CORPO PENSADO, CORPO PENSANTE:
modulações entre discurso, corpo e tortura
Marcio Renato Pinheiro da Silva
Doutor em Teoria da Literatura pela Unesp, campus de São José do Rio Preto.
Palavras-chave: corpo; discurso; tortura.
Abstract
On the one hand, the logical and semantic assertiveness, which,
disseminated by gregariousness, makes viable the communication
between subjects, as well as, in some cases, the subjectivity itself;
on the other hand, the interchange between differences, which
makes the meaning/sense valid by itself, and, what is more, by the
movements which cause it and which are caused by it. Such a
dialectics, characteristic of speech, becomes more complex if one
deals with body, or, mainly, with discourses on body: in this case,
what speaks or writes (the body itself) is separated from the spoken
or the written, and the spoken or written is about what does this
activity, that is, about body itself. Thus, there is a conceived body,
the one which is made by speech, and, on the other side, a body
which conceives, the one which speeches. If the dialectics between
these bodies is ideologically broken, that aims the supremacy of the
conceived body over the body which conceives (for example, of the
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De um lado, a assertividade lógico-semântica, a qual, disseminada
por meio do gregarismo, viabiliza a comunicação entre sujeitos,
bem como, em certos aspectos, a própria subjetividade; de outro, o
intercâmbio entre diferenças, que torna o sentido válido menos por
si mesmo do que pelos movimentos que o desencadeiam e que são
por ele desencadeados. Esta dialética, própria ao discurso, tornase ainda mais complexa em se tratando do corpo, ou, mais
precisamente, dos discursos sobre o corpo: aí, aquilo que fala ou
escreve (o corpo) o faz na medida em que se dissocia do dito ou
escrito, sendo que este dito ou escrito versa, precisamente, sobre
aquilo que executa tal atividade (isto é, o próprio corpo). Tem-se,
assim, de um lado, um corpo pensado, aquele constituído no
discurso, e, de outro, um pensante, aquele que discursa. Lida-se,
aqui, com a hipótese segundo a qual um rompimento ideológico
desta dialética visando à preponderância do corpo pensado sobre o
pensante (por exemplo, da “alma” ou “espírito” sobre o “corpo”)
projeta a inviabilidade dos dois corpos em jogo. Tanto que, em um
evento de extrema desumanização como a tortura, a projeção
citada como que se materializa. Pois, em que pese sua
especificidade histórica, social, política e psíquica, a tortura, por
meio da violência e do arbítrio extremos, empreende, no torturado,
a dissociação entre corpo e sujeito.
35
Resumo
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“soul” or “spirit” over the “body”), the damage of both bodies is
projected. That is why, in an extremely dehumanized situation as
torture, such a projection is materialized. In spite of its historical,
social, political and psychical specificities, the torture, by the
violence and arbitrariness, separates tortured's body from tortured's
subject.
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Keywords: body; speech; torture.
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O que é corpo?
Uma pergunta, ao que parece, bastante simples. Trata-se da relação
analógica que o verbo ser, flexionado na terceira pessoa do singular do modo
indicativo (é), estabelece entre o termo corpo e uma breve locução de função
pronominal (o que). Em tese, esta relação, embora estabelecida em termos
sintáticos, não o é, plenamente, em termos semânticos. Pois a locução citada, em
razão de seu caráter díctico (ou dêitico), mais indicia a possibilidade de uma
relação semântica acontecer, bem como projeta o lugar que lhe é reservado, no
caso, a identificação a corpo. E, mediante o ponto de interrogação que encerra a
oração, esta possibilidade se converte em uma solicitação, instaurando uma
necessidade ou, ainda, delegando um dever. Tal conversão ocorre com base na
hierarquia entre as instâncias enunciadora e enunciatária, seja esta hierarquia, em
razão de diversos fatores, preexistente à elaboração da questão o que é corpo?,
seja ela criada, justamente, por esta questão.
Neste processo, o termo corpo, não importa o que se diz a seu respeito,
pode adquirir a capacidade de significar e de ser ele mesmo ou pode, apenas, ter
essa capacidade suprida por aquilo que se consente em se dizer dele? Parece que
corpo só pode adquirir essa capacidade, justamente, devido a outros termos a
exercerem, ou seja, corpo só pode adquirir sentido e ser se for outra coisa que não
corpo, no caso, se for aquilo que se consente dizer a seu respeito. E,
possivelmente, o consentido só pode sê-lo se outros termos fizerem, por ele, o
mesmo que ele faz por corpo, isto é, se aquilo que se consente não for,
propriamente, o consentido, e assim sucessivamente.
Esta permutação compõe um movimento irregular, visto que motivado
por diferenças, de qualquer tipo ou grau, existentes entre os termos. Por exemplo,
conferir algum sentido ao termo corpo só é viável, como vimos, se ele for tomado
por outra coisa que não ele mesmo, por algo diferente dele, sendo esta diferença o
que motiva e possibilita a assimilação de um termo a outro. Só há sentido em dizer
corpo é “x” se, em uma primeira instância, forem consideradas coisas diferentes.
Da mesma maneira, só há sentido em dizer corpo não é “x” se, em uma primeira
instância, forem consideradas coisas semelhantes. Nos dois casos, é a diferença
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Entre o consentido (aquilo que se aceita dizer de corpo) e o próprio termo
a que se refere (corpo), a pergunta projeta, como já dito, uma relação semântica de
teor analógico. Mas projeta, também, uma outra, de cunho algo ontológico. Não só
porque o verbo ser é o que estabelece tal relação, mas, principalmente, porque o
consentido é considerado análogo a corpo em um grau bastante elevado (trata-se,
afinal, do verbo ser, de corpo é...). De modo que, se se solicita algum
esclarecimento quanto a o sentido de corpo, isso ocorre porque o termo, por si só,
não pode exercer as funções que, implicitamente, a pergunta lhe atribui. Ou seja,
de acordo com a pergunta, à medida que corpo não diz seu ser nem seu sentido e à
medida que se pretende que o diga, é necessário dizer algo de corpo e consentir
que este algo seja seu substituto adequado, que possa ser tomado pelo termo a
que se refere, que o seja e que o signifique.
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O suprimento dessa necessidade, o cumprimento desse dever, isso
requer a articulação de uma ou outra sentença, a listagem de alguns termos cujo
encadeamento entre si e a corpo seja aceito pelas duas instâncias envolvidas na
enunciação, pela proponente em especial. Aquilo que é, então, consentido pode
tomar o lugar da locução de função pronominal, sendo identificado a corpo. E,
como esta nova relação se estabelece mediante um consentimento, o teor
inquisitivo da primeira sentença cede lugar a um afirmativo, o que se desdobra na
alteração da pontuação.
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aquilo que viabiliza a troca semântica entre os termos e, conseqüentemente, o
sentido. De modo que não só a relação entre as palavras (signos) e as coisas
(referentes), bem como a entre as próprias palavras, ambas são, como o diz
Nietzsche (2001), relações, lato sensu, metafóricas.1 Relações, a propósito, cujo
sentido se encontra menos naquilo que se diz do que no percurso que desencadeia
o dizer e que é desencadeado pelo dito, ou seja, nas direções que acenam ao
discurso e às quais o discurso acena.
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Com efeito, dizer algo sobre o que é corpo? não responde,
necessariamente, à questão, mas, antes, prorroga-a, desloca-a, metaforiza-a. Por
este viés, como o termo corpo só pode ser ele mesmo conforme não o for, o teor
ontológico lançado pela pergunta inicial se avizinha, mediante uma resposta
qualquer, de um semântico consentido. Mas isso não implica que o teor ontológico
seja, propriamente, negado. Ele é, sim, relativizado e redisposto visando a uma maior
adequação às condições e às necessidades vinculadas à enunciação, isto é,
justamente, às condições e às necessidades que incitaram à relativização. Afinal, se
o ontológico é um semântico consentido, o semântico não deixa de ser, em alguns
aspectos, um ontológico consentido. Ou, mais precisamente, o semântico não deixa
de se apropriar, compulsoriamente, de algumas das funções atribuídas ao
ontológico.
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Em uma passagem de Mitologias, Roland Barthes escreve que “o vinho é
objetivamente bom, e, simultaneamente, essa qualidade é um mito: eis a aporia”
(Barthes, 2003a, p. 251, grifos do autor). Este movimento metonímico, segundo o
qual o qualificativo (bondade) é tomado pelo qualificado (vinho), desencadeia, de
fato, uma aporia, um impasse. Tomemos algo que um determinado sujeito perceba
como sendo exterior a ele, distinto dele, em suma, um objeto à sua percepção. Por
um lado, o sujeito só pode tomar um objeto a partir da relação que estabelece com
ele, isto é, pela significação deste objeto. Por outro, tal significação tende a suplantar
o objeto. De modo que a experiência com um dado objeto se dá ao custo de sua
relativa refração.
Isso ocorre porque o discurso, ao lidar com aquilo que toma por objeto, só
consegue lhe abstrair sentidos conforme o fragmenta e o transforma naquilo que
ele não é. Entre o objeto desprovido de sentido e os sentidos que se atribui a este
objeto, entre tal objeto e o discurso que o recobre, há uma espécie de fenda
fantasmática, cujo preenchimento ou cuja travessia são impossíveis. Pois o
discurso não pode cruzar a distância entre ele e o objeto, já que é o discurso,
precisamente, o que cria esta distância; o discurso só pode prorrogá-la. E o objeto,
por si mesmo, é, em muito, alheio aos sentidos que lhe são atribuídos;
conseqüentemente, é bastante problemática sua apreensão discursiva.
De certo modo, ao perceber este caráter algo insondável do objeto e ao
afirmá-lo por meio do discurso, da linguagem, ou, ainda, ao fundar tal
insondabilidade por meio da linguagem2 — este é um dos principais momentos nos
quais o sujeito acontece. E tal acontecimento implica a assimilação, por parte do
sujeito, de um amplo conjunto de hábitos e de prescrições articulados no bojo da
vida social e histórica, isto é, a linguagem. Marx e Engels escrevem que “A
linguagem é tão antiga quanto a consciência — a linguagem é a consciência real,
prática, que existe também para os outros homens (...); a linguagem só aparece
com a carência, com a necessidade de intercâmbios com os outros homens” (1998,
p. 24-25, grifo dos autores). Esta carência tornada intercâmbio, ou, mais
precisamente, este intercâmbio que suplanta e prorroga tal carência ao deslocá-la
a um outro âmbito, ao da linguagem; deslocamento que visa tanto ao suprimento de
uma necessidade intersubjetiva quanto à sua projeção, rumo à qual se desprende e
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Se as divisões psíquicas e sociais são aquilo que desencadeia os
diversos processos sócio-históricos e psíquico-epistemológicos, a linguagem é
uma dos principais campos sócio-históricos na qual estes processos se afirmam e
se cristalizam, mesmo porque, sem tal cristalização, não há linguagem. Dois
fatores interdependentes concorrem a isso, a assertividade e o gregarismo
(Barthes, 2002b). A assertividade é a operação segundo a qual os sentidos
atribuíveis/atribuídos a um determinado objeto se lhe tornam como que próprios. O
gregarismo é a repetição ostensiva da asserção, a qual, difundida socialmente,
torna-se reconhecível e assimilável a um grande número de sujeitos; é, em certa
medida, a institucionalização do sentido sancionado pela assertividade. Por um
lado, a assertividade, por si só, já é, de certo modo, um processo gregário. Por
outro, a força do gregarismo reside, justamente, em seu efeito assertivo.
A assertividade e o gregarismo instauram e difundem um determinado
conjunto de hábitos e de prescrições lingüísticas que, ao cabo, concorrem à
fundamentação não só da intersubjetividade e da vida social, bem como da própria
subjetividade. Estes hábitos e prescrições concentram divisões e relações cuja
instauração, em um hipotético primeiro momento, é motivada por necessidades e
desejos afins a uma situação enunciativa algo específica. E este “primeiro
momento” é repetido e, ao mesmo tempo, modificado a cada enunciação, a cada
situação que envolve a comunicação e social, seja esta comunicação estabelecida
entre diferentes sujeitos, seja de um único sujeito consigo mesmo.
De fato, as necessidades e os desejos do outro (da linguagem), com os
quais um determinado sujeito, inevitavelmente, lida ao se lançar no fluxo do
discurso, são eles uma boa parte daquilo que constituem tal sujeito, bem como uma
de suas principais vias de integração à vida social e histórica. Em meio a esse
discurso do outro que é a linguagem, o que se coaduna às necessidades e desejos
de um sujeito específico? O que instaura, precisamente, estas necessidades e
desejos? Se um dos principais fatores constitutivos deste sujeito são as relações
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Esta consciência se articula tanto a partir da vida intersubjetiva, social e
histórica de um sujeito específico quanto por fatores compulsórios à linguagem e,
conseqüentemente, àqueles que se valem dela. Não, apenas, porque a linguagem
é uma espécie de testemunha viva da história, mas, principalmente, porque ela é
um dos principais agentes sociais e históricos. Dentre as características deste
agenciamento, está o fato de a linguagem se estruturar por meio de uma série de
relações lógico-semânticas (equivalência, complementaridade, subordinação,
determinação etc.) cujo teor hierárquico as assimila ao poder. Este teor é inerente
não só à linguagem, bem como à vida social. Marx e Engels, por exemplo,
consideram que a divisão do trabalho, mecanismo basilar a boa parte daquilo que
chamamos de história, “outra coisa não era, primitivamente, senão a divisão do
trabalho no ato sexual” (1998, p. 26). Da mesma maneira, Freud (1997) concebe
que a divisão entre ego e mundo externo fundamenta tanto a vida psíquica quanto
se desdobra na social, sendo que, para Adorno e para Horkheimer, “O despertar do
sujeito tem por preço o reconhecimento do poder como princípio de todas as
relações” (1885, p. 24). Não é outro o principal elemento constitutivo da linguagem:
a divisão. Mais precisamente, as diferenças, as quais desencadeiam sentidos, são
instauradas a partir de divisões, de cisões; estas resultam em fragmentos que,
entre si, desencadeiam relações lógico-semânticas. De fato, as diferenças são as
divisões e, ao mesmo tempo, as relações e hierarquias possíveis entre tais
fragmentos. Isso porque a fundação de divisões pressupõe um gesto relacional e
hierarquizante, isto é, afim ao poder.
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se renova a força do discurso — eis, aí, a linguagem, ou, com Marx e com Engels, a
consciência que é linguagem.
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subjetivas e intersubjetivas, o que, em tese, diz respeito a este sujeito são os
desejos e necessidades relativos a estas relações, embora seu teor, em muito,
varie de um sujeito a outro, de uma relação a outra, de um momento a outro. Caso a
linguagem, bem como os valores e relações que encerra, forem como que
repetidos automaticamente, sem que os sujeitos, ao menos, tentem levar em
conta, na medida do (im)possível e de maneira algo crítica, as necessidades e
desejos do outro (da linguagem) que constituem a eles próprios, a linguagem pode
tornar-se demasiadamente alheia ou, mesmo, contrária àqueles que a difundem.
Se, como Barthes o escreve, assim que proferido, mesmo que de um sujeito para si
mesmo e em circunstâncias bastante íntimas, qualquer discurso “entra a serviço de
um poder” (2002b, p. 14), o que dizer de uma linguagem que se presta à
objetificação das relações subjetivas, intersubjetivas e sociais?
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Não é outra coisa o que Marx e Engels compreendem por ideologia
(1998), isto é, uma consciência equivocada. Equivocada porque as ambivalências
próprias às relações sociais são delegadas a outras instâncias que não àquelas
que concorrem à sua configuração efetiva. Isso, além de reiterar e de difundir o
equívoco, acena à sua continuidade. Não é outra coisa o que Barthes compreende
por mito: “o consumidor do mito considera a significação como um sistema de fatos:
o mito é lido como um sistema factual, ao passo que é apenas um sistema
semiológico” (2003a, p. 223). Não é outra coisa, também, o que Nietzsche, no
vigésimo primeiro parágrafo de Além do Bem e do Mal, chama de mitologia:
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“Não se deve coisificar erroneamente 'causa' e 'efeito' (...);
deve-se utilizar a 'causa', o 'efeito', somente como puros
conceitos, isto é, como ficções convencionais para fins de
designação, de entendimento, não de explicação. No 'em si'
não existem 'laços causais', 'necessidade', 'não-liberdade
psicológica', ali não segue 'o efeito à causa', não rege
nenhuma 'lei'. Somos nós apenas que criamos as causas, a
sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a coação, o número,
a lei, a liberdade, o motivo, a finalidade; e ao introduzir e
entremesclar nas coisas esse mundo de signos, como algo 'em
si', agimos como sempre fizemos, ou seja, mitologicamente”
(1992, p. 27, aspas e grifos do autor).
Entretanto, a maior parte dessas mitologias, desses fatores ideológicos,
são indispensáveis a qualquer discurso porque o constituem e o viabilizam. E,
sendo indispensáveis a um discurso, isso significa que o são, também, a diversos
aspectos da vida social, intersubjetiva e subjetiva. Qualquer prática que se
pretenda categoricamente destrutiva ou iconoclasta em relação à assertividade e
ao gregarismo da linguagem se entranha em inúmeras ambivalências. Pois a
efetivação desta prática depende, em muito, de sua aceitabilidade social e
lingüística, o que, facilmente, pode fazer com que ela desempenhe as mesmas
funções contra as quais erigira. Além disso, uma tal prática pode, sem grandes
esforços, ser “pega” (qualificada) pela assertividade e, em seguida, pelo
gregarismo, entregando-se, de mãos atadas, à linguagem da qual se quer distinta
ou, até, contrária.
Certamente que a atividade crítica não pode prescindir de tais questões,
mesmo porque são elas, muitas vezes, sua maior motivação e, ao mesmo tempo,
aquilo que a narcotiza. Pois, ao se pretender válida e esclarecedora, a crítica pode
alienar o objeto de estudo caso for considerada pertinente: o objeto se torna não
mais ele mesmo (isto é, algo cujos sentidos se desencadeiam a partir de sua
interação com um sujeito), mas, tão-somente, aquilo que se diz deste objeto. O
sujeito crítico, caso quiser criticar o que, aí, é dito, ele só pode dizer outra coisa, a
qual, também, aliena o objeto assim que considerada válida ou pertinente etc. Da
mesma maneira, se a atividade crítica, ao tratar de um determinado objeto,
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inscreve o desejo do sujeito crítico, esta inscrição se avizinha da castração do
objeto, como o vimos no caso de o objeto se restringir àquilo que se diz dele. Mas
essa castração pode, também, abranger o próprio sujeito crítico/desejante caso ele
se resumir não a seu desejo, à força que o impulsiona, mas a seu objeto (castrado).
Por um lado, se a crítica se recusa a correr estes riscos, ela recusa boa
parte da função sociopolítica e histórica que, muitas vezes, constituem sua
motivação e sua justificativa. Por outro, tais riscos são, precisamente, aquilo que
pode miná-la. Talvez, fosse o caso de, como o escreve Barthes (2003b), a crítica
ansiar não a verdade, mas a validade, isto é, uma confusão, temporária mas
necessária, entre verdade e linguagem; confusão que comportasse e, na medida
do possível, assimilasse as precondições necessárias a seu ulterior
esclarecimento e deslocamento. Uma tal crítica, ao tentar desnudar a validade
convertida em ideologia ou mitologia em seu próprio bojo, que ela conseguisse
não, finalmente, desvendar o objeto (como desvendá-lo se isso implica transpô-lo
àquilo que ele, por si só, não é?), mas, sim, recriar a distância, a fenda entre as
palavras e as coisas. E que esta fenda, sua suplantação e penetração impossíveis,
que isso seja a própria experiência como discurso, bem como vice-versa.
Tais questões não inviabilizam, de modo algum, uma reflexão sobre o
corpo. Mas, conforme se escreve ou se diz corpo, vários aspectos entram em cena.
Primeiramente, aquilo que escreve ou que diz, ou seja, o próprio corpo, dissocia-se
do escrito ou dito. Esta dissociação se dá ao custo de uma enorme fragmentação
daquilo que é designado, havendo, em contrapartida, a possibilidade de
comunicação intersubjetiva em termos discursivos. Se, dentre os diversos
elementos e funções (ou seja, aquilo que se percebe como significação) que corpo
possui, encontra-se o cogito ou discurso, e se ele só consegue apreender aquilo
que o constitui em termos bastante precários e incompletos — isso se coaduna a o
fato de haver, pelo menos, dois corpos em jogo. De um lado, o, digamos, corpo
pensante, aquele que viabiliza e desencadeia o cogito, bem como diversas outras
funções. De outro, o corpo pensado, isto é, o corpo tal como concebido pelo cogito,
pelo discurso.
A dissociação inevitável entre pensado e pensante pode dar vazão a um
jogo cuja ambivalência concorre à composição e à fragmentação discursivas tanto
de um quanto do outro. Isso equivale a desejos e necessidades bastante diversos,
sendo sua construção e sua renovação relativas àqueles envolvidos em
enunciações específicas. Fragmentação e especificidade, sendo a primeira um
fator inerente à própria linguagem, sendo a segunda não a recusa da história que,
ao se fazer linguagem, faz-se história, mas, sim, sua repetição e, ao mesmo tempo,
sua possível renovação em corpos contingentes — isso acontece porque “nomear
exorciza” (Barthes, 2003b, p. 112). Eksorkismós (grego), exorcismus (latim),
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As hesitações, até o momento, em torno desta pergunta se ampliam caso
levadas em conta as especificidades do objeto, bem como das significações às
quais acena. Mesmo porque tais significações são como que contraditas, todo o
tempo, por aquilo que pretendem designar, repondo e reiterando a fenda entre
corpo e discurso. Afinal, como pensar o corpo? Como tomar, por objeto de reflexão,
o lugar do qual se desentranha a reflexão? Como se dissociar de si mesmo para
pensar a si mesmo, se tal dissociação implica a obliteração, voluntária ou não, do
lugar em que se dá o pensamento, senão, precisamente, daquilo que pensa?
Como abordar a intrincada rede de elementos e de funções que viabiliza o próprio
cogito, rede da qual o cogito parece ser, apenas, uma função, dentre outras?
35
O que é corpo?
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ambos na acepção de expulsão de espírito maligno; maligno, provavelmente,
porque se furta à univocidade dócil. Mas toda essa rede espectral que é a
linguagem e o discurso, todo esse exorcismo praticado ad infinitum, trata-se de
algo inviável à medida que pretende banir aquilo que o é. De fato, mais do que banir
o maligno, o exorcismo discursivo o produz. E sua falha, caso assimilada ao próprio
discurso, é, precisamente, aquilo pode fazer com que ele resvale, mesmo que
precariamente, naquilo que o é, ou seja, dentre outras coisas, no corpo.
Marcia Tiburi, ao lidar com a relação entre corpo e linguagem, escreve que
“Há que se considerar a própria linguagem como trauma por
inviabilizar o gozo com o próprio corpo, sendo a interdição
básica que constitui o sujeito. Porém o corpo é experimentado
de modo negativo, não como objeto de gozo, mas de terror,
não como o que nostalgicamente se desejaria alcançar, mas o
que é novamente experimentado após a interdição da
linguagem” (2003, p. 182).
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A interdição do próprio corpo, daquilo que se é, interdição que, promovida
pela linguagem, funda o sujeito na mesma medida em que impede o gozo com seu
próprio corpo — isso ocorre porque a linguagem já é, ela própria, um certo gozo,
ainda que em outro nível. Gozo, aqui, é uma hesitação entre dissolução via
integração, ou vice-versa; uma dissolução do sujeito para que se lhe integre ao
outro, seja este outro seu próprio corpo, o corpo de outra pessoa ou o sujeito do
outro. Os dois primeiros casos são relativos ao erotismo; o terceiro, à linguagem.
156
Quanto a este último, vimos e revimos que a linguagem é um conjunto de
hábitos e prescrições, articulados em meio à vida social e à história, que o sujeito
assimila para compor a si mesmo. Isso equivale à sua inserção na vida social e
histórica, de modo que a subjetividade se revela, necessariamente, uma
intersubjetividade. Ou seja, conforme se alheia de seu próprio corpo, conforme lida
com a vida social e histórica em si, é, então, que o sujeito se constrói. Ademais, a
linguagem, os sentidos por ela desencadeados, eles se viabilizam, já o vimos e
revimos, conforme se perdem, conforme se tornam aquilo que não são, e em dois
níveis: o propriamente lingüístico-discursivo e o entre as palavras e as coisas. É em
tais perdas que o sujeito lida consigo mesmo, com as palavras e com as coisas; é,
aí, que o sujeito perde a si mesmo, bem como aquilo a que se referem os sentidos,
para ganhar a si mesmo em outro âmbito. A comunicação intersubjetiva é isso tudo
em um grau mais elevado porque compartilhado; é uma hesitação entre dissolução
via integração (ou vice-versa) menos entre corpos do que entre palavras, destas
entre si e dos sujeitos que, nelas, projetam-se. O sentido é, em suma, algo que o
sujeito experimenta como um gozo de palavras ou um gozo em palavras.3
Quanto ao gozo envolvendo o corpo do próprio sujeito ou o corpo de outra
pessoa, ele se estabelece por meio de uma mesma dialética entre dissolução e
união. Mas, neste caso, trata-se do materialmente concreto, do físico e
biomecânico (isto é, os movimentos da matéria viva), logo, distinto do discurso,
cuja materialidade é, latu sensu, simbólica. De fato, o gozo efetivo desta
concretude físico-biomecânica dos corpos nada tem a ver com a simbólica; pelo
contrário, já que o esboço desta implica a falência daquela. É por este viés que
Marcia Tiburi escreve, conforme a citação já transposta, que a linguagem é
traumática por interditar o gozo do corpo. Daí, ainda conforme Marcia Tiburi, o
horror em relação ao corpo: gozar o próprio corpo é um acontecimento delicado e
difícil porque pressupõe, dentre outras coisas, a suspensão do simbólico, do
discurso, do sentido;4 esta suspensão, caso esboçada ou, mesmo, efetivada, faz
com que o corpo retorne ao sujeito como sendo alheio ou, até, contrário ao
discurso, à inteligibilidade discursiva.
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O gozo é, apenas, uma possibilidade. Alguns outros acontecimentos
físico-corpóreos fazem com que o discurso tome o corpo como algo estranho,
alheio; ou, então, como algo cuja apreensão discursiva não deixa de,
insistentemente, revelar-se precária. Este é o caso, por exemplo, das paixões, das
doenças ou, mesmo, de um cadáver. Não surpreende que isso desencadeie o
temor ante o corpo, ante o próprio corpo. Não surpreende, também, que a dialética
entre corpo pensado e corpo pensante dê vazão a um discurso ideológico ou
mitológico que a suplante, isto é, que recalque o fator constitutivo desta relação em
prol de uma oposição unívoca. Univocidade que, por meio da assertividade e do
gregarismo excessivos, ganha contornos categóricos, como se se tratassem de
diferentes “naturezas”. Em suma, não surpreende que uma dicotomia como “corpo
versus alma” seja instituída para exorcizar o que ela mesma projeta.
Separação unívoca entre corpo pensado e corpo pensante, entre corpo e
cogito/discurso, separação suscitada por “corpo versus alma” — é esclarecedor
que esta separação se estabeleça, de modo algo categórico, em uma situação cuja
desumanização é extrema, isto é, na tortura. Em que pese a especificidade da
tortura, sua constituição sociopolítica e histórica, suas conseqüências ao torturado
são, precisamente, de tal ordem. Conforme Maria Rita Khel:
“É que a tortura refaz o dualismo corpo/mente, ou
corpo/espírito, porque a condição do corpo entregue ao
arbítrio e à crueldade do outro separa o corpo do sujeito — no
sentido do sujeito da ação, da vontade, da determinação. Sob
a tortura, o corpo fica tão assujeitado que a 'alma' — isso que
pensa, simboliza, ultrapassa os limites da carne pela via das
representações — ficasse separada dele. A fala que
representa o sujeito deixa de lhe pertencer, uma vez que o
torturador pretende arrancar de sua vítima a palavra que ele
quer ouvir, e não a que o outro teria a dizer. Resta ao sujeito
que se identifica com o corpo que sofre nas mãos do outro o
silêncio, como última forma de domínio de si. E resta o grito
involuntário, o urro de dor que o senso comum chama de
'animalesco'. (...) O silêncio é a escolha de quem não tem mais
escolha nenhuma; e como escolha, é o último reduto (ético) de
humanidade desse homem/corpo despojado de todos os
outros avatares da condição humana” (2004, p. 11-12, aspas e
grifos da autora).
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E há um forte conflito em meio a todo esse processo. Por um lado, a
linguagem mantém, com o corpo, uma relação algo traumática, como já o vimos.
Por isso, o domínio sobre corpo se institui e se legitima, sobretudo, em um âmbito
lingüístico, discursivo, isto é, latu sensu, simbólico. Possivelmente, as violências
não-simbólicas aplicadas contra o corpo, suas motivações e justificativas (desde
os processos psíquicos aos sociopolíticos e históricos; desde as ações infratoras
às institucionalizadas pela Igreja, pelo Estado etc.) — todas se vinculam a alguma
prática ou fator de ordem discursivo-simbólica. Por outro lado, os discursos que
visam à instrumentalização e ao domínio do corpo se esmeram em oprimir os
discursos que lhe são alheios ou contrários. Ao que parece, o resultado desta
equação, articulada pelo rompimento da dialética constitutiva e não-sintética entre
corpo pensado e corpo pensante, é a gangrenagem tanto do corpo quanto do
discurso, isto é, daquilo que se costuma chamar de humano.
35
Facilmente, uma tal dicotomia é assimilada à exacerbação ideológica
cujo estabelecimento se dá em nome da autopreservação e do domínio
te(le)ológicos. Então, a narcotização do corpo em nome da alma, como ocorre em
tantas religiões. Então, a instrumentalização do corpo, seu domínio técnicocientífico. Nos dois casos, o corpo se torna cada vez menos pensante e cada vez
mais pensado, isto é, coadunado à manutenção da ideologia vigente a ponto de, se
possível, “derivar” dela.5
157
Não, propriamente, o refazimento do dualismo “corpo versus mente” ou
“corpo versus espírito”, mas, antes, sua instauração categórica como “naturezas”
distintas. Aí, a arbitrariedade e a crueldade do torturador esfacelam o torturado,
reduzindo-o à carne que grita ou que se silencia. Carne cuja história não mais pode
ser simbolizada via linguagem, senão pelo discurso do grito ou do silêncio,
havendo, em contrapartida, a inscrição, em sua própria carne, dos ferimentos que o
simbolizam na mesma medida em que o dilaceram. Ao mesmo tempo, o torturador
é o humano naquilo que ele tem de ânsia pelo domínio, pela sujeição do outro, pela
alienação em nome de um poder qualquer. E a tortura, sempre, funda ou mantém
um poder, seja ele institucionalizado formalmente (Igreja, Estado etc.) ou não
(organizações consideradas criminosas etc.).
vivência
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Elemento plural, cuja diversidade é diretamente proporcional à de
necessidades, de desejos e de discursos; força constitutiva dos mais elementares
processos psíquicos, sociais e linguísticos; articulação simbólica (isto é,
lingüístico-discursiva) que, caso assimilada à ideologia ou à mitologia, motiva e
legitima ações contra outra articulação do gênero ou contra algo que se lhe resista;
força-motriz da ideologia ou mitologia — o poder é, quiçá, tudo isso, bem como algo
além. Entretanto, por mais complexas e ambivalentes que sejam sua constituição e
sua incidência, suas máscaras e suas feições, a tortura gera ou revela uma de suas
possibilidades: aquela em que o poder é alheio à sobrevivência e afim à
degenerescência.
158
Ainda que mais evidente em se tratando do torturado, esta
degenerescência recai, também, sobre o torturador. Pois ele se distancia do corpo
ferido ou morto, seu especular futuro, tornando-se uma mera engrenagem de uma
instância com cuja identificação se assinalam sua alienação, sua descartabilidade
e a incitação à sua vulnerabilidade. Ao desempenhar sua função, o torturador
afirma, no corpo do torturado, a inviabilidade do poder ao qual se julga, em vez de
alheado, aliado. Pois esta aliança só lhe garante uma sobrevivência vigiada,
reiterando, incondicionalmente, a instância à qual serve. Sua vida social é menos
uma experiência do que a imposição de uma repetição; é uma espécie de “zero
informacional”, de redundância absoluta, de silêncio como significado, o mesmo,
aliás, ao qual ele quer reduzir o torturado. O torturador é um cadáver in excelsis, um
morto vivo: ele visa à morte do outro, seja forçando a adesão subalterna deste ao
poder vigente ou matando-o literalmente, como forma de adiar aquilo que, de certo
modo, já lhe chegou.
O martírio pelo qual passa o torturado, martírio que coloca em risco sua
condição de sujeito, sua linguagem, sua “alma” ou “espírito” — este martírio faz o
mesmo em relação a seu corpo. Daí que a separação categórica entre “corpo” e
“alma” se dá ao custo do sacrifício e da inviabilidade de ambos. Então, restam-lhe o
grito e o silêncio. O grito que emite é um de seus últimos recursos corporaldiscursivos visando ao estabelecimento da intersubjetividade, a estridente
desarticulação sonora como onomatopéia de sua condição de sujeito, como
prosopopéia do poder que o subjuga, como anacoluto da condição humana. O
torturado pode, em princípio, recorrer ao silêncio como forma de resistência. Mas,
conforme prosseguem a tortura e a violência, multiplicando-se, assim, os danos
impostos ao corpo, qualquer articulação discursiva se revela inviável. O silêncio é,
então, involuntário, acolhendo e transpondo o torturado na medida em que acena
ao lugar em que se turva a volição, lugar da dissolução do sujeito em matéria
orgânica danificada ou em significante de um significado que, embora intolerável,
é, em muito, familiar. Ao se recolher ao silêncio ou ser por ele acolhido, o corpo do
torturado se irmana de tudo aquilo que o poder torturante não cessa de
desencadear por concebê-lo como sendo afim ou, mais ainda, próprio ao outro.
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Outro que se encontra entranhado em suas ações mais elementares, outro cuja
repressão, por mais potencializá-lo em si mesmo, mais justifica e amplia a sujeição
daquele que, embora desempenhe o papel de outro, não o é. Por vezes, o torturado
é quem, mesmo não tendo escolha, escolhe ser este outro; noutras, mesmo não o
querendo, a escolha não lhe cabe.
NOTAS
1
Recorre-se, aqui, a uma possível etimologia da palavra, no caso, ao termo latino metaphòra, ae, que, por sua
vez, vincula-se ao grego metaphorá, âs. Suas acepções giram em torno de mudança, transposição,
transporte. É a partir daí, e em âmbito lato, que Nietzsche emprega o termo metáfora, referindo-se não só às
transposições propriamente discursivas, bem como às existentes entre as palavras e as coisas. Aí, o teor
analógico, que, freqüentemente, é considerado como motivador de uma metáfora — este teor não preexiste,
necessariamente, a uma metáfora, mas é, antes, instaurado, de forma arbitrária, por uma. Havendo qualquer
preexistência, trata-se, provavelmente, de uma outra metáfora.
2
Discurso é, aqui, compreendido como sendo performance ou desempenho da linguagem. Ou, por outro
lado, a linguagem pode ser um conjunto abstrato projetado pela atuação de um discurso. Neste trabalho, o
foco recai sobre a linguagem denominada verbal (a fala e a escrita).
3
Esclarece-se que este gozo de palavras ou em palavras nada tem a ver com o prazer ou o gozo do texto de
Roland Barthes (2002a). O gozo textual, para Barthes, é o discurso experimentado de maneira semelhante
ao gozo físico-corpóreo. A abordagem deste gozo textual requereria a de várias questões muito além das
esboçadas neste trabalho.
4
A banalização do gozo, veiculada, atualmente, pelos mais diversos meios e linguagens, parece fruto de uma
certa mescla entre prazer e gozo. O prazer, sensação identificada pelos sentidos como sendo agradável, não
pressupõe, como o faz o gozo, a suspensão do discurso ou do sentido, mesmo porque o prazer é de ordem,
também, sócio-histórica e política. Por um lado, o gozo, se considerado afim ao prazer, é um prazer cujo
caráter radical turva os meandros (conscientes e, por isso, de ordem, sobretudo, discursiva) a partir dos quais
se pode qualificar algo como prazeroso. Por outro, a assimilação de uma noção bastante enfraquecida de
gozo, tal como pleiteada pelo prazer atualmente, pode ser lida como uma tentativa de suplantação do gozo,
isto é, de repressão àquilo que oferece resistência ao discurso, à racionalização, ao domínio técnico. Não por
acaso, este enfraquecimento do gozo de modo que se lhe assimile ao prazer, enfraquecimento via discurso,
ocorre, principalmente, em meio à institucionalização do prazer, à sua ostensiva instrumentalização na
sociedade de consumo.
5
Por exemplo, uma faceta corrente deste processo (no caso, relativo à instrumentalização técnico-científica)
é o “culto ao corpo”, ou, mais precisamente, o culto a uma dada padronização do corpo. A assertividade e o
gregarismo extremos, que motivam uma determinada leitura de aspectos físicos, são, em seguida,
projetados como sendo um misto entre princípio (arqué) e finalidade (télos) dos quais qualquer corpo deve,
necessariamente, derivar. Não por acaso, esta prática é bastante comum a tendências totalitárias e
autoritárias. Não por acaso, também, Adorno e Horkheimer lêem este processo da seguinte maneira: “A
tradição judia conservou a aversão de medir as pessoas com um metro, porque é do morto que se tomam as
medidas — para o caixão. É nisso que encontram prazer os manipuladores do corpo. Eles medem o outro,
sem saber, com o olhar do fabricante de caixões, e se traem quando anunciam o resultado, dizendo, por
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Mas, afora suas especificidades sociopolíticas, históricas e psíquicas, há,
no grito e no silêncio do torturado, bem como no arbítrio e na violência do torturador
— há, aí, algo irredutível, de uma insondabilidade irredutível, a qual faz com que
esse grito, esse silêncio, esse arbítrio e essa violência se tornem significantes de
um significado inominável, uma espécie de abismo ao qual se teme dirigir o olhar e
do qual não parece possível se aproximar senão a bordo de receios dilacerantes.
Por isso mesmo, talvez, estejam, aí, corpos pensantes com os quais o discurso
deva lidar. Que o caráter radical e extremo destes corpos seja uma precondição ao
acontecimento de uma experiência discursiva relativa não só ao aspecto
desumano ou inumano da tortura, bem como àquilo que, nela, há de humano.
159
exemplo, que a pessoa é comprida, pequena, gorda, pesada. Eles estão interessados na doença, à mesa já
estão à espreita da morte do comensal, e seu interesse por tudo isso é só muito superficialmente
racionalizado como interesse pela saúde. A linguagem acerta o passo com eles. Ela transformou o passeio
em movimento e os alimentos em calorias, de maneira análoga à designação da floresta viva na língua
inglesa e francesa pelo mesmo nome que significa também 'madeira'” (1985, p. 219, aspas dos autores).
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor Wiesengrund; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.
Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. Jacó Ginsburg. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002a.
BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 2002b.
BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. Rita Buongermino; Pedro de Souza; Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro:
Difel, 2003a.
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003b.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago,
1997.
KHEL, Maria Rita. Prefácio: três perguntas sobre o corpo torturado. (9-19) In: TIBURI, Marcia; KEIL, Ivete
(Org.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos, 2004.
vivência
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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Trad. Luis Cláudio Castro e Costa. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de
Souza. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
NIETZSCHE, Friedrich. Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extra moral. (64-84) In:
NIETZSCHE, Friedrich. O livro do filósofo. Trad. Rubens Eduardo Ferreira Frias. 3. ed. São Paulo: Centauro,
2001.
TIBURI, Marcia. Cinza. (161-186) In: TIBURI, Marcia; KEIL, Ivete (Org.). O corpo torturado. Porto Alegre:
Escritos, 2003.
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n. 35 2010 p. 149-160
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12_Marcio Renato Pinheiro da Silva