por barragens, já distribuiu mais de 4
milhões de cestas. Em 2007, a previsão é de empregar R$ 46 milhões para distribuir 915
mil unidades.
Nos centros urbanos de médio e grande porte, nós estamos incentivando a criação de
sistemas públicos de segurança alimentar, por meio de Restaurantes Populares, bancos
de alimentos e cozinhas, hortas e lavouras comunitárias. Temos, prontas ou em
construção, 101 unidades de restaurantes populares divididos em todas as regiões do
país com capacidade de servir 162 mil refeições por dia, com cardápio variado,
alimentos de alta qualidade e a um custo subsidiado. Estamos seguindo os mais
vigorosos critérios republicanos para ampliação deste programa, com a aprovação de
restaurantes populares em estados e municípios escolhidos por meio de processo de
seleção. Além disso, estamos cumprindo a meta de implantar 87 bancos de alimentos,
383 cozinhas comunitárias e 6,5 mil hortas e lavouras comunitárias, envolvendo a
comunidade em soluções coletivas para melhorar o acesso a alimentação boa e barata.
Dando sustentação a tudo isso, o Bolsa Família vem se consolidando como o maior
programa de transferência de renda com condicionalidades da América Latina. São 11
milhões de lares que se beneficiam de uma renda básica para suprir as necessidades
mais elementares da formação da dignidade humana. O programa envolve mais de 40
milhões de pessoas e tem sido um importante instrumento para promover a inclusão
dessas famílias, de introduzi-las no universo de direitos básicos de cidadania. Os
últimos levantamentos dão conta que nas famílias atendidas pelo Bolsa Família, 95%
das crianças freqüentam regularmente a escola e 91% de crianças estão com cartão de
vacinação rigorosamente em dia.
Estamos promovendo a integração do Bolsa Família com o Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil (Peti), o que permite maior alcance dos dois programas. Essa iniciativa
atinge o aspecto estrutural do problema – as famílias precisam de uma renda básica para
manter seus meninos e meninas na escola e isso será feito com pagamento dos
benefícios do Bolsa Família. Ao mesmo tempo, redireciona todo recurso hoje previsto
para pagamento das bolsas do Peti para financiamento das atividades socioeducativas e
de convivência, que são instrumentos de inserção social, oferecendo oportunidade de
desenvolvimento integral da criança e do adolescente.
Em torno desse núcleo do Fome Zero, outros programas tecem a rede de proteção social
que estamos construindo no país. Ainda que não formalmente ligados a essa estratégia,
trabalham em regime de integração, formando o suporte necessário para consolidar a
estratégia de mudar a realidade da vida Severina daqueles que sempre construíram o
Brasil, mas historicamente permaneceram devedores de nosso desenvolvimento.
Reconhecer a assistência social como um direito regulamentado pode parecer óbvio
porque isso é uma determinação da Constituição Cidadã de 1988 que a institui como
direito constitutivo da seguridade social ao lado da saúde e da previdência social. Mas a
consolidação desse direito só foi possível de se concretizar agora, por meio do Sistema
Único de Assistência Social (Suas), que estamos implantando agora. O Suas significa a
superação definitiva de qualquer forma de assistencialismo e clientelismo porque
integra as políticas de assistência social e estabelece padrões de atendimento e de
qualidade dos serviços prestados em todos os municípios do Brasil, com transferência
automática e regular de recursos de fundo a fundo.
A referência do Suas são as Casas das Famílias, que dão acompanhamento às famílias
pobres, com orientação pedagógica e psicológica e identificando as demandas e
carências de cada localidade. Hoje, temos 2,4 milhões de famílias atendidas em 3,2 mil
unidades. Para este ano, serão mais 1004 novas casas das Famílias. Do total, 649 serão
destinadas a comunidades específicas (quilombolas e populações indígenas).
Esse é um programa estratégico, porque concentra o atendimento à família, foco de
todos os nossos programas sociais, de modo a oferecer o apoio necessário para evitar
dissolução dos núcleos familiares. Na linha de proteção e promoção das famílias, os
Benefícios de Prestação Continuada (BPC), com orçamento de R$ 13,5 bilhões,
desempenham um papel significativo porque garante uma renda de um salário mínimo
ao idoso e ao deficiente físico que não tenha condição de sustento por sua família. Em
conjunto com os programas de transferência de renda, esse programa atua em duas
linhas: garantem renda básica as famílias carentes e ao mesmo tempo dinamizam as
economias locais porque cria novos consumidores.
Queremos promover o encontro do Brasil consigo mesmo. Se não é ainda o Brasil dos
nossos sonhos – sempre queremos um pouco mais –, será certamente o país que
reconhece o potencial de transformação de seu povo. Queremos que o retirante Severino
possa encontrar esperança em qualquer trecho do rio, seja na cabeceira ainda seca, seja
no curso da viagem, seja no meio da multidão da cidade grande. Temos de construir as
pontes para que nossa gente possa cruzar “os vazios da fome”. A dificuldade da
empreitada é do tamanho do nosso desafio, mas temos de pensar como o Mestre
Carpina, aquele que salva o retirante Severino do desespero absoluto: “a miséria é mar
largo / não é como qualquer poço / mas sei que para cruzá-la / vale bem qualquer
esforço”.
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