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DAS GARANTIAS DO PODER JUDICIÁRIO: A VITALICIEDADE1
Ritieli Kubiaki Fagundes2
Resumo: O presente artigo analisará a garantia constitucional da vitaliciedade, prevista no
inciso I do artigo 95 da Constituição Federal, o qual determina que no primeiro grau, ela só
será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de
deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença
judicial transitada em julgado. O estudo terá enfoque especial na carreira da magistratura
nacional. A pesquisa partiu da problemática central a respeito da limitação do instituto, tendo
por hipóteses possíveis o fato de que a vitaliciedade poderia consistir em um motivo de
impunidade no caso de juízes que cometeram infrações graves, ou efetivamente uma garantia
conferida à sociedade como um todo. A polêmica gira em torno da aposentadoria
compulsória, a qual representa a máxima sanção administrativa prevista na Lei Orgânica da
Magistratura Nacional (artigo 42, inciso V da Lei Complementar 35/79). Do exercício
investigativo do feito, chegou-se à conclusão que a vitaliciedade não constitui um privilégio,
mas sim uma garantia concedida à função que o magistrado exerce, beneficiando muito mais a
sociedade do que a pessoa do juiz.
Palavras-chave: Separação dos Poderes. Poder Judiciário. Garantias do Poder Judiciário.
Vitaliciedade.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
De acordo com a teoria tripartite definida e divulgada por Montesquieu, e
anteriormente já sugerida por Aristóteles, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, os três
Poderes formadores do Estado são independentes um do outro no que tange às suas funções,
mas ao mesmo tempo dotados de uma harmonia intrínseca, que garante o equilíbrio
necessário para a existência de um Estado Democrático de Direito.
No caso do Poder Judiciário, essa independência é assegurada pelas garantias
conferidas aos magistrados e demais membros do Poder Judiciário, e tem por objetivo
proteger o exercício da função jurisdicional.
O artigo 95 da nossa Carta Magna confere aos magistrados a chamada tríplice
garantia, cujo objetivo principal é assegurar a máxima imparcialidade das pessoas que
exercem a função jurisdicional, bem como zelar pela perpetuidade da separação de Poderes, e
assim manter o equilíbrio do Estado Democrático de Direito.
Tais garantias são de extrema importância, e já encontravam previsão em nossa
primeira Constituição, datada de 25 de março de 1824.
De todas as três garantias, o presente artigo dará ênfase especial à vitaliciedade, pois
se trata de um tema em voga atualmente, trazido à tona pelo Conselho Nacional de Justiça
que, ao julgar o Processo Administrativo Disciplinar n° 2007.1000001533-84, puniu com
aposentadoria compulsória o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, Paulo Medina,
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Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado como requisito parcial para obtenção do grau
de Bacharel em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, aprovado com
nota máxima pela Banca Examinadora composta pelo Prof. Plínio Saraiva Melgaré (orientador), Prof.
Francisco José Moesch e Prof. Wremyr Scliar, em 20/06/2011.
Acadêmica do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais – Faculdade de Direito – PUCRS. Contato:
[email protected]
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condenado pela participação em esquema de venda de sentença judicial em favor de bicheiros
e donos de bingos.
A aposentadoria compulsória representa a máxima sanção administrativa prevista na
Lei Orgânica da Magistratura Nacional (artigo 42, inciso V da Lei Complementar 35/79),
motivo pelo qual o assunto foi amplamente divulgado - e criticado – pela mídia nacional.
A vitaliciedade só pode ser adquirida no primeiro grau de jurisdição após dois anos
de efetivo exercício da carreira de juiz. Durante esse período, a perda do cargo dependerá de
deliberação do tribunal a que estiver vinculado. Decorrido o período do estágio probatório, o
juiz de primeiro grau se torna vitalício e, neste caso, o magistrado só perderá o cargo em razão
de sentença judicial transitada em julgado.
Os membros dos Tribunais Superiores também gozam das mesmas garantias dos
demais membros do Poder Judiciário porém, aqui, a vitaliciedade possui uma característica
particular: é adquirida imediatamente no momento da posse, inclusive para aqueles que
ingressam pelo quinto constitucional.
A doutrina majoritária entende que tal garantia constitui uma das bases do exercício
da função de juiz, sem a qual se tornaria impossível decidir sem se render às pressões
externas.
Porém, uma parcela da sociedade ressalta que em certos casos, a vitaliciedade se
torna um benefício excessivo, que impede a punição justa de magistrados que cometeram
infrações graves, e tem por consequência a impunidade. Tal entendimento põe em cheque a
moralidade do Judiciário brasileiro e traz reflexos negativos para o cenário nacional.
Com base nessas informações, o presente artigo busca esclarecer: quais os limites das
garantias do Poder Judiciário, mais especificamente da vitaliciedade? Seria esta motivo de
impunidade ou uma garantia conferida à sociedade como um todo?
Na tentativa de responder aos problemas formulados por essa pesquisa, têm-se,
objetivamente, as seguintes hipóteses, as quais, no decorrer do estudo, poderão ser
confirmadas ou não: a) Considerando que a vitaliciedade seja efetivamente motivo de
impunidade, no caso de o juiz não agir de acordo com a sua função, deveria este ser destituído
de tal garantia, para que o objetivo da vitaliciedade não seja distorcido ao ponto de mascarar
arbitrariedades cometidas pelos magistrados? b) Por outro lado, sendo a vitaliciedade uma
garantia essencial e inafastável do Poder Judiciário, servindo apenas para assegurar a
independência dos poderes entre si e a imparcialidade das decisões judiciais, deveria esta ser
preservada para o fim de manter a democracia do Estado Democrático de Direito?
Busca-se, com a presente pesquisa, realizar uma análise crítica sobre o tema, a fim de
demonstrar os limites da garantia constitucional da vitaliciedade na carreira da magistratura
nacional, e assim contribuir para o esclarecimento das lacunas que permeiam o assunto. Para
isso, apresenta-se, num primeiro momento, um breve estudo sobre o Poder Judiciário, no qual
adentramos no Princípio da Separação dos Poderes, segundo a visão dos autores mais
relevantes.
A posteriori, estudamos as espécies de garantias do Poder Judiciário encontradas em
nosso ordenamento jurídico, bem como sua origem e evolução no decorrer das constituições
brasileiras.
O segmento final abarca especificamente a garantia da vitaliciedade, objeto do
presente artigo. Faz-se uma diferenciação a respeito da denominação do instituto, passando
ainda pela polêmica da vitaliciedade como cláusula pétrea. Um estudo sobre a Proposta de
Emenda Constitucional n° 89/2003 encerra a pesquisa.
O presente estudo foi realizado por meio do método de abordagem dedutivo,
partindo-se das garantias da magistratura como um todo e dando foco especial à vitaliciedade.
3
Também foi utilizado o método sistemático, na medida em que analisou-se a vitaliciedade e
sua real eficácia no plano da sociedade atual. O método histórico foi utilizado apenas para
realizar uma análise crítica do instituto ao longo do tempo para, assim, promover um melhor
entendimento do assunto.
A análise do tema foi desenvolvida principalmente através de revisão bibliográfica,
com pesquisa na legislação vigente, doutrina e jurisprudência que tratam do assunto. A busca
por artigos referentes à matéria tornou-se necessária em razão da atualidade do tema.
Resta evidenciada a relevância jurídica do tema, bem como os reflexos sociais que
suscita, vez que diz respeito à própria democracia, condição política essencial ao pleno
desenvolvimento da personalidade humana e sua inerente dignidade.
DO PODER JUDICIÁRIO
A Constituição da República Federativa do Brasil, datada de 5 de outubro de 1988,
traçou um novo perfil no que diz respeito à independência dos Poderes e ampliou o alcance do
Poder Judiciário. Ela estabelece dos artigos 92 ao 126 a composição, organização,
competência e garantias desse poder, que possui o monopólio da função jurisdicional,
preconizado pelo inciso XXXV do artigo 5°: “a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito.” Ou seja, só o Poder Judiciário é capaz de dirimir os
conflitos de interesses existentes em nossa sociedade.
Caracterizar o termo “jurisdição” é uma das atividades mais difíceis que se tem
conhecimento, por se tratar de tema complexo e extenso. No entanto, não existe manual
confiável que não possua uma tentativa de realizar esse feito.
Nas palavras de Araújo Cintra, Dinamarco e Grinover,
A jurisdição é, ao mesmo tempo, poder, função e atividade. Como poder,
é a manifestação do poder estatal, conceituado como poder de decidir
imperativamente e impor decisões. Como função, expressa o encargo que têm os
órgãos estatais de promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante a
realização do direito justo e através do processo. E como atividade ela é o complexo
de atos do juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo a função que a lei lhe
acomete.3
Para Fredie Didier Jr., “o conceito que parece estar de acordo com as diversas
transformações porque passou o Estado nos últimos tempos” é o de que
A jurisdição é a função atribuída a terceiro imparcial de realizar o Direito
de modo imperativo e criativo, reconhecendo/efetivando/protegendo/ situações
jurídicas concretamente deduzidas, em decisão insuscetível de controle externo e
com aptidão de tornar-se indiscutível.4
O entendimento de José de Albuquerque Rocha se dá no sentido de que
A jurisdição é justamente a instância que realiza a função de interpretar e
aplicar, coativamente, as normas jurídicas de modo terminal, garantindo a certeza e
segurança dos direitos de que carece a sociedade para reproduzir-se na história.
Trata-se, pois, de uma atividade indispensável a todo ordenamento
jurídico, que é a de colocar um ponto final no debate sobre o sentido, alcance e
validade das normas, por um lado, e sua violação, por outro lado, transformando as
3
4
ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos, DINAMARCO, Cândido Rangel e GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria
Geral do Processo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 147.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 9. ed. Bahia: JusPodivm, 2008. p. 65.
4
proposições normativas abstratas e gerais em disciplina efetiva de fatos concretos e
reais.
Com este perfil a jurisdição apresenta-se como um conceito geral de
direito, aplicável a qualquer ordenamento, que, por sua própria natureza normativa,
reclama, o funcionamento de um mecanismo destinado a rematar, definitivamente,
as sucessivas fases através das quais se desenvolve o processo de concreção do
direito.5
No entanto, apesar de sua função típica ser jurisdicional, o Poder Judiciário exerce
ainda, segundo Pedro Lenza6, funções denominadas atípicas, que podem ser de natureza
executivo-administrativa (como a organização de suas secretarias - art. 96, I, b da
Constituição) ou de natureza legislativa, expressa na possibilidade de elaboração de
regimentos internos (art. 96, I, a da Constituição).
Cabe ressaltar que, para exercer tais funções - que possuem extrema importância para
a manutenção do Estado Democrático de Direito - livre de pressões e de forma imparcial, ao
Judiciário é conferida a prerrogativa constitucional básica da independência, possuindo
inclusive autonomia administrativa e financeira, de acordo com artigo 99 da Carta
Constitucional de 1988.
A independência do Judiciário é, segundo Rocha, “o traço mais relevante do estatuto
do juiz, o elemento essencial à função de julgar, constituindo a pedra angular do chamado
Estado de direito.” 7
Na visão do autor espanhol Juan Luis Requejo Pages,
El término independência denota um concepto claramente relativo,
referencial, em la medida em que presupone una pluralidad de realidades o
situaciones entre las cuales no existe vinculación alguna, ya de manera absoluta o
relativa y ya por naturaleza o por convención. [...]
La independência así entendida es por tanto una institución
funcionalmente dirigida a asegurar la efectiva realización de um principio que la
trasciende: el de legalidad.8
Divide-se a independência em dois âmbitos: um interno e um externo; a
independência interna protege o magistrado contra os embaraços do próprio Poder Judiciário,
enquanto que a independência externa preserva o juiz de pressões oriundas dos Poderes
Legislativo e Executivo.
Outra característica indispensável à jurisdição é a imparcialidade do juiz, que
consiste na posição de estranhamento que o magistrado deve apresentar em relação às partes
do processo. Contudo, este distanciamento não é sinônimo de neutralidade, pois nada “impede
que o juiz possua, em relação à questão de direito debatida nos autos certa convicção.” 9
A independência está atrelada à imparcialidade, mas com esta não se confunde. A
diferença resta clara no seguinte trecho do livro “Estudos sobre o Poder Judiciário”:
Independência e imparcialidade, embora conceitos conexos, eis que
servem ao mesmo valor de objetividade do julgamento, no entanto têm significações
diferentes. Enquanto a imparcialidade é um modelo de conduta relacionado ao
momento processual, significando que o juiz deve manter uma postura de terceiro
5
6
7
8
9
ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 23.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 438.
ROCHA, op. cit., p. 28.
PAGES, Juan Luis Requejo. Jurisdiccion e independência judicial. Madrid: Centro de Estudos
Constitucionales, 1989. p. 116.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Poder Judiciário: autonomia e justiça. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 691,
p. 33-34, mai. 1993.
5
em relação às partes e seus interesses, devendo ser apreciada em cada processo, pois,
só então é possível conhecer a identidade do juiz e das partes e suas relações, a
independência é uma nota configuradora do estatuto dos membros do Poder
Judiciário, referente ao exercício da jurisdição em geral, significando ausência de
subordinação a outros órgãos.10
E é justamente para que possam exercer livremente o seu papel que os membros do
Poder Judiciário, únicos detentores do dever de exercer a jurisdição estatal, são dotados de
certas garantias.
Indalécio Gomes Neto assevera que “essa independência [do Poder Judiciário] se
completa com as garantias constitucionais da magistratura, consubstanciadas na vitaliciedade,
na inamovibilidade e na irredutibilidade de subsídios.” 11
Para adentrar no assunto objeto do presente artigo, necessário antes fazer um estudo
sobre a origem histórica do Princípio da Separação dos Poderes, instituto ao qual se reportam
as garantias da magistratura.
Da separação dos Poderes
Como já referido anteriormente, a teoria tripartite da separação dos Poderes afirma
que os três Poderes formadores do Estado são independentes um do outro no que tange às
suas funções, mas ao mesmo tempo dotados de uma harmonia intrínseca, que garante o
equilíbrio necessário para a existência de um Estado Democrático de Direito.
No caso do Poder Judiciário, essa independência é assegurada pelas garantias
conferidas aos magistrados e demais membros do Poder Judiciário, as quais têm por objetivo
proteger o exercício da função jurisdicional.
Uma melhor compreensão do assunto é adquirida após um estudo mais aprofundado
a respeito do princípio norteador da separação dos Poderes.
Separação dos Poderes na visão de Aristóteles
Já na Antiguidade, Aristóteles, em sua obra “A Política”, divide os Poderes em três:
Em todo governo, existem três Poderes essenciais, cada um dos quais o
legislador prudente deve acomodar da maneira mais conveniente. Quando estas três
partes estão bem acomodadas, necessariamente o governo vai bem, e é das
diferenças entre estas partes que provêm as suas.
O primeiro destes três Poderes é o que delibera sobre os negócios do
Estado.
O segundo compreende todas as magistraturas ou poderes constituídos,
isto é, aqueles de que o Estado precisa para agir, suas atribuições e a maneira de
satisfazê-las.
O terceiro abrange os cargos de jurisdição.12
Segundo o discípulo de Platão, o primeiro Poder denominava-se Deliberativo, e era
exercido pela Assembleia, que se constituía de acordo com a natureza do Estado ao qual
pertencia.
As funções confiadas a este Poder consistiam em decidir sobre assuntos referentes a
paz e a guerra, contrair ou romper alianças, fazer as leis e suprimi-Ias, decretar a pena de
10
ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 30.
GOMES NETO, Indalécio. Independência entre os poderes e garantias da magistratura. Revista do Tribunal
Superior do Trabalho, Brasília, v. 63, p. 55, 1994.
12
ARISTÓTELES. A política. Tradução Roberto Leal Ferreira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 127.
Título original: La politique.
11
6
morte, de banimento e de confisco, assim como prestar contas aos magistrados.13 Aqui
podemos notar as semelhanças com o atual correspondente, Poder Legislativo.
O segundo Poder tinha o nome de Executivo, era executado pelos magistrados14 e
sua função era deliberar sobre os negócios do Estado, tais como o serviço militar, a
administração de finanças (receita ou despesa das rendas públicas), o abastecimento dos
mercados, a polícia, a administração da justiça, entre outros.
Curioso destacar que já naquela época, Aristóteles se preocupava com o tempo de
duração da “magistratura” do Poder Executivo, assunto que remanesce contraditório até os
dias de hoje:
Em primeiro lugar, que tempo deve-se fixar para a duração de seu
exercício? Alguns o pretendem semestral; outros, mais curto; outros, anual; outros,
mais longo. Resta também saber se deve haver exercícios perpétuos ou mesmo de
longa duração, ou nem um nem outro; se é preferível que as mesmas pessoas tornem
a aparecer freqüentemente, ou que não assumam duas vezes o cargo, mas apenas
uma.15
O Poder Judiciário é para Aristóteles, o terceiro órgão da Constituição e do
governo. Formado por juízes, sua principal e única função é jurisdicional.
Já havia naquele estudo a divisão dos tribunais pela matéria, a diferença entre o dolo
e a culpa, bem como a existência de foro privilegiado (“Distingue-se se o homicídio foi
cometido na pessoa de um juiz ou de um particular.” 17) e a previsão de uma espécie de
Juizado de Pequenas Causas, cujo enquadramento se dava pelo valor da lide: “existem juízes
para os casos mínimos, tais como os de um até cinco dracmas, ou pouco mais, pois, se é
preciso julgar estas queixas, elas não merecem, porém, ser levadas diante dos grandes
tribunais.” 18
Percebe-se a evidente atualidade do tema abordado por Aristóteles, merecendo este o
posto de precursor nos estudos atinentes à separação dos Poderes.
16
Separação dos Poderes na visão de John Locke
Importante contribuinte para a referida doutrina é John Locke, pensador inglês que
em sua obra “Segundo Tratado sobre o Governo Civil” (1690) também reconheceu a
existência de três Poderes: o Legislativo, o Executivo e o Federativo.
Para Locke, “o Poder Legislativo é o Poder supremo em toda a comunidade civil,
quer seja ele confiado a uma ou mais pessoas, quer seja permanente ou intermitente.” 19 O
objetivo do referido Poder é a preservação da propriedade, e consequentemente da própria
sociedade, ou seja, a busca pelo bem de todos.
Segundo o autor, o Poder Legislativo não é exercido de forma arbitrária, eis que sua
função principal - legislar - lhe é confiada pelo povo.
13
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19
ARISTÓTELES. A política. Tradução Roberto Leal Ferreira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 127.
Título original: La politique.
Para Aristóteles, todos os membros dos três poderes eram denominados magistrados.
ARISTÓTELES. A política. Tradução Roberto Leal Ferreira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 131.
Título original: La politique.
Ibid., p. 141.
Ibid., p. 142.
Ibid., p. 142.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins
verdadeiros do governo civil. Tradução: Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
p. 163.
7
O Poder Executivo fica incumbido da execução das leis internas, enquanto o Poder
Federativo cuida da administração da segurança e do interesse público externo, possuindo
competência para decidir sobre guerra e paz e a realização de alianças, por exemplo.
Importante frisar que John reconhece como típicos apenas o Legislativo e o
Executivo, ficando o Federativo subordinado a este último:
Estes dois Poderes, Executivo e Federativo, embora sejam realmente
distintos entre si, [...] estão quase sempre unidos,” 20 e “dificilmente devem ser
separados e colocados ao mesmo tempo nas mãos de pessoas distintas [...], pois isto
equivaleria a submeter a força pública a comandos diferentes e resultaria, um dia ou
outro, em desordem e ruína. 21
Por outro lado, ele acrescenta que, “não convém que as mesmas pessoas que detêm o
poder de legislar tenham também em suas mãos o poder de executar as leis.” 22 Resta aqui
evidenciada, portanto, a separação explícita entre (ao menos) o Poder Legislativo e o Poder
Executivo.
Do estudo da doutrina de Locke, pode-se extrair que, apesar de reconhecer a
existência de três Poderes distintos entre si, ele acredita que estes se convertem em apenas
dois, na medida em que o Poder Federativo fica adstrito ao Executivo. Também é importante
frisar que o autor não individualiza o Poder Judiciário, e durante a sua obra isso não resta
muito claro, mas ao que parece, estaria o Judiciário vinculado ao Executivo.
Logo, não é esta a doutrina a qual adotamos, mas sem sombra de dúvida, Locke
contribuiu para a visão que temos hoje.
Separação dos Poderes na visão de Jean-Jacques Rousseau
Outro grande expoente da teoria da separação dos Poderes é Jean-Jacques Rousseau,
que, influenciado por Locke,23 (informação verbal) demonstra na obra “O Contrato Social” a
sua opinião sobre o assunto.
Segundo Rousseau, há também dois Poderes típicos: o Legislativo, o qual ele
denomina de vontade, e o Poder Executivo, representado pela força. “Sem o concurso de
ambas, nada se faz ou se deve fazer.” 24
O autor acrescenta que o Poder Legislativo pertence somente ao povo, e que a função
legislativa deve observar a vontade geral, ou seja, o interesse comum.
Já o Poder Executivo, necessita de um agente próprio, que reúna a força pública e a
ponha em funcionamento segundo os rumos da vontade geral.25
A separação se torna clara quando ele diz que “não é conveniente que quem redija as
leis as execute”.26 Por outro lado, apesar de estabelecida a individualização destes dois
poderes, o autor reconhece que o Poder Legislativo se sobrepõe aos demais:
20
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins
verdadeiros do governo civil. Tradução: Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
p. 171.
21
Ibid., p. 172.
22
Ibid., p. 170.
23
Aula ministrada pela professora Luiza Matte na disciplina de Ciência Política e Teoria Geral do Estado, no 1°
semestre de 2007.
24
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social e outros escritos. Tradução: Rolando Roque da Silva. São
Paulo: Cultrix, 1995. p. 64.
25
Ibid., p. 65.
26
Ibid., p. 73.
8
O Poder Legislativo é o coração do Estado; o Poder Executivo é o cérebro
que põe em movimento todas as partes. [...]
Não é em virtude das leis que o Estado subsiste, mas devido ao Poder
Legislativo.27
Para ele, a soberania é indivisível. Tal concepção é bem demonstrada no excerto a
seguir:
Nossos políticos, não podendo dividir a soberania em seu princípio,
dividem-na em força e em vontade, em Poder Legislativo e em Poder Executivo, em
direitos de impostos, de justiça e de guerra, em administração interior e em poder de
tratar com o estrangeiro; ora confundem todas essas partes, ora as separam; fazem
do soberano um ser fantástico formado de peças ajustadas; é como se compusessem
o homem reunindo diversos corpos, um dos quais teria os olhos, outro os braços,
outro os pés, e nada mais [...].
Provém esse erro da inexistência de noções exatas a respeito da
autoridade soberana, e por se haverem tomado como partes dessa autoridade o que
não era mais que emanações da mesma [...].
Observando igualmente as demais divisões, perceberíamos que todas as
vezes que imaginamos ver a soberania partilhada nos enganamos, que os direitos
tomados como partes dessa soberania lhe são todos subordinados e sempre supõem
vontades supremas, dos quais esses direitos só dão a execução.28
Na teoria de Rousseau, evidencia-se que o Poder Legislativo é soberano, do qual
descende expressamente o Poder Executivo, e implicitamente o Poder Judiciário. Nota-se,
portanto, que sua maior contribuição está no fato de que, para ele, o poder é como um corpo
uno e indivisível, e o que separam são as funções.
Tal entendimento predomina até hoje, comprovando que apesar de usual, a
denominação “divisão (ou separação) dos Poderes” encontra-se equivocada. A distinção pode
ser observada nos ensinamentos de José de Albuquerque Rocha29:
De fato, aquilo que denominamos de “divisão dos Poderes” não passa de
um processo técnico de divisão do trabalho entre os órgãos do Estado. E as “funções
estatais”, não são nada mais que do que modos típicos de atuação ou exercício do
poder do Estado, que é substancialmente unitário.
Por conseguinte, a “divisão dos Poderes”, na verdade, é divisão de órgãos,
ou separação relativa de órgãos, para executarem as distintas funções do Estado.
Uma coisa é o poder do Estado, uno e indivisível, outra coisa é a diversidade de
funções com a correspondente diversidade de órgãos preordenados ao seu exercício.
(grifos do autor)
Separação dos Poderes na visão de Charles de Secondat, Baron de Montesquieu
Deixamos para tratar por último o expoente mais importante dentre os pensadores da
teoria da separação dos Poderes.
Montesquieu, em sua obra “O espírito das leis” sistematizou a divisão dos Poderes e
concebeu a doutrina da tripartição, basicamente como a conhecemos atualmente. Bem se vê,
conforme o que já foi exposto, que Montesquieu não foi o “inventor” da referida doutrina,
porém, merece posição de destaque, pois foram suas idéias que inspiraram a Revolução
Francesa (1789), marco inicial da concretização prática da separação dos Poderes.
27
28
29
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social e outros escritos. Tradução: Rolando Roque da Silva. São
Paulo: Cultrix, 1995. p. 91.
Ibid., p. 39-40.
ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 12-13.
9
A essência da teoria delineada pelo autor resta evidenciada no trecho a seguir:
Existem em cada Estado três tipos de Poder: o Poder Legislativo, o Poder
Executivo das coisas que emendem do direito das gentes e o Poder Executivo
daquelas que dependem do direito civil.
Com o primeiro, o príncipe ou o magistrado cria leis por um tempo ou
para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a
paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões.
Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares.
Chamaremos a este último Poder de julgar e ao outro simplesmente Poder Executivo
do Estado.30
Segundo esta concepção, o Poder Legislativo pertence ao povo, e é exercido por
meio de seus representantes. Aqui já há a previsão de duas casas, as quais “terão cada um (a)
suas assembléias e suas deliberações separadamente, e opiniões e interesses separados.” 31
“O Poder Executivo deve estar entre as mãos de um monarca, porque esta parte do
governo, que precisa quase sempre de uma ação instantânea, é mais bem administrada por um
do que por vários.” 32
Para Montesquieu, o Poder Judiciário não seria permanente, devendo ser requisitado
somente quando houvesse necessidade. Frisa ainda que o Judiciário é de alguma forma,
“invisível e nulo,” 33 e que os juízes são “a boca que pronuncia as palavras da lei; [...] seres
inanimados que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor.34
Conforme se depreende do estudo, Montesquieu, assim como Locke e Rousseau,
reconhece como Poderes essencialmente políticos somente o Legislativo e o Executivo.
Porém, admite a existência do Judiciário de forma independente, quando diz que “tampouco
existe liberdade se o poder de julgar não for separado do Poder Legislativo e do Executivo.” 35
Aqui estão, portanto, apresentados e caracterizados os três Poderes de que temos
conhecimento. Mas cada um destes já é muito poderoso por si só, motivo que ensejou a
criação de um modelo ideal de harmonização entre os Poderes, ponto-chave da teoria
apresentada por Montesquieu:
Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das
coisas, o poder limite o poder. [...]
Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos
principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três Poderes: o de fazer as leis, o
de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os
particulares. [...]
Eis então a constituição fundamental do governo de que falamos. Sendo o
corpo legislativo composto de duas partes, uma prende a outra com sua mútua
faculdade de impedir. Ambas estarão presas ao Poder Executivo, que estará ele
mesmo preso ao Legislativo. Estes três Poderes deveriam formar um repouso ou
uma inação. Mas, como, pelo movimento necessário das coisas, eles são obrigados a
avançar, serão obrigados a avançar concertadamente. 36
30
31
32
33
34
35
36
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis. Tradução: Cristina Murachco. 2. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 167-168. Título original: L’ esprit des lois.
Ibid., p. 172.
Ibid., p. 172.
Ibid., p. 169.
Ibid., p. 175.
Ibid., p. 168.
Ibid., p. 166 et. seq.
10
Trata-se, pois, do denominado sistema de freios e contrapesos, onde o próprio poder
limita o poder. Sobre o assunto, José Afonso da Silva assinala que:
Os três Poderes “só se desenvolverão a bom termo, se esses órgãos se
subordinarem ao princípio da harmonia, que não significa nem o domínio de um
pelo outro nem a usurpação de atribuições, mas a verificação de que, entre eles, há
de haver consciente colaboração e controle recíproco [...], para evitar distorções e
desmandos.37
Podemos concluir, portanto, que o Poder estatal é uno, o que se subdividem são as
funções, representadas pelo Legislativo, Executivo e Judiciário, sendo todos estes distintos e
autônomos, bem como harmônicos em relação uns aos outros.
O instituto da separação dos Poderes, perfectibilizado na doutrina de Montesquieu,
foi consagrado pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em seu 16° artigo: “A
sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação
dos Poderes não tem Constituição.”
Separação dos Poderes à luz das constituições brasileiras
No Brasil, a separação dos Poderes teve reflexos desde a nossa primeira
Constituição, datada de 1824. Contudo, àquela época a divisão se fez quadripartida, com o
acréscimo do Poder Moderador pertencente ao Imperador.
A primeira constituição da República, datada de 1891, trouxe à tona a tripartição dos
Poderes, conforme os ideais de Montesquieu, traduzidos no seu artigo 15°: “São órgãos da
soberania nacional o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário, harmônicos e
independentes entre si.”
Assim também ocorreu na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil,
promulgada em 16 de julho de 1934.
Uma interrupção do ciclo, porém, se deu com a Carta de 1937, conseqüência direta
da ditadura imposta por Getúlio Vargas e seu Estado novo.
No entanto, com o objetivo de “[r] estabelecer com precisão os rumos próprios à
harmonia e independência dos Poderes,” 38 nos é apresentada a Constituição de 1946, que
comemora a volta da democracia.
Em 1967, é outorgada a nova Constituição da República Federativa do Brasil, que
apesar de manter os Poderes estatais, deu notória prioridade ao Executivo. Mas tal
reformulação não durou muito, pois dois anos mais tarde, concretizou-se a Emenda
Constitucional de 1969, que conforme José Afonso da Silva, “não se tratou de emenda, mas
de nova constituição.” 39
A concretização do Estado Democrático de Direito veio com a promulgação da Carta
Magna de 1988, que adotou o Princípio da Divisão dos Poderes como princípio
fundamental40, conforme se depreende da leitura do artigo 2°: “São Poderes da União,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”
Conforme já exposto anteriormente, o poder em si é uno, o que se dividem são as
funções. Sendo assim, o artigo 2° da Lei Maior manifesta, ao mesmo tempo, as funções
governamentais Legislativa, Executiva e Judiciária.
37
38
39
40
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
111.
Ibid.,. p. 85.
Ibid., p. 87.
Ibid., p. 85.
11
Imperioso destacar, ainda, que a divisão dos Poderes tem por base dois critérios: o da
especialização funcional, que significa que cada órgão é especializado no exercício de uma
função, ou seja, as assembleias (Congresso, Câmara, Parlamento) ficam incumbidas da função
Legislativa, na medida em que o Executivo cuida da função Executiva e a função
Jurisdicional fica a critério do Poder Judiciário; e o da independência orgânica, ensejando
que, além disso, cada órgão deve ser efetivamente independente dos outros.41
Resta, portanto, expressa na atualidade brasileira a estrutura delineada por
Montesquieu e seus antecessores, principalmente no que diz respeito ao sistema de freios e
contrapesos, preservando “a ideia de controle, de fiscalização e de coordenação recíprocos” 42
entre os Poderes.
Ao menos na teoria.
Isso porque com o tempo, todas as coisas evoluem, e não foi diferente o que ocorreu
com a doutrina da separação dos Poderes:
A ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão
da teoria da separação dos Poderes e novas formas de relacionamento entre os
órgãos legislativo e executivo e destes com o judiciário, tanto que atualmente se
prefere falar em colaboração dos poderes, que é característica do parlamentarismo,
em que o governo depende da confiança do Parlamento [...], enquanto, no
presidencialismo, desenvolveram-se as técnicas da independência orgânica e
harmonia dos poderes.43 (grifos do autor)
Nota-se que as funções estatais originais foram ganhando nova forma, entrelaçandose umas as outras, fato que pode causar confusão em certos casos.
Para esclarecer a questão, a própria Constituição já prevê a existência de exceções ao
princípio, como por exemplo, a edição de medidas provisórias com força de lei pelo
Presidente da República (artigo 62). É o Chefe do Poder Executivo fazendo as vezes de
Judiciário.
Nesse ponto, Fábio Konder Comparato acrescenta que “há uma generalizada
submissão dos juízes ao Poder Executivo” 44, citando como maior exemplo o fato de os
ministros dos Tribunais Superiores do país serem nomeados pelo Presidente da República,
chefe do Poder Executivo.
Mas a polêmica vai mais além. “Sempre que se acrescem atribuições, faculdades e
prerrogativas de um [poder] em detrimento de outro” 45 dá-se a desarmonia.
Especialmente no caso do Poder Judiciário, o atrito gira em torno das garantias
conferidas a todos seus membros, cujo principal objetivo é assegurar a máxima
imparcialidade das pessoas que exercem a função jurisdicional.
Tais garantias são alvo de muitas críticas por parte dos outros Poderes, inclusive pela
própria sociedade, sendo vistas como privilégios que podem levar à impunidade.
Uma visão mais aprofundada sobre o assunto é o que demonstraremos a seguir.
41
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
109.
42
PELICIOLI, Angela Cristina. A atualidade da reflexão sobre a separação dos poderes. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, v. 43, n. 169, p. 21-30, jan./mar. 2006. Disponível em: <http://www2.senado.gov.br/
bdsf/item/id/92742> Acesso em: 19 ago. 2010.
43
SILVA, op. cit., p. 109.
44
COMPARATO, Fábio Konder. Notas sobre a independência e as garantias da magistratura. Revista
Trimestral de Direito Público, São Paulo, v. 33, p. 12-17, 2001.
45
SILVA, op. cit., p. 111.
12
GARANTIAS DO PODER JUDICIÁRIO
A Constituição Federal de 1988 assegura aos membros do Poder Judiciário em seu
artigo 95, a chamada tríplice garantia: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de
vencimentos.
Segundo José Afonso da Silva, tais garantias buscam manter a independência dos
juízes, para que estes possam exercer a função jurisdicional com dignidade, desassombro e
imparcialidade.46
Na mesma senda segue o pensamento de Pedro Lenza, que sustenta que:
As garantias atribuídas ao Judiciário assumem importantíssimo papel no
cenário da tripartição de Poderes, assegurando a independência do Judiciário, que
poderá decidir livremente, sem se abalar com qualquer tipo de pressão que venha
dos outros Poderes.47
Pontes de Miranda ressalta ainda que
As garantias são direitos constitucionais, oriundos de regras jurídicas
diretas e imediatas, e não simples garantias institucionais. O Poder Legislativo e os
outros Poderes não têm faculdade de interpretar e conceituar vitaliciedade,
inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios. São conceitos da Constituição. 48
Logo, o objetivo principal destes institutos é assegurar a máxima imparcialidade das
pessoas que exercem a função jurisdicional, bem como zelar pela perpetuidade da separação
de Poderes, e assim manter o equilíbrio do Estado Democrático de Direito.
Breve histórico
As garantias conferidas aos membros do Poder Judiciário são de extrema
importância, e já encontravam previsão em nossa primeira Constituição, datada de 25 de
março de 1824. Aqui, a ideia ficou adstrita à vitaliciedade, conforme se depreende da leitura
dos artigos 153 e 155 do texto constitucional:
Art. 153. Os Juizes de Direito serão perpetuos, o que todavia se não
entende, que não possam ser mudados de uns para outros Logares pelo tempo, e
maneira, que a Lei determinar.
Art. 155. Só por Sentença poderão estes Juizes perder o Logar.
Entretanto, a idéia da vitaliciedade não se fez absoluta, pois, nessa época o imperador
podia suspender os juízes, na forma do artigo 154.
Na Constituição de 1891 a vitaliciedade permanece assegurada no artigo 57: “Os
Juízes federais são vitalícios e perderão o cargo unicamente por sentença judicial.” E a
garantia da irredutibilidade de vencimentos aparece pela primeira vez no § 1° do mesmo
artigo: “Os seus vencimentos serão determinados por lei e não poderão ser diminuídos.”
Em 1934, a Constituição implementa as três modalidades de garantias, conforme
disposto no artigo 64:
46
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
590.
47
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 460.
48
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Tomo III. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1970. p. 577.
13
Art 64 - Salvas as restrições expressas na Constituição, os Juízes gozarão
das garantias seguintes:
a) vitaliciedade, não podendo perder o cargo senão em virtude de
sentença judiciária, exoneração a pedido, ou aposentadoria, a qual será compulsória
aos 75 anos de idade, ou por motivo de invalidez comprovada, e facultativa em
razão de serviços públicos prestados por mais de trinta anos, e definidos em lei;
b) a inamovibilidade, salvo remoção a pedido, por promoção aceita, ou
pelo voto de dois terços dos Juízes efetivos do tribunal superior competente, em
virtude de interesse público;
c) a irredutibilidade de vencimentos, os quais, ficam, todavia, sujeitos aos
impostos gerais.
No § único havia uma ressalva, que estipulava que “a vitaliciedade não se estenderá
aos Juízes criados por lei federal, com funções limitadas ao preparo dos processos e à
substituição de Juízes julgadores.”
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937 somente reiterou em seu artigo
91 as garantias já consagradas na Carta de 1934, restando omissa quanto à matéria ressalvada
no § único do texto constitucional anterior. Previa, contudo, no artigo 177, a possibilidade de
aposentar ou reformar de acordo com a legislação em vigor os funcionários civis e militares
cujo afastamento se impuser, a juízo exclusivo do Governo, no interesse do serviço público ou
por conveniência do regime. Resta, pois, configurada a precariedade das garantias existentes
neste período.
O artigo 95 da Constituição de 1946 repete a vitaliciedade, inamovibilidade e
irredutibilidade de vencimentos, porém excetua em seu § 3° que “a vitaliciedade não se
estenderá obrigatoriamente aos Juízes com atribuições limitadas ao preparo dos processos e à
substituição de Juízes julgadores, salvo após, dez anos de contínuo exercício no cargo.”
A Carta de 1967 reafirma as garantias já asseguradas pelas constituições anteriores.
No entanto, aqui não há ressalvas no tocante à vitaliciedade, sendo esta estendida a todos os
juízes, sem distinção. No que diz respeito à inamovibilidade, o § 2° estipula que por motivo
de interesse público, o Tribunal competente poderá, pelo voto de dois terços de seus Juízes
efetivos, determinar a remoção ou a disponibilidade do Juiz de categoria inferior,
assegurando-lhe defesa. Os Tribunais poderão proceder da mesma forma, em relação a seus
Juízes.
A Emenda Constitucional de 1969 manteve a vitaliciedade, inamovibilidade e
irredutibilidade de vencimentos e estabeleceu que “na primeira instância, a vitaliciedade será
adquirida após dois anos de exercício não podendo o juiz, nesse período, perder o cargo senão
por proposta do Tribunal a que estiver subordinado, adotada pelo voto de dois terços de seus
membros efetivos ou dos integrantes do órgão especial (artigo 113, § 1°).”
A Constituição Federal de 1988 nos apresenta as garantias constitucionais da
magistratura da forma como conhecemos hoje, conforme preceitua o seu artigo 95:
Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:
I - vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos
de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal
a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada
em julgado;
II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do
art. 93, VIII;
III - irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e
XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I.
14
Feitas tais considerações a respeito da instituição das garantias do Poder Judiciário
em nossa legislação, bem como da sua evolução ao longo das constituições brasileiras, mister
especificar os diferentes tipos de garantias conferidas aos membros do Judiciário.
Espécies de garantias do Poder Judiciário
As garantias do Poder Judiciário encontram sua melhor classificação nos
ensinamentos de José Afonso da Silva49, que as divide em duas espécies principais: garantias
institucionais e garantias funcionais.
As institucionais protegem o Judiciário enquanto instituição. Aproveitamos, agora, o
conceito dado pelo mestre Paulo Bonavides:
A garantia institucional visa, em primeiro lugar, assegurar a permanência
da instituição, [...] preservando invariavelmente o mínimo de susbstantividade ou
essencialidade, a saber, aquele cerne que não deve ser atingido nem violado,
porquanto se tal acontecesse, implicaria já o perecimento do ente protegido. 50
Elas subdividem-se em garantias de autonomia orgânico-administrativa e
garantias de autonomia financeira.
As garantias de autonomia orgânico-administrativa consistem na capacidade que o
Judiciário tem de estruturar e promover o funcionamento dos seus próprios órgãos, sem a
interferência de outros poderes. Estão previstas no artigo 96 do texto constitucional.
Já as garantias de autonomia financeira estão dispostas no artigo 99 da Constituição
e se manifestam no poder que o Judiciário tem de elaborar seu próprio orçamento.
No tocante às garantias funcionais, estas “asseguram a independência e a
imparcialidade dos membros do Poder Judiciário” 51 e por sua vez, desmembram-se em
garantias de independência52 dos órgãos judiciários (previstas no artigo 95 da Lei
Fundamental) e garantias de imparcialidade dos órgãos judiciários, arraigadas no § único
do artigo 95 da carta constitucional, bem como no artigo 36 da Lei Complementar 35/1979.
As garantias de independência dos órgãos judiciários configuram a denominada
tríplice garantia e compreendem a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de
subsídios, institutos explicitados a seguir.
A vitaliciedade é a garantia constitucional prevista no inciso I do artigo 95 da
Constituição Federal que só pode ser adquirida no primeiro grau de jurisdição após dois anos
de estágio probatório e confere ao magistrado a vinculação deste ao seu cargo, em ânimo
definitivo.
Isso significa dizer que o juiz vitalício só perde o cargo “por vontade própria
(exoneração e aposentadoria), pela aposentadoria compulsória aos setenta anos ou por
sentença judicial transitada em julgado,” 53 em processo adequado onde lhe seja assegurado o
contraditório e a ampla defesa ou ainda, por disponibilidade.
49
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 588
et seq.
50
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 542.
51
SILVA, op. cit., p. 588.
52
Uadi Lammêgo Bulos utiliza o termo “garantias funcionais de liberdade.” (Constituição Federal Anotada. p.
952)
53
GONÇALVES, José Wilson; PELUSO, Vinícius de Toledo Piza. Comentários à lei orgânica da
magistratura nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 63.
15
Durante o estágio probatório, a perda do cargo depende de proposta do Tribunal ou
Órgão Especial competente, acolhida pelo voto da maioria absoluta de seus membros efetivos,
conforme preceitua a Resolução 30/2007 do CNJ.54
Nesse período serão avaliados critérios específicos para a aquisição da vitaliciedade,
tais como as aptidões do juiz, sua idoneidade moral, bem como a adaptação ao cargo e às
funções, consoante o disposto no artigo 15 da Resolução n° 1/2008, do Conselho da Justiça
Federal. O Superior Tribunal de Justiça acresce a estes critérios de avaliação os requisitos da
disciplina, assiduidade e eficiência.55
Em se tratando de vitaliciedade, a disponibilidade dar-se-á no caso de extinção do
cargo, por motivo de interesse público, de acordo com a Súmula n° 11 do Supremo Tribunal
Federal.56 Nesta hipótese os proventos são proporcionais ao tempo de contribuição.
Os membros dos Tribunais Superiores também gozam das mesmas garantias dos
demais membros do Poder Judiciário porém, aqui, a vitaliciedade possui uma característica
particular: é adquirida imediatamente no momento da posse, inclusive para aqueles que
ingressam pelo quinto constitucional. É o caso dos Ministros do Supremo Tribunal Federal,
do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior do Trabalho e do Superior Tribunal
Militar, assim como dos Juízes dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais do
Trabalho, dos desembargadores dos Tribunais de Justiça, dos Juízes dos Tribunais de Alçada
e dos Juízes de segunda instância dos Tribunais Militares dos Estados.
Ressalte-se que os Ministros do Tribunal Regional Eleitoral e os Juízes Eleitorais não
gozam da garantia da vitaliciedade por possuírem investidura temporária.
A vitaliciedade é, portanto, a vinculação do titular ao cargo com foros de
permanência e definitividade.57
Segundo Alexandre de Moraes, “o fato de os magistrados serem vitalícios permitelhes certa liberdade de preocupações a respeito da aprovação pública, permitindo uma atuação
mais técnica.” 58
A respeito da garantia da vitaliciedade Pontes de Miranda assevera que
Temporário tem de ser o membro do Poder Legislativo, que requer o
contato com a opinião pública, a indicação sempre renovada, segundo exigência de
cada momento e das correntes preponderantes que representa. Vitalício, ou, pelo
menos de longa duração, precisa ser o membro do Poder Judiciário, para que se lhe
assegure a independência e se lhe aproveitem as experiências na arte de julgar. 59
A inamovibilidade “é a impossibilidade de designar o juiz para outro cargo,
diferente do qual foi nomeado.” 60 Significa “a vedação à aposentadoria, disponibilidade,
54
55
56
57
58
59
60
Art. 17. Somente pelo voto da maioria absoluta dos integrantes do Tribunal Pleno ou do Órgão Especial será
negada a confirmação do magistrado na carreira.
Durante o estágio probatório, o magistrado não está sob o abrigo da garantia constitucional da vitaliciedade,
podendo ser exonerado desde que não demonstrados os requisitos próprios para o exercício da função
jurisdicional, tais como a idoneidade moral, aptidão, disciplina, assiduidade, eficiência e outros. (STJ - RMS
6675/MG, rel. Min. Félix Fischer, j. 07/02/2006, DJU 20/03/2006).
Súmula 11 - A vitaliciedade não impede a extinção do cargo, ficando o funcionário em disponibilidade, com
todos os vencimentos (leia-se subsídios).
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2005.
p. 951.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 19. ed. São
Paulo: Atlas, 2002. p. 1303.
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Tomo III. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1970. p. 568.
BULOS, op. cit., p. 954.
16
remoção e promoção contra a vontade do juiz,” 61 abrangendo assim, a comarca, a sede, o
cargo, o tribunal, a câmara e o grau de jurisdição a que o magistrado pertence. Tal garantia
está disposta no artigo 95, II, da Lei Fundamental, que na sua redação implementa o interesse
público como único motivo para exceção à esta regra. O que significa dizer que o magistrado
poderá ser removido em caso de interesse público, mediante o voto da maioria absoluta do
respectivo Tribunal a que estiver vinculado ou do Conselho Nacional de Justiça, sempre
assegurada a ampla defesa (artigo 93, VIII).
De acordo com Afonso da Silva,62 o magistrado pode ser removido, ainda, a pedido
ou por permuta com outro magistrado de comarca de igual entrância, atendidas as regras
concernentes às promoções, previstas nas alíneas a, b, c e e do inciso II do artigo 93.
Gonçalves e Peluso63 entendem que a garantia da inamovibilidade é intimamente
ligada à da vitaliciedade, na medida em que de nada adiantaria o juiz somente ser excluído da
Magistratura Nacional por força de sentença judicial transitada em julgado se, contra sua
própria vontade, pudesse ser discricionariamente removido do cargo.
No mesmo sentido se dá o entendimento de Pontes de Miranda:
A inamovibilidade prende-se à divisão dos Poderes e à independência do
Poder Judiciário. Se um dos outros Poderes pudesse remover os juízes, não teriam
esses a independência que se pretende necessária. Inamovíveis e vitalícios, ficam os
juízes a coberto de prejuízos materiais e morais, que lhes infligiriam os dirigentes e
os legisladores. O princípio constitucional tem por fito obstar assim os golpes do
Poder executivo como os golpes do Poder Legislativo. 64
A irredutibilidade de subsídios é a terceira das garantias conferidas aos membros
do Poder Judiciário cuja previsão encontra-se no artigo 95, III da Constituição.
Significa que o magistrado não pode ter seu subsídio reduzido, inclusive por medida
geral, respeitados os limites máximos expressos no artigo 37, incisos X e XI, bem como no
artigo 39, § 4° do texto constitucional.
A regra da irredutibilidade deve observar ainda, o disposto nos artigos 150, II, 153,
III, e 153, § 2º, I da Carta Constitucional, eis que os subsídios também estão sujeitos aos
impostos gerais e aos descontos para fins previdenciários.
Esta garantia não é exclusiva dos magistrados, na medida em que o artigo 37, XV
estabelece que “o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são
irredutíveis, ressalvado o disposto nos incisos XI e XIV deste artigo e nos arts. 39, § 4º, 150,
II, 153, III, e 153, § 2º, I.”
Para Pontes de Miranda65 a vitaliciedade sem irredutibilidade de subsídios não
valeria de nada, na medida em que seria talhada a independência econômica, elemento
extremamente importante para a independência funcional.
Ainda no que diz respeito à classificação das garantias segundo José Afonso da
Silva, resta-nos abordar as garantias de imparcialidade dos órgãos judiciários, as quais
aparecem no § único do artigo 95 sob a forma de vedações:
61
GONÇALVES, José Wilson; PELUSO, Vinícius de Toledo Piza. Comentários à lei orgânica da
magistratura nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 84.
62
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
590-591.
63
GONÇALVES; PELUSO, op. cit., p. 83.
64
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Tomo III. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1970. p. 570.
65
Ibid., p. 573.
17
Parágrafo único. Aos juízes é vedado:
I - exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo
uma de magistério;
II - receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em
processo;
III - dedicar-se à atividade político-partidária.
IV - receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de
pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em
lei;
V - exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de
decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração.
O rol é taxativo, não existindo no texto constitucional mais nenhum artigo que
restrinja os direitos dos magistrados. Contudo, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LC
35/1979) prevê em seu artigo 36 mais algumas limitações impostas aos juízes:
Art. 36 - É vedado ao magistrado:
I - exercer o comércio ou participar de sociedade comercial, inclusive de
economia mista, exceto como acionista ou quotista;
II - exercer cargo de direção ou técnico de sociedade civil, associação ou
fundação, de qualquer natureza ou finalidade, salvo de associação de classe, e sem
remuneração;
III - manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre
processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre
despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e
em obras técnicas ou no exercício do magistério.
As referidas vedações, que para Pontes de Miranda representam “exigências de
ordem ética”, 66 são para Afonso da Silva restrições formais, que buscam proteger a
independência do juiz e, consequentemente, a do próprio Poder Judiciário.67
Apesar da lista de restrições já ser bem extensa, o Conselho Nacional de Justiça
colaborou para o seu aumento, ao publicar a Orientação n° 2/2007, firmando entendimento no
sentido de ser incompatível com o exercício do cargo de magistrado o desempenho de função
da justiça desportiva, de grão-mestre da maçonaria ou de dirigente de organização não
governamental (ONG), bem como de entidades como Rotary, Lions, APAEs, Sociedade
Espírita, Rosa-Cruz e de instituição de ensino pública e privada.
Todas as condutas descritas anteriormente nos incisos vão de encontro com a postura
ideal de um juiz no exercício de suas funções, motivo pelo qual se justifica a rigidez tanto do
texto constitucional como da lei complementar:
Os cidadãos, quando passam a integrar a carreira da Magistratura
Nacional, adquirem direitos e prerrogativas próprios de tal função estatal,
submetendo-se, por outro lado, reflexamente, a restrições que lhes são impostas em
razão do próprio cargo.68
Desta forma, cabe ao magistrado respeitar as limitações que lhe são impostas, e às
Corregedorias de Justiça a fiscalização de tais vedações, buscando sempre o objetivo comum
que fundamenta estas garantias, qual seja, a imparcialidade do juiz.
66
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Tomo III. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1970. p. 578.
67
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 515.
68
GONÇALVES, José Wilson; PELUSO, Vinícius de Toledo Piza. Comentários à lei orgânica da
magistratura nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 103.
18
Encerrada, pois, a classificação das garantias constitucionais conferidas aos membros
do Judiciário, vale destacar, apenas para enriquecer o presente artigo, que as referidas
prerrogativas também são estendidas aos membros do Ministério Público (artigo 128 § 5°, I
da Constituição e artigo 17 da Lei Orgânica do Ministério Público da União – 75/1993) e do
Tribunal de Contas da União. Estes últimos são equiparados em garantias, prerrogativas,
impedimentos, vencimentos e vantagens aos Ministros do Superior Tribunal de Justiça,
conforme explicita o artigo 73 § 3° da Lei Maior.
Aos Defensores Públicos é assegurada a garantia da inamovibilidade (artigo 134, §
1°) e da irredutibilidade de vencimentos (artigo 37, XV). Não possuem vitaliciedade, mas
sim, estabilidade.
Voltando à carreira da magistratura nacional, foco do presente artigo, merece ênfase
o fato de que, além de todas estas garantias conferidas aos juízes pela Constituição, a Lei
Orgânica da Magistratura Nacional - LOMAN prevê ainda, prerrogativas específicas ao
magistrado, conforme se depreende da leitura do artigo 33 da Lei Complementar 35/1979:
Art. 33 - São prerrogativas do magistrado:
I - ser ouvido como testemunha em dia, hora e local previamente
ajustados com a autoridade ou Juiz de instância igual ou inferior;
II - não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do órgão
especial competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável,
caso em que a autoridade fará imediata comunicação e apresentação do magistrado
ao Presidente do Tribunal a que esteja vinculado (vetado);
III - ser recolhido a prisão especial, ou a sala especial de Estado-Maior,
por ordem e à disposição do Tribunal ou do órgão especial competente, quando
sujeito a prisão antes do julgamento final;
IV - não estar sujeito a notificação ou a intimação para comparecimento,
salvo se expedida por autoridade judicial;
V - portar arma de defesa pessoal.
Parágrafo único - Quando, no curso de investigação, houver indício da
prática de crime por parte do magistrado, a autoridade policial, civil ou militar,
remeterá os respectivos autos ao Tribunal ou órgão especial competente para o
julgamento, a fim de que prossiga na investigação.
Da mesma forma, imperioso destacar que não há que se comparar as garantias
conferidas aos magistrados com a imunidade parlamentar dos congressistas.69 São institutos
diferentes, porém, com objetivos parecidos, na medida em que ambos almejam a
independência dos seus “protegidos” em relação à pressões que possam vir a ser exercidas
pelos demais Poderes da federação.
No entanto, apesar do cuidado que os doutrinadores têm em diferenciar as garantias
das prerrogativas, não é raro encontrarmos escritos que confundem todos estes conceitos,
gerando distorções a respeito do assunto. Buscaremos resolver as dúvidas atinentes à questão
a seguir.
A VITALICIEDADE
A vitaliciedade, conforme já visto, é a primeira do trio das garantias de
independência estendidas aos membros do Poder Judiciário. “No primeiro grau, ela só será
adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de
deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença
judicial transitada em julgado.”
69
HADDAD, Amini. Vitaliciedade dos juízes X Imunidade parlamentar. Espaço Vital, Porto Alegre, 20 jul.
2010. Disponível em: <http://www.espacovital.com.br/noticia_ler.php?id=19729> Acesso em: 19 ago. 2010.
19
Este é a definição da letra fria da lei, prevista no inciso I do artigo 95 da
Constituição. Contudo, na prática, o referido conceito não abarca todas as hipóteses atinentes
à questão, não restando claro, muitas vezes, os limites da vitaliciedade, ou seja, até que ponto
a garantia deve ser preservada.
Desta forma, o presente capítulo busca esclarecer: quais os limites das garantias do
Poder Judiciário, mais especificamente da vitaliciedade? Seria esta motivo de impunidade ou
uma garantia conferida à sociedade como um todo?
Considerando que a vitaliciedade seja efetivamente motivo de impunidade, no caso
de o juiz não agir de acordo com a sua função, deveria este ser destituído de tal garantia, para
que o objetivo da vitaliciedade não seja distorcido ao ponto de mascarar arbitrariedades
cometidas pelos magistrados?
Por outro lado, sendo a vitaliciedade uma garantia essencial e inafastável do Poder
Judiciário, servindo apenas para assegurar a independência dos poderes entre si e a
imparcialidade das decisões judiciais, deveria esta ser preservada para o fim de manter a
democracia do Estado Democrático de Direito?
Com base nessas premissas, ao adentrar no cerne da questão, o último seguimento do
presente artigo busca demonstrar os limites da garantia constitucional da vitaliciedade na
carreira da magistratura nacional, e assim contribuir para o esclarecimento das lacunas que
permeiam o assunto.
Conceito: garantia ou prerrogativa?
Ao falar das garantias do Poder Judiciário, é recorrente a dúvida quanto à
denominação correta do instituto: garantia ou prerrogativa? Essa importante distinção
terminológica pode ser observada no trecho abaixo, de Indalécio Gomes Neto:
É preciso não confundir as garantias constitucionais da magistratura com
as prerrogativas do magistrado. As primeiras destinam-se a amparar e possibilitar o
exercício da função, enquanto as segundas visam proteger o próprio magistrado.
As garantias têm origem na Constituição, ao passo que as prerrogativas na
Lei Complementar.70
Logo, as garantias são aquelas previstas no artigo 95 do texto constitucional, ao
passo que as prerrogativas estão dispostas no artigo 33 da Lei Complementar 35/1979,
conforme já relatado anteriormente.
No dicionário, o termo “prerrogativa” tem a seguinte definição: “concessão ou
vantagem com que se distingue uma pessoa ou incorporação; privilégio, regalia.” 71
No entanto, tal denominação não satisfaz o verdadeiro sentido das garantias da
magistratura na prática. A doutrina é dominante no sentido de esclarecer que :
Não se trata de um privilégio, mas de uma condição para o exercício da
função judicante, que exige garantias especiais de permanência e definitividade no
cargo. É, assim, prerrogativa da instituição judiciária, não da pessoa do juiz.72
Na mesma senda, o entendimento de Alexandre de Moraes:
70
71
72
GOMES NETO, Indalécio. Independência entre os poderes e garantias da magistratura. Revista do Tribunal
Superior do Trabalho, Brasília, v. 63, p. 56, 1994.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da Língua Portuguesa. 1. ed. 15ª impressão.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p. 1133.
SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 514.
20
As garantias conferidas aos membros do Poder Judiciário tem assim como
condão conferir à instituição a necessária independência para o exercício da
Jurisdição, resguardando-a das pressões do Legislativo e do Executivo, não se
caracterizando, pois, os predicamentos da magistratura como privilégio dos
magistrados, mas como meio de assegurar seu livre desempenho, de molde a revelar
73
a independência e autonomia do Judiciário.
Nesse diapasão, Ari Queiroz sustenta que “privilégios são vantagens pessoais
irrazoáveis; prerrogativas são atributos do cargo para possibilitar ao titular exercer as funções
sem receio de ameaças ou retaliações.” 74
Podemos concluir, portanto, que as garantias e prerrogativas dos membros do Poder
Judiciário são essenciais à função judicante, servindo como “instrumentos de imparcialidade e
autonomia, existentes em defesa dos próprios jurisdicionados.”75
Todavia, ainda não restam esclarecidos os limites aplicáveis a estes institutos.
Para alguns autores, não há limites, na medida em que eles consideram as garantias
do Poder Judiciário como cláusulas pétreas.
É o que afirma expressamente Uadi Lammêgo Bulos, em sua Constituição Federal
Anotada: “Nunca é demasiado reiterar que as garantias do Poder Judiciário configuram
cláusulas imodificáveis (art. 60, § 4°).” 76
Vale lembrar que as cláusulas pétreas são limitações materiais ao poder de reforma
constitucional. Significa dizer que as matérias dispostas no artigo 60, § 4° da Constituição são
imutáveis:
Art. 60. [...]
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
As cláusulas pétreas objetivam assegurar a imutabilidade de certos valores, além de
preservar a identidade do projeto originário, bem como prevenir um processo de erosão da
Constituição.77
Compartilha da mesma ideia de Bulos o próprio Supremo Tribunal Federal, que na
Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 98 entendeu como inconstitucionais os artigos da
Constituição Estadual do Estado do Mato Grosso que criavam outras modalidades de cessação
da investidura vitalícia, além daquelas previstas no texto constitucional (quais sejam, a
invalidez e a idade limite, previstas no artigo 95, I).
No voto, o Ministro Sepúlveda Pertence, relator do processo sustenta que:
Com efeito, é patente a imbricação entre a independência do Judiciário e a
garantia da vitaliciedade dos juízes. A vitaliciedade é penhor da independência do
magistrado, a um só tempo, no âmbito da própria Justiça e externamente - no que se
73
74
75
76
77
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 19. ed. São
Paulo: Atlas, 2002. p. 1302.
QUEIROZ, Ari. De novo contra a magistratura. Opinião Jurídica, Goiânia, 18 jul. 2010. Disponível em:
<http://www.opiniaojuridica.com.br/portal2/3/centro1-2.php?id_artigo=5183> Acesso em: 19 ago.2010.
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 951.
Ibid., p. 952.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires e MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de
Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 208.
21
reflete sobre a independência do Poder que integra frente aos outros Poderes do
Estado.
Desse modo, a vitaliciedade do juiz integra o regime constitucional
brasileiro de separação e independência dos Poderes.
[...]
Acrescer-lhes outros casos de inatividade obrigatória é, por tudo isso,
afrontar o art. 95, I, que de modo exaustivo os prescreve, e, via de conseqüência, os
arts. 2° e 60, § 4°, III, da Constituição, que erigem a separação e independência dos
poderes a princípio constitucional intangível pelo constituinte local. 78
Aqui a vitaliciedade é tida como cláusula pétrea impressa no inciso III do § 4°, artigo
60 da Constituição. A referida decisão, ao entender que a vitaliciedade está intimamente
ligada ao Princípio da Separação dos Poderes, reconheceu a extensão do status de cláusula
pétrea ao disposto no artigo 95, I da Lei Maior.
Nesse mesmo sentido se dá o entendimento do Conselho Nacional de Justiça, ao
sustentar que “qualquer emenda constitucional tendente a abolir a garantia da vitaliciedade
seria contrária ao art. 60, § 4°, inciso III, da Constituição Federal, que inclui a separação dos
Poderes entre as chamadas cláusulas pétreas.”79
O Ministério Público, através da Associação Nacional dos Membros do Ministério
Público - CONAMP, também manifesta sua opinião:
O conceito de vitaliciedade destinado aos cargos de magistrados e
membros do Ministério Público brasileiro, detém um conteúdo de fundamentalidade
que ultrapassa em muito os limites das prerrogativas corporativas ou dos interesses
individuais. Trata-se de um conceito cujo fundamento se relaciona com a própria
essência do Estado Democrático de Direito como princípio republicano do Estado
brasileiro. [...]
Não só a garantia da vitaliciedade, mas também as demais
(inamovibilidade e outras) insculpidas na CF/88, todas pertencentes ao campo das
limitações materiais à atuação do poder constituinte derivado, são, por essa razão,
intangíveis.80
Hugo Nigro Mazzilli, Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, vai mais além,
pois acredita que:
Dentre as cláusulas pétreas inscrevem-se os direitos e garantias
individuais (art. 60, § 4° da Constituição) e, entre estas, estão as garantias dos
magistrados, membros dos Tribunais de Contas e membros do Ministério Público,
expressamente consideradas como tais pela própria Constituição vigente (arts. 73, §
3°, 93, VI e 129, § 4°).81
Para ele, portanto, as garantias dos membros do Poder Judiciário estão vinculadas ao
inciso IV do artigo 60, § 4°, fazendo parte dos direitos e garantias individuais presentes em
nossa Constituição, apesar de não estarem dispostos no rol do artigo 5°.
78
79
80
81
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 98-5 Mato Grosso, rel. Min.
Sepúlveda Pertence, j. 07/08/1997, DJU 31/10/1997. p. 14-16.
Conselho Nacional de Justiça. Nota Técnica n° 12/2010 em relação à Proposta de Emenda Constitucional
n° 89/2003. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/317-notastecnicas/11223-nota-tecnica-no-122010> Acesso em: 11 mai. 2011.
Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP. Nota Técnica n° 03/2010 em relação
à Proposta de Emenda Constitucional n° 89/2003. Disponível em: <http://www.conamp.org.br
/Notas%20Tcnicas/Forms/AllItems.aspx> Acesso em: 04 abr. 2011.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A reforma constitucional e as garantias da magistratura. Revista APMP em
Reflexão, São Paulo, v. 17, p. 5-10, abr. 1998.
22
A própria doutrina, aqui muito bem representada por Gilmar Ferreira Mendes,
reconhece a existência de cláusulas pétreas implícitas, na medida em que entende que “as
limitações materiais ao poder de reforma não estão exaustivamente enumeradas no art. 60, §
4°, da Carta da República.” 82 Contudo, em outra obra que foi organizada pelo mesmo autor,
há a afirmação de que as garantias dos juízes são predicamentos relativos, posto que “não
existem direitos absolutos na Carta Política.” 83
Enquanto alguns autores têm certeza quanto à imutabilidade das garantias da
magistratura - especialmente da vitaliciedade -, há uma porção da sociedade que não pensa da
mesma forma.
É exatamente o que comprova a Proposta de Emenda Constitucional n° 89/2003, que
veremos a seguir.
A PEC 89/2003
A Proposta de Emenda Constitucional n° 89/2003 foi apresentada em 18/11/2003,
tem como primeira signatária a Senadora Ideli Salvatti (PT-SC) e objetiva alterar os arts. 93,
95, 103-B, 128 e 130-A da Constituição Federal, para excluir a aposentadoria por interesse
público do rol de sanções aplicáveis a magistrados, bem como para permitir a perda de cargo,
por magistrados e membros do Ministério Público, na forma e nos casos que especifica.84
Na justificação da proposta, é assinalado que:
A previsão, com caráter sancionatório, da aposentadoria de magistrados
por interesse público se revela um absurdo, porquanto, em lugar de servir como
punição aos juízes que cometem graves irregularidades, funciona como verdadeiro
prêmio. Seria adequado, pois, alterar a Carta Magna nesse ponto, resgatando o
modelo anterior a 1988, no qual a demissão de juízes constituía a pena máxima
aplicada administrativamente aos magistrados. Contra o argumento de que a
mudança enfraqueceria um dos predicamentos da magistratura, a justificação aduz
ser a vitaliciedade condição para o exercício da jurisdição de uma forma regular e
conforme com o Direito, não devendo constituir empeço à responsabilização de
quem comete desvios funcionais ou crimes. 85
Após mais de seis anos na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania - CCJ
aguardando deliberação, a autora da PEC 89 recolheu assinaturas dos líderes partidários para
acelerar o procedimento.
Foi emitido então pelo Presidente da CCJ, o Senador Demóstenes Torres (DEMGO), um parecer favorável no que tange à constitucionalidade da Proposta, que se deu nos
seguintes termos:
Quanto à constitucionalidade da PEC, verificamos terem sido observados
os requisitos descritos no art. 60 da Lei Maior [...], as alterações promovidas no
82
83
84
85
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires e MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de
Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 218.
NALINI, José Renato. O Poder Judiciário na Constituição de 1988. In MENDES, Gilmar Ferreira. et. al.
(Coord.) Tratado de Direito Constitucional - v. 1. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 959.
Neste mesmo sentido, foi apresentada pelo Deputado Raul Jungmann (PPS-PE) a Proposta de Emenda
Constitucional n° 178/2007. No entanto, a referida PEC foi arquivada em atendimento ao disposto no art. 105
do Regimento Interno da Câmara de Deputados, o qual determina que finda a legislatura, arquivar-se-ão todas
as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se encontrem em
tramitação.
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Relatório sobre a Proposta de Emenda à Constituição n°
89, de 2003. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/61731.pdf> Acesso em: 10 mai. 2011.
23
texto constitucional não atentam contra qualquer das cláusulas pétreas enumeradas
no § 4º do art. 60 da Carta Magna [...].86
Afirmou que a PEC não atenta contra o Princípio da Separação dos Poderes, nem
atinge a garantia da vitaliciedade:
A meu ver, o princípio da separação dos Poderes não pode ser invocado
para se impugnar a proposta, pois ela não prevê qualquer mecanismo de ingerência
de um Poder sobre outro, apenas abre a possibilidade de o Poder Judiciário
promover sua depuração por um processo mais célere que o judicial, afastando, pela
via administrativa, magistrados que cometam faltas graves. Demais disso, a garantia
da vitaliciedade não é eliminada, antes assume feição mais condizente com um
Estado no qual os predicamentos de determinadas autoridades não se confundem
com privilégios. Com efeito, diferentemente dos servidores públicos estáveis, que
podem perder o cargo em virtude de decisão judicial transitada em julgado,
mediante processo administrativo disciplinar ou procedimento de avaliação
periódica de desempenho (art. 41, § 1º, da Lei Maior), os magistrados vitalícios
somente perderão o cargo, na forma propugnada na PEC, em virtude de decisão
judicial transitada em julgado ou por deliberação do tribunal ao qual estiverem
vinculados, tomada pelo voto de dois terços de seus membros. Concordo com os
autores da proposta, quando sustentam que a exigência de que dois terços do tribunal
formem convicção pela necessidade de se aplicar tal pena inibirá sua banalização e
seu uso indevido para fins de perseguição. 87
De igual forma, não interfere na independência dos juízes:
Defendo, outrossim, que a inovação trazida pela iniciativa não representa
um atentado à independência do magistrado. Se assim fosse, os mecanismos
punitivos hoje existentes também o seriam. A Constituição, em seu art. 93, VIII,
prevê como medidas de caráter punitivo, a remoção, a disponibilidade e a
aposentadoria, por interesse público, do magistrado. Ninguém sustentará, no entanto,
que, por poderem, por exemplo, ser removidos, os juízes carecem da necessária
independência para decidir de acordo com suas consciências. O texto constitucional
em vigor é até menos exigente quanto ao quórum para a aplicação da penalidade, ao
requerer que a maioria absoluta dos membros do tribunal se pronuncie no sentido da
punição.88
Por fim, acrescentou a hipótese de suspensão não remunerada no lugar da
disponibilidade, pois considera um verdadeiro “prêmio” este último instituto:
Quanto à exclusão da aposentadoria do rol de penalidades, também
considero acertada a proposta. A rigor, para quem cometeu infrações de maior
gravidade, a aposentadoria chega a ser um prêmio. A meu juízo, raciocínio
semelhante pode ser aplicado à disponibilidade. Colocar em disponibilidade um juiz
que infringiu de modo intolerável seus deveres funcionais, ainda que com subsídios
proporcionais, significa premiá-lo, pois implicará remunerar o seu ócio. E mais:
após dois anos, ele poderá pleitear o seu retorno às atividades normais (art. 57, § 1º,
da Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979). Assim, as mesmas razões
86
87
88
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Parecer de aprovação referente à Proposta de Emenda à
Constituição n° 89, de 2003. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/70566.pdf> Acesso em: 10
mai. 2011.
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Parecer de aprovação referente à Proposta de Emenda à
Constituição n° 89, de 2003. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/70566.pdf> Acesso em: 10
mai. 2011.
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Parecer de aprovação referente à Proposta de Emenda à
Constituição n° 89, de 2003. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/70566.pdf> Acesso em: 10
mai. 2011.
24
pelas quais assenti à retirada da hipótese de aposentadoria por interesse público me
anima a propor a substituição da hipótese de disponibilidade pela de suspensão não
remunerada. Cumprirá à lei orgânica da magistratura, ao regulamentar o dispositivo
constitucional, definir os prazos de suspensão.89
Como a PEC foi apresentada antes da Emenda Constitucional n° 45/2004, alguns de
seus dispositivos não se justificavam mais, motivo pelo qual a CCJ apresentou um
Substitutivo (Emenda n° 1 - CCJ).
Desta forma, em 07/07/2010, foi aprovado em dois turnos pelo Plenário do Senado
Federal o Substitutivo da Proposta de Emenda Constitucional n° 89/2003, que atualmente
encontra-se na Câmara de Deputados, onde aguarda deliberação.
A aprovação da Proposta pelo Senado teve grande repercussão e deu origem a várias
manifestações contrárias por parte dos magistrados e membros do Ministério Público, os
maiores interessados caso a PEC seja aprovada na Câmara de Deputados.
Em relação à Proposta, o Conselho Nacional de Justiça apresentou Nota Técnica
desfavorável à aprovação, sob os seguintes argumentos:
Tendo em vista que a garantia da vitaliciedade significa que o juiz só
pode perder o cargo por força de decisão judicial, a PEC nº 89/2003 é
inconstitucional neste particular, pois pretende introduzir hipóteses em que a perda
do cargo poderá decorrer de processo administrativo disciplinar. A rigor, a proposta
significaria a própria abolição da garantia da vitaliciedade, em ofensa ao princípio da
separação dos Poderes e, indiretamente, em detrimento das garantias individuais,
nos termos do art. 60, § 4º, incisos III e IV, da Constituição Federal. [...]
A proposta enfraquece o Conselho Nacional de Justiça, na medida em que
reduz as espécies de sanções disciplinares aplicáveis nos processos de sua
competência e atribui competência mais ampla aos Tribunais submetidos ao seu
controle administrativo.90
No mesmo sentido, o Ministério Público, através de sua Associação Nacional dos
Membros do Ministério Público - CONAMP:
No que toca a inconstitucionalidade e/ou constitucionalidade da PEC [...],
parece-nos que o instrumento legislativo em foco não será recepcionado pelo texto
constitucional em vigor, quando de sua conversão em norma constitucional, restando
eivada de inconstitucionalidade material em face da clara lesão à garantia
constitucional da vitaliciedade [...], ao pretender que juízes e membros do Ministério
Público brasileiro possam vir a ser exonerados, com a perda de seus cargos, por uma
decisão de natureza eminentemente administrativa. 91
Amini Haddad, Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso,
argumenta que “é absurda, subjetiva e extensiva a redação da emenda, quanto ao fato da perda
do cargo poder se dar sob o pretexto de que o magistrado não agiu conforme procedimento
89
90
91
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Parecer de aprovação referente à Proposta de Emenda à
Constituição n° 89, de 2003. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/70566.pdf> Acesso em: 10
mai. 2011.
Conselho Nacional de Justiça. Nota Técnica n° 12/2010 em relação à Proposta de Emenda Constitucional
n° 89/2003. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/317-notastecnicas/11223-nota-tecnica-no-122010> Acesso em: 11 mai. 2011.
Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP. Nota Técnica n° 03/2010 em relação
à Proposta de Emenda Constitucional n° 89/2003. Disponível em: <http://www.conamp.org.br/
Notas%20Tcnicas/Forms/AllItems.aspx> Acesso em: 04 abr. 2011.
25
escorreito ou em observância à conduta necessária ao decoro do cargo” 92 posto que tal
critério é muito relativo, o que pode resultar na intimidação do magistrado por qualquer
motivo subjetivo.
Em nota pública de repulsa, a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul–AJURIS
afirmou:
A aposentadoria compulsória aplicada como punição disciplinar aos
magistrados, utilizada como suposto argumento para a aprovação da PEC, não é a
única sanção que se aplica aos juízes. Ao contrário do que vem sendo apregoado,
perdem seus cargos se forem processados criminalmente, podendo atuarem para
tanto o próprio Tribunal a que estiver vinculado o magistrado, ou o Conselho
Nacional de Justiça e o Ministério Público. Basta que promovam a instauração do
competente processo judicial que, ao seu final e se for o caso, redundará na perda de
cargo, o que se fará, então, sem afronta à garantia constitucional que ora se busca
extinguir.93
O debate quanto ao cabimento ou não da Proposta de Emenda Constitucional n°
89/2003 tornou-se mais acirrado no momento em que foi trazido à tona pelo Conselho
Nacional de Justiça o julgamento do Processo Administrativo Disciplinar n°
2007.1000001533-8494, que puniu com aposentadoria compulsória o ex-ministro do Superior
Tribunal de Justiça, Paulo Medina, em razão de sua participação em esquema de venda de
sentença judicial em favor de bicheiros e donos de bingos.
Esta decisão teve grande repercussão nacional, e os casos que a sucederam só
fizeram por aumentar a comoção em torno do assunto.
Citamos como exemplo95 o ocorrido com o desembargador do Tribunal Regional do
Trabalho da 3ª Região Antônio Fernando Guimarães, aposentado compulsoriamente após ser
acusado de atuar em benefício de um escritório de advocacia em troca de obtenção de
vantagem financeira (Processo Administrativo Disciplinar n° 007400-80.2009.2.00.0000).
Caso semelhante é o do juiz Nemias Nunes de Carvalho, da 2ª Vara Cível de São
Luís, do Estado do Maranhão. Ele foi acusado de liberar grandes quantias de dinheiro por
meio de decisões liminares em ações movidas contra blocos e empresas de grande porte,
motivo que ensejou sua aposentadoria compulsória (Processo Administrativo Disciplinar n°
0005993-05.2010.2.00.0000).
92
93
94
95
HADDAD, Amini. Vitaliciedade dos juízes X Imunidade parlamentar. Espaço Vital, Porto Alegre, 20 jul.
2010. Disponível em: <http://www.espacovital.com.br/noticia_ler.php?id=19729> Acesso em: 19 ago. 2010.
Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS. Nota pública contra a PEC 89/2003. Disponível
em: <http://www.amb.com.br/docs/noticias/2010/notaPEC89Ajuris.pdf> Acesso em: 11 mai. 2011.
Processo Administrativo Disciplinar. Magistrado vitalício. Aposentadoria compulsória. Extinção da pretensão
punitiva da administração. Perda do objeto. Arquivamento. 1) Nos termos do art. 95, I da Constituição Federal
e da Resolução n° 30, de 07 de março de 2007, os Magistrados gozam da garantia da vitaliciedade. Para os
Magistrados vitalícios, a perda do cargo - com a eventual aplicação da pena de demissão - depende de
sentença judicial transitada em julgado. 2) Sendo a aposentadoria compulsória a pena mais grave a ser
aplicada ao Magistrado vitalício por meio de Processo Administrativo Disciplinar, não mais subsiste a
pretensão punitiva da Administração em relação a Magistrado aposentado compulsoriamente por haver
completado 70 anos de idade.3) Arquivamento do Processo Administrativo em relação a um dos Requeridos,
por perda do objeto. (CNJ – PAD 200710000015338 – Rel. Min. Gilson Dipp – 109ª Sessão – j. 03/08/2010
– DJ-E nº 143/2010 em 06/08/2010 p. 13/14).
Frise-se que o presente artigo não aproveita o caso envolvendo o juiz Marcelo Colombelli Mezzomo, primeiro
magistrado a ser demitido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tendo em vista que ele ainda não
detinha a garantia da vitaliciedade.
26
O que gera tanta polêmica é o fato de que, apesar de terem cometido infrações
graves, os magistrados foram punidos com aposentadoria compulsória, o que representa, para
muitos, uma verdadeira “premiação”.96
O argumento de quem se posiciona negativamente ao referido instituto encontra
respaldo na posição sustentada por Edson Pereira Belo da Silva, em seu artigo “Punição
remunerada: magistrado punido não deve receber aposentadoria”, no qual aduz que é
condenável a injusta e nefasta possibilidade de juízes serem apenados com aposentadoria com
proventos integrais ou proporcionais ao tempo de serviço. “Diante de gravíssimas acusações
[...], se condenados no âmbito administrativo, não poderão eles ser aposentados com
vencimentos, senão excluídos da magistratura.” 97
No entanto, cumpre esclarecer de modo efetivo que não há motivos para tanta
indignação, pois na hipótese de o magistrado não agir de acordo com a sua função, este
poderá sim perder o cargo, por meio de sentença judicial transitada em julgado, em ação penal
por crime comum ou de responsabilidade, bem como em ação civil para a desconstituição da
relação funcional entre o Estado e o juiz.98 É exatamente isso que garante a vitaliciedade.
Sobre os procedimentos a serem seguidos no caso de condenação do magistrado,
Gonçalves e Peluso asseveram que:
Tratando-se de crime de responsabilidade, segundo a Lei 4.898/65, a
perda do cargo pelo juiz vitalício nunca se dará pelo processo administrativo aí
previsto (art. 7°), operando, na exata linha constitucional, por sentença penal, de
conformidade com o art. 6°, § 3° da lei supra (pena principal).
Já em se tratando de crime comum, a perda do cargo, mediante sentença
penal condenatória se consumará com base no art. 92, I e parágrafo único do Código
Penal [...]quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a
um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a
Administração Pública (alínea “a”) ou quando for aplicada pena privativa de
liberdade por tempo superior a quatro anos (alínea “b”). 99
Se em nenhuma das duas hipóteses acima referidas houver sido decretada a perda do
cargo, esta poderá se dar em ação civil específica de desconstituição da relação funcional
entre juiz e Estado, com base no fundamento jurídico da condenação penal. A legitimidade
para ingressar com esta ação é do Ministério Público e das Procuradorias Estaduais, Distritais
ou Federais.
Em todos os casos deve ser observado o foro privilegiado por prerrogativa de função
conferido aos magistrados, de acordo com artigo 105, I, da Constituição da República.100
No âmbito administrativo, a aposentadoria compulsória com proventos proporcionais
ao tempo de serviço representa, de fato, a máxima sanção prevista na Lei Orgânica da
Magistratura Nacional - LOMAN:
96
MAGALHÃES, Bruno Barata. Demissão de magistrados e a PEC nº 89/2003. O fim da aposentadoria
compulsória e a fiscalização do Conselho Nacional de Justiça. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2500, 6
mai. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/14806> Acesso em: 09 mai. 2011.
97
SILVA, Edson Pereira Belo da. Punição remunerada: magistrado punido não deve receber aposentadoria.
Prolegis, São Paulo, 20 set. 2007. Disponível em: <http://www.prolegis.com.br/index.php?cont=
12&id=1082> Acesso em: 03 nov. 2010.
98
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. v. 1. 2005, apud GONÇALVES,
José Wilson; PELUSO, Vinícius de Toledo Piza, 2010, p. 70.
99
GONÇALVES, José Wilson; PELUSO, Vinícius de Toledo Piza. Comentários à lei orgânica da
magistratura nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 72.
100
Ressalte-se que os juízes de 1° grau em substituição nos Tribunais de Justiça não possuem a referida
prerrogativa de foro (STJ- AgRg na Rp 368/BA, rel, Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 05/03/2008, DJU
15/05/2008).
27
Art. 42 - São penas disciplinares:
I - advertência;
II - censura;
III - remoção compulsória;
IV - disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço;
V - aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo
de serviço;
VI - demissão.
Parágrafo único - As penas de advertência e de censura somente são
aplicáveis aos Juízes de primeira instância.
Aqui, apesar de a demissão constar no rol das sanções aplicáveis aos magistrados, tal
inciso não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, tendo em vista o disposto no
artigo 95, inciso I, que garante que a perda do cargo, após os dois anos de exercício,
dependerá exclusivamente de sentença judicial transitada em julgado.
O que significa dizer, por outro lado, que a pena de demissão prevista na LOMAN
pode ser aplicada aos magistrados que ainda não tiverem atingido a vitaliciedade, dependendo
a decisão neste caso de deliberação do respectivo Tribunal ao qual o juiz estiver vinculado.
Nesta hipótese, há somente a necessidade de instauração de procedimento
administrativo, cujo regramento encontra-se presente na Resolução 30/2007 do Conselho
Nacional de Justiça.
Desta forma, não há que se confundir, portanto, a punição de aposentadoria
compulsória com impunidade, tendo em vista que o Ministério Público acompanha os
processos administrativos abertos contra magistrados, e caso haja indício de conduta
criminosa, por meio de ação judicial cabível, o magistrado poderá vir a perder o cargo, e
consequentemente, a aposentadoria e seus subsídios.
A diferença está que neste caso, o juiz responderá por suas ações em processo
judicial, com o devido processo legal (art. 5°, LIV), assegurados o contraditório e a ampla
defesa (art. 5°, LV), bem como o direito ao duplo grau de jurisdição, garantias estas
conferidas a todo e qualquer cidadão, não configurando privilégio nenhum exigir o que está
explícito na Carta Magna.
Seria no mínimo indecente privar justamente o magistrado do Princípio da Presunção
de Inocência (art. 5°, LVII) 101 - consagrado na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789 - fazendo com que ele perca o cargo antes mesmo de discutir o mérito da
questão em juízo.
E neste ponto, não há que se comparar o juiz com o servidor público civil, o qual está
sujeito à pena de demissão.102 O fato de ambos ingressarem na carreira por meio de concurso
público, é a única coincidência que os une, na medida em que suas funções precípuas são de
naturezas diversas ao extremo. Por esse motivo, se torna inconcebível estender as garantias do
Poder Judiciário ao servidor público, da mesma forma que é indefensável retirar do
magistrado a vitaliciedade.
Sanada a controvérsia que o presente artigo se propôs a dirimir, resta-nos apenas
enfatizar que a vitaliciedade configura uma garantia constitucional do magistrado e um
101
Aury Lopes Junior em sua obra “Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional - Vol. I”
afirma que a presunção de inocência é, na verdade, um dever de tratamento (Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 440).
102
Discordamos expressamente do entendimento de Bruno Barata Magalhães, no artigo “Demissão de
magistrados e a PEC nº 89/2003. O fim da aposentadoria compulsória e a fiscalização do Conselho
Nacional de Justiça.” (Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2500, 6 maio 2010. Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/14806>. Acesso em: 9 mai. 2011).
28
benefício real para a sociedade, que será favorecida com decisões mais justas e imparciais,
proporcionando assim, o exercício prático da máxima de Ulpiano que busca “dar a cada um o
que é seu.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisando as garantias conferidas aos membros do Poder Judiciário, vê-se que
dentre todas, a vitaliciedade é a que possui maior relevância, na medida em que defende o
magistrado para que este possa exercer sua função jurisdicional de forma independente e
imparcial.
Neste artigo, partiu-se da problemática central a respeito da limitação do instituto,
tendo por hipóteses possíveis o fato de que a vitaliciedade poderia consistir em um motivo de
impunidade no caso de juízes que cometeram infrações graves, ou efetivamente uma garantia
conferida à sociedade como um todo.
Do exercício investigativo do feito, concluiu-se que a vitaliciedade não constitui um
privilégio, mas sim uma garantia concedida à função que o magistrado exerce, beneficiando
muito mais a sociedade do que a pessoa do juiz.
Pudemos observar ao longo da pesquisa que a indignação por parte da sociedade em
relação à garantia da vitaliciedade se dá, na maioria das vezes, por desconhecimento de causa,
na medida em que a mídia fornece informações equivocadas ou distorcidas a respeito do
assunto, motivo pelo qual se faz necessário um constante estudo e reflexão a respeito do tema.
Num primeiro momento, ao realizamos um breve estudo sobre o Poder Judiciário,
concluímos que a vitaliciedade e as demais garantias da magistratura asseguram a
independência do referido Poder ao mesmo tempo em que afirmam a perpetuidade do
Princípio da Separação dos Poderes, garantindo a efetividade do Estado Democrático de
Direito.
Posteriormente, restou demonstrado que a evolução democrática de nossas cartas
constitucionais permitiu que o instituto da vitaliciedade atingisse as proporções necessárias
para realizar o seu importante papel do modo como o conhecemos hoje.
O encerramento do presente artigo especifica o conceito de vitaliciedade, realizando
uma importante distinção terminológica, na medida em que esclarece que as garantias da
magistratura encontram no artigo 95 do texto constitucional, ao passo que as prerrogativas
estão dispostas no artigo 33 da Lei Complementar 35/1979.
Quanto à delimitação do instituto, concluiu-se que, apesar de alguns autores
considerarem a vitaliciedade como cláusula pétrea, no que diz respeito ao argumento de que
as garantias dos membros do Poder Judiciário constituem garantia individual, vinculada ao
inciso IV do artigo 60, § 4°, tal raciocínio não se mostra plausível, pois é fato que as garantias
da magistratura pertencem ao cargo, e não à pessoa física do juiz.
No entanto, isso não representa motivo suficiente para justificar a Proposta de
Emenda Constitucional n° 89/2003, que pretende possibilitar a perda do cargo de magistrado
de forma administrativa, tendo em vista que restou comprovado que a aposentadoria
compulsória não enseja impunidade ou premiação, pois na hipótese de o magistrado não agir
de acordo com a sua função, este poderá sim perder o cargo, por meio de sentença judicial
transitada em julgado, em ação penal ou civil.
Entende-se que, se tal Proposta for aprovada, representará imenso retrocesso, tendo
reflexos imensuráveis sobre o princípio basilar da separação dos Poderes, bem como da
prerrogativa constitucional básica da independência do Poder Judiciário.
29
Enfim, verifica-se ser o tema fonte inesgotável de enfrentamentos distintos, que terá
desdobramentos após a decisão definitiva quanto à aprovação ou não da PEC 89/2003 pela
Câmara de Deputados.
Destaca-se que o artigo que ora se conclui não aprofunda a análise da vitaliciedade
sobre todos os aspectos possíveis, o que necessitaria de um alargamento da visão apresentada
no presente estudo, podendo-se deixar tal análise para uma próxima empreitada investigativa.
Encerra-se a presente pesquisa com a sensação de que o estudo sobre a garantia
constitucional da vitaliciedade foi válido, posto que proporcionou à sociedade um maior
esclarecimento sobre o assunto, tido até então como dissonante e polêmico.
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