UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS
MESTRADO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS
SANDRO LUCKMANN
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NA TERRA INDÍGENA GUARITA
Um olhar sobre a trajetória missionária indigenista da IECLB e COMIN
Ijuí, Rio Grande do Sul
2011
SANDRO LUCKMANN
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NA TERRA INDÍGENA GUARITA
Um olhar sobre a trajetória missionária indigenista da IECLB e COMIN
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Educação nas
Ciências, da Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul –
UMIJUI, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Educação nas Ciências.
Orientador: Walter Frantz
Ijuí, Rio Grande do Sul
2011
DEDICATÓRIA
Dedicado às pessoas que, de diversas formas,
participaram do fazer a história aqui abordada.
Às pessoas que contribuíram no fazer desta
investigação e dissertação.
Às pessoas próximas e nem tão próximas que
contribuíram e possibilitaram o fazer-se
pesquisador e parceiro de reflexão.
Dedicatória especial (em memória) ao
professor kaingang Natalino Góg Crespo
(25.12.1961 - 01.03.2011), que completaria
50 anos de vida neste ano. Uma vida dedicada
à educação escolar concebida a partir da
realidade e cultura kaingang.
AGRADECIMENTO
Agradecimento às muitas pessoas que
tornaram este momento possível. Desde
muito tempo, antes mesmo de iniciar o tempo
de pesquisa. Das diferentes etnias. Dos
diferentes lugares, nos continentes sulamericano, europeu e asiático. Lugares e
pessoas com quem se experimentou e
compartilhou
reflexões,
momentos
e
experiências de vida. Foram trilhas,
caminhos, morros, planícies, terra, mar, ar,
portas, janelas, malocas e casas que mudaram
e mudam a nossa visão do mundo.
Agradecimento às instituições Ecumenical
Scholarship Programe/Diakonisches Werk der
Evangelischen Kirche in Deutschland;
Assessoria de Assuntos Internacionais da
UNIJUÍ;
Serviço
de
Projetos
de
Desenvolvimento
em
Educação
(PróEduc/IECLB); Conselho de Missão entre
Índios (COMIN/IECLB), que possibilitaram
institucionalmente a realização deste período
de estudo, pesquisa, reflexão e desafio.
RESUMO
A presente pesquisa aborda a historiografia e o envolvimento da Igreja Evangélica de
Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e do Conselho de Missão entre Índios (COMIN) com a
educação escolar indígena na Terra Indígena Guarita. O envolvimento da IECLB/COMIN
inicia com a instalação da Escola Evangélica Indígena na TI Guarita (03/03/1961).
Inicialmente participou da proposta oficial de política indigenista brasileira, que estipulava a
educação escolar como espaço e meio para a integração das comunidades indígenas à
sociedade brasileira. Na década de 1980, ocorrem mudanças na ação indigenista da IECLB,
evidenciada pela criação do COMIN. A alteração no perfil de atuação é influenciada pela
solidificação do movimento indígena, exaltando o reconhecimento jurídico e estatal com a
Constituição Federal de 1988 e as legislações específicas à educação escolar indígena que a
seguem. Assim, pauta-se uma educação escolar indígena como política pública de garantia à
educação diferenciada, bilíngue e intercultural, tendo a comunidade indígena como sujeito, no
estímulo à plena cidadania dos povos indígenas do Brasil. A partir desse referencial, as ações
da IECLB/COMIN se caracterizam pela ação em espaço público da educação escolar, como
entidade de apoio, assessoria e diálogo com a comunidade kaingang na capacitação,
qualificação, produção e definição da educação escolar kaingang. Outra característica que se
pauta é a atuação na perspectiva da interculturalidade, na qual se estimula a troca de saberes e
ciências da comunidade kaingang e da sociedade não indígena. A pesquisa objetiva a reflexão
sobre as motivações do envolvimento com a educação escolar indígena, abordando as
contribuições e dificuldades estabelecidas pela atuação indigenista da IECLB/COMIN entre
as décadas de 1960 e 2000, quais os referenciais que possibilitaram partir de uma educação
formal e integracionista para uma educação intercultural, de uma política de substituição da
função pública da educação para a atuação no espaço público da educação.
Palavras-chave: Educação Escolar Kaingang; Terra Indígena Guarita; Igreja Evangélica de
Confissão Luterana no Brasil; Educação Intercultural.
ABSTRACT
The present research deals with the historiography and the involvement of the
Evangelical Church of Lutheran Confession in Brazil (IECLB) and the Mission Council
among the Indigenous with the indigenous school education at the Guarita Indigenous Land.
IECLB/COMIN involvement starts with the installation of the Indigenous Evangelical School
at Guarita (03/03/1961). Initially it took part in the official Brazilian indigenist policy
proposal that stipulated the school education as space and means for the indigenous
communities’ integration to the Brazilian society. In the 1980s there were changes in the
indigenist activity at IECLB, evidenced by the creation of COMIN. These changes were
influenced by the indigenous movement solidification, exalting the legal and state
acknowledgement with the Federal Constitution of 1988 and the specific legislation that
follows concerning the indigenous school education. Thus comes out an indigenous school
education public politics that guarantees a differentiated, bilingual and intercultural education,
with the indigenous community as the subject, stimulating the full citizenship of Brazilian
indigenous peoples. Based on this referential the IECLB/COMIN activities are characterized
by the action in the school education public space, as an entity of support, counseling and
dialogue with the kaingang community for the capacitation, qualification, production and
definition of the kaingang school education. Another characteristic is the action from the
interculturality perspective, in which the knowledge and science exchange between the
kaingang community and the non-indigenous society is stimulated. The research aims for the
reflection about the motivations for the involvement with the indigenous school education,
dealing with the contributions and difficulties established by IECLB/COMIN indigenist work
between the decades of 1960 and 2000. Which are the referentials that allowed to change
from a formal and integrationist education to an intercultural education. From a politics of
replacement of the education public role to the action in the educational public space.
Keywords: Kaingang School Education; Guarita Indigenous Land; Evangelical Church of
Lutheran Confession in Brazil, Intercultural Education.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Mapa dos dialetos kaingang ...................................................................................... 16
Figura 2: Mapa do território kaingang no século XIX ............................................................. 42
Figura 3: Porteira do Posto SPI – Guarita, década de 1950 ........................................ .............58
Figura 4: Terras Indígenas no norte e noroeste rio-grandense ................................................. 64
Figura 5: Prédio da CTPCC, no Setor Km 10 / Guarita ........................................................... 93
Figura 6: Curso complementar ao Ens. Fundamental, E.E.E.M. Américo dos Santos .......... 117
Figura 7: Casas, depósitos e escola do Posto Indígena Guarita (1944) .................................. 127
Figura 8: Grupo de crianças kaingang, alunas da Escola do Posto Indígena Guarita (1947)
.............................................................................................................................................. 1277
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ANAÍ – Associação Nacional de Apoio ao Índio
APBKG – Associação de Professores Bilíngues Kaingang e Guarani
CAMP – Centro de Assessoria ao Movimento Popular
CAPA – Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor, órgão vinculado à IECLB
CEAI – Centro Educacional e Assistência Educacional
CF 88 – Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 out. 1988
CIMI – Conselho Missionário Indigenista, órgão da Igreja Católica Apostólica Romana
COMIN – Conselho de Missão entre Índios
CONEEI – Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena
CPQI – Centro de Pesquisa da Questão Indígena do COMIN
CTPCC – Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão
E.E.I.E.F. – Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental
EEI – Educação Escolar Indígena
EST – Escola Superior de Teologia da IECLB
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil
LDB – Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394, de 20 dez. 1996
MCB – Movimento Comunitário de Base
MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário
MEC – Ministério da Educação
MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
NEI – Núcleo de Educação Indígena, vinculado à Secretaria Estadual de Educação/RS
NIT/UFRGS – Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais, UFRGS
ONISUL – Organização das Nações Indígenas do Sul
PPIGRE – Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia
ProLInd – Programa de Licenciatura Indígena
SEC/RS – Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Rio Grande do Sul
SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
SEE/RS – Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul
SIL – Summer Institute of Linguistic
SPI – Serviço de Proteção ao Índio
TI – Terra Indígena
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UnB – Universidade de Brasília
UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
UPF – Universidade Passo Fundo
URI – Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9
1 APROXIMAÇÕES AO POVO KAINGANG ................................................................... 14
1.1 CARACTERIZAÇÕES ÉTNICAS .................................................................................... 14
1.1.1 Língua e escrita kaingang ................................................................................................ 15
1.1.2 Organização sociocultural e sociopolítica ....................................................................... 17
1.1.3 Educação kaingang .......................................................................................................... 23
1.2 SOBRE A OCUPAÇÃO TERRITORIAL ......................................................................... 28
1.3 CONFRONTOS INTERÉTNICOS COM A FRENTE COLONIZADORA ..................... 30
1.3.1 Kaingang e as reduções jesuíticas ................................................................................... 31
1.3.2 Período pós-jesuítico e século XIX ................................................................................. 37
1.3.3 A demarcação territorial da TI Guarita e o SPI – FUNAI: século XX ............................ 55
2 IECLB: IMIGRAÇÃO, EDUCAÇÃO E POVOS INDÍGENAS..................................... 66
2.1 UMA IGREJA DE MIGRAÇÃO NO BRASIL – IECLB ................................................. 66
2.2 IMIGRANTES, IGREJA E POVOS INDIGENAS ........................................................... 73
2.3 MISSÃO NA TI GUARITA .............................................................................................. 81
2.3.1 Fundação e propósitos da Missão Guarita ....................................................................... 81
2.3.2 O curso de formação de monitores bilíngue .................................................................... 86
2.3.3 Escola Marechal Rondon e a transição ............................................................................ 94
2.3.4 A retirada da Missão Guarita: 1985 ................................................................................. 99
2.4 A AMPLIAÇÃO DAS AÇÕES DA MISSÃO GUARITA/COMIN ............................... 102
2.4.1 Consolidação na ampliação das ações missionárias indigenistas .................................. 103
2.4.2 O COMIN e a consolidação da EEI .............................................................................. 108
2.4.3 A trajetória no século XXI ............................................................................................ 116
3 REFLEXÕES SOBRE A TRAJETÓRIA INDIGENISTA NA EEI ............................. 123
3.1 O BILINGUISMO E A AUTONOMIA NA EEI ............................................................. 124
3.2 A INTERCULTURALIDADE NA EEI ........................................................................... 142
3.3 A EEI E A TERRITORIALIDADE ................................................................................. 146
PARA CONTINUAR REFLETINDO, APOIANDO, ... ... ............................................... 151
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 155
INTRODUÇÃO
O tema dissertado, sobre a educação escolar kaingang e a atuação da IECLB/COMIN,
resulta da atuação do autor junto às comunidades escolares kaingang na região noroeste riograndense, sobretudo na Terra Indígena (TI) Guarita. O autor é membro da equipe do
Conselho de Missão entre Índios, órgão vinculado à Igreja Evangélica de Confissão Luterana
no Brasil (COMIN-IECLB) que atua no apoio e assessoria aos povos kaingang e guarani na
bacia hidrográfica do Rio Uruguai. A motivação para a pesquisa ocorre do envolvimento
missionário indigenista junto aos kaingang.
A pesquisa objetiva a reflexão sobre a educação escolar indígena na atuação
missionária indigenista da IECLB e COMIN entre as décadas de 1960 e 2000 na TI Guarita,
atuação que inicia na persuasão ao bilinguismo e constituição/consolidação da língua
kaingang (em sinais gráficos do alfabeto latino), que, posteriormente, se constitui no apoio e
acompanhamento à comunidade kaingang, visando à autonomia e autodeterminação desta na
educação escolar. Concebe-se, como hipótese, que a mudança da postura na atuação da
IECLB e COMIN é condizente com a percepção e consideração da mobilização indígena para
o reconhecimento da plena cidadania, autodeterminação e constituição de políticas públicas
específicas à diversidade étnico-indígena no Brasil no transcurso da segunda metade do
século XX, pois tais mudanças na prática missionária indigenista ocorrem concomitantes à
mobilização indígena.
A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) se estabelece em solo
brasileiro a partir de 1824, com a chegada de imigrantes germânicos, porém se constitui como
unidade eclesiástico-administrativa em 1968, com sede em Porto Alegre/RS. Contudo, a ação
missionária indigenista mais antiga e contínua da IECLB são as atividades desenvolvidas na
região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, sobretudo na TI Guarita, ação esta que teve
início com uma visita pastoral (set/1960) e a instalação da Escola Primária Evangélica,
10
destinada à comunidade kaingang da TI Guarita, em março de 1961. A partir dessa ação,
estabelece-se a educação escolar como uma das principais e permanentes ênfases de ação
missionária indigenista da IECLB e do COMIN.
Inicialmente, a atuação missionária indigenista participou da política indigenista
brasileira, que estipulava a educação escolar como espaço e meio para a integração das
comunidades indígenas à sociedade brasileira, evidenciada pelo convênio IECLB-FUNAISIL1 para a formação de monitores indígenas bilíngues pelo Centro de Treinamento
Profissional Clara Camarão. Destaca-se que, nesse período, correspondente às décadas de
1960 e 1970, a atuação ocorreu em substituição ou em consonância com o poder público
estatal na implantação da educação escolar na TI Guarita.
A década de 1980 é pautada pela mudança do perfil da ação indigenista da IECLB,
evidenciada pela criação do COMIN. A saída da equipe missionária da TI Guarita em 1985
torna-se um evento significativo na trajetória histórica, com mudanças na atuação indigenista
em educação escolar, sobretudo nas décadas seguintes, de 1990 e 2000. No entanto, a
alteração no perfil de atuação é influenciada, sobretudo, pela solidificação do movimento
indígena, exaltando o reconhecimento da plena cidadania na Constituição Federal de 1988 e
as legislações específicas à educação escolar indígena que a seguem. Assim, pauta-se uma
educação escolar indígena como política pública que garanta a educação diferenciada,
bilíngue e intercultural, tendo a comunidade indígena como sujeito. A educação escolar
indígena é pautada como meio de estímulo à plena cidadania dos povos indígenas do Brasil.
A partir desse referencial, as ações da IECLB/COMIN se caracterizam pela atuação
em espaço público da educação escolar, como entidade de apoio, assessoria e diálogo com a
comunidade kaingang na capacitação, qualificação, produção e conceituação da educação
escolar kaingang. Nessa última dinâmica, da constituição da educação escolar kaingang,
concebe-se que a educação escolar kaingang se paute na perspectiva do bilinguismo, da
autonomia e da interculturalidade, na qual se estimula o reconhecimento e o intercâmbio da
ciência e dos saberes da comunidade kaingang e da sociedade não indígena, perspectivas
essas que ainda se inserem na questão da territorialidade kaingang. A educação escolar e as
questões territoriais estiveram e estão inter-relacionadas, sendo postuladas como desafio na
construção de uma sociedade paritária, justa e dialogal, a que se propôs a ação missionária
indigenista em apreço.
1
FUNAI: Fundação Nacional do Índio; SIL: Summer Institute of Linguistics/Associação Internacional de Linguística.
11
No presente ano (2011), a IECLB celebra cinquenta anos de ação missionária
indigenista no Brasil. A celebração jubilar considera o período de ação permanente e contínua
junto aos povos indígenas, iniciada em 1961. No ano vindouro (2012), celebrar-se-ão os trinta
anos de atividades do Conselho de Missão entre Índios (COMIN), órgão assessor e de
coordenação da ação missionária indigenista da IECLB, criado em 1982. Assim, a dissertação
também se constitui como espaço de reflexão nas celebrações jubilares. Neste contexto, cabe
refletir sobre o que significou e significa a implantação do bilinguismo como esteio da
educação escolar indígena. Da mesma forma, cabe a reflexão sobre a disposição atual de
considerar a educação escolar indígena como espaço de articulação para uma educação
intercultural.
A estrutura da dissertação está organizada em três capítulos. No primeiro capítulo, são
abordadas questões concernentes ao povo kaingang, ressaltando-se as informações e o
histórico da comunidade kaingang, vinculado ao espaço geográfico de abrangência e
proximidades da TI Guarita. Nesse capítulo, são apresentadas as principais características
culturais e uma breve historialização da presença kaingang na região entre os rios Guarita e
Turvo, no Rio Grande do Sul, a partir do século XVII.
O segundo capítulo aborda a atuação da IECLB e do COMIN. O capítulo inicia com
um breve histórico da chegada dos imigrantes germânicos ao Rio Grande do Sul no século
XIX. Destacam-se os confrontos e disputas territoriais que as famílias imigrantes tiveram com
o povo kaingang e a disposição e preocupação das famílias imigrantes com a educação escolar
ao implantarem escolas concomitantemente aos templos. Também se aborda brevemente o
processo histórico da constituição da IECLB, como unidade eclesiástico-administrativa, entre
as décadas de 1940 e 1960. O capítulo privilegia a apresentação do histórico de atuação da
IECLB junto aos kaingang, na TI Guarita, atuação iniciada com a implantação da Escola
Primária Evangélica na TI Guarita, que se estabelece com a instalação da Missão Guarita e do
Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão (CTPCC), privilegiando as ações
referentes à educação escolar com a comunidade kaingang. Enfatiza, também, o histórico de
atuação e prioridades das ações missionárias indigenistas estabelecidas a partir da criação do
Conselho de Missão entre Índios, como órgão assessor e de coordenação da ação missionárioindigenista da IECLB, em 1982. Complementando o resgate histórico da ação missionária
indigenista da IECLB/COMIN, aborda-se ainda a continuidade dos trabalhos desenvolvidos a
partir da segunda metade da década de 1980, quando se consolida a alteração na postura de
atuação missionária indigenista junto aos kaingang. Destaque às atividades desenvolvidas em
12
parcerias, realizadas na década de 1990 e 2000, como: o Curso de Formação de Professores
Indígenas; o acesso de kaingang ao ensino superior; elaboração de material didático; políticas
públicas de educação escolar indígena; entre outras.
Ressalta-se que o segundo capítulo trata da atuação missionária indigenista da IECLB
e COMIN na educação escolar junto à comunidade kaingang. A disposição desta pesquisa é
organizar uma linha temporal de atuação na educação escolar kaingang. Contudo, ressalta-se
que, apesar da densidade das informações apresentadas, motivada pelas diferentes
perspectivas da ação missionária indigenista e da política pública de educação escolar
indígena, não se constitui em uma análise da totalidade das ações e envolvimentos da ação
missionária indigenista. A apresentação e análise da trajetória objetiva, sim, evidenciar as
alterações ocorridas nesse processo. Menciona-se que o início da atuação missionária
indigenista da IECLB e COMIN esteve calcado na política integracionista da população
indígena à sociedade nacional, para uma postura de respeito e reconhecimento da
autodeterminação dos povos indígenas e da educação escolar intercultural.
O
terceiro
capítulo
apresenta
a
reflexão
sobre
bilinguismo,
autonomia,
interculturalidade e territorialidade na perspectiva da EEI, pontuando os desafios que tais
princípios estipulam. As reflexões apresentadas transcorrem tanto na perspectiva conceitual
como a partir de considerações de agentes kaingang e aspectos da atuação missionária
indigenista da IECLB e COMIN nesse processo. A reflexão e as considerações incluem
conclusões e demandas definidas na I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena, da
qual participaram delegados kaingang formados e capacitados por cursos promovidos pela
IECLB/COMIN, bem como delegados representantes da IECLB/COMIN. Ao final do
capítulo terceiro, são apresentadas algumas questões sobre o tema da garantia e do respeito à
territorialidade kaingang. A inter-relação entre a EEI e o esbulho territorial que afligiu as
comunidades kaingang, desde os primeiros contatos interétnicos até o presente momento,
constitui-se num desafio na mediação intercultural.
A elaboração da dissertação constituiu-se na perspectiva metodológica da
interdisciplinaridade, enfatizando as questões concernentes à educação escolar entre os
kaingang, ao tomar elaborações de diferentes disciplinas, como a História e a Antropologia
(etnografia). A elaboração constitui-se de acordo com a periodização temporal dos relatos
históricos analisados, mantendo uma sequência cronológica. Os períodos temporais foram
organizados de acordo com os acontecimentos históricos ou sistematizados de acordos com os
interesses e o objetivo da pesquisa.
13
A pesquisa também se propõe a aproximar conhecimentos, refletir conceitos e
dinâmicas ocorridas na fronteira intercultural entre duas sociedades distintas, kaingang e não
indígena. Assim, opta-se em privilegiar (quando possível) a fala, a escrita, a forma de contar a
história e o modo de ser dos próprios kaingang, evidenciando que a história é contada a partir
de diferentes perspectivas, com diferentes nuances. Para tanto, as reflexões e referências são
elaboradas a partir de material bibliográfico, buscando destacar e privilegiar os materiais de
autoria indígena ou, então, que apresentem manifestações, entrevistas ou relatos de indígenas.
A proposta também é elaborada na conceituação e desdobramentos dos conceitos de
autonomia, autodeterminação, territorialidade, bilinguismo, sobretudo no terceiro capítulo.
Ressalta-se que se realizou pesquisa em arquivos históricos, como: Centro de Pesquisas da
Questão Indígena do COMIN (CPQI-COMIN); Arquivo Histórico da IECLB (São
Leopoldo/RS); Museu Antropológico Diretor Pestana, vinculado à UNIJUÍ-FIDENE;
Paróquia Evangélica de Tenente Portela (Tenente Portela/RS).
A dissertação e a inserção do autor no curso de pós-graduação se integram à linha de
pesquisa “Educação Popular em Movimentos e Organizações Sociais”, do Programa de PósGraduação de Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do
Rio Grande do Sul (PPGEC-UNIJUÍ). A linha de pesquisa contribuiu no se fazer pesquisador,
desafiando o autor da dissertação à reflexão da prática militante, que executa como membro
das ações missionárias indigenista na IECLB/COMIN. A investigação e a elaboração no
espaço acadêmico científico obviamente se pautam por princípios e ritos distintos da práxis
militante. Contudo, ambas não se dissociam, como proposto e reafirmado pela linha de
pesquisa nesse curso de mestrado.
Cabe destacar, ao finalizar esta introdução, que, no decorrer das pesquisas para a
elaboração da dissertação, possibilitou-se a doação dos arquivos pessoais de Norberto
Schwantes († 17.09.1988), com anotações em português e alemão e registros fotográficos do
início da ação missionária indigenista da Paróquia Evangélica de Tenente Portela, paróquia
membro da IECLB, na TI Guarita. A doação foi concedida pela Sra. Gertrudes Schwantes2 ao
Arquivo Histórico da IECLB. O material torna-se relevante, carecendo de outras pesquisas e
estudos, sobretudo por se tratar de uma ação que extrapola as fronteiras e barreiras
confessionais, sociológicas, étnicas, entre outras. Outro desafio interdisciplinar e intercultural.
2
A Sra. Gertrudes Schwantes é viúva de Norberto Schwantes e participou do início das atividades de atuação
missionária indigenista na TI Guarita. Ela cedeu material durante visita do autor a sua residência (Brasília-DF)
em novembro de 2009.
1 APROXIMAÇÕES AO POVO KAINGANG
O objetivo, neste primeiro momento, é apresentar o povo kaingang ressaltando alguns
aspectos e considerações importantes para a abordagem do tema dissertado. Entende-se que é
necessário reconhecer a voz, o rosto, o corpo e a presença dos kaingang como entes de
interação e convívio histórico-social neste espaço e tempo, no contexto da multietnicidade e
pluriculturalidade brasileira. Também se concorda com a manifestação do docente kaingang
Natalino Góg Crespo († 01.03.2011) de que se “contasse a história a partir de um ponto de
vista Kaingang. Como ensinar, numa reserva Kaingang hoje em dia, que os índios vivem da
caça e pesca como dizem os livros?” (VYJKÁG, 1997, p. 28-9).
Entende-se que a postura de como ensinar conforme o que está escrito nos livros não
se refere tão somente ao desafio da educação escolar kaingang, mas também a todos os
sistemas de ensino. O desafio de contar a história a partir de outros pontos de vista enriquece
e desafia, pois significa desalojar-se do supostamente conhecido e seguro. Nesta perspectiva,
apresentar-se-á algumas considerações sobre a etnografia e a presença histórica e territorial
kaingang, privilegiando as informações referentes ao espaço geográfico dos rios Guarita e
Turvo, no atual território do Estado do Rio Grande do Sul.
1.1 CARACTERIZAÇÕES ÉTNICAS
A denominação “kaingang” visa estabelecer o reconhecimento e a autoidentificação
étnica da população falante da língua kaingang na região sul brasileira. Atualmente, a maior
densidade populacional kaingang está “nas terras indígenas regularizadas e oficialmente
demarcadas pela União, através da Fundação Nacional do Índio (FUNAI3)” (SOUZA, 2002,
p. 24). A demarcação de terras indígenas visa garantir espaços para a preservação cultural,
direito consuetudinário garantido na Constituição Federal. No entanto, sabe-se que, no
transcorrer do processo histórico, ocorreram mudanças significativas aos povos indígenas.
Destacam-se aqui algumas que afligiram a comunidade kaingang: desmatamento;
concentração da população; alteração de hábitos e práticas tradicionais; introdução de novas
3
FUNAI – Fundação Nacional do Índio, órgão público vinculado ao Ministério da Justiça, criado pela lei nº
5.371, de 05 de dezembro de 1967, que é “responsável pelo estabelecimento e execução da política indigenista
brasileira em cumprimento ao que determina a Constituição Federal Brasileira de 1988” (Disponível em:
<http://www.funai.gov.br/> Acesso em: 15 ago. 2011).
15
práticas alimentares e medicinais. Contudo, a caracterização étnica distinta da sociedade não
indígena ainda é presente. Reconhece-se que o povo kaingang constitui “uma grande nação
que se subdividia em grupos locais de famílias entrelaçadas, mas que guardava padrões
culturais e sociais semelhantes” (FRANCISCO, 2006, p. 13). A seguir, serão apresentadas
características étnicas ou padrões culturais relevantes a uma “aproximação” aos kaingang,
bem como pertinentes à dissertação.
1.1.1 Língua e escrita kaingang
Os povos indígenas no Brasil são organizados de acordo com os troncos linguísticos,
que pressupõem uma origem comum, mas, no transcorrer do tempo, se estabelecem
manifestações diversas (RODRIGUES, 2002, p. 29). No Brasil, são reconhecidos dois
grandes troncos linguísticos entre os povos indígenas: Tupi e Macro-Jê. De acordo com o
Instituto Socioambiental (ISA), ainda existem famílias linguísticas que não são agrupadas em
troncos e outras consideradas como “línguas isoladas”, por não se assemelharem a outra
conhecida.
O povo kaingang pertence ao tronco linguístico Macro-Jê, que é reconhecido somente
no território brasileiro, encontrando falantes deste o sul do Pará e Maranhão até o Rio Grande
do Sul. De acordo com critérios geográficos, socioculturais e linguísticos, o tronco Macro-Jê é
subdividido em três grupos: os Jê Setentrionais [Kayapó, Timbira e outros], os Jê Centrais
[Akwen, Xavante, Xerente e outros] e os Jê Meridionais [Xokleng e Kaingang]. Segundo
Rosa (2005, p. 29), “os Kaingang se constituem na primeira etnia do tronco Macro Jê e a
segunda etnia do território brasileiro”. O linguista D’Angelis (200-, p. 1) ressalta o fato de que
“a língua Kaingang é uma das línguas com maior número de falantes entre as línguas
indígenas do Brasil”.
A constituição e revisão da grafia da língua kaingang em sinais gráficos latinos é
recente. Ocorre a partir do trabalho desenvolvido por Úrsula Wiesemann junto à comunidade
kaingang de Rio das Cobras (Laranjeiras do Sul/PR). A pesquisadora, entre os anos de 1958 e
1966, junto com Pedro Fẽnkanh Rosário, João Maria Vẽnhkág Pereira, Pedro Krẽjuja Barão,
Candoca Fidêncio, Emília Krugnĩnh Ribeiro e Valdomiro Vigtar Ribeiro, organizou uma base
sistemática e científica, sobretudo para a revisão do padrão silábico da escrita kaingang
(WIESEMANN, 2002, p. 8).
16
Wiesemann (2002, p. 08) identifica, em 1971, numa publicação provisória de
dicionário kaingang, cinco dialetos da língua kaingang. A antropóloga Juracilda da Veiga
(2006, p. 57) referenda a identificação de Wiesemann ao tratar da organização social dos
kaingang, explicitando a região geográfica de cada dialeto:
A língua Kaingang possui, de fato, dialetos, que são cinco na análise de
Wiesemann: São Paulo, ao norte do Paranapanema; Paraná, entre
Paranapanema e Iguaçú; Central, entre Iguaçú e Uruguai; Sudoeste, ao sul do
Rio Uruguai e oeste do Rio Passo Fundo; Sudeste, ao sul do Rio Uruguai e
leste do Passo Fundo.
Figura 1: Mapa dos Dialetos Kaingang
Fonte: Veiga, 2006, p. 59.
17
Sobre a persistência no uso dos dialetos no século XXI, Wiesemann (2002, p. 8-9)
afirma a existência de tais dialetos, acrescentando “a preocupação de ter uma língua de
comunicação para o grupo como um todo, especialmente na sua forma escrita”. Para a
linguista, há o reconhecimento e opção do dialeto “Paraná” como diferencial, ressaltando que
o dialeto São Paulo pode correr risco de se tornar uma língua morta, uma vez que os falantes
“estão deixando o uso da língua Kaingang em favor do Português”. Ainda conforme
Wiesemann, há constantes mudanças no uso da língua kaingang em virtude das migrações e
intercâmbios entre grupos e famílias das diferentes regiões dos dialetos.
Apesar de Wiesemann apontar a preferência pelo dialeto Paraná como padrão da
escrita kaingang, ela reconhece a necessidade da harmonização da escrita entre os diferentes
dialetos, tendo que “abandonar certas variações morfológicas do dialeto do Paraná, por serem
antigas e quase desconhecidas nos outros dialetos” (WIESEMANN, 2002, p. 9).
No decorrer da pesquisa tornar-se-á a refletir sobre a formalização da escrita e uso da
língua kaingang, pois é a partir desta que se constituirá a implantação e organização da
educação escolar kaingang. Para o momento, destaca-se a caracterização etnolinguística
kaingang como pertencente ao grupo Macro-Jê, da família Jê Meridional, que se subdivide em
cinco dialetos, conforme apresentado anteriormente, sendo a escrita da língua de configuração
histórica recente, menos de um século, coincidindo com a implantação da educação escolar
entre as diferentes comunidades kaingang.
1.1.2 Organização sociocultural e sociopolítica
A organização sociocultural kaingang se estabelece a partir de grupos sociocêntricos
que reconhecem princípios sociocosmológicos dualistas, de acordo com o mito de origem,
representado pelos antepassados Kamè e Kairu-krê4 (INSTITUTO WARÃ, 2008), que não
impõem uma separação espacial entre as diferentes dualidades (ROSA, 2005 b, p. 101). Os
kaingang são identificados economicamente como um povo coletor, caçador e cultivador, que,
para reproduzir a sua economia, exigia uma área bastante abrangente fisicamente, que
oferecesse também as devidas condições para garantir a manutenção da identidade étnica.
4
Ainda não há uma padronização na forma de escrever as identidades das partes constituintes da sociedade
kaingang. No transcorrer do texto serão utilizadas as diferentes formas, conforme apresentadas pelos diferentes
pesquisadores e estudiosos utilizados.
18
A organização sociocultural referenda-se na narrativa mitológica como apontada por
Schwingel (2001, p. 39):
Segundo a narrativa mitológica sobre a origem e sociabilidade Kaingang que
foi registrada por Telêmaco Borba (1908), por volta da penúltima década do
século XIX, na região do Tibagi, no Estado do Paraná, as metades
kanherukre e kame são consideradas progenitoras e protagonistas do sistema
de relações sociais e políticas dos kaingang.
A organização em grupos sociocêntricos, com princípios sociocosmológicos dualistas,
de acordo com o mito de origem, determina o modo de ser e viver kaingang, ao mesmo tempo
opostos e complementares, preservando a unidade através dos laços matrimoniais. A
complementariedade se estabelece no encontro entre as metades diferentes, o que, segundo
Schwingel (2001, p. 42-3), “implica que alguém deve buscar seu parceiro matrimonial
necessariamente junto à metade oposta à sua”, disposta pela regra da exogamia entre os
kaingang. Ou seja, o casamento deve ocorrer entre uma pessoa da metade Kamẽ e uma pessoa
da metade Kanherukre, e não da mesma metade. A descendência ou reconhecimento das
metades é definido pela patrilinearidade, onde “define-se como regra na sociedade Kaingang
que os filhos de ambos os sexos devem pertencer exclusivamente à metade paterna”
(SCHWINGEL, 2001, p. 43-4).
Para Schwingel (2001, p. 44-5), o reconhecimento do pertencimento às duas metades
de cada pessoa é um aspecto fundamental para as relações sociais entre os kaingang, com
implicações diretas e imediatas no cotidiano familiar e social, pelo fato de que as “metades
clânicas kairukre e kamé tornam-se, pois, protagonistas de uma aliança perene, pela qual se
possibilita criar laços de solidariedade entre diferentes e estabelecem alianças matrimoniais
que se fundam na complementariedade”. Esta característica ideal da sociedade kaingang, de
ter a parceira matrimonial do grupo social da metade oposta, define que o homem estabeleça
residência junto ao núcleo familiar da esposa, concebido como “a casa do sogro”
(SCHWINGEL, 2001, p. 45). Tal prerrogativa é conceituada na antropologia como
uxorilocalidade, entendida como uma “regra que permite o controle do pai sobre as filhas e, a
partir delas, consolidar as alianças com seus genros. Portanto, a regra de residência abarca um
aspecto fundamental das relações políticas Kaingang” (SCHWINGEL, 2001, p. 47).
A uxorilocalidade se estabelece como uma modalidade de convivência harmoniosa,
com constantes fricções sociais, sobretudo ao “chefe da casa” ou “sogro”, uma vez que
mantém “sob seu comando um grupo de parentes consanguíneos e afins”, uma vez que “os
19
genros” são oriundos de outros grupos familiares, conforme Schwingel (2001, p. 49). Tal
situação pode se constituir numa dissensão quando da disputa de prestígio e apreço do
“sogro”, possibilitando a insubordinação à “casa” e a constituição de novos grupos.
Para além da constituição matrimonial e dos núcleos familiares, Schwingel (2001, p.
41) ressalta a importância do reconhecimento do pertencimento às metades como elemento
essencial da relação social e política.
Afirma-se que quando dois Kaingang defrontam-se entre si e não se
conhecem previamente, normalmente interrogam-se mutuamente sobre as
marcas (metades) a que pertencem. Compreende, pois, essa prática, que para
se estabelecer uma boa relação social e política, isto é, uma relação que se
considera “respeitosa”, é necessário que cada qual saiba a marca de seu
interlocutor. Isso porque as referidas marcas definem, de antemão, o status
de cada um nas relações que podem estabelecer. O que denota, entretanto,
que as “metades” apresentam-se como fundamentais na sociabilidade
Kaingang.
O reconhecimento do pertencimento às metades kaingang também pode ser
visualizado por pintura cerimonial. A antropóloga Juracilda Veiga (2006, p. 97) define que
para os Kamẽ se identificam com a ‘marca comprida’ (râ téi), enquanto que os Kanhru se
identificam com a ‘marca redonda’ (râ rôr), “correspondendo a traços e riscos para os
primeiros, e pontos para os segundo”. Ainda conforme Veiga (2006, p. 98) os kaingang
também podem indicar o pertencimento às metades através de um gesto, “que permite marcar
o pertencimento ao grupo daqueles que se pintam com pontos ou daqueles que se pintam com
riscos” (VEIGA, 2006, p. 98).
Ressalta-se que é observada uma alteração na finalidade das pinturas que caracterizam
o pertencimento às metades, que extrapola a “identificação em ocasiões rituais, mas são
paradigmaticamente usadas como identificação das seções” (VEIGA, 2006, p. 98). O estilo ou
variação na representação das marcas das metades (riscos e pontos) são considerados como
variações estéticas de quem as pintam. A distinção entre o número de pontos e riscos, no
passado, também estabelecia “relações com outros aspectos da vida social, como os nomes
pessoais ou obrigações rituais” (VEIGA, 2006, p. 99).
A organização sociocultural também se estabelece nas demais dimensões da
cosmovisão kaingang. Assim, os demais seres e elementos da natureza, também são
identificados de acordo a estrutura do sistema das metades Kamẽ e Kanhuruke.
Os seres e objetos do mundo natural estão relacionados a essas metades,
conforme a aparência que tenham, para os Kaingang, os objetos, coisas e
20
animais: se são redondos (proporcionalmente semelhantes nas suas
dimensões de altura e largura) são classificados como rôr (KANHRU) e se
são compridos (desproporcionais nas dimensões de altura e largura) são téi
(KAMẼ) (VEIGA, 2006, p. 81-2).
A organização sociocultural kaingang, caracterizada pelas metades Kamẽ e
Kanhurukẽ, perpassa pelas relações sociais, como o matrimônio, família nuclear; perpassa as
relações políticas e as interlocuções entre desconhecidos; e estrutura e ancora a cosmovisão
do povo, organizando a biologia animal e vegetal pelas percepções de rôr e téi. Inclusive a
cosmologia é organizada por tais categorias, como demonstrado nos mitos sobre os dois sóis,
o surgimento da lua e a separação entre dia e noite (COMIN, 2003, p. 13).
A distinção entre rôr e téi também se relaciona à educação indígena, que ocorre junto
ao núcleo familiar, onde as crianças se relacionam com primos da mesma marca. Esse fato
ocorre por seus tios serem da marca oposta à mãe e ao avô materno, que são a referência do
núcleo familiar, como exposto anteriormente. Assim, a mãe e as possíveis tias, ditas como
primeiras educadoras e socializadoras, serão da metade oposta.
Cabe ressaltar ainda, no tocante à organização sociocultural dos kaingang, que a
própria nomeação das crianças é de acordo com a dualidade entre rôr e téi. Conforme estudo
de Veiga (2006, p. 145), o nome corresponde à marca do pai. A antropóloga afirma que a
concepção kaingang de ser humano considera que o mesmo “é formado do organismo e de
espírito, sendo este último relacionado ao nome. Idealmente a constituição física e o nome
(espírito-caráter) devem coincidir” (Idem).
Cada metade possui um acervo de nomes próprios, e cada nome caracteriza a
identidade social e cerimonial de cada indivíduo. É através do nome kaingang (jiji) que “o
individuo recebe os papéis sociais e/ou cerimoniais correspondente ao nome” (VEIGA, 2006,
p. 145). Também é através do nome da pessoa que se poderá saber a que metade ela pertence.
O nome, como afirmado anteriormente, é a representação ideal da constituição física e
espiritual da pessoa, sendo a pertença a uma das metades definida pela filiação patrilinear.
Também o nome é definido pela patrilinearidade, uma vez que cada metade possui um acervo
de nomes. Diante de tais fatos, Veiga (2006, p. 145) constata que “os Kaingang são
categóricos em afirmar que a criança é o que for o seu pai”. Esta característica de
identificação pelo pai também revela a importância em saber quem é o pai da criança “para
que se possa atribuir a ela um nome da metade e seção à qual seu pai pertence”. Isso
21
possibilita que seja membro da comunidade kaingang, recebendo um nome (VEIGA, 2006, p.
146).
Nessa dinâmica retoma-se o exposto inicialmente sobre a organização sociocultural
kaingang, baseada no mito dos irmãos Kamẽ e Kanhurukẽ. A importância na identificação
entre rôr e téi como elementos da organização sociocultural kaingang garante a
complementariedade e oposição social, política, familiar, cosmovisão e cosmologia. Romper
ou desconsiderar tal percepção fundante da sociedade kaingang também se revela no
cotidiano kaingang, como manifestado em encontro de mulheres na TI Guarita. Na ocasião,
afirmou-se que a desconsideração de tais preceitos implica a separação e agressões entre
casais, desconhecimento da identidade cultural pelos jovens e a desorganização social
kaingang (FALCADE; LUCKMANN, 2007).
A partir da concepção da organização sociocultural, estruturada nas metades rôr e téi,
como exposto anteriormente, estabelecer-se-á a organização sociopolítica kaingang.
Schwingel (2001, p. 57-8) afirma que a dualidade kaingang está fundamentada no princípio da
oposição e da complementariedade, sendo que “as metades clânicas constituem as bases para
um amplo raio de articulações, rearranjos e posicionamentos”.
Essa predisposição da dualidade como eixo é sintetizada pelo antropólogo Cid
Fernandes (FERNANDES apud SCHWINGEL, 2001, p. 57) da seguinte forma:
[…] entre os kaingang a autoridade política era construída sobre dois
fundamentos básicos: o controle sobre os núcleos residenciais e a negociação
de alianças consagradas em prestígio ritual. Estas duas possibilidades de
expressão da autoridade política não são excludentes, podemos admitir que
são complementares. Por um lado, o controle sobre os núcleos residenciais
fomenta a fissão social, a atomização da sociedade Kaingang em grupos
domésticos que disputam recursos para garantir sua subsistência. Por outro, a
autoridade ritual representa uma possibilidade de comunhão social de um
mesmo espaço e de um mesmo tempo, a qual combina a abundância de
recursos com a manipulação do acervo de crenças e mitos Kaingang.
A partir dessa dinâmica irá se constituir a organização sociopolítica kaingang no
contexto atual. Atualmente se estabelece a autoridade política como sendo uma “autoridade
que trata de questões relativas ao conjunto da população kaingang de sua aldeia, identificado
na língua e cultura Kaingang pelo termo pã’ĩ mbag”, traduzido para a língua portuguesa como
cacique. A designação pã’ĩ mbag significa “grande líder” e é entendida como “a autoridade
que se situa no centro de uma ordem política, sobrepondo-se a um conjunto de autoridades
22
que atuam como seus ‘auxiliares’, designadas pelo termo Kaingang pã’ĩ sĩ – que significa
‘chefias menores’” (SCHWINGEL, 2001, p. 112).
A organização sociopolítica baseada na dualidade se evidencia na afirmação de um
dos mais antigos pã’ĩ mbag no Rio Grande do Sul, José Lopes, da TI Nonoai. Em depoimento
a Schwingel (2001, p. 115), José Lopes afirma que “normalmente o apoio mais forte para os
cargos de chefia Kaingang vem do lado dos jamré, que são os cunhados, ou seja, com todos
os que são de ‘marca diferente’ da sua”. Contudo, isso não impede que os kenke, irmãos e
parentes, prestem apoio também.
Referente às modalidades de eleição da pã’ĩ mbag, atentar-se-á para a modalidade que
se encontrava em prática na TI Guarita, local de interesse para a presente pesquisa. As
referências apresentadas até o momento se valeram de estudos e pesquisas junto a outras
comunidades kaingang, que referendam e se assemelham à organização sociopolítica na TI
Guarita. Esta, contudo, se destacava na modalidade de eleição para tal função social. Cabe
destacar que o tempo de exercício da função social era indeterminado, distinto da prática
recente na TI Guarita (CORRÊA; OLIVEIRA, 2007, p. 41).
Esse fato é constatado pela sequência e pelo histórico das lideranças na TI Guarita:
Em 1950 o Coronel que comandava era Sebastião Jacinto, sendo que em
1959 tomou posse o primeiro cacique, Sr. Sebastião Alfaiate, o qual
comandou por vinte anos a Reserva. Em 1980 foi escolhido o cacique Ivo
Ribeiro, que permaneceu por três anos no cargo. No ano de 1984
aconteceram conflitos internos na Reserva, que resultaram em três mortes
entre os índios. A época foi marcada pela rivalidade envolvendo questões
territoriais, e aconteceu a divisão da Reserva em Irapuá e Guarita. […] Nesse
período havia dois caciques e dois postos da Funai. Na localidade de Posto
Guarita o cacique era Domingos Ribeiro, e no Posto Irapuá era cacique Ivo
Ribeiro. Conforme relato do representante da Funai, “os índios fizeram uma
picada de Tronqueiras até a costa do Guarita de cerca de 30 Km, com foice,
tamanho o clima de rivalidade”. No ano de 1995, após um período de
conversações e tentativas de instauração da paz, houve a unificação da
Reserva e do posto da Funai, assumindo como cacique Samuel Claudino,
que comandou por um ano a Reserva. Depois, assumiu Valdir Joaquim, que
comandou a Reserva até o ano 2000 (CORRÊA; OLIVEIRA, 2007, p. 41).
O estudo da alternância na liderança da TI Guarita evidencia que o tempo de exercício
da função social é variado até o ano de 2000. Contudo, é a partir dessa data que se institui
junto à comunidade kaingang da TI Guarita a eleição do cacique, através de escrutínio
eleitoral, sendo habilitadas as pessoas maiores de dezesseis anos que se cadastrassem junto À
Comissão Eleitoral, esta constituída para organizar e realizar as eleições. A partir de 2000
23
também se institui que o período no exercício da função de cacique fosse de quatro anos.
Assim, foram eleitos Carlinhos Alfaiate em 2000 e Valdonês Joaquim em 2004 e 2008
(CORRÊA; OLIVEIRA, 2007, p. 40-1).
Cabe salientar que o processo eleitoral na TI Guarita ocorre no estabelecimento de
chapas para as funções de cacique e vice-cacique. As demais lideranças, que podem ser
concebidas como pã’ĩ sĩ, são escolhidas posteriormente pelo cacique eleito (CORRÊA;
OLIVEIRA, 2007, p. 42).
Contudo, apesar da eleição de cacique ter sido realizada de modo análogo à sociedade
não indígena, não significa que as atribuições e percepções ocorram de modo semelhante.
Destaca-se que a função é considerada como vital na organização social kaingang, na
perspectiva onipotente, sendo o cacique a “autoridade competente para compor as leis e
aplicá-las, julgando o caso em concreto” (CORRÊA; OLIVEIRA, 2007, p. 42).
No entanto, a prática iniciada em 2000 foi rejeitada em plebiscito realizado junto à
comunidade kaingang da TI Guarita em 2010. Conforme noticiado na impressa eletrônica de
Tenente Portela, constituiu-se um conselho para acompanhar e fiscalizar as ações do cacique.
O conselho foi composto por 26 representantes de todos os setores kaingang da TI Guarita
(MEDEIROS, 2010, s/p.).
Suspeita-se que, de modo semelhante ao exposto sobre a organização sociocultural,
quando se exaltava a necessidade do seguimento dos princípios e percepções próprias do povo
kaingang, tratava-se de tentativa de reaproximação e revitalização da organização
sociopolítica de acordo com os princípios da dualidade rôr e téi. Essa tentativa talvez almeje o
fortalecimento das alianças articulação entre jamré, como ressaltado por José Lopes, na
organização política da comunidade kaingang, no lugar de assumir modalidades de eleição e
organização sociopolíticas estranhas à cultura kaingang.
1.1.3 Educação Kaingang
As formas tradicionais de educação indígena criam, reforçam e rearticulam as
percepções culturais junto às crianças das diferentes comunidades indígenas. 5 Tomar-se-á
como base para esta reflexão a análise produzida por Nunes a partir do povo A’uwẽ-Xavante,
5
Para o momento, concebe-se como educação indígena o processo próprio, autônomo das famílias e/ou
comunidades indígenas de educação, transmissão e construção de saberes. Distingue-se, desta maneira, o que
se concebe como educação escolar indígena dos processos educacionais desenvolvidos a partir das
instituições escolares implantadas nas comunidades indígenas.
24
também pertencente aos grupos Jê, como o povo kaingang. O povo A’uwẽ-Xavante tem “a
sua intrincada organização social, com base em um sistema de metades muito marcante no
espaço e em grupos e classes de idade” (NUNES, 2002, p. 68), de forma semelhante ao povo
kaingang.
Conforme Nunes (2002, p. 65-6), a infância indígena é marcada por uma enorme
liberdade na vivência do tempo e do espaço e das relações societárias, delegando à idade
adulta percepções de limites e constrangimentos. Ao comparar a concepção indígena de
infância com as concepções de infância das sociedades urbanas, afirma que cada qual
organiza o tempo e o espaço de maneira própria. A antropóloga salienta “que para
compreender o modo como cada sociedade os vive é preciso atender às condições geográficas
e ambientais, e, fundamentalmente, às relações menos óbvias entre os indivíduos, o meio e
sua vida coletiva” (NUNES, 2002, p. 65-66).
Nunes (2002, p. 67) afirma que nas sociedades indígenas há um espaço e um tempo de
sociabilidade e de educação informal,
[…] que existe e é vivenciado concretamente pelas crianças, e que penso
deve ser respeitado e considerado ao refletirmos sobre os rumos da educação
escolar. [E] Que tempo e espaço não devem ser considerados meras noções
quantitativas e, sim, qualitativas simbólicas, por intermédio das quais as
crianças localizam-se e posicionam-se no mundo social.
A rotina do cotidiano e do brincar das crianças indígenas se estabelecem como pontos
referenciais e cruciais para a percepção cultural de espaço e tempo. Essa rotina do cotidiano e
do brincar das crianças se constitui numa lógica de permissividade quase sem limites, meio
caótica, na percepção não indígena, mas “obedece a esquemas rigorosos de construção e
transmissão de saberes, e é desse modo que as crianças os incorporam e deles vão tomando
consciência” (NUNES, 2002, p. 71). Conforme Nunes (2002, p. 72),
[…] é de uma maneira muito livre que as crianças aprendem a identificar os
limites que regem sua sociedade, abordando-os e vivenciando-os por todos
os lados e em todos os sentidos, dentro e fora, pública e privadamente,
obtendo um conhecimento pleno da vida naquele lugar e daquelas pessoas
com as quais interagem.
De modo semelhante a pedagoga kaingang e coordenadora pedagógica de escola
kaingang na TI Guarita Sara C. K. Sales (2010, p. 11-15) constata que, entre as crianças
kaingang, a liberdade e a percepção dos limites sociais também transcorrem no seio das
famílias kaingang como processos educacionais próprios. Sales relata que o fato ocorre em
tarefas rotineiras, como a busca de cipó no mato para a confecção de artesanato (uma das
25
fontes de recursos de famílias kaingang). Durante a caminhada, as crianças brincam e
conversam entre si, mas também aprendem da mãe sobre os tipos de plantas benéficas e de
conhecimento tradicional kaingang para nutrição e medicina. Para Sales (2010, p. 12), a
“prática da mãe, ao ensinar as crianças sobre a planta, pode ser concebida como pedagogia
kanhgág”. A percepção de Sales como pedagogia kanhgág encontra respaldo no estudo de
Veiga (2005, p. 138-141) sobre a pedagogia indígena.
A concepção da pedagogia kanhgág encontra respaldo na observação de Nunes, uma
vez que constata que as atividades, as brincadeiras das crianças transcorrem como se
brincassem de fazer coisas de verdade. Assim, as crianças utilizam instrumentos de verdade,
não imitações ou miniaturas, e podem produzir um resultado final verdadeiro. Conforme a
pesquisadora, “tudo é permeado por um significado real e tem uma aplicabilidade concreta.”
(NUNES, 2002, p. 73-74). Constata-se, então, que a sociedade indígena considera que “a
criança tem capacidade, ou habilidade para fazer, é respeitado como tal e é aceito como
participação efetiva” (NUNES, 2002, p. 75).
Tal percepção também se faz presente no acompanhamento e elaboração de Sales
(2010, p. 12), que relata:
Ainda no acompanhamento àquela família, ao chegar ao local onde tinha as
taquaras e cipós a mãe começou a cortar a taquara, os filhos mais velhos
começaram a ajudá-la, enquanto que os dois filhos menores faziam pequenos
montes. Nesta tarefa pode-se observar que ao cortarem o cipó não tiravam
tudo de um mesmo lugar, sempre deixavam um pouco. Esta prática está de
acordo com o saber tradicional, que estabelece ser necessário deixar um
pouco para a reprodução. Na observação, contatou-se que não foi necessário
a mãe alertar os filhos a respeito, mas que esse saber já havia sido
internalizado pelos filhos através da prática contínua.
No momento de retornar à casa todos ajudaram a mãe levar as taquaras e
cipós, quem não ajudou levando cipós e taquaras cuidava dos irmãozinhos
pequenos, que também foram juntos.
O relato de Sales também respalda a elaboração de Veiga (2005, p. 139), que aponta
que “os pais deixam a criança experimentar suas possibilidades na execução de habilidades,
na imitação dos comportamentos dos mais velhos. Desde a mais tenra idade as crianças
participam da vida da família e todos são responsáveis pelo grupo”. Para Nunes (2002, p. 75),
essa realidade implica conceber uma disposição de tempo e acompanhamento dos adultos,
para que a criança desempenhe as determinadas tarefas, pois o ritmo de vida permite.
26
Da mesma forma, constata-se “a existência de um repertório de brincadeiras que têm
estreita relação com as condições ambientais resultantes do ciclo e do ritmo sazonais”
(NUNES, 2002, p. 79), fato salientado por Sales no relato do corte da taquara, que evidencia o
respeito aos ciclos da planta no transcorrer do tempo. Assim, pode-se conceber que a
sazonalidade e os arranjos acabam por estabelecer uma repetição cíclica das brincadeiras.
Contudo, Nunes (2002, p. 82) pondera que tal fato não é uma repetição metódica, mas
[…] permite uma crescente e renovada possibilidade de participação em
função do registro anterior, uma vez que, a cada ano, as habilidades são
outras e esse gesto e essa palavra, somados a outros gestos e outras palavras,
sofisticam-se e ganham novos contornos e conteúdos, num ritmo muito velos
e constante experiência. Por isso as crianças insistem em repetir tanto o que
para nós parece ser sempre igual.
A constatação de Nunes também é perceptível no relato de Sales, uma vez que esta
aponta a diferença de atividade entre os filhos maiores e menores. Sales (2010, p. 13) ressalta
o fato de que “as crianças realizam tarefas desde pequenas, sem considerar isto como
exploração infantil, pelo contrário estão aprendendo/vivenciando”. Esse fato também é
destacado por Veiga (2005, p. 139), ao afirmar que “as crianças são chamadas a serem
prestativas a ajudar àqueles que estão precisando de ajuda”.
Concebe-se, assim, que a educação kaingang ou pedagogia kanhgág possui um
aspecto importante, que é a socialização. Como apontado anteriormente, na questão dos
nomes kaingang, a pessoa se constitui na relação com a outra pessoa, no ambiente interno da
comunidade kaingang. Neste sentido, torna-se relevante a afirmação de Veiga (2005, p. 139)
de que:
As crianças não vivem apenas no meio dos adultos, aprendem umas com as
outras, com os grupos de sua idade com os quais compartilham as
descobertas do mundo da aldeia. As crianças sabem em detalhes o que
acontece na comunidade, embora sejam muito discretas, têm olhos atentos
que tudo vêem e tudo sabem. As crianças aprendem o que vêem. Aprendem
involuntariamente.
Conforme outro relato de Sales (2010, p. 13-14), sobre o preparo de um almoço
familiar, tendo como prato o ẽmĩ (bolo de milho), as crianças aprendem observando,
experimentando e executando as tarefas. Destaca-se, outra vez, a espontaneidade e o prazer
das crianças ao executarem a atividade como se fosse uma brincadeira. Ou seja, as rotinas do
cotidiano e as brincadeiras estão intrinsecamente ligadas.
27
A educação indígena/kaingang, concebida no processo ou na dinâmica de socialização,
evidencia que as crianças aprendem observando ou imitando. Para Veiga (2005, p. 139-40), a
criança indígena aprende no seguimento de modelos considerados exemplares. Assim,
“aquele que está em posição de honra como um irmão mais velho (kẽnke), chefe (põ’ĩ) ou
professor é modelo. O modelo deve ser perfeito e um aprendiz deve almejar ser tão bom
quanto seu mestre”. Outra vez confere-se validade ao apontado anteriormente, referente a
designação de um nome kaingang à criança, conforme designação vinculada ao grupo ao qual
o pai pertence. Ainda revela a inter-relação da educação kaingang com a sua organização
sociopolítica, onde a figura do põ’ĩ torna-se um referencial a ser seguido, caso apresente um
comportamento digno.
Outra característica apontada por Veiga (2005, p. 140), quanto à educação indígena ser
pautada pela socialização, é “estar atento às palavras e comportamentos dos demais. Aprender
faz parte da vida. Todos os momentos são momentos de aprendizagem”. Essa constatação é
respaldada no primeiro relato de Sales, apresentado anteriormente. O relato da busca do cipó
para o artesanato destaca que as crianças aprendem observando e ouvindo a mãe durante o
trajeto e no corte da taquara. Evidencia-se também a inter-relação da organização
sociocultural kaingang, pois a criança está inserida no núcleo familiar do avô materno,
recebendo a designação da metade pela patrilinearidade, observando a relação entre seu pai e
seu avô materno, como referenciais no entendimento e interação com a cosmovisão e
organização sociopolítica do povo kaingang.
Os apontamentos sobre educação ou pedagogia indígena/kaingang despertam a
constatação da inter-relação entre as diferentes dimensões e percepções do modo de ser
kaingang. Destaca-se, porém, na percepção de Sales (2010, p. 15), que
[…] a educação indígena nas famílias apresenta uma metodologia rica que
parte da vivência e prática contínua, de maneira livre que as crianças
kanhgág aprendem a identificar os limites que regem a sua sociedade,
identificar usos e costumes, conhecer as regras de sua comunidade, enfim, e
é através da liberdade que constroem suas descobertas, pois a criança
indígena é muito livre não tem regras a serem cumpridas como na sociedade
não indígena desde as brincadeiras até as tarefas domésticas, elas vão
adquirindo traços culturais de seu grupo (povo).
Assim, concebe-se a educação kaingang como elemento próprio da cultura, pautado na
cosmovisão e cosmologia kaingang. A educação kaingang também pode ou não dialogar com
a educação escolar. As percepções apresentadas visam caracterizar que a dimensão da
28
educação não é algo restrito ao ambiente escolar, mas que o povo e a cultura kaingang têm
estruturas e pedagogias educacionais próprias, que se regulam e se organizam de acordo com
os princípios, modalidades e organização kaingang.
1.2 SOBRE A OCUPAÇÃO TERRITORIAL
O kaingang é habitante tradicional da região sul do Brasil, atualmente identificada
geopoliticamente nos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, uma
região que teve densas florestas e uma rica biodiversidade (INSTITUTO WARÃ, 2008). A
região se caracterizava por planaltos, floresta de araucária e bacias hidrográficas no sul do
Brasil, sendo as atuais terras demarcadas com acesso rodoviário (ROSA, 2005, p. 29, 126).
O kaingang constitui a terceira maior população indígena no Brasil6 e o maior povo
das sociedades Jê (CREPEAU, 2002, p. 114), com uma população aproximada de trinta mil
indivíduos, ocupando cerca de trinta áreas demarcadas ou reservadas, além de diversos
acampamentos na região sul-brasileira. Destaque para as regiões das Terras Indígenas:
Guarita e Nonoai (RS), Xapecó e Chimbangue (SC) e Palmas e Mangueirinha (PR) que
concentram 50% da população kaingang (VEIGA, 2006, p. 37). No Rio Grande do Sul,
ocupam áreas oficialmente demarcadas, áreas em fase de demarcação e diversos
acampamentos, concentrando-se ao lado sul da bacia hidrográfica do Rio Uruguai. A
população kaingang no Rio Grande do Sul é estimada em 23.924 pessoas,7 sendo a Terra
Indígena Guarita a maior área demarcada, com 23.406 hectares; e a população kaingang,
estimada em 6.100 pessoas, nos municípios de Tenente Portela, Redentora e Erval Seco.
A região de ocupação tradicional kaingang é considerada uma das ocupações humanas
mais antigas do sul do Brasil, sendo os kaingang identificados como “grupos coletorescaçadores que viveram ao longo das barrancas do Alto Rio Uruguai (atual divisa Rio Grande
6
7
Disponível em: <http://www.museudoindio.org.br/template_01/default.asp?ID_S=33&ID_M=115>. Acesso em:
05 ago. 2009.
Disponível em: <http://www.scp.rs.gov.br/principal.asp?conteudo=noticias&act=view&cod_noticia=85>. Acesso
em: 02 ago. 2005. Para calcular o número de pessoas, deve-se multiplicar o número de famílias por 6,5
componentes, alcançando o resultado de: 6.461 kaingang. A estimativa do número de componentes foi obtida da
seguinte informação: “O Rio Grande do Sul tem uma população indígena de 23.924 pessoas, distribuídas em
3.665 famílias, segundo dados da Secretaria da Agricultura”, divulgada no mesmo endereço eletrônico. Na TI
Guarita também vivem 45 famílias guarani.
29
do Sul – Santa Catarina)” (VEIGA, 2006, p. 37).8 Tais grupos não praticavam a agricultura,
tampouco a confecção de objetos em cerâmica. Estudos indicam que tal ocupação data do
período de 8.670 e 5.970 AP.9 A arqueologia denomina os grupos como cultura altoparananense. Estes grupos ancestrais na região do Alto Uruguai possuem semelhanças com
outros grupos que ocuparam a região de Missiones/Argentina, que, de acordo com estudos
arqueológicos, “estão possivelmente associados a casas subterrâneas e a túmulos circulares,
com fossos e valas, que serão marcas características – e exclusivas, no Sul – dos grupos Jê,
Kaingang e Xokleng” (VEIGA, 2006, p. 39).
A tradicionalidade na ampla ocupação kaingang e, também, sua expressiva população,
uma das maiores no Brasil, caracterizam-se como fatos relevantes contrários ao senso comum
de que inexistem comunidades indígenas nos estados do sul brasileiro, após a colonização por
imigrantes europeus. Na atualidade, a região ocupada pelos kaingang se distingue pela
ocupação das etnias indígenas no espaço amazônico do Brasil, caracterizado pela diversidade
étnica indígena. O povo kaingang ocupa um vasto espaço geográfico no Brasil meridional,
praticamente sem diversidade étnica indígena. As relações interétnicas são estabelecidas na
atualidade, sobretudo, com a sociedade não indígena. Tal fato não caracteriza a inexistência
da diversidade étnica no espaço geográfico tradicionalmente ocupado pelos ancestrais
kaingang, anterior à colonização por imigrantes europeus.
A tradicionalidade e amplitude da ocupação kaingang são confrontadas com a situação
atual. Estudos indicam que a faixa de domínio e trânsito kaingang, por exemplo, no século
XVII, confere à região entre as bacias dos rios Piratini,10 Jacuí e Caí, no atual estado do Rio
Grande do Sul (BECKER, 1975, p. 103; 1995, 13-4; ANDREI, 2009, p. 2). Os atuais espaços
garantidos e de uso exclusivo dos kaingang se constituem em espaços geográficos
8
Conforme indicação em mapa (VEIGA, 2006, p. 40), a região identificada como Alto Rio Uruguai consistiria na
região entre a foz dos rios Chapecó e Peperiguaçu (ambos à margem direita do Rio Uruguai), no curso do rio
Uruguai.
9
A sigla A.P. na arqueologia é a abreviação de Antes do Presente, tendo por base a data de 1950, definida como
padrão e referência para a datação dos eventos (Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Antes_do_Presente>
Acesso em: 03 fev. 2011). Segundo Didonê (2008), essa datação é utilizada na arqueologia “para se referir à préhistória que, nas Américas, segue divisão diferente do restante do mundo”.
10
Rio Piratini, aqui referido, é afluente da margem esquerda do rio Uruguai, com nascente na área de
abrangência do atual município de São Luiz Gonzaga. Às margens sul do rio Piratini, próximo a sua foz no rio
Uruguai, fundou-se a primeira redução jesuítica em solo rio-grandense, a 03 de maio de 1626, pelos padres
Roque González e Miguel de Ampuero, acompanhados pelo cacique Nicolau Nenguiru. A redução foi
denominada São Nicolau (São Nicolau do Piratini).
30
demarcados ou reservados,11 sendo estes fragmentados, reduzidos e limitadores no trânsito e
no acesso aos recursos naturais, que implica alteração no modo de ser e constituir-se
kaingang. Essa constatação torna-se relevante, pois implica nos propósitos da implantação da
educação escolar junto às comunidades kaingang, bem como na disposição e protagonismo
dessas ao estabelecer a educação escolar indígena.
1.3 CONFRONTOS INTERÉTNICOS COM A FRENTE COLONIZADORA
A ocupação pela sociedade não indígena do território tradicional kaingang no Rio
Grande do Sul é considerada como a ocupação da última fronteira interna do Brasil
meridional. Para Tau Golin (2003, p. 291), essa ocupação é a “extinção desse espaço indígena
e sua incorporação ao Estado-nação”. O historiador propõe que a historiografia da região
noroeste rio-grandense seja abordada na perspectiva da intrusão das frentes de ocupação não
indígenas ao território tradicionalmente ocupado pelos kaingang e guarani. Ou seja, a fixação
da fronteira interna no noroeste rio-grandense ocorreu na perspectiva da fricção interétnica,
num movimento processual da conquista territorial.
A fricção interétnica (indígena e não indígena) estabeleceu-se em disputa de fixação
de divisa entre Brasil e Argentina, como afirma Golin (2003, p. 291):
Em seu movimento processual, a conquista do noroeste sul-rio-grandense
pelo governo brasileiro dimensionou um fenômeno geopolítico de disputa
territorial entre o Brasil e a Argentina, a destruição de uma fronteira interna,
cujo território era dominando pelos kaingangs e guaranis [sic] – com o
objetivo de consolidação do Estado-nação – e a implantação de um modelo
baseado na pequena propriedade capitalista combinado com grandes
empreendimentos coloniais e extrativistas, especialmente de madeira.
A fixação da divisa geopolítica entre Brasil e Argentina, também a divisa entre os
estados brasileiros, pautou-se por critérios e modelos alheios aos povos indígenas. Sobre os
kaingang, é consenso entre os pesquisadores que a área de domínio tradicional, anterior à
intrusão das sociedades não indígenas, vinculava-se ao planalto meridional, de vegetação
dominada pela floresta ombrófila mista, composta por araucária angustifólia, e às encostas do
11
A demarcação de espaços geográficos tradicionalmente ocupados por comunidades kaingang é garantida pela
Constituinte Federal de 1988, artigo 231 e 232, que estabelece: “São reconhecidos aos índios […] os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens”. Os procedimentos administrativos para a demarcação das terras tradicionalmente
ocupadas são regulamentados pelo Decreto 1.775/1996 e Portaria do Ministério da Justiça nº 14/1996.
Também se sugere, para aprofundamento, TCC elaborado por Júlio Cesar Salles Ribeiro, kaingang graduado
em Direito-UNIJUÍ, em 2006, intitulado: “O direito de demarcação das terras originariamente ocupadas pelos
índios”.
31
planalto e litoral.12 Inclui-se também a região de Missiones/Argentina (VEIGA, 2008, p. 20;
FRANCISCO, 2006, p. 13; ANDREI, 2009, p. 2).
Justifica-se, assim, a importância de considerar tais elementos na reconstrução
historiográfica do espaço ocupado tradicionalmente pelos kaingang. Como demonstrado
anteriormente, a ocupação territorial dos kaingang é milenar. É a partir da intrusão da
sociedade não indígena a este território que se constituirá a implantação da educação escolar,
visando não somente auxiliar na ocupação territorial, mas também na conquista e interferência
cultural desse povo.
1.3.1 Kaingang e as reduções jesuíticas
As reduções jesuíticas nos séculos XVII e XVIII significaram o início da conquista do
interior do cone sul da América do Sul. Apesar da referência de que a ação jesuíta tenha
ocorrido somente com o povo guarani, talvez induzido pelos próprios missionários ao se
referirem sobre “pueblos de Guaraníes” (SANTOS; BAPTISTA, 2007, p. 241), é importante
ressaltar que o povo kaingang também foi alvo e teve reflexos da ação jesuítica. Destaca-se o
alerta de Robert Crèpeau (2002, p. 115), de que
A influência histórica das reduções jesuíticas sobre os Kaingang é, a meu
ver, subestimada e deverá ser objeto de uma pesquisa futura. A proximidade
geográfica das missões com o território ocupado historicamente pelos
Kaingang por certo implica uma participação desses últimos na esfera de
influência jesuítica.
Da mesma forma, tornam-se relevantes a disposição e o estudo de Freitas (2005, p. 5867) sobre a análise da territorialidade kaingang, em que argumenta serem relevantes o estudo
e a pesquisa sobre as missões jesuíticas e a participação ou influência sobre as parcialidades
kaingang. Os argumentos do resgate histórico são importantes para a “etnologia Kaingang na
medida em que fazem referências a aspectos socioculturais e a parcelas dos territórios
históricos em que acabaram à margem dos estudos contemporâneos” (FREITAS, 2005, p. 58).
Torna-se relevante garantir um breve espaço na dissertação para tal análise,
ressaltando que, na presente pesquisa, o interesse se concentra em apontar a influência e/ou a
participação dos kaingang nas reduções jesuíticas. Esse interesse é motivado pela percepção
de que esse pode ter sido o primeiro contato desses com a educação escolar, no caso na
12
Referente à ocupação do litoral, indica-se que o mesmo corresponderia, na atualidade, à faixa entre
Paranaguá/PR e Quintão/RS. Também há o debate sobre que tais espaços de ocupação e manejo ocorriam de
forma sazonal (FRANCISCO, 2006, p. 13).
32
modalidade de catequese. Desta forma, os primeiros registros de participação de kaingang
(denominados nos registros como Gualacho e Coroados) nas reduções jesuíticas são datados
do período de 1609 a 1629, em que se afirma a presença kaingang nas reduções de Guairá, de
Conceição de Nossa Senhora dos Gualucho e de Encarnação (CRÈPEAU, 2002, p. 115).
Essa informação é também apresentada pela antropóloga Andrei (2009, p. 1) ao traçar
um histórico do contato interétnico kaingang e sociedade não indígena. As reduções de Guairá
foram atacadas e dizimadas pelos bandeirantes paulistas. Após os ataques à Redução de
Guairá, os jesuítas transferem-se para a Província de Tape (atual Estado do Rio Grande do
Sul), fundando novas reduções entre 1632 e 1636, também influenciando grupos kaingang.
As dificuldades em constatar a participação ou influência das reduções jesuíticas sobre
os grupos ancestrais dos atuais kaingang ocorrem tanto pela variedade de termos que
designam os diferentes grupos Jê ocupantes do planalto, como a ideologia nacionalista lusobrasileira. Sobre essa última constatação é importante a análise que Freitas (2005, p. 58)
apresenta de que as fontes jesuíticas foram
[…] produzidas no contexto da experiência de contato hispânico-religiosa,
estas fontes foram por muito tempo negligenciadas na historiografia do Rio
Grande do Sul relativamente às fontes luso-brasileiras, em grande parte
devido ao viés ideológico nacionalista. Como já dito, em parte disto resulta
ser razoavelmente bem conhecida a história Kaingang no curso dos séculos
XIX e XX, enquanto pouco se sabe a respeito de suas populações, territórios
e territorialidades nos séculos XVI, XVII e XVIII.13
Acresce-se a essa negligência na historiografia rio-grandense o fato de que muitas das
designações geográficas e das demais etnias terem sido obtidas de forma indireta, através de
informantes guarani, com os quais os jesuítas tinham maior contato. Isso é evidenciado pelo
fato de os jesuítas terem gerado uma língua nas reduções baseadas no idioma guarani, por
serem os “Guarani a maioria da população missional”. Assim, as demais etnias e suas culturas
são entendidas e apresentadas por tais determinantes. Tal condicionamento de outras culturas
e etnias revela a situação de redução, não somente no aspecto geográfico, como tido no senso
comum, mas também nos aspectos linguístico e cultural, uma vez que os grupos sob a ação
dos missionários jesuítas não dominam nem determinam o padrão linguístico e cultural,
estabelecendo que:
13
A mesma situação é indicada para a historiografia do Mato Grosso do Sul, em estudo a redução jesuítica de
Itatim, em que se afirma: “Após a destruição das missões na região, o passado espanhol e resistência indígena
aos espanhóis e portugueses foi omitido na pena de historiadores comprometidos com o serviço à coroa
portuguesa e suas pretensões territoriais sobre esta região concretizadas com o Tratado de Madri (1750)”
(SOUZA, s/d, p. 5).
33
Com isso, os missionários não apenas reduzem a cultura Guarani, mas
também todas as demais à primeira, ocasionando, assim, um fenômeno que
se estende, sobretudo, à historiografia clássica. Os não-Guarani, de fato
efetivos naquele processo, são relegados a um papel de última importância,
quando não absolutamente ignorados pelos historiadores. Como resultado,
tais grupos permanecem com sua história suprimida, ocorrendo, como no
caso dos Jê, uma pré-história que salta diretamente à história contemporânea,
especificamente a partir do século XVIII (SANTOS, BAPTISTA, 2007, p.
241).
Desta forma, pode-se justificar que a atual toponímia persista com nome em guarani
ou “guaranizado”, mesmo nos espaços de ocupação tradicional kaingang. Da mesma forma,
deve-se considerar que a designação para os demais grupos étnicos é estabelecida a partir da
fonte guarani-jesuítica. De fato, esse é o ocorrido com os ancestrais dos atuais grupos
kaingang, que foram designados “como guainá, no século XVI, pinarés, caáguas, entre
outros, nos séculos XVII e XVIII, e coroados, bugres e botocudos” (FRANCISCO, 2006, p.
12-3).
De acordo com Veiga (2008, p. 20), a variação das designações é maior, pois “nos
mapas e documentos coloniais encontram-se nomes como Guaianá, Goianá, Guananás ou
Guananáses, Ybiraiyaras ou Ibiraiaras, Gualachos, Chiquis ou Chequis, Cavelludos,
Coronados ou Coroados, Camperos e, ainda, Pinares, denominação que se refere à ocupação
dos pinheirais”. Veiga (2006, p. 42-3) esclarece que nem todas as designações na
documentação histórica podem fazer referência aos ancestrais dos atuais kaingang, “o que é
possível concluir da descrição de características culturais na própria documentação”.
Contudo, Veiga (2008, p. 20) enfatiza que a documentação jesuítica do século XVII corrobora
na ocupação preponderante dos kaingang na região do rio Ijuí até o Alto Jacuí, então
denominados como “Guaianás”.
Becker (1975, p. 98; 1995, p. 11) indica que, pelo tipo de economia, baseada na
horticultura, aos kaingang “não se estabelece influência jesuítica”, excetuando “as tentativas
de Cristóvão de Mendonça, em meados do século XVII, entre os Pinaré e a Redução de
Conceição”. Ainda conforme Becker (1983, p. 105), as diferenças socioeconômicas das
diferentes etnias indígenas podem ser determinantes na realização das missões jesuíticas, pois
“os Guarani, dados à agricultura, estavam mais condicionados a um tipo de vida sedentária, o
que não aconteceu com os Kaingáng, embora também pequenos horticultores”. Nessa
perspectiva, Becker (1983, p. 107) admite que a atuação de missionários jesuítas junto aos
34
kaingang ocorre a partir do retorno em 1842, quando se reiniciam “as atividades apostólicas
no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina durante os anos de 1848 a 1855”.
Contudo, como apontado pela designação jesuítica a outros grupos étnicos, a ação
missionária também ocorreu entre diferentes grupos kaingang no Rio Grande do Sul. Por
vezes, os contatos foram considerados esporádicos e de pouca relevância, no entanto
apresentam evidências históricas na conturbada ocupação ibérica. A situação conturbada
considera as diversas reações dos grupos indígenas frente à ação de ocupação políticaterritorial, com a implantação das missões jesuíticas. Assim, a aceitação, as fugas, guerras ou
alianças empreendidas pelos diferentes grupos dependiam “do momento histórico motivadas
por disputas entre os diversos grupos nativos, ou entre estas e também com os ocidentais”
(FRANCISCO, 2006, p. 16-7).
Referente, especificamente, à ação missionária jesuítica no atual território do Rio
Grande do Sul, são garantidas a presença e influência a grupos kaingang durante os séculos
XVII e XVIII (VEIGA, 2008, p. 20). Conforme indicado, “os Kaingang estiveram presentes
nas missões jesuíticas nas Reduções de Santa Tereza (atual Passo Fundo) e de São Carlos
(atual Carazinho), e São Miguel” no período anterior aos ataques dos bandeirantes na década
de 1630 (VEIGA, 2009, p. 59). Além da constatação de que os kaingang participaram e foram
influenciados pela ação jesuítica no século XVII, também se afirma que os mesmos
impuseram uma fronteira na expansão das reduções. A antropóloga Freitas (2005, p. 59), ao
analisar a territorialidade kaingang, afirma que quando
[…] da fundação das Missões do Tape (1627-1641), [os jesuítas] se
deflagraram com as territorialidades Kaingang (Ibirajara) tensionando e
opondo limite à expressão missionária (e Guarani), a partir dos territórios
que estes índios então ocupavam e que incluíam a margem oriental do Lago
Guaíba, onde se assenta o atual município de Porto Alegre.
O limite da expansão missionária era reconhecido através da Redução de Santa
Tereza,14 considerada como ponto mais avançado, uma vez que adiante, ao norte e a leste, se
encontrava o território dos “ferozes ibirajaras”, tida como uma parcialidade kaingang
(FREITAS, 2005, p. 96-7). Esse limite também é o limite entre as províncias de Tape e
Ibiaçá.15 Reconhece-se que a Província de Ibiaçá é território dominados pelos Jê Meridionais
14
Instalada “no divisor de águas dos rios da Várzea e Jacuí, na abrangência do atual município de Passo Fundo e
fundada em 1632 pelo padre Ximenes” (FREITAS, 2005, p. 96).
15
“Os limites da Província de Ibiaçá se estendiam de Laguna, pelas cabeceiras do rio Pelotas, seguindo pelo rio
Uruguai até o rio Turvo (Uruguai-pitã). Deste ponto, segui o curso do Turvo até suas cabeceiras, no divisor de
águas, para então alcançar as cabeceiras setentrionais do Jacuí e prosseguir por todo seu percurso até a Laguna
35
(Kaingang e Xokleng). Freitas (2005, p. 61), apoiada nos estudos de Aurélio Porto, assinala
que essa província foi a única “não ocupada por Reduções jesuíticas, mas apenas por vacarias
e ervais, dada a resistência e hostilidade indígena (principalmente Kaingang) à empresa
missioneira”.
Além do reconhecimento de que os grupos kaingang impuseram limites à expansão
jesuítica, também foram registrados conflitos com parcialidades kaingang, como o indicado
na morte do jesuíta Roque Gonzalez em Caaró.16 O Pe. Antônio Ruiz de Montoya ([1639]
1985, p. 196-207), supervisor geral dos jesuítas hispânicos, relata que a região era dominada
pelo cacique Neçú, que matou três religiosos jesuítas. Para Ítala Becker (1975, p. 104; 1995,
p. 14)17, a morte do Pe. Roque Gonzalez na Redução de Caaró decorre da recusa à imposição
de mudanças de hábitos no modo de vida, no caso a prática da poligamia, “destacando-se os
Caaró, para os quais a proibição desse hábito foi a principal causa de seu levante contra os
jesuítas”. Becker também indica o abandono do adorno labial, pela parcialidade Pinaré, como
outra mudança de hábito influenciada pelos jesuítas em grupos ou parcialidade de ancestrais
kaingang.
Registraram-se conflitos de ordem econômica, no caso o domínio e exploração de
ervais entre guaranis missioneiros e kaingang, na região de domínio do cacique Nheçu, entre
os rios Ijuí e o Uruguai-pitã (rio Turvo). “Nesta região, de acordo com a narrativa histórica de
Nicolau Mendes (1954) se dariam, no ano de 1752, as contendas entre Guarani missioneiros e
dos Patos e o canal do Rio Grande” (FREITAS, 2005, p. 61). Apoiada na pesquisa de Aurélio Porto, Freitas
(2005, p. 59-60) afirma que “o conhecimento colonial sobre o Rio Grande do Sul desde os primeiros registros
se estabeleceu três províncias etnográficas: Uruguay, Tape e Ibiaçá. Estas designações assinalavam regiões
distintas, já perfeitamente delimitadas, quer por acidentes geográficos, quer pela existência de ‘nação
aborígene’: a Província do Tape [onde se concentraram as reduções jesuíticas] inseria-se entre a do Uruguay e
a do Ibiaçá, como uma grande cunha territorial”.
16
Baptista (2002, p. 196) afirma que Caaró é uma “antiga denominação para os grupos Coroados (Kaingang)”.
17
Freitas (2005, p. 60), em nota explicativa, afirma: “A filiação de Ítala Basile Becker (1995) ao esquema
etnográfico proposto por Antônio Serrano (1936), associado ao fato de Nheçú e Tabaca serem termos do
idioma Guarani, fez com que esta autora incorresse no equívoco de considerar o Cacique Nheçú (ou Niezú),
assim como toda a sua parcialidade Caaro, sua subordinada, como sendo Kaingang e não Guarani. Cabe
ressaltar que tanto o cacique Nheçú como a sua parcialidade Caaro (ou Caaroguara), sua subordinada, são
referidos pelos jesuítas como parcialidade Guarani da nação Tape, e como tal foram mantidos no esquema
etnográfico de Aurélio Porto [...]”. Apoiando-se nessa definição de Aurélio Porto, de que esses caciques eram
Guarani, Freitas (2005, p. 96) irá concluir que a morte dos padres Roque González, Cristóvão Mendonza e
João de Castilho, pelo cacique Nhençú e sua gente, revela “que os Guarani não eram hegemonicamente
adeptos à experiência jesuítica. Em outras palavras, As Missões e a catequese não atingiram de forma
homogênea todas as unidades político-territoriais deste povo”. O mesmo fato é registrado sobre a redução de
Itatim (MS), sobre a qual se afirma: “Na época das missões, nem todos os itatines viviam nos povoados, mas
junto de suas parentelas nos arredores das missões e ali permaneceram após a retirada dos missionários. O fato
de não permanecerem dentro das missões denota uma resistência às práticas catequéticas dos missionários e
uma articulação com os residentes nas missões por meio do comércio constante que, entre os itatines, já havia
antes da chegada dos castelhanos e missionários” (SOUZA, s.d., p. 6).
36
Kaingang em torno da exploração dos territórios dos ervais, resultando na configuração do
‘Império dos Coroados’” (FREITAS, 2005, p. 60). Conforme pesquisa de Becker (1992, p.
158), os ervais da Redução de Santo Ângelo, fundada em 1707, eram formados por “ervais
nativos do Nhucorá até o Rio Conceição, em terras posteriormente dominadas pelo Cacique
kaingáng Nonohay”.
A implantação das reduções jesuíticas nos séculos XVII e XVIII é considerada como
uma das
primeiras ações expropriatórias de terras indígenas. Estes jesuítas não só se
apropriaram diretamente de terras indígenas para a implantação de seus
projetos missionários, como houve imposição de uma nova organização
espacial, implementada de acordo com finalidades religiosas, habitacionais e
produtivas. Talvez a implicação mais dramática desta imposição tenha sido e
seja a sedenterização. Embora muitos indígenas tenham aceitado com certa
tranqüilidade a presença de missionários, autores como Montoya também
documentaram a resistência de muitos outros a tais projetos (SIMONIAN,
1995, p. 85).
Os reflexos da expropriação persistem aos grupos e comunidades kaingang no século
XXI, quando, ao analisar as situações de violência e expropriação sofridas pela comunidade
da Terra Indígena Guarita (Tenente Portela, Redentora, Erval Seco/RS), a pesquisadora
Simonian (1993, p. 35) afirma que tal situação é consequência das “pressões e mesmo
transformações impostas pelas ‘conquista espiritual’ nos séculos XVII e XVII [sic] [XVIII]” a
seus ancestrais.
A informação pode ser referendada também pelo historiador Luis Fernando Laroque,
citado por Freitas (2005, p. 97), que informa que o cacique (pa’i mág) Fongue, liderança na
região dos rios Guarita e Turvo, “teria estado na Redução de Santo Ângelo (da segunda fase)
em 1767 [sic] [1677?], mas com a expulsão dos jesuítas saiu com sua gente e retornou ‘à vida
selvagem’”. A informação citada sugere a presença de parcialidades kaingang nas reduções
jesuíticas, pelo menos na segunda fase das Missões (1682-1750).
Outra evidência apontada por Laroque é a de que, posteriormente ao evento das
reduções jesuíticas, as parcialidades kaingang teriam retornado à ocupação de antigos
territórios. Essa evidência é corroborada por Veiga (2008, p. 20), ao afirmar que, “com o fim
dessas missões, puderam voltar ao seu modo de vida tradicional, até a penetração de seus
territórios pelas frentes pastoris, na primeira metade do século XIX”. Noutro momento, Veiga
(2009, p. 59) também induz à compreensão de que a ocupação pelos não índios às terras de
ocupação tradicional kaingang inicia-se após o evento da Guerra Guaranítica, em 1756.
37
O evidenciado até o momento comprova a presença, a adesão, o confronto e a
influência da ação missionária jesuítica sobre grupos, parcialidades ou comunidades
kaingang, nos séculos XVII e XVIII, na área que se configurou como o atual Estado do Rio
Grande do Sul. Veit (1995, p. 133), inclusive, aponta que os kaingang participaram das
missões jesuíticas de São Miguel, onde receberam ensinamentos catequéticos. No entanto,
ainda persiste o debate sobre o quanto a ação jesuítica incidiu sobre os kaingang. De acordo
com a historiadora Andrei (2009, p. 2), “foram poucos os que aceitaram viver sob o comando
dos jesuítas, os Kaingang viveram livres nas regiões de campos e florestas do sul do país até o
século XIX, quando foram conquistados”. Retomam-se, aqui, as ressalvas apontadas
inicialmente, da necessidade de mais pesquisas sobre o tema, uma vez que é recente a
percepção e a consideração sobre a questão linguística nos registros jesuíticos, fontes
primárias, bem como a questão da historiografia nacionalista luso-brasileira frente ao período
de ocupação hispânico-religioso do atual território sul rio-grandense.
Ratifica-se que ocorreu ação missionária jesuítica junto aos grupos e comunidades
kaingang, sobretudo junto às que se referem à área de interesse a essa pesquisa, a saber, a
região do atual território da TI Guarita. Sabe-se que o propósito da ação jesuítica era a
civilização e/ou cristianização dos grupos indígenas, utilizando-se da metodologia catequética
para tal, implicando a mudança de hábitos, caracterizadas como expropriação cultural, como
apontado anteriormente. A catequese jesuítica pode ser considerada como primeiro contato
das comunidades indígenas com a educação escolar não indígena. Assim, evidenciar e
ressaltar que houve a participação ou adesão kaingang nas missões jesuítas, e a influência
dessas junto aos kaingang, visa demonstrar que há tempos busca-se implantar a educação
escolar junto a tais comunidades. Posteriormente, neste estudo, retomar-se-á a metodologia do
ensino catequético, no intuito de apresentar quais suas características e pressupostos.
1.3.2 Período pós-jesuítico e século XIX
Ao término das reduções jesuíticas, na segunda metade do século XVIII, os grupos e
parcialidades kaingang se expandiram pelas “terras de planalto no Sul do país, em áreas de
florestas subtropicais e de araucária, desde o Estado de São Paulo aos estados da região Sul”.
Quando esse território novamente é alvo de investidas pela sociedade não indígena, isso
provoca forte reação dos diferentes grupos (ANDREI, 2009, p. 2). A ocupação kaingang no
território do atual Estado do Rio Grande do Sul foi identificada desde o Rio Piratini (afluente
da margem esquerda do Rio Uruguai) até as cabeceiras do Rio Pelotas, e ao sul os limites são
38
“os últimos contrafortes do Planalto Sul-Rio-Grandense junto à bacia do Caí”, caracterizando
a mesma área ocupada pelos Guaianá (ancestrais dos kaingang), nos séculos XVII e XVIII
(BECKER, 1975, p. 107; 1995, p. 15). Especula-se que com o fim das missões jesuíticas os
kaingang, que estiveram presentes nas reduções, “puderam voltar ao seu modo de vida
tradicional, até a penetração de seus territórios pelas frentes pastoris, na primeira metade do
século XIX” (VEIGA, 2008, p. 20).
No entanto, a região em que se localiza a atual TI Guarita já era de conhecimento dos
missionários jesuítas, que enviaram um grupo para realizar uma expedição, organizada a
partir da Redução de São Miguel. Relata-se que, em 1752, o superior de São Miguel
organizou uma expedição composta por trinta índios guarani e encabeçada por dois espanhóis,
Miguel de Aguillar e Alejandro Martinez, para explorar os ervais entre os rios Turvo e
Guarita. A expedição foi atacada por um grupo kaingang liderado pelo cacique Konkó, da
aldeia do Campo Novo, sendo preservada somente a vida de Miguel de Aguillar. O espanhol
foi “adotado” pelo cacique principal Fongue. Miguel de Aguillar destacara-se entre os
kaingang, participando de lutas contra os Xokleng, sendo nominado como “Fondegue” e
desposando-se com mulheres kaingang. Um de seus descendentes foi o cacique Nonohay.
Atribui-se a Fondegue e Fongue a organização e junção de vários grupos e parcialidades, pois
conseguiram unir diversos grupos indígenas desta região, “Kaingángs e Coroados, das
diversas aldeias do Nhucorá, do Campo Novo, do Rincão do Guarita, do Pary e do Erval Seco
formando o Império dos Coroados, entre os anos de 1752 e 1772” (VEIT, 1995, p. 133;
RAMOS, 2008, p. 120-1).
Assim evidencia-se que o contato interétnico entre os kaingang e a sociedade não
indígena na região do Alto Uruguai intensifica-se no final do século XVIII, consagrando-se
em meados século XIX, quando grupos e parcialidades kaingang passam a viver sob os
aldeamentos. Ressalta-se que a região do Alto Uruguai foi a última fronteira agrícola a ser
ocupada e apropriada, daquilo que atualmente se constitui o território do Rio Grande do Sul.
Conforme aponta Zarth (1996, p. 69):
A construção da atual sociedade da região tem como marco inicial, a
conquista do território das Missões, em 1801. A ocupação do território por
parte de milicianos rio-grandenses naquela data, marca a construção de um
novo tipo de sociedade, diferente daquela construída pelos indígenas sob o
controle dos jesuítas. A nova sociedade regional, em sua primeira fase, teve
como características mais salientes a grande propriedade pastoril, o
extrativismo de erva-mate e a escravidão. Uma segunda fase importante
iniciou no final do século XIX, com um amplo processo de distribuição e
39
comercialização de terras e imigração, dando origem à uma forte expansão
demográfica com base na pequena propriedade agrícola.
A região do Alto Uruguai é limítrofe ao espaço das reduções jesuíticas, que foram alvo
de ações de litígio entre Brasil e Argentina até a década de 1830, quando o território jesuítico
consolida-se como território brasileiro. Nesse contexto, a região do Alto Uruguai é
considerada como espaço de “‘fronteira interna’ de ‘fricção interétnica’”, que necessitava ser
vencida para a consolidação do Estado-nação brasileiro (GOLIN, 2003, p. 291). A partir da
década de 1830, quando o processo litigioso das fronteiras internacionais se resolve, se
estabelecera “a ocupação efetivas dos campos missioneiros com o estabelecimento de
centenas estâncias” (ZARTH, 2002, p. 117).
As tentativas de ocupação da região entre os rios Turvo e Guarita já ocorreram durante
a década de 1820, com reação dos grupos kaingang. Relata-se que em 1827 ocorreu um
combate entre kaingang e invasores luso-brasileiros, sendo que “a derrota indígena ficou
conhecida como ‘Pontão da Mortandade’ e grande parte da aldeia se transferiu para a região
do Guarita formando duas aldeias distintas: a da Estiva e da Campina” (VEIT, 1995, p. 134).
No ano seguinte, em 1828, instala-se nos campos de Rincão da Guarita o Ten. Cel. Joaquim
José de Oliveira, em terras então doadas pelo Governo Imperial do Brasil. Conforme o
historiador Hugo Veit (1995, p. 134), ocorre nesse ano uma primeira aproximação entre
grupos kaingang e o Ten. Cel. Joaquim José de Oliveira.
O Cacique Fondengue ou Dom Miguel de Aguillar procura o Ten. Cel.
Joaquim José de Oliveira visando uma aproximação entre brancos e índios.
O Cacique Prudente de Rincão Guarita e sua aldeia aceita a pacificação sob a
condição de branco respeitar os ervais do Nhucorá e as terras da Guarita
(entre os rios Turvo e Guarita). No final de 1828 morre Fondengue e o
Cacique Prudente, ajudado pelo Ten. Cel. Joaquim José de Oliveira
consegue a pacificação dos grupos liderados por Fongue, principalmente
Nhucorá e do Erval Seco.
O estabelecimento do Ten. Cel. Joaquim José de Oliveira na região ocorreu em acordo
aos propósitos do governo da época de povoar a região de fronteira e, também, por interesses
econômicos. Os interesses econômicos se evidenciaram através da extração dos ervais
nativos, tida como geração de renda desde a época das reduções jesuíticas do século XVII. O
interesse econômico na exploração dos ervais da região foi estimulado, sobretudo, pela
suspensão da exportação de mate pelo governo paraguaio (ZARTH, 1997, p. 117). Assim, a
expansão e ocupação da região dos campos e ervais do Alto Uruguai organizaram-se a partir
de Cruz Alta e Villinha (Palmeira das Missões) (MELIÁ, 1983, p. 176).
40
Apesar da indicação de pacificação de grupos kaingang no período de ocupação e
expropriação do território kaingang, registra-se que ocorreram resistências e confrontos entres
as frentes de ocupação e grupos kaingang, como mencionado no evento acima, do Pontão da
Mortandade. Tau Golin (2003, p. 293) afirma que “a única resistência à progressão brasileira
era a indígena. Assim, não era uma alteridade com a dimensão do inimigo estrangeiro, mas de
um ‘entulho’ interno a ser removido”, convertido num “etnocídio”. A resistência apontada por
Golin também é constata por Laroque (2006, p. 127) ao relatar a aproximação de grupos ou
parcialidades kaingang do Rincão de Guarita, na década de 1840, a grupos invasores não
indígenas. Essa aproximação não foi unânime entre os kaingang, pois houve a dissidência de
parte deles, que “atravessaram o rio Uruguai em direção ao rio Peperi-Guaçu para viverem
com as facções lideradas por Nhancurá e Nonêcofé”.
Como já indicado anteriormente, parte do grupo kaingang, liderado pelo cacique
Fongue, influenciado por Dom Miguel Aguillar, alcunhado Fondegue, já havia se aproximado
do Ten. Cel. Joaquim José de Oliveira em 1828. Conforme Gasparetto (2006, p. 23), pode-se
constatar uma política de cooptação de lideranças kaingang, inclusive com designação de
patentes militares, que contribuiu na “pacificação de dezenas de grupos rebeldes que foram
vencidos entre 1840-1930”. Esta prática, de cooptação de lideranças para a pacificação e
subjugação dos diferentes grupos, ocorreu como uma prática oficial de conquista e
expropriação aos kaingang.
Pode-se dizer que, a partir da segunda década do século XIX, com o
interesse crescente da sociedade luso-brasileira sobre as terras ocupadas pela
população Kaingang, a conquista dessas terras realizou-se à custa de
violência generalizada contra todos os grupos que se opuseram-se a ela,
violência essa freqüentemente praticada por grupos indígenas já submetidos
e aliados ao ‘brancos’, armados e subvencionados pelos governos
provinciais. Nessa triste história destacaram-se os nomes de alguns caciques
Kaingang que serviram aos interesses luso-brasileiros, como os de Condá,
Viry, Doble, Portela, Prudente e Fongue. Viry e Condá colaboraram,
inclusive, no extermínio e submissão de grupos Xokleng (VEIGA, 2006, p.
53).18
Porém, a suposta cooptação de liderança é entendida pelo historiador Laroque (2006,
p. 127-9) como uma mudança de postura dos próprios kaingang. Para o historiador, as
18
Torna-se relevante constatar que muitas dessas lideranças são reverenciadas como heróis regionais, mitos
fundantes da historiografia não indígena de municípios. Exemplifica-se com o Cacique Condá, reverenciado
como herói e desbravador na cidade de Chapecó/SC, com estátua na área urbana central, nominação de bairro,
de estação de rádio, entre outras homenagens. Da mesma forma, porém em menor proporção, ocorre no
município de Cacique Doble/RS. Marcon (1994, p. 101) relata que Condá firmou acordo, em 1846, com o
governo da Província de São Pedro, recebendo gratificação mensal para aldear indígenas.
41
lideranças kaingang avaliaram que não poderiam fazer frente à expansão luso-brasileira.
Como também tinham interesses de estabelecer alianças com estes, para “fortalecerem-se
contra as parcialidades inimigas e também interessados em utensílios, roupas, etc introduzidos
pelos estrangeiros, recorrem à política de alianças”. Conforme tal entendimento, não se
especula que a totalidade kaingang aderiu à proposta de aliança, mas que, pelo menos por
algum tempo, “facções de lideranças Kaingang como, por exemplo, a de Fongue, Votouro,
Nonohay, Condá, Nicafim, Braga, Doble, entre outras, as quais seguindo aos interesses de seu
grupo […] cogitavam ou não alianças para em troca de estabelecerem-se com seus liderados
nos aldeamentos”. Assim, pode-se compreender a indicação de que, voluntariamente, os
kaingang se apresentavam para aldear. Pois, conforme Laroque (2006, p. 128),
[…] foram os próprios Kaingang que mudaram de estratégia em relação aos
brancos, sinalizando para a política de alianças, o que vai culminar com a
atuação dos padres jesuítas em seus territórios, a partir de 1845, atendendo o
projeto do governo para concentrá-los em aldeamentos. […] este projeto
ocorreu por um lado, devido à situação conflituosa envolvendo “índios” e
“brancos” praticamente durante toda a primeira metade do século XIX e, por
outro, em decorrência de que os governantes, aproveitando-se dos jesuítas
espanhóis […], se encontravam no Rio Grande do Sul por terem sido
expulsos da Argentina, pelo ditador Juan Manuel Rosas.
A cooptação por parte do governo, ou a busca de aliança de lideranças kaingang,
possibilitou o atendimento da demanda do governo imperial e provincial da época: a
comunidade indígena como povoadora da faixa de fronteira do Brasil com as repúblicas do
Prata. A tese é apresentada pelo historiador Paulo Zarth, para quem a intenção governamental
não era eliminar, mas “submeter e controlar os nativos”.
Isso implicava adotar outras medidas no sentido de garantir a presença dos
índios na zona de fronteira, mas de forma pacífica. O governo estabeleceu
uma política de aldeamentos – por via da catequese – para delimitar o espaço
de atuação dos índios e sistematizar o controle da população, utilizando-a à
medida do possível para os interesses governamentais, integrando-a, por via
da produção, à comunidade regional. Ao mesmo tempo, adotou-se uma forte
repressão aos que se negavam a aldear-se ou criavam problemas (ZARTH,
1997, p. 40).
Para Tau Golin (2003, p. 292), tal propósito governamental visava, no entanto, liberar
os territórios para a colonização, afirmando que “os kaingang foram limpados do noroeste
juntamente com as matas, para que o território fosse ocupado com os contingentes da
‘colonização branca’”. Para tanto, utilizou-se uma campanha de usurpação, através de ordens
religiosas, na “criação de aldeamentos para confinar os indígenas”. Zarth (1996, 73) também
afirma que o interesse do governo era a colonização e comercialização dos espaços liberados
42
pelo aldeamento, pois constata que, a partir de 1850, após promulgação da Lei de Terras, se
constitui um processo crescente de privatização das matas, que passaram gradativamente ao
controle privado.
Assim, nesse contexto, é que se estabelecem os aldeamentos nominados como
“Reduções dos índios Bugre e Coroados”, induzidos pelo governo, com apoio inicial de
fazendeiros e ervateiros, e realizados por um grupo de jesuítas espanhóis, que haviam sido
expulsos da Argentina pelo ditador Juan Manuel Rosas, como mencionado anteriormente
(MELIÁ, 1983, p. 177; LAC, 2005, p. 43; LAROQUE, 2006, p. 128; SIMONIAN, 1995, p.
87). Estabelecem-se, então, entre 1848 e 1850, os aldeamentos de Guarita, Nonohay e Campo
do Meio, que “tinham como objetivo específico, concentrar as várias tribos indígenas dos
Figura 2: Mapa do território kaingang no século XIX
Fonte: LAROQUE, 2007, p. 36.
43
caciques Nonohay, Fongue e Braga em áreas determinadas, para atender ao avanço da
colonização”, sobretudo a colonização de imigrantes germânicos (BECKER, 1983, p. 108).
A instituição dos aldeamentos também seguia a percepção da época de que “a
catequese e civilização dos índios vinha ser sinônimo de redução dos índios em aldeamentos.
[…] que tão úteis nos podiam ser” (MELIÁ, 1983, p. 177). Denota-se que ainda persistia a
mentalidade de que as comunidades indígenas, além de serem usurpadas e expropriadas de
seus territórios, auxiliassem no desenvolvimento econômico local ou regional, constatado pela
expressão “tão úteis nos podiam ser”. Essa é uma das razões apontadas para o estabelecimento
do projeto dos aldeamentos indígenas na província. Destaca-se que tais projetos foram
debatidos e implantados a partir de 1846, ano posterior ao final da Guerra Farroupilha (1845).
As razões econômicas, como já apontadas, somaram-se a razões sociais e políticas, que
objetivavam reduzir e impedir os conflitos entre indígenas, colonos e fazendeiros (MARCON,
1994, p. 103-4).
Referente à região do rio Guarita, relata-se que o cacique Fongue se apresentou
voluntariamente ou pacificamente, acompanhado por cerca de duzentos índios, ao Ten. Cel.
José Joaquim de Oliveira, para aldear-se, em 1847. No ano seguinte, em 1848, o Pe. Bernardo
Parés, superior do grupo jesuíta, visita a aldeia de Guarita e designa dois padres para a ação
missionária (MELIÁ, 1983, p. 176-7; LAROQUE, 2006, p. 12; VEIT, 1995, p. 134; LAC,
2005, p. 43; NONNENMACHER, 2000, p. 34; GASPARETTO, 2006, p. 24-5). Indica-se que
já no segundo ano do aldeamento, em 1849, a parcela aldeada tornou-se “pacíficos
agricultores sedentários e produtores de erva-mate para o mercado”, fato que agradava as
autoridades locais, mesmo que nem todos os grupos aceitassem tal condição (ZARTH, 1997,
p. 43-4). Aliás, o objetivo de fazer trabalhar as parcelas aldeadas é descrito explicitamente
pelo Pe. Parés (1848, fl 2)19 como um dos objetivos da catequese:
Julgo pois conveniente pª a Cathequese, que os PP Missionários desde já por
huma escola pª ensinar a ler e escrever aos meninos: assim se acostumarão a
estar separado dos mais velhos, e se poderá lograr de faze-los trabalhar
separadamente.
Contudo, tal proposição não se realizou, uma vez que a ação jesuítica junto aos
kaingang foi encerrada. Com efeito, “no dia 1º de janeiro de 1852, o superior da Missão, Pe.
Bernardo Parés, dava por encerrada a missão e os compromissos assumidos com o Governo
da Província a este respeito” (MELIÁ, 1983, p. 177). As justificativas são diversas. Os padres
19
Acervo do Museu Antropológico Diretor Pestana, FIDENE-UNIJUÍ. Pasta Cathequese dos Índios.
44
jesuítas apontaram: as dificuldades no ensino da doutrina cristã; as impossibilidades do
aprendizado da língua kaingang; o mau exemplo de outros cristãos e a própria falta de
respeito humano e a preguiça dos kaingang são razões apresentadas pelo Pe. Villarrubia como
motivos do fracasso catequético (LAROQUE, 2006, p. 128). Aliás, apesar da ressalva
apontada no caso de Guarita, no geral consideravam-se os kaingang aldeados como
“‘ordinários’ e ‘indolentes’, por não se dedicarem ao trabalho e não reconhecerem as
vantagens da civilização” (NONNENMACHER, 2000, p. 33). Considera-se, ainda, o fato de
que as parcialidades que se submeteram ao aldeamento não permaneceram ali continuamente,
mas que, por vez, atendidos os seus interesses, retornavam aos espaços anteriores do
aldeamento (LAROQUE, 2006, p. 299).
Ressalta-se o envolvimento dos padres jesuítas na defesa das comunidades kaingang
frente aos interesses de fazendeiros e intrusos nos aldeamentos (LAC, 2005, p. 44) como fato
em desacordo aos propósitos provinciais ou político-econômicos com as reduções. Para a
antropóloga Simonian (1995, p. 87), o envolvimento do Pe. Parés na questão das terras
kaingang sobressaiu na ação missionária, o que se evidencia nas correspondências de 1848,
1850 e 1851. Meliá (1983, p. 177) também indica que “a recusa dos índios para se juntar a
grandes aldeamentos e o escasso interesse que mostravam para o trabalho agrícola”
dificultaram a proposta de uma catequese sistemática. Essa situação, agregada ao fato de
haver um baixo número de índios aldeados – em Guarita se contabilizava cerca de 250
kaingang – impulsionou uma “oposição movida pela maçonaria tanto a nível de Governo
como a nível de opinião pública[sic]”, provocando o fim da ação jesuítica nos aldeamentos
kaingang. Além de tais motivos apontados, Meliá (1984, p. 15, 17) ainda afirma que houve o
desejo dos colonos, estancieiros e fazendeiros de que a ação dos padres jesuítas nos
aldeamentos pudesse “facilitar a entrega das terras dos índios”. Mas, ao perceberem que os
“padres defendiam os direitos dos índios e denunciavam as injustiças e mortes praticadas
contra eles, deixaram de apoiá-los”, o que provocou o desânimo e a desistência da ação jesuíta
junto aos aldeamentos.
Considera-se que, de modo geral, em comparação à experiência anterior das missões
jesuíticas, nos séculos XVII e XVIII, a proposta desenvolvida entre os kaingang no período de
1846 e 1852, “no que se refere aos preceitos da ‘catequese’ e ‘civilização ocidental’” não foi
satisfatória (LAROQUE, 2006, p. 128), sobretudo a julgar pelas manifestações do setor
político-administrativo da província. Ao comparar essa proposta com as missões dos séculos
45
anteriores com o povo guarani, Becker (1975, p. 110-1; 1995, p. 19) afirma que assim ocorreu
pelo fato de os kaingang não se disporem ao sedentarismo e às atividades agrícolas como base
econômica.
Cabe ressaltar que, de modo semelhante ao período anterior das missões jesuíticas, a
ação missionária junto aos kaingang significou um período de mudanças culturais. Outra vez
se exemplifica com o combate à poligamia cacical a adesão ao uso de vestuário, a
sedentariedade e a agricultura como base econômica (BECKER, 1995, p. 18-9). Estipula-se
que os aldeamentos visavam “a transformação dos antigos costumes dos indígenas, que de um
modo de vida primitivo, baseado na caça, coleta e agricultura incipiente, passariam a
participar dos modos de produção modernos”, incutindo a percepção capitalista de lucro na
comercialização dos excedentes no custeio das despesas dos aldeamentos (BRIGMANN,
2009, p. 7).
A decisão pelo final da ação jesuítica nos aldeamentos kaingang coube ao presidente
da província, conforme manifestação em 1851, ao afirmar que os padres missionários e os
“gastos na catequese e civilização dos indígenas” eram sustentados pelos cofres provinciais
(NONNENMACHER, 2000, p. 36). No caso,
A opinião do Presidente da Província, Patrício Correia Câmara, era a de que
não se empenhassem e nem se fizessem tantos gastos com aquilo que
dependia só do tempo. Que os índios fossem deixados entregues a si
mesmos, que fossem tratados com bondade, uma vez que eles não aceitavam
a “generosidade” do governo, o qual estava pronto para lhes levar as “luzes”
e os “benefícios” da civilização (NONNENMACHER, 2000, p. 37).
A suposta generosidade e benefícios da civilização passariam, então, a ser exercidos e
administrados de forma laica, diante do suposto fracasso eclesiástico. Esse fracasso foi
expresso de forma contundente pelo vice-presidente da província de São Pedro do Sul, Luiz
A. L. de Oliveira Bello, na abertura da Assembleia Provincial em primeiro de outubro de
1852, ao afirmar: “de catequização propriamente dita pouco se tem feito, sem dúvida porque
aqueles padres ignoram a língua, em que deveriam dirigir aos índios as palavras de
conversão” (apud ZARTH, 1997, p. 42). A administração laica não se responsabilizou pela
catequização, mas o “objetivo principal era trazer os indígenas para as luzes da civilização e
transformá-los em cidadãos produtivos e não meramente indivíduos dependentes do
assistencialismo do governo” (BRIGMANN, 2009, p. 8). Apesar da disposição para gerar o
assistencialismo do governo, este se propõe a introduzir “ferramentas, roupas e novas
46
habitações”, com o objetivo de estimular a “inclusão do indígena que possibilitasse à
província lucrar, ao invés de onerar os cofres públicos” (BRIGMANN, 2009, p. 9).
Como forma de liberar mais espaços para a colonização, de limitar a circulação dos
grupos indígenas e no intuito de diminuir os esforços públicos no trato com os indígenas, o
governo propõe, a partir de 1853, a concentração dos kaingang no Aldeamento de Nonoai
(LAROQUE, 2006, p. 130; MELIÁ, 1983, p. 180). O objetivo do aldeamento de Nonoai era
“reunir num mesmo espaço todas as chamadas hordas indígenas, liberando territórios para a
colonização estrangeira, pois a chegada de imigrantes à província, iniciada em 1824, crescera
rapidamente após a Lei de Terras de 1850” (VEIGA, 2006, p. 55). Assim, em 1854, todos os
kaingang aldeados em Guarita haviam sido transferidos para Nonoai, sendo que o diretor
desse aldeamento Ten. Cel. Joaquim José de Oliveira, torna-se diretor também de Nonoai
(BECKER, 1976, p. 50). Para cumprir com o objetivo de reunir num único espaço todos os
kaingang, o governo da província de São Pedro do Rio Grande do Sul demarca, em 1856, o
Aldeamento de Nonoai, com um vasto território entre os rios Passo Fundo, Várzea, Uruguai e
Lajeado Papudo, totalizando 428.000 ha (VEIGA, 2009, p. 59). Contudo, a tentativa de reunir
os kaingang no aldeamento de Nonoai fracassou, uma vez que grupos kaingang “não
aceitaram abandonar as aldeias onde têm enterrados os seus mortos, e os seus locais de
nascimento, onde tem enterrados os ‘seus umbigos’ e também por serem muitos grupos,
inimigos entre si” (VEIGA, 2009, p. 59). Os conflitos pré-existentes entre os grupos kaingang
transferiram-se para Nonoai. Conforme relato de Becker (1976, p. 50-1), “se agrava a situação
entre os Caciques Pedro Nicofé, Manoel Grande, Fongue, Antonio Prudente e Victorino
Cundá”. Conforme relato, Fongue e Antonio Prudente auxiliam, em 1855, na perseguição a
outros grupos que realizavam assaltos e ataques a fazendas da região. Os conflitos
perduraram, sendo que, em 1858, o grupo de Fongue ainda era perseguido, provocando o
retorno de Fongue e seu grupo à região do rio Guarita.
O relato acima evidencia que a própria modalidade do aldeamento, de concentrar
diferentes grupos num mesmo espaço, baseada na falsa compreensão de grupos homogêneos,
potencializou as tensões e conflitos internos. A insistência na produção agrícola e no controle
da distribuição de alimentos também contribuiu para a fuga dos aldeamentos, “cujos
dissidentes passaram a unir-se aos grupos hostis às políticas do governo” (BRIGMANN,
2009, p. 8). Para Becker (1983, p. 108), a concentração em aldeamentos, as perseguições e a
47
cisão interna determinam que “o grande grupo Kaingáng enfraquece” e “colabora para o seu
desgaste”.
A situação de conflito e perseguição não se restringiu ao espaço e grupos nos
aldeamentos. Os grupos que optaram em permanecer em seus espaços originais de circulação
foram perseguidos e sofreram fortes repressões. No entanto, também esta prática não obteve o
resultado desejado num primeiro momento (LAROQUE, 2006, p. 129-30), fato esse que é
explicitado pela criação das “companhias de pedestres que policiam as áreas, os bugreiros que
retiram os índios do mato, as construtoras de estradas que, traçando caminhos pelo meio dos
territórios indígenas, os destroçam ou desestimulam”, para além da cooptação de caciques e
grupos kaingang que auxiliam no contato, perseguição e amansamento de outros grupos
(BECKER, 1976, p. 69).
A estratégia de abertura de estradas como uma forma de expropriar os territórios de
circulação e presença kaingang foi organizada na década de 1860 no Rincão da Guarita.
Relata-se que
Em 1860 o Governo Imperial envia para a região do Alto Uruguai uma
Comissão de Engenheiros Militares, chefiada pelo Ten. Cel. José Maria
Pereira Campos, para proceder a um levantamento das terras compreendas
entre os rios Ijuí Grande, Uruguai e Várzea. Esta Comissão partiu do Quartel
Imperial de Cruz Alta e estabeleceu seu “posto de apoio’ no Rincão da
Guarita junto a aldeia do Cacique Prudente.
Foi designado o Alferes Brandão para chefiar o grupo de militares, civis e
índios, os quais seguindo pela cordilheira, entre os rios Turvo e Guarita,
abriram uma picada de 70 quilômetros até atingir a fronteira com a
Argentina. Esta foi a “Picada do Pary” e mais tarde serviu de novo divisor
entre área indígena do Guarita e as terras devolutas do Estado do RS (VEIT,
1995, p. 134).
A abertura da “Picada do Pary” consolida o período da influência e consequências dos
aldeamentos, como política de governo, conduzidas nas décadas de 1840 e1850. A disposição
governamental de limitar e concentrar os diferentes grupos num determinado espaço
geográfico persistira, visando garantir espaços “livres” para a colonização. Também a
abertura da “Picada do Pary” foi simbólica por evidenciar o abandono da modalidade
catequética como forma de atrair os kaingang para a civilização e integração à sociedade
nacional, postura evidenciada e constituída na condução dos aldeamentos na década de 1850,
quando sob a administração pública.
A abertura da “Picada do Pary” também se tornou simbólica, uma vez que se
estabeleceu no contexto de fixação de divisas internacionais entre o Brasil e a Argentina. O
48
governo imperial, preocupado com a defesa da fronteira, buscou povoar estrategicamente a
região, incluindo a fundação de colônias militares na região fronteiriça à Argentina. Durante
as expedições, de acordo com o relatório da comissão, denunciou-se a “presença de supostos
militares paraguaios, disfarçados de ervateiros, no erval da Guarita” (ZARTH, 1996, p. 70).
Assim, propôs-se a criação de uma colônia militar na foz do Rio Turvo como forma de
incentivar o povoamento deste sertão. Apesar da preocupação com a defesa da fronteira, a
colônia foi criada somente em 1879, denominada como Colônia Militar do Alto Uruguai 20
(ZARTH, 1996, p. 71).
O atraso na instalação da colônia militar foi motivado pela Guerra do Paraguai,
declarada em 1864, com batalhas e incursões de guerra no território da província de São
Pedro do Rio Grande do Sul a partir de 1865. Esse fato avalizou a preocupação militar do
governo imperial brasileiro na proteção das fronteiras geopolíticas internacionais.
Durante a Guerra do Paraguai, houve a participação de kaingang do Rincão de
Guarita. Relata-se que,
Em 1865, um ano após o início da guerra do Paraguai, três índios kaingang,
oriundos do toldo do cacique Fong, se obrigavam “a servirem como
voluntários do exército”. Os indígenas não só achavam-se autorizados pelo
cacique a prestarem tais serviços, como tiveram sua própria autoridade
reconhecida pelo dono da estância, que permitiu que se “fizesse a reunião no
toldo, ou taba de baixo, sob a direção do capitão”, dando “aos mesmos o
armamento a fuzil, equipamentos, arreios, cavalos e o fardamento que for
necessário”. Tal autorização foi concedida através de uma portaria, visto que
se tratava da estância do presidente da Província, Francisco do Rego Barros,
o Visconde de Boa Vista. Os três índios, a saber, Antônio Portella, Manoel
Feliciano e Manoel da Silva, foram respectivamente nomeados como
capitão, tenente e alferes da Companhia ou Corpo que os mesmos formaram
com cerca de duzentos guaranis (MELO, 2009, p. 8).
A participação de kaingang na Guerra do Paraguai, dita como de apresentação e
disposição voluntária, pode ser deduzida como resposta ao arregimento promovido pelo
estancieiro. A prática da época conferia patentes militares aos estancieiros e fazendeiros.
Estes, então, gozavam de benefícios do governo, participação em decisões políticas e
econômicas, porém, em contrapartida, precisavam prestar serviços de guarnição das fronteiras
e arregimentar voluntários para a guerra (ZARTH, 1997, p. 51-6).
O controle político e militar dos fazendeiros era inquestionável. Basta
lembrar que, durante a guerra do Paraguai e quando de guerras intestinas, os
20
Ainda há vestígio da instalação da Colônia Militar do Alto Uruguai, sendo apresentado como um dos pontos
turísticos do município de Três Passos/RS.
49
coronéis locais não tinham grandes dificuldades em arregimentar soldados
para as batalhas, mesmo que muitas batalhas fossem de caráter político e
pessoal. Nesse sentido, o prestígio e o poder de um estancieiro estava muito
ligado à sua capacidade de aliciar homem dispostos a um enfrentamento
armado contra qualquer inimigo possível (ZARTH 1997, p. 69).
Desta forma, a designação de patentes militares serviu para o aliciamento de
contingentes indígenas para as frentes de batalha, bem como forma de cooptação de
lideranças kaingang para os feitos da definição e defesa das fronteiras internacionais do
Brasil. Relata-se, ainda, que o “próprio Fongue foi agraciado com o cargo de ‘major’ da
Guarda Nacional” (VEIT, 1997, p. 134). A designação de patentes pode ter contribuído para a
incorporação de títulos de hierarquia militar na designação de liderança ou chefia da
organização social kaingang nesse período da segunda metade do século XIX, que perdura até
o momento presente (VEIGA, 2009, p. 59).
Além da designação de patentes militares para as lideranças, numa publicação da
FUNAI intitulada Os Kaingangs no Rio Grande do Sul (1995), citada pela pedagoga Bonotto
(2004, p.17-8), ex-diretora de escolas kaingang da TI Guarita, afirma-se que
as terras da Área Indígena de Guarita foram reconhecidas no decorrer da
Guerra do Paraguai, quando os índios, liderados pelo Cacique Fongue,
famoso pela sua coragem e decisão, participaram com muito destaque nas
lutas mostrando serem valentes e destemidos. Como recompensa a Princesa
Isabel presenteou-os com as terras entre os rios Turvo e Guarita, legitimando
o local como sendo de ocupação tradicional indígena.21
Ainda que pese a disposição em reconher a área como “ocupação tradicional
indígena”, questionam-se as motivações e interesses governamentais em tal proposição, pois,
apesar de a informação ser corroborada pelo pesquisador Renz (2005, p. 14), que também
relata a demarcação entre os rios Guarita e Turvo como recompensa pela participação
kaingang na Gerra do Paraguai, o usofruto das comuidades indígenas não se efetivou. A
demarcação não garantiu de fato o território tradicional, conforme percepção dos próprios
kaingang. A ocupação de vastas áreas era alvo da especulação econômica para a colonização
de imigrantes europeus, como também ocorreu na região do Alto Uruguai, organizada a partir
de Cruz Alta (ZARTH, 1996, p. 79). Tal situação provoca a reação de parcialidades kaingang,
que “continuavam a atuar frente a esta trama segundo as suas próprias pautas culturais”,
abandonando os aldeamentos e “percorrendo regiões pertencentes aos municípios de Passo
Fundo e Cruz Alta” (LAROQUE, 2007, p. 132). Relata-se que, em 1875, “guerreiros
21
FUNAI. Os Kaingangs do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Ed. da Funai, 1995. A publicação não foi
localizada no original.
50
pertencentes ao grupo do Pã’í mbãg Fongue” atacaram a Fazenda Monte Alvão. Em 1879,
relata-se o ataque a outras propriedades da região, sem se especificar a autoria dos ataques
(Idem).
Em 1871 o Cônego Leme, Vigário da Freguesia da Palmeira, ao visitar o
povoado do Campo Novo, verificou a existência de muitos índios, em
sistema de escravidão e total analfabetismo, atuando na extração da ervamate para os brancos (VEIT, 1997, p. 136).
Na década de 1880, a situação persiste. O historiador Laroque (2007, p. 132-3) afirma
que as lideranças, de diferentes parcialidades kaingang, agiam de acordo com seus interesses,
estabelecendo alianças com os não índios, bem como “permanência ou não dos integrantes de
suas parcialidades nos aldeamentos”. Destacando o relatório do presidente da província em
1880, afirma “que os fazendeiros estabelecidos nas vizinhanças dos aldeamentos de Guarita,
Nonoai e Campo do Meio frequentemente reclamavam das correrias e ameaças Kaingang em
suas propriedades”. A afirmação diverge da apontada por Zarth (1996, p. 72), que afirma, em
relação ao mesmo período temporal, que “o ‘problema indígena’, como era considerado,
estava acabado e os índios completamente submetidos e controlados em suas aldeias”. Zarth
(1996, 80-1) destaca que, para a época, a principal preocupação governamental era “criar
colônias com imigrantes europeus nas matas do Noroeste” como forma de “saída para a
estagnação econômica regional”.
Considera-se, porém, que a implantação das colônias motivou o cacique Fongue a se
fixar em Inhacorá. O historiador jesuíta Meliá (1983, p. 180) registra que, em 1880, o cacique
Fongue estabeleceu-se na região do rio Inhacorá por solicitação de proprietários da região,
que visavam amenizar os prejuízos pelos ataques e assaltos realizados por outros grupos
kaingang. Conforme o historiador, eram oito os aldeamentos kaingang nesse ano, entre eles
Guarita e Inhacorá, totalizando 1.225 índios aldeados na província. Contudo, pondera:
Parece que de fato esses aldeamentos nunca concentravam a totalidade dos
Coroados, que continuavam seu modo de vida bastante livre nas matas e só
chegavam à direção do aldeamento quando precisavam alguma ferramenta
ou fazenda. Mas essas mudanças nos assentamentos indicam, também, até
que ponto os índios tinham perdido o controle do próprio chão e passaram a
depender da flutuante vontade do governo e dos administradores, mais
interessados em favorecer os novos “donos” da região e sua segurança que a
vida e a tranqüilidade dos índios.
Conforme Becker (1976, p. 49), o estabelecimento do grupo de Fongue no Inhacorá
provocou a extinção do Aldeamento de Guarita, devido à “solicitação de fazendeiros da
51
região, que alegavam prejudicarem os índios a tranquilidade da região, com correrias, roubos
e outros atos agressivos”. Porém, a informação da extinção do Aldeamento de Guarita,
conforme o relato de Becker, contrasta com a informação de Renz (2005, p. 14), que afirma
que, mesmo após a fixação de Fongue em Inhacorá, ainda se mantiveram dois grupos na
região de Guarita: “o da Estiva, liderado pelo cacique Fifo, o de Campina pelo Cacique Nihe,
ambos organizavam seus grupos conforme os costumes da tribo”. Constata-se, que,
provavelmente, Becker se afiançou na informação sobre a liderança maior para determinar a
extinção de Guarita. Mas, ao afirmar a mudança de Fongue de Guarita para a região de
Inhacorá, Becker reconhece e afiança “a presença indígena Kaingáng na região, desde meados
do Século XVIII em seu estado primitivo”. A pesquisadora pondera que, devido às pretensões
de colonização pelo governo provincial e pela necessidade de subsistência, o próprio Fongue
escolheu a região do rio Inhacorá pelos “ótimos terrenos de caça bem como constatou ser
abundante a existência de peixes. Decidiu, então, abandonar Guarita e estabelecer-se com a
sua gente no Inhacorá, onde se originou uma nova tribo”. Essa informação não descaracteriza
a informação de Renz. Uma vez que, para Becker, Fongue foi “com sua gente”, Renz afirma
que Fifo e Nihe “organizavam seus grupos conforme os costumes da tribo”. Assim reafirmase a dimensão de que a proposta de aldeamento e transferência de grupos se restringia a
parcialidades kaingang. Da mesma forma, a resistência ou a manutenção de antigos espaços
de permanência por outras parcialidades kaingang.
A constatação de Meliá e Becker sobre a aceitação de grupos kaingang ao aldeamento
é corroborada por Zarth (1997, p. 44), que afirma
apesar da longa resistência, os grupos indígenas, à medida que a fronteira
agrícola avançava, obrigavam-se a aceitar as imposições e o aldeamento para
poderem manter-se numa região que já não mais fornecia mais condições de
sobrevivência no estilo tradicional de caça e extrativismo associados à
agricultura de coivara. Talvez o escritor e político Evaristo Afonso de
Castro, numa publicação de 1887, resuma bem a longa luta entre os
indígenas e os invasores, demonstrando o triunfo da política governamental:
“O major Oliveira, na Guarita pode travar relações e catequizar o cacique
Fongue de modo que no decurso de alguns anos pode o governo aldear em
Nonohay os índios que vagavam nesta província apresentando-se depois os
que existiam em Guarapuava, na província do Paraná. Assim aldeados esses
índios tornaram-se nossos fiéis aliados, porém evitando sempre mesclar-se
com a população do país e conservando-se sempre sob a direção de seu
cacique”.
Zarth (1997, p. 78) destaca que o debate público sobre o desenvolvimento da
agricultura e a formação de colônias dominou a década de 1880 na região, como resultado
52
decorrente da Lei de Terras de 1850. O historiador Laroque (2006, p. 132) afirma que, na
década de 1870, “respaldados pela Lei de Terra de 1850, os governantes, para viabilizar os
interesses da Frente de Expansão, inicialmente demarcavam as áreas Kaingang” e, em
seguida, alegava-se que estas eram improdutivas e, então, liberadas à colonização. Essa
situação pode se supor em relação à Guarita na transferência do grupo de Fongue ao Inhacorá,
na década de 1880.
No entanto, as tentativas de esvaziar a área de Guarita não surtiram efeito, pois,
durante a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul (1893-95) e a Revolução da Palmeira
(1902), a área “serviu de refúgio para ‘maragatos’, criminosos, caboclos, e migrantes das
áreas envolvidas nos conflitos”, diminuindo o espaço territorial de circulação, manejo e
moradia dos kaingang (VEIT, 1997, p. 135). O pesquisador Renz (2005, p. 14) afirma que os
efeitos da Revolução Federalista também proporcionaram o aumento da fronteira agrícola na
invasão das terras indígenas de Guarita, e que “para evitar as barbáries cometidas contra os
índios, agiliza-se a organização da reserva”. Porém a organização da reserva ocorreu somente
no período posterior, no século XX.
O resgate histórico apresentado, o período das reduções jesuíticas nos séculos XVII e
XVIII, os conflitos, aldeamentos, resistência e alianças estabelecidas pelos kaingang no
período posterior às reduções jesuíticas e no século XIX expõem a modalidade e característica
da ocupação territorial do Alto Uruguai pela sociedade não indígena. O processo de ocupação
caracterizou-se pela formação de uma sociedade com classes sociais econômicas distintas:
fazendeiros/estancieiros; lavradores/extrativistas; minifúndios ocupados por imigrantes
(ZARTH, 1996, p. 72). A constituição da sociedade não indígena em classes socialeconômicas estabeleceu-se pela expropriação territorial da comunidade indígena, habitante
tradicional da região.
A expropriação territorial ocorreu com a disposição de aliança de lideranças kaingang,
mas também com a resistência desses e de outros grupos que não aceitavam as investidas da
colonização e estabelecimento das fronteiras. Aliás, o estabelecimento de diferentes projetos,
como os aldeamentos do século XIX, “somente foram implementados, na medida em que
estes [os indígenas] impuseram resistência e constituíram-se em ‘obstáculos’ ao avanço da
colonização” (MARCON, 1994, p. 87).
Uma das modalidades de subjugação constantemente utilizada ou estimulada era a
catequese. A catequese constitui-se numa forma de assimilar as comunidades indígenas à
53
sociedade não indígena, de forma mais branda, evitando conflitos. Conforme entendimento da
época, a catequese obteria resultado positivo se “se pautasse no trabalho (lavoura) e na
religião” (NONNENMACHER, 2000, p. 44). Estabelecer o vínculo à agricultura evidencia
que “a finalidade última de toda a catequese era de incorporar o índio ao processo produtivoagrícola com vida sedentária” (MARCON, 1994, p. 120). Considerava-se trabalho somente as
lidas da agricultura. E, devido à expansão da colonização, a subsistência tradicional indígena
sobre as matas ficou impossibilitada (MARCON, 1994, p. 122). A impossibilidade da
subsistência tradicional também decorre da proposta do aldeamento, pois ocorreu a drástica
redução dos espaços de trânsito e sustentação. Essa redução territorial interferiu diretamente
sobre as forma de obtenção das fontes alimentares, baseadas na caça e coleta, sobretudo do
pinhão.
O projeto dos aldeamentos no século XIX também se constituiu através da
implantação de escolas às crianças, para, através da escolarização, se facilitar o processo de
civilização das comunidades indígenas. Conforme pesquisa de Nonnenmacher (2000, p. 46)
A educação proposta pelos padres jesuítas é uma educação tradicional,
rígida, dentro da concepção de mundo europeu. Em um ofício enviado ao
Presidente da Província, o Padre Pare sugere que, “Seria conveniente para
facilitar a catequese, que os padres missionários, desde já, estabelecessem
uma escola para ensinar a ler e escrever aos meninos, assim se acostumarão
a estar separados dos mais velhos, e se podem lograr de fazê-los trabalhar
separadamente. Como esta separação pelo trabalho deverá haver
dificuldades, é preciso proceder de modo que eles não entendam no princípio
o que se pretende”22.
A pretensão à escolarização dos kaingang dava-se através de “métodos rígidos do tipo
tradicional da civilização européia”, o que provocava o afastamento dos indígenas das
escolas. A insistência ao letramento persistiu na ação do governo provincial quando dirigia os
aldeamentos, também não obtendo o êxito desejado, mas a rejeição semelhante ao intento dos
padres jesuítas (NONNENMACHER, 2000, p. 46). Marcon (1994, p. 126) destaca que, neste
sentido, que ao se propor um modelo de escola “nos moldes da civilização européia, da
racionalidade capitalista e com uma pedagogia tradicional, as resistências logo se
manifestaram”.
Apesar dos intentos dos jesuítas e do governo provincial, avalia-se que os mesmos
tiveram como um dos principais obstáculos nos aldeamentos as interfaces: trabalho/lavoura;
22
No acervo do Museu Antropológico Diretor Pestana (MADP) encontra-se fotocópia incompleta da referida
carta do Pe. Parés. A carta é datada de 06.nov.1848 e refere-se à implantação da escola no Aldeamento de
Guarita. Acervo do MADP. Catálogo 1. Kaingang / Cathequese kaingang Guarita.
54
catequese/religião; e escola/civilização. Essas interfaces resultaram de decisões oriundas de
fora das comunidades indígenas. Ou seja, a decisão de adesão aos “aldeamentos não partiu
dos próprios índios que, em vista disso, resistiram” (MARCON, 1994, p. 122). Também para
os que aderiram às reduções e aldeamentos se constata que fora uma causa perdida, impondo
a resignação da sobrevivência na dependência da sociedade não indígena, “dos brancos”
(BECKER, 1976, p 69).
De forma geral, os intentos não consideraram a perspectiva kaingang neste processo.
Ao refletir sobre a ação dos padres jesuítas no século XIX, Marcon (1994, p. 127) identifica
que “os jesuítas tiveram dificuldades em olhar os índios a partir deles mesmos e da sua lógica
de pensamento, ou seja, da sua concepção de mundo, tanto em relação ao trabalho, à religião,
quanto à educação”. Apesar do intento em aprender a língua kaingang, essa atitude visava à
doutrinação e catequese, em lugar do fortalecimento da identidade cultural.
Destaca-se a ciência de que a avaliação da desconsideração da perspectiva kaingang
no intento jesuíta ocorre a posteriori dos fatos, no final do século XX. Contudo, a mesma
possui valia, pois estudiosos apontam dimensões que se propagaram para além do século
XIX, presentes na atualidade. De acordo com Meliá (1983, p. 181), a década de 1980 ainda
apresentava semelhança, ou melhor, conforme própria designação do historiador, “herança”
do modelo de catequese e civilização da segunda metade do século XIX, a saber:
[…] instabilidade dos assentamentos indígenas, dependência do índio do
governo, abusos na administração dos toldos, intrigas e ocupação abusiva de
terras por parte dos fazendeiros, precariedade da missão católica, ideologia
discriminatória contra o índio, ‘estrangeiro na sua própria terra’.
Questiona-se se o mesmo processo também se aplicará à educação escolar. A
avaliação presente aponta que a prática catequética-escolar imposta aos kaingang, sobretudo a
partir dos aldeamentos, será superada a partir da nova organização geopolítica brasileira, com
a proclamação republicana e os referenciais teóricos do século XX. Contudo, a perspectiva do
aldeamento de liberar terra para a colonização persistiu no início do século XX, quando “o
governo do Estado do Rio Grande do Sul decidiu constituir pequenas áreas reservadas no
antigo território Kaingang” (VEIGA, 2008, p. 20). De forma semelhante, no que concerne à
catequização dos kaingang, a polêmica persistirá além da Proclamação da República
(MACIEL; MARCON, 1994, p. 137).
55
1.3.3 A demarcação territorial da TI Guarita e o SPI – FUNAI
As tentativas de agrupar ou aldear as comunidades kaingang, no século XIX, não
lograram êxito, pois, no início do século XX, na região do rio Turvo e Guarita, identificava-se
a existência de diversos “toldos”, inclusive para além do espaço demarcado após a
participação dos kaingang na Guerra do Paraguai.23 De acordo com Simonian (1993, p. 37),
havia o toldo da Estiva, do Xindangue (próximo ao rio Turvo),24 do Capinzal no Campo Novo
(ocupado pelas famílias Sales e Ribeiro), de Redentora e outras comunidades menores
dispersas na região.
Apesar da constatação da amplitude da ocupação kaingang na região, o avanço da
colonização intensificou-se na última década do século XIX. O interesse colonial foi
justificado pelo potencial econômico da região costeira do Rio Uruguai, sobretudo na extração
de madeira e erva-mate, além dos interesses geopolíticos de fixação das fronteiras. A frente
colonialista decorreu do investimento e desbravamento dos próprios colonos, ou organizados
por
empresas
de
colonização
(SPAREMBERGER,
SANTOS,
2007,
p.
117).
Consequentemente, ocorreu a invasão das áreas dos toldos e das comunidades kaingang
dispersas na região (SIMONIAN, 1993, p. 37).
Diante da necessidade de regularizar a colonização e, também, reduzir o espaço
ocupado pelas comunidades indígenas, elabora-se a proposta do governo estadual para
contatar as lideranças indígenas e propor-lhes a redução formal da área de ocupação. Ou seja,
concentrar as diferentes e dispersas comunidades num determinado local, proposta
consolidada em 1912. A demarcação física foi conduzida pela Comissão de Terras do Estado,
com sede em Palmeira das Missões. No processo da demarcação, definiu-se que o limite
ocidental fosse uma rodovia, que ligava Redentora ao povoado Paris (atual Tenente Portela).
A conclusão da demarcação ocorreu em 1918, definindo uma área de 23.183 ha (ou 231,83
km²). Na época da demarcação, a área constituía-se de floresta de araucária e outras madeiras
23
Torna-se relevante constatar que, posterior à Guerra do Paraguai, a região do Guarita também é ocupada por
famílias guarani. Simonian (1993, p. 37) afirma que: “Os que chegaram ainda no século passado ou em inícios
deste eram procedentes do Paraguai, mas chegaram ao noroeste do Rio Grande do Sul após uma passagem por
Misiones, Argentina, de onde muitos foram e têm sido expulsos (Topé, 1978). Embora muitos guarani (Mbyá,
Xiripá, Tambeopé) tenham se fixado em Guarita, muitos outros tomaram ou continuam tomando essa área
indígena apenas como área de passagem, mais ou menos temporária. Em que pese sua presença já antiga na
área, em momento algum os guarani ameaçaram a posse kaingang em Guarita” [sic].
24
Em nota, explicita a localização: “Mais precisamente, no Alto Alegre, junto aos Lageados Burro Magro e
Tigre, onde a presença indígena foi mantida até aproximadamente 1950” (SIMONIAN, 1993, p. 40).
56
nobres (SIMONIAN, 1993, p. 37). A população indígena, quando da demarcação do Toldo
Guarita, totalizava 200 habitantes (GASPARETTO, 2006, p. 27).
A determinação para a demarcação e sua execução, realizada pelo governo do Rio
Grande do Sul, foi posterior à criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), ocorrida em
1910, pelo governo federal. O SPI foi concebido de acordo com os princípios positivistas e
instituído pelo decreto nº 8.072 de 20 de junho de 1910, pelo presidente Nilo Peçanha
(MACIEL; MARCON, 1994, p. 146). De acordo com a proposta positivista, “os civilizados
deveriam proteger os indígenas” para que estes alcançassem o estágio da razão, da ciência
positiva. E, para tal realização, a demarcação de áreas exclusivas aos índios, em isolamento
do mundo “civilizado”, constituindo-se nações independentes, foi uma demanda necessária
(MACIEL; MARCON, 1994, p. 139). O propósito era uma obrigação do Estado, de promover
a progressiva evolução das comunidades indígenas, visando integrarem-se à nação brasileira.
Para tanto, além da demarcação das terras indígenas, delegou-se ao SPI também as tarefas de
proteger as comunidades indígenas das invasões e da violência de exploradores; instruir
técnicas de cultivo e administração de bens; assistência médica; educação formal aos “índios
mais integrados” no aprendizado de novos ofícios (MACIEL; MARCON, 1994, p. 149-50).
No Rio Grande do Sul, o governo do Estado também era de orientação positivista, por
isso o próprio Estado assumiu a condução da política indigenista nos aldeamentos,
excetuando o Posto Indígena do Ligeiro. A justificativa se constituía na consideração de que
os indígenas presentes no estado já eram pacificados e viviam em aldeamentos desde 1846.
Assim, o governo estadual administrou os postos indígenas e, por consequência, também
realizou a demarcação das terras, como explicitado no caso do Toldo Guarita. A condução
pelo governo estadual ocorreu até 1941, perfazendo três décadas (MACIEL; MARCON,
1994, p. 152-3; MELIÀ, 1984, p. 19).
Apesar de o governo estadual do Rio Grande do Sul imbuir-se dos princípios
positivistas, tal qual os que conceberam e orientaram o SPI, também na disposição de gerir e
administrar a política indigenista no estado, não se garantiu a proteção e defesa dos territórios
demarcados. Após a demarcação do Toldo Guarita, em 1918, ocorreu um aumento do afluxo
de famílias caboclas e descendentes de imigrantes europeus para a região. E, após a passagem
da Coluna de Prestes pela região, em meados da década de 1920, diversas famílias caboclas se
instalaram nas proximidades do toldo, enquanto que o afluxo das famílias de descendentes e
imigrantes europeus se intensificou em meados da década de 1930. Nesse período, a Vila
57
Paris passa a se designar Miraguay, sendo designada como Tenente Portela25 uma
década mais tarde. Simonian (1993, p. 37-8) afirma que, devido a tal afluxo colonizador, “os
Kaingang de Guarita recomeçaram a enfrentar problemas decorrentes de disputas quanto às
divisas, pois eles referem-se sempre a inúmeros moradores que ocupam faixas de suas terras
junto à divisa”.26
A ocupação das áreas limítrofes, ou até a invasão dos toldos demarcados, não
representava que áreas demarcadas a partir de 1911 fossem extensas. Melià (1984, p. 19)
afirma que, no total, foram demarcadas 12 áreas no Rio Grande do Sul, somando 98.583 ha
(985,83 km²). Em comparação ao território livremente ocupado pelos indígenas, era
drasticamente menor, como evidenciado na referência aos grupos transferidos ao Toldo
Guarita. Os territórios anteriormente ocupados pelos índios foram ocupados pela frente
colonizadora.
A transferência da responsabilidade de assistência aos indígenas no Rio Grande do Sul
ao SPI consolidou-se em 28 de março de 1941, por uma proposta da Secretaria de Agricultura
do Estado. A transição ocorreu sem muitos debates e discussões, pois o Estado do Rio Grande
do Sul encontrava-se sob intervenção federal (MACIEL; MARCON, 1994, p. 153-4). A
proposta, contudo, restringiu-se somente aos maiores toldos, a saber: Nonoai, Ligeiro, Guarita
e Cacique Doblê (MELIÀ, 1984, p. 19; MACIEL; MARCON, 1994, p. 153). A transferência
ao SPI não assegurou a garantia e proteção das terras demarcadas e dos recursos naturais nelas
existentes, ao contrário, afirma-se que “a expropriação de terras indígenas intensificou-se”
(MACIEL; MARCON, 1994, p. 156).
Com referência ao Toldo Guarita, o SPI se instalou através de um “posto” na
localidade de São João do Irapuá. A instalação do “posto” visou estabelecer medidas que
evitassem a invasão do toldo, como a abertura de “roçados” próximos à estrada, na divisa a
oeste do toldo (Simonian, 1993, p. 38). Suspeita-se, porém, que tal medida propiciou o
contrário, ou seja, a devastação da mata (comercialização de madeiras nobres), o
arrendamento das terras, exploração da mão de obra indígena, dos recursos naturais, a
25
Homenagem prestada ao “tenente de engenharia Mário Portela Fagundes, um idealista e revolucionário
membro da Coluna Prestes, morto na Barra do Rio Pardo em 1925” (Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Tenente_portela> Acesso em: 01 ago 2011).
26
Especula-se que a situação dos conflitos entre indígenas e a sociedade não indígena, no período da ocupação
colonizadora, impeliu os kaingang a construírem “guaritas nas árvores onde tinham visão para proteger e
guarnecer seu povo, advindo daí terras indígenas Guarita” (RENZ, 2005, p. 14).
58
usurpação de posse pela exploração agrícola, esta denominada como “roças do posto”
(SIMONIAN, s.d., p.11-2; 1993, p. 38; GASPARETTO, 2006, p. 27).27
Figura 3: Porteira de entrada do Posto do SPI - Guarita, década de 1950
Fonte: Acervo digital Museu do Índio - Disponível em: <http://base2.museudoindio.gov.br/>
De forma geral, a instalação do posto do SPI contribuiu para agonizar a situação de
pressão sobre as comunidades indígenas, iniciada anteriormente pela frente colonizadora. Os
arrendamentos das terras indígenas para a produção de soja e trigo e a extração de madeira se
intensificaram (SPAREMBERGER, SANTOS, 2007, p. 117; MELIÀ, 1984, p. 19). Tal
realidade, protagonizada pelo SPI e pela frente colonizadora, constituiu-se numa
[…] tentativa violenta de transformar os Kaingang em agricultores e
colonizadores num certo espaço de tempo, fazendo com que se integrassem
ao “progresso” e à nação brasileira. Na prática os agentes governamentais
tratavam de mudar seu modo de vida através da proibição de rituais, do
ensino monolíngüe em português, da imposição de interlocutores
substituindo as autoridades tradicionais, de um regime rigoroso de trabalhos
agrícolas dirigidos a partir dos Postos Indígenas, de massivas transferências
territoriais compulsórias etc (VYJKÁG, et al., 1997, p. 12-3).28
27
Na página virtual do Museu do Índio disponibilizam-se fotos da viagem do superintendente do SPI aos toldos
do Rio Grande do Sul, onde se destacam as fotos das ‘roças do posto’, com o cultivo do trigo, arroz, criação de
animais e as instalações construídas em madeira (Disponível em: <http://base2.museudoindio.gov.br/>).
Também se destaca que a designação do primeiro administrador do posto do SPI em Guarita, Sr. José Alves
Ferraz, alcunhado como o “Capitão Ferraz”, evidencia a situação de exploração e esbulho que os indígenas
sofreram. Afirma-se que o administrador “usou a sua influência política sobre as lideranças dos índios
estabelecendo na área uma invernada sua e iniciando também uma lavoura de arroz. Passou também a vender
madeiras da área e arrendar terra para os ‘amigos’” (VEIT, 1997, p. 136).
28
O texto é a apresentação do livro e do contexto da TI Guarita, elaborada por André Toral.
59
Conforme estudo de Simonian (s.d., p. 12-3), os primeiros contratos para exploração
de madeira são firmados a partir de 1951 entre o SPI e diferentes firmas ou madeireiros. Ela
inclusive relata que, em 1956, firmou-se contrato de arrendamento de 300 ha, que se
constituíram na “Granja Marta Rocha”, para exploração agrícola e suinocultura. A
pesquisadora afirma que milhares de hectares são arrendados e milhares de metros cúbicos
foram extraídos desde então.29 Ela ressalta que tais procedimentos eram realizados sem a
participação e decisão da comunidade indígena, que tampouco obteve benefício de tal
exploração ou extração. Conforme a pesquisadora, a situação persistiria nas décadas
vindouras.
Os modelos de agricultura na década de 1950, além de serem introduzidos de forma
exploratória nas terras indígenas, influenciaram na alteração do modo de ser e produzir
kaingang.30 Assim, além de firmar contratos de exploração, o SPI atuou na implementação de
projetos e perspectivas político-econômicas pautadas por uma orientação “modernizante” e
desenvolvimentista, abandonando a perspectiva humanista, da qual era imbuída em sua
criação (TEDESCO; MARCON, 1994, p. 178).
Na década de 1960, ocorreu uma nova tentativa de esbulho da terra demarcada no
início do século XX, na oportunidade em que o deputado Antonio Bresolin apresentou, na
Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, projeto de redução do Toldo Guarita para
8.696 ha. O projeto destinava 14.487 ha ao assentamento de famílias “sem-terra”, que se
propunham a migrar para Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso. O projeto foi arquivado após
a mobilização de deputados contrários à expropriação dos kaingang.31 Porém, o arquivamento
do projeto não impediu a ocupação do Toldo Guarita, por “centenas de famílias de
agricultores ‘sem terra’ […], na qualidade de arrendatários ou de invasores/posseiros”
(SIMONIAN, 1993, p. 38).
29
A pesquisadora identifica as contrapartes nos contratos do SPI: 1951, com Waldomiro Arbo para exploração
de madeira; 1956, com Waldomiro Arbo e Frederico Roever, que instalaram a “Granja Marta Rocha”; 1957,
com a firma madeireira Tonetto, Araujo & Cia. Ltda.
30
Os autores Tedesco e Marcon identificam (em nota de rodapé) as fases: “Na trajetória Kaingáng é possível
identificar quatro grandes momentos de rupturas sócio-econômicas e culturais: a) a passagem da vida nômade
nas matas onde a sobrevivência consistia na caça, pesca e coleta, para a vida sedentária nos aldeamentos
(produção agrícola) pela metade do século XIX; b) a criação do Serviço de Proteção aos Índios – SPI – onde o
Estado passa a intervir diretamente nas áreas e na vida dos indígenas; c) a terceira fase tem um marco histórico
na segunda metade do século atual [XX], quando ocorrem profundas mudanças na agricultura, verificando-se a
entrada de colonos nas reservas, a produção para o mercado internacional, bem como, a transformação das
reservas em empresas rurais; d) a emergência das organizações indígenas e a reconquista das terras e da
cultura dos antepassados” (1994, p. 178).
31
A pesquisadora identifica os deputados Porcinio Pinto, Jairo Brum e Paulo Brossard como partícipes da
mobilização contrária ao projeto de redução do Toldo Guarita (SIMONIAN, s.d., p. 13-4).
60
O fato ocorrido, do projeto de redução e entrada de famílias agricultoras, pode ser
consequência de uma orientação política de integração das comunidades e povos indígenas à
sociedade nacional, descaracterizando-as culturalmente e no esbulho das terras demarcadas.
Tal orientação política se constitui na década de 1960, tendo o SPI como agente protagonista
no esbulho territorial e exploração das riquezas, sendo acusado de envolvimento de crimes e
de legitimar a expropriação das terras indígenas (TEDESCO; MARCON, 1994, p. 160).
Devido às acusações e denúncias de crimes, assomado ao desgaste político do órgão
indigenista, o SPI foi extinto. Institui-se, então, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI),
através da promulgação da Lei nº 5.371, em 05 de dezembro de 1967, assinada pelo
presidente Artur da Costa e Silva32 (Idem, p. 179-80). A FUNAI, instituída como órgão
indigenista do governo federal, foi criada no intuito de proteger as terras demarcadas, o
equilíbrio ecológico dessas e a cultura indígena, como disposto no inciso I, do primeiro artigo.
Além dessas atribuições, a FUNAI também foi incumbida de estimular a causa indigenista
(inciso VI, art. 1º) e de “promover a educação de base apropriada do índio visando à sua
progressiva integração na sociedade nacional”, como disposto no inciso V, do artigo primeiro.
A disposição da “progressiva integração na sociedade nacional” evidenciar-se-á na
década de 1970, quando a orientação política da FUNAI esteve pautada no modelo econômico
“desenvolvimentista” (TEDESCO; MARCON, 1994, p. 182-3).
A meta fundamental a ser atingida, dentro desta nova orientação política da
FUNAI, era a transformação dos índios em “empresários” e as reservas em
“empresas rurais”. Para tanto, era necessário modernizar as forças produtivas
e “racionalizar” a produção, direcionando-a para o mercado externo. No sul
do Brasil, os índios passaram a produzir, principalmente na década de
setenta, soja e trigo e incorporar as tecnologias modernas (máquinas
agrícolas e insumos em geral). A idéia da “empresa rural” havia sido
definida como modelo de produção no Estatuto da Terra, aprovado em
novembro de 1964. De certa forma, a parte do Estatuto que não tocava na
estrutura fundiária, referindo-se apenas à “modernização da agricultura” e da
colonização, foi implementada pelos governos militares.
É neste quadro mais global que inserem as orientações políticas e a atuação
da FUNAI junto aos índios nas reservas, especialmente no sul do Brasil, em
regiões onde predomina a pequena propriedade e uma agricultura voltada
para a exportação. A idéia básica era a transformação dos índios em
“agricultores capitalistas”.
32
Recorda-se que a instituição da FUNAI ocorre após o Golpe Militar de 1964, sendo o Mal. Artur da Costa e
Silva o segundo presidente do regime militar, entre os anos de 1967 e 1969. O presidente militar Artur da
Costa e Silva também promulgou o Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, que estabelecia
amplos poderes ao presidente da república e suspendia várias garantias constitucionais.
61
Conforme Simonian (1993, p. 38), a promulgação da Lei nº 6001 (Estatuto do Índio) 33
estipulava o fim dos arrendamentos em terras indígenas, bem como sua regularização
fundiária. Desta forma, os kaingang de Guarita se mobilizaram na década de 1970 para fazer
cumprir o disposto legal. Porém,
O autoritarismo militarista vigente nos quadros da recém criada FUNAI,
cerceava qualquer tentativa mais arrojada de defesa de direitos. A classe
política local (representada por vereadores e prefeitos) e regional
(representada por deputados estaduais e federais), sempre esteve à frente na
luta pela manutenção dos arrendamentos e/ou pela expropriação das terras
indígenas no Estado. Anos mais tarde a própria FUNAI iniciou ações
judiciais visando a retirada dos arrendatários e dos posseiros, mas dado à
inércia do poder judiciário as mesmas se tornaram inefetivas [sic]
(SIMONIAN, s.d., p. 14).
A situação se agravaria quando os arrendatários e posseiros receberam a proposta de
se transferirem para um projeto de colonização em Canarana (MT), administrado por
Norberto Schwantes (ex-pastor da IECLB). Schwantes foi acusado pelos arrendatários e
posseiros de acirrar os ânimos, por, suspostamente, instigar os kaingang à mobilização.34
Apesar das resistências, muitas famílias agricultoras, que arrendavam pequenas áreas, e
famílias posseiras se retiraram ou foram retiradas da área dos kaingang em Guarita. Contudo,
conforme Simonian (s.d., p. 14-5), “um número significativo de arrendatários que mantinham
glebas substanciais arrendadas permanecem na área, e desde então passaram a pagar
arrendamento para a liderança indígena, e não mais para a FUNAI”.
A presença desses arrendatários fará persistir a devastação e a exploração agrícola na
Terra Indígena de Guarita na década de 1980. Para Simonian (1993, p. 39), tal realidade
potencializou a destruição das condições materiais de sobrevivência indígena, kaingang e
guarani, agravada pela situação de que a maior parte populacional de Guarita não teve
oportunidades para se manifestar e se organizar. A pesquisadora avalia que, no período de
transição da década de 1980 e 1990, os resultados foram “a fome, a condição de sem-terra, o
33
A lei foi promulgada em 19 de dezembro de 1973 pelo presidente Gen. Emílio Garrastazu Médici. O mandato
do Gen. Médici ocorreu entre os anos de 1969 e 1974, sendo o terceiro presidente do regime militar
(desconsidera-se, para tanto, o período da Junta Governativa Provisória, que destituiu o pres. Costa e Silva e
exerceu mandato em forma de triunvirato pelos chefes das três forças militares: aeronáutica, marinha e
exército, nos meses de setembro e outubro de 1969).
34
Na nota 22, Simonian (1993, p. 40-1) afirma: O ex-pastor Norberto Schwantes, que iniciou o trabalho
missionário da IECLB na A.I. de Guarita em 1964 [sic], responsabilizou a Missão da IECLB, juntamente à
FUNAI, por omissão e, portanto, por não assumirem o controle da situação na área, por ocasião da retirada
da maior parte dos arrendatários e posseiros, ao final da década de 70. Numa das passagens de suas
memórias, Schwantes afirma que “A omissão da Igreja (leia-se IECLB) e da FUNAI ... teve conseqüências de
certa forma definitivas para os Kaingang. Eles, que poderiam ter conhecido as benções do trabalho
comunitário e organizado, conheceram a desgraça do suborno e da venda da própria causa”.
62
agravamento das condições de saúde e a violência [como] […] fatos marcantes na vida destes
povos”.
De forma análoga a tais agravamentos no esbulho e exploração da TI Guarita,
cumprindo o disposto no Estatuto do Índio (1973) e na promulgação da Constituinte Federal
de 1988, em 04 de abril de 1991 promulgou-se o decreto sem número que homologa em
definitivo a Terra Indígena Guarita, com registro em Cartório de Registro Civil e no Serviço
de Patrimônio da União, concluindo o processo demarcatório.35 A homologação estabeleceu a
área de 23.406 ha.36
Apesar da homologação da TI Guarita, visando à proteção e garantia da vida e cultura
kaingang, a realidade de muitas famílias kaingang alijadas do uso-fruto das terras provocou o
deslocamento dessas famílias para a região metropolitana de Porto Alegre, em meados da
década de 1990. A justificativa para o deslocamento era a continuidade dos arrendamentos,
exploração de madeiras e o faccionalismo interno da comunidade kaingang (AQUINO, 2008,
p. 50).37
A prática do arrendamento foi apontada como causa de óbitos por desnutrição entre
1985 e 1995. Essa situação foi constatada em estudo sobre o atendimento à saúde, prestado
aos kaingang no Rio Grande do Sul. No estudo constatou-se que “a grande quantidade de
óbitos por desnutrição poderia estar associada ao arrendamento das terras para colonos da
região, em razão de restringir o espaço para plantio de subsistência em Ligeiro, Cacique
Doble e Guarita” (HÖKERBERG et al., 2001, p. 269). O estudo também afirma que o
arrendamento é resultante de política de incentivo do SPI e da FUNAI, porém constata que, a
partir de meados da década de 1990,
[…] esta prática vem sendo reprimida pela própria FUNAI, com o auxílio da
Polícia Federal, sob a alegação de impedir o desgaste das terras, já intenso,
seja pelo desmatamento seja pelo uso indiscriminado de agrotóxicos.
Também, o arrendamento favorecia apenas pequena parcela da população
35
Disponível em: <http://www.funai.gov.br/mapas/fundiario/rs/rs-guarita.htm> Acesso em: 05 jul. 2010. O
decreto foi assinado pelo presidente Fernando Affonso Collor de Mello, que foi o primeiro presidente eleito
pelo voto direto após o regime militar. Exerceu mandato nos anos de 1990 a 1992, quando, em outubro de
1992, sofreu um impeachment, em votação no Congresso Federal.
36
A área corresponde a 234,06 km², semelhante à área de municípios do Rio Grande do Sul, como: Campos
Borges, Carlos Barbosa, Caseiros, Ernestina, Gramado, Mato Castelhano, Marcelino Ramos, Planalto,
Riozinho, Tiradentes do Sul e Victor Graeff.
37
Em artigo sobre o arrendamento em assentamentos de famílias agricultoras “sem-terra”, justifica-se o
acirramento de faccionalismo na TI Guarita: “o arrendamento prejudica a população indígena, na medida em
que divide a comunidade, pois somente aqueles que detêm as maiores quantidades de terra ganham algum
dinheiro” (CHEOLOTTI, PESSÔA, 2006, p. 8).
63
indígena, o que se resumia às lideranças, aumentando ainda mais as tensões
políticas locais (HÖKERBERG et al., 2001, p. 263).
Desta forma, através de ação judicial e uso de força policial, a FUNAI iniciou, em
1996, a retirada de cerca de 500 exploradores da TI Guarita, mas permaneceram ainda cerca
de 20 arrendatários ou madeireiros na área, conforme dados do Relatório Azul 1996 (AL/RS,
1997, p. 101).38 Contudo, a ação não resultou eficaz, pois ainda é constatada a prática do
arrendamento na década de 2000. Em entrevista, uma universitária kaingang da UNIJUÍ
afirmou que persistia o arrendamento na época e que a situação era calamitosa (MATTE,
2001, p. 115).39 Na Apelação Cível nº 2000.04.01.091484-5/RS,40 sendo a juíza federal Taís
Schilling Ferraz a relatora, constata-se que os cultivos de soja, trigo, milho e feijão, de forma
predatória, com o empobrecimento do solo e outros danos ambientais, decorrente do uso de
agrotóxicos e exploração madeireira, provocam a miserabilidade da comunidade indígena.
Cabe destacar, ainda, a ponderação apresentada pela juíza, em voto da apelação cível,
de que a demarcação de terras indígenas, em razão da “intromissão histórica”, física e
cultural, da sociedade não indígena, estabeleceu uma realidade em que as comunidades
indígenas não logram mais viver conforme os seus usos e costumes, tampouco conforme os
modelos da sociedade não indígena (FERRAZ, 2002, fl. 6-7), pontuando que
A ocupação de parte dessa área, por agricultores, mediante cessão de espaços
em contratos de arrendamento, não apenas traz “ganho fácil” a alguns índios,
em geral os ligado às lideranças que foram coniventes com a intrusão, mas, e
principalmente, os confina em área diminuída da reserva, já não suficiente à
subsistência, segundo seus costumes [grifo da autora].
A constatação da juíza, da diminuição da área para o cultivo e a persistência do
arrendamento, agrava-se com a instituição do “Contrato de Prestação de Serviço”, em que a
pessoa índia contrataria os serviços de não índio para o cultivo agrícola de uma determinada
área. Essa prática, também denominada “parceria”, é investigada pela Procuradoria da
República no Município de Santa Rosa/RS, conforme ofício enviado ao Posto Indígena
38
O Relatório Azul é uma publicação da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) da Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Sul (AL/RS).
39
Apesar da afirmação da universitária kaingang ser identificada com a TI Guarita, a entrevistadora afirma em
nota de rodapé: “A comunidade Kaingang referida é a de Guarita, onde, no entanto, o arrendamento de terras
atualmente, como em outras comunidades Kaingang, não está mais sendo praticado” (MATTE, 2001, p. 115).
Porém, considera-se verídica a informação da universitária, pois a mesma informação consta em outras fontes.
40
Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/filedown/dev2/files/JUS2/TRF4/IT/AC_91484_RS_1270999842560.pdf>
Acesso em: 04 set. 2011.
64
Guarita – FUNAI em 16 de julho de 2008.41 Conforme o ofício foram apresentadas denúncias
de que as “parcerias” seriam uma forma dissimulada e atualizada da prática histórica do
arrendamento e esbulho da terra indígena, com participação de lideranças e membros da
comunidade kaingang da TI Guarita.
Figura 4: Mapa das Terras Indígenas no norte e noroeste rio-grandense
Fonte: Instituto Socioambiental - ISA, 201142
1. Guarita;
2. Inhacorá;
3. Rio dos Índios;
4. Iraí;
5. Rio da Várzea;
6. Nonoai;
7. Serrinha;
8. Kandóia-Votouro;
9. Votouro;
10. Votouro Guarani;
11. Ventarra;
12. Mato Preto (Guarani);
41
13. Ligeiro;
14. Carreteiro;
15. Passo Grande do Rio da Forquilha;
16. Cacique Doblê;
17. Monte Caseros.
a. Aldeia Condá;
b. Chimbangue;
c. Chimbangue II;
d. Toldo Pinhal;
e. Araça’í
Disponível em: <http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/docs_outros_documentos/recomendacao
_operacao_arrendamentos_na_reserva_Guarita.pdf> Acesso em: 04 set. 2011.
42
Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/caracterizacao.php?id_arp=3680> Acesso em: 06 nov. 2011.
65
As “parcerias” de prestação de serviço agrícola mantêm o incentivo histórico da
monocultura comercial de soja, trigo e milho. Ou seja, persiste-se na prática de sufocar e
desvalorizar a produção de subsistência, que visa o autoconsumo e a geração de renda
complementar. Em consequência disso, desestimula-se a biodiversidade das variedades
tradicionais ou crioulas, cultivadas pelas famílias kaingang (BALLIVIÁN, 2007, p. 7).
Ainda que pese a garantia da terra demarcada, o processo histórico da TI Guarita se
estabelece em constante conflito com o esbulho e a expropriação territorial e ambiental. A
prática do arrendamento ou “parceria”, protagonizada pelos órgãos indigenistas oficiais, SPI e
FUNAI, ou pelas lideranças indígenas, sempre se fez presente no contexto histórico da
comunidade kaingang. Nesse contexto histórico instituiu-se a educação escolar na
comunidade kaingang da TI Guarita, por vezes, como brevemente já apontado, no intuito de
potencializar o esbulho e a expropriação territorial da comunidade indígena.
A TI Guarita está localizada na região noroeste do Rio Grande do Sul, na área de
abrangência dos municípios de Erval Seco, Redentora e Tenente Portela. A comunidade
kaingang, estimada em 5.100 indivíduos, se organiza territorialmente em doze setores,
enquanto a comunidade guarani, estimada em 280 pessoas, se organiza em dois setores. A TI
Guarita se caracteriza como a maior área indígena demarcada na região sul do Brasil, sendo o
Rio Grande do Sul o que tem maior contingente populacional indígena da região. A população
kaingang no estado é estimada em 17.289 pessoas,43 cerca da metade da população indígena
meridional.
43
Os dados populacionais apresentados neste trabalho são extraídos da Fonte: SIASI - FUNASA/MS. Disponível
em: <http://www.funasa.gov.br/internet/desai/sistemaSiasiDemografiaIndigena.asp> Acesso em 05/07/2010.
2 IECLB: IMIGRAÇÃO, EDUCAÇÃO E POVOS INDÍGENAS
O presente capítulo apresenta aspectos da história dos imigrantes germânicos no Rio
Grande do Sul, no século XIX, e os conflitos decorrentes das disputas territoriais que as
famílias imigrantes tiveram com o povo kaingang. Os imigrantes trouxeram na bagagem a
disposição e preocupação com a educação escolar, impulsionando-os a implantar escolas
concomitantemente aos templos. Também o processo histórico da constituição da IECLB,
como unidade eclesiástico-administrativa, que se concretizou na década de 1960. O capítulo
privilegia a apresentação do histórico da atuação da IECLB junto aos kaingang, atuação
iniciada com a implantação da Escola Primária Evangélica na TI Guarita, que se estabelece
com a instalação da Missão Guarita e do Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão,
privilegiando as ações referentes à educação escolar com a comunidade kaingang.
2.1 UMA IGREJA DE IMIGRAÇÃO NO BRASIL – IECLB
O histórico da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) remonta ao
século XVI, anterior à chegada dos imigrantes alemães no Brasil, em 1824. A IECLB professa
o seguimento do movimento de reforma da igreja, iniciado em 1517, por Martim Lutero. A
IECLB se congrega ao luteranismo no mundo, por coadunar sua confissão de fé conforme os
preceitos da Confissão de Augsburgo, documento apresentado na Dieta de Augsburgo (1530),
que caracterizou a formação eclesiástica independente, ou seja, estabelecido pela cisão com a
Igreja Católica Apostólica Romana. O luteranismo se expandiu pela Europa e, sobretudo, se
consolidou na Alemanha e nos países escandinavos. Devido ao advento da emigração
europeia, nos séculos seguintes, difundiu-se pela Oceania e América (IECLB/Luteranismo).44
A chegada do luteranismo no Brasil ocorreu posteriormente à declaração da
independência do Brasil, em 1882. Até esse evento, a coroa portuguesa não permitia a fixação
de família de imigrantes de origem não lusa e de confissão de fé evangélica. Devido ao acordo
entre a coroa portuguesa e a coroa inglesa, por ocasião da independência, permitiu-se o
ingresso de pessoas de outros credos que não católicos (DREHER, 2005, p. 50). Assim,
somente a partir de 1824 é que ocorrerá a chegada de migrantes alemães evangélicos ao
44
Disponível em: <http://www.luteranos.com.br/categories/Quem-Somos/Nossa-Hist%F3ria/Luteranismo/>
Acesso em: 06 abr. 2011.
67
Brasil. Primeiramente, em Nova Friburgo/RJ, 03 de maio de 1824, e, posteriormente, em São
Leopoldo/RS, em 25 de julho do mesmo ano.
A chegada dos imigrantes no Brasil fez parte da estratégia geopolítica governamental
de consolidar o território brasileiro e proteção das fronteiras internacionais, sobretudo pela
iminência de incursões na região do Prata. Para a ocupação territorial, havia a necessidade
premente de soldados para formação do exército, de colonos, enfim, de muitas pessoas. As
demandas são apresentadas por Dreher (2005, p. 50) como: “estradas tinham que ser
construídas. As colônias militares que guarneciam essas estradas precisavam de alimento.
Precisava-se de colonos”.
Concomitante à estratégia geopolítica governamental, a chegada dos imigrantes
europeus também atendeu a outros dois propósitos, um racista e outro econômico. O primeiro
considerava que o Brasil era constituído majoritariamente pela população negra. Concebeu-se,
então, a estratégia de branquear a população. Para tanto, fez-se necessário permitir o ingresso
de populações europeias, também protestantes, constituindo as bases para o segundo
propósito, de ordem econômica. O translado dos migrantes europeus ao Brasil também visou
substituir a mão de obra escrava, à qual a população negra estava submetida. Instituiu-se o
regime da pequena propriedade familiar e o sistema de “parceria” nas grandes fazendas, onde
o imigrante branco substituía a mão de obra negra (DREHER, 2005, p. 50).
Os migrantes alemães evangélicos tomaram parte de projetos de colonização e
ocupação territorial no Brasil inicialmente na região sul e sudeste, onde estabeleceram
comunidades religiosas protestantes e centenas de escolas comunitárias e confessionais
(ALTMANN, 2008, p. 108). Porém, nas primeiras décadas, os migrantes estavam entregues à
própria sorte. Apesar da liberdade religiosa, garantida pela Constituição do Império do Brasil,
os migrantes encontravam dificuldades na organização da vida de fé, como o impedimento da
identificação exterior dos locais que serviam de templo; questões concernentes ao
matrimônio; educação de fé; o impedimento de sepultar em cemitério público, pois eram
administrados pela Igreja Católica (DREHER, 2005, p. 52). Além das questões de ordem
religiosa, os migrantes teutos também enfrentaram outras situações de marginalidade
decorrentes de seu estabelecimento em povoados em regiões pouco habitadas, que lhes
expuseram a hostilidades e adversidades (DECKMANN, 1985, p. 15).
Para superar os impedimentos e minimizar as adversidades, organizaram-se para a
construção de prédios comunitários, que lhes serviam de escola e também de local para as
68
celebrações. Da mesma forma, ao lado do prédio escolar, estabeleceram o cemitério
comunitário. Para superar a ausência de pastores, instituíram a figura do "pastor-colono”,
pessoa que assumia as funções pastorais na comunidade concomitantemente às lidas da
agricultura. Por vezes, o “pastor-colono” também desempenhava as funções de mestre-escola,
já que a escola também era o local de culto, por isso também era designado como “professor
paroquial”, pois foi “responsável pelo ensino, pela catequese e pelo aprofundamento da vida
comunitária” (DREHER, 2008b, p. 42). Dreher (2005, p. 52) destaca que daí “surgiu o
binômio escola-igreja, professor-pastor, característico para o maior período da história da
IECLB”, o que evitou a clericalização na igreja.45
Somente no final do século XIX se organizou o primeiro organismo eclesiástico
permanente, o Sínodo Rio-Grandense – Igreja Evangélica no Rio Grande do Sul, fundado em
São Leopoldo em 1886 (ALTMANN, 2008, p. 108). A constituição do Sínodo Rio-Grandense
não significou a separação de vínculo com igrejas na Europa.
A Proclamação da República do Brasil, em 1889, possibilitou a concessão de
cidadania brasileira aos imigrantes e uma maior liberdade de expressão religiosa, em
decorrência da separação entre Igreja e Estado. Apesar dos conflitos posteriores à
Proclamação da República do Brasil, como a Revolução Federalista (1893-5), o Estado do Rio
Grande do Sul adotou, na constituição estadual, a ideologia positivista, o que representou a
garantia de não intervenção do Estado em questões culturais e religiosas dos imigrantes e seus
descendentes. O reflexo dessa garantia constatou-se no desenvolvimento das escolasparticulares teutas, considerado como “período áureo” para as famílias migrantes e seus
descendentes no Brasil. Outro reflexo dessa garantia foi a preservação da cultura germânica
nas congregações dos Sínodos Evangélicos. A insistência na preservação e estímulo da cultura
e identidade alemã implicou numa marginalidade social, por vezes considerada como gueto
(DECKMANN, 1985, p. 15-6).
45
As informações aqui prestadas expõem as condições em que se estabeleceram os imigrantes europeus no
Brasil meridional, conforme as pesquisas apresentadas por Deckmann e Dreher. Estes divergem da informação
prestada por outros pesquisadores, como Darci Ribeiro, que afirma que “o empreendimento colonizador foi um
dos objetivos mais persistentemente perseguidos pelo governo imperial, que nele investiu enormes recursos”
(RIBEIRO, 1995, p. 433). Ribeiro pontua que o governo concedia aos imigrantes transporte, instalações,
recursos de manutenção e concessão de terras. Tais condições não foram disponibilizadas às populações
caipiras brasileiras, considerando-as como massas marginalizadas pelo latifúndio (idem). Ainda que o governo
investisse recursos dispendiosos no empreendimento da colonização com imigrantes europeus, a ação
governamental não se reproduziu em dirimir a miserabilidade e marginalidade que muitas famílias colonas e
imigrantes sofreram, como evidenciado por Deckmann e Dreher.
69
Segundo Deckmann (1985, p. 13), em 1900, a Igreja Prussiana admitiu a filiação de
comunidades evangélicas alemãs em outros países. Essa filiação possibilitou, entre outros
benefícios, que as comunidades evangélicas teutas recebessem auxílio financeiro para a sua
organização e sustento de pastores. Em 1911, o Conselho Superior Eclesiástico de Berlim
instalou uma representação permanente no Brasil, sediada em Porto Alegre/RS.
Porém, devido aos eventos das guerras mundiais (1914-18; 1939-45) e da política
governamental integracionista (a partir de 1930), as relações entre as igrejas no Brasil e na
Europa foram afetadas e, por vezes, interrompidas.46 Os efeitos de tais eventos também
afetaram as escolas das comunidades evangélicas, como a proibição do uso do vernáculo
alemão para lecionar e o impedimento de que estrangeiros exercessem o magistério – no caso
muitos pastores alemães foram impedidos de lecionar (DECKMANN, 1985, p. 13).
Devido à Segunda Guerra Mundial, o uso do vernáculo alemão também foi impedido
nas celebrações e atividades religiosas. Essas deveriam ser ministradas em língua portuguesa,
o que implicou em dificuldades de compreensão e diálogo entre a membresia e pastores, fato
agravado pelo afastamento do exercício de pastores nascidos na Alemanha (DECKMANN,
1985, p. 14). Em decorrência de tais eventos, foi constituída a Federação Sinodal, em 1949,
em caráter de organização nacional como Igreja de Confissão Luterana. Em 1950 e 1952, a
Federação Sinodal obtém a filiação de organismos eclesiásticos internacionais, como igrejamembro do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e da Federação Luterana Mundial (FLM),
respectivamente. Após a filiação internacional, em 1954 ampliou a nomenclatura para
“Federação Sinodal Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil” (ALTMANN, 2008,
p. 108; DECKMANN, 1985, p. 14).
A constituição como “igreja independente” se estabelece em 1955, quando se
responsabiliza por estabelecer um corpo pastoral homogêneo e autóctone, rompendo com a
subordinação ao Departamento para o Exterior da Igreja Evangélica na Alemanha
(DECKMANN, 1985, p. 14). Esse fato oportunizou que, em 1968, no Concílio Geral,
realizado em Santo Amaro/SP, se aprovasse a fusão dos sínodos em corpo eclesiástico único,
sob uma estrutura nacional, com sede em Porto Alegre/RS, denominada de “Igreja Evangélica
de Confissão Luterana no Brasil – IECLB” (DECKMANN, 1985, p. 14; ALTMANN, 2008,
p. 108).
46
Para Ribeiro (1995, p. 436), os imigrantes alemães, japoneses e italianos viviam uma realidade de
marginalidade étnica, a qual foi explorada pelos governos dos seus países de origem, que teve a reação da
política integracionista do governo brasileiro.
70
A constituição da IECLB, em 1968, também definiu a identidade confessional imbuída
na realidade brasileira. Deckmann (1985, p. 14) expressa essa definição como “envolvimento
do ‘povo da IECLB’ com a realidade do povo brasileiro”. Altmann (2008, p. 108) formulou a
proposição como “o testemunho do Evangelho e o serviço solidário a pessoas em necessidade
ou que padecem injustiças”. A proposição se evidenciou, de forma contundente, em 1970,
com o “Manifesto de Curitiba”,47 que refletiu a relação da Igreja e a realidade do Brasil, que
estava sob o regime de governança militar (DECKMANN, 1985, p. 18-9). O manifesto foi em
consequência da desistência da FLM de realizar uma assembleia em Porto Alegre devido ao
regime militar. Deckmann (1985, p. 19) relata que
A partir desse Manifesto a IECLB tem se destacado por protesto pelo
sofrimento de colonos afetados por desapropriações governamentais,
visando concretização de projetos desenvolvimentistas, protestos pela
expulsão de agricultores e indígenas de suas áreas para ceder lugar a
construções faraônicas e projetos de exploração mineral, discussão com a
FUNAI por causa da situação indígena, exigência de aplicação do Estatuto
da Terra e da Reforma Agrária, além de protestos contra a lei de
estrangeiros.
Apesar da constatação de Deckmann, quanto à inserção social da IECLB no Brasil,48 a
pesquisadora não evidencia que as comunidades constituídas pela migração europeia mantêm
as características de organização cultural específicas. Ribeiro (1995, p. 437) ressalta as
características das comunidades formadas pelos migrantes europeus na região sul do Brasil,
citando-as como uma “região com fisionomia própria aglutinada em vilas pela concentração
de moradores em torno do comércio, da igreja e da escola”.49
47
Manifesto aprovado no VII Concílio Geral da IECLB, realizado em 22-25 de outubro de 1970, e que foi
entregue pelo pastor presidente da IECLB: Karl Gottschald; pelo pastor regional da RE IV (São Leopoldo/RS):
Augusto Kunert; e pelo pároco da comunidade luterana em Brasília: Ernesto Schlieper, em audiência, ao
presidente do Brasil, Gen. Emílio Garrastazu Médici. O manifesto apresenta teses sobre a relação entre Igreja e
Estado, ressaltando que a pregação é pública, podendo “contrariar medidas governamentais". O documento
também trata sobre o “ensino cristão e educação moral e cívica” e “direitos humanos”. Sobre direitos humanos
ressalta: “nem situações excepcionais podem justificar práticas que violam os direitos humanos”. A audiência
de entrega do manifesto ao presidente Médici ocorreu em 06 de novembro de 1970, em Brasília, e ele foi
publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, na íntegra, em novembro de 1970, após o pleito eleitoral. A
íntegra do documento se encontra em http://www.luteranos.com.br/articles/8191/1/Manifesto-de-Curitiba--1970/1.html,
e
a
reportagem
alusiva
aos
40
anos
do
manifesto,
em
http://www.novolhar.com.br/noticia_edicoes.php?id=5831.
48
Para aprofundamento na questão: GAEDE, Leonídio. Os protestantes e os movimentos populares. In: KOCH,
Ingelore Starke (org.). Brasil: Outros 500. Protestantismo e a resistência indígena, negra e popular. São
Leopoldo: Sinodal, COMIN, IEPG, 1999. p. 201-11.
49
Ribeiro (1995, p. 433) também considera que essas regiões colonizadas ainda constituem na atualidade “uma
vasta ilha nos centros dos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que vai se alastrando pelas
terras vizinhas, além de pequenos enclaves enquistados em outras regiões, como núcleos do Espírito Santo e
São Paulo”. Considera-se que essa proposição, de que as áreas colonizadas constituem “vastas ilhas”, destoa
da avaliação quanto à constituição da IECLB e seu propósito na realidade brasileira, sobretudo por ser a
71
Na presente momento, início do século XXI, a IECLB é constituída por
aproximadamente 500 paróquias, sendo cerca de 3000 comunidades e pontos de pregação
dispersos por todo o país (ALTMANN, 2008, p. 108). Ela não se desvincula de sua trajetória
de história e constituição no Brasil, reconhecendo ser uma igreja de migração, ou seja, que em
sua maioria os luteranos são descendentes de imigrantes europeus, majoritariamente alemães,
sendo que “cerca de 300 mil ingressaram no país ao longo de 120 anos. Sabe-se que 60%
desses alemães eram evangélicos” (DREHER, 2005, p. 51).
A exortação pela universalização da educação é considerada como uma herança da
Reforma Protestante, levada a cabo por Martin Lutero na Alemanha na primeira metade do
século XVI (STRECK, 2006, p. 64). Em 1524, Lutero escreve “Aos Conselhos de Todas as
Cidades da Alemanha para que criem e mantenham escolas cristãs” (CIL, 1995, p. 302-325),
ressaltando a responsabilidade pública e primordial na educação de homens e mulheres para a
condução da sociedade e do estado secular. Também redigiu “Uma prédica para que se
mandem os filhos à escola”, em 1530, sobre os resultados da negligência ou promoção da
educação humana e cristã, tanto para o Estado como para a Igreja (CIL, 1995, p. 326-363). A
escola passa a ser concebida como espaço para “gerir e organizar a vida sobre a terra”, em
benefício universal, sendo potencializada pela invenção da imprensa que permitia “ensinar
tudo a todos” (STRECK, 2006, p. 64-5).
A preocupação de Lutero com a educação se constituiu numa das características do
luteranismo, presente na imigração alemã no Brasil com a instituição de escolas comunitárias
e confessionais (DREHER, 2008b, p. 42). É em virtude dessa herança e convicção arraigada
entre os imigrantes alemães que o historiador Martin Dreher afirma: “o imigrante trouxe em
sua bagagem a convicção de que a escola é fundamental para que o povo possa pensar” (2008,
p. 24). Assim justifica-se a disposição das famílias imigrantes de confissão de fé luterana em
criar e manter escolas, contratar docentes e participar da avaliação de estudantes e docentes
“nos mais afastados rincões do Brasil meridional, do Espírito Santo, de São Paulo e mesmo de
Minas Gerais” (Idem).
A maioria das escolas instituídas nos rincões e picadas eram escolas unidocentes;
contudo, houve escolas maiores e mais estruturadas, como em São Leopoldo, Santa Cruz do
Sul, Porto Alegre, Caí, Panambi, Montenegro, Ijuí e Novo Hamburgo (DREHER, 2008b, p.
IECLB uma igreja resultante da migração e por se constituir sob os reflexos e influência das condições em que
se encontravam as famílias migrantes.
72
42). O estabelecimento das escolas pelos imigrantes evangélicos alemães no Rio Grande do
Sul contribuiu relativamente à diminuição dos índices de analfabetismo no Estado.
Em 1872 havia, no estado, 78,1% de analfabetos, taxa caiu, em 1920, para
61,2%. O Rio Grande do Sul teria em 1931 79,6% de suas crianças na
escola. Na década de 1920, Estrela contava com 5,44% de analfabetos,
Lajeado 7,23%, São Leopoldo 7,59% e Santa Cruz do Sul 8,76% (DREHER,
2008b, p. 42).
Os municípios de Estrela, Lajeado, São Leopoldo e Santa Cruz do Sul foram núcleos
de assentamento destinado aos imigrantes alemães evangélicos. Para além dessa contribuição,
estipula-se que a proposta de educação aplicada nessas escolas comunitárias ou confessionais,
nas cidades e picadas, era imbuída de “valores da vida cristã”, assemelhados aos valorespadrão da cultura germânica, ao tratar temas como liberdade, democracia, responsabilidade e
êxito. Esse processo estabeleceu conflitos em relação aos educandários, pois como o ideário
educacional era a “liberdade de consciência”, contrariava as pretensões religiosas
proselitistas, como propunham grupos originários do protestantismo missionário, oriundo da
ação de missionários protestantes da Europa e Estados Unidos da América (DREHER, 2008,
p. 28).
Como apontado anteriormente, muito das escolas tiveram suas atividades encerradas
em decorrência da política integracionista e nacionalista promovida pelo governo de Getúlio
Varga nas décadas de 1930 e 1940 (DREHER, 2008, p. 26). Ainda que pese o encerramento
das escolas decorrentes da migração, ainda é possível constatar a continuidade da tradição
escolar nas antigas picadas, rincões colonizados. Conforme Dreher (2008b, p. 42), “muitos de
seus prédios abrigam hoje escolas estaduais ou municipais. Nos centros urbanos persistem
escolas ligadas a redes confessionais ou particulares, oriundas da tradição dos imigrantes”.
O legado e herança da educação como bagagem da IECLB, uma igreja que se
constituiu a partir da imigração alemã evangélica luterana ao Brasil nos séculos XIX e XX,
não estiveram restritos aos migrantes e seus descentes. Como se apresentará mais adiante, a
proposição de instituir a educação escolar perpassou as fronteiras étnicas e se estabeleceu
junto às comunidades indígenas no Rio Grande do Sul. Nesse cruzar fronteiras, estabeleceu
conflitos, como a proposição de usar as escolas como instrumento proselitista religioso e a
educação como exercício da livre consciência, da democracia e autodeterminação.
73
2.2 IMIGRANTES, IGREJA E POVOS INDÍGENAS
Os imigrantes que desembarcaram no Rio Grande do Sul a partir de 1824, devido à
política de imigração do Governo Imperial do Brasil, foram assentados em terras consideradas
devolutas, apesar de serem habitadas e dominadas por diferentes grupos kaingang. Conforme
indicações de Witt (1999, p. 43), historiador luterano, no período dos assentamentos dos
imigrantes, os kaingang dominavam três áreas distintas: “duas áreas ficavam entre os rios Ijuí
e Passo Fundo e uma terceira iniciava no rio Passo Fundo, estendendo-se até à serra e os vales
do Sinos e Caí”. Conforme Ítala Becker (1976, p. 58), as áreas dos assentamentos dos
imigrantes incidiram no território ocupado pelo grupo e comunidades kaingang lideradas por
Braga, a leste do rio Passo Fundo até o vale do Sinos e Caí. A ocupação kaingang era de
longo tempo e, definitivamente, as terras não poderiam ser consideradas como desocupadas
ou devolutas. Ao contrário, para os kaingang o assentamento dos imigrantes pode ser
caracterizado como “a ocupação de parte de seu espaço geográfico de sobrevivência” e o
estabelecimento de uma história de espoliação aos territórios tradicionais dos kaingang
(BECKER, 1976, p. 69; WITT, 1999, p. 43).
A realidade que se estabelece a partir de então, com os assentamentos em territórios
tradicionalmente dominados pelos kaingang, foi o conflito, pilhagem, assaltos, sequestros e
mortes entre os dois grupos, kaingang e imigrantes. Nos ataques, os kaingang, além de
defenderem o território, também obtiveram materiais, como metais, fazendas (tecidos),
mantimentos e sal, que passaram a utilizar (BECKER, 1976, p. 69). No conflito se
evidenciaram as dinâmicas distintas, das duas sociedades, de ocupação, manejo e utilização da
terra para a subsistência. Para os kaingang, a necessidade de ocupação e domínio de amplo
território se justificava pelo fato de sua economia se basear na coleta e obtenção de fontes
nutricionais em diferentes e dispersos nichos (SCHOULTEN, 1990, p. 36). Em contraste, o
modelo advindo com a imigração estabeleceu a derrubada da mata e a exploração da terra
através da agricultura intensiva. O modelo agrícola implantado pelas famílias imigrantes
promoveu a espoliação do espaço geográfico dominado pelos kaingang, rompendo e
desestruturando os fundamentos culturais kaingang, uma vez que a mata se constituía na fonte
primária nutricional, medicinal e religiosa da cultura kaingang (SCHOULTEN, 1990, p. 38).50
50
Ressalta-se que, ainda que pese o interesse da dissertação sobre a historiografia e situações concernentes à
região dos rios Guarita e Turno, os grupos e comunidades kaingang ocupantes da região noroeste do Estado
não participaram dos ataques aos assentamentos dos imigrantes, uma vez que “não poderiam chegar às
74
O assentamento das famílias imigrantes em territórios kaingang caracterizou uma
estratégia de ocupação e segurança geopolítica do governo imperial. O conflito entre
indígenas e imigrantes advindo dessa estratégia afetou ambos os grupos, porém o intento
governamental foi “garantir a posse dessas terras, valorizá-las e expulsar o elemento indígena
indesejado” (SCHOULTEN, 1990, p. 36). Contudo, ainda que pese o fato de o governo
imperial se abster no envolvimento direto no conflito e permitir que os imigrantes
estabelecessem estratégias e meios de disputa e defesa das terras concedidas, imputa-se ao
governo imperial a concepção da estratégia geopolítica sob a custa da terra e da vida dos
povos indígenas. Witt (1999, p. 44) constata que “a possibilidade de tratar os índios como
pessoas com igualdade de direitos, respeitando sua cultura e sua língua e o espaço respectivo
para a sua existência, nunca foi considerada com sinceridade do ponto de vista da legislação e
das respectivas políticas oficiais”.
O historiador luterano P. Dr. Martin Dreher (1992, p. 18) pontua que tal fato também
constitui a história da IECLB, em virtude de que as famílias imigrantes luteranas também
foram usadas pelo império em sua estratégia geopolítica e, por isso, foram envoltas na
eliminação física de povos indígenas. Os imigrantes luteranos também foram assentados em
“terras devolutas”, que segundo o historiador é sinônimo de terras indígenas, e se envolveram
em conflitos e disputas com os grupos indígenas.
Os grupos e comunidades kaingang foram alijados e despojados de seu território de
ocupação e domínio tradicional, tendo como consequência a redução territorial, a carência
alimentar e a impossibilidade de acessar e obter novos bens materiais. Assim se estabelece o
inconformismo e os ataques como estratégia de obtenção de bens e víveres e a defesa
territorial indígena. Essa estratégia aconteceu de acordo com a emergência e o desespero em
suprir suas necessidades, como ressalta Ítala Becker (1976, p. 59), ao afirmar o motivo da
insatisfação e dos ataques: “não é também uma simples atitude de cobiça que o faz agir nessa
situação, mas sim, a satisfação de necessidades bem primárias”. Por outro lado, os imigrantes
afetados consideravam tais ataques como “violentações e injustiças praticadas pelos índios”
(BECKER, 1976, p. 69).
De forma geral, propõe-se dividir em dois períodos os ataques ou confrontos entre os
indígenas e os imigrantes colonizadores. Para tanto, se estabelece a constituição dos
colônias antigas dos alemães, porque a distância era grande e, sendo inimigos do grupo de Braga, não
conseguiriam passar” (BECKER, 1976, p. 58). Contudo, persistir-se-á na análise e relato dos fatos entre
kaingang e imigrantes, por se tratar de tema de interesse na constituição da IECLB e na missão entre índios.
75
aldeamentos pelo governo provincial em meados do século XIX como divisor dos dois
períodos. Conforme Becker (1976, p. 58), os confrontos se acentuaram no primeiro período,
ou seja, anterior à constituição dos aldeamentos, sobretudo entre 1829 e 1832, no primeiro
avanço colonizador. No período posterior à constituição dos aldeamentos ocorreram casos
isolados, com justificativas específicas, como, por exemplo, os ataques liderados por Nicué,
que, em decorrência de conflitos com outros grupos kaingang, “realiza diversos assaltos, onde
se procura abastecer e onde rapta pessoas, possivelmente, para aumentar os braços femininos
do seu grupo” (BECKER, 1976, p. 69). Conforme levantamento de Becker (1976, p. 61), os
municípios em que mais se intensificaram os conflitos foram São Leopoldo, Caí, Montenegro,
Taquara e Nova Petrópolis.
Os aldeamentos estabelecidos em meados do século XIX pelo governo provincial do
Rio Grande do Sul, no intento de reunir e concentrar as comunidades e grupos indígenas em
espaços determinados, não impediram que os kaingang realizassem excursões e acessassem os
territórios tradicionais, campos e matas para suprimento nutricional, de que careciam nos
toldos provinciais (BECKER, 1976, p. 59). Apesar das reclamações enviadas às autoridades,
coube aos próprios imigrantes estabelecer estratégias para evitar ou reprimir os ataques
indígenas. A constituição das Companhias de Pedestres51 surge neste contexto, como
iniciativa de particulares, no intento de controlar e limpar as matas, postulando o
aprisionamento ou o extermínio dos grupos indígenas indesejados (BECKER, 1976, p. 66).
As Companhias de Pedestres arregimentaram a participação de indígenas, de grupos
dissidentes e adversários, destacando-se Victorino Cundá e Doble (BECKER, 1976, p. 67).
Os conflitos entre os imigrantes e indígenas também evidencia a perspectiva
colonizadora de que a sociedade indígena e seu modelo sociocultural deveriam ser
suprimidos, sob o entendimento de que os imigrantes do século XIX eram portadores da
civilização. Essa perspectiva colonizadora dos imigrantes do século XIX insiste, de forma
semelhante, na perspectiva colonizadora colonial portuguesa, executada desde o século XVI.
Por decorrência, as possíveis iniciativas missionárias evangelizadoras também esbarravam em
tal perspectiva preconceituosa ao considerarem as comunidades indígenas carentes da
civilização cristã (WITT, 1999, 44-5, 51).
51
Biasi (2010, p. 13), em nota de rodapé, define as Companhias de Pedestre como “forças militares constituídas
com a finalidade de manter a segurança dos colonos contra as chamadas ‘correrias’ indígenas. Deviam também
proteger os aldeamentos contra possíveis ataques de indígenas não aldeados. Essa força militar saía à procura dos
indígenas no caso de algum ataque e rapto de colonos e contavam com auxílio de ‘bugreiros’, força paramilitar
de combate aos indígenas; faziam verdadeiras caçadas e chacinas de indígenas que resistiam aos aldeamentos”.
76
O empreendimento de uma missão evangelizadora por parte dos imigrantes luteranos,
que foram assentados em terras tradicionais kaingang, foi considerando no processo da
constituição eclesial da igreja de confissão luterana. Constata-se o impedimento para as
missões entre as comunidades indígenas, além do preconceito colonizador ante as
comunidades indígenas, a própria estrutura eclesial, provisória e restrita, mesmo após o
período dos conflitos, na segunda metade do século XIX (WITT, 1999, p. 44-5). Outra
questão que se estabeleceu no debate interno, na incipiente constituição eclesial e na
disposição em estabelecer “frentes missionárias além dos círculos étnicos” dos imigrantes
luteranos decorreu do entendimento de que o número de pastores e/ou diáconos estava aquém
da própria demanda de atendimento às comunidades eclesiásticas (WITT, 1999, p. 51).
Contudo, ainda no século XIX, após a criação do Sínodo Rio- Grandense,52 as
comunidades evangélicas são desafiadas a considerar a realidade indígena. Em 1888, foram
publicados na revista Der Deustche Ansiedler53 três artigos sobre a situação de comunidades
indígenas no Brasil.54 Conforme Witt (1999, p. 45), “diante destas notícias, as comunidades
evangélicas no Brasil foram lembradas de que, em relação aos indígenas, elas eram como
pessoas ricas frente ao pobre Lázaro que está à porta”. Apesar do desafio colocado às
comunidades de imigrantes evangélicos pelos pares da Alemanha, de se estabelecer uma
missão entre índios, esbarrou-se na deficiência de recursos financeiros e na eleição local de
outras prioridades.
O desafio de uma missão entre índios foi retomado e abordado nas assembleias do
Sínodo Rio-Grandense, entre 1900 e 1905, ao se debater as primeiras experiências ou
tentativas empreendidas pelo P. Bruno Stysinski e pelos diáconos e missionários Otto von
Jutrzenka e Curt Haupt no Rio Grande do Sul no início do século XX (WITT, 1999, p. 46-7;
1994, p. 151-4).
52
O Sínodo Rio-Grandense se constituiu pela afiliação majoritária das comunidades evangélicas locais do Rio
Grande do Sul, sendo criado em 1886 (WITT, 1999, p. 45).
53
Publicação da Sociedade Evangélica de Barmen/Alemanha, sendo a tradução do título: O Colono Alemão. A
Sociedade Evangélica de Barmen também é responsável pelo envio de “muitos pastores e professores para as
comunidades evangélicas no Rio Grande do Sul” (WITT, 1999, p. 45).
54
A primeira notícia tratava sobre “a existência de mais de milhão de índios no Brasil que ainda não tinham sido
atingidos pela atuação missionária”, em referência a uma matéria publicada por um jornal menonita norteamericano. A segunda notícia, oriunda de jornais teuto-brasileiros, relatava a ação do bugreiro Joaquim Bueno
e seu bando, que exterminavam comunidades indígenas de 300 até 5000 indivíduos, através do envenenamento
de águas, na divisa entre Paraná e São Paulo, região do Paranapanema. E a terceira tratava da carta de um
viajante alemão e sua incursão junto ao povo pareci no Mato Grosso (WITT, 1999, p. 45).
77
A primeira tentativa de estabelecer uma missão entre índios foi realizada pelo P.
Stysinski, que se deslocou para conhecer a comunidade kaingang do Toldo Pontal (ou
Pontão), em Lagoa Vermelha/RS, na páscoa de 1900. Conforme relato do P. Stysinski, a
primeira atitude foi estabelecer contato com o cacique local, conhecido como general
Faustino, que, conforme avalia, o recebeu “amigavelmente”. Após se identificar e explanar a
Faustino sobre as intenções e pretensões de sua visita, o pastor presenteia o cacique e outros
membros da comunidade. Após a entrega dos presentes, o P. Stysinski se empenhou em obter
informações sobre o histórico, a situação da comunidade e o uso da língua kaingang.
Dialogou com muitos membros da comunidade e realizou visitas às moradias kaingang,
concebidas como “choupanas” (WITT, 1999, p. 47). Em seu relatório o pastor conclui que
“através da criação de uma escola e um Direktorium (diretório) poderíamos preservar esta
estirpe do extermínio e intruí-los [sic] para a honra de Deus e o proveito da nossa pátria”
(apud WITT, 1999, p. 48).
No período natalino de 1900, o P. Stysinski empreendeu nova viagem, esta à região de
Nonoai, conhecendo os toldos de Nonoai e Serrinha, considerados os dois maiores da região.
O pastor avaliou que nesses toldos haveria maiores avanços que em Pontal (ou Pontão),
devido à maior aplicação, conhecimento da língua portuguesa, produtividade laboral e
conhecimento de conceitos religiosos. Apesar das considerações, o pastor constata que os
indígenas “de modo geral não são reconhecidos na legislação republicana como cidadãos.
Suas matas e seus campos não estão demarcados, sua propriedade não é reconhecida, nem são
traçadas linhas de divisas” (apud WITT, 1999, p. 49). Em suas conclusões, apontou para a
necessidade do apoio na defesa e garantia de direitos e usufruto da terra, bem como estímulo e
ânimo ao trabalho, cultivo e criação de animais, enfatizando que sem tais atitudes não haveria
perspectivas de futuros aos “nossos pobres índios” (WITT, 1999, p. 49). Apesar dos relatos e
conclusões apontadas pelo P. Stysinski, não se estabeleceu alguma ação missionária entre
índios, de imediato, por falta de recursos.
Durante a realização da 17ª Assembleia do Sínodo Rio-Grandense, ocorrida em
Taquari/RS no mês de março de 1903, retoma-se o debate sobre a missão entre índios. A
assembleia dividiu-se entre manifestações desfavoráveis, pois “havia ainda muitas
necessidades a serem supridas nas comunidades formadas por descendentes de alemães”, e
manifestações que ponderavam que era “momento para começar a missão que se propunha
avançar os limites étnicos”. De forma geral, não se obteve consenso na assembleia, mas se
78
propôs criar um Comitê de Missão, a quem se transfeririam recursos financeiros para a missão
entre índios (WITT, 1994, p. 153).
Em consequência da assembleia, dois diáconos missionários, Curt Haupt e Otto von
Jutrzenka55, se prontificaram a novas viagens às comunidades indígenas para averiguar onde
iniciar a missão entre índios. A viagem dos diáconos ocorreu a partir de agosto de 1903.
Visitaram primeiramente o Toldo Pontão (Lagoa Vermelha/RS), em agosto de 1903, também
recebidos pelo cacique general Faustino. Novamente repete-se a prática de oferta de
presentes. Os missionários propõem a criação de uma escola, proposta aceita pelo cacique,
que afirma que cerca de cem crianças poderiam frequentar o educandário. Faustino apela para
que os missionários atendessem a comunidade. O apelo causou comoção aos missionários,
pois consideraram que a comunidade se encontrava em situação de penúria (WITT, 1999, p.
49-50).
Os missionários deram prosseguimento à viagem, deslocando-se até o toldo do rio
Ligeiro, onde se depararam com a situação conflituosa entre os kaingang e famílias
agricultoras, inclusive resultando na morte de um índio e duas pessoas não índias (WITT,
1999, p. 50). Haupt e Jutzrenka se deslocaram, em seguida, até o Toldo Serrinha, aonde
chegaram em 27 de agosto de 1903. Os missionários foram recebidos pelo cacique capitão
Manoel Oliveira, que expôs sua desilusão às constantes promessas de ajuda, que se revelavam
ineficazes. Sobre a proposição dos missionários para a construção de uma escola, o cacique
afirmou esta já havia sido prometida em outras oportunidades, porém se não concretizara.
Diante da relutância de Manoel de Oliveira, os missionários se dispuseram a prolongar a
permanência, na tentativa de persuadir o cacique que cumpririam com o propósito, inclusive
buscaram um local para instalar uma escola. Após a permanência de quatorze dias no Toldo
Serrinha, os missionários visitaram o Toldo Nonoai, concluindo não ser o local para fixar uma
missão evangélica luterana entre índios, uma vez que se cogitava de a Igreja Católica
implantaria uma escola junto à comunidade indígena. Além dos toldos mencionados, Haupt e
Jutrzenka também visitaram famílias indígenas no rio Ligeiro, Costa da Forquilha e em
Palmeira durante o percurso (WITT, 1999, p. 50).
55
Os diáconos missionários provinham “da Fundação Evangélica São João de Berlim e, quando de sua chegada
no Brasil, permaneceram em Petrópolis/RJ, atuando como professores a fim de melhor dominar o idioma
português. Vieram ao Rio Grande do Sul em março de 1903 e participaram, no mês de maio, da 17ª
Assembleia Sinodal em Taquari. Nesta oportunidade o tema da missão entre índios estava outra vez na pauta.”
Após a assembleia, então os missionários realizam a viagem aos toldos kaingang do Rio Grande do Sul e
Paraná (WITT, 1994, p. 153).
79
Em setembro de 1903, em continuidade às visitas aos toldos indígenas, Haupt e
Jutzrenka adentram na região dos toldos no rio Chapecozinho. Os missionários ao se reunirem
com o cacique major Venâncio ofertaram presentes e propuseram a instalação de uma escola,
a que tiveram a recusa aos presentes e à escola. O cacique interpela aos missionários se eram
protestantes, estes afirmaram serem protestantes. Apesar da recusa e da interpelação cética do
cacique, Haupt e Jutzrenka permaneceram entre os índios para conhecê-los e para uma maior
aproximação. Assim, conheceram os toldos Formiga e rio Chapecó Grande. Desconsideram,
porém, a possibilidade de fixar uma missão entre índios na região. De acordo com suas
avaliações, comparando-se a realidade das comunidades indígenas do Paraná56 às do Rio
Grande do Sul, estas apresentavam maiores dificuldades de acesso, miserabilidade e
desesperança. Os missionários também consideraram o atendimento prestado por padres
católicos (WITT, 1999, p. 50-1).
Os missionários apresentam o relatório da viagem na 18ª Assembleia do Sínodo
Riograndense, em 1904, realizada em Taquara/RS. A assembleia resolve protelar a decisão.
Após a assembleia, os missionários Haupt e Jutzrenka conseguiram iniciar as atividades no
Toldo Serrinha, porém, logo que iniciaram a instalação, foram expulsos pelos índios. Segundo
os missionários, os índios foram instigados por um padre católico, que não concordava com a
presença de missionários protestantes. Então os missionários se estabeleceram em Nonoai/RS,
onde implantaram uma escola para crianças brasileiras, mantendo o objetivo de se
reaproximarem dos indígenas. Contudo, em janeiro de 1905, foram outra vez expulsos pelos
índios, incitados pelo padre Peters, que desejava conduzir a catequese dos kaingang na região
(WITT, 1994, p. 153-4).
Diante do insucesso na implantação da missão entre índios, empreendida pelos
missionários Haupt e Jutzrenka nos anos iniciais do século XX, o Sínodo Rio-Grandense não
estabelece novas tentativas (WITT, 1994, p. 153-4). Todavia, as experiências do P. Stysinski e
dos missionários Haupt e Jutzrenka trouxeram à evidência o conflito incipiente na
estruturação e formação eclesial, iniciada com os imigrantes luteranos. O conflito se
constituiu através do debate entre a preservação da identidade germânica das comunidades
evangélicas, defendido pelo grupo majoritário, e o desafio e compromisso da Igreja de
56
A região visitada pelos missionários constituía na época território do Estado do Paraná. A constituição atual,
como território do Estado de Santa Catarina, ocorreu somente em 1917.
80
extrapolar os laços étnicos, defendido por parcela minoritária, contudo sem negar a própria
identidade (WITT, 1994, p. 156).57
O debate entre o germanismo e o romper dos laços étnicos persistiu noutros momentos
da constituição da IECLB e seu engajamento com as realidades e grupos sociais no Brasil,
como demonstrado no histórico da constituição da IECLB, herdeira da reforma religiosa
protestante do século XVI e da imigração de europeus, especialmente alemães evangélicos, ao
Brasil. Considera-se relevante o contexto em que se estabeleceu o debate, no início do século
XX, durante tentativas de se estabelecer ações missionárias entre indígenas, pois trata-se de
uma mudança de postura frente aos índios, quando não são considerados como uma ameaça e
um infortúnio a ser superado, para que os imigrantes tomem posse da “terra devoluta”. As
tentativas de estabelecer uma ação missionária entre os kaingang, então, promoveram o apoio
e a garantia de espaços demarcados, os toldos, como proposto pelo P. Stysinski. Persiste ainda
a concepção de que os índios são miseráveis e carentes de benefícios da sociedade civilizada,
por isso o objetivo de implantar uma escola. Obviamente que se pode avaliar essa concepção
como tentativa de dominar e restringir a circulação dos indígenas, uma vez que persiste a
concepção de que as “terras devolutas” passaram à posse e exploração dos imigrantes e seus
descendentes.
Os diferentes momentos estabelecidos entre os imigrantes europeus evangélicos e as
comunidades indígenas, do conflito homicida pela disputa de território e a implantação de
missão entre índios, ocorrem num espaço temporal menor que um século. Nesse tempo
sobressaíram os períodos de conflitos e tentativas de dominação, expulsão, aculturação e
extermínio das comunidades indígenas. Por isso, Dreher (1992, p. 18) sentencia: “na maioria
das vezes, os indígenas não nos sentiram como discípulos de Jesus Cristo, mas como
adversários e invasores”, concebendo o estabelecimento de um cativeiro aos indígenas. O
teólogo e historiador luterano também pondera que ocorreram algumas tentativas no processo
histórico, como as do início do século XX, de colocar pequenos sinais da responsabilidade
social junto aos povos indígenas, mas ressalta que um engajamento maior se estabelece no
período posterior ao abordado. Porém também esse se deve “a invasões de membros luteranos
57
Witt (1994, p. 156) evidencia o fato de que “muitas famílias de ascendência germânica não davam a menor
importância à preservação da germanidade, em especial aquelas que viviam longe do alcance do poder de
influência do seu grupo étnico. Assim, p. ex., o P. Lechler obrigava-se a pregar em português nas cercanias de
Vacaria [em 1901], pois lá, em meio a brasileiros lusos, afros e indígenas, as famílias teuto-brasileiras já
tinham abdicado do idioma alemão, e também em Três Forquilhas, pois lá viviam famílias negras [ex-escravas
dos alemães e batizadas evangélicas] às quais Lechler não julgava certo fechar as portas do evangelho”
(WITT, 1994, P. 156).
81
em áreas indígenas (Tenente Portela/RS; Gleba Arino/MT, Rondônia)” (DREHER, 1992, p.
18) em relação às missões entre índios estabelecidas a partir das décadas de 1960 e 1970 no
âmbito da IECLB. Essas missões serão implantadas concomitantemente à estruturação,
solidificação e constituição da organização eclesial da IECLB como uma igreja nacional e que
se propunha a testemunhar o evangelho de Jesus Cristo no Brasil. Simonian (1995b, p. 80)
afirma que foi a partir dessa data que “os missionários protestantes passaram a ter uma
inserção mais sistemática entre os mesmos”, a saber, os índios. E, dentre as missões citadas
por Dreher, a que se constituirá de atuação constante até a atualidade será a ação missionária
indigenista junto às comunidades kaingang e guarani na TI Guarita.
2.3 MISSÃO NA TI GUARITA
2.3.1 Fundação e propósito da Missão Guarita
A ação missionária-indigenista da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil
(IECLB) na TI Guarita inicia na década de 1960 através da ação do Pastor Noberto
Schwantes, que atuava na Paróquia Evangélica de Tenente Portela. Em setembro de 1960, o
pastor visita a comunidade kaingang da TI Guarita, uma vez que a divisa da área demarcada
era próxima à sua residência. A visita causou-lhe certa perplexidade, como afirma: “Fiquei
surpreso. Em toda a reserva não havia uma única escola para os índios (SCHWANTES, 2008,
p. 32). Assim,
Schwantes convenceu a diretoria de sua Paróquia da necessidade de uma
escola, tipo internato, para as crianças dos colonos. A partir dessa escola,
começou a pensar em como atender a comunidade indígena. Chegou à
conclusão que não seria prudente colocar numa mesma sala crianças de
colonos e crianças indígenas. Os membros da diretoria da Paróquia
concordaram então, em ceder o professor da escola comunitária para que
fosse lecionar, no período da tarde, numa escola só para os índios
(ZWETSCH, 1993, p. 232).
O pastor, em conjunto com o presbitério da Comunidade Evangélica de Tenente
Portela, obteve a aprovação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) para a instalação de uma
escola primária na TI Guarita. Para o funcionamento da escola aos kaingang, foi convidado o
mesmo professor que atuava na Escola Tobias Barreto, que era vinculada à Comunidade
Evangélica de Tenente Portela.
Quando começou a funcionar a Escola Tobias Barreto, propusemos ao
professor que ele fizesse um segundo turno de trabalho. Ele topou.
Conseguimos então, com o chefe do posto, uma velha casa abandonada da
reserva, a seis quilômetros da cidade. Para sua condução, compramos uma
82
bicicleta, com dinheiro levantado em uma rifa. Assim foi montada a primeira
escola da reserva, atendendo grande parte das famílias indígenas
(SCHWANTES, 2008, p. 33).
As atividades letivas da escola iniciaram, efetivamente, em março de 1961
(ZWETSCH, 1993, p. 232-3). A instalação da escola junto à comunidade kaingang pode ser
considerada como algo inédito por extrapolar as fronteiras étnicas da comunidade evangélica,
como experiência efetiva junto à comunidade indígena através da educação escolar. Contudo,
conforme aponta Zwetsch, ao analisar as propostas missionárias da IECLB junto aos povos
indígenas, ressalta que “a escola foi um meio para ganhar confiança dos índios e acostumar a
comunidade evangélico-luterana com as idéias de missão entre índios” (1993, p. 234). Essa
avaliação também aponta para outra característica desse processo, a saber, “que a iniciativa da
missão cabe exclusivamente ao pastor e não à paróquia, como ele argumentava. Foi sim, uma
iniciativa local e não da Igreja, como instituição” (ZWETSCH, 1993, p. 236).
Contudo, o P. Schwantes obteve “a adesão da direção da Igreja que, a partir de 1962,
assumiu alguns gastos, como o pagamento de um professor, a compra de roupas,
principalmente para as crianças da escola, e material escolar” (ZWETSCH, 1993, p. 237). A
adesão fora importante para a elaboração da ampliação e encaminhamentos de um novo plano
de ação missionária junto à comunidade kaingang na TI Guarita, em virtude dos bons
resultados do trabalho da escola.
Foi assim que um novo plano começou a se esboçar em 1964. O trabalho da
escola estava dando bons resultados. As necessidades gerais da comunidade
indígena demandavam respostas concretas. Em maio de 1964, Schwantes já
tinha um plano concreto para adentrar a área, com o apoio de parte da
comunidade. Suas boas relações com o velho pajé Athanásio facilitaram a
escolha do local para instalar um posto missionário, já ampliado, com escola,
enfermaria e casa do professor (ZWETSCH, 1993, p. 237).
O objetivo dessa nova proposta missionária, elaborada pelo P. Norberto Schwantes,
previa a construção da Escola Normal Indígena Clara Camarão, sendo denominada como
Missão Indígena. Para tanto, elaborou projeto de solicitação de recursos, argumentando com
“a situação em que estavam os índios, vivendo como mendigos, pedindo esmolas no posto do
SPI ou de comerciantes de Tenente Portela”. Intermediado pela IECLB e Federação Luterana
Mundial, obteve a doação da Lutherhjalpen (Ajuda da Igreja Luterana da Suécia)
(SCHWANTES, 2008, p. 38). O P. Schwantes concebia que a situação de miserabilidade seria
superada “ajudando os índios a formarem seus professores e líderes, [assim] eles teriam
alguma oportunidade de independência e progresso”, como também argumentou junto à
direção da IECLB (SCHWANTES, 2008, p. 35).
83
Referente ao diálogo e à argumentação junto à comunidade kaingang, Schwantes
(2008, p. 39) aponta que:
Os líderes indígenas […] eram sempre nomeados pela chefia do posto, que
escolhia os índios mais dóceis e colaboradores. Argumentei que a criação de
uma escola normal seria a única oportunidade de romper esta situação de
miséria, com a formação de professores índios, que naturalmente seriam os
novos líderes. Estes, bem formados e conscientes da situação do seu povo,
teriam condições de luta.
A instalação do novo posto missionário foi localizada a cerca de 30 quilômetros da
primeira escola, agora na área do município de Redentora/RS. A localidade já era ocupada por
famílias kaingang e guarani. Conforme evidencia Zwetsch, o “objetivo foi constituir um
centro missionário que funcionasse como centro de vida para os índios cristianizados” (1993,
p. 239).
A inauguração da Missão Indígena Guarita ocorreu em 27 de julho de 1965, sendo que
a escola primária ali instalada ficou sob a direção do Prof. Herbert Trennepohl. No entanto,
ainda era preciso encaminhar a implantação da escola normal, objetivo principal dessa
proposta (ZWETSCH, 1993, p. 241).
É durante uma viagem de estudo à Alemanha, em 1966, que o P. Norberto Schwantes
consegue o apoio político e financeiro, como também de disposição de pessoal, para atuar
junto à missão indígena. É durante essa viagem que o P. Schwantes conheceu Ursula
Wiesemann.
Mas o contato mais significativo, por sua posterior incidência na vida dos
Kaingang, foi com a lingüista Ursula Wiesemann, da Lutherischer Freikirche
da Alemanha, colaboradora da Wycliff Bibelübersetzer e do Summer
Institute of Linguistics, no Brasil. A dra. Ursula, como era chamada, chegara
ao Brasil em setembro de 1958 e se instalara na Reserva de Rio das Cobras,
no Paraná, onde se abriu um trabalho da Igreja Evangélica Cristianismo
Decidido (ramo pietista saído da Igreja Evangélica Luterana). Desde então,
Wiesemann estudava a língua Kaingang com o intuito de criar um alfabeto
(concluído em 1963), que permitisse alfabetizar os indígenas na sua língua e
depois oportunizasse a tradução do Novo Testamente, concluída em 1976.
Schwantes convidou-a para dirigir a escola, mas a pesquisadora aceitou
apenas orientá-la (ZWETSCH, 1993, p. 241-2).
Cabe ressaltar a distinção entre o pietismo, a que estava vinculada Ursula Wiesemann,
e o trabalho que desenvolveu a partir daí, e a presença e instalação de igrejas pentecostais
entre os kaingang. Assim também a IECLB não pode ser confundida como igreja pentecostal.
A IECLB é classificada entre as igrejas protestantes históricas. Erroneamente, Veiga aponta a
ação da IECLB na TI Guarita, bem como da Missão do Cristianismo Decidido, em Rio das
Cobras/PR, como a presença e atuação de igrejas pentecostais (2004, p. 180). Apesar do
84
objetivo de Ursula Wiesemann, bem como a instalação da Missão Indígena serem de cunho
proselitista, isso não os configura como atuação de igrejas ou movimentos pentecostais, como
a Assembleia de Deus e outras denominações eclesiais entre as comunidades kaingang.
Destaca-se que a participação de Ursula Wiesemann é considerada como fundamental
para o planejamento e a instalação da Escola Normal Clara Camarão.58
Com o apoio lingüístico de Wiesemann, o trabalho em Guarita se firmou de
vez. Tanto assim que no ano seguinte, em 1967, vários dos objetivos da nova
fase do trabalho começam a se concretizar. […]Tinha apoio da comunidade
indígena, conseguira se firmar como uma proposta séria na Igreja e perante
outros parceiros na Europa, possuía no final de 1966 uma boa infraestrutura,
contava já com bons colaboradores, avançava no que se refere à língua e à
tradução do Novo Testamento, com a vinda de Ursula Wiesemann,
preparando o momento para dar início ao treinamento de professores
bilíngües que deveriam, mais tarde, assumir as escolas das suas comunidades
e se tornar lideranças importantes de seu povo (ZWESTCH, 1993, p. 243).
Para o P. Norberto Schwantes, a implantação da Escola Normal significou a definição
da sua dedicação ao projeto da Missão Indígena e às atividades na Paróquia Evangélica de
Tenente Portela e outros projetos por ele desenvolvidos nessa cidade.
Quando o projeto da Escola Normal começou a tomar forma, ficou claro
para mim que ele iria requerer dedicação integral e que eu teria de optar
entre minhas funções na Paróquia e a Missão. A Missão me fascinava. Eu
via que através da Escola Normal Indígena – única no País – seria possível
um trabalho de resgate da identidade cultural dos índios, e sua integração
com a sociedade civil circunvizinha. Eu estava muito inclinado a escolher a
Missão como meu campo de trabalho (Apud ZWETSCH, 1993, p. 244).
O P. Norberto Schwantes não definiu a Missão Indígena como campo de sua atuação,
mas reconheceu e enalteceu o fato de que a implantação ou estruturação da Escola Normal se
devesse à participação de Ursula Wiesemann.
A Escola Normal só foi mesmo estruturada com a vinda, em 1968, da
professora Ursula Wiesemann, do Sommer Instituto of Linguistic [sic], que
eu conheci na Alemanha em 1966. [p. 39] […] Cabe à Úrsula o mérito de ter
estruturado e dirigido a Escola Normal Bilíngüe Clara Camarão. Esta escola
não ficou limitada apenas a teorias e gramáticas. Com o fim da caça,
provocado pela crescente e criminosa devastação da reserva, as práticas
58
A pesquisa não obteve a justificativa para a escolha do nome Clara Camarão para a escola. Sabe-se que Clara
Camarão foi uma índia potiguar, que nasceu próximo a Natal/RN (Aldeia Velha, atualmente Igapó/RN),
provavelmente na segunda metade do século XVII. Casou-se com Antônio Felipe Camarão, índio Poti, da
nação potiguar. A partir do casamento, Clara Camarão acompanhou o marido nos combates contra o domínio
holandês. Afirma-se que utilizava com habilidade o arco e a flecha, a lança e o tacape. Um dos confrontos em
que se destacou foi o de Porto Calvo, em 1637, quando, à frente de índias potiguares, Clara Camarão combateu
as tropas holandesas com bravura, sendo vitoriosa (Disponível em <http://www.senado.gov.br/senadores
/senador/garibaldi/camarao.asp> Acesso em: 05 jul. 2010). Consta que “por seus feitos corajosos, foi-lhe dado
o direito de ser chamada de Dona e de receber o hábito de Cristo, junto com seu marido, concedido pelo rei
Felipe IV” (Disponível em: <http://www.bolsademulher.com/estilo/clara-camarao-e-as-indias-isabel558.html>. Acesso em 05 jul. 2010).
85
agrícolas passaram a ser de fundamental importância para a sobrevivência da
comunidade indígena (SCHWANTES, 2008, p. 40).
Apesar da vinda de Ursula Wiesemann em 1968, com o apoio de docentes vinculados
à IECLB, à escola, então denominada como Escola Normal Bilíngue Clara Camarão, as
atividades iniciaram dois anos mais tarde.
A escola foi inaugurada oficialmente em 19/02/1970, com a presença do
Presidente da FUNAI, Queiroz Campos, que trouxe consigo o embaixador
da Dinamarca no Brasil, Sr. J.A. W. Paludan e esposa, além de
representantes da imprensa européia. Da parte da IECLB, estiveram
presentes o Pastor Rodolfo Schneider, 2º Vice-Presidente, e o Pastor
Heinrich Güttinger, presidente do Conselho da Obra Missionária
(ZWETSCH, 1993, p. 251).
A instalação da escola se tornou um marco pioneiro por se constituir o primeiro curso
nesta perspectiva. Também tem a sua relevância em virtude do impacto junto às muitas
comunidades que enviaram jovens para a formação, bem como àquelas comunidades onde
foram atuar.
No entanto, o próprio P. Norberto Schwantes se questionou sobre a real intenção da
parceria e disposição da FUNAI na implantação e condução da Escola Normal Bilíngue Clara
Camarão. Conforme Zwetsch, o P. Norberto Schwantes afirmou: “Ficamos sabendo depois
que servimos de palco para demonstrar o quanto o governo brasileiro faz pelos índios e para
negar a imagem criada no exterior de que ocorriam verdadeiros genocídios no Brasil” (Apud
ZWETSCH, 1993, p. 251).
Essa percepção seria uma primeira constatação dos conflitos contraditórios e também
das dificuldades na parceria estabelecida entre as instituições parceiras, IECLB, SIL e
FUNAI. A primeira – IECLB –, identificada a partir da proposição do P. Noberto Schwantes,
objetivava capacitar e potencializar novas lideranças para alterar a realidade das comunidades
indígenas. A segunda – SIL – tinha o objetivo da catequização e tradução da Bíblia cristã para
o vernáculo kaingang. E a terceira – FUNAI –, com base na proposta integracionista,
conforme o exposto, buscava estabelecer uma imagem positiva junto à comunidade nacional,
na ação pública junto à comunidade indígena.
A seguir abordar-se-á o transcorrer das atividades da Escola Normal Bilíngue Clara
Camarão, que teve o nome alterado para Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão
(CTPCC).59
59
No presente trabalho, não serão abordados os motivos e intenções implicados na alteração da nomenclatura de
Escola Normal para Centro de Treinamento Profissional.
86
2.3.2 O curso de formação de monitores bilíngue
O CTPCC foi implantado como atividade principal da Missão Indígena, iniciada pelo
P. Norberto Schwantes, em 1961, com a instalação de uma escola para os kaingang na TI
Guarita (na abrangência do município de Tenente Portela/RS) e a instalação do Posto da
Missão Indígena, inaugurado em 1965 (na abrangência do município de Redentora/RS).
Conforme o anteriormente exposto, o CTPCC necessitou de alguns anos, após a inauguração
da Missão Indígena, até o início de suas atividades letivas, em 1970.
A proposta e o objetivo do CTPCC não estiveram restritos à formação de monitores
bilíngues da TI Guarita, pois participaram membros de outras comunidades kaingang,
conforme relata Andila Inácio Belforte, nascida na TI Carreteiro (Água Santa/RS), sobre o seu
envio para a TI Guarita:
[…] o servidor da FUNAI responsável pela nossa reserva mandou chamar
meu pai, que, chegando lá, recebeu a “ordem” para que me preparasse que
em poucos dias a FUNAI me levaria para colégio interno, em outra reserva
indígena, chamada Guarita, localizada no município de Tenente Portela-RS.
Lá, a FUNAI, em convênio com a IECLB (Igreja Evangélica de Confissão
Luterana do Brasil),60 tinha criado uma escola para formar monitores
bilíngües, em nível de 1º Grau, chamado CTPCC, (Centro de Treinamento
Profissional Clara Camarão), e era para lá que iriam me levar. […] Fiquei
tentada a não ir, mas certamente meu pai seria penalizado (BELFORTE,
2002, p. 124).
Na época, Andila I. Belforte residia na TI Ligeiro (Charrua/RS) e afirma que mais
“dois rapazes que haviam terminado a 5ª série tinha sido ‘convocados’, então já não iria
sozinha, agora éramos três Kaingáng [sic] daquela aldeia, fiquei mais encorajada” (2002, p.
125). Conforme o relato, não houve uma preparação dos jovens sobre qual o destino e
objetivo da transferência para a TI Guarita, como explicita no relato sobre a aula inaugural:
Assim, no começo de 1970, tivemos a nossa aula inaugural, com muitas
autoridades presentes e mais ou menos 30 jovens Kaingáng [sic], fardados e
perfilados, cantaram o Hino Nacional. Até este momento não sabíamos por
que estávamos ali, ninguém nos dava nenhuma explicação (BELFORTE,
2002, p. 125).
Esse fato não significou que o programa desenvolvido no CTPCC fosse desprovido de
propósito, pois
[…] a missionária Úrsula Wiesemann formulou as bases de um programa
para a utilização do ensino bilíngüe nos postos indígenas do sul do Brasil.
Tal programa tem como característica o aproveitamento de índios jovens
60
A autora equivoca-se aos transcrever por extenso a sigla IECLB, sendo a transcrição extensa correta: Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, página oficial: www.luteranos.com.br.
87
para a atuação como professores bilíngües, depois de um período de
treinamento sistemático, e se baseia fundamentalmente nos estudos
lingüísticos e na literatura criada por antecipação pela Dra. Wiesemann.
Apresentado tal programa à FUNAI, em fevereiro de 1970 foi instalado o
primeiro curso de treinamento para a preparação dos professores no Centro
de Treinamento Profissional Clara Camarão, em Guarita (RS) (SANTOS,
1975, p. 64).
Para o cumprimento desse objetivo geral – a formação de jovens kaingang para
atuarem como monitores bilíngues –, estabeleceu-se convênio entre a Fundação Nacional do
Índio (FUNAI), a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e o Summer
Institute of Linguistics (SIL),61 ao qual estava vinculada a professora Ursula Wiesemann. A
IECLB esteve responsável pela contratação de pessoal e pela infraestrutura. Durante a
realização das atividades letivas, o SIL forneceu o material didático, a orientação pedagógica
e o treinamento dos docentes não indígenas, que ministrariam o curso (SANTOS, 1975, p 67).
O CTPCC caracterizou, provavelmente, o primeiro contrato público da IECLB.
Cabe destacar que, a partir de 1971, o CTPCC teve a direção da professora Bárbara
Newman, também vinculada ao SIL.
Num relatório, datado de 20/10/1971, escrito em papel timbrado da FUNAI e
dirigido ao Conselho Administrativo da Missão Guarita, o que demonstra o
tipo de relação que se estabeleceu entre as instituições envolvidas no projeto,
a Profª Bárbara Newman informa sobre as diversas atividades desenvolvidas
com os alunos bem como o curso de alfabetização de adultos que já
funcionava regularmente, 3 vezes por semana, à noite. No item esporte, ela
anota que as chuteiras novas foram compradas com dinheiro angariado pelos
alunos em campanha de venda da bandeiras nacionais (de papel) fornecidas
pela Rádio Municipal de Tenente Portela, a rádio criada por Norberto
Schwantes (ZWETSCH, 1993, p. 252-3).
Apesar da suposta relação interinstitucional favorável, apontada no relato acima,
verificou-se que esta não era a realidade durante a realização do curso de monitores bilíngues.
Conforme exposto por Zwetsch (1993, p.254), a postura adotada pelos representantes do SIL
foi de estabelecer a autonomia institucional da entidade. Os representantes do SIL
consideravam prejudicial a dependência interinstitucional da FUNAI, pois avaliavam que esta
comprometia o alcance do objetivo do CTPCC. Tampouco os representantes do SIL buscaram
uma relação mais estreita com a equipe da IECLB.
61
SIL – Summer Institute of Linguistics / Associação Internacional de Linguística, entidade de “assessoria e
treinamento para programas de educação bilíngüe e intercultural nas línguas em que há uma equipe
designada”, que iniciou suas atividades no Brasil em 1956, a convite do Serviço de Proteção ao Índio/SPI e da
Universidade
Federal
do
Rio
de
Janeiro/UFRJ
(Disponível
em:
<http://www.sil.org/americas/brasil/index.html> Acesso em: 15 ago. 2011).
88
Torna-se relevante destacar que o SIL não apresentava uma postura contrária aos
propósitos da FUNAI. Num estudo sobre a atuação da igreja evangélica na região amazônica,
faz-se a seguinte observação, apresentando considerações de Ursula Wiesemann e as
atividades desenvolvidas no CTPCC:
Tendo entrado em território dos cintas-larga, o SIL estava inteiramente
afinado com a filosofia da FUNAI – no entanto, colocou o problema para os
índios de maneira mais dura: “Vocês têm uma escolha”, disse a dra. Úrsula
Wiesemann a 35 índios kaingâng [sic] enviados pelo regime militar para seu
centro de treinamento bilíngüe: “Vocês podem escolher entre seu próprio
modo de vida ou a vida do civilizado; cada uma tem um preço e uma
recompensa. Para o modo de vocês, o preço é falta de progresso, fome e
morte.” A recompensa era supostamente ser poupado da dor da mudança. A
alternativa, segundo Wiesemann, estava cheia de promessas. “Para o modo
civilizado, o preço é trabalho e manter o que vocês conquistaram. A
recompensa é que terão mais” (COLBY; DENNETT, 1998, p. 837).
Avalia-se, a partir das afirmações de Ursula Wiesemann, que a postura integracionista
da política governamental orientava o projeto pedagógico nos projetos e programas
implantados pelo SIL, obviamente também no CTPCC (ZWETSCH, 1993, p. 256-7). A
afirmação de Wiesemann aos 35 kaingang evidencia o projeto do SIL, a integração,
imputados como benefício valores como trabalho, conquista e recompensa. De acordo com a
proposição de Wiesemann, manter a cultura e o modo de vida próprio kaingang significaria a
pena física da fome e da morte. Conforme o disposto, só haveria uma direção a ser tomada: a
integração. Pondera-se, ainda, que “a pedagogia que subjaz ao programa do SIL tem uma
forte conotação militar”, enfatizada na repetição do termo “treinamento”, através do qual os
monitores indígenas "deveriam começar a sair da cova da devitalização e levantar o seu povo
consigo" (ZWETSCH, 1993, p. 263). Tais considerações coadunam com o previsto no
Estatuto do Índio (Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973), implantado no período do governo
militar brasileiro, onde o artigo 50 prevê:
A educação do índio será orientada para a integração na comunhão nacional
mediante processo de gradativa compreensão dos problemas gerais e valores
da sociedade nacional, bem como do aproveitamento das suas aptidões
individuais.
Diante de tais questões e pressupostos, questionou-se se o CTPCC carecia de
assessoria pedagógica e antropológica, ao optar, por exemplo, pelo sistema de internato,
sistema criticado e abandonado por algumas missões católicas no norte do Brasil na mesma
época. Contudo, considerou-se que essas questões pudessem decorrer “da inoperância e má
vontade da FUNAI” e que o CTPCC alcançou os seus objetivos devido à “dedicação e
seriedade dos que nele trabalharam” (ZWETSCH, 1993, p. 255).
89
Além das diferenças e das contradições nas relações interinstitucionais apontadas,
ressaltam-se no relato de Andila I. Belforte, abaixo, as normas disciplinares e o sistema de
internato imposto aos jovens kaingang. O relato revela os conflitos oriundos do fato de a
proposta ter sido elaborada desconsiderando os valores e o sistema cultural dos jovens
internados, visando levar a cabo a dinâmica da integração da comunidade indígena à
sociedade não indígena, como exposto anteriormente.
As normas disciplinares do colégio eram muito rígidas, tínhamos horário
marcado para tudo, nos tornamos escravos do relógio. […] Nos proibiram de
falar com os nossos colegas e nos castigavam por qualquer coisa, eu então
vivia de castigo, que era limpar e dormir na casa da diretora. Fazia muitas
gravações da língua com ela. Não sabia por quê (BELFORTE, 2002, p. 125).
O relato evidencia a imposição de um modelo educacional pautado pelas práticas
educacionais da sociedade não indígena, como apontado pela expressão escravos do relógio.
O relato sobre a proibição de falar com colegas e dos castigos impostos corroboram para a
percepção de que os interessados, os jovens kaingang, eram excluídos na definição e
participação nas decisões a respeito das práticas e metodologias adotadas no curso e internato.
Tal fato se evidencia pela constatação de que, no transcorrer de 1972, ocorreram alterações no
currículo da escola, conforme a “reforma educacional que o governo federal imprimiu, na
época, a todo o ensino público” (ZWETSCH, 1993, p. 254).
O grupo de jovens kaingang do CTPCC, mesmo com as práticas anteriormente
expostas, possuía criatividade e disposição para a elaboração de materiais, como a criação de
“jornal de circulação interna”, elaborado a partir das aulas de datilografia e do aprendizado da
escrita kaingang (BELFORTE, 2002, p. 126).
O grupo que iniciou as atividades no CTPCC em 1970 concluiu o curso em 1972,
habilitando 19 jovens, dos 35 que ingressaram, outorgando o diploma de “promotores
bilingues”. A justificativa para a redução do grupo que concluiu o curso e para o fato de que,
posteriormente, tão somente 16 assumiram atividades em unidades escolares administradas
pela FUNAI, foi explicitada da seguinte maneira, quando da avaliação do curso:
A primeira turma de alunos que o Centro habilitou como professor-monitor,
em número de 19, originou-se de um grupo de 35 jovens que foram
indicados pelos chefes de postos para freqüentar o curso. Segundo a atual
direção do Centro, “a falta inicial de critérios para a seleção provocou vários
problemas e a necessidade de eliminar alguns estudantes”. Dos alunos
habilitados, três não quiseram ingressar como professores-monitores.
Restaram assim 16, que ingressaram na FUNAI (SANTOS, 1975, p. 67).
90
Sobre o impacto da conclusão e da formatura dessa primeira turma de promotores
bilíngues, relata-se que houve repercussão nacional e internacional e que o próprio grupo dos
jovens formandos não conseguia definir o significado daquele momento. No entanto, o grupo
pôde identificar o significado do evento para os não índios envolvidos no processo.
Não tínhamos clareza do que isso representava para nós, nem para os
brancos, mas para eles era bem claro o que queriam, nos usar enquanto
alfabetizadores da língua Kaingáng e que fariam o processo de transição da
língua Kaingáng para o Português em pouco tempo e então os professores
brancos fariam o resto, abreviar a integração dos Kaingáng à sociedade
nacional, usando os índios e sua própria língua para nos descaracterizar
enquanto povo, mas não tínhamos clareza disso (BELFORTE, 2002, p. 126).
A transição da língua kaingang para o português, evidenciada no relato acima, fazia
parte do projeto de integração das comunidades indígenas à sociedade nacional. O projeto
para a transição considerava o fato de que a criança não teria familiaridade com o português
ao ingressar na escola.
Assim, em lugar da criançada ser iniciada nas atividades de alfabetização em
língua portuguesa, ela seria colocada sob os cuidados do professor-índio,
durante 4 semestres letivos, seguindo em simultâneo com o aprendizado oral
do português e depois a sua alfabetização nessa língua (SANTOS, 1975, p.
65).
Esse projeto e o programa do CTPCC não se encerraram com a formatura e o envio
desse grupo de promotores ou monitores bilíngues. Ainda em 1972, o responsável da IECLB
considera a renovação do convênio, inclusive com ampliação de cursos, contudo “sem uma
avaliação do curso em andamento nem uma maior discussão da difícil relação institucional
com a FUNAI” (ZWETSCH, 1993, p. 255). As definições e o início de um novo curso não
foram imediatos. Apesar de considerar a dificuldade da relação institucional com a FUNAI,
adota-se uma postura simpática em relação à política indigenista oficial. Através da leitura de
relatórios internos da Missão Indígena por parte dos responsáveis pela IECLB, Zwetsch
evidencia que os mesmos consideravam que
o governo levava a sério todos os assuntos relacionados com o índio.
Aproveita para criticar a posição católica (em torno do veto de Médici ao
trabalho das Missões) e reafirma a posição da FUNAI, que admitia a
assistência, mas vedava terminantemente a catequese e o proselitismo
religioso. Sobre o Seminário FUNAI-Missões, realizado em novembro de
1973, Güttinger registra a utilidade do evento para manter "úteis contatos
pessoais" e conhecer a estrutura do órgão. Mas revela sua discordância com
a ousadia (sic) do Padre Iasi (na época, secretário executivo do CIMI)
criticando a FUNAI e sua política indigenista. O campo de alianças
preferenciais estava voltado para as missões evangélicas, justamente estas
que tinham entre seus pontos prioritários a conversão proselitista das tribos
(1993, p. 259).
91
As negociações e trocas de correspondências, visando um novo convênio entre IECLB
e FUNAI para a continuidade do curso de monitores bilíngues e a possibilidade de outros,
como o de monitor agrícola, ocorreram ainda em 1974, inclusive entre o pastor-presidente da
IECLB e o presidente da FUNAI. Nas correspondências, definiram “os termos através dos
quais a Igreja [IECLB] concorda com o plano esboçado pelo órgão oficial” (ZWETSCH,
1993, p. 260).
Nesse período, o SIL também realizou atividades de treinamento aos docentes dos
cursos de ensino bilíngue de todo o país. O objetivo era “melhorar o potencial dos professores
civilizados [não índios] responsáveis pela formação dos monitores”. No intuito de estreitar
relações e a superação de questões burocráticas, foram convidados técnicos em educação da
FUNAI, entre outros. Referente à participação do CTPCC, considerava-se uma oportunidade
para solucionar problemas na execução e no cumprimento das partes no convênio e na
realização do curso (SANTOS, 1975, p. 70).
Paralelo a essas tratativas burocráticas e atividades, o CTPCC manteve um programa
de acompanhamento aos professores-monitores, com a participação de avaliadores externos,
como exposto pelo antropólogo Silvio Coelho dos Santos, que relata o início de sua
participação nesse programa:
O Centro mantém contato permanente com os professores-monitores,
orientando-os sobre as etapas de conteúdo programático que devem ser
cumpridas a cada mês. Em agosto de 1973, tivemos oportunidade de
participar do encerramento do primeiro encontro de monitores Kaingang,
realizado em Curitiba, com o objetivo de reestimular o trabalho desses
docentes e, em paralelo, contribuir para sua permanente atualização
(SANTOS, 1975, p. 68).
O trabalho desenvolvido por Silvio Coelho dos Santos incluía entrevista às
comunidades kaingang para onde foram enviados os monitores formados para realizarem sua
nova função. Nessas entrevistas e deslocamentos, em diferentes comunidades se constatou as
dificuldades e os percalços enfrentados pelos monitores bilíngues, tanto junto aos postos
locais da FUNAI como à própria comunidade kaingang, que por vezes não compreendia os
propósitos da educação escolar bilíngue, conforme o relato:
Na maioria dos postos visitados, tivemos oportunidade de verificar que o
projeto de educação bilíngüe não estava suficientemente compreendido pelos
chefes de postos, demais servidores e particularmente os professores
civilizados. O entendimento mais comum era o de que o monitor é mais um
burocrata no posto, às ordens dos desígnios do seu chefe. […] As populações
aldeadas, em muitos casos, também revelaram não concordar com a
atividade do monitor bilíngüe, alegando que “nossas crianças precisam
aprender português, Kaingang elas já sabem...” (SANTOS, 1975, p. 68-9).
92
As considerações evidenciam a desconexão entre os propósitos constituídos e
implantados através do curso de monitores bilíngues e o entendimento e a necessidade da
comunidade local. Interpreta-se o desejo expresso em aprender português como o desejo de
dominar uma ferramenta para a inter-relação social, da comunidade indígena para com a
sociedade não indígena. Compreende-se, ainda, a percepção de que o ensino do kaingang seja
algo próprio da comunidade, e à instituição escolar cabe o que ela representa, ou seja, os
elementos que não são próprios da comunidade kaingang, mas da sociedade e das instituições
não indígenas. Nesta questão também há que se considerar que a proposta da educação
bilíngue é uma proposta elaborada e implantada pela sociedade não indígena à comunidade
kaingang. As percepções sobre o bilinguismo, no entendimento de que se trata do domínio de
duas línguas, não de um processo de transição, serão abordadas posteriormente, no item
questões a refletir.
Em 1975, firmou-se novo convênio, entre o presidente da FUNAI e o presidente da
IECLB, que propiciou a instalação de novo curso junto ao CTPCC para a formação de
monitoria agrícola indígena. Para tanto, ressaltou-se que o CTPCC era o primeiro instituto a
formar monitores indígenas em educação bilíngue no país, o que respaldou a nova oferta
(ZWETSCH, 1993, p. 261).
Talvez em consideração às novas atribuições e ao convênio do CTPCC, em 1976 suas
instalações foram transferidas para o Setor Gamelinhas, ainda na TI Guarita, porém na área de
abrangência do município de Tenente Portela/RS. A transferência não interferiu no propósito
do CTPCC de formação de monitores indígenas (ROSA, 2002, p. 55).
A divulgação da realização do curso de monitoria agrícola ocorreu em 19 de abril de
1977, porém sua efetivação ocorreu somente em 1979. Ainda em 1977, outro feito, não
diretamente ligado ao CTPCC, mas que envolvia o projeto da Missão Indígena na TI Guarita,
foi a autorização da Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul, em 13 de maio, para o
funcionamento da Escola de 1º Grau Incompleto Marechal Rondon, sendo considerada a
primeira escola indígena reconhecida no país (ZWETSCH, 1993, p. 266).
Referente às atividades de formação de monitores bilíngues, após a formatura da
segunda turma de monitores bilíngues em 1975, persistem, em 1977, as dificuldades no
exercício e funções propostas aos monitores bilíngues. Conforme avaliação de Dulci Matte
(ZWETSCH, 1993, p. 264), que fora integrante do corpo docente do CTPCC, são apontadas
as seguintes questões como causadoras das dificuldades enfrentas pelos monitores bilíngues:
93
- o ensino ministrado foi sempre distante da realidade objetiva das
comunidades aonde os alunos e alunas iriam depois trabalhar;
- o ensino se deu num ambiente estranho com hábitos diferentes dos hábitos
indígenas (internato, RZ);
- ou seja, a escola não respeitou a diferença cultural.
As questões apresentadas por Matte evidenciam questões semelhantes às
considerações avaliadas na primeira turma para a atuação nas diferentes comunidades
kaingang, conforme relatado por Santos (1975). Ao considerar as questões apontadas por
Matte, Zwetsch (1993, p. 264) afirma que os monitores bilíngues estavam “desajustados no
seu meio”, que a proposta desenvolvida no CTPCC “deculturou os alunos e alunas, quando
‘era necessário fortalecer a sua cultura, a sua identidade índia’. Por outras palavras, a escola
foi ‘ocidentalizante’”.
Figura 4: Prédio do CTPCC, no Setor Km 10 / Guarita
Fonte: ROSA, 2002, p. 93
.
Conforme estudo sobre a instalação da Missão Indígena realizado por Carlos da Rosa
(2002), a própria estrutura da missão, estendendo a mesma avaliação ao CTPCC, era
considerada como invasora e, ao mesmo tempo, atendia parcialmente aos interesses da
comunidade kaingang. Conforme essa interpretação, parte da comunidade kaingang não se
envolvia com as atividades e outros acontecimentos decorrentes, optando por uma postura de
observação e desconfiança (ROSA, 2002, p. 59-60).
O CTPCC, como ficou demonstrado até o momento, se constituiu e realizou diferentes
propósitos num misto de euforia e contradições. Euforia pelo inusitado, pelo pioneirismo na
formação em educação bilíngue; contradições nos diferentes interesses das partes envolvidas.
Assim, no decurso de suas atividades, o CTPCC estabeleceu um marco na história dos povos
indígenas, do indigenismo e no âmbito das missões religiosas.
94
No início da década de 1980, o CTPCC encerra suas atividades. Entre as diferentes
razões, além das diferenças de interesses e propósitos das instituições envolvidas, evidenciouse uma questão de ordem burocrática e econômica.
Em junho de 1981, o CTPCC teve suas atividades encerradas com o
afastamento expontâneo [sic] da Missão. […] Na verdade, além de
discordâncias filosóficas, havia problemas bem concretos. Por exemplo, os
do orçamento. Como de praxe, a FUNAI não cumpriu com sua obrigação,
deixando a descoberto a maior parte dos Cr$ 15 milhões previstos para 1981
(ZWETSCH, 1993, p. 273-4).
Encerrou-se, também, uma fase da ação da IECLB junto às comunidades indígenas. A
atuação missionária da IECLB persiste junto às comunidades kaingang, sobretudo na TI
Guarita até o presente momento. O encerramento das atividades do CTPCC e as experiências
na Missão Indígena estimularam uma nova abordagem e maneira de atuação, pautadas pelo
respeito à cultura e ao protagonismo indígena, críticas às propostas de aniquilamento, tutela
ou catequização das comunidades indígenas, e pela parceria e diálogo com outras entidades
indígenas e indigenistas.
O CTPCC foi repassado à administração da FUNAI, sendo mais tarde denominado
Escola Indígena de 1º Grau Incompleto Clara Camarão.62 A escola passou a atender “as
crianças que moravam na reserva em nível de pré-escola até a 4ª série” (PROFESSORES,
2006, p. 282).
2.3.3 Escola Marechal Rondon e a transição
O encerramento das atividades de formação de monitores bilíngues no CTPCC, para
além das discordâncias apontadas, também pode ser interpretado como consequência de uma
nova postura que visava “proporcionar condições para que o próprio índio promova o seu
desenvolvimento dirigindo a sua história”, como definido no Encontro sobre o Índio e a
Missão, realizado na Missão Guarita em 1975 (COMIN, 1992, p. 5). A mesma disposição foi
reafirmada no segundo encontro, realizado em 1976, enfatizando que era necessário elaborar
uma versão da história a partir e pelo prisma das comunidades indígenas para, então, elaborar
alternativas à realidade de alienação e marginalização imposta às comunidades indígenas pela
sociedade capitalista (COMIN, 1992, p. 8).
O período que antecedeu o encerramento do convênio e atividades do CTPCC por
vezes apresentava posicionamentos contraditórios, pois, ao mesmo tempo em que os
62
Atualmente a escola é denominada E.E.I.E.F. Gomercindo Jete Tenh Ribeiro.
95
encontros sobre o Índio e a Missão indicavam para uma postura de promoção da
autodeterminação e autonomia dos povos indígenas, ainda é perceptível uma postura
tradicional e colonialista, como a manifestação do P. Güttinger de que a exploração agrícola
constituía a melhor forma de defesa da terra demarcada à comunidade da TI Guarita
(DECKMANN, 1985, p. 262). Conforme Zwestch (1993, p. 275-6), o período posterior aos
encontros seguiu com reuniões e reflexões na Missão Guarita, que debatia sobre a modalidade
da ação missionária indigenista: “assistência ou acompanhamento, integração ou
autodeterminação, evangelização ou libertação. Assim, um tanto complexos, procurava-se
definir melhor a contribuição que a Missão tinha a oferecer aos Kaingáng”. Tratou-se de um
período de indefinições e dúvidas, mas que possibilitou o encaminhamento para “acertar o
passo junto à comunidade indígena no sentido de uma ação mais direta e participativa”
(GAELZER, 1998, p. 37).
Em novembro de 1981, é elaborado um documento em que se apresentaram as “linhas
de trabalho”, a saber, que se persistiria na ação missionária indigenista junto à comunidade
kaingang da TI Guarita. Para Zwetsch (1993, p. 275), trata-se de um documento importante,
pois apresenta a “mudança de orientação da Missão Guarita”; contudo, pondera: “Creio que
esta mudança não ocorreu abruptamente nem por acaso. Houve toda uma discussão crítica na
IECLB sobre a Missão entre índios que talvez remonte aos dois Encontros de Guarita”. O
referido documento é transcrito e analisado por Deckmann (1990, p. 131-6), que conclui:
Este Documento registra a intenção teórica e ideológica de missão entre
índios e a sua manifestação prática por um setor específico da IECLB, o
CEAI63 que consciente de suas limitações tencionava, já em novembro de
1981, ampliar a idéia de missão através de um posicionamento mais claro e
ativo do trabalho da IECLB entre os índios (DECKMANN, 1990, p. 136).
Pode-se afirmar que o documento contribuiu para a criação do Conselho de Missão
entre Índios (COMIN), em 1982, pelo Conselho Diretor da IECLB. 64 Mas, sobretudo,
63
CEAI – Centro Educacional e Assistência Educacional. O CEAI foi criado em 1977 como departamento da
Instituição Sinodal de Assistência, Educação e Cultura (ISAEC), sediado em São Leopoldo/RS, e órgão
jurídico vinculado à IECLB. Através do CEAI/ISAEC, a “Missão [Guarita poderia] contratar funcionários,
fazer empréstimos, receber doações, elaborar projetos e apresentá-los a órgãos públicos ou privados, além de
reduzir custos, pois a ISAEC era uma entidade religiosa sem fins lucrativos, estando isenta de uma série de
impostos” (ZWESTCH, 1993, p. 268). Na atualidade, o COMIN também segue vinculado à ISAEC como
Departamento de Assuntos Indígenas e estabeleceu um convênio de cooperação com a IECLB em virtude da
desvinculação jurídico-administrativa da ISAEC junto à IECLB.
64
O Conselho Diretor da IECLB era a instância superior, inferior somente ao Concílio Geral da IECLB, que
determinava as orientações administrativas e confessionais da IECLB. Atualmente é denominado como
Conselho da Igreja, devido à reorganização administrativa eclesiástica implantada a partir de 1997, mas
mantém as mesmas atribuições. Segundo Souza, (2001, p. 10) “a criação do COMIN é o resultado de um largo
processo de maturação intelectual dentro da IECLB”, sendo que “permitiu dar uma unidade administrativa,
96
estabeleceu orientações e percepções que interferiram na ação missionária indigenista na TI
Guarita, que se reestruturava na época (GAELZER, 1998, p. 110), e continuava sua ação
missionária, entre outras atividades, através da educação escolar. Destacam-se, a seguir, as
definições correspondentes à educação escolar que se desenvolveu na Escola Marechal
Rondon, que seguiu sob a orientação e administração da Missão Guarita.
1. Procuramos adotar uma pedagogia, didática e planos de curso voltados à
realidade indígena;
2. Através do ensino as crianças tomam (entre outros) conhecimento das
técnicas aproveitadas pela sociedade envolvente, assim dando força ao
índio para a convivência com os não índios;
3. Embora às vezes seja necessário corrigir costumes e tradições que
diretamente contradizem a vontade de Deus, o ensino procura estar
voltado à educação indígena como acontece nas suas casas para não
causar conflitos;
4. O ensino não serve para ajudar na integração do índio, mas educa para a
vida dentro duma área indígena, e ao mesmo tempo para a convivência
com o resto da sociedade brasileira.
5. Por isso procuramos dentro do possível (a escola é reconhecida pelo
Estado e conseqüentemente tem que cumprir exigências quanto ao
currículo, etc) tornar a escola mais profissionalizante na forma de cursos
agrícolas e cursos de artes domésticas integrados nos dois últimos anos;
6. A alfabetização em língua Kaingang é imprescindível.
As orientações apresentam uma postura de rompimento com a proposta de integração
da comunidade indígena à sociedade brasileira. Ressalta-se, porém, que a disposição não
propõe o isolamento e o afastamento da sociedade indígena. Pelo contrário, enfatiza a
proposição da “convivência” com a sociedade não indígena. As proposições também esboçam
a preocupação com a valorização da realidade e cultura kaingang ao estabelecer que “o ensino
procura estar voltado à educação indígena”, o que demonstra a percepção e a conceituação
distinta entre a educação escolar indígena e a educação indígena, esta que ocorre junto às
famílias kaingang, e aquela, no âmbito da escola. Agrega-se a essa disposição a afirmação
contundente de que “a alfabetização em língua kaingang é imprescindível”. Avalia-se que
essa postura demonstre o rompimento com a proposta de eliminar o uso da língua kaingang
durante o processo da escolarização.
De forma análoga ao processo de transição que ocorria na Missão Guarita, a
comunidade kaingang também enfrentava mudanças e conflitos internos, decorrentes dos
arrendamentos e exploração madeireira na TI Guarita. Em 1982, ocorreu a divisão
administrativa da TI Guarita, com dois postos administrativos e independentes. A divisão
política e teológica para as diferentes frentes de atuação indigenista da IECLB, seguindo os princípios da
solidariedade, da promessa de vida abundante e de busca da libertação por meio da verdade, que só possuem
sentido para os índios com o maior apoio possível da sociedade envolvente”.
97
provocou um primeiro conflito entre dois grupos kaingang em janeiro de 1983. A FUNAI
considerou os conflitos como disputa pelo cacicado entre dois grupos, o que justificou a
divisão da TI Guarita (DECKMANN, 1990, p. 141), porém a divisão acirrou os ânimos entre
os grupos e ocorreu um confronto, que o professor Guilherme Cristão (2001, p. 43) assim
relata:
Depois que o cacique Domingos Ribeiro fez a divisa da sua própria reserva
com a comunidade, o povo do cacique Ivo Ribeiro se rebelou contra o povo
do Domingos. E pegaram suas armas e se foram em direção ao povo de
Domingos.
Chegando na aldeia, disseram:
- Faz muito tempo que vocês estão nos provocando, e começaram a se atirar!
bam! bam!
O povo do cacique Ivo correu de volta, mas o povo do cacique Domingos
começo a acertar seus inimigos. O primeiro que foi morto foi Sérgio Bento,
o segundo, José Leopoldino (Zezinho), o terceiro, Ramon Bento, o quarto,
Sebastião Carvalho e o quinto, Vicente Fongue (Péni). Esses são os cinco
índios que morreram defendendo seu cacique e a sua terra. Mesmo com as
mortes, ainda continuou tendo dois caciques na reserva do Guarita.
Neste conflito, quem perdeu foi o povo de São João do Irapuá, e quem
ganhou foi o povo que tinha saído para o CTPCC e botaram o nome daquela
aldeia de “Guarita”.65
Esse fato aconteceu no dia 03 de junho de 1982.
O ocorrido teve repercussão na imprensa e provocou manifestações de diferentes
setores da sociedade, inclusive religiosos, como atestam Deckmann (1990, p. 142-3) e
Simonian (1993, p. 35-53). Conforme Zwetsch (1993, p. 284), a equipe da Missão Guarita
“já alertara que a raiz do conflito eram os arrendamentos e a extração ilegal da madeira da
área, isto é, interesses econômicos muito concretos”. Após os conflitos entre os dois grupos, a
própria Missão Guarita também foi pressionada pelo cacique Ivo Ribeiro, do Posto de São
João do Irapuá, onde a Missão Guarita estava vinculada a partir da divisão da área. Conforme
Deckmann (1990, p. 143), o cacique Ivo Ribeiro ameaçou extinguir a minicooperativa
administrada pela Missão da IECLB; contudo, as ameaças não se concretizaram
imediatamente.
Enquanto isso, os responsáveis pela escola estavam preocupados em “tornar a escola
realmente útil e adaptada à realidade indígena”, bem como estavam preocupados com o
“aproveitamento escolar dos alunos índios da Escola Marechal Rondon” (DECKMANN,
1990, p. 144-5). No período letivo de 1983, ocorreu um alto índice de reprovação e
65
Atualmente a localidade é denominada como “Sede” ou “Km 10” [por se encontrar à distância de 10 km de
Tenente Portela]. É nessa localidade que reside o atual cacique kaingang, Valdonês Joaquim, por isso a
localidade também é conhecida como Sede do Cacicado. Guilherme Cristão é professor kaingang, na época em
que elaborou o texto era docente na E.E.I.E.F. Rosalino Claudino, Setor Bananeira (Redentora/RS).
98
desistências, que foram justificados como consequência da alteração do plano curricular em
1982 e do longo período de chuva durante o inverno de 1983.
Para além das preocupações no âmbito da escola em 1983, a Missão Guarita também
teve, nesse ano, alterações significativas no quadro de pessoal, sobretudo pela “carência de
recursos humanos preparados” (GAELZER, 1998, p. 39). A saída do P. Ornull Steen, que
retornou com a família para a Noruega, simbolizou a “nacionalização” da coordenação do
CEAI e da Missão Guarita, que fora conduzida até aquele momento prioritariamente por
pastores advindos da Europa. De forma provisória, o engenheiro agrônomo Sighard Hermany
assume a direção do CEAI (GAELZER, 1998, p. 40-1). Também na Escola Marechal Rondon
há mudança na direção. Na escola estavam matriculadas 108 crianças indígenas, e a
professora Dulce L. Grade assume a direção (ZWESTCH, 1993, p. 286).
No ano seguinte, a Missão Guarita recebe novos integrantes:
1984 traz muitas novidades para a Missão. O Conselho Diretor da IECLB
indicara, em dezembro de 1983, o Pastor colaborador Lúcio Schwingel para
assumir a vaga deixada por Steen. Recém formado, Schwingel e a esposa
Ingret Kaminski chegam à Missão Guarita em março. Pouco antes, chegara à
Guarita a profª catequista Dóris Kieslich, enquanto a enfermaria passou a ser
administrada por Luiza Cordelia Soalheiro. A renovação vai ganhando um
contorno mais nacional, uma vez que todos os novos contratados são
brasileiros. É como se a Igreja estivesse sinalizando que a tão decantada
prioridade dada à questão indígena, que vinha desde 1979, ia ser mesmo
assumida. (ZWETSCH, 1993, p. 288)
A ação missionária indigenista na TI Guarita sofreu, num espaço temporal reduzido,
cerca de uma década, alterações substanciais, como evidenciados acima. A ação missionária
indigenista, contudo, não se desvinculou da educação escolar e elegeu, em 1984, o trabalho
com a Escola Marechal Rondon como prioridade, “pois nela se poderia integrar todas as
demais atividades da missão (saúde, agricultura, comunidade eclesiástica)” (ZWETSCH,
1993, p. 291). A eleição dessa prioridade implicava aumentar o número de professores na
escola. Concomitantemente, propôs-se aumentar o apoio à comunidade indígena através de
ações e atividades junto às paróquias próximas à TI Guarita, bem como possibilitar o estágio
de um estudante da Faculdade de Teologia da EST (Idem). As propostas elaboradas
demonstraram a importância e a convicção que o processo educativo teve para a ação
missionária indigenista, bem como a “preocupação em ampliar a preocupação no que se refere
ao índio e sua situação” (GAELZER, 1998, p. 42).
Cabe salientar que, apesar das expectativas e renovações que envolveram a Missão
Guarita, a equipe era envolta pelo clima de tensão que acometia toda a comunidade kaingang,
99
devido à proposição do término dos arrendamentos das terras indígenas, previsto para 31 de
maio de 1984. Associado a essa situação, ainda persistia a intenção de se desestabilizar os
trabalhos e trâmites organizados pela cooperativa da Missão Guarita. As ameaças de retirada
da equipe da Missão Guarita, deferidas por lideranças kaingang do Posto Indígena São João
do Irapuá, ocorreram em duas oportunidades (DECKMANN, 1990, p. 146). E, em
decorrência das contestações e posicionamentos contrários às determinações e atos do cacique
Ivo Ribeiro, que, auxiliado por funcionários da FUNAI, identificou que os mesmos
provinham dos kaingang vinculados à Missão Guarita, ocorreu o rompimento das relações
entre a liderança kaingang e a equipe da Missão (DECKMANN, 1990, p. 147).
A situação se agravou no final de 1984, quando o cacique Ivo Ribeiro assinou um
documento para a construção da rodovia estadual RS 330, cujo traçado impactava a
comunidade kaingang, devido à previsão de trechos construídos no interior da TI Guarita. A
equipe da Missão Guarita se manifestou contrária à proposta, alegando que o impacto da obra
representava prejuízos culturais e econômicos para a comunidade kaingang. Na oportunidade,
a equipe da Missão Guarita também denunciou os arrendamentos clandestinos que ocorriam
na área. As manifestações desagradaram as lideranças kaingang e, também, políticos,
comerciantes e granjeiros da região, que se aliaram ao cacique, “interessados em livrar-se dos
missionários e obreiros” (DECKMANN, 1990, p. 147). A retirada da equipe da Missão
Guarita, para ‘livra-se dos missionários e obreiros’, ocorreu em 1985, fato que determinou
uma transição mais profunda na ação missionária indigenista da IECLB, agora constituída
como COMIN.
2.3.4 A retirada da Missão Guarita: 1985
As desavenças entre a equipe da Missão Guarita e a liderança do cacique Ivo Ribeiro
culminaram na retenção de toda a equipe em 19 de março de 1985, sendo impedida a
comunicação da equipe com outras pessoas. A alegação inicial para a retenção foi de roubo na
troca de artesanato indígena por roupas e gêneros alimentícios, conhecido como “brique da
Missão”. As lideranças declararam à equipe da Missão Guarita: “Vocês estão presos e os bens
embargados”. A situação era tensa, uma vez que os membros da equipe residiam na Missão
com seus familiares (ZWETSCH, 1993, p. 292). Numa tentativa de diálogo, o P. Schwingel
dirigiu-se ao capitão Raul da Rosa, que afirmou: “A Missão já me deu o que tinha para dar”,
100
propondo que era momento da Missão se retirar dali.66 A detenção persiste até o dia 21 de
março, quando ocorre uma reunião entre lideranças kaingang, representantes da FUNAI,
equipe da Missão Guarita e representante da IECLB. Cabe salientar que, na madrugada de 19
de março, o P. Schwingel consegue sair do local da retenção e se dirige a Miraguaí e Tenente
Portela para estabelecer contatos e solicitar apoio na resolução da situação.67 Na reunião de 21
de março, apresentou-se um documento da liderança kaingang que exigia a retirada imediata
da Missão Guarita, sendo informado que a FUNAI assumiria a responsabilidade das
atividades e administração das instalações e equipamentos da Missão Guarita. A retirada da
equipe da Missão Guarita ocorre no dia seguinte à reunião, 22 de março.68
Sobre a participação da FUNAI no evento, Zwestch (1993, p. 295) afirma que “uma
análise isenta do texto não pode deixar de perceber nele a mão de funcionários da FUNAI,
haja visto o cuidado com que se preserva a FUNAI de qualquer tipo de ônus por causa da
expulsão”. A IECLB também manifestou desconformidade com a atitude da FUNAI no
episódio da retirada, quando, em 1986, afirma:
A FUNAI (órgão do Ministério do Interior que tem a incumbência de
“defender e proteger o silvícola”) lamentavelmente assume atitudes
prejudiciais à causa indígena. Um exemplo disso se revelou no contexto da
expulsão da missão da IECLB do Toldo Guarita/RS por uma liderança
indígena corrupta e aliada aos interesses de produtores agrícolas brancos. A
FUNAI, com a qual a IECLB tinha um convênio, se omitiu de assumir a
função que lhe competia na defesa do povo indígena prejudicado com a
expulsão (COMIN, 1992, p. 37-8).
A repercussão da retirada da Missão Guarita foi interpretada por professores kaingang
como encerramento do período de atuação missionária indigenista, entendida como ato de
expulsão e confisco de bens.
O Projeto Missionário na aldeia Missão foi desativado em 1985, com a
interferência do cacique Ivo Ribeiro que resolveu expulsar os pastores,
funcionários e demais trabalhadores do local e acabar com o trabalho de
mais de vinte anos, confiscando as estruturas e bens para si
(PROFESSORES, 2006, p. 280).
66
Conforme descrição do relatório sobre a expulsão do Centro Educacional e Assistencial Indígena – CEAI da
Área Indígena Guarita – P. I. São João do Irapuá, out. 1985. (Arquivo CPPQI/COMIN: Caixa Aa1/4.2 – Pasta
Documentos referentes à expulsão do CEAI).
67
No presente momento, apresentar-se-á de forma reduzida os acontecimentos ocorridos durante a retenção e
retirada da Missão Guarita. Para aprofundamento indica-se a leitura do referido “Relatório sobre a expulsão...”
e também a coletânea de documentos que consta na publicação “A máscara índia de Deus” (COMIN, 1992),
bem como as análises de Zwestch (1993, p. 292-303) e Deckmann (1990, p. 145-164). Destaque para o texto
de Deckmann, que transcreve na íntegra ou parcialmente documentos, cartas ou artigos jornalísticos.
68
A retirada da equipe da Missão Guarita repercutiu no meio jornalístico. Inclusive uma equipe de televisão e
jornal da RBS Comunicações também foi detida por cinco horas na sede administrativa da FUNAI, tendo
“sofrido intimidações e agressões dos indígenas liderados por Ivo Sales” (ZWESTCH, 1993, p. 294).
101
O fato evidenciado posteriormente pelos professores kaingang, demonstra a
desaprovação ou a desconformidade da comunidade kaingang para com a atitude de suas
lideranças. Segundo Deckmann (1990, p. 163), na época da retirada de equipe da Missão, foi
explicitada a desconformidade com a atitude da liderança kaingang, em virtude da
impossibilidade de acessar a “assistência médica, educacional e agrícola da Missão”, como
publicado em reportagem.69
Decorrente à retirada da equipe da IECLB, a Escola de 1º Grau Incompleto Marechal
Rondon, na qual, em março de 1985, estavam matriculadas 108 crianças, sendo atendida por
três professoras não índias e dois monitores bilíngues kaingang, foi transferida
provisoriamente à gestão da FUNAI. Em 1986, iniciaram-se os trâmites na 21ª Delegacia de
Ensino (Três Passos/RS) “para a transição de escola particular para escola pública estadual,
sendo que o processo de transição perdurou cerca de três anos; enquanto isso, a escola Mal
Rondon era atendida por professor da FUNAI, por professores contratados pelo município de
Redentora e uma professora cedida pelo estado do RS” (SCHWINGEL, 2011).
A retirada da Missão Guarita foi seguida de diversas reuniões, seminários,
planejamentos e debates sobre a continuidade e viabilidade da ação missionária indigenista na
TI Guarita.70 Cabe destacar o documento resultante do II Seminário do Conselho de Missão
entre Índios (COMIN), realizado na data de 22-25 de junho de 1985, em Panambi/RS. O
documento expressa que a retirada não representou a decisão geral da comunidade kaingang,
afirmando que “a Missão entre os Kaingang vai continuar, acompanhando os acontecimentos
na área, buscando o convívio com famílias indígenas, apoiando-as nos seus problemas”
(COMIN, 1992, p. 20). O documento também expressa a disposição em estender a ação
missionária indigenista para outras comunidades indígenas da região sul.
Avaliações posteriores por agentes externos à ação missionária indigenista indicam a
importância do evento da retirada da Missão Guarita no estabelecimento e consolidação de
modalidade distante da ação missionária indigenista em diferentes perspectivas. Para
Deckmann (1985, p. 250-1), o episódio possibilitou o debate da reestruturação interna da
missão entre índios, como organismo próprio, porém ainda vinculado à IECLB.
Relacionada com o episódio da expulsão dos obreiros da Missão da reserva
em Guarita, está também uma crise estrutural e interna do COMIN. A
consciência desse momento de redescoberta, de redefinição de objetivos e de
procura por forma de agilização e mobilização dos membros das
69
70
Deckmann cita entrevista do Pe. Guido Taffarel, publicada no jornal Zero Hora em 01 jun. 1985, p. 32.
Alguns documentos e registros desses eventos estão reunidos na publicação “A máscara índia de Deus”
(COMIN, 1992, p. 17-26).
102
comunidades em torno da causa indígena tem causado confrontos com a
Direção da IECLB e com a própria Secretaria Geral, no tocante a propostas
de independentização e montagem de estrutura própria, que possibilitariam
autonomia de ação sem rompimento com as orientações gerais emanadas da
Direção da IECLB.
O evento ocorrido em 1985, além da reorganização institucional, também possibilitou
a alteração na abrangência geográfica da ação missionária indigenista, como explicita Armani
(2001, p. 49): “A expulsão da IECLB da TI Guarita em 1985, foi um dos fatores que levaram
‘a transformação da antiga noção de missão geograficamente localizada, numa diretriz mais
itinerante de ação missionária’”. A diretriz itinerante se evidenciou pela promoção de
atividades em educação e saúde noutras comunidades indígenas, possibilitando “novos
contatos e agregando novos parceiros ao processo” (SOUZA, 2001, p. 19). Ou seja, a ação
missionária não se restringiu à ação em uma localidade, sendo que a participação de pessoas
de outras comunidades kaingang assistidas ocorria tão somente se essas se deslocassem até o
local da prestação de serviço, como ocorrido no CTPCC, onde houve a participação de
kaingang e guarani de diversas comunidades da região sul que se reuniram na TI Guarita. A
disposição a partir de então é o deslocamento dos obreiros do COMIN às comunidades
indígenas.
Entende-se que concomitantemente à diretriz itinerante outra se consolidou, a
promoção e o acompanhamento à autonomia e autodeterminação das comunidades indígenas
na região sul. Para Gaelzer (1998, p. 110), o assumir e promover a autonomia das
comunidades indígenas se consolidou a partir da saída dos obreiros da Missão Guarita e das
reflexões e reestruturação do COMIN, que se seguiram.
2.4 A AMPLIAÇÃO DAS AÇÕES DA MISSÃO GUARITA/COMIN
A partir da saída da equipe da Missão da TI Guarita se estabeleceu um divisor
temporal na ação missionária indigenista da IECLB e COMIN junto ao povo kaingang. O
primeiro período ocorreu pela ação missionária indigenista concentrada em dois setores da TI
Guarita. Com a retirada da equipe da Missão Guarita pelas lideranças kaingang, foram
ampliadas as ações, tanto na perspectiva geográfica como na perspectiva institucional. No
período anterior, debatia-se sobre a integração das comunidades indígenas à sociedade
brasileira; após o evento, o tema foi pautado a partir da autonomia indígena. Assim, quer se
tratar a seguir dos diferentes períodos que constituíram a época posterior à retirada da Missão
Guarita, então identificada como COMIN, e a ampliação de suas ações a partir da TI Guarita.
103
Concentrar-se-á nas informações relevantes ao foco da dissertação, as questões pertinentes à
atuação do COMIN em prol da educação escolar indígena.
2.4.1 Consolidação na ampliação das ações missionárias indigenistas
Institucionalmente, a continuidade da ação missionária indigenista na TI Guarita,
estendendo-se às outras comunidades kaingang, foi garantida a partir de proposta aprovada no
Distrito Eclesiástico Yucumã,71 na modalidade de um pastorado em tempo integral, o qual o
P. Lúcio Schwingel assumiria. A proposta também foi encaminhada pelo II Seminário do
COMIN (COMIN, 1992, p. 20; ZWETSCH, 1993, p. 298-300). A continuidade da ação
missionária indigenista ainda estaria identificada com o antigo modelo de missão, sobretudo
junto à comunidade kaingang da TI Guarita. A situação foi contornada com a disposição em
estabelecer uma relação de aproximação, diálogo e apoio à unidade da comunidade indígena
(ZWETSCH, 1993, p. 301, 303).
De forma análoga, a mobilização indígena também se apercebia dos interesses e
propósitos que lhes eram incutidos. Neste sentido, é importante constatar a avaliação que a
professora Andila Belfort faz sobre a educação escolar destinada às comunidades indígenas
para o mesmo período dos acontecimentos na Missão Guarita.
Em 1985, a educação escolar ofertada para as nossas crianças, sem dúvida
nenhuma, não era a melhor para as nossas crianças, estava incutindo neles
valores que desmereciam a nossa cultura, e estava sendo danosa para as
nossas comunidades. O nosso trabalho de alfabetizar as crianças e introduzir
o português oral estaria facilitando o trabalho de aculturação das nossas
crianças pelos professores “fóg”. Foi preciso trabalharmos mais de dez anos
para que percebêssemos que estávamos a serviço da desintegração cultural
do nosso povo. (BELFORT, 2005, p. 15)
O destaque da avaliação sobre a educação escolar pode ser corroborado pela
informação de que a realidade enfrentada pela comunidade kaingang da TI Guarita não teve a
sua situação alterada com a retirada da Missão Guarita. Deckmann (1985, p. 76) relata que a
FUNAI dirige a TI Guarita e “explora a agricultura orientada e mecanizada do trigo e da soja,
tendo como agricultores assalariados os índios do Posto. Explora também a madeira da área,
através da serraria para beneficiamento das madeiras de lei”. Também, persistia entre as
famílias indígenas a prática da confecção de artesanato com cipó-imbé ou outros matérias
como alternativa pontual de obtenção de renda.
71
O Distrito Eclesiástico era parte das instâncias organizacionais da IECLB, que foi instituído em 1968 e
perdurou até o ano de 1997. O Distrito Eclesiástico Yucumã reunia as paróquias afiliadas à IECLB na região
de Três Passos/RS.
104
Assim, a exploração dos recursos naturais na TI Guarita, agregada das fontes precárias
de renda das famílias indígenas e a persistência das tensões internas da comunidade,
contextualizam o fato de que “o cacique Ivo solicitou o retorno do CEAI à área. Com a saída
do CEAI, as tensões na comunidade indígena não diminuíram, e isto desgastou a liderança de
Ivo Sales” (ZWETSCH, 1993, p. 303). Porém o cacique Ivo Ribeiro não obteve êxito ao seu
pleito, pois a ação missionária indigenista passou a ser pautada por parâmetros distintos após
a retirada da Missão Guarita.
A tomada de consciência da realidade, por parte da comunidade indígena, na qual
estavam inseridos, como demonstrado na análise da professora Andila Belfort, somada à
disposição de consolidar a ação missionária indigenista, são evidenciadas em 1987, quando da
realização do IV Seminário do COMIN. Nesse seminário, foi enfatizada a aproximação da
ação missionária indigenista às propostas do movimento indígena, com a utilização do
material produzido pela União das Nações Indígenas (UNI).72 Também foi enfatizada a
acolhida e receptividade por parte dos indígenas e a menor ingerência da FUNAI nas
atividades como resultantes da nova postura. A construção de uma escola no Setor Portela
pelos próprios kaingang foi considerada como sinal da autonomia indígena (ZWETSCH,
1993, p. 303).
Na intenção do fortalecimento da mobilização em promoção da autonomia e
organização indígenas, investiu-se na participação de indígenas em “encontros regulares das
entidades indigenistas do sul e da articulação de uma organização dos indígenas do sul do
país” a partir de 1987 (ZWETSCH, 1993, p. 307). No IV Seminário do COMIN, realizado em
São Leopoldo/RS, na data de 02-07 jul. de 1987, as ações em favor da autonomia indígena,
enfatizadas na continuidade da ação missionária indigenista junto aos kaingang de Guarita e
outras áreas, foram consideradas como um “trabalho missionário despojado, consequente e
evangélico. […] Tudo isto nos fez ver que, o drama e a morte dos Povos Indígenas nos exigiu
um envolvimento novo, através do qual o desafio é andar junto com os Povos Indígenas e não
resolver os problemas por eles” (COMIN, 1992, p. 22). Conforme Schwingel (1987, p.2), as
comunidades indígenas necessitam de aliados na garantia da organização própria e vida digna,
72
Entidade indígena, de caráter nacional, criada em 1980, que “desempenhou com eficácia o papel de referência
simbólica da indianidade genérica na conjuntura de democratização pela qual passou a sociedade brasileira
nesse período, até o processo de elaboração da nova Constituição Federal (1986/88)” (Disponível em:
<http://pib.socioambiental.org/pt/c/iniciativas-indigenas/organizacoes-indigenas/historia> Acesso em: 09 nov.
2011).
105
afirmando que “a partir de manifestações dos próprios índios, somos convidados e aceitos
para participar da sua caminhada, lidas, anseios e esperanças”.
O IV Seminário também definiu as “Linhas Comuns de Ação” entre os povos
indígenas, tanto junto aos kaingang como em outras áreas de atuação missionária indigenista
do COMIN, assim apresentadas:
Lutar imediatamente pelo direito à vida (dignidade, terra, cultura, saúde,
educação) dos Povos Indígenas no sentido de sua autodeterminação.
Favorecer a organização autônoma dos Povos Indígenas.
Contribuir para a aliança destes povos com os demais setores oprimidos da
sociedade brasileira. (COMIN, 1992, p. 23)
A ênfase da ação missionária indigenista em prol da autodeterminação e autonomia
dos povos indígenas ainda esbarrava na situação e nos conflitos internos da comunidade
kaingang, como o ocorrido no segundo semestre de 1988 na TI Guarita, em consequência do
arrendamento ilegal das terras e da exploração madeireira. Na oportunidade, o cacique Ivo
Ribeiro e outras lideranças foram acusadas de “se apropriarem do dinheiro destes negócios e
nunca prestarem constas à comunidade” (ZWETSCH, 1993, p. 307).
Concomitante à preocupação com os conflitos e situações análogas, o ano de 1988
também representava os 20 anos da assinatura do convênio entre a IECLB e a FUNAI, que
possibilitou a instalação do CTPCC. De forma geral, o convênio caracterizou a participação
da ação missionária indigenista da IECLB na política indigenista oficial. Houve, porém,
posturas críticas, como destacado por Zwetsch (1993, p. 397): “Chamo a atenção para o papel
crítico exercido por outra educadora, Dulci Matte, vinculada à IECLB, que colocou questões
fundamentais quanto à proposta educativa levada a cabo pelo Centro Educacional e
Assistencial Indígena – CEAI, em Guarita”. Assim, reconhece-se que o período de 1968-1988
da ação missionária indigenista provocou impactos na comunidade kaingang da região sul do
Brasil, sobretudo na TI Guarita, onde esteve instalada.
É interessante observar que todo este imenso esforço teve um saldo ambíguo
passados mais de 20 anos, período suficiente para uma avalição geral. Lúcio
Schwingel e Ingret Kaminski, recentemente, escreveram que a Missão
Guarita deixou marcas profundas entre os Kaingang, especialmente a
formação de três turmas de monitores bilíngues e a criação de uma
comunidade eclesial com características confessionais luteranas. Mas tal
influência acarretou um problema grave que Schwingel já apresentara em
fins de 1988: “o pior de tudo será romper com o tradicional paternalismo que
a gente encarnou”. Paternalismo não combina com autonomia. Daí os
conflitos que estouraram com frequência na Missão Guarita (ZWETSCH,
1993, p. 398).
106
A avaliação evidencia as contradições experimentadas no pioneirismo da formação de
monitores bilíngues, mas também as relações paternalistas estimuladas e promovidas pela
sociedade não indígena e pela política indigenista oficial. Recorda-se que, nesse período, a
comunidade indígena ainda era tutelada pelo governo federal. A cidadania plena foi alcançada
tão somente na promulgação da Constituição Federal em 1988 (CF 88), devido à mobilização
dos povos indígenas e setores populares. A ação missionária indigenista do COMIN foi
influenciado pelo movimento indígena, que se mobilizou no reconhecimento de sua
autonomia e autodeterminação. A ação do COMIN junto aos kaingang também se estabeleceu
em prol da autonomia dos povos indígenas, proporcionando “um novo rosto à presença
luterana entre os Kaingang, mas mesmo assim uma presença que se sabe aberta às perguntas
que a própria prática vai levantando” (ZWETSCH, 1993, p. 311-2).
A promulgação da nova Constituição Federal, em 05 de outubro de 1988, dedicou o
capítulo VIII, composto pelos artigos 231 e 232, para assegurar o reconhecimento da
cidadania das pessoas indígenas, garantindo e reconhecendo o trato diferenciado. 73 Houve,
então, a expectativa de mudanças iminentes, como se constata no relato do I Seminário
Regional sobre Missão Indígena, realizado em Panambi/RS em maio de 1989: “Apesar da
Nova Constituição ter assegurado os direitos indígenas, constatamos que estes direitos não
são respeitados”. O relato do seminário também constatou que perdurava o preconceito à
cultura e modo de vida das comunidades indígenas. A situação resultante foram pressões
sobre a comunidade indígena, que estimulava a divisão interna, estabelecendo uma situação
de insegurança e desconfiança, que dificultava a organização autônoma indígena (COMIN,
1992, p. 25). Fato verificado pela denúncia de que na educação escolar indígena “há falta de
incentivos aos professores indígenas, professores índios não são contratados e em seu lugar
atuam professores não indígenas, sem o preparo necessário para assumirem esta tarefa”
(Idem). Ou seja, como garantir os novos direitos constitucionais de educação diferenciada e
autônoma sem garantia de atuação dos professores indígenas?
73
Ressalta-se que o P. Norberto Schwantes, idealizador e coordenador da Missão Guarita, se elegeu deputado
federal suplente, pelo Mato Grosso, legislatura 1987-1991, e assumiu mandato em 01/ago/1988, tornando-se
deputado constituinte, porém faleceu em 17/set/1988, antes da promulgação da nova constituinte (Disponível
em: <http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada
/parlamentaresconstituintes/constituicao20anos_ bioconstituintes?pk=106970> Acesso em: 01 nov 2011). As
condições de sua participação, devido à sua enfermidade – câncer generalizado no abdômen e fígado –, são
descritas em sua biografia (SCHWANTES, 2008, p. 206-210).
107
Decorrente, ainda, do disposto na CF 88, as atribuições exclusivas da FUNAI foram
realocadas nos respectivos ministérios de competência. Assim, a educação escolar indígena
passa a ser responsabilidade do Ministério da Educação. O atendimento em saúde passa a ser
gestado pelo Ministério da Saúde; e assim por diante. Contudo, a transferência de
responsabilidade teve resistência por parte de funcionários daquele órgão, que pretendiam
manter a condução das atividades realizadas junto às comunidades indígenas (SOUZA, 2001,
p. 23). Cabe, porém, destacar a ação da Secretaria Estadual da Educação, que, em novembro
de 1988, em acordo ao estabelecido pela recém-promulgada Constituição Federal, estabeleceu
medidas voltadas às escolas indígenas no Rio Grande do Sul.
O Secretário da Educação Ruy Carlos Ostermann, assinou ontem um
documento que propõe a educação voltada para a preservação da cultura
indígena nas 24 escolas frequentadas por filhos de índios caingangues e
guarani no Estado. […] “Faz tempo que estamos perdendo a nossa cultura”,
disse o índio caingangue, Natalino Góg Crespo, do posto indígena São João
do Irapuá, do município de Redentora, que faz parte da Comissão de
Educação Indígena. Sua maior preocupação é com as crianças, que não estão
mais aprendendo os idiomas caingangues ou guaranis (sic). Acredita no texto
que ajudou elaborar e está satisfeito com a SEC por ter iniciado a
regulamentação das 24 escolas indígenas do Estado […]. A Comissão de
Educação Indígena faz parte do projeto Pluralismo de Idiomas, da
Supervisão Técnica da SEC. É uma comissão interdepartamental e
interinstitucional, que conta com representantes de vário departamentos da
SEC, inclusive delegacias de educação de todo o Estado, e também a
participação da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Fundação
Nacional do Índio (Funai), três professores índios (monitores bilíngües – um
guarani e dois caigangues (sic); Associação Nacional de Apoio ao Índio
(ANAI), Universidade Federal de Santa Maria, Universidade de Ijuí e Museu
Antropológico do Rio Grande do Sul (ZERO HORA, 1988, p. 33).
A Comissão de Educação Indígena estava vinculada à Supervisão Técnica da
Secretaria de Educação e Cultura, do Estado do Rio Grande do Sul, que, em 1989, através da
Portaria ATO/SE – 09398, de 19 de junho 1989,74 nomeia os integrantes da Comissão de
Educação Indígena. Entre as pessoas nomeadas, destacam-se: Natalino Góg Crespo, monitor
bilígue da Escola Marechal Rondon, TI Guarita; Dulci Matte, ex-integrante do CTPCC e
representante da FIDENE-UNIIJUI; e Lúcio Schwingel, obreiro do COMIN. Avalia-se a
nomeação do obreiro do COMIN como reconhecimento das iniciativas e atividades
promovidas pela IECLB e COMIN junto às comunidades indígenas na área da educação
escolar indígena.
74
Cópias da portaria e da reportagem da Zero Hora encontram-se no Arquivo do CPQI/COMIN, Caixa Aa1/4.1,
pasta Ba1: NEI/RS.
108
Conforme Souza (2001, p. 14), como “o conceito educacional missionário da década
de 1960 fosse basicamente catequético, ele foi sendo reelaborado pela IECLB a partir da
conquista de maturidade intelectual pelos índios escolarizados”. Dando prosseguimento em
sua avaliação, sobre a atuação da IECLB e do COMIN na educação escolar indígena, Souza
(2001, p. 18-9) conclui que “é possível reconhecer um papel histórico importante dessas
iniciativas junto à TI Guarita, porque delas se seguiram críticas que, incorporadas e
atualizadas pelo indigenismo da IECLB, possibilitaram uma melhor estruturação do
COMIN”. Constata-se nas afirmações de Souza o estabelecimento de uma correlação entre a
“maturidade intelectual dos índios” e a “atualização do indigenismo da IECLB e COMIN”.
Ou seja, estabelece-se uma maturidade crescente. Inicia-se com a instalação de uma pequena
escola indígena em 1961, até a nomeação da Comissão Estadual de Educação Indígena em
1989. Parte de um espaço reduzido, a sala de aula, e alcança o espaço amplo e público. A
maturidade é simultânea à comunidade indígena e à ação missionária indigenista da IECLB e
do COMIN. No entanto, ressalta-se que ela tão somente se consolidou até este momento. Há
ainda o convite e o desafio para a continuidade “para participar da caminhada, de lidas,
anseios e esperanças”.
2.4.2 O COMIN e a consolidação da EEI
A década de 1990 se constitui num período de diversas conquistas e realizações, tanto
na organização e autonomia das comunidades kaingang da região sul do Brasil, como na ação
missionária indigenista do COMIN. As articulações e encaminhamentos estabelecidos a partir
da CF 88 possibilitaram a constituição de organizações indígenas, como ONISUL e APBKG;
possibilitaram a realização de cursos de formação de magistério indígena; a constituição do
Núcleo de Educação Indígena; ingresso de estudantes kaingang no ensino superior;
publicação de material didático para as escolas indígenas.
No início da década de 1990, estabelece-se uma nova dinâmica na atuação do COMIN
e do movimento indígena. A criação das entidades indígenas, como a Associação de
Professores Bilíngues Kaingang e Guarani (APBKG) e a Organização das Nações Indígenas
do Sul (ONISUL), somadas à participação em eventos e programas de debate e cidadania,
como o Seminário Permanente de Educação Popular,75 constituíram-se em espaços da
75
O seminário era realizado bianualmente, no âmbito da FIDENE-UNIJUÍ, e reunia os diferentes movimentos
populares com objetivo de formação e capacitação de “educadores populares, o intercâmbio de experiências, o
109
mobilização indígena e no atendimento de demandas específicas no âmbito da educação
escolar.
A contribuição da ação missionária indigenista da IECLB e do COMIN foram
potencializadores na criação das entidades, como a APBKG. Credita-se ao COMIN a
[…] mobilização dos professores indígenas do Rio Grande de Sul, que
resultou na criação da APBKG, que foi instituída em 1992. A APBKG […]
teve função determinante nas discussões e propostas para educação escolar
indígena, especialmente na formação de professores” (KAINGANG, M. I.
2009).76
Da mesma forma ocorre com a ONISUL,77 composta por lideranças kaingang e
guarani, apoiadas pela equipe do COMIN e por outras entidades (ZWETSCH, 1993, p. 310).
Através da participação no Seminário Permanente de Educação Popular, iniciou-se
uma articulação entre “os Kaingang, os representantes do COMIN e os docentes e
funcionários da FIDENE-UNIJUÍ”, que possibilitou a elaboração de dois programas
realizados institucionalmente no âmbito da UNIJUÍ, de formação em nível médio e outro de
nível superior (FREITAS, ROSA, 2003, p. 46-7; Boletim Missão Guarita-RE III-IECLB, jul.
199478). A importância dessa articulação se averigua no depoimento de Pedro Sales, jovem
kaingang engajado na mobilização indígena, que ingressou no ensino superior na UNIJUÍ em
1992.
O motivo que impulsionou a minha vinda para a Universidade foram os
conflitos internos entre as comunidades, no sentido assim de que até aquele
momento as pessoas estavam vivendo um processo de revolução na busca de
constituir uma nova liderança, um novo cacique, colocar por terra o que
existia na época. […] Outro fator que foi assim acumulando foi uma
assembleia de lideranças indígenas que houve em Chapecó, depois da luta
indígena em defesa dos Yanomami, em 1988. Os Kaingang conseguiram
pela primeira vez participar desse movimento nacional, em Brasília, para
enfim dizer que eles existem. Voltaram com uma vontade de constituir
organizações indígenas na época, queriam autonomia, queriam construir, por
exemplo, uma estrutura institucional para depor a FUNAI, substituir a
FUNAI pela própria organização indígena, então era uma leitura que o
pessoal se fazia na época. […] Então conversamos sobre as escolhas [na área
do direito, pela demarcação, saúde e meio ambiente, Educação, Biologia,
História] […]. Eu lembro que a própria UNIJUÍ, ela tinha um trabalho com
os movimentos populares, era uma parcela da UNIJUÍ, que trabalhava com o
Seminário Permanente de Educação. Nesse seminário eu sempre procurei me
desenvolvimento de pesquisas, a produção e difusão de material de apoio e assessoria aos movimentos sociais
e às instituições ligadas à educação popular” (FREITAS, ROSA, 2003, p. 46-7).
76
Segundo Souza (2001, p. 22), número expressivo de monitores formados no CTPCC integraram a APBKG.
77
ONISUL: Organização das Nações Indígenas do Sul, criada em 1992, entidade indígena que coordenou as
articulações de ocupação e reivindicação de algumas terras indígenas no Rio Grande do Sul (KAINGANG, M.
I. 2009).
78
ARQUIVO CPQI/COMIN, Caixa Aa1/4.1, pasta Ba 1: Educação; Escola Kaingang.
110
inteirar, me envolver nesse trabalho, aonde eu fui eleito representante das
comunidades indígenas, também dos movimentos indígenas. Foi graças a
esse movimento que consegui chegar até a Reitoria para discutir com eles já
a necessidade de construir, abrir campos de libertação para os índios, para
poder militar de forma mais qualificada (FREITAS, ROSA, 2003, p. 36-7).
A consciência despertada entre os kaingang envoltos na busca da autonomia e leitura
crítica da realidade das comunidades indígenas, sobretudo jovens da TI Guarita, promoveu a
eleição da “educação como um elemento que lhes possibilitou debelar tanto o ‘tempo do
arrendamento’ quanto o ‘tempo do panelão’, eras da história Kaingang que falam de trabalho
escravo e usurpação territorial” [grifos dos autores] (FREITAS, ROSA, 2003, p. 21). Assim,
Alguns jovens que discordavam da prática do arrendamento decidiram fazer
o curso superior na UNIJUÍ buscando ampliar seu potencial de resistência e
reverter a situação instaurada em suas comunidades. Em meados da década
de 1980, eles participavam do ‘Seminário de Planejamento Participativo’,
evento que reunia movimentos sociais MST, Movimento dos Desalojados
por Barragens, indígenas, mulheres, sindicatos rurais e urbanos, diferentes
organização não governamentais, como COMIN, IECLB, ANAÍ, MCB,
CAMP, FASE – para trocarem experiências sobre educação popular.79
(FREITAS, ROSA, 2003, p. 35)
O ingresso dos estudantes indígenas ocorre a partir do primeiro semestre de 1992,
sendo os primeiros estudantes indígenas universitários: Andila Inácio Belfort, Ari Ribeiro,
Bruno Ferreira, Juvino Sales, Maria Inês Pandolfo, Pedro Sales. Esse evento foi caracterizado
como uma nova etapa na história das comunidades kaingang e na história da FIDENEUNIJUÍ (FREITAS, ROSA, 2003, p. 36). Sendo reconhecido o papel da FIDENE-UNIJUÍ de
“precursora na inclusão de estudantes indígenas no 3º grau” (MATTE, 2009, p. 105).
Contudo, essa conquista do movimento indígena, conforme relato de Andila Belfort (2002, p.
127), se constituía como reflexo da inquietação e luta dos povos indígenas:
Contudo, continuamos, eu e meu povo, sendo tratado como quem estava
condenado a sempre depender dos outros. Isso começou a me inquietar e,
por conseqüência, em 1992, cinco Kaingáng fizeram vestibular na
universidade de Ijuí – RS, em cinco áreas estrategicamente escolhidas,
Direito, Enfermagem, Pedagogia, Agronomia e História. Não conseguimos
para Direito, mas ingressamos nas outras quatro áreas. Eu me lembro que
saiu um artigo num jornal que dizia: “Índios Invadem a Universidade”.
Nos anos que se seguiram, outros kaingang também ingressaram no ensino superior na
UNIJUÍ, sendo reconhecida a participação do COMIN neste processo, como manifesto por
Danilo Braga em entrevista a Valsenio Gaelzer, que assim relata:
79
MST: Movimento dos Trabalhadores Sem Terra; ANAÍ: Associação Nacional de Apoio ao Índio; MCB:
Movimento Comunitário de Base; CAMP: Centro de Assessoria ao Movimento Popular; FASE: sigla
desconhecida.
111
O Kaingáng Danilo, estudante de história da UNIJUÍ, afirmou a importância
do COMIN, […] no que se refere as necessidades básicas aos índios. Na
verdade, se reconhece a atuação da missão no âmbito da educação, da saúde,
enfim, questões primordiais que fazem com que a organização social se
torne possível. Claro, nesse caso devemos respeitar o tempo e espaço em que
se dá esse fato missionário, bem como em relação com o avanço tecnológico
imposto pela conjuntura nacional e internacional. (GAELZER, 1998, p. 97)
A contribuição e participação do COMIN no processo de acesso ao ensino superior se
refletiram também na elaboração e implantação do Programa de Bolsas de Manutenção para
Estudantes Indígenas na UNIJUÍ. O Programa de Bolsas foi elaborado em 1997, com a
participação do COMIN, UNIJUÍ e estudantes indígenas, que o encaminharam a Diakonisches
Werk, entidade vinculada à Igreja Evangélica da Alemanha. O programa teve “o propósito de
garantir a manutenção dos estudantes indígenas durante seus cursos de graduação,
subsidiando custos de transporte, saúde, alimentação, vestuário, bibliografia, etc” (FREITAS,
ROSA, 2003, p. 48)80. De acordo com o estudo de Freitas e Rosa (2003, p. 51), o Programa de
Bolsas obteve êxito, garantindo a conclusão de curso de estudantes indígenas bolsistas,
entendido como retorno social do programa. Os kaingang bolsistas que concluíram o ensino
superior até 2002, após uma década do ingresso dos primeiros kaingang na UNIJUÍ, foram:
Bruno Ferreira (História), Danilo Braga (História), Juliana Van Kre Inácio (Enfermagem),
Júlio César Inácio (Agronomia), Lúcia Fernanda Inácio Belfort (Direito), Luciola Maria
Inácio Belfort (Enfermagem), Maria Inês de Freitas Pandolfo (Pedagogia), Pedro Sales
(Enfermagem), Sandra Terezinha Tavares (História) e Suzana Andrea Inácio (Direito).81
Salienta-se o engajamento e compromisso do grupo de estudantes com as
mobilizações para a garantia de políticas públicas condizentes com a realidade dos povos
indígenas. Dulci Matte pesquisou o tema da etnicidade (identidade cultural) com o grupo de
universitários kaingang na UNIJUÍ e constatou que
Os estudantes como membros de comunidades indígenas, situam-se num
contexto de movimento indígena, numa articulação que ganha força pelo
sucesso da mobilização na recuperação de territórios por diversas
comunidades no Estado, pelo esforço em manter nas suas escolas um ensino
80
O Programa de Bolsa esteve destinado à manutenção dos estudantes indígenas. Para o financiamento dos
cursos, firmou-se convênio entre FIDENE-UNIJUÍ e MEC/FUNAI (FREITAS, ROSA, 2003, p. 12-3).
81
A seguir, breve atualização (nov. 2011) da qualificação acadêmica e/ou profissional dos ex-bolsistas: Bruno
Ferreira, lotado na E.E.I.E.F. Toldo Campinas (Setor Estiva/TI Guarita), especialista em Educação,
Diversidade e Cultura Indígena/COMIN/EST; Danilo Braga, mestrando em História/UFRGS; Júlio César
Inácio, mestre em Agronomia/UFRGS; Lúcia Fernanda, mestre em Direito/UnB; Maria Inês de Freitas
Pandolfo, especialista em PROEJA/UFRGS e coordenadora do Depto. de Educação Escolar Indígena da
ADR/FUNAI-Passo Fundo/RS; Pedro Sales, membro de Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena na TI
Caseiros; Suzana Andrea Belfort, mestre MINTER/UFSC; Luciola Maria Inácio Belfort ingressou em 2009 no
curso de Medicina/UFRGS.
112
bilíngüe, com currículo, conteúdos e metodologia diferenciados; pela
organização em entidades como a Articulação dos Povos e Organizações
Indígenas do Sul, a Associação dos Professores Bilíngües Kaingang e
Guarani, a Associação dos Universitários Indígenas do Sul; pela sua
participação em órgãos como o Conselho Estadual dos Povos Indígenas,
ligado à Secretaria de Cidadania e Ação Social do governo do estado do RS;
participação no Núcleo de Educação Indígena, ligado à Secretaria de
Educação do RS, no Núcleo Interinstitucional da Saúde Indígena, ligado à
Fundação Nacional da Saúde/Ministério da Saúde (MATTE, 2001, p. 109).
O engajamento e articulação através de organizações indígenas ou em organismos
públicos de políticas indigenistas (p. ex.: CEPI, NEI) demonstram que a proposição inicial de
ingresso no ensino superior foi concretizada. Ou seja, o ensino superior se constitui
ferramenta no exercício da autonomia e autodeterminação dos povos indígenas. Pois, como
demonstrado por Matte, o grupo de estudantes não se desvinculou do processo de mobilização
em prol das diferentes demandas das comunidades indígenas, atendimento em saúde,
educação escolar indígena, demarcação de terras tradicionais, enfim, a definição, constituição
e implementação de políticas públicas específicas às comunidades indígenas.
Para além da formação superior, também houve a necessidade da formação docente
indígena com habilitação para o magistério nas escolas indígenas. Em 1991, decorrente do
debate iniciado em 1989, foi criada uma comissão interinstitucional, constituída por
representantes da ONISUL, APBKG, UNIJUÍ e COMIN. A comissão organizou o “Curso
Supletivo de Magistério para a Formação de Professores Indígenas Bilíngues para o Ensino de
1ª a 4ª Série nas escolas das comunidades Kaingang do sul do Brasil”. O curso foi realizado
entre os anos de 1993 e 1996 com o objetivo de formar docentes indígenas com habilitação
bilíngue e intercultural (KAINGANG, B. 2002, p. 203; KAINGANG, M. I. 2009; VYJKÁG
et. al., 1997, p. 9-10; FREITAS, ROSA, 2003, p. 47). Os participantes do curso foram
definidos pelas comunidades e lideranças indígenas, conforme relato de Schwingel, que
também justifica a necessidade de um curso de habilitação ao magistério indígena.
As comunidades Indígenas e suas lideranças tiveram participação direta na
escolha dos candidatos ao Curso e na sua direção. Hoje estão com grande
expectativa de ver atendida uma de suas necessidades: ter um professor do
seu próprio povo habilitado para Ensino Escolar. Pois os Monitores,
formados na Escola Clara Camarão, em Guarita, na década de 70, não estão
habilitados para o magistério, e tornaram-se apenas facilitadores para a
alfabetização dos indiozinhos pelos professores brancos. Consequentemente,
o papel do monitor é mais voltado para a transição do índio à cultura
ocidental do que para valorizar, respeitar e recriar os valores e as tradições
culturais milenares herdadas de seus antepassados. […] O Curso atual de
Professores Bilíngües, portanto, está nesta linha de continuidade das lutas,
conquistas e reivindicações dos povos indígenas. Seu objetivo é viabilizar
113
que estes povos índios possam continuar vivendo segundo seu jeito próprio
de ser, e ajudar a garantir que toda a assistência necessária neste campo seja
provida com a participação dos seus maiores interessados, os próprios índios
(Missão Guarita-RE III-IECLB, jul. 1994).82
O propósito do curso estava vinculado às mobilizações indígenas, salientado pela
afirmação de que é a “continuidade das lutas, conquistas e reivindicações dos povos
indígenas”. O vínculo com as mobilizações oportunizou aos participantes, além da habilitação
ao magistério indígena, o engajamento no fazer a história dos povos indígenas. Conforme o
testemunho do professor kaingang Dorvalino Refej Cardoso, o curso possibilitou mudança na
vida das pessoas e, de modo mais profundo, instigou a ler e entender o mundo, estabelecendo
projetos para o futuro.
Meu nome é Dorvalino e tenho 47 anos. Sou professor Kaingang e moro em
[Comunidade Kaingang Por fi,] São Leopoldo (RS). Participei do curso de
formação de professores bilíngues promovido pelo COMIN, em parceria
com a Universidade de Ijuí (Unijuí). Esse curso começou a mudar a minha
vida nos trabalhos e nas questões culturais e sociais. Passei a entender o
contexto planetário e, a partir disso, comecei a trabalhar pelo povo
Kaingang, participando de palestras e de muitos projetos para o futuro. O
resultado daquele curso foi que hoje estou na faculdade, fazendo pedagogia e
me formo no final de 2011. Prometo que vou mais além. (CARDOSO, 2010,
p. 58)
O professor Dorvalino afirma que, ao “entender o contexto planetário”, foi instigado a
trabalhar pelo povo kaingang. Retoma-se a dinâmica da especificidade do curso, em ser de
formação de professores bilíngues, para o exercício do magistério nas escolas das
comunidades kaingang. Para Matte (2009, p. 108), o curso potencializou a constituição da
educação bilíngue e específica das escolas kaingang no Rio Grande do Sul. Destaca-se, ainda,
que, ao “entender o contexto planetário”, Dorvalino afirma que passou a participar de
palestras. Considera-se o fato como resultado da percepção intercultural inserida no curso. Ou
seja, a formação voltada para a interação com a sociedade não indígena.
O curso teve o ingresso de 30 kaingang, oriundos de comunidades kaingang do Rio
Grande do Sul e Santa Catarina, sendo que 22 professores se formaram “com habilitação
bilíngue e intercultural nas escolas Kaingang” (KAINGANG, B., 2002, p. 203). Do grupo que
concluiu o curso, três docentes ingressaram em cursos universitários na UNIJUÍ: Armandio
Kãnkõr Bento, Gelson Vergueiro Kagrër e Valmir Cipriano Jësi (FREITAS, ROSA, 2003, p.
47).
82
Material disposto no Arquivo CPQI/COMIN, Caixa Aa1/4.1, pasta Ba 1: Educação; Escola Kaingang.
114
Após o término do curso, ainda foram publicados livros e cartilhas, organizados por
uma Comissão de Publicação, “da qual faziam parte pelo menos um aluno por área indígena”,
além de representantes institucionais da comissão de organização do curso (VYJKÁG et. al.,
1997, p. 27-30). O material publicado foi elaborado pelos participantes do curso e foi
produzido como material didático para as escolas kaingang da região sul do Brasil. Assim, em
1997, foi publicado o livro Ẽg jamẽn kỹ mũ: textos kanhgág, com financiamento do MEC; e,
em 1998, foram publicados 2 livros/cartilhas: Kanhgág ag tỹgtỹnh fã (cantos) e Inh kónẽg
kãme (literatura e histórias), ambos monolíngue kaingang, com apoio do MEC e NEI/RS.
A década de 1990 se caracterizou pela mobilização acentuada na implantação da EEI,
sobretudo na formação de professores em nível de ensino médio e no ingresso no ensino
superior. Essas mobilizações advieram da mobilização indígena da década de 1980, pautada
no reconhecimento da autonomia e autodeterminação dos povos indígenas, referendada na CF
88. Também foi um período de reestruturação, pois, garantido o reconhecimento à autonomia
e autodeterminação, necessitou-se garantir instrumentais específicos à educação escolar para o
benefício e interesse da comunidade indígena. Consequentemente, constitui-se como período
de reorganização das políticas públicas destinadas aos povos indígenas. A reorganização se
fez necessária devida à proposição constitucional de que “são reconhecidos aos índios sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam” (CF 88, art. 231).
Desta forma, constituíram-se os Núcleos de Educação Indígena (NEI) no âmbito das
Secretarias Estaduais de Educação, conforme determinação da Portaria Interministerial
MJ/MEC n º 559, de 16 de abril de 1991.83 O objetivo para a criação do NEI foi proporcionar
“um espaço para a participação dos índios e das organizações de apoio na formulação e
implementação de políticas públicas diferenciadas” (ARMANI, 2001, p. 17).
Cabe salientar, como demonstrado anteriormente, que no Rio Grande do Sul havia
sido constituída a Comissão de Educação Indígena ao final da década de 1980, sendo indicado
para representar o COMIN Lúcio Schwingel. Em 1990, ocorre outra indicação de Lúcio
Schwingel para a composição da Comissão de Educação Indígena, conforme carta expedida
pela Secretaria de Missão da IECLB em 15 de agosto de 1990, em resposta ao ofício
83
Disponível em: <http://www.funai.gov.br/projetos/Plano_editorial/Pdf/Legisl/capitulo-09.pdf> Acesso em: 01
set. 2011. (p. 523-6 [20-3])
115
OF.CEI/DEPE-Nº22/90.84 A referida comissão antecedeu a criação do NEI no Rio Grande do
Sul.
Em 1993, foi elaborada, no âmbito da Comissão de Educação Indígena, a “Proposta
pedagógica: ‘Escolarização das crianças e jovens indígenas no RS’”,85 sendo o COMIN citado
como colaborador. Na introdução da proposta, afirma-se que a escolarização das crianças e
jovens indígenas se incluiria no Plano Global de Governo 1991-1995, no intuito de que
O eixo desta questão é a busca incansável e sistemática de ações que
resguardem e respeitem os valores étnicos e a cultura construída durante
milênios e que teve o solo gaúcho como palco. Esta postura propõe um
afastamento do etnocentrismo cristão ocidental, busca nos pressupostos
básicos dos indígenas a razão de todas as ações, quer no âmbito da
escolarização, quer na defesa da identidade destes grupos.
Em 1994 (20-21 de outubro), foi realizado o “Encontro de Professores Bilíngues,
Enfermeiros e demais Lideranças Kaingang” em Passo Fundo/RS. O encontro teve 37
participantes, que se reuniram para estudar formas de garantir direitos elementares na
educação, saúde e demarcação de terras indígenas. Conforme relato, referente à EEI, tratou-se
do reconhecimento e regularização das escolas indígenas; contratação de docente bilíngue
pelo Estado; e criação do Núcleo de Educação Indígena (Missão Guarita, Frederico
Westphalen, nov. 1994).86 Assim, em 1995, o Núcleo de Educação Indígena foi instituído,
sendo Lúcio Schwingel nomeado como representante do COMIN, conforme portaria
ATO/SE-01294, de 10 de setembro de 1995, publicada no diário oficial do estado em 15 de
setembro de 1995.87
O registro da participação do COMIN no NEI é destacado pelo fato de a entidade ter
se inserido no espaço público responsável pela implementação e acompanhamento da EEI nas
comunidades indígenas no Rio Grande do Sul. Destaca-se o fato de que a nomeação ao NEI
ocorreu uma década após a retirada da Missão Guarita da TI Guarita e a partir da qual a ação
missionária indigenista se definiu por uma metodologia de acompanhamento e assessoria à
autonomia dos povos indígenas, mantendo esta postura também na definição de políticas
públicas. Também é relevante o destaque por extrapolar a orientação inicial de que a ação
missionária indigenista se estenderia a outras comunidades kaingang e guarani da região
84
Material do Arquivo CPQI/COMIN, Caixa Aa1/4.1, pasta Ba1: NEI/RS.
Material do Arquivo CPQI/COMIN, Caixa Aa1/4.1, pasta Ba1: NEI/RS.
86
Cf. Informe nº 09 da Missão Guaria, Frederico Westphalen, nov. 1994. Material disposto no ARQUIVO
CPQI/COMIN, Caixa Aa1/4.1, pasta Ba 1: Educação; Escola Kaingang.
87
No Arquivo CPQI/COMIN, Caixa Aa1/4.1, pasta Ba1: NEI/RS, cópia da carta da Secretaria Executiva do
COMIN, de 18 de maio de 1995, em resposta ao ofício Of. DEPE/DP/105-95; e cópia da publicação da
Portaria no Diário Oficial do Estado.
85
116
noroeste. A participação em espaços públicos, como o NEI, implicou na atuação em um
espaço geográfico e político amplo, salientando que, na perspectiva política, a participação no
NEI difere do papel de executor de programa governamental, como pode ser interpretado no
CTPCC. A diferença se constata também no fato de que o NEI se constituiu de representantes
das comunidades indígenas, organizações indígenas e indigenistas e instituições de ensino.
Assim, concorda-se com afirmação de Freitas e Rosa (2003, p. 21) de que o COMIN, ao lado
de instituições e entidades como a FIDENE-UNIJUÍ, NIT88, UPF89, APBKG e órgãos
públicos da educação, “colocam-se enquanto agentes da educação indígena, com
responsabilidades diferenciadas” no Rio Grande do Sul. De modo especial, foi citado pelos
pesquisadores que as ações e atividades desenvolvidas inicialmente pela IECLB e,
posteriormente, pelo COMIN foram decisivas para a implantação da EEI, sobretudo na região
noroeste rio-grandense (FREITAS, ROSA, 2003, p. 8).
A avaliação quanto ao papel decisivo da atuação da ação missionária indigenista da
IECLB e do COMIN pode ser avalizada pela amplitude das atividades realizadas no decorrer
da década de 1990. Souza (2001, p. 22), no processo de avaliação das atividades do COMIN,
elenca as principais atividades realizadas nessa década, com destaque para: acompanhamento
aos professores kaingang; coordenação do curso de Formação de Professores Indígenas
Bilíngues; participação no Núcleo de Educação Indígena; incentivo à regularização das
escolas indígenas; capacitação de professores sem magistério, publicação e distribuição de
livro sobre a religião e a cultura kaingang; acompanhamento de universitários índios. As
atividades elencadas atestam a diversidade e amplitude da ação missionária indigenista do
COMIN, salientando que as mesmas se constituíram concomitantemente à mobilização
indígena, expressão da autonomia e autodeterminação dos povos indígenas.
2.4.3 A trajetória no século XXI
A década de 1990 foi caracterizada pela atuação e mobilização indígena no empenho
de construir políticas públicas específicas e diferenciadas na implantação da EEI, sendo
destacadas nesta dissertação as atividades de habilitação ao magistério indígena, o acesso ao
ensino superior e a instituição do NEI. Conforme demonstrado, a atuação da APBKG foi
decisiva, pois estabeleceu convênios e parcerias com o COMIN e FIDENE-UNIJUÍ na
realização dos eventos destacados anteriormente.
88
Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(NIT/UFRGS).
89
Universidade de Passo Fundo.
117
Porém, na transição para a década de 2000, constatam-se alterações nesse cenário. As
alterações se constituíram a partir da alteração na equipe do COMIN, responsável pelas ações
missionárias indigenistas na região noroeste rio-grandense, e da alteração no foco das ações
missionárias indigenistas. Ressalta-se, porém, que persistiu a atuação do COMIN na
assessoria e acompanhamento na implantação da EEI. Outra alteração a se constatar no
decorrer da nova década é a diversidade de entidades (públicas e privadas), órgãos públicos e
políticas públicas com as quais as comunidades indígenas interagem. Esta constatação carece
de maior avaliação, sobretudo numa suposta interferência sobre a redução ou diluição da
mobilização indígena. Neste sentido, tornou-se perceptível a inatividade da APBKG na
década de 2000. Para o momento, cabe apresentar tal percepção, pois se considera que a
mesma não ocorreu de forma isolada, mas devido a mudanças no contexto sociopolítico
brasileiro no início do presente século.
Referente ao período de 1999-2001, o COMIN contribuiu na realização de cursos de
complemento ao ensino fundamental, realizados na Escola Estadual de Ensino Médio
Américo dos Santos, na Vila São João, distrito de Redentora/RS, próxima ao Setor Missão (TI
Guarita). O curso foi realizado em parceria com o NEI, oportunizando a conclusão do Ensino
Fundamental a 39 educandos de diversas comunidades indígenas, que atuavam como
monitores bilíngues ou professores nas escolas indígenas na modalidade de contratado
emergencial (ROSA, 2002, p. 69).
Figura 5: Curso complementar ao Ens. Fundamental, E.E.E.M. Américo dos Santos
Fonte: ROSA, 2002, p. 70. 90
90
Destaques: 1. Natalino Góg Crespo (em memória); 2. Elton Zencke, membro da equipe COMIN-Guarita; 3.
Noeli T. Falcade, membro da equipe COMIN/PNG; 4. Sandro Luckmann, membro da equipe COMIN-Guarita
118
No transcorrer dessa ação ocorre a alteração da equipe do COMIN, com o ingresso do
autor na equipe de trabalho. Também ingressou um engenheiro das ciências agrárias, como
contrapartida
na
implantação
de
programa
interinstitucional:
Programa
de
Autossustentabilidade para Guarita, elaborado desde 1997 (ARMANI, 2001, p. 24). Houve,
no início da década de 2000, a concentração de esforços na execução de programas e
assessorias às comunidades indígenas no noroeste rio-grandense, em questões referentes a
território (demarcação de terras tradicionais), saúde (Projeto de Nutrição Guarita),
sustentabilidade (etnosustentabilidade) e assistência social (FREITAS, ROSA, 2003, p. 62).
Entre esses, destacam-se o Projeto de Nutrição Guarita (PNG), o Projeto de Ação e
Qualificação de Agentes e Técnicos junto a Comunidades Indígenas Kaingang e Guarani do
RS (PROAQ) e o Projeto de Revitalização de Saberes Tradicionais de Manejo e Uso de
Espécies Medicinais e Nutricionais (PPIGRE).
O PNG foi realizado entre 2001 e 2003 no controle da desnutrição e mortalidade das
crianças na TI Guarita e no exame para a associação entre condições sociais e a estatura das
crianças, para o qual o COMIN foi contratado pela Secretaria Estadual da Saúde
(MENEGOLLA et al., 2006, p. 396). O PROAQ foi executado nos anos de 2001 e 2002, em
convênio com o Departamento de Cidadania e da Assistência Social da Secretaria do
Trabalho, Cidadania e Assistência Social (STCAS/RS), para desenvolver junto às
comunidades kaingang e guarani no Rio Grande do Sul atividades no âmbito das políticas
públicas de Assistência Social (PILGER, 2002, p. 41-7). O PPIGRE realizou-se em 2007,
financiado pelo programa PPIGRE/MDA, no intuito de estimular que o conhecimento e os
saberes tradicionais no uso e manejos de plantas fossem compartilhados, respeitados e
divulgados entre a comunidade kaingang da TI Guarita (LUCKMANN, FALCADE, 2008, p.
7).
Cabe destacar que a alteração de prioridades na ação missionária indigenista ocorreu
simultaneamente à continuidade da implantação da EEI nas comunidades escolares kaingang,
concebidas de forma diferenciada do período anterior. Freitas e Rosa (2003, p. 62) afirmam
que essa realidade “implica em mudanças nos sentidos que a escola assume na vida
kaingang”, fato que pode ser demonstrado no relato dos professores kaingang referente à
Escola Estadual Clara Camarão, remanescente do período do curso de monitores bilíngues.
e autor desta dissertação. Legenda original: A foto nº 19 registra um dos vários encontros com turmas
especiais das diversas Reservas do RS, ex-alunos do Projeto Missionário, que regulamentam o Ensino
Fundamental através de estudos à distância. Uma proposta da E. E. de Ens. Médio Américo dos Santos com
apoio financeiro e pedagógico da SE e COMIN-DAÍ (Foto: Carlos da Rosa, out. 2001).
119
Em Julho de 2000, foi encaminhada documentação para regulamentação das
escolas indígenas. Então, no dia 11 de outubro de 2001 toda a comunidade
escolar e lideranças indígenas, reuniram-se com a finalidade de mudar o
nome da escola para um mais significativo, onde foi sugerido e aprovado o
atual nome de Gomercindo Jèté Tenh Ribeiro, antigo morador da
comunidade (PROFESSORES, 2006, p. 282).
O fato relatado pela atual E.E.I.E.F. Gomercindo Jèté Tenh Ribeiro é corroborado pela
mesma disposição e atitude da comunidade escolar e lideranças kaingang do Setor Missão,
onde se instalou a Escola Marechal Rondon, que também em 2000 alterou o nome da escola,
na oportunidade do processo de regularização no Conselho Estadual de Educação, para Escola
Indígena Fundamental Incompleto Davi Rỹgjo Fernandes. A justificativa para escolha do
nome foi de que
A comunidade acredita que após a legislação das escolas indígenas, os índios
passarão a viver uma nova história. Toda a comunidade escolar está contente
com o novo nome escolhido, pois este, tem a ver com a história dos
antepassados desta comunidade.91
Outro fato a se destacar nesse processo de regularização das escolas no decorrer da
década de 2000 foi a integralização na oferta do Ensino Fundamental. Conforme Freitas e
Rosa (2003, p. 10), em 2002, somente dez escolas indígenas, em todo o território estadual,
ofertavam o ensino completo. Em 2010, a situação é distinta. Tendo como parâmetro a TI
Guarita, das doze escolas de ensino fundamental, somente uma oferta o ensino fundamental
incompleto.
Em consequência à regularização das escolas indígenas, fez-se necessária a realização
de concurso público estadual específico, visando garantir os preceitos legais à EEI. Assim, em
“2001 foi realizado o primeiro concurso público da rede estadual de ensino para fins de suprir
vagas em escolas indígenas bilíngües. Vinte professores indígenas bilíngües foram aprovados
nestes concursos” (FREITAS, ROSA, 2003, p. 10). A realização do concurso visou fazer
cumprir o disposto na Resolução 03/99 do Conselho Nacional de Educação, estabelecendo
que, apesar do arcabouço legal para EEI ser definido em nível federal, cabe aos estados a
efetivação de programas específicos de formação, titulação e contratação de docentes
indígenas (ARMANI, 2001, p. 16).
91
Dados extraídos do “Histórico da Escola Indígena de 1º grau Incompleto Marechal Cândido Rondon = Missão
Indígena”, apresentada no Encontro de Educadores e Educadoras das Escolas Indígenas – Etnia Kaingang,
realizado em Redentora/RS, 25-28 de julho de 2000. (Arquivo COMIN-ESOI, Caixa Educação). A alteração
dos nomes das escolas indígenas, bem como a regularização e elaboração do Projeto Político Pedagógico,
foram estimulados e debatidos no “Curso de Formação Continuada para Professores Indígenas – Etnia
Kaingang”, realizado em 2001-2002, em Marcelino Ramos/RS, organizado pelo NEI e SEE.
120
Na segunda metade da década de 2000, a ação missionária indigenista da equipe do
COMIN oportunizou a publicação de livros elaborados por docentes e discentes das escolas
indígenas e também por universitários kaingang, visando contribuir na elaboração e produção
de material didático específico à EEI na TI Guarita. A modalidade de elaboração e os temas
abordados foram distintos e diversos, como o uso tradicional de plantas medicinais e
nutricionais, cultura e meio ambiente, apicultura, artesanato, jogos e brincadeiras, saúde e
redução de danos por alcoolismo. Os temas evidenciam a interdisciplinaridade da EEI, uma
vez que os temas abordados nas publicações se originam no contexto cultural, social e
econômico da comunidade indígena.
Cabe destacar a preocupação de docentes na publicação de materiais próprios. No
livro Gufã ág kajró, a preocupação explicitada foi a produção de material na língua kaingang
e em referência à cultura.
Os docentes preocupam-se com a educação escolar indígena, com a reflexão
dos acontecimentos no passar dos tempos, enriquecida pela vida e pelos
saberes tradicionais no contato com a natureza. […] O livro também visa
suprir a falta de material didático para a alfabetização e para a leitura de
pessoas já alfabetizadas em kaingang. O desejo é que sirva como apoio ao
processo de ensino e aprendizagem, tendo boa utilização pelas pessoas
leitoras nas suas descobertas, na língua kaingang e na tradição cultural.
(LUCKMANN, FALCADE, 2008, p. 8-9)
O apoio prestado para suprir a falta de material didático também se estabeleceu no
trato de temas e abordagens que perpassaram a dimensão cultural, mas em que a comunidade
indígena também esteve envolta e, sobretudo, disposta a contribuir com o debate. Desta
forma, o material “Cultura, ambiente e biodiversidade”
Foi elaborado com o intuito de fundamentar teoricamente o tema e de
promover uma educação diferenciada através da vivência prática de alunos e
professores em questões sobre meio ambiente e cultura indígena, numa
perspectiva de contribuição para alternativas mais sustentáveis e adequadas
para as etnias. (BALLIVIÁN, 2011, p. 12)
Outro propósito no apoio e promoção para a publicação de materiais produzidos pelas
comunidades escolares indígenas foi o de estimular a interculturalidade a partir da EEI. A
revitalização de sentidos e significados presentes no artesanato kaingang e guarani, por
exemplo, disposta na publicação do livro “Artesanato Indígena”, serviu na abordagem do
tema nas escolas indígenas, no estímulo da prática do artesanato e suas expressões culturais e,
também, pôde contribuir para o conhecimento de valores e formas de expressão da cultura
indígena.
121
Neste sentido, o livro busca preencher uma demanda para o ensino
diferenciado das escolas indígenas e contribuir também para que as escolas
não-indígenas possam cumprir a lei federal nº 11.465 de 2008 que torna
obrigatória a inclusão da temática "História e Cultura Afro-brasileira e
Indígena" nos currículos escolares na rede de ensino pública e privada.
(BALLIVIÁN, 2011b)
Ressalta-se, contudo, que as contribuições nas publicações foram limitadas. Conforme
manifesto por docentes indígenas, a principal carência se constitui na produção de material
didático para a alfabetização e leitura kaingang. Conforme Inácio (2010, p. 39), a carência de
material didático próprio compromete a EEI como uma educação própria.
Atualmente, a carência de material didático apropriado para ministrar o
ensino na língua kaingang também tem sido responsável pela falta de
qualidade do ensino bilíngue. Tenho certeza que está havendo um equívoco
na implementação do ensino diferenciado, que deve priorizar a abertura para
se trabalhar a língua e a cultura, como forma de resgate, preservação e
fortalecimento da mesma dentro da escola, e não para acontecer de qualquer
jeito, sem responsabilidade. A Escola Indígena deve ser Bilíngue, Específica,
Diferenciada e de QUALIDADE! [grifo da autora] (INÁCIO, 2010, p. 39)
A situação é agravada, ainda conforme Inácio, pela presença de não indígenas no
espaço das escolas indígenas. A presença de não indígenas, sobretudo na gestão escolar,
impede a autonomia, a elaboração própria da comunidade escolar indígena da EEI. Segundo
Inácio (2010, p. 39), “tais profissionais/diretores, embora atuantes em escolas indígenas, ainda
permanecem ‘presos’ às normas que regem as escolas não-indígenas, inviabilizando assim, a
especificidade da escola indígena, garantida por lei para a criança kaingang”. Para se
conseguir lograr o êxito da gestão autônoma da EEI, Inácio reivindica:
O Estado precisa assumir a formação dos professores indígenas, em cursos
específicos, ensino médio e superior, de maneira que estejam aptos a não só
preparar o material didático-pedagógico que as escolas indígenas tanto
necessitam, como efetivamente exercer o magistério indígena (INÁCIO,
2010, p. 39).
A reivindicação de Inácio é corroborada pela constatação de Matte (2009, p. 108), de
que no Rio Grande do Sul ainda não se constituiu um curso específico para a formação
universitária indígena, como os propostos pelo MEC, na modalidade do ProLInd. 92 Ambas
autoras reconhecem que houve avanços na EEI, porém persistem as carências e inconclusões
na implantação da EEI.
92
Programa de Licenciatura Indígena, programa de formação superior de docentes indígenas. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12258:prolind&catid=242:prolin
d&Itemid=497> Acesso em: 24 out. 2011.
122
O suprimento parcial na formação superior específica pode ser atendido pelo “Curso
de Graduação Licenciaturas dos Povos Indígenas do Sul da Mata Atlântica: Guarani,
Kaingáng e Xokleng”, ora em curso. O curso superior está vinculado institucionalmente ao
Departamento de História da UFSC e é financiado pelo PROLIND/SECAD/MEC, UFSC e
parcerias. Para a coordenação e gestão do curso instituiu-se a “Comissão Interinstitucional
para Educação Superior Indígena” (CIESI), da qual participam representantes indígenas
guarani, kaingang e xokleng. As instituições membro do CIESI são Comissão de Apoio aos
Povos Indígenas (CAPI), Conselho Indigenista Missionário (CIMI-SUL), Conselho de Missão
entre Índios (COMIN), Laboratório de História Indígena (LABHIN), Museu Universitário
Prof. Osvaldo Rodrigues Cabral (MU), Secretaria de Estado da Educação (SED/SC).93
Conforme Schwingel (2011),
O curso foi gestado ao longo de quatro anos pela Comissão Interinstitucional
para Educação Superior Indígena (Ciesi), formada por representantes do
poder público como a UFSC, a Secretaria de Estado da Educação, e
instituições não-governamentais, como o Conselho Indigenista Missionário
(Cimi), o Conselho de Missão entre Povos Indígenas (Comin) e a Comissão
de Apoio aos Povos Indígenas (Capi), além da presença indígena durante sua
formulação.
Além de participar institucionalmente do CIESI, a equipe local do COMIN-Guarita
presta assessoria e acompanhamento pontual aos discentes das etnias kaingang e guarani, da
TI Guarita, sendo esta a comunidade com maior número de estudantes no curso, com dezoito
ingressos. Desta forma, busca-se dar seguimento à disposição do COMIN em contribuir no
avanço da EEI, que constantemente apresenta desafios e demandas, oriundas das carências
ainda existentes na EEI, mas, especialmente, pela autonomia, autodeterminação e
protagonismo das comunidades indígenas. Ainda que pese a morosidade na implantação de
políticas diferenciadas e adequadas à EEI, a ação missionária indigenista do COMIN estipula
que a mesma sucumbirá diante do protagonismo das comunidades indígenas da TI Guarita e
das demais comunidades dispersas pelo Rio Grande do Sul e Brasil.
93
Programa Licenciatura Intercultural Indígena do Sul
<http://licenciaturaindigena.ufsc.br/> Acesso em: 29 set. 2011.
da
Mata
Atlântica,
Disponível
em:
3 REFLEXÕES SOBRE A TRAJETÓRIA INDIGENISTA NA EEI
O primeiro capítulo expôs características históricas e culturais do povo kaingang,
concernentes aos grupos e comunidades fixadas no espaço geográfico que atualmente
constitui o território geopolítico do Estado do Rio Grande do Sul, enfatizando as referências
de interesse à região dos rios Guarita e Turvo. O capítulo segundo expôs a historiografia da
IECLB, uma igreja que confessa os preceitos teológicos da reforma protestante na Alemanha
no século XVI e que se estabeleceu e se institui no Brasil a partir da chegada de grupos e
famílias de imigrantes europeus no século XIX. A chegada dos imigrantes estabeleceu, num
primeiro momento, situações de conflito e disputas pela posse e domínio territorial.
Posteriormente, com a organização eclesial, os descendentes dos imigrantes passam a
conceber e realizar ações missionárias junto a comunidades indígenas. Somente na segunda
metade do século XX estabeleceram-se ações missionárias de maior organização e
sistematização. A ação iniciada na década de 1960 se constituiu em uma ação especializada,
estimulando a criação, em 1982, de organismo na estrutura eclesial, específico para a missão
entre índios, o COMIN. O órgão coordena e gere a ação missionária indigenista da IECLB há
três décadas.
O presente capítulo apresenta uma abordagem sobre uma característica socioeclesial
da constituição da IECLB e a atuação na educação escolar junto aos kaingang na TI Guarita,
dito como o eixo fundamental na ação missionária indigenista. Quando os imigrantes
europeus de confissão religiosa evangélica luterana desembarcaram no Rio Grande do Sul,
trouxeram a preocupação da educação escolar como herança da reforma protestante na
bagagem da viagem. Da mesma forma, pode-se afirmar que procederam nas tentativas e no
estabelecimento de ações missionárias entre os kaingang. Nas ações empreendidas no início
do século XX, e nas ações fundadas na década de 1960 entre os kaingang, a criação de uma
escola foi concebida como forma de aproximação e mudança da realidade kaingang.
Inicialmente, as pretensões da escolarização foram base para instigar e promover a catequese
cristã nas comunidades kaingang. Contudo, as transformações sociais e da organização
indígena, nas últimas três décadas, também transformaram a ação missionária indígena da
igreja. A ênfase na educação escolar persiste, porém agora pautada em processos e dinâmicas
protagonizadas pela comunidade kaingang, visando à autodeterminação, interculturalidade e
cidadania.
124
Serão abordadas as questões inseridas na educação escolar na qual a IECLB e COMIN
se imbuíram, inicialmente vinculado à proposta de integração indígena à sociedade brasileira,
onde se instituiu o bilinguismo como característica da educação escolar. Questiona-se sobre
os propósitos e intenções da educação bilíngue, refletindo sobre algumas manifestações e
questões oriundas de pensadores e educadores kaingang. Também sobre a proposta da
interculturalidade, que estabelece posteriormente o desafio de não servir de nova colonização
e tentativa de integrar as comunidades indígenas aos preceitos e valores da sociedade não
indígena.
3.1 O BILINGUISMO E A AUTONOMIA NA EEI
A instituição da educação escolar entre os kaingang da TI Guarita é recente, sendo
instituída pelo SPI, na década de 1940, concomitante à instalação do Posto do SPI na
localidade de São João do Irapuá. Conforme Veit (1997, p. 136), a instalação da escola fora
uma solicitação da própria comunidade kaingang. O fato de a solicitação ser condizente ao
desejo da comunidade kaingang ou não não foi objeto de reflexão, mas caracteriza o fato de
que a instituição escolar pode não ser estranha à comunidade indígena. Como demonstrado no
primeiro capítulo, anterior à institucionalização do SPI na TI Guarita, os antepassados destes
já haviam conhecido ou recebido promessa de instalação de escola na comunidade.
Primeiramente, quando da participação de antepassados nas reduções das missões jesuíticas e,
posteriormente, nos aldeamentos no século XIX e no período da ocupação colonizadora da
região.
Ainda que pese a distância temporal entre as gerações que experimentaram tais
instituições de educação escolar, concebe-se como recente o histórico da educação escolar
entre os povos indígenas. A educação escolar foi e é consequência da frente colonizadora não
indígena e a disputa territorial que se estabeleceu desde então. De acordo com uma avaliação
geral da implantação da educação escolar entre comunidades indígenas, além da consideração
de ser um processo histórico recente, também se estabeleceu o propósito de “desarticular a
identidade das etnias, discriminando suas línguas e culturas” (FREIRE, 2004, p. 11).
Referente à implantação da educação escolar no atual território geopolítico do Estado
do Rio Grande do Sul, considera-se o ano de 1737, através da ação das missões jesuítas, como
marco inicial. Conforme o teólogo e historiador Martin Dreher (2008, p. 12-3), uma
publicação de Marquês de Pombal em 1757 tornou-se referência e fundamento da educação
125
escolar no Brasil, conseguintemente ao Rio Grande do Sul, também em relação aos povos
indígenas.
O Directorio estava profundamente preocupado com a “civilidade” dos
índios, mas lançou também bases para a compreensão futura da educação no
Brasil e, em decorrência, para o Rio Grande do Sul. […] O programa de
civilização e cultura dos índios, estabelecido por Pombal, é roteiro de
aculturação forçada, que começa proibindo os indígenas de utilizarem a
própria língua. Com o concurso da escola, acontecerá a abolição de costumes
indígenas, de sua identidade cultural e espiritual. Abolido será seu sistema
econômico. Abolida será sua identidade étnica pela mestiçagem forçada com
os brancos.
A educação escolar tem como propósito a “civilização” da sociedade em formação no
Brasil. Tal propósito também foi alçado na instituição da educação escolar aos povos
indígenas, onde serviu de instrumento a pretensa aculturação e integração forçada dos povos
indígenas à sociedade nacional. Ressalta-se que a primeira legislação sobre a educação escolar
no Rio Grande do Sul, no ano de 1777, estabelece a rotina das crianças na Aldeia dos Anjos,
atualmente Gravataí, constituída a partir da transferência de grupos de guarani, em
decorrência da extinção das reduções jesuíticas, decretada por Marquês de Pombal. A
legislação estabeleceu, com veemência, o impedimento do uso da língua guarani entre as
crianças, inclusive no diálogo familiar, decretando: “todo menino que em qualquer ocasião
falar a língua guarani será castigado e todo o que acusar terá um perdão” (apud DREHER,
2008, p. 14). A imposição no uso do português aos indígenas se constituiu no desmerecimento
da identidade étnica desse grupo. A uniformização linguística com o uso da língua
portuguesa, implantada por Pombal, estabeleceu o idioma português como veículo
integracionista entres os diferentes povos que constituíram a sociedade nacional brasileira.
Conforme Dreher (2008, p. 14), a proposição do Marquês de Pombal, no século XVIII,
constituiu as “raízes ideológicas” que assolaram as escolas estabelecidas a partir dos
assentamentos de imigrantes europeus no Rio Grande do Sul no século XIX e estiveram em
crise nas décadas de 1930 e 1940, pois não se admitira a pluralidade cultural e linguística. A
instituição da educação escolar junto às comunidades indígenas e, em determinadas situações,
noutras comunidades étnicas ocorreu na promoção da extinção da diversidade linguística e da
tradição oral, tendo a escola a função de promover a “desaprendizagem” cultural.94 O
processo da instalação da educação escolar entre as comunidades indígenas independeu do
94
Freire (2004, p. 23) afirma que “a escola pode ter sido o instrumento de execução de uma política que
contribuiu para a extinção de mais de mil línguas” entre os povos indígenas no Brasil.
126
regime governamental. O etnolinguísta e jornalista Bessa Freire (2004, p. 23) afirma que a
escola,
Tanto no Império como na República, foi a principal instituição executora de
uma política educacional, cujo o objetivo principal era eliminar diferenças,
despojando os grupos étnicos de suas línguas, de suas culturas, de suas
religiões, de suas tradições, de seus saberes, incluindo, entre esses saberes,
os métodos próprios de aprendizagem.
Constata-se, contudo, que as tentativas de estabelecer a educação escolar através da
catequese jesuíta ou nos aldeamentos entre os kaingang no período anterior ao século XX não
obtiveram êxito. A educação escolar também teve o propósito de instigar a aprendizagem da
leitura e da escrita em português para que alcançassem a “civilidade”. Nonnenmacher (2000,
p. 46) justifica o insucesso das escolas entre os kaingang devido aos “métodos rígidos do tipo
tradicional da civilização européia”. Gasparetto (2006, p. 21) justifica o insucesso ao fato de
que o modelo econômico-social dos kaingang diferia do modelo dos guarani, estes com maior
disponibilidade à agricultura e de menor mobilidade espacial. Destaca-se que tais tentativas se
estabeleceram concomitantemente às propostas de redução e fixação de aldeamentos, porém
ressalta-se que a demarcação do Toldo Guarita, no início do século XX, ocorreu de forma
distinta. A demarcação territorial não foi acompanhada da instalação de escola no toldo.
Bonotto (2004, p. 96) informa que os indígenas que buscavam a educação escolar se
deslocavam até as vilas de São João do Irapuá e São João nas décadas de 1920 e 1930.95
Somente após o governo federal, com SPI, assumir a gestão dos toldos é que ocorre a
instalação de escola no Toldo Guarita na década de 1940 (VEIT, 1997, p. 135).
A instalação da escola no Posto Indígena Guarita pelo SPI na década de 1940
prosseguiu o propósito da integração das comunidades indígenas à sociedade nacional.
Mendoza (2005) demonstrou, em tese de doutoramento, como a participação da escola nas
festividades alusivas ao Dia do Índio e em passeatas cívicas cumpriu com o objetivo a que
designou como de “corporalização nacional”. Na análise de educandários entre indígenas,
analisa a Escola Alípio Bandeira,96 no Posto Indígena Guarita, e a programação alusiva ao Dia
95
Bonotto concentra as informações do Setor Pau Escrito, um dos setores/comunidades kaingang da TI Guarita,
situado nas proximidades da sede de Miraguaí/RS (o território da TI Guarita não abrange o município de
Miraguaí, os limites da TI Guarita também são os limites entre os municípios de Miraguaí e Redentora). No
entanto, as informações podem ser extensivas a todo Toldo Guarita, pois somente após o SPI assumir a
administração do toldo é que se instalou uma unidade escolar.
96
A nomenclatura de “Escola Alípio Bandeira” é referente a um dos idealizadores do SPI, em 1910, ao lado de
Cândido Rondon e outros, que criaram o órgão de assistência aos indígenas sob o idealismo positivista.
127
Figura 7: Casas, depósitos e escola do Posto
Indígena Guarita (1944)
Figura 8: Grupo de crianças kaingang, alunas da
Escola do Posto Indígena Guarita (1947)
Fonte: Acervo digital Museu do Índio (Disponível em: <http://base2.museudoindio.gov.br/>)97
do Índio de 1944.98 Na análise, destaca que “o dia da celebração começava com o
hasteamento da bandeira e a entonação do hino nacional e terminava do mesmo jeito. Nos oito
dias de duração que teve a festividade, nesse posto indígena, a repetição do ritual do
hasteamento e entonação do hino se levou a efeito, pelo menos uma vez ao dia” (2005, p. 801). O propósito do Setor Educacional do SPI,99 com a instalação das escolas nos postos
indígenas como do âmbito da “educação rural” e o “ruralismo”, foi o de persuadir as crianças
e toda a comunidade às técnicas agrícolas avançadas, na perspectiva da mecanização e
desenvolvimentismo das décadas de 1940 e 1950 (MENDOZA, 2005, p. 165-167). O objetivo
era “incorporar as comunidades indígenas ao mercado de trabalho, através de métodos, que,
para dizer o mínimo, eram de caráter paternalista e clientelar”, na percepção de que a melhor
“educação é o trabalho” (Idem, p. 167). O propósito, como em períodos anteriores, se pautou
na concepção de ter na escola apoio para alterar o sistema econômico tradicional kaingang,
visando à agricultura intensiva, mecanicista e comercial, sendo os indígenas instigados a
assumirem o modo de vida de lavradores ou trabalhadores rurais. Pelo que consta, o cenário
97
Acervo do Museu do Índio. Figura 8: Disponível em: <http://base.museudoindio.gov.br/memoteca/srav/
fotografia/unesco_ftp/17d_gua/images/spiir7gua04.jpg> Acesso em: 10 nov. 2010. Figura 8: Disponível em:
<http://base2.museudoindio.gov.br/cgi-bin/wxis.exe?IsisScript=phl82.xis&cipar=phl82.cip&lang=por>
Acesso em: 10 nov. 2010.
98
Mendoza (2005) analisa relatórios e documentos sobre o tema nos arquivados no Museu do Índio. O Museu do
Índio (www.museudoindio.gov.br) é órgão científico-cultural da Fundação Nacional do Índio, criado em 1953
pelo antropólogo Darcy Ribeiro. Mendoza também demonstra que as ações nos postos indígenas tinham por
objetivo transformar a pessoa índia em “trabalhador rural”, sob as características do “desenvolvimentismo”,
ressaltando que entre as comunidades kaingang “essa transferência de recursos tecnológicos e de capacitação
agrícola teve algum sucesso” (p. 165-6), servindo de referência e instação para programas semelhantes noutros
posto indígenas do Brasil. Com base no documento do SPI, datado de 1958, Mendonza constata que as
referências no Rio Grande do Sul eram os postos indígenas de Ligeiro e Guarita, citados como modelos à
Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, no intuito de se estabelecer lavouras
mecanizadas em postos indígenas da Amazônia (p. 221-226).
99
Nas décadas de 1940 e 1950, o SPI era órgão vinculado ao Ministério da Agricultura.
128
persistiu na década de 1960, quando se iniciaram as atividades da Escola Evangélica Indígena
em Guarita. A extinção do SPI e a criação da FUNAI (1967) também não representaram
alteração no cenário educacional (VEIT, 1997, p. 136-7).
A instalação da educação escolar, além da proposição de coadunar esforços em
transformar os kaingang em trabalhadores rurais, almejou a integração à sociedade brasileira.
O ensino era ministrado em português, pois não havia interesse na preservação linguística
pelo órgão indigenista oficial. Contudo, a inserção da missão entre índios promovida pela
Comunidade Evangélica de Tenente Portela – IECLB, sob a mentoria do P. Norberto
Schwantes, na década de 1960, proporcionou o caráter pioneiro de um projeto oficial de
educação escolar indígena bilíngue! (ALBUQUERQUE, 2008, p. 86).100 Quando se firmou
convênio entre a IECLB e a FUNAI, em 1968, com o propósito de prestar “formação de
monitores bilíngues” para capacitação e instrumentalização de membros da comunidade
kaingang para atuarem nas escolas dos postos indígenas (VEIT, 1997, p. 136-7), constituiu-se
o CTPCC, no qual o currículo e concepções pedagógicas foram definidos por Ursula
Wiesemann, linguista vinculada ao SIL, que mantinha vínculo institucional com a FUNAI,
para o estudo e grafia das línguas indígenas no Brasil. Wiesemann (2002, p. 7) afirma que, a
partir de 1958, sistematizou e organizou a grafia da língua kaingang, que culminou numa
publicação em 1971 sob o título “Dicionário Kaingáng-Português e Português-Kaingáng”.
Além de um léxico, a publicação também apresentava os cinco dialetos kaingang, “o alfabeto
e as regras ortográficas aprovadas pelos ‘monitores bilingües’ da época, assim como também
uma descrição dos tipos de palavras, que constituem a gramática Kaingang”. Estabelecia-se,
então, um padrão ortográfico à língua kaingang, com sinais gráficos latinos.
Assim, o CTPCC auxiliou na proposição da formação e estímulo ao bilinguismo e
contribui decisivamente na fixação da escrita kaingang por sinais latinos. Neste sentido, o
pensamento de Claude Lévi-Strauss sobre “A lição da escrita”, referente ao experimento junto
aos nambiquaras, descrito em Tristes Trópicos (1993, p. 278-88), serve de paradigma na
análise do evento da fixação da escrita kaingang. O relato sobre o evento entre os
nambiquaras decorre do episódio em que o cacique estabelece uma comunicação escrita que
possibilitou a Lévi-Strauss (1993, p. 280) compreender “a função da escrita”. Ao refletir sobre
o episódio, o antropólogo concebe que “a posse da escrita multiplica prodigiosamente a
100
Albuquerque (2008, p. 86) afirma que o projeto oficial da FUNAI também previa ações semelhantes entre os
Guajarara (Maranhão); Karaja (Goiás e Mato Grosso); e Xavantes (Goiás e Mato Grosso), também executados
a partir de 1972.
129
aptidão dos homens para preservarem os conhecimentos” (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 282).
Contudo, o antropólogo constata que o período histórico dos maiores feitos da humanidade é
o advento do Neolítico; ao dominar a prática da agricultura e a domesticação de animais, a
escrita era desconhecida. Especula, então, que a própria escrita caracteriza-se como uma
consequência da revolução neolítica. Também pondera que o aparecimento da escrita se
caracteriza como fato histórico recente e está relacionado, sobretudo, ao surgimento de
sistemas políticos e à hierarquização em castas e classes durante a formação de cidades e
impérios (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 283). O antropólogo considera duas exceções nessa
proposição: a África indígena e o império Inca no período pré-colombiano. Salvo as exceções,
entendidas como exemplos que verificam a hipótese, Lévi-Strauss (1993, p. 284) sentencia:
“se a escrita não bastou para consolidar os conhecimentos, talvez tenha sido indispensável
para fortalecer as dominações”. Justifica a hipótese ao analisar e ponderar que na ação dos
Estados europeus no século XIX ocorre a imposição da instrução concomitante à extensão do
serviço militar e à proletarização das massas. A instrução, ou educação escolar, se torna
veículo para o domínio dos cidadãos e cidadãs pelo poder instituído. Faz-se necessário ler
para que ninguém ignore a lei, conclui Lévi-Strauss.
Referente ao CTPCC, a proposição do saber ler ocorreu na grafia latina da própria
língua dos monitores em formação, o kaingang. A proposição foi audaciosa, de acordo com a
perspectiva de Lévi-Strauss, uma vez que propôs o letramento na dinâmica bilíngue,
português e kaingang. A capacitação de monitores bilíngues visou à atuação na instrução das
crianças e jovens kaingang. De acordo com a hipótese de Lévi-Strauss, de que a escrita
fortalece a dominação, reflete-se que a fixação da língua kaingang em sinais gráficos latinos,
portanto, estranhos e oriundos doutra cultura e sociedade, tornou-se uma nova tentativa de
dominação.
A fixação da língua kaingang em grafia latina pode ser caracterizada como uma nova
tentativa de dominação, exemplificada na conclusão de se ter uma só língua escrita, apesar
das cinco variantes dialetais kaingang, ou seja, uniformizar a escrita kaingang. Wiesemann
(2002, p. 7), na apresentação da terceira edição do “Dicionário Bilíngüe Kaingang –
Português” afirma que tal proposição é manifestada pelos próprios kaingang. Contudo, a
padronização ou uniformização de uma língua, mesmo que em sua forma escrita, caracteriza a
pretensão de um grupo social sobre outro. Obviamente que a padronização ou uniformidade
linguística auxilia na produção de material didático às escolas, bem como na massificação da
comunicação. O questionamento se estabelece de tal maneira sobre a diversidade
130
sociolinguística, constituinte do povo kaingang, que se constituiu em espaços geográficos
determinados, o que potencializou as culturas locais, sem descaracterizar a cultura kaingang
como um todo.
O intento da dominação na proposta de uniformização de Wiesemann, potencializada
na formação de monitores bilíngues pelo CTPCC, difere da disposição manifesta na
publicação do livro Ẽg jamẽn kỹ mũ – Textos Kaingangb (1997).101 Na apresentação do livro,
reflete-se “sobre os erros de escrita” (p. 24-27), onde se afirma que ainda nesse período a
escrita e fala são diversificadas, sem normatização, mas que os “diversos diletos convivem em
pé de igualdade” (p. 25). Propõe-se aos docentes a tarefa de realizar as adequações
linguísticas de acordo com a variante linguística local. Sobre a normatização linguística,
afirma-se que a mesma deve ser resultante de um processo.
Com o tempo, se o Kaingáng [sic] se desenvolver com uma língua escrita, e
daí emergir algo como uma norma lingüística, isso terá sido resultado de
uma intensa atividade de escrita desenvolvida na escola e fora dela, pelos
professores, pelas crianças e por outros membros da comunidade (VYJKÁG
et al., 1997, p. 26).
A manifestação demonstra outra postura frente ao bilinguismo e à fixação da escrita
kaingang. A primeira se estabelece na dinâmica processual, ao longo dos tempos, na
experimentação e no exercício contínuo. A segunda, que o protagonismo no processo se
constitui coletivamente, por diferentes setores sociais das comunidades kaingang. Ou seja,
concebe-se o uso da escrita kaingang, com sinais gráficos latinos, e a normatização da escrita
e fala kaingang, mas como um processo coletivo, num fluxo de interação e domínio coletivo
kaingang.
A proposição exposta na publicação em apreço demonstra outra concepção de
bilinguismo, em referência ao proposto no convênio da IECLB e FUNAI, coordenado pelo
SIL no CTPCC. Naquela oportunidade, o objetivo do bilinguismo era estabelecer uma ponte
de transição dos falantes kaingang à incorporação do português como língua de uso coloquial
nas comunidades kaingang e, por consequência, a integração da população na sociedade
nacional. Essa proposição se evidenciou na publicação de um artigo de Barbara A. Newman
(1975, p. 67-75), no Informativo FUNAI, sob o título “Ensino bilíngüe – uma ponte para a
integração”. Newman concebe que a educação bilíngue, entendida como uma ponte
101
O livro é resultante da elaboração de textos, sendo os autores e autoras participantes do Curso de Formação de
Professores Indígenas Bilíngues para o ensino de 1ª a 4ª série, realizado entre 1993 e 1996. O curso foi
coordenado pela APBKG, ONISUL, UNIJUÍ e COMIN. O livro foi publicado pelo MEC/PNUD.
131
linguística, tornar-se-ia um instrumento aculturativo que propõe a possibilidade da integração,
mas que permite retornar à própria cultura. Porém, o intento maior se constitui em estabelecer
que o mesmo “amor” à própria cultura se transforme em base para “desenvolver o mesmo
amor para com sua herança como brasileiro e participante na vida nacional” (1975, p. 69).
Para se alcançar o objetivo do ensino bilíngue, define-se estabelecer as escolas no seio
das comunidades indígenas, inseridas e vinculadas com a realidade local. Também corrobora
a disposição em valorizar a língua e cultura das comunidades indígenas, como estímulo e
promoção da estima. Esta disposição, porém, parece ser discrepante em relação à proposição
de estabelecer uma ortografia fixa da língua indígena, ou seja, a padronização linguística, para
se possibilitar a confecção e publicação de material didático na língua indígena. Questiona-se
sobre a possibilidade efetiva de valorizar a realidade e a estima de determinada comunidade
indígena, propõe-se a padronização e uniformização linguística. Apesar de tais proposições,
de certo respeito e valorização da realidade cultural da comunidade indígena, Newman (1975,
p. 72) também afirma que, durante o curso de treinamento de monitores bilíngues, “o uso da
língua indígena assume proporções definidas que os seguintes objetivos: […] preparar os
educandos para que possam cooperar nas suas comunidades para a integração na sociedade
brasileira”.
O propósito da integração com a cooperação de monitores bilíngues se evidenciava na
apresentação do Programa aplicado pelo monitor bilingüe. O programa apresenta o currículo
a ser seguido pelos monitores bilíngues no decorrer dos quatro primeiros semestre da
educação escolar. O currículo, como Newman (1975, p. 72) o apresentou, propunha
[…] uso quase exclusivo da língua indígena no primeiro semestre e
gradativamente, vai sendo introduzida a aprendizagem na língua nacional,
até o término da 2ª série. Observa-se que somente no último semestre o
educando começa a se alfabetizar na língua nacional; até este ponto ele vinha
sendo alfabetizado na língua materna, aprendendo oralmente o Português.
Evidencia-se que o uso da língua ocorreu como transição ao português. Estas
propostas eram gestadas e geridas pela FUNAI, denunciando que os indígenas não
participavam de tais processos, como se constata na publicação da Portaria 75/N da Funai, de
07/07/1972, que definiu os critérios na seleção da variante dialetal ou a padronização
linguística para a grafia das línguas indígenas a serem ensinadas nos cursos de monitores. A
referida portaria propunha que a grafia devia facilitar a produção de material didático e que
“deve ser a mais aproximada possível do português”, e atribuía ao Departamento Geral de
Assistência da FUNAI a composição de grupo de colaboradores técnicos para “examinar e
132
propor normas para a grafia das publicações em língua indígena” (NETTO, 1994, p. 47-8).
Essas resoluções evidenciam que as definições eram estabelecidas de forma alheia à
comunidade indígena.
O propósito consistia em que os monitores bilíngues apreendessem as técnicas de
escrita em sua língua tradicional para transpô-las, posteriormente, ao aprendizado da língua e
escrita portuguesa. O português se fazia presente desde o primeiro semestre, mesmo que de
forma oral, simultaneamente à aprendizagem da escrita da língua indígena, até suplantar esta.
As consequências e resultados do programa desenvolvido no CTPCC foram
perceptíveis e evidenciados anos mais tarde pelos próprios monitores bilíngues. Este fato foi
relatado pela monitora bilíngue Andila Inácio Belforte (2002, p. 127): “Foi preciso passar 10
anos para percebermos que não era essa escola que precisávamos, estava nos despindo da
nossa cultura, e não era isso que queríamos”. A autora também revela qual a realidade que
desejava enfrentar e qual o apoio desejado no processo da educação bilíngue.
Enquanto queríamos as garantias do ensino diferenciado para conservar a
nossa cultura, não tínhamos quem nos ajudasse nas nossas dificuldades do
ensino bilíngüe, propriamente dito, o que ainda estava segurando pelo menos
a língua, e eu via que os professores indígenas, pelas dificuldades
enfrentadas na alfabetização da língua e por falta de orientação e material
didático apropriado, estavam deixando a língua e alfabetizando em
Português, por ter mais recursos de que lançar mão (BELFORTE, 2002, p.
128).
A construção da educação escolar bilíngue esbarrava em questões práticas, como a
falta de material didático e orientação pedagógica específica. Mas também esbarrou na
contratação efetiva dos monitores bilíngues, quando a responsabilidade da educação escolar
indígena foi assumida pelo poder público municipal ou estadual, pois o certificado fornecido
pelo CTPCC não teve o reconhecimento outorgado pelo Conselho Estadual de Educação. Para
lograr a contratação, necessitavam submeter-se à prova de regularização dos estudos de 1º
Grau ou Fundamental (BELFORTE, 2002, p. 127).
Dos desejos e anseios dos monitores bilíngues, formados no CTPCC, destaca-se a
afirmação de que ainda careciam de um ensino bilíngue propriamente dito. Compreende-se
essa afirmação, como já comentado anteriormente sobre o bilinguismo, de que a comunidade
indígena, tampouco o grupo de jovens que cursaram no CTPCC, não foram os protagonistas
na implantação da educação bilíngue.
Cabe destacar a compreensão sobre o que é ser bilíngue:
133
Alguém é bilíngüe enquanto tem razões para ser bilíngüe. […] O
bilingüismo nasce do encontro e contato de indivíduos de uma língua com
outros de outra língua. Sendo o bilingüismo uma característica do uso de
duas línguas, uso que tem uma história e se aplica em circunstâncias
particulares, dificilmente é o domínio equânime, equilibrado e completo de
duas ou mais línguas. O domínio de duas ou mais línguas nunca tem a
mesma extensão e profundidade no mesmo falante. O bilíngüe conhece
ativamente uma língua e conhece passivamente as outras (MELIÀ, 1979, p.
66).
O exposto evidencia que ser bilíngue implica no domínio ativo de uma língua, na qual
a pessoa é educada, e no domínio passivo de outra língua, com a qual estabelece as relações
sociais e o diálogo. Desta forma, constata-se o distanciamento conceitual da proposta de
bilinguismo desenvolvido no CTPCC, em que se pretendia a transição de uma língua a outra,
ou seja, a troca da língua de domínio ativo. Essa troca não foi articulada e nem conduzida pela
comunidade indígena para o encontro com a sociedade não indígena. A proposta foi da
sociedade não indígena para que o povo indígena substituísse a sua língua de domínio ativo.
Desta feita, a expressão “nossas crianças precisam aprender português, Kaingang elas
já sabem...”, manifestada na pesquisa de Silvio Coelho dos Santos (1975, p. 68-9) sobre o
trabalho dos monitores bilíngues nas escolas kaingang, torna-se, outra vez, relevante. A
manifestação evidenciou o anseio da comunidade kaingang em ser protagonista no
estabelecimento do bilinguismo kaingang-português. A comunidade kaingang desejava
manter a sua autonomia e autodeterminação diante das circunstâncias históricas e particulares
no encontro dos falantes kaingang e outras línguas, como o português.
A disposição gestada na década de 1970, da mobilização e articulação do movimento
indígena na busca da cidadania plena, se pautou como requisito básico na garantia ao
protagonismo e autodeterminação dos povos indígenas. Esses preceitos manifestavam-se na
década de 1970, como as expressões aqui apresentadas em relação à educação escolar
kaingang. O evento da promulgação da Constituição Federal em 1988 (CF 88) assegurou e
emancipou a diversidade sociocultural no Brasil. A promulgação da CF 88 é o rompimento da
concepção de “uma cidadania genérica e abstrata, artificialmente criada pela elite política, ao
mesmo tempo eurodescendente e eurocentrada” (SOUZA, 2002, p. 25). O reconhecimento da
cidadania plena aos povos indígenas resultou da mobilização indígena e setores populares ou
solidários da sociedade brasileira. As derivações consequentes da declaração de cidadania
plena e reconhecimento da diversidade étnica-cultural dos povos indígenas e, também, a
outros grupos sociais ou populações tradicionais, na promulgação da CF 88, se estabeleceriam
na constituição de políticas públicas distintas e diversificadas. Obviamente, com o
134
reconhecimento da cidadania plena aos indígenas, a existência de órgão oficial de tutela aos
indígenas é descaracterizada e inviabilizada. A FUNAI assume a função de órgão assessor da
União em relação às políticas públicas em benefício dos povos indígenas, sobretudo com a
responsabilidade dos procedimentos demarcatórios de terras indígenas e, por conseguinte, da
proteção e gestão territorial dessas.
Na década de 1990, ocorrem as regulamentações e a reorganização da política
indigenista oficial da República do Brasil, decorrentes da nova disposição da CF 88,
sobretudo as questões concernentes à educação escolar e ao atendimento à saúde dos povos
indígenas. Referente à educação escolar, ocorre a transferência de responsabilidade da
educação escolar indígena ao Ministério da Educação, através da publicação do Decreto
Presidencial nº 26/1991.102 A consequência prática dessa transferência de responsabilidade foi
assim descrita pelos docentes kaingang (PROFESSORES, 2006, p. 280-1):
Até o ano de 1990, a FUNAI era órgão mantenedor das escolas. Os
professores pertenciam à FUNAI e os demais cedidos pelo município de
Miraguaí e Tenente Portela.
Foi a partir da década de 90, em todo o país e em especial na Guarita foram
contratados os primeiros professores indígenas para atuar nas escolas e
principalmente ensinar a língua Kainkáng. Também em 1990, através de
Decreto Presidencial, o Presidente da República transferiu as
responsabilidades educacionais para o Estado. O Rio Grande do Sul, através
da Secretaria da Educação assumiu todas as escolas, firmando convênio
entre a FUNAI e Estado para a ação conjunta referente à educação indígena.
Este convênio está amparado no Decreto nº 26 de 04.03.1991 [sic] e portaria
Interministerial nº 559 de 16.04.1991.103
A mencionada Portaria Interministerial (Min. Justiça e Min. Educação) nº 559/91
institui os Núcleos de Educação Escolar Indígena (NEI’s), vinculados às Secretarias Estaduais
de Educação, em caráter interinstitucional, garantida a participação de entidades e
representações indígenas e entidades atuantes na educação escolar indígena. Os NEI’s se
propuseram a priorizar a formação e capacitação pedagógica de docentes indígenas e pessoal
técnico, visando à equiparação salarial ao magistério estadual. Definiu-se os critérios para a
regulamentação das escolas indígenas, bem como os projetos político-pedagógicos, calendário
escolar, sistemas de ensino, metodologias e pedagogias concernentes à realidade sociocultural
das comunidades indígenas (BONOTTO, 2004, p. 40).
102
Disponível em: <http://www.funai.gov.br/projetos/Plano_editorial/Pdf/Legisl/capitulo-09.pdf> Acesso em 01
set. 2011. O arquivo eletrônico (formato ‘pdf’) dispõe de uma coletânea da legislação pertinente à educação
escolar indígena. O Decreto nº 26/91 está disponível na p. 20 [523].
103
Os autores cometeram um equívoco na datação do Decreto nº 26/91, sendo a data correta 04 de fevereiro de
1991; ver nota anterior (Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/113987/decreto-26-91>
Acesso em: 01 set. 2011).
135
Tais premissas também se estabeleceram na nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394 (20/12/1996), que trata no artigo 79 sobre o
“provimento da educação intercultural às comunidades indígenas”. A LDB/96 instituiu o
reconhecimento pleno da educação escolar indígena, na perspectiva intercultural, pautada e
concebida pela comunidade indígena. A implantação da LDB/96 proporcionou a gestão da
educação escolar pela comunidade indígena, garantindo “a articulação dos sistemas de
educação para a oferta da Educação Escolar Indígena em forma bilíngüe e intercultural, de
modo que garanta a recuperação de sua cultura e sua história étnica” (KAINGANG, 2006, p.
202). A nova legislação educacional rompeu com a realidade exposta de que “os professores
pertenciam à FUNAI”. O rompimento evidenciou a possibilidade de a EEI ser concebida pela
própria comunidade escolar kaingang; a educação escolar passou “a pertencer à própria
comunidade kaingang”.
A escola bilíngüe, campo atuação de professores e intelectuais indígenas, é
por eles reconhecida enquanto espaço de residência cultural, de resgate das
tradições e das ciências originárias e locus de produção de novos saberes.
(FREITAS, ROSA, 2003, p. 21)
A relevância do destaque se justifica pelo fato de que foram os professores kaingang
que assumiram o ensino, “principalmente a língua Kaingáng”. As mudanças ocorridas na
década de 1990 potencializaram a compreensão de uma abordagem e concepção própria. Essa
compreensão também se destacou nas manifestações apresentadas da educadora kaingang
Andila I. Belforte, ao relatar a angústia sobre o bilinguismo aprendido no curso de monitores
bilíngues.
O NEI no Estado do Rio Grande do Sul foi implantado em 1996, “constituído
principalmente por conselheiros indígenas (professores bilíngües), muitos deles formados
com o apoio concreto e com o incentivo do COMIN e da IECLB ao longo das últimas quatro
décadas” (CATAFESTO, 2001, p. 14). Ainda que pese que na primeira metade das quatro
décadas tenha participado da política de integração, o antropólogo José Otávio de Souza
Catafesto (2001, p. 18) pondera:
Considerando todas as limitações daquela época, é possível reconhecer um
papel histórico dessas iniciativas junto à TI Guarita, porque delas se
seguiram críticas que, incorporadas e atualizadas pelo indigenismo da
IECLB, possibilitaram uma melhor estruturação do COMIN.
No processo de avaliação da ação missionária indigenista da IECLB e COMIN,
Catafesto (2001, p. 19) indicou o evento da retirada, pelas lideranças kaingang, da equipe da
IECLB/COMIN do projeto missionário instalado na TI Guarita, em 1985, como um dos
136
“fatores condicionadores” na transição entre o modelo missionário indigenista localizado nas
décadas de 1960 e 1970 para uma “diretriz mais itinerante de ação missionária”. Ou seja, a
atuação indigenista do COMIN também nas questões concernentes à educação escolar
kaingang da TI Guarita, fato evidenciado na participação do NEI, na década de 1990, quando
da participação e contribuições para uma política pública educacional condizente aos
preceitos e concepções propostos pelos representantes indígenas. Cabe destacar, também, que
o evento da retirada da equipe da TI Guarita em 1985 também estipulou uma mudança da
ação indigenista da IECLB/COMIN frente às políticas públicas.
Compreende-se que na primeira fase da ação missionária indigenista, anterior a 1985,
as ações contribuíram e, por vezes, executaram políticas públicas, como pode ser
caracterizado o convênio da IECLB e FUNAI, firmado em 1968, que instituiu o CTPCC e sua
atuação na década de 1970. Da mesma forma na instalação das escolas: a primeira, entre 1961
e 1964, próxima a Tenente Portela; e a segunda escola, no Setor Missão, próxima a Vila São
João (Redentora/RS). O CTPCC e as escolas foram instituições vinculadas à ação missionária
indigenista da IECLB, que executavam políticas públicas no lugar do órgão público
responsável, a FUNAI. Contudo, a não renovação do convênio com a FUNAI em 1981 e o
repasse da responsabilidade da Escola Marechal Rondon ao poder público configuraram a
alteração na ação missionária indígena em relação às políticas públicas em educação.
Portanto, a participação do COMIN no NEI-RS configurou uma postura diferenciada da
anterior, pois a ação indigenista não foi mais de substituição de órgãos públicos na execução
de políticas educacionais, mas de participação dos espaços públicos na definição e debate das
políticas públicas a serem instituídas.
Conforme evidenciado anteriormente, salienta-se que a participação em espaços
públicos da educação escolar indígena também se caracterizou no protagonismo dos
kaingang, muitos oriundos das ações missionárias indígenas da IECLB e COMIN. Catafesto
(2001, p. 14) ressalta o empenho da entidade, em todo o período, em promover o
“reconhecimento dos índios como sujeitos protagonistas de seu próprio destino”. O
reconhecimento do protagonismo indígena evidenciou a disposição de se ter os próprios
indígenas como agentes dos espaços públicos de implantação e debate das políticas públicas,
fato corroborado pela composição do NEI-RS, que contava com a participação de oito
indígenas (representantes comunitários e docentes), além de representante da FUNAI,
COMIN e representantes do governo estadual: SEC, CEPI, entre outros (RAVAZZOLO, s.d.,
p. 3).
137
A instituição da educação escolar indígena (inicialmente por obra dos
missionários, depois pelo Estado), em si, significou certamente a introdução
de elemento estranho à cultura Kaingang; entretanto, o domínio do idioma e
de alguns códigos culturais da sociedade envolvente, conforme reconhecem
os próprios índios, é fundamental para assegurar-lhes um mínimo de
autonomia na sua relação com os brancos. Por outro lado, há um esforço
intenso por parte do COMIN e das organizações indígenas para garantir que
o ensino das escolas indígenas contribua para a autodeterminação, e não para
a aculturação, através da publicação de cartilhas e da exigência de que seja
contemplada a cosmovisão, bem como os conhecimentos tradicionais dos
Kaingang, no currículo, inclusive o saber relativo à medicina e métodos de
cura. (ARMANI, 2001, p. 29-30)
O protagonismo na EEI da TI Guarita explicitou-se na afirmação de docentes kaingang
quanto ao fortalecimento e desafios enfrentados, mas tendo reconhecido o empenho e o
espaço junto à comunidade kaingang ao relatar que
Os professores indígenas começam a conquistar seu espaço na comunidade e
nas escolas indígenas se fortalecendo através de grupos de estudos para
construção de regimentos, elaboração de planos de estudos que contemplem
sua realidade indígena (PROFESSORES, 2006, p. 281).
A proposição e a disposição dos docentes kaingang no estabelecimento a
autodeterminação na organização da educação escolar na TI Guarita foi evidenciada pelo
grupo de professores. No prosseguimento das manifestações recentes, também se evidenciam
outras manifestações, que extrapolam a dimensão da autodeterminação, estabelecendo a plena
autonomia e gestão da EEI na TI Guarita. A manifestação pela autonomia plena na EEI é
explicitada por uma professora kaingang, em entrevista a Corrêa e Oliveira (2007, p. 48), em
estudo sobre o tema da cidadania e identidade cultural na TI Guarita, que declarou: “temos
projetos para que nas escolas só deem aulas professores índios para preservação da língua
Kaingáng”. A dimensão da língua kaingang se constituiu, então, como prioridade da EEI.
Contudo, reconhece-se a realidade diversificada na TI Guarita, de comunidades em
que predomina o uso da língua portuguesa e outras em que predomina o uso da língua
kaingang. Esta realidade evidencia a complexidade da EEI, que prima pelo bilinguismo. A
proposição evidenciada pelos docentes kaingang, da autodeterminação e da autonomia da
EEI, evoca a realidade das comunidades e a identidade cultural como elementos constituintes
da EEI na TI Guarita. Para tal autonomia, ainda há carências na formação para a gestão da
EEI, sejam administrativas ou pedagógicas. Bruno Kaingang (2002, p. 2004) afirma que,
supridas as carências, se “garantiria uma aproximação maior às especificidades de cada
comunidade Kaingang, com maior qualidade do ensino e com a prática do bilinguismo em
todas as escolas situadas nas comunidades”.
138
Retoma-se a proposição de Mélia (1979, p. 16), de que “alguém é bilíngüe enquanto
tem razões para ser bilíngüe. [...] O bilíngüe conhece ativamente uma língua e conhece
passivamente as outras”. A razão de ser bilíngue se estabelece pelo contato intercultural. A
título de reflexão, questiona-se se a proposição de ser bilíngue pode ser assumida pela
sociedade não indígena, que vive e transita dialogicamente com a comunidade kaingang da TI
Guarita. Aos kaingang envoltos com a EEI se estabelece o desafio de constituir uma educação
escolar bilíngue, de acordo com a manifestação da professora, em que a língua kaingang seja
a língua de conhecimento ativo e o português, de conhecimento passivo.
A preocupação com a preservação do idioma está presente, portanto, entre a
comunidade indígena e parte também daqueles que trabalham diretamente
com os índios (CORRÊA; OLIVEIRA, 2007, p. 49).
O exercício de magistério bilíngue demanda preparação e qualificação, como
explicitado pelos professores que se organizam em grupos de estudos. Contudo, para se
alcançar a plena autonomia na EEI, com o magistério nas escolas kaingang exercido somente
por docentes kaingang, os mesmos buscam a capacitação constante. Assim é relatada a
realização do curso Vãfy, ofertado pelo convênio FUNAI e universidades UNUIJUI e UPF. O
curso foi ministrado em período de recesso escolar, capacitou 40 docentes, sendo a formatura
da primeira turma em julho de 2005 (CORRÊA; OLIVEIRA, 2007, p. 49).
O exercício e concepção atual do magistério bilíngue evidencia o rompimento com a
lógica da transição. A disposição de autonomia e condução própria da EEI na TI Guarita
assume um elemento estranho à cultura e sociedade kaingang, a educação escolar. Contudo,
esta assumir a educação escolar não se constitui em espaço de integração a outra sociedade. A
disposição apontada pelos professores enfatiza o assumir a educação escolar coerente com a
realidade das comunidades kaingang e de autoafirmação da identidade cultural. A proposta da
educação escolar identificada e concebida a partir da realidade e cultura indígena, concebida
nas décadas de 1990 e 2000, demonstra a percepção dialógica ou intercultural da EEI. Tal
percepção dialógica e intercultural compreende a comunidade indígena como componente da
sociedade brasileira, com sua cultura e realidade própria. André Toral, na apresentação do
livro Ẽg jamẽn kỹ mũ, já referenciado acima, afirma a respeito que “os Kaingang, mesmo
sendo brasileiros, não deixaram de ser índios; sua cultura indígena, continua original e
diferente das de outros grupos indígenas e diferente da cultura dos brancos” (VYJKÁG, et al.,
1997, p. 21-2).
139
A disposição em insistir no ensino bilíngue também garante “um futuro favorável às
línguas indígenas”, pois impede que a escola se estabeleça como espaço aberto para
imposição da língua portuguesa como balizadora e constituinte das relações sociais da
comunidade. Ressalta-se que a tarefa do bilinguismo não cabe tão somente ao âmbito escolar,
pois “a escola, sozinha, não consegue, infelizmente, reverter tendências sociolinguísticas”
(SILVA, 2005, p. 106).
Nesta perspectiva, o bilinguismo pode ser compreendido como um espaço em que se
incorporam novos elementos à própria língua kaingang, sem que isso signifique o abandono
ou rompimento da língua. Tal proposição é compreendida na análise da incorporação de
palavras do português na língua kaingang, como constatado por Wiesemann (2002, p. 7-8):
“quanto mais o povo Kaingang se torna bilíngüe, usando tanto o Português quanto “ẽg vĩ”104,
mais palavras do Português são usadas naturalmente no contexto de “ẽg vĩ” e pronunciadas
como se fizessem parte dela”. Wiesemann incluiu algumas dessas incorporações na terceira
edição do Dicionário Bilíngue (2002). A compreensão estabelecida é a de que na dinâmica da
dialogicidade e da interculturalidade os processos não se estabelecem numa forma acabada e
definida. A língua kaingang, como apontado anteriormente, é uma língua com um processo
recente de padronização sistemática, aos moldes da grafia latina.
Ainda que pese a disposição de assumir a educação escolar e incorporar palavras em
português no ‘ẽg vĩ’, mesmo na dinâmica dialogal e intercultural, esta se estabelece numa
relação desigual entre duas sociedades, kaingang e não indígena, sobretudo no entendimento
de que a própria instituição escolar foi instituída entre as comunidades indígenas, de modo
particular entre os kaingang, como espaço de dominação e é estranha a estes. Albuquerque
(2008, p. 87) destaca que a EEI “está sujeita a um sistema educacional concebido e inspirado
por aquela sociedade, portanto, carregado de seus valores ideológicos”. A autonomia e
autodeterminação estabelecidas a partir da CF 88 alteram profundamente a estrutura de
modelo político, jurídico e social em relação aos povos indígenas, garantido o trato de
respeito como sujeitos e protagonistas, como sociedade de organização e cultura diferenciada.
Souza (2002, p. 25) afirmou que a tal reconhecimento e proposição constitucional há que se
acrescer a “grande dívida histórica da ‘sociedade nacional’ para com as populações
indígenas”, e para tanto faz se necessário reverter os processos e realidades “nas mínimas
coisas e nas circunstâncias em que for possível”. Isso implica em insistir no questionamento
sobre o bilinguismo duplo, tanto na sociedade kaingang como na dos não indígenas. Também
104
Ẽg vĩ – Nossas palavras (tradução do autor).
140
implica em estabelecer um sistema público de EEI, como definido na I Conferência Nacional
de Educação Escolar Indígena (CONEEI).
A I CONEEI, com eventos locais, regionais e nacional, realizou-se a partir de 2008,
conforme apresentação no documento final das conferências regionais.
As propostas aqui apresentadas resultaram das 18 Conferências Regionais de
Educação Escolar Indígena (COREEI) realizadas ao longo de 09 meses, em
várias regiões do Brasil com apoio e participação dos Povos Indígenas,
Ministério da Educação, Secretarias Estaduais e Municipais de Educação,
Fundação Nacional do Índio, associações indígenas e organizações nãogovernamentais. A I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena –
CONEEI é resultado da luta e reivindicação histórica do movimento
indígena para discutir e avaliar as políticas educacionais voltadas para os
Povos Indígenas (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 6).
A organização da CONEEI estabeleceu o desafio de oportunizar a participação de
todos os povos indígenas do Brasil e suas demandas das comunidades educativas sob o
desafio de “definir os rumos que as políticas públicas para educação escolar indígena devem
seguir nos próximos anos”, através de conferências locais e regionais (MINISTÉRIO DA
EDUCAÇÃO, 2009, p. 6).
No tocante à definição de rumos da EEI, apresentam-se a seguir alguns destaques, que
coincidem com a proposta do currículo intertranscultural (PADILHA, 2004), como
abrangente às postulações e reivindicações das comunidades escolares indígenas no exercício
da cidadania ativa e no fazer educacional e cultural.105
As conferências regionais de EEI evidenciaram a recomendação de que os projetos
político-pedagógicos das comunidades escolares indígenas fossem pautados pela
[…] autonomia, participação da comunidade, valorização dos saberes
tradicionais, especificidade de acordo com a realidade política e cultural de
cada povo. Além disso, chamaram atenção para a relação da Escola Indígena
com os projetos de futuro daquele povo e o comprometimento do PPP com
os projetos societários da comunidade. As Conferências debateram, também,
aspectos mais específicos do PPP, como calendário escolar, diários de classe,
avaliação; e itens referentes ao controle exercido pelas Secretarias de
Educação sobre as escolas das aldeias e que tem sido motivo de muitas
tensões (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 23).
O desejo e o anseio das comunidades escolares indígenas se pautam em serem sujeitos
e construtores do projeto político-pedagógico. É o se assumirem como autores e autoras da
educação cidadã na perspectiva cultural e própria de cada povo ou comunidade indígena. O
105
Para aprofundamento sobre o currículo intranscultural e EEI, indica-se o artigo: LUCKMANN, Sandro.
Currículo Intertranscultural e a Educação Escolar Indígena. In: SANTIAGO, Anna Fontella; et al. (orgs.).
Cultura, currículo e protagonismo social. Ijuí: Ed. Unijuí, 2010. p. 67-80 (Coleção trabalhos acadêmicocientíficos. Série Educação nas Ciências, 24).
141
processo específico de construção de ser sujeito também concebe que os processos de
avaliação e monitoramento do exercício da EEI devam se pautar por uma avaliação específica
e com “a participação da comunidade escolar na definição dos instrumentos e critérios
avaliativos” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 26).
Aliás, a prerrogativa de ser sujeito e partícipe da EEI se torna referência também nos
espaços institucionais e nas diferentes fases da educação escolar indígena, como apontado no
documento.
As Conferências Regionais chamaram a atenção para a necessidade de se
garantir nos espaços institucionais (regional e nacional) uma maior
participação das comunidades e representações indígenas em todas as áreas
da educação escolar indígena (planejamento, elaboração, execução,
monitoramento e avaliação) e dos projetos educacionais para gestão das
escolas indígenas (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2009, p. 27).
As reflexões e os debates nas conferências da EEI se aproximaram da proposta da
intertransculturalidade. Essa pleiteia que a escola seja inserida na realidade local e até
planetária, concebendo que o projeto político-pedagógico e o currículo escolar se constituem
na associação da educação escolar à educação comunitária, “aos movimentos sociais, à
‘energia emancipadora’ presente nesses vários espaços sociais e políticos, sem que haja
hierarquias sociais, culturais e humanas validadas pela escola” (PADILHA, 2004, p. 297). A
concepção é estabelecida na interação entre o mundo escolar e o mundo comunitário em que
esta se localiza e se insere. Esta dimensão remonta ao aspecto da vinculação entre educação e
cultura. A escola não se estabelece dissociada da realidade ou dos movimentos
emancipatórios, mas se nutre desses e os potencializa ao propagar que o fazer educacional e
cultural se torna fruto do reconhecimento dos sujeitos históricos e presentes em ambas as
dimensões. Da mesma forma, concebe-se que a EEI seja vinculada aos projetos societários e
ao protagonismo dos povos ou comunidades indígenas, conforme a reflexão de que
o exercício, no dia-a-dia, de professores, lideranças e seus aliados, para a
ressignificação da instituição escola, modelada historicamente pela negação
da diversidade sociocultural, em um espaço de construção de relações
interétnicas orientadas para a manutenção da pluralidade cultural, pelo
reconhecimento de diferentes concepções pedagógicas e pela afirmação dos
povos indígenas como sujeitos de direitos, sugeriu as diretrizes políticopedagógicas da interculturalidade, do bilingüismo/multilingüismo, da
diferenciação, da especificidade e da participação comunitária, formando
consensos sobre como seria uma educação escolar protagonizada pelos
povos indígenas e associada a seus próprios projetos societários
(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2008, p. 13).
142
O protagonismo e o projeto societário indígena preconizam, inclusive, rever a função
das escolas junto aos povos ou comunidades indígenas. De modelo de negação cultural a um
espaço de relações interétnicas. Poder-se-ia conceber que os povos ou comunidades indígenas
almejam o espaço escolar como uma fronteira interétnica. E, nessa fronteira, se estabelece o
reconhecimento e o respeito aos povos ou comunidades indígenas como sujeitos de direito ou
como cidadãos ativos.
Assim, a CONEEI teve como desafio inaugurar a oportunidade de
[…] espaços em que representantes indígenas e gestores públicos discutam
ampla e profundamente políticas e programas para assegurar que os direitos
a uma educação básica e superior intercultural, para apoiar os projetos
societários de cada comunidade, sejam efetivados, com instrumentos legais e
gerenciais compatíveis com o reconhecimento da pluralidade cultural e da
auto-determinação dos povos indígenas (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO,
2008, p. 13).
As recomendações e os debates no âmbito das conferências da EEI foram concebidos
como “propostas em aberto”, pois não se propuseram a estabelecer modelos únicos e
uniformes a serem definidos nas diferentes comunidades escolares indígenas. As formulações
apresentadas evidenciam a dinâmica de se estabelecer diretrizes, recomendações e reflexões
ao exercício da EEI. Esta percepção leva a conceber que a EEI se nutre da dimensão da
educação emancipatória, do estar em constante gestação. Ou seja, as comunidades indígenas
se aproximam da percepção de que a EEI se constitui em um estar sendo, de acordo com a
cultura e realidade locais, sem impedir a inter-relação com as outras culturas ou realidades.
3.2 A INTERCULTURALIDADE NA EEI
O espaço da EEI constitui-se a partir das premissas de uma educação específica,
intercultural e bilíngue. Estes princípios constituem a EEI e a etnicidade dos povos indígenas,
no caso, do povo kaingang, num processo de autonomia e melhoria das condições de vida
(MATTE, 2009, p. 113). Neste sentido, a interculturalidade é concebida como um desafio ao
contexto de pluralidade cultural, da imposição de cultura filosófica escrita frente a
cosmovisões e cosmologias pautadas e concebidas na oralidade, da imposição de um
bilinguismo diante de contexto poliglota ou da imposição da concepção de uma nova etnia
genérica, o povo brasileiro, subjugando e aniquilando a diversidade cultural.
Fornet-Betancourt (2004, p. 25) alerta para o fato de a interculturalidade, no caso na
concepção da filosofia intercultural latino-americana, se constituir num continente poliglota.
Por isso o estreitamente da compreensão do bilinguismo não responderá o “desafio
143
intercultural que lhe propõe a diversidade cultural de seu contexto”. A reflexão torna-se
importante ao se retomar a concepção de que a própria língua kaingang é diversa, com cinco
variantes. Ou seja, a dinâmica intercultural bilíngue não pode representar a padronização e
nova colonização linguística em uma suposta tentativa de regular e formatar a língua, pois
então se rompe com a diversidade interna e constituinte do ser kaingang. A diversidade
linguística kaingang também pode estabelecer uma diversidade e modalidades de construções
textuais, pois estas são elaboradas a partir da oralidade da língua kaingang. Nascimento
(2010, p. 73) ressalta que há “diferentes gêneros de discursos dentro da língua kaingang
como, por exemplo, os diferentes tipos de narrativas, cantos, rezas etc.” No artigo intitulado
“As artes da Palavra”, Nascimento (2010, p. 73-97) analisa as construções gramaticais que
caracterizam os diferentes textos, destacando termos específicos da língua kaingang.
Considera-se o desafio de tal análise, pois, conforme Fornet-Betancourt (2004, p. 24) aponta,
esta se constitui na interculturalidade de uma cultura escrita diante do “contexto cultural de
um mundo em que a oralidade joga um papel de primeira ordem na criação e transmissão da
cultura”.
Esse fato também é apresentado na elaboração do livro Gufã ág kajró,106 em que “as
pessoas leitoras irão encontrar formas distintas da escrita kaingang” devido à não
padronização da língua kaingang e, também, pela coexistência das variantes linguísticas
kaingang (LUCKMANN, FALCADE, 2008, p. 9). Na apresentação do livro externou-se a
preocupação “em preservar os conhecimentos tradicionais da comunidade kaingang sob o seu
domínio” e, por isso, “optou-se em elaborar o presente livro quase que na totalidade na língua
kaingang” (Idem). O fato evidencia que a EEI, como espaço em que se deseja a
interculturalidade, ainda possui obstáculos e barreiras a serem removidas.
O fato evidenciado na publicação do livro Gufã ág kajró, com o qual a ação
missionária indigenista do COMIN se depara, que a comunidade kaingang da TI Guarita
evoca, foi de que a interculturalidade ainda é um desafio para além do espaço e dinâmica da
EEI. Ressalta-se, pois, que
[…] a educação intercultural somente tem sentido se tiver projeção na
estrutura social, integrando-se em discursos que vão além do âmbito
educacional. E, assim, definimos educação intercultural como a promoção de
processos educativos que possibilitem uma interação das culturas em pé de
igualdade; partindo do conhecimento do respeito e da valorização mútuos,
106
O livro foi elaborado a partir de entrevistas com pessoas detentoras de saber tradicional kaingang e redigido
por docentes kaingang. O livro foi publicado pelo COMIN como produto de projeto de revitalização de
saberes, financiamento do PPIGRE/MDA. Tradução do título pelo autor da dissertação: “Saber dos anciões
kaingang”.
144
desvendando os condicionantes ideológicos e sócio-econômicos que
modulam tais relações (LLUCH, 1998, p. 56).
O fato de usar a língua kaingang como forma de proteger os conhecimentos
tradicionais kaingang da comunidade kaingang da TI Guarita demonstrou que a relação entre
as culturas e sociedades envolvidas na EEI ainda não ocorre em “pé de igualdade”, fato
evidenciado pela equipe redatora do livro e lideranças kaingang da TI Guarita, que
“manifestaram preocupação com o risco de apropriação indevida de tais conhecimentos, por
pessoas com interesses distintos aos do povo kaingang” (LUCKMANN, FALCADE, 2008, p.
9). A publicação do livro, praticamente monolíngue kaingang, também exortou a autonomia e
o direito à diferença na elaboração de materiais didáticos. Como define Lluch (1998, p. 54), a
educação intercultural preza pela igualdade, pela justiça e pelo direito à diferença, princípios
que garantem uma educação autônoma, construída pelos próprios interessados.
A construção da EEI na perspectiva da educação intercultural também se evidencia
como espaço de fortalecimento da identidade cultural, que se aproxima de outros valores,
conhecimentos e práticas, de outros povos e sociedades. Como define Garrafa (2008, p. 124),
“el currículo culturalmente pertinente promueve la reflexión tanto acerca de la cultura
ancestral como de la occidental. Esta interrelación reflexiva sirve para superar la hegemonía
excluyente de la cultura”. A superação da hegemonia excludente a que se refere Garrafa
também é evidenciada por um acadêmico kaingang, que afirmou: “Na escola a gente aprende
que o português tem que ser a língua, quer dizer, é a língua maior e melhor, a gente concorda
hoje que é a maior, mas não a melhor. Nós também temos as nossas (línguas)” (MATTE,
2001, p. 69). Garrafa e o acadêmico kaingang explicitam a necessidade do exposto
anteriormente, de que a interculturalidade extrapola o espaço da EEI e interfere na interrelação cultural e social que envolve a educação escolar.107
O desafio para a constituição da EEI como uma educação intercultural se estabelece na
transformação do sistema educacional, no qual está inserida a educação escolar indígena,
implicando também na reestruturação do enfoque pedagógico, como propõe Garrafa (2008, p.
124). Garrafa estabelece que a educação bilíngue intercultural construa uma educação distinta
dos moldes tradicionais, com um currículo diversificado e culturalmente pertinente,
ressaltando, a partir da inserção no contexto andino, que
La educación debe desterrar toda manifestación de discriminación cultural,
étnica o lingüística, es su deber contribuir a la revaloración de nuestra
107
De forma semelhante é exposto à concepção do currículo intertranscultural, referido no item anterior. Para
aprofundamento, indica-se o texto de Padilha (2004).
145
cultura andina, el rescate de la tradición oral y la práctica de lenguas
vernáculas, principalmente el quechua y el aymara, dentro de una
perspectiva bilingüe intercultural (GARRAFA, 2008, p. 126).
O proposto por Garrafa também foi evidenciado por Matte (2001)108 ao definir que a
educação específica, intercultural e bilíngue, a que se propõe a comunidade escolar kaingang
da TI Guarita, constituirá um “novo tempo para a identidade Kaingang”.
Escolas em que a língua Kaingang é componente fundamental do currículo,
que também direciona os demais conteúdos no sentido de estudar a
realidade, história e cultura Kaingang, de enfocar a realidade mais ampla a
partir do seu lugar, na sua situação e relações que estabelecem, sinalizam um
novo tempo para a identidade Kaingang. Uma identidade que valorada
positivamente tem na língua a sua afirmação, que nomeando, designa
“Kaingang: pessoa de nossa gente” (MATTE, 2001, p. 56).
A constituição dessa “nova identidade” ocorre de forma processual, da qual a
educação escolar faz parte, porém se estabelece desde a década de 1970, com o movimento
indígena. Nesse movimento se estabelecem
A consciência de ser e a vontade de querer ser Kaingang, bem como o
esforço de pensar, optar, negociar, reinventar, propor, buscar, exercita-se,
especialmente desde então, pelas reivindicações visando espaços de
autonomia e convivência multicultural; melhorias das condições gerais de
vida, que passam por suas definições sobre as ações que afetam as suas
comunidades, por uma educação escolar indígena específica, atenção à
saúde, auto-sustentação e, particularmente, pela recuperação de territórios
tradicionais (MATTE, 2001, p. 127).
O propósito evidenciado à escola kaingang como espaço de ser e querer ser kaingang,
como elemento constituinte da interculturalidade, visando fortalecimento da etnicidade e
paridade na política pública de educação, torna-se desafio para ação do COMIN, pois “deveria
dar maior prioridade e atenção à implantação de uma educação genuinamente indígena”,
como disposto por Armani (2001, p. 52). Reconhece-se o COMIN como agente intercultural
(SOUZA, 2001, p. 13) e sua trajetória da ação missionária indigenista de contribuição à luta
pela autodeterminação e autonomia dos povos indígenas no Brasil (ARMANI, 2001, p. 52).
Porém, o disposto sobre EEI e interculturalidade demanda uma ação de inter-relação com a
comunidade kaingang, e outros povos, e com as políticas públicas e os sistemas educacionais.
Salientando que os agentes e propositores para a interculturalidade na EEI são as
comunidades indígenas, o COMIN se dispõe como entidade de acompanhamento solidário
108
Matte tratou da identidade cultural/etnicidade de acadêmicos kaingang na UNIJUÍ em dissertação de
mestrado.
146
(SPELLMEIER, 2011, p. 22). Do contrário, romper-se-ia com os princípios de respeito,
justiça e paridade, tão caros e fundamentais para a educação bilíngue intercultural.
Nesta perspectiva, torna-se relevante a disposição do COMIN, como agente
intercultural, de realizar o curso de pós-graduação “Educação, Diversidade e Cultura
Indígena” para capacitação ao disposto no Decreto Lei nº 11.645 de 10 de março de 2008,109
que estabelece a obrigatoriedade da inclusão da cultura e história dos povos indígenas no
currículo do ensino fundamental e médio. Conforme Bruno Ferreira, 110 o curso demonstra a
disposição da entidade “em fomentar discussões e atividades práticas que conduzem ao
respeito e a valorização da diversidade de culturas e de etnias” (COMIN, 2009). Seguindo o
propósito da interculturalidade, na realização do curso se oportunizou a participação de
discentes e docentes das etnias kaingang (TI Guarita/RS), xokleng (TI La Klanõn/SC) e
tupiniquim (TI Tupinikin/ES) (BEHS, 2011b; MARKUS, 2009). Conforme Markus (2010),
“a participação de docentes e discentes indígenas apresentou um diferencial importante para
cada participante do grupo com possibilidades de interação e interlocução direta com estes
povos”. Considera-se, desta forma, a disposição da ação indigenista na dinâmica da
interculturalidade, constituída a partir da ação em EEI, porém que se estabelece e amplia para
demais espaços e interações com a sociedade. A sociedade constituída no plural, ou seja,
sociedade plural, que ainda carece do “respeito à diversidade cultural e a vivência
intercultural” (TREIN, 2010, p. 31). Para tanto, faz-se necessário contribuir para a redução da
discriminação cultural e o respeito à etnicidade das comunidades e povos indígenas.
3.3 A EEI E A TERRITORIALIDADE
No primeiro capítulo, constatou-se que a prática do esbulho territorial, sofrida pelas
comunidades kaingang, esteve em diversos momentos vinculada com a implantação da
educação escolar. Desde a participação nas missões jesuíticas ou reduções jesuíticas, pois
concentraram as comunidades indígenas em um determinado espaço geográfico, a educação,
na modalidade de catequese, foi imposta aos kaingang. O mesmo ocorreu no intento de
aldeamento do Pe. Parés no século XIX e, também, na prática iniciada pelo SPI e continuada
pela FUNAI, no século XX, quando o esbulho transcorreu através do arrendamento e
exploração madeireira.
109
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm> Acesso em: 04
nov. 2011.
110
Bruno Ferreira, professor kaingang na TI Guarita, foi discente e docente no curso de pós-graduação.
147
Contudo, na transição da década de 1970 para a década de 1980, contatou-se a
mobilização das comunidades kaingang em prol da recuperação dos espaços territoriais
tradicionais e a reafirmação da etnicidade. O espaço escolar foi incluído nessa mobilização,
estabelecendo que a escola estivesse “em prol da causa indígena” (FREITAS, ROSA, p. 2003,
p. 61). Concebeu-se, a partir de então, o projeto da escola kaingang autônoma. A mobilização
de recuperação da terra tradicional se estabeleceu no vínculo da implantação da autonomia na
EEI. Para Freitas e Rosa (2003, p. 61), a comunidade kaingang destinou esforços
[…] para a retomada dos espaços culturais de criação e reprodução do grupo,
dedicando-se ao resgate de práticas de saúde, da língua, dos ritos, dos mitos
tradicionais, revalorizando os velhos e seus saberes. Paradoxalmente, estes
últimos vão eleger a escola como locus do seu trabalho e a formação
universitária como o caminho para a consolidação de uma escola autônoma,
cujos quadros, na concepção kaingang, idealmente se compõem
exclusivamente de índios. Neste sentido a luta por uma escola indígena é, no
início dos anos de 1990, apreendida pelos kaingang como um
desdobramento da luta pela terra.
A autonomia na EEI, entendida como desdobramento da luta pela terra, também se
evidenciou no ingresso do primeiro grupo de kaingang na universidade na década de 1990.
Nessa década, porém, não se questionou mais a implantação da educação escolar vinculada ao
esbulho territorial. Ao contrário, a prática do arrendamento foi um dos motivadores para o
ingresso de estudantes kaingang da TI Guarita no ensino superior, como apresentado no
segundo capítulo. O desafio foi obter a formação acadêmica para assessorar a comunidade e
as lideranças indígenas na redução ou impedimento do esbulho territorial e da exploração
imposta pelo agronegócio. Porém, a situação persistiu.
No período de duas décadas, contadas a partir do ingresso do primeiro grupo de
kaingang na UNIJUÍ, em 1992, contabilizam-se as conquistas de políticas públicas que
beneficiaram direta e indiretamente as comunidades indígenas.
[…] foram implementadas políticas de atenção à saúde do índio, além de
experiências de educação específica e diferenciada em língua materna e a
obrigatoriedade do ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira e
Indígena no currículo oficial da rede de ensino pública e privada (BEHS,
2011)
Tais conquistas, resultantes do movimento indígena, foram asseguradas a partir da CF
88. No entanto, Fernanda Kaingang,111 que cursou Direito na UNIJUÍ, denuncia que “a
questão territorial segue como problemática para a garantia dos direitos fundamentais como
111
Nome completo de Fernanda Kaingang: Lúcia Fernanda Inácio Belfort, sendo a primeira indígena mestre em
direito no Brasil, pela UnB. Disponível em: <http://www.unbcds.pro.br/pub/?CODE=01&COD=1&X=1449>
Acesso em: 08 nov. 2011.
148
saúde e educação aos 240 povos indígenas que habitam o território brasileiro e que somam
hoje 700 mil habitantes, ou seja, menos de 1% da população nacional” (BEHS, 2011).
A denúncia de Fernanda Kaingang torna-se evidente e estarrecedora no relato de Laisa
Erê Ribeiro (2011). Laisa é membro da comunidade kaingang da TI Guarita, graduada em
Biologia pela UNIJUÍ, e cursa, atualmente, duas pós-graduações, na UFRGS e na
EST/COMIN.112 A pós-graduanda kaingang relata a sua participação em Audiência Pública,
promovida pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado Federal, 113 sobre
demarcação de terras às comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas:
Deparei-me então com o que há de mais preconceituoso no ser humano, ser
esse que se autodenomina civilizado! O assunto em questão era se
demarcava algumas terras indígenas ou não, cada um defendendo seu lado,
“tentando” entrar num acordo que contemplasse todas as partes. Minha
indignação não é nem em relação a se demarca ou não territórios tradicionais
indígenas ou se deixa os invasores não indígenas lá, mas em perceber como
somos vistos e tratados pelos grandes produtores e políticos que nos
representam no cenário nacional ou estadual (RIBEIRO, 2011).
O relato aponta a situação de injustiça e de preconceito que é externado no momento
de conflito de interesses, recorrente nos processos demarcatórios de terras tradicionais
kaingang. Situações análogas também ocorreram em todo o processo de esbulho territorial no
passado. Na audiência também estiveram presentes outras lideranças indígenas, que
contestaram e manifestaram a importância do território para as comunidades indígenas, como
garantido pela CF 88. Laisa Ribeiro (2011) reafirma, então, a mesma disposição que motivou
os primeiros estudantes kaingang ao ingresso no ensino superior.
Que bom seria se junto com esses líderes, estivem [sic] todos nós guerreiros
indígenas que tivemos a chance de sair estudar e conhecer essa sociedade,
talvez a gente poderia fazer a diferença naquele momento, não podemos
querer ser guerreiros só dentro das nossas aldeias, porque lá não precisamos
guerrear com nós mesmos, devemos ter consciência de que nossa luta é aqui
fora junto às nossas lideranças tradicionais, mostrando os caminhos para a
justiça e vitória , não com flechas, mas com a palavra e o conhecimento das
leis criadas pelo homem branco.
A afirmação de que na atualidade a luta se faz “com a palavra e o conhecimento das
leis criadas pelo homem branco” evidencia a consciência de que tanto a questão da
112
Laisa Erê Sales Ribeiro é bolsista do Curso de Lato Sensu Educação, Diversidade e Cultura Indígena na
Faculdades EST/IECLB; realiza o curso em convênio com o COMIN. Laisa colaborou com a publicação
“Parentes e amigos unidos pela reconstrução da vida” (COMIN, 2003, p. 18) e também foi professora na
E.E.I.E.F. Mũ Kej.
113
Ver relato da reunião, conforme assessoria de comunicação do Senado Federal. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/noticias/ana-amelia-busca-solucao-para-conflito-entre-produtores-ruraisquilombolas-e-indigenas-no-sul-do-pais.aspx> Acesso em: 07 nov. 2011.
149
territorialidade como a da interculturalidade, do bilinguismo e da autonomia estão
dependentes da relação desigual que se estabeleceu e se estabelece entre a sociedade indígena
e a não indígena. Remonta-se ao fato das conquistas e garantias obtidas a partir da CF 88, que
ainda carecem de tratamento digno e respeitoso.
De nada adianta passarmos na universidade, de nada adianta conviver nessa
sociedade injusta se não sabemos o que queremos, para que queremos e o
que faremos com nosso conhecimento adquiridos em anos de estudos, pois
só assim provaremos a todos que não somos e não admitimos sermos
tratados como palhaços, como fomos nesse dia triste (RIBEIRO, 2011).
O desafio da busca de ferramentas para a superação das situações de injustiça,
preconceito, desigualdade e conflito, como evidenciado no relato de Laisa Erê Ribeiro, se
constitui no desafio permanente da ação missionária indigenista da IECLB e do COMIN,
como reafirmado em documento comemorativo ao jubileu do cinquentenário da ação
missionaria indigenista da IECLB e do COMIN. O referido documento reafirma a disposição
da ação missionária indigenista de contribuir junto aos povos indígenas, a promoção do
diálogo, o respeito intercultural e o estabelecimento de relações de justiça e paz
(FRIEDRICH, TREIN, 2011). O documento não explicita a questão fundiária, da demarcação
de terras tradicionais, porém se considera o tratamento do tema ao se referir aos conflitos de
interesses e de direitos. Contudo, na publicação comemorativa, o tema foi tratado por
Spellmeier (2010, p. 22), que afirmou
Com a inclusão do direito dos povos indígenas à sua cultura e organização
social, às terras de ocupação tradicional, à cidadania plena e diferenciada na
Constituição Federal de 1988, esta passou a ser necessariamente a norma
legal e jurídica de todo o trabalho do COMIN.
A disposição se constitui como “norma pedagógica e metodológica” da ação
missionária indigenista, enfatizando que os agentes de mudança são as comunidades
indígenas (SPELLMEIER, 2011, p. 22), através de seus agentes, lideranças tradicionais ou
com formação acadêmica. A autoridade de refletir, questionar e contestar não se estabelece
com palavras de outras pessoas, mas com a própria voz. Assim, torna-se relevante a conclusão
de Laisa Erê Ribeiro no texto “A realidade nua e crua”, referente à audiência assistida e sua
formação acadêmica:
Penso que momentos como esse devem ser divulgados, pois podemos sim
fazer a diferença, lutar, acreditar, se expor, chorar e podemos até perder, mas
nunca deixar de ter orgulho de levantar a bandeira e gritar, mesmo que seja
um grito silencioso e que ninguém naquele momento nos ouvisse, mas que
se grite e diga com orgulho que a casa é nossa e não damos autorização para
ninguém entrar sem ser convidado. Nossa casa é nossa terra e não podemos
150
deixar nossos filhos crescerem sem saber de onde vieram e para onde
voltarão (RIBEIRO, 2011).
A insistência em defender o espaço territorial se constitui como elemento-chave entre
a EEI e a garantia da territorialidade kaingang. Assim, como a EEI esteve vinculada ao
esbulho territorial no passado, transmuta-se agora como ferramenta de garantia e debate nas
situações de conflitos de direito e interesses. Suspeita-se que a insistência em garantir o
espaço territorial às comunidades indígenas signifique uma estratégia para que a sociedade
não indígena se defronte com a presença das comunidades indígenas, evidenciada em
afirmações contundentes, como: “nossa casa é nossa terra”; ou “antes mesmo de vocês
chegarem”. E se conclui que é nesta “casa” que a comunidade indígena quer estabelecer a EEI
autônoma e específica, que assumiram depois da chegada dos não índios. A relação entre EEI
e territorialidade é intrínseca para as comunidades indígenas, porém num sentido contrário ao
daquele que foi proposto pela sociedade não indígena.
PARA CONTINUAR REFLETINDO, APOIANDO, ...
As reflexões dispostas nesta dissertação demonstraram a proximidade e o fazer da
ação missionária indigenista da IECLB e do COMIN no envolvimento e contribuição da
instituição da EEI na TI Guarita. A trajetória da EEI se estabeleceu a partir de propostas por
vezes antagônicas, mas que se constituíram em um envolvimento que evocou mudanças no
próprio fazer-se como órgão ou grupo social de apoio e parceria à comunidade kaingang.
Assim, o bilinguismo, entendido inicialmente como um elemento de dominação e subjugação,
constitui-se posteriormente como elemento que visa à autonomia e autodeterminação dos
kaingang, almejada para a EEI, amparada na educação diferenciada, bilíngue e intercultural.
De modo semelhante, também a trajetória da IECLB e do COMIN não pode ser
considerada como encerrada e acabada. Pelo contrário, constitui-se como um processo
inacabado, pois os próprios sujeitos são inacabados. A própria realidade em que está inserida
se transforma e apresenta novos desafios e temas constantemente.
No transcorrer da dissertação, evidenciou-se que, no processo histórico, a questão da
língua e da implantação da educação escolar se fizeram presentes nos contatos e confrontos
interétnicos, kaingang e sociedade não indígena. Inicialmente, com a redução territorial e
empenho na catequização das comunidades, mesmo com o propósito da instalação de escolas
ou catequese, o projeto esbarrou na questão linguística e na imposição de noções culturais
distintas às das comunidades indígenas como a noção de trabalho. A questão de conflito e
disputa territorial também se estabeleceu no assentamento das famílias de imigrantes
europeus, de profissão de fé evangélica luterana, que posteriormente constituíram a IECLB.
Essas famílias trouxeram na bagagem a herança luterana do incentivo e promoção da
educação escolar, inclusive com alguns intentos no início do século XX, como o de
estabelecer uma missão entre índios, juntamente com a implantação de escolas no norte riograndense e meio-oeste catarinense.
A proposição de uma missão entre índios por parte dos descendentes das famílias de
imigrantes europeus evangélico-luteranos se efetiva a partir da Paróquia Evangélica de
Tenente Portela, instigada pelo P. Norberto Schwantes, iniciada em 1961 através da
implantação da Escola Evangélica Indígena na TI Guarita. A partir de então até o presente
momento, estabeleceu-se uma trajetória de meio século, trajetória marcada por ações
consideradas como pioneiras em nível de Brasil ou, quiçá algumas, de América Latina, como
a formação de monitores bilíngues. Mas, uma trajetória com mudanças no perfil da ação
152
missionária indigenista, iniciada com a implantação de uma pequena escola para os índios,
que se constitui no tempo presente em ações e dinâmicas em prol do protagonismo da
comunidade kaingang e constituição da autonomia, bilinguismo, interculturalidade e
territorialidade, concebidos a partir ou no espaço da EEI.
Eventos marcantes nesse processo constituem-se a partir do convênio da IECLB e
FUNAI/SIL para a formação de monitores bilíngues, que potencializou a grafia da língua
kaingang através de sinais gráficos latinos, questionados inicialmente, devido à proposta de
um bilinguismo de transição, mas que se consolida mais tarde como ponto essencial na EEI
para a constituição de uma educação diferenciada, específica e intercultural. Parte de um
modelo de ação missionária indigenista elaborado aquém da participação indígena para uma
ação solidária e em prol do protagonismo indígena, em que a própria comunidade indígena
define os parâmetros da EEI, como a proposição de elaborar materiais didáticos na língua
kaingang como forma de proteção de conhecimentos tradicionais e também para a
constituição da autonomia no magistério e gestão das escolas indígenas, sem interferência de
agentes não indígenas. Esta dimensão ainda é um desafio tanto para a mobilização das
comunidades indígenas como para a ação missionária indigenista, pois a EEI se estabelece na
dimensão da fronteira intercultural, como propõe Tassinari (2001, 47-50). A EEI concebida a
partir da dinâmica da fronteira intercultural estabelece a reflexão de seus ajustes e interações
entre as sociedades envolvidas, kaingang e não indígena.
O evidenciado com a questão da fronteira intercultural revela que a presente
dissertação não esgota o debate, o estudo, a análise e outros olhares sobre a trajetória da EEI
kaingang e a participação da IECLB e do COMIN nesse processo. Tampouco se desejou que
o envolvimento do autor, como partícipe da ação missionária indigenista da IECLB e do
COMIN há uma década, esgotasse o tema. Pelo contrário, são evidentes a ausência da análise
e/ou o aprofundamento da temática, bem como a citação e o tratamento de outras ações da
trajetória missionária indigenista. Está-se ciente de que não foram abordados temas como: a
articulação do movimento indígena com outros movimentos sociais, sobretudo na década de
1980 e início de 1990; os trâmites da passagem de responsabilidade da gestão das escolas
indígenas da FUNAI para a alçada da Secretaria do Estado de Educação, suas implicações e
entraves; o processo de regularização das escolas e a elaboração dos regimentos internos e
projetos político-pedagógicos; o Curso de Formação Continuada para Professores
Indígenas/Etnia Kaingang, coordenado pelo NEI/SEE; o debate sobre EEI no Conselho
Estadual dos Povos Indígenas (CEPI); a articulação das comunidades indígenas com
153
Instituições de Ensino Superior (IES; p.ex.: UNIJUÍ, URI, UPF, UNOCHAPECO) para a
realização de cursos de habilitação ao magistério indígena bilíngue (p. ex.: Vãfỹ; Miraguaí),
em convênio com Coordenadorias Regionais de Educação/SEE; o debate para acesso e
instalação de políticas afirmativas no acompanhamento ao ensino superior para indígenas nas
IES (UNIJUÍ, URI, IPA, UFSM, UFRGS, UFRG).
Sobre a trajetória da ação missionária indigenista da IECLB e do COMIN também se
está ciente da necessidade da análise e aprofundamento da temática, com outros olhares, sobre
o abordado nesta dissertação, mas também sobre as ações não abordadas neste momento,
como: a formação de docentes e monitores guarani, ou seja, a trajetória da EEI guarani e a
participação da IECLB e do COMIN; o acompanhamento à participação de representante
kaingang na Comissão de Educação Indígena, vinculada à Câmara de Educação Básica do
Conselho Nacional de Educação; aprofundar a participação dos kaingang e guarani no NEI,
bem como no COMIN; da mesma forma no CEPI; a participação missionária indigenista no
processo de regularização das escolas indígenas; a articulação dos agentes da IECLB e do
COMIN, como grupo GTME-Sul,114 na década de 1980, pelo qual se veicularam as reflexões
da transição após a retirada da Missão Guarita; a abordagem de outras iniciativas no âmbito
da IECLB e do COMIN, como o Distrito Eclesiástico Uruguai em 1985, que propôs a criação
de uma ação missionária junto à comunidade kaingang em Iraí/RS, com a implantação de uma
escola. Da mesma forma, está-se ciente de que não se abordou a constituição da Comunidade
Evangélica Kaingang; o Curso de Monitores Agrícolas, realizado simultaneamente ao curso
de monitores bilíngues, no final da década de 1970, no CTPCC.115 Também a promoção de
cursos para habilitação de agentes para atendimento em saúde, ou atividades de educação em
saúde, carece da continuidade da reflexão, estudo, debate e trajetória da IECLB e do COMIN
junto aos povos kaingang e guarani na TI Guarita, ou além desta, junto às demais
comunidades indígenas no Rio Grande do Sul.
A proposição da interdisciplinaridade, proposta na introdução desta dissertação,
também implica a proposição de elaboração de análise, aprofundamento e debate dos próprios
participantes da trajetória, docentes, universitários, lideranças e outros agentes das
114
GTME – Grupo de Trabalho Missionário Evangélico. Entidade que agregou as pastorais protestantes
indigenistas das igrejas: evangélico-luterana, metodista, presbiterianas e anglicanas. Criada em 1979 e
dissolvida em 2009. Disponível em: <http://www.portalecumenico.net/instituicoes-detalhe.asp?cod=64>
Acesso em: 09 nov. 2011.
115
Consta que o líder kaingang Ângelo Kretã, da TI Mangueirinha/PR, foi membro da comissão de
acompanhamento deste curso. Ângelo Kretã foi assassinado em 1981, como retratado no filme documentário
“Mato Eles?” (Dir. Sergio Bianchi, 1983, 35 min).
154
comunidades kaingang e guarani, para que apresentem a sua perspectiva, o seu olhar sobre a
trajetória missionária indigenista da IECLB e d COMIN. No decorrer da dissertação,
apresentaram-se algumas considerações, encontradas dispersas na bibliografia e em outros
materiais consultados para a presente elaboração, sobretudo referentes ao curso de monitores
bilíngues e ao CTPCC. Porém, considera-se relevante na dinâmica da fronteira intercultural,
anteriormente esboçada, a elaboração de estudo e pesquisa semelhante a partir de outra
realidade, de outra ciência, elaborada a partir de outros conhecimentos e outra cultura. O
respeito pela autonomia e interculturalidade também implica a consideração de olhares e
avaliações das comunidades indígenas sobre a trajetória da sociedade não indígena, assim
como proposto na questão do bilinguismo. Diante desta disposição, quiçá a temática da
territorialidade indígena será entendida e considerada a partir de outros parâmetros, que não
uma questão problemática, ainda presente na implantação da Educação Escolar Indígena.
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