Uma nação à espera de seu Povo
Claudio Mano
Bacharel em Filosofia pela UFJF
Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Souza” da UFJF
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Se consultarmos o Aurélio, encontraremos que a palavra povo pode assumir
significados distintos. De um lado, Povo subentende o “conjunto de indivíduos que falam a
mesma língua, têm costumes e hábitos idênticos, afinidade de interesses, uma história e
tradições comuns”. De outro lado, assinalamos povo1 como sendo “o conjunto das pessoas
pertencentes às classes menos favorecidas: plebe”. Neste artigo, ofereceremos a hipótese de
que é a imprecisão do significado da palavra “povo”, no imaginário do brasileiro, um dos
fatores que contribui para a constante elaboração de leis equivocadas e mesmo inúteis por
parte de nosso legislador.
O povo enquanto totalidade
A origem da associação humana perde-se em tempos imemoriais e será para sempre
mera conjectura. Em que pesem os avanços da ciência, notadamente no campo da
arqueologia, a verdade é que, os próprios recursos científicos que nos auxiliam na
investigação do passado, são a inequívoca comprovação da insuperável distância que nos
separa de nossos ancestrais. Mas isso não impede, no entanto, o homem de dar azas à
imaginação. Jean-Jacques Rousseau, filósofo genebrino, concebeu no século XVIII uma razão
hipotética para a fundação da sociedade humana. Ela baseia-se no reconhecimento de que a
ampla cooperação entre os indivíduos contribui no aumento do bem estar de cada um, e daí,
da coletividade. Antes dele, Platão, antecipando-se em muito a Marx, já se preocupava com a
divisão racional do trabalho e suas implicações. O filósofo grego entendia que existiam
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Utilizaremos Povo para designar a totalidade dos indivíduos e povo quando referido a uma fração da sociedade.
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aptidões tais, entre os seres humanos, que naturalmente os favoreciam adequarem-se melhor a
determinadas ocupações que outras. Vale alertar o leitor que, se fazemos aqui referência a
pensadores tão diversos, é no intuito de enfatizar a universalidade do problema que tratamos,
mesmo sob o risco de comprometer a unicidade de nosso texto.
Mas Platão não buscava separar os indivíduos em “classes”, tal como fez Marx ou
mesmo como as concebemos na atualidade, quando agrupamos indivíduos em tudo distintos,
exceto por algo meramente circunstancial, como o estrato social. O objetivo de Platão era
conferir a cada um a oportunidade de alcançar a sua excelência. Nesse caso, virtude significa
fazer da melhor maneira possível a tarefa que lhe cabe e é o que permite ao homem alcançar a
felicidade. Por exemplo: na concepção platônica, da mesma forma que a virtude da faca é
cortar bem, a virtude do cuteleiro é ser agente perfeito dessa transformação ocorrida na barra
de metal. Para sobreviver, a sociedade precisa ter suas necessidades satisfeitas, e isso se faz
pelas mãos de muitos. Desse modo, o moleiro não deve limitar sua produção a seu consumo
exclusivo. Tudo que excede suas necessidades tornar-se-á benefício em prol de toda
sociedade. Da mesma forma, o moleiro será atendido no mais que necessitar, por intermédio
da competência de outros indivíduos, preservando-o assim de macular sua virtude exercendo
uma atividade que não domina. Estabelece-se então um regime de trocas entre todas essas
valiosas contribuições à coletividade. A especialização que Platão sugere perpassa todas as
atividades imagináveis, inclusive, em especial, a da distribuição de justiça e ordem ao
conjunto social: tarefa exclusiva do rei filósofo2.
Chegamos assim a uma sociedade utópica, onde cada um tem e sabe qual o seu papel:
não existem “excluídos”. Mesmo os escravos têm uma função a desempenhar em prol da
pólis. Essa idéia de pertença integral a uma comunidade é que, gostaríamos, permanecesse na
mente do leitor; não como uma alegoria, mas sim como uma real possibilidade. Voltando
agora a Rousseau, ele concebeu uma sociedade até certo ponto inspirada no modelo platônico,
uma vez que o filósofo genebrino pretende conferir a todos os indivíduos que compõem a
sociedade um valor implícito a esta participação. No entanto, à época de Rousseau, o modelo
de governo aristocrático então em voga na Europa, ao invés de fazer da aplicação da justiça
uma virtude, ao contrário, promovia uma segregação entre os indivíduos que resultava em
toda sorte de iniqüidades e injustiças, enfim, que dividia os membros da sociedade em pelo
menos três grandes grupos com interesses e direitos distintos: nobreza, clero e povo.
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O rei filósofo – ou filósofo rei – em Platão, não implica que ele buscava para si essa posição. Platão apenas
desejava deixar claro que, sem o domínio do conhecimento filosófico, o legislador não lograria atuar com justiça.
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Diante deste quadro, para Rousseau, a virtude não poderia ser mais alcançada sob a
forma do exercício de nenhuma ação individual, mas apenas por intermédio de um ato
coletivo. Desse modo, ele retira do “rei filósofo” – já então um rei sagrado – o monopólio de
acesso à sabedoria e confere ao Povo este dom. Isso foi o que veio a se efetivar com a eclosão
da revolução francesa de 1789, já após a morte de Rousseau. Mas lá então, se a palavra povo,
em um primeiro momento, refere-se aos que são aviltados pela aristocracia e controlados pelo
clero, logo a seguir ela ganha um significado amplo o suficiente para não deixar ninguém de
fora, mesmo os governantes ou os padres. A função social do indivíduo, tal como preconizada
por Rousseau, passa então a ser dupla. De um lado, o indivíduo contribui indiretamente ao
bem comum, a partir da busca pela realização de seu interesse particular. De outro, enquanto
cidadão, é portador dos desígnios de uma vontade geral, que se condensa e retorna ao Povo
sob a forma de uma torrente de liberdade, justiça e, principalmente, ordenamento jurídico:
agora todos são iguais perante as leis. Denominamos este modelo político por democracia
moderna.
Uma nação sem povo
Recorremos mais uma vez ao Aurélio, agora para elucidar o significado de outra
palavra chave ao entendimento deste texto, qual seja, nação. Escolhemos duas referências: a
primeira diz que nação é um “agrupamento humano mais ou menos numeroso cujos membros
geralmente fixados num território, são ligados por laços históricos, culturais, econômicos e ou
lingüísticos (cf. povo)”. Também, que é “o povo de um território organizado politicamente
sob um único governo”. Para exercitar nosso entendimento de ambos os termos, Povo e
nação, voltemos ao exemplo francês que tratamos acima. A França, no momento anterior à
revolução, em nosso entendimento, não era ainda uma nação, uma vez que o povo era apenas
uma parcela e não constituía a totalidade do grupamento humano que habitava aquele
território. Como vimos, com a revolução, dissipam-se quaisquer distinções de direito entre os
indivíduos, e é desta igualdade que nasce o Povo francês e, a seguir, a nação francesa. É que o
jugo aristocrático já havia assegurado uma fronteira territorial e um núcleo comum mínimo de
laços históricos, culturais, econômicos e lingüísticos que, a partir de então, passarão a ser cada
vez mais fortalecidos. Como conseqüência, a instituição da nação decorre do mesmo ato em
que se estabelece o Povo. É como se já houvesse uma nação à espera de seu Povo.
Neste ponto, convidamos o leitor a descolorir o azul, branco e vermelho e permanecer
apenas com a conceituação apresentada. Temos então, que Povo denomina a totalidade dos
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indivíduos que constituem um grupamento humano, que detêm os mesmos direitos políticos e
submetem-se indistintamente à autoridade das mesmas leis. Já, nação, significa a unidade
territorial e política que abriga este Povo. Isto posto, podemos finalmente nos perguntar: o
Brasil é uma nação? E mais ainda, existe um Povo brasileiro? Bem, se aceitarmos os
argumentos de Darcy Ribeiro em seu livro O Povo Brasileiro, este certamente existe. Antes
de prosseguirmos, entretanto, vale deixar bem claro que não é nossa intenção, ainda mais em
um espaço de texto tão exíguo, aprofundar na pesquisa do ilustre antropólogo, mas sim, tão
somente se apropriar de sua tese de modo a poder evoluir com a nossa. A definição de “povo
brasileiro” que capturamos de Darcy Ribeiro é, de maneira sucinta, a seguinte: totalidade dos
indivíduos, originalmente oriundos de grupamentos distintos, tanto étnica quanto
culturalmente que, colocados em estreito contato contra sua vontade, desenvolvem a partir da
miscigenação, um sentimento misto de revolta e paixão que se perpetua em função da
permanente e vívida lembrança de sua gênese bastarda.
Certamente essa definição de “povo” é a antítese da que desenvolvemos. Para acolhêla, o significado de pátria forçosamente nos remeteria à idéia de uma jaula, onde, tal qual cão
e gato, algozes e vítimas de um passado maligno se alternam em sistemática vingança contra
tudo e contra todos. Ora, como nos alinhamos com Rousseau, e acreditamos que o objetivo do
grupamento humano é o benefício de todos os que a ele se associam, uma forma de arranjo
social que favoreça a desagregação e a discórdia, é algo a ser superado, e jamais acolhido.
Prossigamos com um exemplo: O leitor acredita que os franceses deveriam ainda, nos dias de
hoje, identificarem-se como sendo parte da plebe ou da realeza? Seria razoável, na atualidade,
que os protestantes franceses fossem às ruas para exigir reparação pelo famigerado massacre
de São Bartolomeu3? Se esses questionamentos se mostram descabidos, seguindo a mesma
linha de raciocínio, também não o seria que alguns brasileiros busquem distinguir-se em
direitos por serem índios, afrodescendentes, eurodescendentes ou qualquer outra característica
étnica ou social que vise se sobrepor ao título máximo de cidadão?
Considerações finais
A preocupação inicial que motivou Platão a enveredar pelos meandros de sua
República, foi justamente como fazer para que entre os homens prevalecesse a justiça. Vimos
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Na noite de 24 de agosto de 1572 tem início em Paris, pelas mãos dos católicos, uma perseguição violenta aos
protestantes. Após algumas semanas e tendo se estendido a outras cidades, deixou um saldo de 3.000 mortos
somente em Paris, podendo o total de vítimas ter ultrapassado as 10.000.
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como, na modernidade, a sabedoria política que antes era privilégio de um rei encontra no
Povo seu mais virtuoso agente. Nas modernas democracias, modelo de governo que nossos
lideres políticos apregoam ser praticado no Brasil, surge o artifício da representação, de modo
que a vontade do Povo possa se manifestar apesar da complexidade administrativa crescente
que vem caracterizando o mundo político. Mas a legitimação do poder deve permanecer com
o Povo. No regime democrático, somente quando conduzido pelas mãos do Povo o legislador
é capaz de promover a tão desejada justiça.
Se não for assim e o legislador exercer o mandato visando seu interesse particular ou
mesmo inspirado nas necessidades do povo, pelo que já expomos, podemos afirmar: ele será
injusto. Leis injustas são odiadas, somente são cumpridas mediante forte coerção.
Favorecendo uns e prejudicando outros, essa ação perniciosa do legislador, como não tem
como referência a vontade do Povo, traz à vida, à fórceps, o povo dentro do Povo. Como uma
nação, por definição, não pode abrigar mais de um “povo”, ela então se degenera, se esvazia
de sua reserva de sentido. Tentemos então alguns exemplos: Quando a falta de policiais nas
ruas, quem sabe, em função de uma greve, faz com que parte da população se transforme em
ferozes criminosos saqueadores, é que já vivemos em um Estado policial e, sem sua
mediação, o povo se insurge contra o Povo. Quando, em qualquer lugar de nosso país, um
caminhão se acidenta ou mesmo enguiça em uma estrada, mais uma vez o povo saqueia,
ignora as mais básicas leis, e assim o fazendo, afronta o Povo. Quando propriedades
particulares são invadidas, ou mesmo bens públicos irregularmente ocupados, quer no campo
ou na cidade, sob o olhar complacente da administração pública, ali, mais uma vez, é o povo
contra o Povo. Quando o crime organizado explode bancos com dinamite, cena já de nosso
cotidiano e que não causa mais espanto às inertes autoridades, lá também vemos os filhos do
povo agredindo o Povo. Mas, quando essas mesmas agências bancárias são apedrejadas por
“vândalos” em manifestações, o governo não mais ignora, quem sabe até mesmo treme,
chama com urgência as Forças Armadas para manter a “ordem”, pois talvez, que horror, por
detrás de algumas daquelas máscaras, na verdade encontre-se a desfigurada face do Povo.
O Brasil é uma nação ou um reino, ou um feudo, ou mesmo uma simples
“republiqueta”? Certamente essa pergunta, para ser devidamente respondida, carece de uma
reflexão muito mais profunda do que esse simples artigo se propõe. Aqui, apenas arranhamos
o exterior de algo que suspeitamos muito mais profundo, efetivamente além de nossa
possibilidade de compreensão, que é o amor gratuito da Pátria por seus filhos. Mas se é assim,
por que então Ela não atende nosso lamento? Por que permite que suas crias sejam tão mal
tratadas? Talvez seja o caso de que, a exemplo dos estóicos, caiba a nós fazer aquilo que está
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em nosso alcance. No caso, conduzir o povo a encontrar e fundir-se ao Povo. Para tanto, há de
se desvelar a Pátria que se encontra comprimida no fundo de nossos corações e, uma vez
exposta, que seja registrada com tinta nas linhas de uma sagrada constituição que, despida de
todas as particularidades mesquinhas e dos apegos a quaisquer correntes ideológicas,
estabeleça definitivamente as diretrizes universais que nos afirmam enquanto Povo. A nação
aguarda ansiosamente a chegada deste dia.
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