EDITORIAL
DE DRED SCOTT A BARACK OBAMA1
O processo civilizatório quase nunca é linear e não se deve subestimar a
importância de seus marcos, ainda quando não produzam a superação imediata
ou plena do status quo ante. A campanha das diretas já não culminou em eleições diretas, os acordos de Camp David não puseram fim aos conflitos atávicos
do Oriente Médio, as revelações assombrosas de Nuremberg não impediram os
massacres na antiga Iugoslávia. Sem prejuízo disso, cada um desses eventos
contribuiu de alguma forma para a realização dos fins maiores que se pretendia
alcançar. Quando menos, trouxeram consigo um instante de lucidez e um novo
impulso para a ação consciente em direção a determinado objetivo.
Pouco mais de 150 anos separam os dias 6 de março de 1857 e 20 de
janeiro de 2009. No primeiro, a Suprema Corte norte-americana decidiu o caso
Dred Scott v. Sandford, assentando que um homem negro, ainda quando fosse
reconhecido como cidadão por determinado Estado da Federação, não seria um
cidadão dos Estados Unidos e, por conta disso, sequer poderia figurar como
parte perante uma corte federal. Decidiu ainda que o Congresso havia exorbitado de seus poderes e violado o direito à propriedade privada ao abolir a escravidão em determinados territórios2. Na segunda data, Barack Hussein Obama, um
homem negro, filho de pai queniano, prestou juramento como Presidente do
mesmo país, sendo ovacionado por uma multidão que se dispôs a enfrentar longas horas de espera sob o mau tempo. Isso após uma campanha eleitoral relati-
1 Texto elaborado por Eduardo Mendonça, membro do Conselho Editorial da Revista de Direito
do Estado.
Como se sabe, a decisão não refletia uma manifestação local de intolerância. Por séculos, a
escravização dos negros foi praticada de forma sistemática e massiva em todo o mundo ocidental.
O tráfico de escravos africanos constituiu uma das principais atividades econômicas do Brasil
colonial e do Império, persistindo, na prática, até as vésperas da proclamação da República. Essa
engrenagem resultou na migração forçada de milhões de seres humanos, em condições absolutamente degradantes.
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vamente tranqüila, em que a disputa mais acirrada se deu para a definição de
quem seria o candidato do Partido Democrata.
O caminho que separa um momento do outro foi acidentado e repleto de
marcos intermediários, incluindo uma guerra civil que por pouco não partiu em
dois os Estados Unidos. O conflito, que se desenrolou entre 1861 e 1865, teve
como principal motivação a disputa em torno da abolição da escravatura, a que
se opunham os Estados do Sul. Após o fim dos combates e a vitória do Norte, a
escravidão foi proibida pela 13ª Emenda à Constituição americana, ratificada
ainda em 1865. O preconceito, contudo, permaneceria arraigado na sociedade
e mesmo nas instituições. Em 1868, a 14ª Emenda veio proibir expressamente
que os Estados editassem ou executassem leis restringindo os privilégios ou as
imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos. Em 1883, porém, nos famosos
civil rights cases, a Suprema Corte entendeu que a Emenda aplicava-se somente
ao Poder Público, não impedindo atos privados de discriminação. Pouco adiante, em 1896, no julgamento de Plessy v. Ferguson, a Corte foi ainda além, afirmando que os Estados poderiam manter instalações públicas separadas para
brancos e negros, desde que similares. A decisão deu origem à chamada doutrina do separate but equal — separados, mas iguais —, que não apenas resultou na oferta de serviços inferiores para a população negra, mas também em
uma chancela à estigmatização.
A segregação oficial adentrou o século XX e só foi superada à custa de
grandes sacrifícios pessoais. A tensão atingiu seu auge nas décadas de 50 e 60,
que viram o surgimento de movimentos organizados de contestação das leis e
práticas discriminatórias. Grupos violentos como os Panteras Negras dividiam a
cena com manifestações de resistência pacífica, que tiveram no reverendo Martin Luther King sua principal liderança. Tornaram-se comuns no país, sobretudo
nos Estados do Sul, formas de protesto que consistiam unicamente na ocupação
ordeira de locais reservados aos brancos. A repressão truculenta por parte das
autoridades era enfrentada pelos ativistas com altiva resignação. As imagens de
manifestantes sendo espancados por policiais, apenas por terem tido a ousadia
de se sentar em determinado restaurante ou café, chocaram o mundo e tiveram
o impacto de tornar evidente a violência implícita nos atos de segregação.
Apesar da pressão pública sobre o sistema político, o principal marco
institucional da virada em favor dos direitos civis foi produzido pela Suprema
Corte, em 1954, no célebre julgamento de Brown v. Board of Education. Em decisão unânime, o Tribunal declarou que a existência de escolas públicas separadas restringia as oportunidades das crianças negras e que a doutrina do separate but equal era inerentemente discriminatória. Apesar de sua manifesta importância, é lógico que a decisão não acabou automaticamente com o preconceito.
A superação de crenças e hábitos consolidados leva tempo, e freqüentemente
deixa vítimas pelo caminho. Uma delas foi o próprio Luther King, assassinado em
1968 por um fanático ligado a grupos segregacionistas do Sul. As tensões raciais
continuaram presentes na vida política e cultural norte-americana nas décadas
seguintes. No entanto, o fim da segregação oficial produziu significativa melhora
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nas condições de vida dos negros e, pouco a pouco, as manifestações ostensivas de racismo tornaram-se escassas.
Tal como a decisão em Brown, a eleição de Barack Obama não representa, evidentemente, o fim da discriminação racial no mundo, tampouco nos
Estados Unidos. Passada a euforia, muitos dos que o aplaudiram continuarão na
periferia do progresso social, desempenhando funções que outros não querem
exercer ou recebendo menos pela realização de trabalho similar. Da mesma forma, muitos dos eleitores do novo presidente, brancos e também negros, continuarão a praticar, em suas vidas cotidianas, pequenos ou grandes gestos de
preconceito, explícito ou velado, consciente ou não. Nada disso afasta a importância do momento para o processo de afirmação da igualdade substancial entre os seres humanos.
Em seu discurso mais célebre, intitulado eu tenho um sonho, Martin Luther King expressou a confiança de que um dia os seres humanos seriam julgados unicamente por seus atos e por seu caráter, e não pela cor da pele. A foto
dos casais Obama e Bush, lado a lado no dia da posse presidencial, é carregada
de simbolismo. Lá estava o filho de um dos clãs políticos mais poderosos da
América, cuja conduta na presidência é objeto de intensa contestação, entregando o comando da maior potência mundial a um homem negro, sem origem
aristocrática, em cuja capacidade a população confiou para conduzir o país em
um momento de redefinição política e aguda crise econômica. A cor de pele do
Presidente está em todos os noticiários, mas, antes de tudo, os eleitores parecem ter escolhido o candidato que lhes pareceu mais competente e afinado com
o momento histórico. Ainda não chegamos lá, mas um dia o movimento pelos
direitos civis — que sempre será memorável — há de alcançar a suprema realização de se tornar obsoleto.
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EDITORIAL - Luís Roberto Barroso