Trabalho a ser apresentado no Congresso de Psicopatologia Fundamental
Setembro 2012
“A incorporação como forma de apropriação do que
é transmitido via inconsciente do outro”
Autoras: Ludmilla Tassano Pitrowsky e Simone Perelson
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ
O trauma e a modernidade
A questão do trauma é motivo de preocupação clínica já bastante discutida entre
psicanalistas e psicólogos, e é definido para a maioria das áreas em questão, como o que
é da ordem do que escapa, do que contraria, destroça. A Psicanálise, mais
especificamente, procura sempre uma compreensão através da clínica que ao mesmo
tempo nos remeta ao estudo do indivíduo incluído em seu contexto social. Desde Freud
já percebemos a importância de estudar não só os casos clínicos específicos, mas
também as questões referentes à sociedade e a cultura. E a partir disso, muitas vezes
somos apanhados por sintomas representativos de uma lógica maior, sintomas
individuais que são na verdade uma pequena fração de sintomas culturais, e até mesmo
historicamente datados. E é a partir de uma escuta clínica aliada a um constante
questionamento social que o psicanalista se torna, ao mesmo tempo, pensador e clínico.
E é com essa ideia que buscamos aqui compreender de que forma os processos
individuais constantemente presentes nos consultórios nos remetem a uma lógica maior,
de forma que isto contribua para o enriquecimento tanto de uma teoria quanto da escuta
e do tratamento dos sujeitos.
Utilizaremos aqui a compreensão de Luís Claudio Figueiredo a respeito do livro
de Zygmunt Bauman, “Modernidade e Ambivalência” de 1999, por nos parecer bastante
clara e elucidativa para nossos fins. Luís Claudio parece preocupar-se em manter seu
texto o máximo possível fiel às palavras de Bauman, mas não deixa, no entanto, de nos
presentar com suas ricas interpretações. Ele destaca alguns pontos principais do texto,
como: a distinção tensa e tensionante entre ordem e caos; a vivência da ordem como
uma tarefa e a necessidade de se atrelar a classificações; as classificações separadoras e
dissociadoras entre sujeito e objeto, corpo e mente etc.; ambiguidade consequente desta
ordenação; e principalmente o fato de a tarefa de produzir sentido, produzir também o
não-sentido.
Trata-se então de um fracasso inerente ao processo ordenatório. As
ambivalências, as contingências e as ambiguidades se impõem de forma a produzir o
bom, novo e velho mal-estar. E neste sentido, esse resto que não encontra lugar nessa
ordem abre para o clínico, novas possibilidades de pensar a teoria. Estamos entrando
então, no vasto terreno do traumático. Como Luís Cláudio afirma:
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“em uma era marcada pela inflação da vontade e do empenho de
domínio, clareza e distinção fazem da Idade Moderna uma época
extremamente exposta ao traumático, ou seja, o fracasso (inevitável) da razão,
da língua e de outros procedimentos de ordenação no encontro com
ambivalências modernas está na raiz do traumático como regime de vida”
(Figueiredo, 1999, p.221)
O autor ainda propõe pensarmos no afeto como sendo da ordem do que fica de
fora do projeto de ordem moderno cartesiano, pois está sempre ao lado do não-sentido,
do ambíguo, e portanto, traumatogênico. Desta forma, o trauma inverte os papéis pois
distorce a ordem da passividade e atividade, coloca o sujeito num lugar passivo diante
de um objeto, excedendo sua capacidade de domínio. Muitas disciplinas procuram ainda
uma ordenação dos afetos e a cura do trauma, como até mesmo algumas psicologias.
Mas a psicanálise se propõe corajosamente, ao menos parcialmente, segundo o autor, a
trilhar outro caminho.
Como pensarmos então, a partir do ponto de vista psicanalítico, essa incidência
de casos na clínica em que a questão do trauma se coloca de forma tão imponente,
através do que pensamos caracterizar a modernidade e pós-modernidade dos nossos
dias? Traremos então os conceitos de introjeção e incorporação para tentar compreender
de que forma estar numa sociedade em que precisamos ordenar e dominar, nos
possibilita lidar com conteúdos não ordenados e tampouco dominados pelo outro. Como
lidamos com questões referentes ao que é da ordem do indizível, do não simbolizado, se
já viemos ao mundo em situação de desamparo, mas com o imperativo de tudo
dominar?
A partir de Ferenczi, Abraham e Torok, pensaremos os conceitos de
introjeção e incorporação através do que nos é possível identificar nos processos
constitutivos do psiquismo que dizem respeito a essa temática, dos limites entre o
externo e o interno, do indivíduo e do grupo, da clínica e da cultura.
Introjeção x Incorporação
Tereza Pinheiro em seu livro sobre a teoria de Ferenczi delimita dois momentos
em que o conceito de introjeção é trabalhado pelo autor: em 1909 ela seria o primeiro e
único processo do psiquismo; em 1912 o autor teria definido de forma mais clara o
conceito, como algo da ordem de uma relação com o mundo externo, de metabolização
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dos objetos externos. Neste segundo momento de conceituação, Ferenczi trabalharia
com a introjeção de acordo com o texto do narcisismo de Freud, de 1914, como uma
operação de direcionamento pulsional para o objeto, onde a introjeção seria posterior à
projeção do desprazer.
Neste sentido, a operação de introjetar é para Ferenczi algo constitutivo do
aparelho psíquico e fundamental no processo de simbolização: é através da introjeção
do objeto que o psiquismo pode ser povoado de representações, sendo responsável então
pela própria linguagem e por todo processo de subjetivação. Até porque comportaria a
inclusão não só do que é da ordem da representação, mas principalmente dos afetos, dos
sentidos. Como exemplo então, teríamos a própria introjeção do seio que teria em
concomitância a inclusão a noção de prazer, como um suporte de sentimentos. E desta
forma Ferenczi conclui que se a introjeção é a primeira responsável pela instauração no
psiquismo da dualidade prazer/desprazer, e por consequência instauraria a própria
sexualidade, ordenando e estruturando o aparelho psíquico.
Uma grande relevância é dada a este conceito por este ser responsável pela
produção imaginária, das fantasias como produto das associações entre as
representações. Como observamos nas palavras de Ferenczi:
“(...) O neurótico procura incluir em sua esfera de interesses uma parte
tão grande quanto possível do mundo externo para fazê-lo objeto de fantasias
conscientes ou inconscientes. (...) Proponho que se chame introjeção a esse
processo inverso da projeção”. (Ferenczi, 1991 [1909], p.101).
Este movimento psíquico de buscar se apropriar de tudo, como Tereza Pinheiro
afirma, num “movimento megalômano da libido” (1995, p.49), se apresentaria como um
esboço de formação egóica. Como uma resposta a pulsão de morte, o narcisismo teria
uma função de aglutinação, de eliminação das diferenças, que formaria tal edifício
egóico. Nas palavras da autora:
“O movimento do processo de introjeção vem a ser um movimento
libidinal de inclusão de tudo aquilo passível de ser incluído no psiquismo
naquele momento; de um movimento que em nada se diferencia do narcísico,
movimento totalizante em que a apropriação das qualidades do objeto funciona
como possibilitadora da apropriação do sentido que compõe, junto com o
objeto, as bases identificatórias do que mais tarde formará o aparato egóico
como um todo.” (Pinheiro, 1995, p.50-51).
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Mas uma parte desta citação nos chama atenção, quando ela afirma ser a
introjeção um processo de inclusão do que for possível de ser incluído naquele
momento. Concluímos então que existiriam introjeções impossíveis, conteúdos
inassimiláveis que não encontrariam meios de serem incluídos no universo simbólico do
sujeito. Estamos falando do que em 1932 Ferenczi vai chamar de “introjeção do
agressor”, mas que Abraham e Torok compreenderão como a ausência da introjeção,
diferenciando com uma nomenclatura distinta, chamando de “incorporação”. Essa
incorporação seria então a saída encontrada pelo psiquismo para uma introjeção que não
se operou. Mas antes, veremos o que esses autores dizem a respeito da introjeção de
Ferenczi, até para melhor compreender como eles chegam ao mecanismo da
incorporação como saída para ausência deste processo.
Para Abraham e Torok, Ferenczi não esta falando de uma perda objetal, mas sim
de um alargamento do ego, de um crescimento através do inconsciente do outro. A
seguir vemos o que eles dizem a respeito da força-motriz da introjeção:
“Semelhante à transferência (seu modo de ação no tratamento), ela se
define como processo de inclusão – a propósito de um comércio objetal – do
inconsciente no ego”. (Abraham e Torok, 1995 [1987], p.222).
O que eles nos ensinam aqui é que não podemos simplesmente falar em
“introjeção do objeto”, pois somente esta operação não seria suficiente para produzir os
efeitos que o processo abrange. O que se introjeta é justamente o conjunto pulsional
com suas vicissitudes, tornando o objeto um mero mediador: “A introjeção reserva ao
objeto um papel de mediador para o inconsciente” (Abraham e Torok, 1995 [1987],
p.222). Ou seja, seria nesse entre jogo entre narcisismo e amor objetal que teríamos a
estruturação do que poderíamos chamar de simbolização, de um pulsional mediado pelo
objeto que é constituinte do inconsciente. Neste sentido, a introjeção não implicaria
necessariamente numa perda objetal, na verdade, o mecanismo que pressupõe a perda
do objeto é exatamente a incorporação, justamente por esta perda se apresentar como
um obstáculo para introjeção. Tal pensamento de Abraham e Torok esta resumido na
seguinte citação:
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“Como compensação do prazer perdido e da introjeção ausente,
realizar-se-á a instalação do objeto proibido no interior de si. É essa a
incorporação propriamente dita” (Abraham e Torok, 1995 [1987], p.222).
Desta forma, a incorporação seria operação do princípio do prazer, próxima de
uma satisfação por via alucinatória. O objeto faltou no sentido de não mediatizar a
introjeção do desejo, levando o psiquismo a buscar recuperar magicamente esse objeto
perdido, numa recusa da realidade, e por isso, exige segredo. Assim teríamos a oposição
de dois mecanismos distintos: a introjeção das pulsões de um lado e a incorporação do
objeto de outro. Entendemos assim o quanto a incorporação mantém o sujeito preso ao
objeto em uma relação de dependência através da fantasia, ao contrário da introjeção,
que supõe uma separação com o objeto. A incorporação, portanto, é o fantasma da
introjeção que traz em si a clivagem, pois é instaurado no ego um túmulo, um segredo
que não pode ser desvelado sob pena de revelar a falha na introjeção e a ausência do
objeto. E é exatamente nesta insuficiência do objeto como mediador que está a causa do
trauma.
Desta forma, a necessidade de pensarmos a mediação proporcionada pelo objeto
para que haja a introjeção nos remete a questões, de fato, muito primitivas. Haveria uma
passagem de uma boca cheia de seio para uma boca cheia de palavras através de
experiências de boca vazia. Com uma assistência constante de uma mãe que possua
linguagem, ocorreria uma substituição progressiva das satisfações orais cheias do objeto
mãe, pelas da boca vazia desse objeto, mas com palavras endereçadas a ele. Essa
experiência de boca vazia é vivenciada pelo bebê como gritos e choros, um apelo ao
surgimento da linguagem em virtude de um preenchimento adiado. Porém, como vimos,
muitas vezes essa passagem não se faz possível, na ausência das palavras que abrandam
o vazio, é necessário que se introduza no lugar uma coisa. Utilizando uma metáfora
alimentícia, os autores afirmam que as palavras nutrem, e na ausência delas,
fantasisticamente, introduz-se pessoa inteira ou sua parte. Trata-se de uma urgência de
introjetar, de suprimir a ideia de um vazio, de uma lacuna, que em sua falta uma fantasia
é criada em uma tentativa de negar o problema - incorpora-se o inominável. (Abraham e
Torok, 1995 [1987]).
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A partir disso, René Kaës aponta para um avanço importante da teoria da
transmissão psíquica traumática diante desta falha do simbólico, da introjeção. Para o
autor, se coloca aí a questão transgeracional, no sentido de uma dívida não paga por
gerações anteriores que é cobrada nas descendências seguintes, através da transmissão
inconsciente, como vemos a passagem a seguir:
“o enquistamento, no inconsciente de um sujeito, de uma parte das formações
inconscientes de um outro, que vem, então, assombrá-lo, como um fantasma; a hipoteca
de um mandato imperativo que o ancestral faria pesar sobre sua descendência.” (Kaës,
2011 [2005], p. 134).
Diante disso, entendemos o quanto o encontro do inconsciente do outro com o
psiquismo do sujeito poderá constituir um fator traumático. Em uma nota de rodapé,
Abraham e Torok abrem esta perspectiva de forma muito clara. Para eles o efeito de
uma cripta, de uma incorporação que introduz um fantasma, um túmulo no psiquismo
do sujeito, pode atravessar além de gerações, uma raça inteira. Eles afirmam que
quaisquer relações parentais transmitirão, sem dúvida, uma lacuna, algo que eles
afirmam poder ser compreendido como um “recalcamento em processo”. Assim
definem Abraham e Torok: “Um dizer enterrado em um dos pais se torna para a criança
um morto sem sepultura” (Abraham e Torok, 1995 [1984], p.278).
Essa questão do fantasma, colocada de forma inédita por Abraham e Torok, foi
desenvolvida justamente para explicar esses casos em que o segredo familiar influi no
psiquismo de todos os sujeitos ali presentes, principalmente a criança. Esta nasce em
uma organização familiar específica e é parte disso de forma inconsciente. Os autores
chamam esse tipo de fantasma e formação sintomática na criança como “neurose
genealógica”, transmitida através dos pais, mas possivelmente presente em várias
gerações. Neste sentido, nos parece que a incorporação se apresenta como única saída
possível, ao menos para a criança ainda em processo muito precário de constituição
psíquica.
A incorporação, portanto, se apresenta como um mecanismo fora do poder
identificatório, impedindo o sujeito de se apropriar simbolicamente do que recebe do
objeto, se mantendo vinculado a ele em segredo. Como um quadro melancólico nos
termos de Freud em seu texto de 1917, onde a “sombra do objeto” seria mais do que
uma parte do objeto ou uma representação deste, seria, neste sentido, uma separação não
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feita, uma mentira, uma falsa introjeção. A relação do sujeito com este pedaço dentro do
seu psiquismo que não se constitui como parte fluida, participante da dinâmica psíquica,
mas sim como algo rígido, uma cripta, será marcada sempre pelo não dito, pelo que não
pode ser exposto, como um monumento secreto e inacessível. Assim, algo que está
encripitado no inconsciente do outro, em uma relação de desamparo como a do bebê
com seus pais, será transmitido exigindo deste novo sujeito uma posição: ou carregará o
segredo e o deixará para a próxima geração, ou quebrará o segredo e tratará de tal
legado como algo herdado, seu e assim, passível de ser simbolizado.
René Kaës chama isso de uma transmissão sem transformação, pois implica
numa não elaboração por parte de quem transmite e não permite, por consequência, a
pronta elaboração do sujeito que recebe tal conteúdo. O que esse sujeito fará com isso
que lhe é transmitido só será possível de ser conhecido a posteriori, pois ao receber esse
material bruto fantasmático, o sujeito não tem outra opção, devido a sua insuficiência
psíquica, além de receber essa não-simbolização como tal e assim a manter. Este autor
ainda aponta para o quanto Abraham e Torok ainda estavam se referindo também à
tópica realista do trauma de Ferenczi, trazendo a teoria para o campo do trauma de uma
forma tão imperativa quanto o rompimento de Freud com suas histéricas pelo mesmo
motivo. Mas o mais importante apontado aqui por tais autores e outros como J.
Laplanche e Winnicott, é a dimensão da intersubjetividade, o contato entre
inconscientes. Não será mais possível fazer um rompimento tal como o de Freud ao
colocar a fantasia em primeiro plano. Qualquer solução radical neste sentido põe em
risco toda uma especificidade clínica, de pacientes que colocam a teoria constantemente
a prova.
Bibliografia
ABRAHAM, N., TOROK, M. “A Casca e o Núcleo”, tradução de Maria José R.
Faria. Coracini. São Paulo: Editora Escuta, 1995.
7
FERENCZI, S. (1933). “Confusão de línguas entre os adultos e a criança: a
linguagem da ternura e da paixão”. In Psicanálise IV (Vol. 4, pp. 97-108, A. Cabral,
Trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FREUD, S. “Obras Completas de Sigmund Freud”, Tradução de Odilon Galloti,
Isaac Izecksohn e Gladstone Parente. Rio de Janeiro, Editora Delta S. A.: 1959
_________ (1912) “Totem e Tabu”, vol. VII
_________ (1914) “Recordar-se, repetir e elaborar”, vol. VI
_________ (1914) “Introdução ao narcisismo”, vol. V
_________ (1915) “O Recalque”, vol. XIV.
_________ (1916) “Luto e melancolia”, vol. V
_________ (1923) “A O Ego e o Id”, vol. VI
KAES, R. Transmissão da vida psíquica entre gerações. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2001.
________ “Les aliances inconscientes”. Paris: Dunod, 2009.
________ (2005) ”Espaços psíquicos comuns e partilhados: transmissão e
negatividade”. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.
LAPLANCHE, J; PONTALIS, J. B. (1982) “Vocabulário de Psicanálise”. 5ª ed.
Santos: Martins Fontes, 1970.
LEJARRAGA, A.L. “O trauma e seus destinos”. Rio de Janeiro: Revinter, 1996.
PINHEIRO, T. “Ferenczi: do grito à palavra”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.:
Ed UFRJ, 1995.
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