O PRINCÍPIO DA APTIDÃO PARA A PROVA E A INVERSÃO DO ÔNUS DA
PROVA A REQUERIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO
Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho1
1 – INTRODUÇÃO
Segundo Jose Chiovenda, a teoria do ônus da prova
guarda íntima relação com a conservação do princípio dispositivo no processo,
ponderando ainda que em um sistema que admitisse uma investigação, de ofício, sobre a
verdade dos fatos a repartição da carga da prova não teria razão de ser2.
A sua assertiva, contudo, não se adequa com
perfeição ao sistema processual brasileiro, onde não obstante se admita uma
investigação de ofício pelo juiz3, entende-se que prevalece o princípio dispositivo,
corporificado no Código de 1973 em seus artigos 2º, 128 e 460 e, por conseguinte, a
distribuição do ônus da prova sempre desempenhou papel destacado na solução das
lides. Fato é que no Brasil o processo civil é instaurado por iniciativa das partes, mas
movimentado por impulso oficial.
Esta regra também é válida para o processo do
trabalho onde, conquanto o artigo 765 da CLT que assevere que “Os Juízos e Tribunais
do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento
rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento
delas”, parcela significativa das reclamações são solucionadas tendo como parâmetro a
distribuição do ônus da prova.
A
melhor
maneira
de
harmonizar
a
ampla
possibilidade investigatória atribuída aos juízes com a regra de partição do ônus da
1
Advogado militante. Especialista em Direito do Trabalho. Mestrando em Direito do Trabalho pela
Universidade de São Paulo. Professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da Universidade
Cruzeiro do Sul.
2
La teoria de la carga de la prueba guarda íntima relación con la conservación del principio dispositivo en
el proceso, por lo que se refiere a la declaración de los hechos (§ 47).
En um sistema que admitiese la investigación de oficio de la verdad de los hechos, el reparto de la carga
de prueba no tendría razón de ser (Wach, Hnadbruch, pág 126). Pero sucede que con la tendência
contraria al principio dispositivo en la declaración de los hechos se manifiesta una tendência contraria al
reparto legal de la carga de la prueba: de estos descúbrense ya manifestaciones en la doctrina y también
en las labores legislativas más recientes. (CHIOVENDA, Jose. Princípios de Derecho Procesal Civil.
Réus S.A. Madrid, 2000, p. 277).
3
O artigo 130 do Código de Processo Civil estatui caber ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte,
determinar as provas necessárias à instrução do processo.
prova é concluir que a regra descrita no artigo 333 do Código de Processo Civil consiste
em regra de julgamento, não havendo porque se falar em divisão do ônus da prova na
fase instrutória4. Não sem razão José Frederico Marques pondera que a questão da
repartição da carga probatória surge principalmente quando se verifica, a final, a
ausência ou precariedade das provas e orienta a atividade processual das partes por lhes
mostrar a necessidade jurídica de serem diligentes, se pretendem evitar prejuízos e
inconvenientes5.
A distribuição do ônus da prova está disciplinada
nos artigos 818 da CLT e 333 do CPC. Aquele afirma que “a prova das alegações
incumbe à parte que as fizer”, enquanto este estatui que o ônus da prova será do autor
quanto aos fatos constitutivos de seu direito, e do réu quanto aos fatos extintivos,
impeditivos e modificativos do direito do autor.
Ainda subsiste discussão quanto à aplicabilidade do
dispositivo processual civil ao processo do trabalho. Muito embora nomes respeitáveis
6
como os do jurista paranaense Manoel Antônio Teixeira Filho e do Procurador
7
Regional do Trabalho José Cláudio Monteiro de Brito Filho
manifestem-se
contrariamente à aplicação supletiva da regra de distribuição do ônus estabelecida no
8
Código Buzaid, por entenderem suficiente o artigo 818 da CLT , tem prevalecido, com
acerto, a corrente que sustenta a pertinência de sua utilização.
A justificativa é simples. Muito embora não haja
lacuna no texto consolidado, os dispositivos referidos não se contradizem e nem
tampouco são incompatíveis entre si. Muito pelo contrário, o artigo 333 do Código de
Processo Civil complementa o estatuído no artigo 818 da CLT, detalhando o que lá está
4
Neste sentido é o magistério de Bento Herculano Duarte, que aduz ainda dever o magistrado “agir com a
maior liberdade e o maior campo de ação possível, a fim que busque a alcance a verdade real sobre os
fatos. Realça-se tal necessidade no campo do Direito Processual do Trabalho tendo-se em vista a
hipossuficiência do empregado, em nítida desvantagem em relação ao empregador” (op cit, p. 159).
5
MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Campinas: Millennium, 1999, p.
341. No mesmo sentido é o escólio de Bento Herculano Duarte que enfatiza a natureza subsidiária do
artigo 333 do CPC, destacando que o intérprete e aplicador da norma somente recorre às regras de
distribuição do ônus da prova quando não consegue convencer-se da realidade fatual (DUARTE, Bento
Herculano. Poderes do juiz: direção e protecionismo processual. São Paulo: LTr, 1999, p. 66).
6
TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. A prova no processo do trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr,
1986, p. 84-87.
7
BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Discriminação no trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p 89.
8
Saliente-se a este respeito que José Cláudio Monteiro de Brito Filho defende a complementação do
artigo 818 da CLT pelo artigo 6º, VIII do CDC, tema que será tratado a seguir, e não pelo artigo 333 do
CPC.
escrito. Neste sentido, válidos se mostram os ensinamentos de Carlos Henrique Bezerra
Leite:
O artigo 818 da CLT estabelece textualmente que “o
ônus de provar as alegações incumbe à parte que as
fizer”. Essa regra, dada a sua excessiva simplicidade,
cedeu lugar, não obstante a inexistência de omissão do
texto consolidado, à aplicação conjugada do artigo 333
do CPC, segundo o qual cabe ao autor a demonstração
dos fatos constitutivos do seu direito e ao réu a dos fatos
9
impeditivos, extintivos ou modificativos .
Verdade seja dita, a Consolidação das Leis do
Trabalho, que em sua integralidade nitidamente não apresenta preocupação com a
perfeição do linguajar técnico-processual, faz uso de uma linguagem mais simples e
menos científica para disciplinar a distribuição do ônus da prova no processo do
trabalho. O Código de Processo Civil, por sua vez, desenvolvido com a colaboração de
um dos mais notáveis processualistas de sua época, o Professor Alfredo Buzaid, mostrase mais detalhista e científico, razão pela qual a aplicação de sua norma de distribuição
do ônus da prova em complementação à norma processual trabalhista mostra-se de
grande valia e utilidade.
2 – INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO DO TRABALHO
As normas de distribuição do ônus da prova, muito
embora essenciais, acabam em alguns casos causando injustiças. Situações há em que os
elementos necessários para provar os fatos constitutivos do direito do autor encontramse exclusivamente em poder do réu. Nestes casos exigir rigor na aplicação da
distribuição do ônus da prova findaria por inviabilizar o direito dos que buscam o
judiciário. Para solucionar esta questão vem ganhando força em todo o mundo o
chamado princípio da aptidão para a prova, segundo o qual o ônus de produzir prova
deve ser atribuído a quem tem os meios para fazê-lo, independentemente de se tratar de
fato constitutivo, modificativo, impeditivo ou extintivo do direito da outra parte. Alguns
autores, como Francisco Meton Marques de Lima, que prefere chamá-lo de princípio da
9
BEZERRA LEITE, Carlos Henrique. Curso de direito processual do trabalho. 3ª edição. São Paulo:
LTr, 2005, p. 421.
aptidão da prova, chegam a sustentar a substituição das normas usuais de distribuição da
prova pelo referido postulado:
Entretanto, a teoria do ônus da prova, como se encontra
nos arts. 818 da CLT e 333 do CPC, encontra-se
superada. Hoje, vige o princípio da aptidão da prova, a
significar que o onus probandi é de quem possui
condições de cumpri-lo.
Essa teoria foi transplantada para o processo do trabalho
sob a denominação de inversão do ônus da prova, que já
é uma realidade no direito brasileiro, ora implícita, ora
expressa, como o art. 6º, VII, do CDC (Lei 8.078/90)10
Esta conclusão, todavia, não se mostra integralmente
acertada. Primeiramente, porque o artigo 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor,
representa uma corporificação tímida e mitigada do referido princípio. Afinal ele, em
sua literalidade, apenas confere ao juiz a faculdade de inverter o ônus da prova quando
for verossímil a alegação ou quando for o consumidor hipossuficiente, segundo as
regras ordinárias de experiências, criando uma possibilidade excepcional de inversão do
ônus da prova. E o princípio da aptidão para a prova que vem sendo desenvolvido
mundialmente torna imperativo que a prova seja produzida sempre por quem tem os
meios de fazê-lo, independentemente de comando judicial neste sentido. Desta feita, não
houve substituição das regras ordinárias de distribuição do ônus da prova pelo princípio
da aptidão para a prova, mas tão somente a atribuição ao juiz de uma faculdade de,
verificados certos requisitos, afastar-se dos ditames usuais invertendo o ônus da prova.
O
referido
dispositivo,
contudo,
deve
ser
interpretado com ponderação e de forma sistemática e teleológica. Com efeito,
interpretando-o gramaticalmente poder-se-ia chegar a duas conclusões desacertadas: a
de que ele não teria aplicabilidade no processo do trabalho11 e a de que as condições
10
LIMA, Francisco Meton Marques de. Elementos de direito do trabalho e processo do trabalho. 11ª
edição. São Paulo: LTr, 2005. p. 331.
11
Neste sentido se manifestou o douto Procurador José Cláudio Monteiro de Brito Filho, segundo quem
“A norma prescrita no Código de Proteção do Consumidor, todavia, não pode ser aplicada diretamente no
processo trabalhista, por duas razões básicas. Em primeiro lugar, o artigo 6º, inciso VIII em comento, é
claro ao referir sua aplicação no processo civil; em segundo , porque não há omissão na legislação
processual do trabalho que permita a utilização da norma alienígena”. (op cit, p. 95).
para que a inversão ocorra são alternativas, bastando a presença de uma delas para que o
juiz a determine12.
No que se refere ao primeiro ponto, o equívoco seria
induzido pelo fato de falar expressamente o caput do dispositivo em direitos do
consumidor e o inciso correspondente em processo civil o que poderia ser entendido
como intenção do legislador de restringir deliberada e conscientemente este mecanismo
à referida categoria social e ao referido rito processual. Entendimento que findaria por
impossibilitar a sua aplicação para favorecimento dos empregados, e, mais até, a sua
aplicação em todos os dissídios que tramitam perante a Justiça do Trabalho, que teve a
sua competência recentemente ampliada.
Estas conclusões, todavia, não se sustentam. Em
primeiro lugar, o fato da inversão do ônus da prova ser tratada no referido dispositivo
como um direito do consumidor não implica sua aplicação a esta categoria com
exclusividade por duas razões. A uma porque o texto legal em momento algum fala em
exclusividade ou utiliza qualquer expressão que conduza a esta conclusão. A duas
porque as normas que regem a relação de emprego e os dissídios na Justiça do Trabalho
não se exaurem no conteúdo da CLT por expressa determinação legal, razão pela qual
podem ser extraídos direitos dos trabalhadores de normas direcionadas a outras
categorias, assim como o processo do trabalho pode ser conduzido conforme normas
dirigidas a outros tipos de procedimento.
E as normas que complementarão o Direito e o
Processo do Trabalho não necessariamente serão aquelas inseridas no Código Civil e
no Código de Processo Civil, porquanto falam os artigos 8º e 769 da CLT,
respectivamente, em aplicação subsidiária do direito comum e do direito processual
comum expressões que não se referem exclusivamente aos estatutos acima referidos,
abrangendo na verdade todas as normas de direito privado não integrantes da CLT e da
legislação trabalhista especializada. Nesta categoria se inserem inequivocamente as
normas de proteção ao consumidor, as quais se identificam muito mais com os
12
Neste sentido são as opiniões de Wilson de Souza Campos Batalha e José Cláudio Monteiro de Brito
Filho. (Ibid, p. 94) e Eduardo Gabriel Saad (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: Lei
8.078, de 11.9.90, p. 169).
postulados basilares do Direito do Trabalho do que a das demais normas de direito
privado. Afinal, o direito laboral e o consumerista apresentam o mesmo alicerce
fundamental, qual seja a hipossuficiência de uma das partes.
Ademais, a presença dos requisitos necessários para
aplicação subsidiária do dispositivo é inquestionável. A existência de lacuna evidenciase na medida em que não há na legislação trabalhista nenhuma norma expressa
determinando ou vedando a inversão do ônus da prova. O artigo 818 da CLT, como
visto, trata da distribuição do ônus da prova, nada afirmando quanto à possibilidade ou
impossibilidade de sua modificação por determinação judicial. E a compatibilidade da
inversão do ônus da prova prevista no Código de Defesa do Consumidor com o
processo do trabalho se torna inconteste na medida em que este expediente já vinha
sendo adotado no processo do trabalho em situações pontuais, em decorrência da
aplicação da própria legislação trabalhista. É o que se depreende da Súmula 338 do
TST, que determina a inversão do ônus da prova, não em decorrência de aplicação
subsidiária do CDC, mas por não haver a empresa observado corretamente o que
determina o artigo 74, § 2º da CLT.
Não fosse isto o bastante, cumpre ressaltar que, se a
mesma interpretação restritiva fosse aplicada ao artigo 81 do Código de Defesa
Consumidor, desfigurado restaria o sistema de jurisdição civil coletiva, o qual, segundo
leciona Xisto Tiago de Medeiros Neto, “sacramenta-se com a integração das normas da
Constituição da República, da Lei da Ação Civil Pública e do Título III do Código de
Defesa do Consumidor, admitindo apenas subsidiariamente a aplicação do Código de
13
Defesa do Consumidor” . Afinal, o caput do referido dispositivo, cuja aplicação em
complementação aos ditames da lei 7.347 (LACP) é pacífica e inquestionável, também
se refere expressamente à defesa dos interesses e direitos dos consumidores em juízo.
Felizmente, não é esta a interpretação que tem prevalecido quanto a este dispositivo,
entendendo majoritariamente a doutrina e a jurisprudência que o referido preceito não
tem aplicação limitada aos litígios envolvendo consumidores, sendo perfeitamente
aplicável ao processo do trabalho e a todos os demais procedimentos não consumeristas.
13
MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. São Paulo: LTr, 2004, p. 230.
Ultrapassado este primeiro ponto, cumpre analisar se
os requisitos para a inversão do ônus da prova são alternativos ou cumulativos. Muito
embora o texto legal utilize uma conjunção alternativa, o que conduziria a conclusão de
que bastaria a presença ou da verossimilhança da alegação ou da hipossuficiência da
parte para que se desse a inversão do ônus da prova, esta conclusão, questionada no
âmbito da própria doutrina processual civil, que entende que a conjunção ou deve ser
lida como e, deve ser ainda mais veementemente rechaçada no que se refere à inversão
do ônus da prova no processo do trabalho. Afinal, no processo do trabalho a
hipossuficiência do trabalhador é sempre presumida, sendo corolário natural da
subordinação que rege o contrato de trabalho. E se um dos requisitos para a inversão do
ônus da prova está sempre presente, aplicar o dispositivo em comento ao processo do
trabalho interpretando-o literalmente resultaria em atribuir ao empregador o ônus de
provar sempre todos os fatos discutidos nos dissídios individuais de trabalho, o que não
se afigura razoável.
Esta conclusão resultaria na exigência de que o
empregador provasse fatos negativos como a ausência de assédio sexual ou moral
imputado a um de seus prepostos, e provasse fatos que sequer estão relacionados com a
sua conduta como, v.g., a preexistência do estado gravídico da gestante. Situações estas
que, ao invés de prestigiar, contrariam frontalmente o princípio da aptidão para a prova.
Afinal, não se afigura razoável concluir que o empregador possua melhores meios de
provar que a gravidez foi posterior ao desligamento do que a empregada de provar o
contrário.
O ideal seria uma reforma do processo do trabalho,
criando-se finalmente um Código de Processo do Trabalho próprio no qual haja
previsão expressa da inversão do ônus da prova quando o reclamado detiver os meios
necessários para a prova dos fatos constitutivos do direito do reclamante e houver
verossimilhança da alegação, a critério do juiz. Enquanto isto não ocorre, é
perfeitamente aplicável a inversão do ônus da prova com base no Código de Defesa do
Consumidor, sempre que além da hipossuficiência presumida do empregado, forem
verossímeis as alegações e os meios de prova necessários estejam na posse do
empregador. Isto porque, ainda que haja uma presunção de hipossuficiência em relação
ao empregado e ainda que sejam verossímeis suas alegações, não haveria porque
inverter o ônus da prova se é ele quem detém os meios indispensáveis para produzi-la.
Há que se ponderar ainda que diversos Tribunais
Regionais do Trabalho do Brasil, que vem acolhendo requerimentos de inversão do
ônus da prova com base no princípio da aptidão para a prova, sem sequer fazer
referência expressa ao dispositivo do Código de Defesa do Consumidor acima
analisado:
SALÁRIO FAMÍLIA – ÔNUS DA PROVA DA
APRESENTAÇÃO
DOS
DOCUMENTOS
CORRESPONDENTES. Sem prejuízo das regras
insculpidas no art. 818 da CLT, combinadas com as do
art. 333 do CPC, inverte-se ao empregador o ônus da
prova quanto à apresentação dos citados documentos, no
curso do pacto laboral, considerando a aplicação do
princípio da melhor aptidão para a prova, vigente
sobretudo no âmbito do processo do trabalho, pouco
importando que se trate de prova positiva ou negativa ou
de que o interesse fosse desta ou daquela parte. Ademais,
compete ao empregador, quando da admissão do
funcionário, exigir-lhe a declaração da existência ou não
de filhos, a fim de verificar se o mesmo está apto à
percepção do salário família, bem como em que número
de cotas. TRT da 6ª Região, 2ª Turma, Proc. nº TRT –
00434-2002-311-06-00-5, Relatora: Patrícia Coelho
Brandão Vieira, decisão oriunda da
Vara
do
Trabalho de Caruaru – PE, publicada no D.O.E. em
15/03/2005.
PAGAMENTO.
SALÁRIOS.
ATRASO.
ÔNUS
PROBANDI. Pugnando o Reclamante pelo pagamento
de multa convencional decorrente de atrasos nos
pagamentos salariais, à prima facie, transpareceria ser
seu o mister probante. Todavia, em observância à
interpretação finalística e as razões ontológicas dos
termos erigidos no artigo 818 da CLT; do "princípio da
aptidão para a prova" (Porras Lopes) e do critério de
utilidade desta para o processo, cabe ao empregador
comprovar que efetuou os pagamentos salariais em
tempo e modo corretos. TRT 23ª região RO-3147/99, Ac.
TP. n. 452/2000, Relator Juiz Nicanor Fávero, Oriunda
da 4ª JCJ de Cuiabá/MT.
Não se pode deixar de ter em mente, contudo, que a
inversão do ônus da prova deve ser sempre uma decisão interlocutória, jamais um
critério de julgamento. Melhor esclarecendo, o juiz deve comunicar previamente as
partes sobre a decisão de inverter o ônus da prova e os motivos que a justificaram,
permitindo-lhes saber a quem incumbirá a produção das provas e a quem caberá realizar
a contraprova de cada uma das assertivas. Não fazê-lo e somente na sentença comunicar
que a decisão prolatada decorreu de uma inversão do ônus da prova implica
injustificável violação ao princípio do devido processo legal e, por conseguinte, em
nulidade processual insanável.
Conquanto o ônus da prova seja relevante no
momento da prolação da sentença, como adiante já evidenciado, há que se ter em mente
que as partes vão a juízo imaginando que deverão produzir suas provas consoante
determina o artigo 333 do CPC, delimitando previamente quais os tipos de prova e de
contra-provas deverá produzir. Logo, se a regra geral não for aplicada ao caso, devem
elas ser cientificadas antes do início da instrução.
E não se venha dizer que esta cientificação é feita
através do requerimento do autor em sua peça vestibular. Como todo requerimento, o
pedido de inversão do ônus da prova pode ser acolhido ou rejeitado e isto deve ser feito
em audiência antes do início da instrução probatória.
3 – O PRINCÍPIO DA APTIDÃO PARA A PROVA E OS REQUERIMENTOS
DE INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA FORMULADO PELO MPT.
Ultrapassadas
as
considerações iniciais acima
expostas, cumpre adentrar ao cerne deste trabalho, qual seja a inversão do ônus da prova
a requerimento do Ministério Público do Trabalho. Como já salientado o princípio da
aptidão para a prova estatui que o ônus da prova é de quem tem melhores meios de
produzi-la. E o Ministério Público do Trabalho, consiste em instituição grande e bem
aparelhada, com representação nas capitais de todos os Estados da Federação, bem
como em ofícios localizados em cidades interioranas estrategicamente localizadas e que
goza de uma série de poderes e prerrogativas que torna a produção de provas mais fácil
do que para as demais partes. Ressalte-se, logo de saída, que o Ministério Público
possui a prerrogativa de instaurar um procedimento administrativo para investigar as
denúncias que lhe são dirigidas, o inquérito civil público (artigo 84, IV da LC 75), III requisitar à autoridade administrativa federal competente, dos órgãos de proteção ao
trabalho, a instauração de procedimentos administrativos, podendo acompanhá-los e
produzir provas artigo 84, IV da LC 75), receber intimação pessoalmente nos autos em
qualquer processo e grau de jurisdição nos feitos em que tiver que oficiar(art. 18, h), expedir notificações e intimações necessárias aos procedimentos e inquéritos que
instaurar (art. 8, VII), notificar testemunhas e requisitar sua condução coercitiva, no
caso de ausência injustificada(art. 8º, I); requisitar informações, exames, perícias e
documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta(art. 8º, II);
requisitar da Administração Pública serviços temporários de seus servidores e meios
materiais necessários para a realização de atividades específicas(art. 8º, III); requisitar
informações e documentos a entidades privadas(art. 8º, IV); realizar inspeções e
diligências investigatórias(art. 8º, V); ter livre acesso a qualquer local público ou
privado, respeitadas as normas constitucionais pertinentes à inviolabilidade do
domicílio;
Este fato é mais do que suficiente para justificar a
não inversão do ônus da prova. Isto porque ela é um corolário lógico do princípio da
aptidão para a prova, segundo o qual o ônus de produzir prova deve ser atribuído a
quem tem os meios para fazê-lo. E, com todas estas prerrogativas há que se supor que o
Parquet possui melhores condições de produzir prova da ausência de discriminação do
que as empresas por ele investigadas ou acionadas judicialmente, e não o contrário.
Outrossim, tendo-se em conta o princípio geral de hermenêutica que assevera que o
ordinário se presume e o extraordinário deve ser provado, deve-se partir sempre do
pressuposto que o Ministério Público possui melhores condições de provar suas
alegações, somente sendo cabível a inversão do ônus da prova caso este consiga
demonstrar, na oportunidade do requerimento, o contrário.
Ademais, em se admitindo a inversão com amparo
no artigo 6º., VIII, a inversão do ônus da prova reclamada, nos termos expressos da lei,
se funda na hipossuficiência de uma parte e na verossimilhança da alegação feita. Ora,
com todas as prerrogativas processuais de que dispõe, não há como se aceitar a idéia de
que o Ministério Público seja hipossuficiente em relação às empresas investigadas.
Mesmo nas hipóteses em que a ação versa sobre
discriminação, hipótese em que comumente se afirma a imprescindibilidade da inversão
do ônus da prova, ela não pode ser a regra em casos de ações em que se tutela interesses
metaindividuais. Via de regra, é fácil demonstrar, em reclamações individuais, que a
empresa possui melhores meios de provar a inexistência de conduta discriminatória do
que o empregado de provar que houve, de fato, tratamento desigual. Em se tratando de
ações para defesa de tutela de interesses metaindividuais o mesmo não é verdade. O
Ministério Público pode provar a suposta existência de discriminação em determinada
empresa de diversas formas como, por exemplo, colacionando aos autos cópias de
diversas decisões reconhecendo uma conduta discriminatória, ouvindo testemunhas,
requisitando das empresas documentos que comprovem políticas que estimulam
tratamentos desiguais como planos de cargos e salários e contratos de trabalho.
Com inspiração no direito estrangeiro, dados
estatísticos podem ser reputados válidos como meio de prova, desde que se prove a
existência de um prima facie case. Em outras palavras, o Ministério Público deve, além
de demonstrar dados estatísticos seguros, demonstrar pelo menos um caso concreto de
disparidade de tratamento. Esta demonstração não é nada difícil de ser feita, como
sublinham os tribunais norte-americanos. A mesma Suprema Corte, em 1981,
assinalou, a propósito exatamente de alegada discriminação de mulheres no emprego:
“The burden of establishing a prima facie case of disparate treatment is not onerous.
The plaintiff must prove by a proponderence of the evidence that she applied for an
available position for which she was qualified, but was rejected under circumstances
which give rise to an inference of unlawful discrimination...”(Texas Dept. of
Community Affairs v. Burdine - 450 U.S. 253).
No direito americano, muitas vezes apontados como
vanguardista em matéria de tutela jurisdicional de combate à discriminação, não se vem
admitindo o uso exclusivo das estatísticas como meio de prova irrefutável de condutas
discriminatórias, o que não é verdade. Observe-se, por exemplo, que no julgamento do
relevante precedente Internacional Brotherhood of Teamsters v. United States, referido
por Firmino Alves de Lima como o mais importante processo judicial em que se tenha
utilizado estatísticas para comprovação de uma política discriminatória promovida por
uma empresa, outras provas foram fundamentais para o deslinde da questão14. Segundo
o referido autor, “Ele ficou célebre pelo fato de a Suprema Corte aceitar a comprovação
de uma discriminação sistêmica por meio de dados estatísticos, tratados em conjunto
com outras provas”15. Vê-se, portanto, que nem mesmo no direito americano as
estatísticas são aceitas como prova inconteste de discriminação por impacto adverso, a
menos que corroboradas por outras provas produzidas nos autos.
14
LIMA, Firmino Alves de. Mecanismos antidiscriminatórios nas relações de trabalho. São Paulo: LTr,
2006, p. 207).
15
Ibidem.
Acerca
deste
relevante
precedente
bastante
esclarecedor é o seguinte trecho do estudo desenvolvido por Firmino Alves de Lima:
O processo expõe elementos fáticos estarrecedores. A
ação foi proposta pelo Governo dos Estados Unidos com
base nas disposições do título VII, sob a alegação de que
a empresa demandada T.I.M.E.-D.C., Inc., uma grande
transportadora de dimensão nacional, bem como o
sindicato
profissional
correspondente,
estariam
envolvidos na adoção de um padrão de práticas
discriminatórias contra negros e hispânicos. Os
trabalhadores destas minorias, quando contratados,
somente atendiam atividades locais com menor
remuneração e atividades menos desejáveis, ao invés de
operarem transporte em linhas intermunicipais,
atividades com remuneração maior e geralmente
ocupada por brancos. O Governo Federal acusou a
existência de um sistema de promoções por antigüidade
estabelecido por meio de negociação coletiva com o
sindicato profissional, como perpetuador dos efeitos de
discriminação racial e ética estabelecidas existentes no
passado.
(...)
Mas a decisão reafirmou que não foi um caso onde o
Governo Federal baseou-se em estatísticas tão somente,
mas sim em testemunhos dos envolvidos, além de outros
dados, consagrando o seguinte posicionamento: “Em
qualquer
situação,
nossos
casos
deixam
inquestionavelmente claro que ‘análises baseadas em
estatísticas têm servido e irão servir como importante
papel nos casos onde a existência de discriminação é
questionada’. E em outra passagem mais adiante da
decisão, afirma que: “As estatísticas são igualmente
competentes em provar discriminação no emprego. Nós
somente tomamos cuidado no sentido de que as
estatísticas não são irrefutáveis, elas vêm em enorme
variedade e, como qualquer outro meio de prova, podem
ser desafiadas. Sua utilidade depende de todos os fatos e
circunstâncias que cercam o caso”16.
Como salienta Firmino Alves de Lima as questões
envolvendo estatísticas não são assim tão fáceis de compreender e servir como prova
irrefutável, dependendo o seu valor probante da metodologia da estatística utilizada, e
dos fatores de comparação utilizados, para se chegar a uma conclusão se há
discriminação proporcional17. Isto posto, a prova estatística produza não é irrefutável,
sendo perfeitamente razoável que a parte demonstre a ineficiência da prova estatística
16
431 U.S. 324, 97 S.Ct. 1843, 52 L. Ed. 2d. 396 (19770, diponível em find law for legal professionals.
Disponível em <http://laws. findlaw.com/us/431/324.html>). In: LIMA, Firmino Alves de. Mecanismos
antidiscriminatórios nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2006, p. 207/208.
17
Ibid, p. 208.
demonstrando que a metodologia utilizada não é adequada, ou que os fatores de
comparação utilizados não demonstram o que se pretende provar. Há que se esclarecer
que não se trata de inversão do ônus da prova, mas de uma prova que admite contraprova.
4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Diante de tudo o que fora exposto até aqui, algumas
considerações podem ser feitas:
1) A ampla possibilidade investigatória atribuída
aos juízes no processo brasileiro harmoniza-se com a regra de partição do ônus da
prova estatuída nos artigos 333 do CPC e 818 da CLT, por serem estas regras de regra
de julgamento e não de condução da instrução, verificando-se sua utilidade, sobretudo,
em caso de prova insuficiente. Tais dispositivos devem ser aplicados conjugadamente
no processo do trabalho, vez que não se contradizem e nem tampouco são
incompatíveis entre si, sendo certo que aquele apenas detalha um pouco mais o que este
determina;
2) Em virtude de as normas de distribuição do ônus
da prova ensejarem em determinados casos injustiças desenvolveu-se a teoria da
aptidão para a prova, segundo a qual o ônus de produzi-la deve ser atribuído a quem
tem os meios para fazê-lo. No Brasil esta teoria foi corporificada, ainda de forma
mitigada, na regra do art. 6º, VI do CDC;
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O princípio da aptidão para a prova e a inversão do ônus da prova a