O lobo absolutista que habita
sob a pele da democracia
Claudio Mano
Bacharel em Filosofia pela UFJF
Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Souza” da UFJF
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Ao ler nos jornais que, a recém reeleita presidente do Brasil, poucas horas após
nomear seu novo ministro do planejamento, já o desautorizara, não pude impedir meu
pensamento de viajar no tempo e, voltando ao século XVII, presenciar, em um salão repleto
de lèche-bottes, o rei de França, Luis XIV (1638-1715), declamar: “o Estado sou eu”.
O poder do rei francês era absoluto. O termo “absolutismo” refere-se a um sistema de
governo onde a vontade de um determinado indivíduo – no caso, o rei – não apenas pode
transformar-se em lei incontestável, como também, está acima desta mesma lei, ou seja, não
se submete a ela, fugindo a qualquer espécie de controle. Em nosso entendimento, o conceito
de absolutismo é diametralmente oposto ao de democracia. O termo “democracia”, identifica
um modelo de governo onde o indivíduo não é oprimido por uma vontade particular, quer seja
ela de uma pessoa de carne e osso ou mesmo de um ser abstrato, como o Estado. A submissão
do indivíduo, na democracia que consideramos, passa a ser ao corpo político que representa o
povo. Por intermédio desse corpo político, a emanação da vontade do povo transforma-se em
lei. Uma vez instituído o império da lei, governantes e governados, se obrigam, de boa
vontade, a cumprir e respeitar seus estatutos.
No apagar das luzes do governo que se encerra e que, tal como Fênix, ressurge das
cinzas para comandar o país pelos próximos quatro anos, temos uma pista de que, talvez,
vivamos todos sob um modelo de governo de inspiração absolutista. Trata-se da malfadada
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mudança – proposta pelo executivo – na lei orçamentária de 2014 que foi aprovada pelo
congresso nacional. Na prática, logra-se êxito em atingir um objetivo específico, qual seja,
evitar que a presidente em exercício incorra nas penalidades previstas pela lei de
responsabilidade fiscal. Durante todo o ano, paulatinamente e conscientemente, com vistas a
cooptar políticos e eleitores de modo a vencer o pleito que se aproximava, a lei orçamentária
foi transgredida. Esta manipulação na lei orçamentária, inclusive, sugere que no Brasil, o
governo tem o poder de até mesmo fazer voltar o tempo. Altera-se não só a lei, como também
se reconhece ineficaz sua ação durante todo o período em que teve vigência, isentando
totalmente de conseqüências todos os atos praticados que a transgrediram. O leitor pode até
aventar que a aprovação da mudança na lei, mesmo que descabida, mesmo que deixe
transparecer um descaso do congresso com o bem público, não afronte a democracia, pois,
uma vez transcorrida a votação da matéria, o processo democrático seguiu seu devido curso,
ou seja, a alteração da lei poderia ter sido rejeitada em plenário.
Para que nossa hipótese da inspiração absolutista tenha alguma chance de defesa,
precisamos então encontrar um meio de apontar que, embora tenham sido muitas as vontades
que se manifestaram na câmera pela mudança na lei, na verdade, todas, encontravam-se
submissas, exclusivamente, à vontade alienígena irradiada a partir de uma pessoa. Na
verdade, desde que veio a público o escândalo do “mensalão”, quando, como foi
posteriormente confirmado pelo Supremo Tribunal Federal, uma quadrilha infiltrada no seio
do governo se mobilizava em trocar numerário por votos, a legitimidade de todas as nossas
leis, desde então, pode ser vista com suspeitas. Se a representação não se dá de fato, ou seja,
se os legisladores, ao invés de agir em acordo com suas consciências e o compromisso
assumido com os seus eleitores, aderem friamente às vantagens pecuniárias ou mesmo se
entregam ao simples gozo do poder, a partir deste momento, não é a vontade do povo que se
manifesta por seu intermédio e, portanto, não se trata mais do exercício da democracia. Ao
curvar-se, não importa por que motivo, a uma vontade estranha a do povo, o parlamentar
despe-se da legitimidade conferida ao cargo. Quando essa vontade alheia a do povo se origina
em um específico centro de poder, quiçá, mesmo a partir do desejo de uma única pessoa, e
transfigura a imensa maioria dos parlamentares em simples marionetes, temos então a
confirmação do viés absolutista que antevemos.
Outras nações, em sua marcha rumo à democracia moderna, também já se depararam
com situação semelhante. No passado, por exemplo, a resposta do povo francês, de modo a
superar o absolutismo, foi a revolução de 1789. Como resultado, milhares de cabeças
literalmente “rolaram”, inclusive a do rei Luis XVI (1754-1793). Na França, mais que uma
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mudança de governo, a revolução promoveu uma mudança na sociedade: todos os indivíduos,
indistintamente, transformaram-se em povo e a vontade que passou a emanar da letra da lei,
passou a ser a vontade do povo. A revolução de 1789 não promoveu uma igualdade de bens
materiais entre os franceses, mas sim, estabelecendo um compromisso irretratável rumo à
igualdade política, acabou por pavimentar um caminho rumo à igualdade de oportunidades.
Em recente artigo no jornal Estado de São Paulo1, o professor Ricardo Vélez, além de apontar
uma semelhança entre o momento político que vivemos aqui no Brasil e o período
revolucionário francês, também nos invoca Aléxis de Tocqueville (1805-1859), de modo a
nos lembrar que as verdadeiras revoluções, não se dão por obra de ardis conspiratórios, mas
sim, que resultam de uma fermentação de diversas circunstâncias que desencadeiam eventos
incontroláveis.
No Brasil, ao longo de sua história, ocorreram diversas mudanças de governo. Umas
abruptas, outras nem tanto. Mas a sociedade, esta, em nosso entendimento, permaneceu
sempre essencialmente a mesma. Desde seus primórdios, nossa sociedade padece da falta de
unidade. Plena de divisões, cada qual convivendo com seus infortúnios e privilégios, cada
uma exaltando seus próprios valores e esperanças. Um verdadeiro mar de antagonismos, ao
ponto de, como insinuamos em artigo recente2, até hoje não termos logrado a coesão
imprescindível à formação do “povo brasileiro”. Ora, se a democracia, tal como apontamos
anteriormente, carece de ter suas raízes fortemente fincadas na vontade do povo, sem a
existência de um povo, não há como legitimar as leis que facultam o exercício do poder aos
governantes e, consequentemente, não pode haver democracia.
Agora, os meios de comunicação nos dão conta de que o novo ministro do
desenvolvimento agrário afirma que o parágrafo XXII do artigo 5º de nossa constituição, que
assegura o direito à propriedade, na verdade, não assegura nada. No entendimento do
ministro, o parágrafo seguinte, que indica uma função social para a propriedade, faz do
anterior letra morta. Será de viés democrático essa postura de exaltar obscuros
condicionamentos à proteção constitucional do direito à propriedade? Que o leitor não se
iluda, o que se coloca na mesa não é o futuro de eventuais latifúndios improdutivos, mas do
ordenamento jurídico que protege a propriedade e que também torna possível o pouco de paz
que ainda resta em nosso convívio social. Vale assinalar, inclusive, que nesta declaração, o
1
VÉLEZ, R. Tempos Densos, http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,tempos-densos-imp-,1613867 em 5-12015
2
MANO, C. Uma nação à espera de seu povo, http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/UNEP.pdf em 10-062014
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referido ministro mostra-se fiel porta-voz do “poder” presidencial, pois, até onde sabemos,
não houve nenhum “puxão de orelha” em relação a tão ousada declaração.
Outro aspecto insidioso que caracteriza um governo “absolutista” é a centralização
administrativa levada a seu extremo. O pacto federativo, no Brasil, não passa de uma quimera.
Isso, principalmente devido ao fato de que a maior parte dos recursos gerados no país, passam
primeiro pelos cofres federais para depois serem “devolvidos” a quem de direito. Por isso, ao
se transitar por qualquer das mais perdidas cidades brasileiras, lá encontraremos, seja diante
da creche, do posto de saúde ou da “caixa-d’água”, a placa que, elucidativa, relembra
diuturnamente aos pseudo-cidadãos que a mão que os alimenta reside em Brasília. Pouco
importa que a creche não funcione satisfatoriamente, que no posto de saúde faltem meios
adequados ao exercício da medicina, ou mesmo que a caixa-d’água encontre-se seca. A
presença da placa implica em um forte apelo à subserviência, pois, “muito já foi feito”, agora
só resta aguardar pelo muito mais que sempre fica para depois.
Entretanto, será razoável a mera suposição de que no Brasil prevalece um regime de
governo de inspiração absolutista? Certamente, estudiosos do tema, facilmente poderão
argumentar que não, apontando, inclusive, graves falhas na ingenuidade de nossa
argumentação pois, o absolutismo, encontra-se devidamente recolhido a um momento
histórico passado. Mas e o leitor? Ainda acredita que vivemos sob a égide da democracia?
Mais uma vez, é bastante razoável que surjam fortes e consistentes argumentos na direção do
sim, de que apesar da questionável atuação de nossos parlamentares e governantes, as
instituições democráticas ainda operam. Bem, vamos então a uma questão. Se considerarmos
que vivemos sob o regime democrático de governo, será que a proteção jurídico-social que
nossa democracia confere a seus cidadãos é da mesma ordem que aquela produzida pelas
democracias do chamado “primeiro mundo”?
Em nosso entendimento, a dicotomia que se apresentara diante dos olhos atônitos dos
humanos no século XXI não será mais a da separação entre ricos e pobres, entre o primeiro e
o enésimo mundo ou mesmo entre as ideologias mais diversas que dão fôlego às específicas
formas de governo. O abismo se lançará entre o mundo civilizado e o resto do mundo.
Quando Neil Armstrong imprimiu a primeira pegada humana em solo lunar no ano de 1969,
ele também proferiu a frase de efeito que até hoje soa grandiosa a qualquer ouvinte: “é um
pequeno passo para o homem, um salto gigantesco para a humanidade”. Ao final do ano de
2014, ao relatar o sucesso da proeza de aterrissar uma sonda espacial em um cometa em
passagem pelas proximidades de nosso planeta, o orador que falava pela equipe responsável
foi categórico: “este é um grande avanço para a civilização”.
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Ora, deixando o eurocentrismo de lado, a mensagem é clara: o domínio do progresso
científico-tecnológico e o bem estar que proporciona, deverá permanecer exclusivo dos povos
– civilizados – que os produzem, perdendo-se a esperança de que, a humanidade como um
todo, venha adquirir competência para absorvê-los. Se for assim, cabe a pergunta: o Brasil é
um país civilizado? Possuímos um único fabricante nacional de veículos que seja? Possuímos
tecnologia nacional para desenvolver e fabricar os modernos dispositivos de comunicação que
transitam nas mãos de boa parte dos brasileiros? Quanto aos equipamentos disponíveis em
nossos laboratórios de pesquisa, quantos são produto da engenhosidade brasileira? Agora o
fundamental, ou seja, nossos objetivos interiores; almejamos as estrelas ou nos contentamos
com um prato de comida? Nossa organização jurídico-política privilegia a autonomia ou a
subserviência do cidadão? Poderíamos continuar, mas a lista seria por demais extensa. Uma
última indagação. O leitor acredita que o modelo político que impera no Brasil, quer sugira
um “absolutismo” ou mesmo que se constitua na mais doce das democracias, contribui para
nos inserir ou nos excluir do “mundo civilizado”? Para finalizar, vale lembrar Hugo Krabbe
(1857-1936), quando nos fala sobre a complexidade de interesses que envolvem o Estado
moderno e que, por isso, “já passou o tempo em que o cuidado desses interesses podiam ser
confiados a um único organismo, o rei”3.
3
KRABBE, H. The modern idea of the state, Martinus Nijhoff, 1921
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