Doutrina
Resolução do Contrato por Onerosidade Excessiva
ÊNIO SANTARELLI ZULIANI
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Professor de Direito
Civil das Faculdades COC/Ribeirão Preto, do Curso de Especialização GV/Law e dos
Cursos Jurídicos Marcato.
SUMÁRIO: 1 A intervenção nos contratos: passado e presente; 2 Onerosidade
excessiva; 3 O acontecimento perturbador das relações; 4 Momento da
transformação da anormalidade em antijuridicidade; 5 Atuação do juiz;
Referências.
1 A INTERVENÇÃO NOS CONTRATOS: PASSADO E PRESENTE
Contrato é a operação jurídica que dois ou mais sujeitos
realizam para intercâmbio de seus interesses e metas, criando
vínculos de deveres e direitos que os empenham ao cumprimento,
desde que, durante a sua execução, não sobrevenham profundas
alterações das condições estabelecidas e mentalizadas como
ponderáveis pela lógica da probabilidade. Quando circunstâncias
inesperadas interferem no ciclo das projeções estimadas pelo risco e
pela consciência razoável do esperado, poderá suceder o fim precoce
do contrato, pela asfixia da sua chance de sobrevida. As partes são
livres para renegociar os efeitos das cláusulas alteradas e, caso isso
não ocorra, estão legitimadas a recorrer ao Judiciário 1 em busca de
solução para o conflito contratual, na forma do art. 5º, XXXV, da
Constituição Federal.
Suprindo uma lacuna do CC de 1916, o art. 478 do novo
Código Civil diz que, nos contratos de execução prolongada, poderá
advir resolução quando a prestação de uma das partes se tornar
excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em
virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. O art. 479
do CC ressalva a oportunidade de a parte favorecida evitar a
resolução, ofertando meios que libertem as prestações dos desajustes
supervenientes, sendo que o art. 480 do CC autoriza o juiz a excluir o
excesso que fez claudicar a balança da justiça contratual, ainda que
nos contratos unilaterais.
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Já se fazia tardar, porque esses dispositivos eram esperados e
cumpre louvar os esforços dos juristas que, com antecedência
meritória, alertavam para a incidência da imprevisão. Arnoldo
Medeiros da Fonseca 2 advogou a tese de que caberia ao juiz intervir
para "resolver o vínculo contratual" [e não rever o contrato para
estabelecer novas condições] quando houvesse "acontecimentos
imprevistos e imprevisíveis, alterando radicalmente o ambiente
objetivo existente ao tempo da formação do contrato e acarretando
para um dos contratantes uma onerosidade excessiva e não
compensada por outras vantagens auferidas anteriormente, ou ainda
esperáveis". Paulo Carneiro Maia 3 foi mais abrangente:
Tenhamos presente que, diante de acontecimentos
imprevisíveis e excessivamente onerosos, motivando alterações
graves, o contrato perdeu seu equilíbrio. Esse contrato, então, não se
torna inútil, mas apenas desequilibrado. A proteção ao devedor,
frente a essa agravação ou maior onerosidade a seu cargo,
consistirá, por lógico, no restabelecimento do equilíbrio perdido,
nunca à rescisão, como escopo. Se defrontarmos um desequilíbrio
que desejamos corrigir, a solução para isto consiste no concurso a
fim de se restaurar o equilíbrio primitivo.
Clóvis Beviláqua afirmava 4 que a regra rebus sic standibus é
de justiça contra a rigidez do princípio garantidor e conservador pacta sunt servanda. A doutrina distinguia o efeito da circunstância
que interferia no rumo do contrato; se gerasse uma impossibilidade,
incidiriam a força maior e o caso fortuito do art. 1.058 do CC de 1916
e, se as circunstâncias apenas modificassem as condições de
exigibilidade, seria oportuno modificar as formas de se exercitar o
ajuste, que Jorge Americano 5 chamou de "cláusula rebus sic
standibus propriamente dita".
A cláusula rebus sic standibus responde, agora, pelo nome de
teoria da imprevisão, cuja função é bem franca: atuar criteriosamente
para impedir que os objetivos econômicos do contrato se frustrem
pelas surpreendentes adversidades que radicalizam a incoerência da
vantagem excessiva para um e o sacrifício cruel para outro. A
perplexidade do resultado que não se explica diante da desproporção
ao objeto projetado no momento da celebração do contrato impulsiona
a atividade intervencionista do juiz.
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O contrato não perdeu a segurança que dele se espera como
instrumento legal de que os compromissos serão cumpridos, tal como
assumidos (pacta sunt servanda), apenas porque se institucionalizou a
previsão. O contrato, afirmou Enzo Roppo 6, "não está morto, mas
está simplesmente diferente de como era no passado". O CC, no art.
427, estabelece que a proposta do contrato obriga o proponente, de
maneira que nesse instante já nasce uma vinculação, cujo desrespeito
ensejará perdas e danos; concluído o negócio e formalizado o
contrato (art. 428, I), os contratantes são obrigados a guardar,
também na execução, os princípios da probidade e boa-fé (art. 422).
Darcy Bessone 7 enfatiza que, quando se diz que o contrato faz lei
entre as partes, está se pretendendo apenas reforçar o sentido da
coercibilidade e da inderrogabilidade "para significar que o contrato é
coercitivo, não o podendo modificar ou extinguir a vontade de uma só
das partes".
O art. 1.134 do Código Civil francês é sempre citado como
referência do princípio pacta sunt servanda, o que é verdadeiro,
embora os doutrinadores se apressem em ressalvar a possibilidade de
modificação nos contratos de trato sucessivo em virtude de variações
graves das circunstâncias 8. O Código Civil italiano prevê igualmente
la rizoluzione per eccessiva onerosità (art. 1.467) e não dispensa a
intercorrência de um acontecimento extraordinário e imprevisível, o
que encaminhou Pachioni 9 a situar, como exemplos, a guerra e a
consequente desvalorização da moeda. Vale anotar que não se requer
a vantagem extrema para um dos contratantes para o fim de que o juiz
possa remediar o desajuste, como disposto no art. 478 do CC.
O Código Civil espanhol não especifica a matéria, embora
admita a rescisão pela lesão (art. 1.291, § 1º), sendo que os princípios
gerais do contrato animam doutrinadores a conclamar postura
edificante dos tribunais para alteração dos contratos desvirtuados por
onerosidade excessiva 10. O Código Civil português admite a
resolução ou modificação do contrato em virtude de "alteração
anormal" (art. 437), expressão que diferencia o texto dos demais que
exigem a imprevisibilidade, o que proporcionaria a inserção, como
evento anormal, "a desvalorização abrupta e excessiva da moeda,
falta ou encarecimento inesperado de certas matérias-primas
utilizadas no fabrico de determinados artigos, o descrédito ou a
desconfiança lançada sobre certo produto, que provoca o súbito
abaixamento da sua venda, o aparecimento de um substituto, muito
mais econômico desse produto, a valorização anormal de certa obra
ou tipo de obras, a desvalorização de um prédio a mercê de corte
inesperado de uma via de comunicação" 11.
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A nossa ordem jurídica se arrependeu tanto pela ausência de
regras sobre a justiça comutativa dos contratos que, para expiar
possíveis culpas, construiu regulamentos para bem servir a essa
causa. Assim, pelo art. 6º, V, da Lei nº 8.078/1990, está licenciada a
"modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes
que as tornem excessivamente onerosas", texto que se completa com
o que consta do art. 52, § 1º, III. O art. 478 do CC dispõe: "Nos
contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma
das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem
para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e
imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato". A
possibilidade de modificação das condições se encontra nos arts. 479
e 480, cumprindo, ainda, observar o que dispõe o art. 317 do CC:
"Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta
entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução,
poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure,
quanto possível, o valor da prestação".
O eminente Renan Lotufo 12, que considera ter o dispositivo
(art. 317) o histórico da teoria da imprevisão, anotou que ele "não se
restringe às questões contratuais, em que, pelo princípio da justiça
contratual, o equilíbrio das prestações deve ser mantido, como
decorrência da equitatividade, da igualdade. Por outro lado, por ter
aplicação mais ampla (a toda e qualquer obrigação), não colide nem
invalida as disposições expressas relativas à onerosidade excessiva,
estipuladas para serem de aplicação estrita ao campo contratual".
O regime adotado é abrangente e começa pelas relações de
consumo. Nessas, que não serão analisadas aqui, basta a
desproporcionalidade imposta por acontecimentos supervenientes
para que o juiz modifique a cláusula que onere de forma excessiva o
consumidor (art. 6º, V, da Lei nº 8.078/1990). Para os particulares, o
sistema permite que se invoque o art. 317 do CC, que é bem
específico como remédio adequado para que o contratante possa
pleitear a modificação das prestações excessivamente onerosas, sem
necessidade de provar o enriquecimento da contraparte (dado objetivo
da equivalência das prestações, como anota Ruy Rosado de Aguiar
Júnior 13). Para a resolução, indica-se o art. 478 do CC, cuja
interpretação deve considerar a base do negócio.
A base objetiva do negócio é uma teoria que permite que o juiz
complemente o contrato de execução continuada, analisando, pelo
sentido e finalidade dos acertos, a vontade hipotética para
regulamentar uma situação futura não regulamentada, tendo Karl
Larenz 14 como precursor e que nos explica o seguinte:
Esto es exacto si por voluntad hipotética de las partes, no se
entiendi lo que cada una de ellas hubiese supuestamente querido en
tal caso considerando sólo su propio interés, sino lo que ambas
partes hubiesen querido o aceptado honestamente como justo
equilíbrio de intereses [...] Por tanto, la voluntad hipotética de las
partes es un criterio normativo que pressupone la honestidad de los
contratatantes y a esse respecto se halla orientado por el concepto
de justicia contractual compensatoria.
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O juiz examina a vontade declarada e os propósitos para, com
esses dados objetivos, definir o sentido contemporâneo da cláusula
que saiu do eixo funcional. Não é uma intervenção leviana ou
imprudente, mas, sim, direcionada aos primados da boa-fé objetiva
(art. 422 do CC) e da função social do contrato (art. 421 do CC). A
intervenção judicial é uma evolução do direito contratual e a alteração
das prestações desproporcionais soa como a própria essência da
modernização dos conceitos jurídicos que se adaptam aos novos
tempos e às novas realidades sociais, providência obrigatória no
sentido "de tornar o direito mais eficiente, de podar-lhe as
injuridicidades relativas, de adequá-lo com maior intensidade à
realização de suas finalidades de justiça" 15.
2 ONEROSIDADE EXCESSIVA
Os contratos são retratos fiéis de condutas assumidas. Eles
espelham muito mais do que a simples vontade de contratar, porque
expressam resultados concretos que repercutem na sociedade e, por
isso, são observados pela organização jurídica como instrumentos de
uma função distributiva da riqueza, cuja circulação constitui o
combustível da roda da vida. O contrato modifica o patrimônio dos
envolvidos e repercute nas expectativas de terceiros anônimos,
exatamente porque a movimentação econômica que ele produz agita
o mercado como um todo, como se fosse fermento para que o quadro
favorável do crescimento e do consumo evolua. Todo esse círculo
dinâmico funciona com o princípio de que somente os negócios
autorizados pela lei e pelas regras de justiça contratual são aceitos
como peças dessa engrenagem. O sentido do art. 170 da CF
agradece.
Os contratos lícitos são oferecidos para que os sujeitos
manejem, com liberdade, seus interesses e projetem, nas suas regras,
as aspirações desejadas, sejam elas acanhadas ou literalmente
ambiciosas. Não há limite que cerceie a autonomia de vontade e
qualquer óbice que a ela se antepuser. Delimitando a iniciativa,
exercerá um excessivo controle da capacidade de autodeterminação,
com nítida ofensa aos valores do livre arbítrio (art. 5º, II, da CF).
Contudo, no instante em que o contrato se formaliza, o Estado
assume o seu papel intervencionista e pode se intrometer para, de
maneira abstrata, administrar uma tendência com potencialidade
predatória ou, por meio dos juízes (in concreto), controlar os efeitos
adversos que ultrapassam os riscos que são peculiares ao tipo
contratual escolhido.
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Seria ingenuidade aguardar absoluta integridade dos
contratantes, porque não se domina a genialidade do homem, marco
divisório do bem e do mal no campo dos contratos, de modo que
devemos, resignadamente, gerir os colapsos do erro, do abuso do
direito, do dolus malus e da insensibilidade dos que se aproveitam de
circunstâncias supervenientes que alteram a base do negócio para,
como se fosse correto pelos primados da boa-fé, auferirem vantagens
inesperadas em detrimento do outro que carrega o ônus multiplicado.
A onerosidade excessiva é um fato que prova, com objetividade
ímpar, uma antijuridicidade do contrato em curso. É antijurídico porque
o seu poder desagregador gera um desequilíbrio incomum que exige
uma renegociação moderadora que, se não acontece voluntariamente
para adequar a prestação em aberto, caracteriza abuso da parte que
dele se beneficiará e dano para aquele que suportará os seus efeitos
maléficos. A onerosidade excessiva altera a base do negócio,
transformando o sentido da vontade manifestada. Onerosidade é a
metamorfose surpreendente da prestação a cumprir, sinônimo de
excesso de peso da carga econômica do contrato de execução
continuada ou diferida, constituindo um desafio a ser superado para
salvaguarda dos interesses legítimos.
A onerosidade excessiva dificulta ou impede o cumprimento se
continuar irradiando os seus efeitos. A onerosidade que interfere com
o cumprimento do contrato é aquela relacionada, de alguma forma,
com o negócio e ou sua causa e que, embora surja do nada, depende,
para sua mutação, da vontade alheia. O contratante, em caso de total
inviabilidade de executar o contrato nas condições contemporâneas,
poderá requerer a resolução por inutilidade da prestação, quando o
juiz, atento ao sentido do art. 393 do CC, poderá exonerá-lo das
consequências do forçado retorno ao status quo ante, sendo que são
coadjuvantes, para bem julgar, os arts. 402 e 395, parágrafo único, do
CC. Suponhamos a hipótese de encarecimento excessivo do custo de
um apartamento em construção, o que provoca aumento dos valores
das prestações a partir da metade do prazo, sem o que não se
acompanha o aumento do preço da matéria-prima e o da mão de
obra, totalmente escassas, impossibilitando o comprador de honrar o
combinado (prestações reajustadas pelo índice da construção civil). O
contrato se frustra sem culpa dos contratantes e a resolução passa a
ser solução, com restituição do que foi pago pelo comprador, nos
termos do art. 53 da Lei nº 8.078/1990, descontada a multa legal.
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O que prepondera na abordagem é a técnica de preservação
da funcionalidade do contrato diante desse mal que desafia a perfeita
execução, o que recomenda certeza do diagnóstico e precisão da
medida indicada para expungir a onerosidade excessiva, sem
resíduos aos predicamentos elementares da vontade. As partes estão
ansiosas para que se reequilibrem as prestações e urge que se
promova essa adaptação sem traumas para os contratantes, que já
estão saturados por um acontecimento anormal. Se não for aberta
uma instância revisora, diante da desproporcionalidade, é permitido
supor, diante da manutenção dos resultados adversos e imprevistos,
que uma segunda e diferente espécie de contrato surgiu. E para
abrandar o discurso aterrorizante fundado na insegurança provocada
pela possível ingerência do juiz, lembrem-se da velha, sábia, e ainda
atual ponderação de Arthur Rocha 16 no sentido de que "o Estado tem
necessidade de autorizar a intervenção, porque o sistema estimula a
confiança nos casos de expectativas longas e problemáticas,
afastando os receios de desequilíbrios maiores e, assim, encoraja os
empreendimentos, vencendo as incertezas dos períodos agitados
como os presentes dias".
3 O ACONTECIMENTO PERTURBADOR DAS RELAÇÕES
João Baptista Villela 17 lembrou que a evolução do Direito Civil
conduz, necessariamente, ao enfraquecimento do direito individual
imposto no contrato, para fortalecimento do interesse bilateral
negociado, tal como ocorreu no "direito comercial, que passou de uma
fase subjetivista para uma fase objetivista, isto é, deixou de ser o
direito do comerciante para se tornar o direito dos atos do comércio,
aspirando hoje a se constituir no direito da empresa", enaltecendo a
ideia da cooperação social dos contratos porque "contrato cujas partes
não estejam satisfeitas é fonte de atritos, discórdias e baixo
rendimento". O final do opúsculo é digno de transcrição:
Claro que tudo isso deve ser atendido com adequada
prudência, de modo a não favorecer o abuso e a fraude, e,
especialmente, de modo a assegurar os interesses do
economicamente mais fraco. A hora é, pois, aqui, de intenso esforço
e empenho criador. Aos juristas cabe assumir com realismo e
coragem a tarefa de revisão do contrato, por modo a fazer dele não
apenas uma expressão de liberdade, mas também um instrumento
de libertação: dos homens e dos povos.
Existem eventos que produzem resultados catastróficos para a
humanidade e nem sempre eles atingem as execuções dos contratos.
O fato que produz modificação nas condições de um negócio está, de
alguma forma, ligado ao seu objeto ou à sua funcionalidade e por isso
seus efeitos se associam. Uma greve dos aeroportuários, a qual
inviabiliza pouso e decolagens, é um evento extraordinário e
imprevisível e pode alterar determinadas relações contratuais
dependentes do transporte aéreo, o que elimina a probabilidade de
contratos independentes sofrerem alterações. Messineo 18 afirma que
a excessiva onerosidade que permite a intervenção no contrato "debe
ser su causa única o prevalente. Porque si no fuese su causa o fuese
la causa secundaria, no legitima la resolución del contrato".
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Porém, haverá interferência em contrato de aluguel de prédio
construído na região de um movimentado aeroporto, como hotel,
especialmente se o preço da renda mensal tiver como base de cálculo
um número definido de hóspedes. O locatário, diante da diminuição
das reservas, será sacrificado caso se preserve o valor estabelecido
sem cogitação desse imprevisto, o que torna justa a adequação
permitida pelos arts. 478 e 479 do CC. Embora a prestação continue
com seu valor pecuniário hígido, as demais condições se alteraram e
agravaram a posição da parte, o que recomenda modificação para
salvar o contrato, preparando-o para sua continuidade quando a
normalidade for restaurada.
Esse exemplo é bem ilustrativo de um equívoco do art. 478 do
CC, qual seja, o de condicionar a incidência da teoria da imprevisão à
da "extrema vantagem". Não há, na situação descrita, vantagem para
o locador e, ainda assim, é necessário modificar o contrato para que
tenha ele equilíbrio nas prestações equivalentes. Ademais, nem
sempre se exige sacrifício econômico para que se reconheça o
benefício da onerosidade superveniente, até porque o cumprimento
forçado poderá atingir valores físicos e morais do devedor, como o
agravamento de uma doença ou o não acompanhar o cotejo fúnebre
de ente querido, exemplos fornecidos por Inocêncio Galvão Telles 19.
O evento que rompe as expectativas das partes e que causa
onerosidade excessiva é sempre algo impensado. Essa
imprevisibilidade deve ser entendida como fenômeno que, embora
capaz de se suceder - como quase tudo é possível acontecer,
inclusive as piores fatalidades -, não foi ponderado pelos contratantes
como sendo possível de interferir na conclusão do contrato. É mister
cautela na valoração do fato propulsor de um efeito devastador ao
contrato, porque o excesso de rigor na classificação de
imprevisibilidade poderá restringir o campo de atuação do instituto,
aproximando-o de situações que são típicas do caso fortuito e de força
maior, e isso não é correto para o espírito do Código Civil.
Estão fora da lista dos episódios que criam a onerosidade
excessiva os comuns ou ordinários do cotidiano da política, do sistema
econômico e do meio social, porque, sobre esses, o contratante, com
discernimento do homem médio, deveria prever a inclemência deles,
acautelando-se mediante adoção de regulamentos precisos e
específicos que contornem seus impactos. O Código Civil não exclui,
como fez o art. 1.467, segunda parte, do Código italiano 20, o
acontecimento que se enquadra no risco normal da contratação, o que
é dispensável, até porque se a onerosidade faz parte do objeto
negociado, é claro que sua chegada dispensa anúncios prévios 21.
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O acontecimento, para ser admitido como gerador de uma
onerosidade excessiva, deve ser extraordinário, até porque os eventos
triviais não são impactantes. A banalidade não se compatibiliza com a
imprevisão. Porém, não cabe esperar que os acontecimentos sejam
espetaculares, porque, se não for minimizado o conceito de
magnitude, poder-se-á estagnar o instituto no reino da fantasia. A
teoria da imprevisão é produto da humanidade e essa sua
precedência descortina sua real probabilidade, competindo ao juiz
admitir a sua ocorrência quando os efeitos clamam pelo
reconhecimento de anormalidade. Nem sempre a mais cautelosa
ponderação permite intuir o efeito imprevisível de um acontecimento
previsível, e não será por isso que a parte sacrificada deixará de ser
tutelada pelo Direito.
Portanto, mesmo que exista um determinado risco (álea) no
negócio (art. 458 do CC), o intérprete haverá de sentir, quando se
demonstrar, que uma espécie de episódio, embora passível de
acontecer, terminou eclodindo de forma extraordinária para a
sequência do contrato, terminando por produzir um resultado
inesperado e jamais cogitado pelo mais pessimista ou otimista dos
contratantes. Nesse sentido, a posição de Silvio de Salvo Venosa 22:
O mesmo podemos dizer no tocante à excessiva onerosidade,
que será estudada a seguir, cujos princípios fundamentais dirigem-se
aos contratos comutativos de duração, mas não impedem que, de
acordo com as circunstâncias, essa teoria seja aplicada, também aos
contratos aleatórios: basta que ocorram circunstâncias que refujam
ao risco próprio do contrato, isto é, fora daquele programado e
imaginado pelas partes ou da própria natureza do contrato.
O contrato de renda permite a resolução (art. 810 do CC), o que
encaminhou Ruy Rosado de Aguiar Júnior 23 a defender que, em
princípio, não seria de excluir a onerosidade excessiva nos contratos
aleatórios.
A reflexão permite expor que o acontecimento, para ser
criteriosamente definido como extraordinário e imprevisível, como
deseja o art. 478 do CC, deverá ser modestamente avaliado no
requisito ponderação e majestosamente analisado quanto aos seus
efeitos, evitando-se, com a interpretação etimológica das expressões
referidas, exclusão do rol de eventos da onerosidade excessiva,
aqueles que, embora previsíveis, acarretaram imprevisíveis e
impiedosas consequências.
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O acontecimento, para ser classificado como anormal, deverá
ser imponderável segundo as condições usuais e as peculiaridades
dos sujeitos. O desemprego, para se dar um exemplo, não poderá ser
aceito como produtor de onerosidade excessiva para um executivo
com formação superior, embora possa ser admitido como atenuante
na composição dos efeitos da resolução, por inadimplemento, de um
financiamento habitacional de baixa renda.
A desvalorização da moeda, em regime econômico instável, é
presumida e não favorece a arguição de onerosidade excessiva,
embora em data recente se tenha aplicado o instituto para evitar o
sacrifício daqueles que, em contrato de leasing, apostaram na
paridade cambial do real com o dólar 24. Para ser caracterizado como
acontecimento extraordinário e imprevisível, o evento deve estar fora
do círculo di fenomeni economici normali 25. Não custa recordar a
advertência de Karl Larenz sobre a especialidade da revisão dos
contratos por mutações do sistema monetário e que será reservada
como solução extrema en épocas de las más difíciles conmociones
econômicas 26.
4 MOMENTO DA TRANSFORMAÇÃO DA ANORMALIDADE EM
ANTIJURIDICIDADE
A onerosidade excessiva advém de uma anormalidade
subsequente à da celebração do negócio e atinge a fase executória
contra a vontade do devedor. No caso de o contrato ter sido cumprido,
apesar do extraordinário peso suportado pela parte que não
denunciou as condições adversas antes do final, não há o que
remediar. Contrato cumprido induz satisfação e extinção do vínculo e
sequer se poderá cogitar de repetição de indébito (art. 882 do CC).
Portanto, existe um tempo certo para que o contratante reclame a
intervenção do juiz para eliminar o foco de desequilíbrio das
prestações, sendo que, em determinadas situações especiais, como a
que será transcrita e que foi fornecida pela prática de Inocêncio
Galvão Telles 27, a onerosidade poderá ser reconhecida e aplicada
apesar de o contrato já se mostrar cumprido, total ou parcialmente:
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Tratava-se de uma hipótese em que um empreiteiro civil
pretendia a majoração do preço convencionado. A obra achava-se já
um pouco adiantada, mas não muito, quando se desenhou um forte
movimento de inflação, que se antevia verdadeiramente explosivo,
como veio a acontecer. O empreiteiro apressou-se a prosseguir e
concluir os trabalhos, a fim de apanhar a onda inflacionista ainda
antes de ela atingir os pontos mais altos. Terminada a obra, intentou
ação judicial a pedir a elevação do preço em conformidade com a
inflação média em vigor durante o período dos trabalhos. A alteração
das circunstâncias invocada foi atendida unanimemente pelo
Tribunal, que considerou correto o procedimento do empreiteiro, do
qual resultou inclusive proveito para o seu cliente.
Compete analisar se o sacrifício do cumprimento se deu com a
intenção (boa-fé) de não frustrar o escopo do contrato, o que permite,
em sendo reconhecido o nexo de causalidade e a lealdade da parte, a
ressalva ao exercício do instituto que promete reparar o dano da
onerosidade que foi concretamente suportada.
Os contratos de execução instantânea e que operam a imediata
tradição não estão sujeitos à revisão de suas cláusulas, porque não
há intervalo temporal suficiente para que sobrevenha uma
anormalidade derivada de fato superveniente. Somente os contratos
de duração, tanto os de execução prolongada ou diferida (prazos para
pagamento e de entrega de bem para o futuro) quanto os de
prestação de serviços sem termo são, evidentemente, suscetíveis às
influências de acontecimentos externos. Assim, se foi concedido prazo
de 30 ou 90 dias para pagamento, é perfeitamente admissível que,
nesse interregno, ocorra o acontecimento anormal que cause a
onerosidade excessiva, agravando a situação do contratante.
Messineo 28 admite isso expressamente, enquanto que Renato
Scognamiglio admite até em caso de retardamento da execução de
um contrato que se devia cumprir imediatamente, salvo se aquele que
devesse cumprir tivesse sido constituído em mora 29.
A questão da mora comporta um esclarecimento. De acordo
com o art. 394, o inadimplemento de obrigação a termo constitui o
contratante em mora. No caso de obrigações pecuniárias com
vencimento certo, não há necessidade de interpelação. Haverá, sim,
no caso de prestações de contrato de venda e compra de imóveis, por
exigência legal (Decreto-Lei nº 58/1937, art. 14; art. 1º do Decreto-Lei
nº 745/1969 e Lei nº 6.766/1979, art. 32, § 1º) e em todas as demais
situações de mora ex persona. Os direitos do devedor sofrem
limitações quando constituídos em mora (art. 399 do CC), o mesmo se
sucedendo na mora creditoris (art. 400).
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A constituição do devedor em mora não é completamente
restritiva do direito de pedir a resolução ou adequação do contrato
diante da onerosidade excessiva, desde que o não cumprimento da
obrigação tenha ressonância com o acontecimento que causou o
desequilíbrio das prestações. Anote-se que, embora o Código Civil
argentino abordasse de maneira específica esse tema, estabelecendo
em um dos itens do art. 1.198, "no procederá la resolución, si el
perjudicado hubiese obrado con culpa p estuviese en mora", não inibiu
Spota 30 de afirmar: "La mora que es consecuencia de la imprevisión
contractual no impide que la causal resolutória se la invoque. En esse
caso, tampoco de culpa del damnificado procede hablar". Essa
conclusão foi seguida por Jorge Mosset Iturraspe 31: "Si el retardo en
el cumplimiento se hubierse originado en la excesiva onerosidad ua
sobrevenida, no puede afirmarse que sea imputable ni que, por ende,
exista mora".
O art. 399 do CC tem a seguinte redação: "O devedor em mora
responde pela impossibilidade da prestação, embora essa
impossibilidade resulte de um caso fortuito ou de força maior, se estes
ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que
o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente
desempenhada". O texto serviu para que o Professor José de Oliveira
Ascensão 32, da Faculdade de Lisboa, afirmasse que somente a mora
que deu causa ao desequilíbrio é impeditiva do benefício das
alterações, porque quando a onerosidade excessiva adviria
independente da mora, pode o devedor, mesmo em mora, invocar o
art. 478 do CC, com o seguinte exemplo esclarecedor:
Imaginemos que uma empresa se obriga à reparação dum
navio. Atrasa-se seis meses em relação ao prazo a que se
comprometera. Já no período de mora, desencadeia-se uma guerra
que atinge o país de origem das matérias-primas necessárias, o que
leva estas à cotação exorbitante. É nestes casos que a parte em falta
não poderá prevalecer-se da alteração das circunstâncias. Não,
porém, no caso de, numa dívida a ser paga em prestações, se
atrasar numa delas, quando ainda faltam outras, pelo que de toda a
maneira, o contrato seria atingido por aquela alteração das
circunstâncias.
O direito de resolução do contrato ou de modificação das
condições por onerosidade excessiva representa uma vitória do que
se poderá chamar de humanização do contrato, exatamente por ser
oportunidade imperdível de recolocar as prestações pendentes na
perspectiva da proporcionalidade desejada, evitando que a
perturbação anômala subsequente constitua fonte de enriquecimento
sem causa ou de locupletamento pelo abuso de direito. O juiz atua
para restabelecer a normalidade das projeções contratadas, julgando
com equidade e em benefício da boa-fé objetiva, tudo para que o
contrato cumpra sua função social (arts. 421 e 422 do CC). Portanto,
se as circunstâncias alteradoras do equilíbrio precedem o
retardamento no cumprimento, não cabe sancionar o devedor,
excluindo dele esse tipo de tutela 33. A mora que eclode antes do fato
produtor da onerosidade é, sim, proibitiva; a concomitante e ou
superveniente derivada da própria anormalidade autoriza invocar o
benefício 34.
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Não existe impedimento algum para arguir a onerosidade
excessiva como defesa e até como pedido reconvencional (art. 315 do
CPC) em ação de cobrança ou de exigência de cumprimento de
obrigação, embora caiba registrar a oportunidade do comentário de
Carlos Roberto Gonçalves 35, no sentido
de a alegação em contestação [ser], em regra, considerada
mal soante, vista como desculpa de mau pagador, entendendo-se
que deveria a parte lesada tomar a iniciativa e antecipar-se à
cobrança judicial, invocando a impossibilidade de cumprimento da
dívida antes de seu vencimento, em decorrência de fato
superveniente extraordinário e imprevisível, e requerendo a revisão
do avençado ou a sua resolução.
5 ATUAÇÃO DO JUIZ
A perspectiva é de crescimento de demandas sobre a
resolução por onerosidade excessiva, afirmou de forma textual o
eminente Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior 36.
Confia-se em que os juízes saberão atuar para que a figura da
onerosidade excessiva não se afaste da sua missão de transformar a
liberdade de celebrar contrato em exercício negocial justo, evitando-se
que desequilíbrios supervenientes decorrentes de um fato
extraordinário se mantenham contra os desígnios que inspiraram a
declaração originária. Ao estudar o caso concreto e avaliar que a cega
obediência da regra da intangibilidade do contrato representaria um
sacrifício inaceitável para um dos contratantes, o juiz deverá intervir
para manter a equação da proporcionalidade dos direitos e obrigações
assumidos, eliminando o excesso que caracteriza pesado ônus. A
sentença é, portanto, o modo escolhido pela legislação (arts. 478, 479
e 480) para recolocar as condições contratuais nos patamares
estabelecidos pela boa-fé contratual.
98
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Um grande desafio para os Magistrados, sendo recomendável
refletir acerca de posições rígidas, embora criteriosas, como a de
Arnoldo Wald, no sentido de se aplicar a teoria da imprevisão apenas
quando a exigibilidade das prestações futuras possam ensejar o
"enriquecimento indevido de uma das partes em detrimento de outra,
cujo empobrecimento pode levá-la à ruína" 37 e outra, francamente
favorável da intervenção judicial diante de acontecimentos
imprevisíveis, por ser "própria da contingência da natureza humana,
falível e que, por isto mesmo, não pode responsabilizar-se por fato
inteiramente imprevisível" 38. Não existe motivo para decepções,
bastando conferir os termos do julgado do STJ, da lavra do Ministro
João Otávio de Noronha, recusando a incidência da onerosidade
excessiva invocada pela parte que rompeu as expectativas positivas
do contrato de fornecimento de blocos de granito (REsp 1.034.702/ES,
DJ de 28.04.2008).
A parte poderá pedir a resolução do contrato por onerosidade
excessiva, diz textualmente o art. 478 do Código Civil. Não custa
indagar: é lícito pleitear-se a revisão, alegando-se onerosidade
superveniente? Evidente que sim. Não obstante o texto tenha se
referido à resolução, para, em seguida, cogitar da oferta revisional do
réu (art. 479), está implícito, pelo sistema, ter a parte direito
fundamental de exigir a adequação contratual, inclusive porque o
próprio art. 317 do CC licencia o juiz a redimensionar o quantum das
prestações abusivas.
É fundamental que o juiz conheça a natureza jurídica do
instituto, sendo indiferente que opte pela corrente doutrinária que
considera ser a onerosidade excessiva uma versão atualizada da
cláusula rebus sic standibus ou a de que ela, em verdade, inspirou-se
na teoria da destruição da base do negócio, porque, no fundo, essa
divergência não muda o enfoque prático, desde que não se apegue,
demasiadamente, ao conceito que caracteriza o acontecimento
desorganizador da proporcionalidade.
A verdade é que o juiz tem o poder de intervir na economia do
contrato, com larga margem de competência para reajustar, com
decência, as prestações que se alteraram, favorecendo, com isso, não
propriamente um dos contratantes, mas, sim, o próprio contrato. No
entanto, e diante da grandeza judiciária, aos juízes será correto
defender ter o sistema jurídico brasileiro adotado uma das funções da
base objetiva do negócio para, com o reforço da boa-fé como
estrutura da confiança tutelável, manter o contrato alinhado com os
efeitos dos comportamentos assumidos, admitindo que a transgressão
dos limites da razoabilidade seja considerada como deficiência do
processo volitivo. Esse poder se encerra com a licença para que as
alterações desastrosas da justiça comutativa sejam canceladas ou
redimensionadas, ainda que advindas de circunstâncias previsíveis.
Há, contudo, solto um perigo espreitando os contornos da
movimentação jurídica do tema onerosidade excessiva. Ruggiero 39
afirmou sobre a dificuldade de aplicar a onerosidade prevista no art.
1.467 do Código Civil italiano:
Está, principalmente, em fixar os limites dentro dos quais se
possa dizer que haja desequilíbrio ou oneração desproporcionada de
um dos contraentes e que este derive de circunstâncias
supervenientes e de alterações não previsíveis, pelo que se deve
evitar que o exercício do direito de rescisão do vínculo descambe em
abuso fácil e torne vã a confiança que os contraentes devem poder
depositar na obrigatoriedade do contrato. E isso só pode deixar-se ao
trabalho iluminado do juiz.
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De acordo com o art. 478 do CC, a parte poderá pleitear a
resolução do contrato diante da onerosidade excessiva. Certamente, a
causa petendi está centrada na impossibilidade de cumprir o
pactuado, em virtude das alterações excessivamente gravosas. O réu,
segundo o art. 479 do CC, poderá se opor ao pedido de resolução,
oferecendo condições mais equitativas. Aqui, cabe a primeira e
decisiva observação: não há necessidade de reconvenção (art. 315 do
CPC) ou pedido contraposto (art. 278, § 1º, do CPC), porque, na
própria contestação, permite-se a materialização da proposta
revisional. Porém, se a parte deseja reconvir ou manejar pedido
contraposto, nada impede que o juiz admita tais expedientes e os
julgue, por inexistir prejuízo para o processo nas situações
especificadas. O que importa é que a parte expresse sua
concordância com a alteração das condições do contrato.
Quando o autor pede a resolução do contrato e o réu não
oferece condições de mudança, o juiz não pode alterar as prestações.
Poderá, no entanto, surgir uma dúvida sobre a seguinte situação: o
autor da ação pede a resolução por onerosidade excessiva, e o réu
apresenta uma proposta modificadora. O juiz verifica que a solução
mais pertinente é a da alteração equitativa, mas não nos termos da
oferta do réu. Pergunta-se: o juiz poderá emitir sentença
estabelecendo condições diferentes da moção do réu? Flávio Yarshell
responde que não:
É ônus do réu a alegação de quais são as novas condições
que pretende imprimir ao contrato, para que este não seja resolvido.
Seu pedido deve ser certo e determinado, aplicando-se a ele a regra
do art. 286 do CPC, quando menos por analogia. Isso é importante
porque se o juiz entender que as condições constantes do pedido
contraposto feito pelo réu não conduzem à situação equitativa de que
fala o art. 479 do Código Civil, cumpre, então, rejeitar o pedido. Não
lhe cabe, sob pena de ofensa aos arts. 2º, 128 e 460 do Código de
Processo Civil, julgar em bases diversas porque, nesse caso, estaria,
a um só tempo, desbordando dos termos do pedido do autor e do
réu. 40
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O Professor Yarshell deu, com sua inteligência, efetiva
contribuição sobre a procedibilidade desburocratizada da oferta
prevista no art. 479 do Código Civil. Contudo, e ao priorizar as regras
do processo sobre os limites objetivos da lide, emitiu pronunciamento
restritivo e que, se for adotado, impedirá a perfeita aplicação do
instituto da onerosidade excessiva. O sentido jurídico da modificação
judicial se relaciona com a vontade declarada pelas partes, quando da
celebração do negócio, e, nesse ponto, compete ao juiz investigar
exatamente os efeitos naturais e ponderáveis da execução. Assim, se
o juiz considerar que as condições equitativas são outras que não
aquela da oferta do réu, deve rejeitar essa proposta, por ser ela
incompatível com a vontade projetada (base jurídica do negócio),
cumprindo fixar aquela que atenderia aos comandos cognitivos da
razoabilidade e da proporcionalidade. A oferta justa não será sempre
a preferida pelo réu, mas, sim, a idealizada pelo juiz, que, no sistema,
atua para corrigir as distorções posteriores e reajustar as prestações
como se nada de anormal tivesse ocorrido. Importante lembrar, como
Iturraspe 41 o fez, que o único obstáculo que se impõe ao juiz, nesse
quadro, é o de que sua sentença deve "limitarse a restabelecer el
equilibrio inicial; ello no significa buscar el equilibrio ideal o perfecto, ni
tampoco repartir los riesgos sobrevenidos".
Na verdade, a possibilidade de oferta do art. 479 do CC é
meramente uma expressão que afasta o sentido da impossibilidade do
cumprimento da obrigação alterada e que está carregada de um
pesado ônus para o autor. Quando o réu sinaliza que há chance de
sobrevida do contrato, cabe ao juiz aplicar o remédio adequado e que
nem sempre coincidirá com a indicação da parte interessada.
Portanto, na esteira do pronunciamento do jurista português Mário
Júlio de Almeida Costa 42, de Jorge Mosset Iturraspe 43 e de Lúcia
Ancona Lopez de Magalhães Dias 44, autoriza-se sentença dispondo
de maneira alternativa e que cumpra a função integrativa por
equidade. Não fosse assim, estaria negando incidência ao disposto no
art. 422 (boa-fé objetiva) e ao art. 421 (função social), sabido que são
regras de ordem pública, como consta do art. 2.035, parágrafo único,
do Código Civil. Aliás, até mesmo no caso de o réu não concordar em
modificar com equidade as condições do contrato, sustentou-se, com
criteriosa razão, ser permitido ao juiz ex officio (sendo do interesse do
autor a modificação da cláusula contratual) fazer a revisão judicial do
contrato 45.
Obrigatório analisar os efeitos da sentença que reconhece a
onerosidade excessiva. De acordo com o art. 478 do CC, os efeitos
retroativos estacam na data da citação. A pergunta que se formula é a
seguinte: as prestações alteradas antes da citação são atingidas pela
sentença? Deve ser compreendido que o termo a quo (citação, art.
219 do CPC) define o momento em que os efeitos da mora são
interrompidos, servindo, inclusive, para que o vencedor, caso tenha
satisfeito as prestações que vencerão no curso da lide, obtenha a
restituição do que pagou em excesso e até em dobro, se for aplicado
o parágrafo único do art. 1º da Medida Provisória nº 2.172/2001,
editado para casos em que o consumidor sofre abusos pela cobrança
de prestações excessivas e desequilibradas.
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101
Deve-se dar começo, recordando da lição de Luigi Mosco 46, no
sentido de ser juridicamente correto distinguir o contrato das
prestações sucessivas para conceder a essas uma certa autonomia,
notadamente, para a regulamentação dos efeitos da sentença de
resolução:
La autonomia se entiende en cambio, en el sentido de que de
tales contratos nacen cantidades de prestación y atribución que en sí
estan en relación económica y juridicamente separarse de las
prestaciones precedentes y sucesivas, sin perjuicio de la finalidad del
contrato. Esto se expresa también afirmando que están en relación
de causalidad recíproca, esto es, constituyen cada una la equivalente
de la otra.
A sentença deve compor, com justiça, os interesses das partes
e, por isso, as prestações inadimplidas por conta da onerosidade
excessiva serão igualmente atingidas pelo efeito da sentença, porque
o cumprimento delas é que interessa para fins de resolução ou
adimplemento. Restringir o campo de incidência da sentença para
excluir as prestações vencidas antes da citação seria o mesmo que
negar efeito prático ao instituto, quando se sabe que as partes
somente tomam consciência concreta do sacrifício que suportarão
quando tentam cumprir. Logicamente que a sentença a ser emitida no
futuro terá um enorme contexto contratual a cobrir, inclusive as
prestações que venceram antes da data da citação e sobre as quais
existia a mesma difficultas praestandi. Não haveria interesse ou
utilidade para a parte solicitar a revisão ou a resolução do contrato
com base na onerosidade excessiva se imaginasse que as prestações
não cumpridas pelo advento da anormalidade, embora vencidas,
estivessem fora do âmbito da resposta a ser dada pelo Judiciário (art.
5º, XXXV, da Constituição Federal).
As sentenças que solucionam a crise contratual são
consideradas como de natureza determinativa, "isto é, integrativa do
negócio jurídico, tarefa que é dada pelo sistema ao juiz, porquanto
não há outro modo de ele concretizar as cláusulas gerais senão
redigindo a cláusula contratual. A função jurisdicional aqui é
assemelhada à da jurisdição voluntária, só que litigiosa, vale dizer, o
juiz integra, participa do negócio jurídico privado, mas não age em
substituição da vontade das partes como na jurisdição tradicional" 47.
Adota-se esse conceito para compreender que a sentença
remodeladora emitida pelo juiz nada mais representa do que uma
etapa subsequente do contrato que necessitou de ajustes para manter
a base objetiva do negócio em padrões de razoabilidade e
proporcionalidade das prestações futuras.
102
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As prestações com cumprimento retardado possuem uma
característica própria imposta pela inexigibilidade. O não cumprimento
é plenamente aceitável como reação normal ao comportamento da
parte que está exigindo satisfação, competindo enumerar, como
justificativa da posição do devedor diante de seu credor, a arguição de
exceção de contrato não cumprido (art. 476 do CC), a de ausência de
boa-fé objetiva (art. 422 do CC) e o abuso do direito (art. 187 do CC),
exatamente porque não se é obrigado a cumprir, com sacrifício,
prestação que se alterou por conta de acontecimentos extraordinários.
O devedor, no caso, exerce um direito contratual (não cumprir a
prestação desproporcional) em virtude de posição antijurídica do
credor (que a exige contra os primados da boa-fé e da base objetiva
do contrato), o que permite que a sentença complete e equilibre todas
as prestações pendentes, inclusive as que vencerão antes da citação
e que foram atingidas pela excessiva onerosidade.
Ou se raciocina para decidir dessa forma ou se nega a
possibilidade de se realizar justiça efetiva diante da onerosidade
excessiva e se mantém a paralisia pragmática que estagnou o direito
contratual por décadas.
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105
É importante destacar que, ao menos pelos fundamentos em
que se apoia, a tese sustentada pelo Conselho Federal não vem
encontrando tranquila adesão na doutrina, tudo sinalizando, a
prevalecer o posicionamento da Procuradoria-Geral da República, a
sua rejeição pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. Mas isso não
significa, em absoluto, a inexistência de resistência a essa técnica de
julgamento.
Reconhecidos, embora, os valiosos resultados dos movimentos
reformistas direcionados ao acesso efetivo à justiça, mais o ganho
social que se obteve com a democratização dos meios para tanto
disponíveis, a verdade é que faltou planejamento estatal para atender
à crescente demanda pelo "produto justiça", com as graves
consequências daí advindas - inclusive a criação de mecanismos de
restrição justamente ao prometido acesso.
Sopesados os prós e contras ao dispositivo sob exame, talvez
seja possível identificar, na péssima técnica legisl
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