Os efeitos sociais da arquitetura
Vinicius M. Netto
É lugar comum a ideia de que as coisas têm efeitos ou repercussões sobre outras. A possibilidade de
relações entre eventos ou objetos é a propriedade central em uma realidade interligada – algo que está
por trás da própria possibilidade de conhecer essa realidade. Não seria diferente com o ambiente
construído e com a arquitetura em particular. Entretanto, a ideia de que a arquitetura enquanto objeto
construído seja capaz de produzir efeitos é ainda pouco discutida na teoria arquitetônica e em estudos
urbanos – muito menos discutida do que deveria ser, sobretudo em um momento no qual percebemos
reduções dramáticas na diversidade das edificações sendo produzidas em nossas cidades e a substituição
progressiva de tecidos urbanos por uma tipologia específica – de implicações, como veremos,
potencialmente problemáticas.
Que efeitos serão esses e sobre o que ocorrem? O que estaria em jogo nos supostos impactos do
edifício sobre a cidade e seu entorno? Em geral os efeitos da arquitetura são vistos como o seu impacto
sobre nossa percepção visual. O edifício é capaz de alterar nossa percepção: ter um efeito positivo,
negativo, neutro; trazer sensações associadas ao belo, ao feio, ao estranho e assim por diante. Estes
consistem também de efeitos psicológicos sobre o humano. A arquitetura afeta o sujeito, sua leitura do
ambiente, gera ambientes com “ruído” menor ou maior. Vários conceitos foram produzidos para
endereçar esses efeitos e, portanto, esse papel da arquitetura: harmonia, equilíbrio, ordem; mesmo
noções particulares como o de “sublime”, o caótico etc. Teorias foram produzidas para explicar esses
efeitos sensoriais, iniciando pela estética desenvolvida desde os gregos, passando pela gestalt e
semiologia estendidas à arquitetura e percepção. Curiosamente, salvo considerações implícitas nas
ideias de “função” e sua relação com a configuração interna do edifício, nossas noções sobre os efeitos
da arquitetura têm sobretudo se restringido a essa natureza estética e perceptiva, amarrada à dimensão
visual da arquitetura. Há ainda uma afinidade entre a estética, historicamente tratada no discurso
arquitetônico, e a questão da percepção explorada na vertente dos discursos urbanos, por sua vez afim à
fenomenologia, centrada na relação imediata entre sujeito e mundo, como matriz filosófica, e ao
domínio da psicologia como eventual recurso teórico. O resultado é uma redução frequente da
arquitetura a sua dimensão estética tanto em discursos eruditos quanto nos de senso comum. Há razões
para essa ênfase usual, e aqui só poderei discutir parte delas.
Uma provocação: a redução da arquitetura à visualidade
A possibilidade de que a arquitetura tenha efeitos sobre seu contexto leva-nos a buscar as conexões
entre ambas – algumas das quais têm sido frequentemente ignoradas, sub-teorizadas ou invisibilizadas
nos discursos que circulam. Tais conexões estão, de fato, entre as coisas mais difíceis de se “ver” ou
entender em arquitetura: como entender impactos da sua espacialidade para além do visual? Sobre o que
mais ela impactaria? Ao que mais no “humano” a arquitetura se refere? Sabemos que seu papel inicia
pela proteção e conforto, mas vai bem além desses itens basilares: ela também ampara nossas
experiências e vida coletiva. Mas como entender a influência da arquitetura sobre a aspectos como nossa
ação conjunta e experiência? Antes de mais nada, como entender relações entre duas coisas tão
distintas? A intenção de conhecer as conexões entre um fenômeno material como os espaços da
arquitetura e algo imaterial como nossas ações no seu espaço nos levará imediatamente além da
dimensão estética e do foco na visualidade como valor superior da arquitetura e da prática da
arquitetura. Alerto que, ao seguirmos esse intento, nos chocaremos mais e mais com a ideia da
arquitetura como arte e a arquitetura-arte como a arquitetura mais elevada; mais que isso: como a
verdadeira arquitetura, o que faz dessa qualidade de arte o horizonte, o fim mais nobre da arquitetura.
Minha intenção não é contrapor a possibilidade da arquitetura visual e estética, que existe e
pulsa, mas mostrar que a arquitetura é, ao mesmo tempo, arte e mais que arte. A tendência a permanecer
na dimensão visual como telos da arquitetura certamente nos captura. Ela leva, no entanto, a nos
perdermos na “ilusão da opacidade” das formas, na expressão de Henri Lefebvre.1 Impõe uma espécie
de eterno retorno à visualidade e ao compositivo como composição apenas visual da forma. A fixação
na dimensão estética da arquitetura sempre nos remete de volta à forma; ela prende o sujeito ao objeto
por um único fio: o fio reificado da visão. Olhamos o objeto e retornamos ao nosso lugar como sujeitos
visuais e estéticos – e então novamente ao objeto como objeto da visão, uma circularidade reconstruída
na própria teoria e crítica da arquitetura: da forma à estética e da estética à forma, ad infinitum. A
fixação na visualidade da arquitetura e no seu impacto estético como fim mais relevante nos leva a
ignorar seus vínculos para além dela mesma e da nossa visão; não nos leva para fora do círculo da
forma e leitura da forma. A sedução da visão nos leva a retornar à superfície do próprio objeto, já que a
visão não o penetra substancialmente; não evoca outras possibilidades da experiência do espaço e dos
eventos no espaço da arquitetura. Tende a relegar a um status menor a arquitetura como locus ativo do
modo como vivemos coletivamente; leva-nos a esquecer do sujeito da arquitetura que a experiencia
como contexto essencial de seus atos e sua imersão nas relações entre atores e na vida social. Chamo
essa tendência de visualismo, para diferenciar entre a ênfase exclusiva na visualidade e a dimensão
visual da arquitetura, obviamente viva e importante. A dimensão visual ocupa um lugar significativo em
nossas experiências; ela é um problema fundamental para o arquiteto. Mas essa fixação tem-nos
1
Veja Lefebvre (1991).
distanciado do entendimento do objeto arquitetônico para, além da experiência da visão, impactar
nossos atos vividos nos cenários e estruturas da arquitetura – os quais estenderão os efeitos do espaço
arquitetônico em direção a outros atos e a outros lugares.
Haveria de se investigar as origens dessa dominância da visualidade em arquitetura, desse
visualismo que, ironicamente, nos cega a visão do seu papel na geração da vitalidade do humano em
sentidos mais amplos. Entendo que, por trás da sedução da visualidade, há uma condição epistemológica
fixada em objetos isolados e uma redução a uma ideia de forma essencialmente autocontida em si e em
seus efeitos estéticos. A redução da arquitetura à uma dimensão cartesiana da forma do objeto (e não das
suas relações) e à uma dimensão kantiana da autossuficiência do espaço enquanto forma estética e
categoria da experiência (e não como locus da prática), bem como a redução do sujeito complexo a um
sujeito sobretudo estético, parecem nos impedir de ver a arquitetura como fenômeno colhido em tramas
de atos e relações em constante movimento e mudança. Gravemente, esse tem sido o caso, mesmo que
conhecimentos nos permitam dizer que tais reduções são cada vez mais problemáticas.
De efeitos invisíveis a reconhecíveis: um outro paradigma para entender a arquitetura
Quero endereçar aqui um lugar mais amplo da arquitetura na vitalidade da nossa experiência e da
constituição de um mundo social como horizonte ainda a ser descoberto pelo arquiteto – um horizonte
também pulsante e urgente. A tradicional fixação na visualidade da forma não significa suspender a
existência de outras conexões, mas estas certamente demandam mais de nossa atenção. Viso mostrar
que diferentes formas arquitetônicas e suas implantações em relação a outros edifícios e ao espaço
público não são isentos de impactos – aparentemente improváveis mas que, uma vez examinados mais
de perto, revelam a arquitetura como parte fundamental na vitalidade social de nossas cidades, sua
dinâmica econômica, ambiental, e mesmo no uso e segurança de suas ruas. Esses efeitos começam já no
edifício e sua reprodução no quarteirão e áreas urbanas, mas são com frequência produzidos
independentemente daqueles desejados no momento do projeto. Muitos deles são sequer conhecidos.
Alguns poderiam argumentar, com razão, que a arquitetura como objeto produzido para abrigar
atividades humanas pode falhar ou ser bem-sucedida: ela pode, termo usual em arquitetura, “funcionar”
bem ou mal. A estrutura interna do edifício pode contribuir ou não no desenrolar de uma atividade ou
sequência de práticas. Aqui começamos a nos aproximar do que gostaria de endereçar: a possibilidade
da arquitetura ter efeitos sobre o que fazemos e como interagimos no espaço. No caso da ideia de
função, tais efeitos são reduzidos à uma interpretação bastante pragmática: o espaço como condição
infraestrutural da atividade. Desejo ampliar essa leitura funcionalista ao buscar as implicações do espaço
arquitetônico sobre os modos como nos apropriamos, encontramos e agimos conjuntamente nos espaços
interno e externo da arquitetura. E estes talvez sejam os efeitos mais importantes de todos.
Esclareçamos estes dois campos de efeitos do edifício. O primeiro é auto-evidente e tema de
ideologias e teorias normativas bem-conhecidas, como as da mencionada relação forma-função. Efeitos
internos se referem aos impactos da configuração sobre o movimento e encontro das pessoas dentro da
edificação, moldada através da sequenciação de espaços para práticas relacionadas ou complementares.
A esses efeitos de ordem física, corporal, podemos adicionar efeitos informacionais sobre as práticas e
interações que transcorrem no espaço interno da arquitetura. O edifício não diz com quem devemos nos
comunicar nem fixa com rigidez a forma das relações sociais ali encenadas, mas instala quase
inconscientemente modos de comportamento, interpretação mútua e comunicação, assim como pode
sugerir caminhos possíveis dentro da edificação, entre suas partes, os quais corresponderão em tese às
complementaridades entre as diferentes ações que compõem a atividade ali desenvolvida. Essa leitura é
intencionalmente mais ampla que a ideia usual de “funcionalidade”, ainda que a inclua, e traz de modo
parcial o papel da arquitetura na interatividade e na coordenação nas conexões de ações no espaço
interno do edifício (Netto, 2005).
O segundo é bem menos conhecido em toda sua extensão, com exceção para o aspecto estético
discutido acima: tratam-se dos efeitos do objeto arquitetônico sobre o espaço do entorno da edificação.
Efeitos externos parecem mais improváveis, e se referem aos impactos da edificação sobre a ação que
ocorre fora do seu perímetro, mas possivelmente atrelado a ela, tais como o movimento e acesso a
atividades nele sediadas, a intensidade variada de apropriação do espaço público e mesmo a densidade
de encontros no âmbito da rua, fenômenos ancorados na interface espaço público-edifício ou na
permeabilidade entre a pele do edifício e a rua. Esse será um ponto elementar na relação espaço urbanovida social, isto é, o espaço como condição para a produção dos fatores basilares da vida social. Ao
envolver encontros no espaço público e a possibilidade de acesso ao próprio edifício, envolve também
um potencial de comunicação e a constituição de trocas sociais e microeconômicas que se manifestam
localmente. As interfaces da ação, espaço público aberto, espaço interno da edificação e as atividades
que esta abriga consistem na verdade na ponta visível de uma rede de tremenda complexidade, que pode
ser traçada a uma infinidade de atores e suas ações realizadas em outros lugares – uma rede de produção
que somente se completa no momento da interação e troca final na arquitetura e na sua permeabilidade
para os canais do espaço público. Dito de outro modo, as trocas que acontecem na interface edifícioespaço público são o momento no qual culminam as tramas da reprodução material. Tramas
microeconômicas, contudo, não são dissociadas da vitalidade das trocas sociais mais amplas: são
constituídas por redes comunicativas que também reproduzirão a vida social, que se descerra
localmente. Esses serão os efeitos que discutirei em detalhe a partir daqui. Ainda que central, gostaria de
deixar as considerações sobre o primeiro caso, os espaços internos da arquitetura e sua relação com a
atividade que abriga (a configuração das plantas e seu efeito sobre nossas práticas dentro do edifício),
para outro momento.2
Propriedades da forma e sua relação com a prática
Avancemos na consideração dessa relação arquitetura-vida social no espaço público. Seria útil vermos o
problema de uma forma mais contrafatual, de modo a rompermos com a realidade como se apresenta e
reconstruirmos suas condições mais fundamentais. Teríamos a mesma intensidade de trocas entre atores
sociais em qualquer configuração espacial ou padrão arquitetônico? Os estudos pioneiros de morfologia
de Martin e March em Cambridge, 3 um exame das geometrias fundamentais que constituirão
inerentemente diferentes formas e seus arranjos resultantes, nos oferecem os primeiros indícios de que
há diferenças nas condições de como o espaço pode amparar nossas práticas. Eles demonstram o
comportamento superior de certos tipos de formas sobre outros quanto à absorção de área e densidade
(figura 1).4
Fig.1 – Como propriedades geométricas constituem a forma arquitetônica e urbana e seu desempenho quanto a
densidade (Martin e March, 1972): à esquerda, moldura e quadrado em preto têm a mesma área; quadradoo e
molduras tem a mesma área, mostrando o melhor desempenho das bordas para absorver área. Há
comportamento semelhante em 3D, com distribuições de borda apresentando menor altura que as isoladas, tendo
mesma densidade. À direita, mapas fundo-figura mostram trecho de Manhattan com média de 21 andares e
quarteirões cobertos por forma edilícia fragmentada, em comparação com quarteirões de borda com 7 andares,
mesma densidade e mais área de térreo disponível.
2
Veja o capítulo “Comunicação e espaço: o papel da arquitetura e da cidade na associação dos atos” neste livro, e sobretudo
Netto (2005; 2007).
3
Veja Martin (1967), Martin e Steadman (1971), Martin e March (1972) e March (1976) (The Martin Centre for Architectural
and Urban Studies, Cambridge University).
4
Veja um artigo recente sobre o desempenho de configurações do edifício e do quarteirão quanto a habitabilidade, de Ratti et al
(2003). A pesquisa do desempenho energético ganha crescente atenção devido aos desafios de sustentabilidade em arquitetura.
As dimensões social e econômica do projeto arquitetônico ainda carecem de atenção.
A ocupação da borda de polígonos tem a vantagem de absorver áreas que demandariam larguras
maiores no caso de formas isoladas em 2D e altura em 3D. Essa propriedade geométrica está presente na
disposição das implantações dos edifícios nos quarteirões. A forma perifericamente disposta termina por
gerar densidades arquitetônicas, com a vantagem de liberar o espaço aberto do interior do quarteirão
para uso, ventilação e iluminação. De modo oposto, quarteirões cujos edifícios apresentam grandes
espaçamentos ou recuos laterais entre si, sem continuidade de fachadas, terminam por reduzir
consideravelmente a densidade dos quarteirões. Edifícios isolados precisam verticalizar-se para ganhar
densidade.
Essa propriedade permite relações com elementos potencialmente importantes para o
entendimento das relações de interface arquitetura-espaço público que ampara o tecido da vida social
das ruas, como aqueles capturados pelo conceito de “constituição” – os componentes da forma
arquitetônica diretamente ligados à rua, como aberturas e fachadas.5 Edifícios isolados terminam por
reduzir o número de portas voltadas para o espaço público e enfraquecer a relação fachada-rua
necessária na animação do espaço público. A noção de urbanidade proposta por Holanda (2003:16)
enfatiza tais aspectos arquitetônicos.
§
Minimizar espaços abertos em prol de ocupados;
§
Maximizar número de portas abrindo para lugares públicos;
§
Minimizar espaços segregados (topologicamente, e não apenas perifericamente), guetizados
(becos sem saída, condomínios fechados).
O que essas condições implicam quanto as edificações em si? Precisamos de um passo decisivo em
direção as possibilidades do edificar. Há grande diversidade de formas, como podemos atestar em nossa
experiência urbana. Essa diversidade, contudo, parece passível de agrupamento em léxicos mais
recorrentes em função das características que aproximam mais certos objetos que outros – seja por um
requerimento cognitivo, seja por semelhanças formais. Esses léxicos costumam ser tratados de modo
taxonômico na teoria da arquitetura, gerando categorizações ou tipologias. Essa abordagem usual nos
será útil. O estudo dos tipos em arquitetura, naturalmente, guarda variantes culturais. Tipos ainda podem
ser organizados de diversas formas – mas três formas são de especial interesse aqui: o edifício livre de
ligações à outros edifícios, explorado sobretudo no séc. XX e chamado comumente de “torre”; o
edifício cujos limites coincidem com as divisas do lote urbano (ou, por simplicidade, “divisa”); e por
fim um terceiro tipo, híbrido, uma justaposição desses dois tipos anteriores apresentando portanto um
volume basal horizontalizado colado nas divisas e um volume superior verticalizado e isento de contato
5
Como exemplo, veja Hillier e Hanson (1984).
lateral (figura 2). Estes três esquemas de formas arquitetônicas, definidas pelo seu aspecto externo e o
grau de continuidade de suas fachadas, parecem representar a variedade de grande parte das formas
produzidas em nossas cidades – sendo ainda contempladas e mesmo prescritas por planos diretores no
Brasil.
Fig.2 – Tipos arquitetônicos e as severas diferenças morfológicas que engendram: impactos também distintos
sobre a apropriação social do espaço e aspectos de desempenho urbano?
(Imagens: googlemaps e googlestreetview)
Essa classificação de edifícios pode ser finalmente relacionada a fenômenos sociais reconhecíveis em
seus entornos, uma vez agregados em contextos urbanos. A análise da forma arquitetônica e urbano ao
nível do tipo guarda ainda relações à observações empíricas colhidas por diferentes autores. Jacobs
(1961) foi pioneira ao associar padrões de urbanização modernista e suas implantações envolvendo
grandes recuos e controle de atividades a ausência de vitalidade urbana, fazendo o elogio da forma
urbana tradicional e da diversidade tipológica e funcional. No Brasil, vimos que Holanda (2002) aponta
relações entre constituição morfológica e urbanidade, enquanto Vargas (2003) trata da forma do
quarteirão e ruas de alta centralidade como fatores de vitalidade. Esses estudos, junto à observações
correntes, ainda que menos sistemáticas, sugerem uma hipótese de fundo para a relação entre forma
arquitetônica-urbana e dinâmicas sociais locais (esquema 1).
rareficação de padrões da forma arquitetônica e urbana
dissolução no uso social das ruas
(apropriação pedestre e atividade microeconômica; presença de comércios e serviços)
consequências potencialmente negativas para as cidades
(dependência veicular, segregação, insegurança)
Esquema 1. Hipótese de fundo: a dissolução de tecido urbano como indutora da dissolução de redes de trocas
locais na cidade.
Desdobremos essa hipótese de fundo com mais precisão (Netto et al, 2012). Diferentes tipos
arquitetônicos teriam efeitos sociais também diferentes? Nossa hipótese é que, propriedades como
acessibilidade e densidade iguais, o tipo (a) divisa responderia mais adequadamente a vida social e
microeconômica na escala local ao relacionar-se mais diretamente aos espaços públicos e permitir uma
relação intensa entre atividades e pedestres por meio das fachadas contíguas. Nossa hipótese também
aponta para a possibilidade de que o tipo (b) torre teria efeitos opostos a (a) como função do quão largos
são os afastamentos do edifício dos limites do lote, as distâncias entre edifícios e em relação a faixa
pedestre. Esses fatores afetariam os níveis de movimento pedestre e trariam dificuldades a atividades
comerciais, com efeitos potenciais de larga-escala quanto ao desempenho urbano, como o aumento da
dependência veicular. Quanto mais dominante for (b) em uma área urbana, menos pedestres e atividades
comerciais. Já o tipo (c) híbrido teria um desempenho levemente positivo, em função de sua
configuração e fachadas possuírem características mistas (figura 3).
Fig. 3 – A hipótese dos efeitos sociais da arquitetura
(imagens: Julio Vargas).
Essas hipóteses se centram na forma e o uso de edifícios-tipo. Investiguemos essas questões. Sob o
ponto de vista quantitativo, estudos6 mostram a compacidade e proximidade de atividades como positiva
para reduzir deslocamentos em rotinas de trabalho e no lazer. Na verdade, a economia espacial afirma
que é exatamente essa a razão para produzirmos os complexos arquitetônicos tão densos e estruturados
que chamamos “cidades”. A ideia da densidade apresentar relações com interatividade e diversidade
econômica é um dos achados fundamentais dessa disciplina – e um dos seus axiomas. Essa relação
passa, entretanto, pela arquitetura, e essa passagem certamente merece mais atenção. Argumento que
nessa passagem, a presença de térreos comerciais em tipos arquitetônicos é vital: sem a possibilidade de
atividades de troca nos térreos das edificações, não teremos a chance de produzir a diversidade de
atividades que é a própria força motriz das cidades e das nossas interações sociais, econômicas e
políticas no espaço aberto urbano. Contudo, térreos com usos coletivos não são viáveis em qualquer tipo
arquitetônico. Sob o ponto de vista qualitativo, veremos que a própria diversidade de atividades tende a
ser afetada por diferenças tipológicas. Tais implicações podem constituir severa dificuldade para a
materialização da vida social e microeconômica em áreas urbanas.
A presente abordagem busca mostrar se, e se sim, o quanto a forma arquitetônica influencia de
fato o que ocorre em seu entorno: a vida social e microeconômica que emerge e anima bairros, áreas e
centros urbanas. É a busca da demonstração do “fio” que liga em ultima instância a arquitetura ao social
6
Veja Chen et al (2008) e Rauber (2011).
o que a presente abordagem busca mostrar. Propõe uma forma simples o bastante de evidenciar que esse
fio, essa presença da arquitetura como fundamentalmente ativa na geração da vida urbana. Espera fazêlo, primeiramente, ao mostrar uma consistência nas coincidências entre certas características
arquitetônicas que determinam a forma de conjuntos urbanos e os componentes fundamentais da
presença social no espaço da cidade. Segundo, ao mostrar que tais coincidências tem sentido
probabilístico e sentido material.
Poderíamos chamar essa abordagem de uma “abordagem pós-topológica”, que aprende, absorve
e mantém ativo o insight topológico capaz de evidenciar relações entre elementos urbanos e seus efeitos
sobre processos sociais, mas o faz de modo a reincluir e refundar a centralidade da arquitetura da cidade
em sua totalidade. Trata-se da abordagem de uma “tipologia sistêmica”, uma visão de cada edificação
como entidade que pulsa vida urbana em relação a outras e a seus espaços abertos do entorno (tanto
quanto estes entre si, como demonstrados por Hillier e outros). A abordagem vai em direção a uma
teoria mais ampla das ligações entre sociedade-espaço, a uma teoria mais sistêmica da forma e dinâmica
urbana nascendo a partir da sua raiz – de onde a vida urbana emerge, é sentida e volta a repercutir
depois de compor o todo urbano: a escala local, a tensão entre corpo e arquitetura.
Estamos buscando a extensão e modos dessa tensão nas distâncias entre edificações e fluxos dos
corpos e nas distâncias das edificações entre si; seus portes, densidades; sua porosidade para o espaço
público, na forma de aberturas de fachada e permeabilidade de térreos; suas relações em complexos;
seus conteúdos sociais e a diversidade desses conteúdos e os efeitos de suas relações.
Um estudo empírico sobre o efeito social da morfologia arquitetônica
Chamo a atenção para o que pode ser um problema grave e crescente em nossas cidades, aparente em
um estudo conduzido recentemente no Rio de Janeiro, onde aplicou-se uma metodologia desenvolvida
por um grupo de pesquisadores de quatro universidades brasileiras.7 Estamos pesquisando sinais de
associação entre a presença de certos tipos arquitetônicos e itens das dinâmicas sociais e econômicas de
caráter local (uso pedestre do espaço para circulação e interação e presença de atividades comerciais e
de serviços, entre outros – aspectos reunimos sob o bem-conhecido termo “vitalidade urbana”). Nossas
hipóteses acompanham observações e intuições de muitos: a diluição do tecido urbano na forma de tipos
arquitetônicos caracterizados por recuos entre si e em relação a rua. Desenvolvemos uma metodologia
para permitir o controle dos níveis de acessibilidade e densidade em áreas urbanas sob estudo, de modo
a examinarmos com mais precisão as variações na morfologia arquitetônica, e relacionar a distribuição
de tipos e características na geometria das implantações e fachadas à distribuição das variáveis sociais
7
Vinicius M. Netto, Universidade Federal Fluminense; Renato T. Saboya, Universidade Federal de Santa Catarina; Júlio C.
Vargas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Lucas Figueiredo, Universidade Federal da Paraíba. Veja Netto et al
(2012).
e microeconômicas em estudo. Analisamos 24 áreas na cidade do Rio de Janeiro, selecionadas
aleatoriamente, e levantamos 249 trechos de quarteirão e cerca de 3800 edifícios, dispostos em 3
conjuntos de amostra, cada um com um nível distinto de acessibilidade (entenda-se como acessibilidade
permitida pela rede de ruas e suas hierarquias mensuradas via medidas topológicas), baixa, média e alta.
Controlamos ainda as densidades nessas áreas (figura 4). Nossos achados são preocupantes.
Fig. 4 – Áreas aleatoriamente selecionadas no Rio de Janeiro, em três níveis de acessibilidade: alta (vermelha),
média (azul) e baixa (verde) (fonte: Netto et al, 2012).
Correlações em áreas de uma das faixas de acessibilidade analisadas
Lembrando que correlações baseadas no coeficiente de Pearson variam entre zero e -1 ou +1 (correlação
perfeita negativa ou positiva), verificamos que tipos arquitetônicos tendem a ter correlações consistentes
e expressivas com a presença – ou ausência – de pedestres, comércios e serviços. A correlação
encontrada em uma das faixas de acessibilidade (a de maior convergência entre padrões urbanos e
tempo de urbanização) entre edifícios do tipo (a) divisa e movimento pedestre foi de 0.327, e entre tipo
(a) e a presença de térreos com comércios ou serviços, fundamentais para a vitalidade social das ruas, de
0.422. Já a correlação entre o edifício tipo (b) torre e movimento pedestre é de -0.342; entre torres e
atividades de comércios ou serviços em térreos, -0.449 (todas as correlações com valor p=0.000),8
revertendo quase diametralmente o correlação achada com o tipo (a). Também dando suporte às
hipóteses definidas acima, o tipo (c) híbrido apresenta correlação de 0.094 com movimento pedestre,
sem relevância (valor p=0.347), 9 e 0.169 (valor p=0.086) com atividades comerciais, sugerindo uma
presença ligeiramente positiva associada à dinâmicas microeconômicas locais.
Investigamos ainda a relação entre diversidade de atividades medida por um índice de
distribuição de categorias (residencial, comércio, serviços e institucional) tanto em térreos quanto em
pavimentos superiores, e variáveis pedestres como movimento e presença de grupos estáticos no espaço
público da rua. A correlação entre diversidade de atividades em térreos e movimento pedestre é positiva
(0.336), assim como com grupos estáticos (0.510). A diversidade de atividades em pavimentos
superiores também é um fator que coincide com movimento pedestre (0.345) e, de modo mais marcante,
com a presença de grupos estáticos na rua (0.475; todas as correlações com valor p=0.000), dando
suporte a hipótese jacobiana da associação urbana entre diversidade de usos e vitalidade.
E quanto as relações entre diversidade de atividades e tipos arquitetônicos? Encontramos
correlações positivas de 0.428 (valor p=0.000) entre diversidade no térreo e o tipo (a) divisa; -0.456
(valor p=0.000) para o tipo (b) torre; e 0.171 (valor p=0.856) para o tipo (c) híbrido. Temos assim uma
nova reversão entre o comportamento dos tipos (a) e (b), com associação estatisticamente significativa
entre diversidade e tipos, apontando a redução drástica de diversidade para áreas de predominância do
tipo (b). A correlação entre diversidade de atividades em pavimentos superiores e tipos mantém essa
tendência: com o tipo (a) divisa é de 0.520 (valor p=0.000); com o tipo (b) de -0.549 (valor p=0.000);
com o tipo (c) de 0.179 (valor p=0.072). Os dados mostram uma conjunção marcante entre diferentes
arquiteturas, diversidade e apropriação das ruas, e reforçam a hipótese do papel benéfico do tipo divisa
para a vitalidade urbana.
Analisamos ainda as correlações entre variáveis socioeconômicas locais e outros aspectos
arquitetônicos mais detalhados, verificando coincidências significativas. A densidade de portas tem
fortes correlações com movimento pedestre (0.683), grupos estáticos (0.446), atividades comerciais
(0,610) e comércio ou serviços (0.577) e diversidade de atividades no térreo (0.408; todos com valor
p=0.000). A densidade de janelas também apresenta altas correlações com movimento pedestre (0.725),
grupos estáticos (0.511), atividades comerciais e serviços (0.524) e diversidade de atividades no térreo
(0.357; todos com valor p=0.000). Esses fatores de permeabilidade edifício-rua se mostram assim
bastante associados à vitalidade urbana.
8
O teste de significância estatística (o “valor p” de cada correlação) examina a probabilidade de um resultado observado se
repetir ou surgir por mera coincidência e estabelece o parâmetro de 0.05. Valores p iguais ou maiores que 0.05 não tem
significância estatística.
9
As correlações de fatores arquitetônicos e socioeconômicos com o tipo híbrido não tiveram significância estatística (os
valores p encontrados foram superiores a 0.05) em função de sua baixa presença nas 24 áreas examinadas.
Agora vejamos como eles se sobrepõem aos tipos arquitetônicos. A correlação da densidade de
portas com o tipo (a) divisa é expressiva, sendo de 0.551 (valor p=0.000); com o tipo (b) torre, -0.567
(valor p=0.000) e com o tipo (c) híbrido, 0.107 (valor p=0.287). Já entre densidade de janelas e tipos,
temos ligeira queda: (a) 0.285 (valor p=0.002), (b) -0.289 (valor p=0.002) e (c) 0.035 (valor p=0.778). A
combinação entre correlações entre variáveis socioeconômicas, fatores de fachada e tipos dados mostra
que o tipo contíguo (a) favorece a porosidade entre arquitetura e espaço público, e que essa porosidade é
associada positivamente com a presença de pedestres e atividades – em proporção inversa para o tipo (b)
torre.
Tal tendência é similar para a interface edifício-espaço público sob forma dos afastamentos
frontais e das bordas entre lote e passeio. As correlações entre muros e movimento pedestre (-0.477) e
muros e grupos estáticos na rua (-0.506) são bastante negativas, seguidas por correlações entre muros e
atividades comerciais e serviços de térreo (-0.496) e diversidade (-0.449; todos com valor p=0.000).
Apresentam um menor grau entre grades e movimento pedestre (-0.196, valor p=0.050) e grades e
grupos estáticos na rua (-0.339); e grades e atividades comerciais e serviços de térreo (-0.199, valor
p=0.046) e diversidade (0.078, valor p=0.435). Já as correlações entre lotes abertos, movimento
pedestre e grupos estáticos são fortemente positivas, 0.627 e 0.589 respectivamente; sendo semelhantes
com atividades comerciais e serviços de térreo (0.650) e diversidade (0.410; todos com valor p=0.000).
Essas observações reforçam a impressão de senso comum de que muros e grades impactam
negativamente o uso pedestre do espaço público e as atividades comerciais ao nível do térreo. Mas
vejamos agora as correlaçoes muros e tipos: (a) -0.428 (valor p=0.000), (b) 0.423 (valor p=0.000) e (c)
0.012 (valor p=0.901); entre grades e tipos: (a) 0.227 (valor p=0.022), (b) -0.207 (valor p=0.037) e (c) 0.099 (valor p=0.324); e finalmente entre lotes abertos e tipos: (a) 0.286 (valor p=0.004), (b) -0.295
(valor p=0.003), (c) 0.055 (valor p=0.583). Esses itens combinados mostram que a forte associação
entre recuos e muros e o tipo (b) torre, hoje o preferido pelo mercado imobiliário – fatores de
permeabilidade entre arquitetura e rua que terminam por apresentar estatisticamente uma relação
problemática com aspectos sociais e econômicas locais.
Considerando a complexidade e número de fatores urbanos que interferem na geração dos
fenômenos socioeconômicas locais analisados, as correlações entre este pequeno conjunto de fatores
espaciais par a par com os fenômenos da vitalidade urbana parecem bastante expressivas. Outras faixas
de acessibilidade tem resultados com variações eventualmente intrigantes, seguindo contudo a tendência
dos sinais positivos e negativos encontrada acima, ainda que geralmente em menor intensidade.10
Considerando a complexidade de fatores urbanos envolvidos na produção e reprodução de dinâmicas
10
Os resultados mais detalhados (investigamos cerca de 30 variáveis arquitetônicas e urbanas e 10 variáveis
socioeconômicas) acabam de ser publicados e apresentados em evento (8th International Symposium of Space Syntax). O
artigo está disponível em http://urbanismo.arq.br/metropolis/author/vininetto/
sociais e microeconômicas, essas correlações são altamente relevantes. Gravemente, o estudo empírico
nos mostra que os dois tipos arquitetônicos mais presentes em nossas cidades aparecem associados de
modo inverso e significativo com a vitalidade urbana
Uma teoria probabilística dos efeitos sociais da arquitetura
Esses dados mostram a conjunção consistente entre tipos arquitetônicos diferenciados e fenômenos
socioeconômicos locais. Mas essa conjunção só faz sentido se linhas de causalidade puderem ser
estabelecidas. Esse é na verdade um problema clássico, um tema realmente controverso. Naturalmente,
não terei espaço aqui para um revisão desse debate em ciências e na filosofia ou para a exaustão da
questão em si, mas é preciso endereçar a natureza das coincidências enumeradas acima, dado que
mesmo altas correlações não são comprovação de relação causal. Não há como afirmar que uma
correlação alta entre A e B significa que A causa B ou que há efeitos de A sobre B, mas que A e B são
observados conjuntamente em certo contexto. Esse é também o cerne do argumento de Hume (1978),
filósofo e crítico original da causalidade, ainda no séc. XVIII. Hume questiona a necessidade de uma
relação particular entre dois eventos apresentar um como consequência inevitável de outro, como uma
ligação entre causa e efeito. Aponta que causalidades são impressões de sequência que psicologicamente
esperamos, dado que mesmo se A estiver sempre sido seguido de B, não podemos a induzir que o será
em ocasiões futuras. Na causação, não haveria relação identificável que não a de conjunção ou rápida
sucessão, tampouco a indução por simples enumeração seria uma forma válida de argumento. Bertrand
Russell (1996) resume ironicamente a teoria de Hume do seguinte modo: a proposição “A causa B”
significa na verdade “a impressão de A causa a ideia de B”.
A negação da causalidade a partir de Hume envolve a rejeição de uma regularidade absoluta na
sequência entre eventos. Entretanto, a agência humana pode envolver causalidades independentemente
de lei causal (Davidson, 1980). O argumento humeano de que não se pode afirmar que “A causa B” é
essencialmente correto em termos lógicos. Mas sugiro que ele demanda considerações no exame da
forma de existência dos efeitos da morfologia arquitetônica – considerações que tornam o problema
mais complexo e se beneficiarão da teoria da probabilidade. O problema de encontrar relações de causa
e efeito em processos urbanos, como a relação geral entre espaço e prática, inicia pela dificuldade de
reconhecimento dos padrões de sucessão entre causa e efeito devido a heterogeneidade de
circunstâncias nas quais fenômenos emergem. Na verdade, a ciência estatística opera o tempo todo –
com tremendo sucesso – no espaço das heterogeneidades e da “impossibilidade lógica” da indução
temporal. O acúmulo de conjunções é aceito como probabilidade de que a conjunção tenda a ocorrer em
uma próxima situação. É de fato impossível saber se o sol nascerá amanhã, mas há alta probabilidade de
que esse seja o caso. Métodos tem sido desenvolvidos para representar sistemas de relacionamentos e
inferir relações causais em dados observados. Esses métodos tem a vantagem de proteger a busca de
relações de determinação – uma teoria da causalidade que não pressupõe determinismo ou regularidade
na relação causa-efeito, como veremos. Woodward (2003) sustenta que uma relação causal é uma
relação “que gera diferença” entre variáveis: a intensidade de uma variável faz diferença para a
intensidade de outra. A definição mais contemporânea é a de que causas alteram as probabilidades de
efeitos. Relações causais são normalmente entendidas como aspectos objetivos da realidade. De acordo,
abordagens probabilísticas interpretam probabilidades objetivamente (Hitchcock, 2011):
C pode aumentar a probabilidade de E mesmo se as instâncias de C não forem invariavelmente
seguidas de E. Se C é uma causa de E, então C faz diferença na probabilidade de E.
Análise causal da morfologia arquitetônica
A análise da probabilidade de efeitos é baseada na frequência de coincidências ou conjunções e na
propensidade de que novas coincidências venham a acontecer em novas situações. De um número
desconhecido de fatores, um conjunto pequeno aparece em correlações de modo consistente em
frequência e intensidade. A análise causal pode mostrar a propensidade do fenômeno se repetir no
contexto. Há ainda a necessidade de verificar o comportamento dessas relações em diferentes contextos.
Vejamos alguns tipos de estrutura causal que encontramos no estudo dos efeitos sociais da morfologia
arquitetônica:
(i)
Vimos que tanto os tipos quanto as características geométricas do edifício coincidem
consistentemente com variáveis sociais estudadas.
Uma estrutura como essa é definida em termos de Reichenbach (1956): C é uma causa intermediária
entre A e E.
Podemos conhecer mais da extensão da influência de A sobre E se controlarmos estatisticamente os
componentes que são intermediários causais C e estiverem (ou não estiverem) no caminho causal entre
A e E.
(ii) Contudo, nosso tema tem complexidades. Um efeito pode ter mais de uma causa – digamos, o
movimento pedestre pode ser afetado tanto por acessibilidade quanto por diferenças na morfologia
arquitetônica (esquema 1). Ainda, uma causa (um tipo ou característica do edifício) pode ter efeito sobre
um evento Ei e este pode ter efeito sobre outro evento Eii. Fenômenos considerados como efeitos em um
certo caminho causal podem ter efeitos sobre outras efeitos (esquema 2). Ainda, uma causa com mais de
um efeito e efeitos com mais de uma causa potem ter efeitos entre si. É o caso de sistemas altamente
ligados internamente, como o sistema urbano (esquema 3).
(1) Fatores causais X (digamos, morfologia arquitetônica) e Y (acessibilidade) tem efeitos simultâneos sobre Z
(atividade comercial). (2) X (o tipo divisa) tem efeitos simultâneos sobre Y (movimento pedestre) e Z (atividade
comercial), que também afeta Y; X afeta Y por múltiplos caminhos. O comportamento do tipo divisa pode ser
capturado como X nesses dois esquemas, tendo efeitos reconhecíveis tanto a partir de si quanto por suas
características. (3) Fatores causais C e D afetam independentemente os mesmos fatores A e B, que também se
afetam entre si.
(ii) A condição A–C–E tem desdobramentos. O tipo é um arranjo de características (fachadas de
tamanhos e relações de proximidade com outras fachadas, distâncias ao passeio, etc.). Como arranjo,
tem pouca precisão porque outro tipo inclui muitos dos mesmos elementos em proporções distintas (por
exemplo, variação do número de janelas em função de largura de fachada, por sua vez função do
afastamento lateral e de tamanho do lote). Considerando as bordas borradas por componentes em
comum entre os tipos. Há casos onde correlações de A e B são consistentes, mas A e B não são causa
um do outro, tendo uma causa em comum: a densidade de janelas e o afastamento frontal do lote no
estudo acima estão nessa situação (tem correlação -0.545 entre si), mas são variáveis sem influência
entre si, ainda que ambas tenham correlações significativas com tipos arquitetônicos e com variáveis
como movimento pedestre. Apesar de haver com frequência uma causa comum para sua correlação, ela
não é única. Cada um dos fatores C pode ter isoladamente correlações positivas com E (bem como com
A). Podemos identificar precisamente qual o grau de presença e influência cada componente C tem
sobre variáveis dependentes E, bem como o quanto elas fazem parte das causas A (no presente caso, os
tipos). As correlações singulares por componentes e seu arranjo oferecem mais precisao ao
reconhecimento dos componentes da vitalidade urbana, como no esquema abaixo.
Ou seu oposto. Eells (1991) define uma taxonomia que inclui tanto a possibilidade de C ser uma causa
positiva de E (como o tipo divisa em nosso estudo), ser neutra (como tende a ser o tipo híbrido), ou C
ser uma causa negativa: a possibilidade de C inibir E em um contexto (como o tipo torre). É o que
temos em nossos dados, com as correlações consistentemente negativas entre tipo torre e variáveis
sociais, e positivas com componentes C como muros e afastamentos. A probabilidade dos efeitos
implica em conhecermos tanto as causas positivas quanto as negativas.
Metodologicamente, é necessário manter fixos todos os fatores que podem ser relevantes de modo
causal para E, de modo a isolar os componentes C com potencial relevância causal. É o que o presente
estudo fez ao manter a acessibilidade em um mesmo nível, ou ao desconsiderar a cor ou a aparência
estética do edifício como fator causal para variáveis de vitalidade urbana.
(iii) A relação causal deve ser entendida como elementos em condições tais que conjuntamente são
suficientes para gerar efeitos (Mill, 2002). Mackie (1974) propõe a chamada condição INUS: insufficient
but necessary parts of unnecessary but sufficient conditions ou “partes insuficientes mas necessárias de
condições não-necessárias mas suficientes”. Essa condição se adequa ao problema urbano – no qual não
temos total conhecimento do número de componentes potencialmente ativos na geração de efeitos. O
modo mais cuidadoso de estabelecer relações de efeitos é o de afirmar é “C causa E dentro de condições
x e y” incluindo aí a possibilidade de causas e efeitos desconhecidos e encadeamentos não-lineares,
condições que podem eventualmente reforçar ou aplacar o efeito causal. Observações de causalidade
geral devem ser relativizados para uma população definida. Uma população heterogênea incluirá
diferentes condições contextuais (Eells, 1991): teremos casos onde C é uma causa mista de E relativa a
uma população P, podendo ser uma causa negativa, positiva ou neutra para E em subpopulações de P
(Hitchcock, 2011). No presente estudo, os efeitos da morfologia arquitetônica devem ser verificados em
diferentes níveis de acessibilidade, diferentes composições e predominâncias de tipos arquitetônicos e
diferentes cidades. Há argumentos que propõe que uma causa deva aumentar a probabilidade de seu
efeito em qualquer contexto (Eells, 1991; Cartwright, 2007).
(iv) O argumento humeano entende a relação causa-efeito pela aparência de uma sequência temporal.
Causalidades são entendidas apenas temporalmente como conjunções e não materialmente como
fenômenos implicados em sua própria manifestação. Menzies (1989) enfatiza os processos contínuos
ligando causas e efeitos como relação intrínseca:
Se C causa E, essa relação se mantém em função das propriedades intrínsecas de C e E e dos outros
eventos envolvidos no seu contexto espaço-temporal.
A questão do que essa relação intrínseca consiste deve ser respondida empiricamente. Entendo as
propriedades intrínsecas como centrais para o problema das relações entre espaço e prática social em
geral, e morfologia arquitetônica e dinâmicas socioeconômicas locais em particular. No caso da cidade,
os processos pelos quais certo fenômeno contem a condição material para a ocorrência de outros
fenômenos, mesmo que estes tenham natureza distinta. Fenômenos urbanos tipicamente envolvem a
transposição entre diferentes materialidades e a relação entre fenômenos de naturezas distintas (como,
em geral, entre ações e espaços). Como esse seria o caso? Como ocorre a transposição, e qual sua
condição material? A ação humana, inerentemente corporal, não ocorre em um éter livre de fricção e,
portanto, esforço, e depende da superação dessa limitação ou confronto último entre corpo e esforço do
movimento no espaço para emergir. Há implicações materiais entre condições espaciais e a emergência
da ação humana em direções e modos diferenciados. Causalidades tomam a forma dessas implicações.
Proponho um número de implicações materiais fundamentais entre prática e espaço como
condições verdadeiramente ontológicas: (1) o espaço tem extensão, assim como nossos corpos; (2) a
interação entre dois corpos precisa superar a distância entre si; (3) o espaço construído é uma forma de
generalizar a proximidade entre corpos; (4) a densidade construída é, portanto, um potencializador do
encontro e, assim, da interação. O status causal dessas implicações pode ser reforçado de modo
contrafatual: não houvesse proximidade para colocar corpos em co-presença, interações não
aconteceriam; não houvesse densidade construída suficiente para generalizar a proximidade entre
corpos, encontros e interações não aconteceriam com intensidade. Outras condições iguais, quanto
maior a densidade do espaço construído, mais encontros; quanto menor a densidade urbana, menor o
potencial probabilístico do encontro. Assim, se a teoria da probabilidade está correta ao afirmar que:
C causa E quando C aumenta a probabilidade de E,
as densidades urbanas – assim como outros componentes da forma urbana e, portanto, arquitetônica –
podem ser entendidas como fatores causais do encontro e interação ao aumentar sua probabilidade. São
um modo de superar a fricção fundamental da distância e extensão e moldar a aderência do espaço
sobre a prática para que a interação ocorra. Distância e a proximidade geram condições para a
interação, que pode se intensificar ou reduzir em função delas. Essa é a “linha de causalidade” material
mais profunda ou original, basilar para as conjunções e consistências que encontramos no estudo
empírico das relações entre morfologia arquitetônica e dinâmicas sociais locais. Há uma relação
ontológica de efeitos mútuos entre espaço e prática. Essa foi historicamente uma condição
incontornável, até que meios tecnológicos permitiram a adição de formas de comunicação transpacial
(por sua vez produzidas historicamente dentro das condições espaciais e com ela entreleçadas).11
Veremos abaixo que a mesma tensão material está replicada em escalas menores, na relação entre
edifícios e entre edifícios e corpos.
Temos, para tanto, uma nova implicação: (5) rigidez, o fato de que a rigidez do espaço não
pode ser ignorada, mas moldada para que nossa ação conjunta possa emergir. A extensão e a rigidez
11
Veja o capítulo “Entre espaços urbanos e digitais, ou o desdobramento da prática”, neste livro.
podem ser superadas na forma de estruturas espaciais de acesso entre formas construídas moldadas para
aproximar e permitir a ação conjunta. A linha de causalidade original que atravessa a prática e a
experiência humana é assim dobrada pela ação humana sob a forma de complexos espaciais que
assumem a forma de cidades, mas ela não se replica da mesma forma quando espacialidade e prática
ganham complexidade. O moldar das condições de extensão e rigidez fundamentais do espaço na forma
de estruturas urbanas adiciona novas possibilidades à praticas mais complexas, que exponenciam as
relações possíveis tanto baseadas em causalidades quanto descoladas da aderência do espaço, em
relações livres da influência do espaço. Outras possibilidades de relação entre prática e espaço se
desdobram de modo cada vez menos linear, sobretudo quando se tornam mais complexos ao se
organizarem na forma de espaço urbano e sistemas de práticas, e ganham em heterogeneidades – o
aumento da “heterogeneidade de circunstâncias” que impedirá relações regulares, simples e
deterministas entre causa e efeito. Essas mesmas estruturas permitem alargar as possibilidades da prática
e terminam por gerar diversidade nas relações entre prática e espaços – ainda baseadas em efeitos, mas
abraçando também a contingência. Permitirão o convívio de causalidade e contingência em ações livres
de determinação material.
Cidades são fenômenos onde frequentemente essas condições ganham complexidade. Mas a
complexidade da emergência da prática tem como cerne a relação incontornável entre corpo e espaço.
Essas considerações ainda levam a entendimento particular de “sistemas” e da cidade como sistema de
atos e espaços. Cidades são sistemas de grande número de elementos de materialidades distintas
interagindo no tempo e integrados pela difusão de efeitos mútuos ou não entre componentes ou partes.
Seus componentes têm atuação tanto autônoma quanto dependente, mas essa atuação tem a propriedade
de alterar seu meio, causar mudanças sob forma de efeitos sobre outros componentes no tempo por meio
do espaço e formas de transmissão de informação. A difusão desses efeitos mútuos por meio do espaço
é o que garante as amarras de um sistema, a integração interna de um fenômeno complexo – as tramas
de efeitos dos componentes entre si, como entre estruturas espaciais e as voláteis estruturas elusivas da
ação conjunta. Quanto mais complexo o sistema em seu número de componentes, interações e diferentes
materialidades, mais ele será dependente da difusão interna de efeitos para sua integração.
O risco do determinismo arquitetônico
Mas afinal qual é o nível de causalidade entre objeto arquitetônico e o comportamento social no espaço?
Onde ela se manifesta? “O problema é: a arquitetura determina o quê? Como? E em que condições?
Certamente não determina como os modernistas clássicos o pensavam. Mas talvez a tarefa central deva
ser esta: mostrar a real dimensão da determinação arquitetônica”. 12 O problema tem sido como
12
Holanda (em comunicação pessoal).
descrever tanto a ação do social sobre a forma do edifício, quanto a ação do edifício sobre a sociedade13.
Hillier afirma que o erro é assumir que edifícios podem agir mecanicamente sobre o comportamento das
pessoas. “Como pode um objeto material como um edifício se impor diretamente sobre o
comportamento humano?” A ideia de um determinismo espacial “nos cega para o mais importante fato
sobre o ambiente construído: que o espaço não é um pano de fundo para o comportamento social – ele é
em si comportamento social. Antes de ser experienciado pelo sujeito, ele é na sua própria espacialidade
carregado de padrões que refletem a sua origem nos comportamentos que o criou”.14 A ênfase nos
efeitos sociais de configurações arquitetônicas e urbanas pode ser interpretada como uma busca por
determinação e a tentação do determinismo, a existência de relações absolutas de causa-efeito entre
forma e resultado funcional ou social. Quero afirmar, no entanto, que ela faz sentido sobretudo contra a
ideia de determinismo. Pessoas que argumentam contra o determinismo em arquitetura têm uma posição
em princípio cuidadosa. Contudo, esse cuidado não pode implicar na suspensão dos efeitos
diferenciados que arquiteturas diferenciadas têm. Façamos um breve thought experiment, imaginando
um mundo onde coisas diferentes, ao terem suspensas as relações diferenciadas e particulares com seus
efeitos, passariam ou a ter efeitos iguais ou a ter efeitos inteiramente aleatórios. Vejamos o primeiro
caso.
a) Se coisas diferentes tivessem efeitos iguais, nossa experiência seria a de um mundo
homogêneo, sem diferenciação interna ou fluxos de eventos reconhecíveis. As diferenças não
importariam e perderiam seu sentido. Em termos urbanos, ambientes construídos inteiramente diferentes
(digamos, uma área de condomínios verticais, um bairro de forma tradicional, ou um assentamento
precário) teriam os mesmos níveis e formas de apropriação de seus espaços, o que é claramente
contrário a nossa experiência.
b) Se coisas diferentes tivessem efeitos aleatórios e imprevisíveis, teríamos um mundo onde
eventos não poderiam ser encadeados de modo inteligível, tamanha a multiplicidade de encadeamentos.
Nossas ações teriam qualquer consequência, o que seria impraticável – não poderíamos prever
consequências de nossos atos e, portanto, a complementaridade de ações que permitem uma vida em
sociedade seria inviável. Em termos urbanos, uma relação aleatória entre arquitetura e seus efeitos
implicaria em ambientes construídos igualmente ininteligíveis em sua relação entre forma, estrutura e
dinâmicas. Internamente ao edifício, implicaria em suspender a própria possibilidade de uma relação
entre forma e atividade – isto é, a possibilidade de uma configuração ser mais apropriada que outra para
o desenvolvimento de ações complementares. Se não pudéssemos de algum modo antecipar ao menos
alguns dos efeitos do objeto construído, a moldagem do espaço na forma de arquitetura seria
desnecessária. O próprio papel social do arquiteto surge em função da consciência de uma implicação
13
14
Forty (2000).
Hillier (1996:378-388).
material profunda entre edifício e seus efeitos, passível de ser até certo ponto conhecida (intuitivamente
ou teoricamente) pelo arquiteto. Essa condição atravessa escalas da espacialidade e da prática.
c) O fato de que as duas situações anteriores não são o caso, dado que coisas diferentes não tem
efeitos iguais nem aleatórios, implica que seria improvável que as sequências particulares observadas
em fenômenos e processos, urbanos incluídos, apresentassem as mesmas conjunções no tempo e
espaço, mesmo que de modo não linear e variando intensidades conforme as heterogeneidades das
situações. Contra o argumento humeano, logicamente cuidadoso mas empiricamente irrealista, a
existência de combinações particulares entre eventos no tempo não poderia ser atribuída a chance.
Combinações recursivas não podem ser contingenciais, dado que seria altamente improvável que
eventos se sucedessem repetidamente na mesma sequência por mera chance. Coincidências dessa
natureza são probabilisticamente extrapoláveis mesmo no tempo, isto é, passíveis de indução sobre
futuros casos, condições permanecendo iguais (por exemplo, a maçã cairá em direção ao solo ao ser
solta no ar, se alguma modificação no campo gravitacional da Terra não ocorrer). Dada a
improbabilidade da coincidência, somos portanto forçados a retornar as razões (materiais) para tais
conjunções consistentes no tempo e no espaço. No caso das relações socioespaciais e urbanas, há
implicações materiais profundas, como discutido acima.
d) Assim, olhando sob qualquer desses aspectos, um mundo sem quaisquer linhas de relações de
causa-efeito, contrapondo argumentos humeanos e pós-estruturalistas, seria impossível.
Reconhecendo os cuidados do argumento anti-determinismo, devemos rejeitar a tese de
implicações absolutas entre causa e efeito. Processos têm suas diferenças assentadas em condições
contingenciais internas, tanto por contextos e meios distintos quanto por implicações improváveis de
ações, incluindo acidentes no seu curso. Influências e efeitos envolvem condicionamentos em processos
encadeados mas abertos, que admitem e produzem variação em fatores externos (decorrentes de eventos
e processos paralelos e eventualmente incidentes) e internos (variações estruturais talvez decorrentes da
ação ou estímulos externos, talvez envolvendo mutação interna) – novamente, um convívio entre
implicação e contingência, necessidade material e acaso. A morfologia arquitetônica é produzida em
situações sujeitas à mudança, o que traz complexidade às relações sócio-espaciais que constituem: ela é
colhida em emaranhados dos quais reconhecemos apenas parte. Existe um nível de causalidade e ao
mesmo tempo de indeterminação – a possibilidade de haver sempre outras faces para um mesmo
fenômeno. Devemos entender sobretudo o primeiro grupo de efeitos, para que acertemos mais na
passagem entre intervenções no espaço urbano e seus impactos.
Há sem dúvida uma tensão muito sutil e frágil aqui: uma tensão sócio-espacial manifesta entre
corpo e arquitetura.
A tensão entre corpo e espacialidade
A atenção aos componentes do espaço urbano e seu papel na vitalidade das práticas na esfera pública da
rua leva ainda ao modo como o espaço atrai nossos atos e intenções de atos através desse meio
fundamental, inescapável: o próprio corpo. Uma das questões aqui é entender como o corpo é
tensionado pelo espaço, e é tensionado diferentemente por diferentes espacialidades. Um conceito com
potencial nesse sentido é de Bernard Tschumi (1996). Tschumi, provavelmente inspirado em Jacques
Derrida, afirma a arquitetura e o espaço como “violência”. As bordas e superfícies construídas da
arquitetura tornam-se barreiras ao corpo livre, em movimento. Contudo, estabelecer barreiras ao corpo
não é, naturalmente, tudo o que o espaço faz. Vejamos a relação entre corpo e arquitetura para além dos
corpos impedidos pelo espaço, mas tensionados pelas superfícies edificadas, moldadas em canais
através dos quais o corpo se move. O corpo é, antes, impelido por essas superfícies e pelo que elas
expressam ou escondem. O movimento dentro dos canais moldados pelas superfícies arquitetônicas
pode ser sempre diferente: pode sofrer diferentes formas de tensão de acordo com a espacialidade do
contexto. Quando as superfícies mudam, a tensão entre fachadas e corpos parece mudar. Essa tensão
pode ser produzida constantemente, quando superfícies contínuas estão próximas ao corpo, limitando
seu movimento – mas também o impelindo em seu percurso. O movimento pode ainda ser estruturado
em divergência, disperso por superfícies descontínuas, não mais constantes, em falhas, como em
quarteirões erodidos, interrompidos. Espacialidades interrompidas para o corpo em movimento trazem
dispersão das tensões entre fachadas e corpos. A tensão pode ser menos ou mais alta em áreas onde há
menor ou maior densidade arquitetônica, continuidade de fachadas animadas e atividades.
Se o espaço tensiona corpos, essa tensão encontra diferenças. Espaços urbanos projetam seus
conteúdos e significados sociais sobre o sujeito através do seu corpo. As superfícies arquitetônicas
projetam sobre o sujeito significados e referências potenciais para sua prática, oferecendo ou
restringindo condições para sua realização. O significado, que nos prende ou liga aos espaços das nossas
práticas, é ao mesmo tempo a atração inicial para o movimento do corpo e a conclusão do movimento.
Ela o precede e o completa. Entre esses momentos, a tensão entre corpo e espaço expressa e concretiza a
inerente relacionalidade do ato. Aqui encontramos uma ligação pouco visível entre sujeito, cognição (o
reconhecimento dos significados e das referências entre atos e espaços) e o corpo – pontes entre o que se
chamava, tradicionalmente, res extensa, res mentales, res corporales. Esse aspecto da relação sócioespacial inclui a ligação de três aspectos ontológicos, corpo-cognição-espaço, e mais especificamente ao
modo como as conexões entre ato e lugar são materializadas no nosso percorrer do espaço e na relação
entre corpo e a espacialidade desses percursos, mediada sensorialmente e cognitivamente.
Mas como o corpo experiencia essas ligações também cognitivas? Como tensões no tecido
socioespacial, drenando referências, movimentos, corpos, atos? Essas são observações certamente
incipientes sobre o corpo movendo e ocupando espaço; dos graus de convergência produzidos pelo
espaço sobre o corpo, e da espacialidade dos corpos ocupando ou movendo, projetada na estrutura do
espaço em si.
Ao invés de uma conclusão: em direção ao segundo nível de implicações da arquitetura
No esquema que define a hipótese de fundo para o presente trabalho, mostrei o problema da relação
entre morfologia arquitetênica e dinâmicas socioeconômicas locais como apresentando três níveis.
Destes, o presente trabalho e o estudo empírico mais sistemático (Netto et al, 2012) tratam apenas dos
dois primeiros.
rareficação de padrões da forma arquitetônica e urbana
dissolução no uso social das ruas
(apropriação pedestre e atividade microeconômica; presença de comércios e serviços)
consequências potencialmente negativas para as cidades
(dependência veicular, segregação, insegurança)
Estudos são necessários para passarmos para o terceiro aspecto. Podemos apenas antecipar aqui
hipóteses complementares nessa passagem. Estendendo logicamente a implicação material entre padrão
morfológico e fricções sobre a prática, cidades onde tipos arquitetônicos com recuos laterais e térreos
privados e murados são reproduzidos sem restrição tenderiam a limitar a quantidade de serviços
disponíveis nos térreos, reduzindo a oferta, por extensão, a variedade de atividades que precisamos em
nosso dia-a-dia, aumentando distâncias entre edificações e entre atividades e induzindo a busca de
serviços em localizações afastadas, impondo assim percursos mais longos e mais adequados ao veículo
privado ou coletivo, finalmente reduzindo a apropriação local desses espaços. Ao induzir o uso do
automóvel, tenderiam a aumentar seus efeitos colaterais: aumento da dependência veicular, tempos de
deslocamento, congestionamentos, consumo de combustíveis não-renováveis e emissão de gases
poluentes. Esses efeitos tem sido investigados na literatura, ainda que sem uma associação explícita com
o desempenho do tipo arquitetônico.15
Entretanto, os desdobramentos sistêmicos e em escalas agregadas dos efeitos de padrões
urbanos não se encerram nesses graves aspectos. Eles podem ter sérias relações também para as relações
entre arquitetura e segurança pública. Talvez o mais grave efeito colateral (certamente o que mais
tememos em nossas cidades) seja o impacto desses tipos sobre a segurança e a ocorrência de crimes em
nossas ruas. Vimos que a densidade arquitetônica e a presença de térreos comerciais contribuem para
intensidade de uso pedestre do espaço da rua. Temos estudos que demonstram a relação entre espaço e
crime e apontam para uma importante dimensão urbana na oportunidade, na incidência, e na distribuição
do crime.16 O tipo dos recuos e térreos privados, quando reproduzida, tende a eliminar as razões para o
movimento e ao reduzir as densidades e continuidades de térreo e esvaziar nossas ruas. E exatamente
aqui está o problema: o melhor meio de aumentar a segurança é manter as ruas com pedestres.
Pedestres, ao utilizarem os espaços das ruas, aumentam a vigilância mútua e o grau de controle sobre o
espaço, o que beneficia a todos. De fato, certas pesquisas têm mostrado que crimes violentos tendem a
ocorrer longe dos olhos das pessoas. Aqui, o estranho não é o inimigo: ruas movimentadas são a melhor
defesa contra o crime.17
Os edifícios com recuos, grades, guaritas e térreos privados consagrada no mercado da
construção dos anos 1990 em diante consistem de soluções arquitetônicas verticalizadas, implicando
redução de custos relativos para o construtor enquanto aumenta progressivamente o valor de venda das
unidades em andares mais altos. O tipo ainda parece responder aos anseios das classes média e alta por
mais segurança. A segurança no espaço privado é gerada pela separação do espaço exterior aos espaços
abertos em torno do térreo, cercados frequentemente por grades ou muros. Esse rompimento com o
espaço externo produz, entretanto, impactos sobre a segurança das ruas em volta. Vimos nos resultados
apresentados acima que muros cegos e redução de portas e permeabilidades, térreos sem atividades
abertas e fachadas distantes do passeio, associados a esses tipos e a condomínios fechados, tendem a
contribuir para esvaziar as ruas ao seu redor. A segurança interna é parte da causa da insegurança
externa nos bairros onde esses tipos tornam-se predominantes. Um tipo de arquitetura exibida em
folders e tornada o objeto da publicidade, que explora exatamente o medo, a necessidade de segurança e
de diferenciação e segregação social, pode contribuir para o aumento dos riscos de incidência de crime
nos espaços públicos. Presos na irracionalidade do medo, não entendemos que a impressão de segurança
dos muros vendida de modo falacioso e equivocado tem grave efeito reverso: a geração de cidades mais
inseguras.
15
Para uma sumarização de estudos recentes, veja Chen et al (2008).
Veja recentes estudos na correlação entre estruturas urbanas e a distribuição do crime em Hillier e Sahbaz (2005).
17
Densidade residencial tem correlação negativa com incidência de crimes. Diferentemente, crimes sem violência (como roubo
de carteiras, etc.) tendem a ocorrem em ruas movimentadas (Hillier e Sahbaz, 2005).
16
Esses efeitos podem ter relação – como efeitos multiplicadores – do tipo arquitetônico em si.
Mas qual a combinação e quantidade de tipos para gerar a intensidade de usos e de movimento nas ruas?
Nem sempre alinhamentos laterais e junto ao passeio são coisas possíveis ou generalizáveis.18 Que
outras soluções mistas ofereceriam os efeitos sociais desejados? Esse é uma questão ainda difícil de
responder – precisamos de mais estudos sistemáticos sobre essas configurações. Proponho as seguintes
características como ativas em dimensões morfológicas mais amplas – elementos arquitetônicos que, a
partir de observações empíricas, podem ser considerados como elementos da vitalidade de nossos
espaços e intensidade de interação social e troca econômica:
a. A densidade arquitetônica, função de padrões de crescimento e localização.
b. As características de implantação e de fachadas, dependente da morfologia dos recuos
laterais e frontais, e dos usos de térreo menos ou mais privados ou públicos.
c. As atividades nos térreos (interface entre arquitetura e espaço público da rua), e a
diversidade de atividades que tende a ocorrer com densidade e tipos adequados.
d. A relação entre corpo e arquitetura para além dos corpos meramente impedidos pelo
espaço, mas tensionados pelas superfícies edificadas, moldadas em canais através dos
quais o corpo se move.
e. O entendimento desses fatores como atrelados a processos urbanos sistêmicos, de
natureza mais global – como expressões e como vetores de novos impactos sobre
aqueles processos, tais como a produção das densidades e a própria acessibilidade intraurbana.
Efeitos da arquitetura voltam a repercutir, como causas, na vida social. Eles não podem ser percebidos
em casos isolados – somente quando parte de conjuntos. Assim como os danos de uma indústria
poluente ao sistema ecológico só são percebidos ao longo do tempo, a predominância de tipos
arquitetônicos que renunciam a interface com o espaço público da rua e o pedestre, aparentemente sem
qualquer repercussão, também têm efeitos sistêmicos de escala – ainda que ignoremos isso.
Apresentei neste capítulo elementos de uma teoria para um problema infinitamente
experimentado e bem-conhecido, mas cuja condição de existência é absolutamente não-trivial – um
problema capturado como relações materiais improváveis entre prática e espaço na forma de
causalidades abertas, não-lineares e complexas. Diferentemente de abordagens sócio-espaciais comuns
em arquitetura e urbanismo, onde a própria abordagem já define as relações entre componentes e
assume suas implicações reais e resultados, pré-interpretados implicitamente, essa teoria estabelece seu
18
Romulo Krafta, em comunicação pessoal.
campo objetivo e implicações e abre seus pressupostos à possibilidade do erro ao confrontar seu
problema empiricamente. A possibilidade de efeitos sociais da arquitetura parece evidente nessas
observações. Mesmo se a relação de probabilidade causal entre tipos e aspectos sociais não pudesse ser
mostrada, as conjunções analisadas capturam situações de diluição espacial que demandam atenção
urgente na prática da arquitetura e do planejamento urbano, dada a fixação do mercado imobiliário no
tipo torre, associado à diluição da vida social e microeconômica nos seus espaços públicos. Os danos
estão em progresso – danos para os quais temos fechado os olhos. Não estamos mais falando de
impressões, opiniões ou meras hipóteses.19
19
Agradecimentos a Frederico de Holanda, Romulo Krafta e Júlio Celso Vargas pelos comentários em versões anteriores deste
texto, e a Fernando Duro por nossas discussões sobre determinismo arquitetônico e morfogênese. Imprecisões e equívocos são
responsabilidade do autor.
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Os efeitos sociais da arquitetura - Netto