UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
AMOR E EROTISMO, REALIDADE E FICÇÃO: A DIVERSIDADE EM
MEMORIA DE MIS PUTAS TRISTES DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
Graziela de Oliveira Leite
Rio de Janeiro
2011
AMOR E EROTISMO, REALIDADE E FICÇÃO: A DIVERSIDADE EM
MEMORIA DE MIS PUTAS TRISTES DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
Por
Graziela de Oliveira Leite
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de
Pós-Graduação
em
Letras
Neolatinas
da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte
dos requisitos necessários para a obtenção do Título
de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários
Neolatinos - Literaturas Hispânicas)
Orientadora: Professora Doutora Mariluci da Cunha
Guberman
Rio de Janeiro
2011
Leite, Graziela O.
Amor e erotismo, realidade e ficção: a diversidade em Memoria
de mis putas tristes de Gabriel García Márquez / Graziela de
Oliveira Leite. Rio de Janeiro. UFRJ/FL, 2011
94 fls.
Orientadora: Mariluci da Cunha Guberman
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em
Letras Neolatinas, 2011.
Referências Bibliográficas: pgs. 88 – 93
1. Relatos Autobiográficos 2. Memória 3. Amor e Erotismo
I. Guberman, Mariluci (Orient.) II. Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação
em Letras Neolatinas III. Amor e erotismo, realidade e ficção: a
diversidade em Memoria de mis putas tristes de Gabriel García
Márquez
Amor e erotismo, realidade e ficção: a diversidade em Memoria de mis putas
tristes de Gabriel García Márquez
Graziela de Oliveira Leite
Orientadora: Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Título de Mestre
em Letras Neolatinas.
Examinada por:
_____________________________________________________________
Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman – PPG Letras Neolatinas
UFRJ – Presidente
_____________________________________________________________
Professora Doutora Martha Alkimin – PPG Ciência da Literatura UFRJ –
Examinadora
_____________________________________________________________
Professora Doutora Marinês Lima Cardoso – PRODOC/CAPES/ PPG Letras
Neolatinas UFRJ – Examinadora
_____________________________________________________________
Professora Doutora Ana Cristina dos Santos – PPG Teoria Literária UERJ –
Suplente
_____________________________________________________________
Professora Doutora Claudia Luna – PPG Letras Neolatinas UFRJ – Suplente
Rio de Janeiro/ UFRJ
2011/1
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiro a Deus, pois sem a crença nEle, nada disso seria
possível;
Agradeço a Eni, minha mãe, pois, a pesar de não ter tido a oportunidade de
seguir com seus estudos, sempre me incentivou a seguir com os meus;
Agradeço a Raphael, meu irmão, por ter sido exemplo de dedicação e
esforço;
Agradeço a Cid, meu marido, pelo apoio em todos os momentos e pela
paciência e compreensão durante todo o tempo que me dediquei a este
trabalho;
Agradeço a toda minha família e amigos que direta ou indiretamente
apoiaram e torceram por mais esta conquista.
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ
pelo suporte e incentivo durante essa jornada acadêmica;
Agradeço à Faculdade de Letras, sempre muito bem representada pelo
excelente corpo docente e administrativo, pelo acolhimento desde os tempos
de Graduação;
Agradeço em especial à Profa. Dra. Mariluci da Cunha Guberman, pelos
muitos incentivos durante a Graduação e por ter me acolhido como
orientanda durante a Pós-Graduação. Agradeço pelo apoio bibliográfico,
teórico, pedagógico e, principalmente, pessoal, sempre me fazendo acreditar
que seria possível;
Agradeço às Profas. Dras. Sonia Reis e Consuelo Alfaro pelo empenho em
ajudar, não só a mim, mas a todos os alunos de Seminário Dissertação, a
encontrarem um fio condutor de realidade para nossos devaneios fictícios;
Agradeço à Profa. Dra. Martha Alkimin pelas aulas ministradas, pelas
orientações dadas e pelo incentivo e apoio constantes;
Agradeço a todos os outros professores e não professores que, de forma
direta ou indireta, também são responsáveis por esta conquista.
O conhecimento é o nosso destino.
Friedrich Nietzsche
LEITE, Graziela de Oliveira. Rio de Janeiro:
Amor e erotismo, realidade e ficção: a
diversidade em Memoria de mis putas
tristes de Gabriel García Márquez.
Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas (Estudos Literários - Literaturas
Hispânicas),
Faculdade
de
Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
2011. Dissertação de Mestrado, 94 fls.
Resumo
Análise crítica da obra Memoria de mis putas
tristes (2004) do escritor colombiano Gabriel
García Márquez através de estudo comparativo
baseado na relação entre ficção e realidade. De
forma consciente ou não, o escritor entrelaça sua
vida a seu romance com traços, na maioria das
vezes, sutis. O estudo do gênero autobiográfico e
outras manifestações literárias afins, como
memória e romance autobiográfico, e a leitura
crítica da autobiografia de García Márquez, Vivir
para contarla (2007) são de extrema relevância
para a composição desta pesquisa e para o
entendimento de como o autor se destaca não
apenas como aquele que escreve a história, mas
como aquele que nela se insere.
LEITE, Graziela de Oliveira. Rio de Janeiro:
Amor e erotismo, realidade e ficção: a
diversidade em Memoria de mis putas
tristes de Gabriel García Márquez.
Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas (Estudos Literários - Literaturas
Hispânicas),
Faculdade
de
Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
2011. Dissertação de Mestrado, 94 fls.
Resumen
Análisis crítico de la obra Memoria de mis putas
tristes (2004) del escritor colombiano Gabriel
García Márquez a través del estudio comparativo
basado en la relación entre la ficción y la realidad.
Conscientemente o no, el escritor enlaza su vida
en su romance con rasgos, en su mayor parte,
sutiles. El estudio del género autobiográfico y
otras expresiones literarias como la memoria y la
novela autobiográfica, y la lectura crítica de la
autobiografía de García Márquez, Vivir para
contarla (2007) son muy importantes para la
composición de esta investigación y la
comprensión de cómo el autor se destaca no sólo
como lo que escribe la historia, sino como lo que
en ella se inserta.
LEITE, Graziela de Oliveira. Rio de Janeiro:
Amor e erotismo, realidade e ficção: a
diversidade em Memoria de mis putas
tristes de Gabriel García Márquez.
Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas (Estudos Literários - Literaturas
Hispânicas),
Faculdade
de
Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
2011. Dissertação de Mestrado, 94 fls.
Abstract
Critical review of the literary Memories of My
Melacholy Whores (Memoria de Mis Putas Tristes2004) by the colombian writer Gabriel García
Márquez through comparative study based on the
relationship
between
fiction
and
reality.
Consciously or not, the writer weaves his life into
his novel with traces, for the most part, subtle. The
study of the autobiographical genre and other
literary expressions like, such as memory and
autobiographical novel, and the critical reading of
Garcia Marquez's autobiography, Living to Tell the
Tale (Vivir para Contarla-2007), are very important
for the composition of this research and the
understanding of how the author, that stands out
not only as one who writes history, but as one that
falls on it.
SINOPSE
Análise crítica da obra Memoria de mis putas
tristes (2004) do escritor colombiano Gabriel
García Márquez. Abordagem da temática ficção e
realidade e sua relação com os aportes teóricos.
10
SUMÁRIO
O AUTOR
12
INTRODUÇÃO
16
1ª PARTE
A LITERATURA HISPANO-AMERICANA E GABRIEL
GARCÍA MÁRQUEZ
I. O CONTEXTO CULTURAL E LITERÁRIO DA AMÉRICA
HISPÂNICA
20
II. A IMPORTÂNCIA DE GARCÍA MÁRQUEZ
32
III. A AUTOBIOGRAFIA EM DEBATE
1. O gênero autobiográfico
38
1.1 Philippe Lejeune e o Pacto Autobiográfico
39
1.2 Discussões sobre autoficcção
43
2. A memória como pressuposto da escritura autobiográfica
47
3. A pós-modernidade
50
2ª PARTE
A OBRA DE GARCÍA MÁRQUEZ
MEMORIA DE MIS PUTAS TRISTES
IV. ENTRE O EROTISMO E O AMOR NO ROMANCE DO
ESCRITOR COLOMBIANO
1. Entre o amor e o erotismo
55
2. Entre o desejo e o corpo
60
3. Entre a subjetividade e a desterritorialização
11
3.1 Subjetividade e Singularidade
66
3.2 Territorialização e Desterritorialização
70
V. LEITURA CRÍTICA DE MEMORIA DE MIS PUTAS
TRISTES
1. Memoria de mis putas tristes: autobiografia ou romance
autobiográfico?
74
2. Memoria de mis putas tristes e o pós-modernismo
77
3. García Márquez, um narrador pós-moderno
81
CONCLUSÃO
85
BIBLIOGRAFIA
88
ANEXO: La soledad de América Latina (discurso do
prêmio Nobel)
12
O AUTOR
Escribo porque necesito que me quieran más.
Gabriel García Márquez
Gabriel García Márquez, escritor colombiano, um dos principais
nomes da literatura hispano-americana, primeiro filho do casal Gabriel Eligio
García e Luisa Santiaga Márquez Iguarán dentre sete homens e quatro
mulheres, nasceu num domingo chuvoso, dia 6 de março de 1927, às nove
horas da manhã, na casa de seus avós maternos no pequeno povoado de
Aracataca.
A família havia chegado à Aracataca dezessete anos antes do
nascimento de García Márquez, quando a United Fruit Company começava
a se instalar na região montando ali o monopólio do cultivo e exploração da
banana.
Gabo, diminutivo carinhoso de Gabriel, como o autor ficou
familiarmente conhecido, viveu na casa de seus avós maternos até os oito
anos de idade. Seu avô materno, o coronel Nicolás Ricardo Márquez Mejía,
se encarregava da formação do caráter de García Márquez, enquanto sua
avó, Tranquilina Iguarán, ficava a cargo de seu asseio pessoal. Depois da
morte do avô, García Márquez foi viver em Sucre com os pais juntamente
com sua avó, que já se encontrava em idade avançada, cega e com pouca
razão. Poucos meses depois, foi para Barranquilla, onde iniciou seus
estudos em um colégio de jesuítas, no qual, desde cedo, ganhou fama de
poeta pela facilidade com que decorava e recitava os clássicos espanhóis e,
13
principalmente, pelas sátiras em versos rimados que dedicava aos colegas
na revista do colégio. Em seguida, cursou o bacharelado em Zipaquirá em
um liceu para meninos. O liceu era composto por um grupo esplêndido de
jovens professores com uma mentalidade moderna que auxiliou muito na
formação político-intelectual de García Márquez.
Nove meses depois de concluir o bacharelado, García Márquez teve
seu primeiro conto publicado, em Bogotá, no Suplemento Literário de El
Espectador, o mais interessante e severo da época. Sobre o conto, Eduardo
Zalamea Borba publicou uma nota consagratória. Este crítico literário lúcido
e alerta à aparição de novos valores na qual dizia: “Con García Márquez
nace um nuevo y notable escritor”1.
Ainda em Bogotá, ingressou na Universidade Nacional da Colômbia
para realizar seus estudos de Direito, curso este que nunca foi concluído.
Após vários distúrbios sangrentos que culminaram com o assassinato do
líder popular Jorge Gaitán, García Márquez deixou Bogotá e foi viver em
Cartagena de Índias, onde começou a trabalhar como repórter em El
Universal. Em 1949 voltou a Barranquilla para trabalhar no jornal El Heraldo,
participando como repórter e mantendo uma coluna denominada La Jirafa,
sob o pseudônimo de Septimus 2. Em 1954 regressou a Bogotá para
trabalhar em El Espectador.
Depois de denunciar a corrupção do ditador Rojas Pinilla, García
Márquez foi aconselhado a deixar a Colômbia. Viajou então a Genebra,
como enviado especial para a Conferência dos Quatro Grandes, onde iria
1
García Márquez. Vivir para contarla. 2007, p. 275
Septimus Warren Smith era um personagem alucinado de Virgínia Woolf em A senhora
Dalloway.
2
14
ficar apenas o tempo da conferência, porém, por razões óbvias, permaneceu
cerca de três anos.
García Márquez ficou mundialmente conhecido por sua obra Cem
anos de solidão, de 1967 e pela forma que escreve, conhecida como
“realismo mágico”, que consiste em tratar acontecimentos da suprarealidade como algo natural. O mundo mágico de Gabo transfigura o real.
Em 1999, García Márquez foi diagnosticado com um câncer linfático.
Tal fato o incitou a escrever suas memórias publicadas em 2002 sob o título
de Vivir para contarla.
OBRAS
São muitas as obras de Gabriel García Márquez e podem ser
divididas, basicamente, em romances, contos e obras periódicas.
Os romances, em ordem cronológicas, são: La Hojarasca, 1955; El
canibal, 1955; Un día después del sábado, 1955; El coronel no tiene quien le
escriba, 1962; Los funerales de la Mamá Grande, 1962; La mala hora, 1966;
Cien años de soledad, 1967; Cuando era feliz e indocumentado, 1973; Chile,
el golpe y los gringos, 1974; Ojos de perro azul, 1974; El otoño del patriarca,
1975; Crónica de una muerte anunciada, 1981; Viva Sandino, 1982; El olor
de la guayaba, 1982; El secuestro, 1982; El asalto: el operativo con el que el
FSLN se lanzó al mundo, 1983; El amor en los tiempos del cólera, 1985; El
general en su laberinto, 1989; Del amor y otros demonios, 1994; Noticia de
un secuestro, 1996; e Memoria de mis putas tristes, 2004.
15
Os contos, também em ordem cronológica, são: Un Señor Muy Viejo
Con Unas Alas Enormes, 1966; Monólogo de Isabel viendo llover en
Macondo, 1968; La increíble y triste historia de la cándida Eréndira y de su
abuela desalmada, 1972; Todos los cuentos (1947-1972), 1976; e Doce
cuentos peregrinos, 1992.
Por fim, suas obras periódicas: Relato de un náufrago, 1955; Textos
costeños, 1981; Las Aventuras de Miguel Littín Clandestino en Chile, 1986;
Obra periodística 1: Textos costeños (1948-1952); Obra periodística 2: Entre
cachacos (1954-1955); Obra periodística 3: De Europa y América (19551960); Obra periodística 4: Por la libre (1974-1995) e Obra periodística 5:
Notas de prensa (1980-1984).
Além da produção já citada, podemos destacar sua autobiografia,
Vivir para contarla lançada em 2002.
PRÊMIOS E CONDECORAÇÕES
García Márquez é detentor de inúmeros prêmios e condecorações,
dos quais podemos destacar: Prêmio de Novela ESSO por “La mala hora” –
1961; Doutor Honoris Causa da Universidade de Columbia em Nova Iorque
– 1971; Medalha da Legião Francesa em Paris – 1981; Condecoração Águila
Azteca no México – 1982; Prêmio quarenta anos do Círculo de Jornalistas
de Bogotá – 1985; Membro Honorário do Instituto Caro y Cuervo em Bogotá
– 1993; Doutor Honoris Causa da Universidade de Cádiz – 1994; e, o mais
importante de todos, Prêmio Nobel de Literatura (Estocolmo, 1982).
16
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa foi motivada pela leitura da obra de Gabriel García
Márquez na Graduação, quando realizei uma análise crítica sobre Cien años
de soledad (2005) e fui elogiada pela Professora Doutora Mariluci da Cunha
Guberman, que ministrava as aulas. Posteriormente, li do mesmo autor
Memoria de mis putas tristes (2004) e verifiquei muitas semelhanças entre o
que eu já conhecia da vida de García Márquez e a história do narrador da
obra, havia ali uma proximidade entre o real e o imaginário muito instigante.
As relações entre ficção e realidade estão cada vez mais mescladas a
ponto de não se poder afirmar quando se trata de uma ou de outra em
muitas obras ditas ficcionais. Existe uma necessidade do olhar para si
mesmo, que vem aumentando gradativamente, isto é, falar a si mesmo e
reconhecer a si mesmo. O escritor, de forma consciente ou não, entrelaça
sua vida à sua história, não de forma categórica, mas com traços algumas
vezes sutis outras nem tanto.
Muitos são os estudos sobre a obra de Gabriel García Márquez,
inclusive sobre essa relação entre sua vida e sua obra. Porém, constatou-se
que não existem estudos profundos sobre seu último romance, Memoria de
mis putas tristes, fato que nos levou, ainda mais, a discorrer sobre sua obra.
Nossa proposta é um olhar crítico que identifique, no romance citado, uma
escritura autobiográfica e um entendimento a respeito do personagem que
emerge da ficção de García Márquez.
17
Embora encontremos relações entre o vivido e o narrado, não se pode
negar à memória o caráter literário, porém, o intrigante é pensar como as
recordações se tornam ficção. Quais traços são deixados pelo autor que
levam o leitor a ler um texto duvidando da ficcionalidade do mesmo ou de
sua realidade?
O presente trabalho visa a identificar esses traços que nos levam a
querer investigar a vida do personagem de Memoria de mis putas tristes
relacionando-a à vida do autor colombiano. Com esse fim, esta pesquisa foi
dividida em duas partes:
 a primeira parte, mais geral, subdivide-se em três capítulos;
 a segunda, mais específica, em dois.
Na primeira parte, no capítulo I, faremos uma síntese do panorama
cultural e literário da América Hispânica em que se insere García Márquez.
No segundo capítulo, dedicado exclusivamente à importância do autor
colombiano, trataremos de suas obras mais importantes e suas influências.
No terceiro capítulo, ainda dessa primeira parte, trataremos das questões
teóricas a serem abordadas no presente trabalho. Assim sendo, este
capítulo dedica-se, principalmente, ao estudo do gênero autobiográfico e
suas vertentes e também ao estudo da memória como pressuposto da
escritura3 autobiográfica.
Na segunda parte desta pesquisa dedicar-nos-emos a uma leitura
crítica aprofundada do romance Memoria de mis putas tristes, começando
por um estudo entre a relação amor e erotismo, desejo e corpo e como esse
3
Para Roland Barthes, a escritura e a escrita do escritor, é “a ciência dos gozos da
linguagem, seu Kamasutra.” (Barthes, s/d: 75)
18
tipo de escritura influencia na leitura da obra. No último capítulo,
abordaremos a questão da leitura do romance como um texto não só
ficcional, mas também que miscigena o real com o imaginário. Também
pensaremos nesse autor que se destaca não apenas como aquele que
escreve a história, mas como aquele que nela se insere.
Para a concretização desta pesquisa, adotamos como aparato
teórico para o estudo do gênero autobiográfico, principalmente, Philippe
Lejeune (2008),
como auxílio, pesquisamos os gêneros afins como
autoficção, romance autobiográfico, tomando alguns teóricos como Michel
Foucault (2004), Diana Klinger (2007), pesquisamos também o pósmodernismo, fazendo uso de Zygmunt Bauman (1998), Ihab Hassan (1988),
Linda Hutcheon (1991) e Andreas Huyssen (1991). Já para o estudo do
discurso amoroso, tomamos como base Roland Barthes (2006) e Octavio
Paz (2004), para o estudo do discurso memorialístico Walter Benjamin
(1996) e para o estudo sobre desejo Félix Guattari (2007).
19
1ª PARTE
A LITERATURA HISPANO-AMERICANA E GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
20
I. O CONTEXTO LITERÁRIO E CULTURAL DA AMÉRICA HISPÂNICA
No começo do século XX, o panorama literário hispano-americano foi
dominado por duas grandes correntes que abriram caminho para a narrativa
contemporânea: o modernismo e o realismo. O primeiro tem como temática
mais frequente a fantasia e o segundo o caráter local.
No processo do início do século passado até a narrativa
contemporânea, é importante destacar a prosa regionalista, porque, ainda
que mantenha a estrutura linear dos romances românticos com início, meio e
fim, começa a tratar de temas sociais. Dois acontecimentos político-sociais
marcaram o começo desse século. O primeiro, a Revolução Mexicana
(1910), um grande movimento popular contra os latifúndios e o imperialismo,
tinha como proposta a derrubada do governo, a reforma agrária e a
reorganização do ejido (terras comunitárias de origem indígena), o que
culminou com uma nova Constituição em 1917, considerada extremamente
progressista, na qual garantia os direitos individuais, o direito à propriedade,
leis trabalhistas, reconhecia o ejido e regulava a propriedade do Estado
sobre as terras, águas e riquezas do subsolo. O segundo acontecimento, a
Revolução Russa (1917), foi resultado de uma série de eventos políticos
que, após a eliminação da aristocracia russa, resultou no estabelecimento do
poder soviético e a criação da União Soviética que perdurou até o ano de
1991, e inspirou outros movimentos de caráter socialista pelo mundo,
imprimindo um caráter social na literatura. O tema mais comum dos
romances regionalista era a luta entre civilização e barbárie. O escritor
21
quase sempre apoiava aquela. Ele era uma espécie de porta-voz do povo,
sua função era a de denunciar a injustiça, defender os explorados e registrar
a realidade de seu país. Entre esses autores regionalistas, se destacam
Horacio Quiroga, José Eustasio Rivera, Ricardo Güiraldes e Rómulo
Gallegos.
Para iniciar os autores regionalistas, tratarei de Horacio Quiroga
(1878-1937), escritor uruguaio, considerado um dos mais importantes
contistas latino-americanos, viveu marcado por tragédias: seu pai morreu em
um acidente de caça, seu padrasto e sua primeira mulher se suicidaram,
Quiroga matou acidentalmente com um disparo seu amigo Federico
Ferrando e, por fim, diante da perspectiva de uma doença incurável, Quiroga
se suicidou com cianureto.
Sua obra mais famosa é Cuentos de amor, de locura y de muerte
(1917), na qual se encontra o famoso conto La gallina degollada.
Influenciado por Edgar Allan Poe, Quiroga tinha um estilo próprio que lhe
permitiu narrar magistralmente a violência e o horror que se escondem atrás
da aparente amenidade da natureza.
Seus personagens costumam ser
vítimas propícias da hostilidade e desmesura de um mundo bárbaro e
irracional.
O conto La gallina degollada retrata bem o estilo de Quiroga e narra a
história de um casal que tinha quatro filhos, todos com algum tipo de doença
mental. Ao chegar o quinto filho, uma menina, os dois temiam que pudesse
ser como os outros. Um dia o casal ordenou à empregada que lhes
preparasse uma galinha para o almoço e os quatro filhos doentes
22
observaram quando a empregada degolou a galinha; em seguida, os quatro
agarraram a irmã e a mataram à semelhança de como a empregada matou
uma galinha.
José Eustasio Rivera (1888-1928), escritor colombiano, foi professor
em 1909 e doutor em direto pela Universidade Nacional de Bogotá em 1917.
Trabalhou como advogado, foi deputado e inspetor do governo nas
explorações petrolíferas da região do rio Magdalena. Foi também
representante de seu país no México (1921), Peru (1924) e Cuba (1928).
Participou na marcação dos limites entre Venezuela e Colômbia, o que lhe
permitiu conhecer a selva tropical e lhe inspirou sua produção literária. É
autor de La Vorágine (1924), considerada uma das obras mais importantes,
não só na Colômbia, mas também de toda América Hispânica. É
considerada por muitos, o grande romance da selva latino-americana.
La Vorágine narra as peripécias de Arturo Cova e sua esposa na
selva amazônica, na qual o casal sofre situações que dão passo à ideia
central da obra em um redemoinho de acontecimentos. No decorrer da
trama, ficamos cientes das duras condições de vida dos peões durante a
febre da borracha na Amazônia, quando os indígenas eram escravizados
pelos seringueiros.
A ideia central do romance de José Eustacio Rivera é a de mostrar
com detalhe a exploração e a miséria humana a que são submetidos os
trabalhadores na selva colombiana e brasileira, em contraposição à
ganância dos proprietários dos meios de produção.
Déjame huir, oh selva, de tus enfermizas penumbras formadas con el hálito de los
seres que agonizaron en el abandono de tu majestad. ¡Tú misma pareces un
cementerio enorme donde te pudres y resucitas! ¡Quiero volver a las regiones
23
donde el secreto no aterra a nadie, donde es imposible la esclavitud, donde la vida
no tiene obstáculos y se encumbra el espíritu en la luz libre! ¡Quiero el calor de los
arenales, el espejo de las canículas, la vibración de las pampas abiertas! ¡Déjame
tornar a la tierra de donde vine, para desandar esa ruta de lágrimas y sangre que
recorrí en nefando día, cuando tras la huella de una mujer me arrastré por montes y
desiertos, en busca de la Venganza diosa implacable que sólo sonríe sobre las
tumbas! 4
La Vorágine não é apenas uma das primeiras obras sobre as selvas
da América, mas também o espelho da tragédia colombiana – o
despovoamento dos cafezais; a escravidão na selva; a subjugação cruel
com que as pessoas são submetidas pela cobiça do líquido branco das
seringueiras. A obra é um retrato real e simbólico da América Latina.
Ricardo Güiraldes (1886-1927), escritor argentino. Filho de uma
família rica, viveu entre viagens a Europa, Buenos Aires e San Antonio de
Areco. Em San Antonio, esteve em contato com a vida campesina e a dos
gauchos que serviram de inspiração para a criação de Don Segundo Sombra
(1926), sua obra mais importante. Foi ali onde conheceu a Segundo
Ramírez, personagem no qual se baseia a figura de Don Segundo Sombra.
Don Segundo Sombra é um romance rural argentino que evoca o
gaucho como personagem lendário. O livro está em primeira pessoa e foi
feito a partir de memórias, narradas por Fabio Cáceres, o filho não
reconhecido por seu pai e abandonado aos cuidados de “unas tías”. Desde
a perspectiva do narrador, o livro se propõe a tratar do desenvolvimento
espiritual e físico de um jovem que amadurece seguindo Don Segundo e que
vê neste gaucho um padrinho. Don Segundo se transforma perante o leitor
em uma visão viva, idealizada e mítica do herói dos pampas argentinos.
4
José Eustasio Rivera. La Vorágine. P.96
24
Há momentos, na obra de Güiraldes, em que Fabio evoca os dias de
sua infância e reconhece sua transformação em gaucho. Esta é atribuída a
Don Segundo, que ao fim de cinco anos fez de Fabio um homem, “mejor que
hombre, gaucho.” (p.193). O romance pode ser sintetizado no seguinte
esquema: primeiro, as recordações do órfão de quatorze anos; em seguida,
os dias de aprendizagem das tarefas de arreio e de doma, com a ajuda de
Don Segundo; e por último, o desenlace da separação definitiva.
Don Segundo Sombra é considerada uma das obras mestres da
tradição gauchesca e seu centro temático é a amizade de um gaucho
maduro e um jovem gaucho aprendiz.
Rómulo Gallegos (1884-1969), escritor venezuelano, considerado um
dos romancistas mais importantes do século XX, além de escritor, foi
político.
Começou sua carreira militando em oposição ao ditador Juan
Vicente Gómez. Em 1936 foi nomeado Ministro da Educação, em 1937 foi
eleito deputado e em 1947, nas primeiras eleições livres da Venezuela, foi
eleito Presidente da Nação, mas apenas se manteve na função entre
fevereiro e novembro de 1948 quando uma junta militar o destituiu.
As obras de Gallegos são realistas e podem ser divididas em três
temas fundamentais: crítica de costumes; ambiente crioulo onde expõe a
antinomia civilização e barbárie; paixões, desequilíbrios e anormalidades.
Todos os seus romances refletem seu interesse pela vida campesina
venezuelana. Sua obra mais importante é Doña Bárbara (1929) que se
passa na savana de Apure, região de Arauca. Doña Bárbara representa uma
Venezuela cruel, insensível pela corrupção, traição, despotismo, falta de
25
liberdade, mas mostra também um povo que ama, sofre e espera para lutar
contra a opressão.
O romance de Gallegos narra o regresso de Santos Luzardo a uma
fazenda nos llanos5 venezuelanos e seu encontro com Doña Bárbara,
proprietária da fazenda. É uma análise da sociedade que vive nos llanos, e
em geral, do país. Representa o conflito entre civilização e barbárie. Doña
Bárbara simboliza a selvageria da região: arbitrária, violenta e astuta. Seu
comportamento é uma reação ao trauma que sofreu na infância, vítima de
abuso sexual. Santos Luzardo representa a civilização e o progresso, é um
homem citadino, advogado e de essência boa.
O romance regionalista persegue um fim social. Rómulo Gallegos
desejava uma solução para o caudilhismo6.
No processo cultural e literário ocorrido no século XX na América
Hispânica, destaca-se o boom da literatura hispano-americana, que começa
nos anos 40, passa pelos 60, chegando aos 70, considerado por José
Donoso7 como o pós-pós-bom.
É difícil identificar a data do boom da literatura hispano-americana,
entretanto, não se duvida da importância da data de 1940. Ao fim da Guerra
Civil espanhola, estoura a Segunda Guerra Mundial. No primeiro conflito, os
intelectuais hispano-americanos tomaram partido dos que lutavam pela
República Espanhola. Muitos intelectuais espanhóis foram condenados ao
5
Os llanos são planícies extensas da América do Sul, caracterizadas pela vegetação, que se
assemelha ao cerrado brasileiro.
6
Poder político caracterizado pelo agrupamento de uma comunidade em torno de um líder
autoritário, porém carismático. Em geral, tais líderes eram representantes das elites
tradicionais, como fazendeiros e militares.
7
Escritor, professor e jornalista chileno (1924-1996).
26
exílio, e a maioria se instalou na América Hispânica, principalmente na
Argentina e no México, o que contribuiu para a revitalização do panorama
cultural já que a Guerra Civil espanhola quase pôs fim a produção de
revistas e livros. Desta maneira, importantes Casas Editoriais da Espanha se
instalaram na América de língua espanhola, facilitando a publicação de livros
e revistas neste continente.
Outro fator de grande importância para o boom foi o impacto do
surrealismo, que suscitou grande interesse para os hispano-americanos. O
surrealismo promoveu o interesse pelo mágico e pelo maravilhoso, que
estão mais presentes no popular, temáticas que influenciaram as obras de
autores como o escritor cubano Alejo Carpentier (1904-1980), que propôs
em 1948 uma nova forma de narrar no prólogo de seu romance El reino de
este mundo. Ele parte de uma premissa fundamental: para admitir o
maravilhoso é necessária a fé; as crenças são as que mudam o mundo.
Também afirmou que a narrativa maravilhosa se inicia com a crônica
historiográfica desde o Descobrimento da América: os europeus se
extasiaram com a fauna, a flora e o ser humano aqui encontrado.
Outro romance muito importante nos anos 40 foi El señor presidente
(1946) do escritor guatemalteco Miguel Ángel Asturias (1899-1974). Esta
obra é uma das primeiras dos chamados romances de ditador. Trata-se de
uma obra ambientada em um país anônimo e com um tirano cujo nome não
é mencionado. Esse romance se converte em um modelo intencionalmente
surrealista, onde a caricatura e o exagero servem para pensar a triste
realidade histórica de muitos países latino-americanos.
27
Os anos 60 marcam, sem dúvida, a etapa dourada do romance
hispano-americano, devido à quantidade e qualidade das obras e ao
extraordinário êxito editorial. Este fenômeno da década de 60 é mais
conhecido como o boom do romance latino-americano.
O reconhecimento internacional dos autores da época do boom se
deve ao fato de que muitos viveram longe de seus países: Julio Cortázar
(1914-1984), escritor argentino, abandonou seu país e se refugiou em Paris;
Gabriel García Márquez (1927), escritor colombiano, teve que abandonar a
Colômbia em 1955 depois de denunciar a corrupção do ditador Rojas Pinilla;
Mario Vargas Llosa (1936), escritor peruano, viveu integrado à vida européia
por mais de vinte anos; Carlos Fuentes (1928), escritor mexicano, levou uma
vida nômade, devido a seus diversos afazeres políticos e intelectuais.
Os romances do boom se distinguem por terem uma série de
inovações estruturais, desenvolvendo o fantástico e introduzindo técnicas
vanguardistas de narração. O realismo mágico pode ser definido como o
interesse de mostrar o irreal ou o estranho como algo cotidiano e comum, no
qual convive a população.
Os principais nomes desta época dourada da literatura latinoamericana são: Jorge Luis Borges (1889-1986), Juan Rulfo (1918-1986),
Carlos Fuentes (1928), Julio Cortázar (1914-1984), Mario Vargas Llosa
(1936), Augusto Roa Bastos (1917-2005) e Gabriel García Márquez (1927).
Jorge Luis Borges, escritor argentino, um dos mais significativos da
literatura universal do século XX, possui a particularidade de nunca ter
escrito um romance. Em sua juventude viveu na Suíça e na Espanha e
28
regressou a Buenos Aires em 1921, onde iniciou uma fecunda atividade
cultural. Os temas e metáforas na obra de Borges são sempre recorrentes,
ou seja, aparecem uma e outra vez de forma obsessiva para mostrar as
angústias do próprio escritor. Labirintos que simbolizam o universo em sua
forma de caos ordenado; bibliotecas que guardam as sabedorias, entre
outras. Desta forma Borges pretendia racionalizar os mistérios da existência
e o sentido do universo.
Juan Rulfo, escritor mexicano, até 1955 não era mais que um simples
funcionário. Embora tivesse publicado, em 1953, El llano em llamas, seu
livro de contos, foi com a publicação do romance Pedro Páramo que teve o
reconhecimento da crítica e do público.
Rulfo ainda criança viu sua família aniquilada pela rebelião dos
cristeros8. Reproduziu esta experiência própria no fantasmagórico povoado
de Comala, habitado por mortos, que aparece em Pedro Páramo.
O
narrador de boa parte da obra, Juan Preciado, chega a Comala conduzido
por Abundio para cumprir uma promessa feita a sua mãe, já morta, de
buscar seu pai Pedro Páramo. No transcorrer da obra, Preciado percebe que
todas as pessoas com que falou estão mortas, simultaneamente dá-se conta
que está morto e, a partir desse momento, desde a tumba, assiste ao
desenlace da história na qual Pedro Páramo fora assassinado.
Rulfo cria com Pedro Páramo um universo tenso onde a vida e a
morte não se diferenciam, onde a realidade e o sobrenatural se entrelaçam.
8
Luta entre a igreja e o estado do México contra as provisões anticlericais da Constituição
Mexicana de 1917.
29
Além disso, coloca em evidência a existência de um tempo circular, onde
princípio e fim se confundem.
Carlos Fuentes, escritor mexicano, filho de diplomata, passou grande
parte de sua vida fora do México, o que contribuiu para sua formação culta e
cosmopolita; não obstante, sua obra se dedica integramente à análise da
realidade histórica de seu país, tanto em seus romances quanto em seus
ensaios. Fuentes analisa em sua narrativa a recente história do México a
partir de um ponto de vista pessimista que não oculta a frustração ante os
antigos princípios revolucionários. Entre suas obras mais importantes,
destacam-se: La región más transparente (1959), Zona sagrada (1967),
Cambio de piel (1967), Terra nostra (1975), Cristóbal Nonato (1987) y Los
años con Laura Díaz (1999). Seu compromisso político e social sempre
transparece em suas obras, mas foi na revista Tiempo Mexicano em 1972,
que afirmou:
Lo que un escritor puede hacer políticamente debe hacerlo también como
ciudadano. En un país como el nuestro el escritor, el intelectual, no puede ser ajeno
a la lucha por la transformación política que, en última instancia, supone también
una transformación cultural.9
Julio Cortázar, escritor argentino, também é um dos grandes nomes
da literatura hispano-americana. Em 1951 se autoexiliou em Paris por causa
de sua incompatibilidade com o peronismo. Foi um autor comprometido com
a realidade política da América Hispânica. Obras como El libro de Manuel
(1973) constituem uma dura peça contra a tortura na América Latina.
9
http://www.clubcultura.com/clubliteratura/clubescritores/carlosfuentes/perfil.htm Acesso em
19 de agosto de 2010.
30
Uma das obras mais importantes de Cortázar é Rayuela (1963), de
influência surrealista. O romance é como um quebra-cabeça, com uma
história mais ou menos linear, quase anedótica, a qual junto a capítulos que
o autor assinala como prescindíveis, existe uma ordem com a possibilidade
de se alterar. São múltiplas maneiras de ler esta obra, que subverte o
esquema do romance tradicional, mas todas conduzem ao mesmo ponto: ao
caos e à intencionada desordem criada por Cortázar para descrever o
absurdo da realidade tal como a percebemos. Este romance revolucionário
fica convertido em uma sobrecarregada análise da solidão, do frustrado
desejo de encontro entre seres humanos. Rayuela marca o início da “obra
aberta” na América Latina, pois esse romance experimental assinala a
relação autor-leitor, em que o leitor é copartícipe e copadeciente da obra.
Mario Vargas Llosa, escritor peruano, conheceu as diversas regiões
do Peru, viveu em Madrid, Paris e Barcelona, cidade onde publicou todos os
seus romances. Sua narrativa conta com dois filões: sua própria vida e seu
país. Não é um autor localista. De seu país obtêm os elementos sociais que
emprega para construir suas críticas, válidas contra qualquer sistema
denunciável. Com dados autobiográficos, tece os múltiplos argumentos e
episódios que aparecem em seus romances, construindo tramas sombrias
ou humorísticas, mas sempre envolventes.
Vargas Llosa passou dois anos no colégio militar, cenário de seu
primeiro romance, La ciudad y los perros (1963), obra que lhe deu fama
internacional. Seu segundo romance, La casa verde (1965) está centrado
nos ambientes da selva e um modesto prostíbulo provinciano que marcou
31
sua adolescência. Em La tía Julia y el escribidor (1977), Vargas Llosa leva
ao extremo a auto-confissão. Nesta obra relata sua própria juventude,
incluindo membros de sua família e sua primeira esposa como personagens.
Augusto Roa Bastos, escritor paraguaio, participou, voluntariamente,
da guerra do Chaco entre Bolívia e Paraguai quando tinha apenas 15 anos.
Viveu exilado primeiro na Argentina e depois na França por quase 40 anos,
durante o regime do ditador Alfredo Stroessner (1957-1989). Escreveu a
obra mais consagrada da literatura paraguaia, Yo el Supremo (1974).
A obra de Roa Bastos baseia-se na figura de José Gaspar Rodríguez
de Francia, ditador que comandou o Paraguai no século XIX (1814-1840).
No entanto, o autor tinha como objetivo alcançar as ditaduras da metade do
século XX que ocorriam no continente, principalmente a ditadura do general
Alfredo Stroessner.
Gabriel García Márquez, o grande escritor colombiano, é um dos
autores mais populares da literatura hispano-americana. Será visto no
capítulo seguinte.
32
II. A IMPORTÂNCIA DE GARCÍA MÁRQUEZ
Una realidad que no es la del papel, sino que vive con nosotros y determina cada
instante de nuestras incontables muertes cotidianas, y que sustenta un manantial de
creación insaciable, pleno de desdicha y de belleza, del cual éste colombiano
10
errante y nostálgico no es más que una cifra más señalada por la suerte.
A partir do fragmento retirado do discurso feito por Gabriel García
Márquez em Estocolmo ao receber o prêmio Nobel de Literatura, podemos
entender um pouco sua forma de escrever. Em uma entrevista em Lima a
Mario Vargas Llosa, o escritor colombiano afirma que todas as suas histórias
são baseadas em fatos reais e, por isso, em seu discurso, comenta que a
realidade não é a da folha de papel, mas sim a que se vive e que sustenta
um insaciável mundo criativo. Ele tenta dessa forma transfigurar a realidade.
A partir de histórias ouvidas ou de acontecimentos presenciados, escreve
suas obras com uma mescla de realidade e encantamento.
García Márquez é considerado um dos principais romancistas do
continente e renovador da tradição colombiana do romance. Suas obras, em
geral, giram em torno de um mesmo eixo. Um dos assuntos mais abordados
pelo escritor é a questão da solidão. Vargas Llosa, na mesma entrevista já
citada, chama a atenção para este fato: afirma o curioso de os livros de
García Márquez serem tão populosos e tratarem de tal tema. “Embora nem
sempre uma (obra) complete os dados da anterior, há uma interrelação entre
as ficções, cada uma das quais é etapa inseparável das outras na
construção da realidade fictícia” (Jozef, 1974: 128).
10
O discurso feito por García Márquez em Estocolmo como forma de agradecimento ao
prêmio Nobel de Literatura encontra-se no Anexo do presente trabalho. O fragmento em
destaque encontra-se na folha IV do anexo.
33
São muitas as obras de García Márquez que serviriam de exemplos,
porém tornaria esta pesquisa longa e cansativa, por isso nos deteremos em
algumas das mais comentadas pelos críticos que formam parte da
bibliografia deste trabalho. Serão elas: La hojarasca, La mala hora, El otoño
del patriarca e Cien años de soledad.
La hojarasca é o primeiro romance de García Márquez publicado em
1955. Nele, aparece pela primeira vez o povoado de Macondo. Desde a
publicação do romance, o autor colombiano foi atacado pelos críticos
esquerdistas que o acusavam de não enfrentar diretamente os problemas
sociais na Colômbia. Também o criticavam pela forte influência faulknerina.
A técnica utilizada na obra, corresponde ao “fluxo de consciência" 11,
pelo qual se revela a elaboração da intriga. Fábula e trama não se
correspondem e, cabe ao leitor, a partir dos dados proporcionados por três
personagens – o avô, a mãe e o menino – ordenar os fatos. O que é omitido
pelos
personagens
também
constitui
parte
indispensável
para
o
entendimento da história, pois o que não se diz, não só em La hojarasca,
mas em toda obra de García Márquez, é sempre de suma importância.
Esse romance é essencial para a obra do escritor colombiano, pois,
como afirma Bella Jozef (1974: 129):
...La hojarasca, será uma das constantes da obra de G.M.: episódios superpostos,
visão prismática de personagens e acontecimentos, o presente contínuo, o
ambiente cheio de mistério, o flash-back decorrente de associações. Além disso,
vários acontecimentos históricos voltarão nas demais obras.
11
Jozef, Bella. O espaço reconquistado. 1974, pg. 129
34
Uma particularidade desse romance é o fato de o avô ser o único
personagem de García Márquez que, ao enfrentar-se com sua própria
existência, não morre ou se retira do mundo.
La mala hora (1966) é uma obra que retrata a atmosfera de medo e
violência que envolve um povoado colombiano. A história desenrola-se a
partir do aparecimento de misteriosos pasquins reveladores de negociatas,
infidelidades, filhos bastardos. Ninguém sabe quem é ou quem são os
responsáveis por esses pasquins e muito menos quem será a “próxima
vítima”. Os personagens são muito bem construídos, e apesar de o prefeito,
vítima de seu próprio poder, parecer o personagem principal, não se pode
afirmar que realmente o seja, pois não existe um herói individual, o
protagonista parece ser a própria “violência que aparece por trás das
mentiras em que vive mergulhada a cidade” (Jozef, 1974: 130).
Assim como em Cien años de soledad, em La mala hora chove por
mais de quatro anos e essa chuva funciona como um elemento de
dissolução. O irreal se sobrepõe à objetividade. Além de elementos
imaginários, “o autor converte os objetos de aparência objetiva, da vida de
todos os dias, em outra ordem (ambiguidade), e o sobrenatural, prodigioso,
aparece como tal. Os volantes anônimos vão implacavelmente derrotando a
realidade objetiva” (Jozef, 1974: 130).
A figura do prefeito de La mala hora prefigura a do ditador de El otoño
del patriarca (1975), ditador esse fictício, mas que poderia ser comparado a
qualquer ditador real que governou algum país da América Latina de
meados a fim do século passado.
35
O romance aborda a história política e a vida de um homem que viveu
por mais de cem anos e por quase toda a vida foi o ditador de uma nação.
Viveu uma vida solitária e desfrutou de muito poder, tendo pouco ou nenhum
limite ao governar. Morreu de morte natural. Filho de pai desconhecido e de
uma mulher do povo, chegou ao poder matando a seus rivais e explorando o
apoio de ingleses e norte-americanos. Além da realidade do poder investida
no personagem, Gabriel García Márquez cria em torno do ditador um mito.
En “los tiempos de gloria” que precedieron su otoño curaba a leprosos, paralíticos y
ciegos con puñados de sal, procreaba cinco mil hijos, identificaba a un enemigo
entre una muchedumbre después de años de búsquedas infructuosas por parte de
sus agentes, hacía construir un barrio entero nuevo en torno a la casa de la mujer
amada, y así siempre hasta que trasciende el estado mítico y alcanza la divinidad.12
El otoño del patriarca confirma a tese de que existe nas obras de
García Márquez um conflito entre, por um lado, um apego a vida, e, por
outro, um rechaço à mesma, cuja expressão é a solidão dos personagens.
Cien años de soledad é, sem dúvida, a grande obra do realismo
mágico e a obra mais importante e reconhecida mundialmente de Gabriel
García Márquez. Traduzida em várias línguas, é um dos maiores êxitos
editoriais da literatura atual em língua espanhola. Foi publicada em 1967, na
época dourada da literatura hispano-americana. A obra fez de García
Márquez uma espécie de mito.
A história de Cien años de soledad não é somente a história do
coronel Aureliano Buendía, mas é também a história de toda sua família,
desde a fundação de Macondo até que o último Buendía decifra os
pergaminhos e descobre que as estirpes condenadas a cem anos de
12
Shaw, Donald. Nueva narrativa hispanoamericana. 1985, pg. 117
36
solidão, como os Buendía, não tinham uma segunda oportunidade sobre a
terra.
O romance está cheio de metáforas. Pode-se comparar a fundação de
Macondo com a história bíblica da criação do mundo, na qual ao princípio
era necessário apontar as coisas com o dedo porque não tinham nomes. A
história de Macondo também tem muito a ver com a história da América
Latina sabendo-se que para os espanhóis, muitas coisas que existiam no
recente mundo precisavam de nomes.
Como Cervantes, García Márquez estabelece as fronteiras da
realidade dentro de um livro e as fronteiras de um livro dentro da realidade.
Por isso, Cien años de soledad supõe duas leituras porque supõe, também,
duas escrituras. A primeira leitura coincide com uma escritura que supomos
certa: um escritor que relata linearmente, cronologicamente, a história das
genealogias de Macondo. A segunda: a crônica de Macondo já estava
escrita nos papéis de um cigano chamado Melquíades, cuja aparição como
personagem, cem anos antes, resulta idêntica a sua revelação como
narrador cem anos depois.
Na verdade, García Márquez conserva a narração linear, mas introduz
novos recursos para atualizar o passado e fundir a corrente temporal. O uso
dos mesmos nomes: Aureliano filho de José Arcadio filho de Aureliano… e
as mesmas personalidades fazem com que o tempo pareça cíclico. A vida
dos Buendía é uma constante repetição de tragédias anteriores nas quais as
tendências antagônicas se enfrentam.
Nas primeiras gerações, os
Aurelianos eram retraídos, mas de mentalidade lúcida; os José Arcadio eram
37
impulsivos e empreendedores, a partir da terceira geração as posições se
invertem, mas as tendências antagônicas permanecem.
Um dos símbolos mais assinalados no romance é, sem dúvida, o dos
peixinhos de ouro: fazer para desfazer. Não somente o coronel Aureliano
Buendía, com os peixinhos de ouro, fazia para desfazer, mas também
Amaranta com a mortalha, José Arcadio com os pergaminhos e Úrsula com
as recordações, vivem em um tempo cíclico que parece não ter nem um
princípio tão pouco um fim.
García Márquez, em Cien años de soledad, funde o passado e o
presente em uma linha contínua.
Pero, en su obra, García Márquez introduce también constantes referencias a la
realidad latinoamericana más lacerante, con lo que, dentro de su presentación
mágica, el correlato histórico está presente: la violencia de los hombres dentro de
una naturaleza salvaje y hostil, los pronunciamientos militares y las guerras civiles,
la explotación norteamericana, representada por la anónima y poderosa Compañía
Bananera. Todo ello se conjuga con las creencias, supersticiones, hechos mágicos
y milagros que constituyen la esencia cotidiana de Latinoamérica.13
Gabriel García Márquez, utilizando-se do folclore espanhol e
ameríndio, dos contos e das lendas populares, de romances e da história,
unindo tudo isso à sua grande imaginação, criou uma nova forma de
escrever romances tendo como apoio principal a tradição.
13
Sánchez Ferrer, José Luis. El realismo mágico en la novela hispanoamericana. 1990, pg.
72
38
III. A AUTOBIOGRAFIA EM DEBATE
1. O gênero autobiográfico
De onde vem esta necessidade de escrever sobre si mesmo? Desde
jovens já somos enlaçados por este mundo das escritas de si quando somos
apresentados
ao
diário,
no
qual
deixamos
nossas
impressões,
acontecimentos, alegrias, tristezas, e fazemos isso dia após dia. Muitas
pessoas têm os diários como melhores amigos, confidentes, pois para o
diário pode-se dizer tudo, ou melhor, escrever tudo. Não há restrições entre
o escritor do diário e o objeto de sua escritura. Para muitos, o diário é o
primeiro a saber sobre o primeiro amor, o primeiro beijo, a primeira
decepção.
Fazer do diário, ou qualquer outro tipo de texto no qual escrevemos
sobre nós mesmos, um amigo e confidente, é uma forma que encontramos
de enganar a solidão. Segundo Leonor Arfuch (2003:54), “el sujeto siempre
intenta “engañar” su soledad”, e uma das maneiras que o homem encontrou
para enganar a solidão foi escrevendo sobre si mesmo. Esta ideia é
compartilhada por outros teóricos, como Michel Foucault (2004:145): “a
escrita de si mesmo, [...] atenua os perigos da solidão”.
No entanto, existem várias formas de escritas de si: diários,
memórias, correspondências, biografias, autobiografias, porém, o que vai
interessar a este estudo, serão as autobiografias e as autoficções.
39
1.1 Philippe Lejeune e o Pacto Autobiográfico
Para tratar de autobiografia, será utilizado como base o teórico
francês Philippe Lejeune. Em O Pacto Autobiográfico (2008), Lejeune afirma
que a palavra “autobiografia” foi importada da Inglaterra no início do século
XIX e era empregada em dois sentidos. O escolhido por ele foi proposto por
Larousse, em 1886: “Vida de um indivíduo escrita por ele próprio”. Lejeune
ainda cita Vapereau14, que conceitua (2008:53) “autobiografia” como “obra
literária, romance, poema, tratado filosófico etc., cujo autor teve a intenção,
secreta ou confessa, de contar sua vida, de expor seus pensamentos ou de
expressar seus sentimentos”. Em seguida, Lejeune transcreve um
comentário feito pelo próprio Vapereau sobre sua definição no qual afirma
(2008:54) que “a autobiografia abre um grande espaço à fantasia e quem a
escreve não é absolutamente obrigado a ser exato quanto aos fatos, como
nas Memórias, ou dizer toda a verdade, como nas confissões”. Após
aprofundado estudo, Lejeune (2008:14) define autobiografia como:
“Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria
existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua
personalidade.”
A partir desta definição, Lejeune sugere quatro categorias que devem
ser preenchidas por uma obra para que esta seja considerada uma
autobiografia. As categorias são:
1. Forma da linguagem:
a) narrativa;
b) em prosa.
2. Assunto tratado: vida individual, história de uma personalidade.
14
Louis Gustave Vapereau (1819-1906), escritor e lexicógrafo francês famoso,
principalmente, por seus dicionários.
40
3. Situação do autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa
real) e do narrador.
4. Posição do narrador:
a) identidade do narrador e do personagem principal;
b) perspectiva retrospectiva da narrativa.15
Obras que preencham apenas parte destas categorias não podem ser
consideradas como autobiografias, mas podem ser gêneros vizinhos, como
memórias, biografias, diário, etc. No entanto, para uma obra ser considerada
uma autobiografia, além de preencher todas as categorias supracitadas, é
preciso que haja também uma relação de identidade entre, autor, narrador e
personagem. Para Lejeune (2008:24), este é um critério muito simples,
autor, narrador e personagem são dotados da mesma identidade, “que
define, além da autobiografia, todos os outros gêneros da literatura íntima
(diário, auto-retrato, auto-ensaio)”. Se o critério de identidade não for
preenchido, por mais que se tenham razões suficientes para não se duvidar
que a história seja a história do autor, a obra não pode ser considerada uma
autobiografia, de acordo com Lejeune (2008:24), “já que esta pressupõe, em
primeiro lugar, uma identidade assumida na enunciação, sendo a
semelhança produzida pelo enunciado totalmente secundária”.
Obras deste tipo, para Lejeune, seriam enquadradas na categoria de
“romance autobiográfico”. A concepção do teórico (2008:25) sobre “romance
autobiográfico” pressupõe:
“... textos de ficção em que o leitor pode ter razões de suspeitar, a partir das
semelhanças que acredita ver, que haja identidade entre autor e personagem, mas
que o autor escolheu negar essa identidade ou, pelo menos, não afirmá-la. [...] À
diferença da autobiografia, ele comporta graus. A “semelhança” suposta pelo leitor
pode variar de um vago “ar de família” entre o personagem e o autor até uma quase
transparência que leva a dizer que aquele é o autor “cuspido e escarrado”. [...] Já a
autobiografia não comporta graus: é tudo ou nada.”
15
Lejeune, Philippe. O pacto autobiográfico. 2008, pg. 14
41
Lejeune é bem radical ao tratar de seu pacto; o pacto autobiográfico é
a afirmação da identidade autor, narrador, personagem. Se não há
identidade, não há autobiografia, o que pode haver é uma ficção
autobiográfica, esta sim pode ser exata ou inexata. Exata quando o
personagem se parece com o autor, inexata quando difere.
Lejeune cria algumas combinações entre o nome do personagem e o
nome do autor para definir o pacto autobiográfico, porém a combinação que
vai interessar a este estudo será nome do personagem = 0, pois, como será
visto mais adiante, o nome do personagem principal da obra Memoria de mis
putas tristes não é mencionado, ou seja, o personagem não tem sua
identidade explicitada.
Nome do personagem = 0: é o caso mais complexo, pois indeterminado. Tudo
depende então do pacto feito pelo autor. Três casos são possíveis:
a) Pacto romanesco (a natureza de “ficção” do livro é indicada na capa ou na
página de rosto).
b) Pacto = 0: não apenas o personagem não tem nome, mas o autor não firma
nenhum pacto, - nem autobiográfico, nem romanesco. A indeterminação é total.
c) Pacto autobiográfico: o personagem não tem nome na narrativa, mas o autor
declarou-se explicitamente idêntico ao narrador, em um pacto inicial.16
Lejeune deixa claro que a única categoria que se encaixaria
perfeitamente como autobiografia seria a “c”; a “a” seria o que chamou de
romance autobiográfico; e a “b” será classificada de acordo com o humor do
leitor, ou seja, conforme o leitor interpreta tal leitura.
A importância de identidade autor, narrador, personagem, vai além do
pacto autobiográfico, ele também é um pacto referencial, pois textos deste
gênero, na concepção de Lejeune (2008:36), “se propõem a fornecer
informações a respeito de uma “realidade” externa ao texto e a se submeter
16
Id. Ibid. pgs. 29-30
42
portanto a uma prova de verificação”. No entanto, textos enquadrados como
autobiográficos ou biografias, etc., que podem ser submetidos à verificação,
também estão sujeitos ao subjetivismo de quem escreve, pensando nisso, e
em afirmações feitas, por exemplo, por André Gide17: “As Memórias só são
sinceras pela metade, por maior que seja a preocupação com a verdade:
tudo é sempre mais complicado do que dizemos. Talvez se chegue mesmo
mais perto da verdade no romance.”
18
E por François Mauriac19:
Mas isso significaria procurar desculpas muito nobres por ter-me limitado a um só
capítulo de minhas memórias. A verdadeira razão de minha preguiça não seria
porque os romances expressam o essencial de nós mesmos? Só a ficção não
mente; ela entreabre na vida de um homem uma porta secreta, por onde se insinua,
fora de qualquer controle, sua alma desconhecida.20
Lejeune (2008:43) afirma que o problema não é saber qual, a
autobiografia ou o romance, é mais verdadeiro, pois à autobiografia falta a
complexidade, a ambiguidade, e ao romance, a exatidão, mas o que tem de
“revelador é o espaço no qual se inscrevem as duas categorias de textos”, e
a este espaço Lejeune chamou de “espaço autobiográfico”. O leitor passa
então a ler toda produção narrativa como um registro autobiográfico,
buscando ali não a exatidão, mas dados que estejam relacionados com o
real.
O pacto autobiográfico, que até então era limitado, começa a perder
tal limitação, pois abre margem à ambiguidade. O próprio Lejeune afirma
que o que ele chama de autobiografia pode pertencer a dois sistemas
17
André Gide (1869-1951), escritor francês, recebeu o Nobel de Literatura de 1947.
Philippe Lejeune. Ibid. pg. 42
19
François Mauriac (1885-1970), escritor francês, recebeu o Nobel de Literatura de 1952.
20
Philippe Lejeune. Ibid. pg. 42
18
43
diferentes: um referencial e outro literário. No primeiro, o compromisso
autobiográfico é um ato, já no segundo, não existe pretensão à
transparência. É muito complexo falar em pacto, em contrato de leitura a
partir de instâncias (autor, obra e leitor) que não participam ao mesmo tempo
de uma mesma experiência. Existem leituras diferentes de um mesmo texto.
O autor que escreve tem sua interpretação da obra, porém o público que lerá
tal obra terá interpretações diversas, pois esse público não é homogêneo. A
verdade é que o pacto autobiográfico, que supõe reciprocidade, só envolve
uma parte, a do autor, pois o leitor é livre para ler, ou não e ainda ler como
quiser.
O fato de o pacto autobiográfico deixar margens à ambiguidades e
controvérsias que há algum tempo outras expressões mais abrangentes e
flexíveis vem surgindo. No fim dos anos 1970 iniciou-se o uso da expressão
“relatos de vida” e no início dos anos 1980, “escritas do eu” ou “escritas de
si”. Tais expressões têm como função ampliar o campo, de acordo com
Lejeune (2008:82) “incluindo a “verdadeira” literatura, isto é, a ficção,
fazendo do pacto de verdade uma especificação secundária”. Sobre esse
tema será a próxima parte deste trabalho: entender um pouco sobre o que
são essas “escritas de si” e o que vem a ser autoficção.
1.2 Discussões sobre autoficção
O termo “autoficção” surge com o crítico e romancista francês Sergue
Doubrovsky, que escreve em 1977 o romance Fils, no qual o narrador tem o
44
mesmo nome do autor, porém suas peripécias são fictícias. A este modelo
de romance Doubrovsky chamou autoficção. Para ele (In: Klinger, 2007:47),
“autoficção não é “nem autobiografia, nem romance, e sim, no sentido estrito
do termo, funciona entre os dois, em um re-envio incessante, em um lugar
impossível e inacessível fora da operação do texto”.
Para Klinger (2007:26), é válido pensar o conceito de “autoficção”
juntamente com o de “perfomance”, pois “a escrita de si não é apenas um
registro do eu, mas constitui o próprio sujeito, performa a noção de
indivíduo”. Conforme Klinger (2007:53-54).
... o texto autoficcional implica uma dramatização de si que supõe, da mesma
maneira que ocorre no palco teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e
fictício, pessoa (ator) e personagem. Então não se trata de pensar, como o faz
Philippe Lejeune, em termos de uma “coincidência” entre “pessoa real” e
personagem textual, mas a dramatização supõe a construção simultânea de ambos,
autor e narrador. Quer dizer, trata-se de considerar a autoficção como uma forma de
perfomance.
A autoficção é, então, esta tensão entre o que existe de real e o que é
imaginário no ato da escritura. O autor, que se diz também personagem de
seu romance, pode ser ele e muitos outros ao mesmo tempo, pode depositar
no ato da escritura acontecimentos reais, mas ao mesmo tempo pode
transformar o real de forma que ainda possa causar dúvidas ao leitor se
aquilo é ou não real, ou transformar de tal forma que ao leitor não reste
dúvida de que aquilo é imaginário, fictício.
A autoficção, assim como a arte da performance, se apresenta ao
leitor como um texto inacabado, em processo de construção, como se o
leitor pudesse acompanhar o processo da escritura, pois o texto autoficcional
quebra com a limitação do pacto autobiográfico proposto por Lejeune. Uma
obra de caráter autoficcional pode criar o real como quiser e também ela
45
pode criá-lo quantas vezes for necessário para o escritor. Assim como um
ator, que interpreta um personagem teatral recria tal personagem cada vez
que o encena, o autor autoficcional cria e recria o seu real enquanto escreve
sua obra.
A autoficção, além de ser comparada à perfomance, dá conta também
do que se chama de o “retorno do autor”, pois de acordo com Klinger
(2007:38) “problematiza a relação entre as noções de real (ou referencial) e
de ficcional, assim como a tensão entre a presença e a falta – retorno e
recalque –, ainda que não necessariamente em relação com o discurso do
trauma”. Este retorno do “eu”, ainda conforme Klinger (2007:44), “surge em
sintonia com o narcisismo da sociedade midiática contemporânea mas, ao
mesmo tempo, produz um reflexão crítica sobre ele mesmo”.
Através da escrita de si, o autor deixa de ser apenas o nome que está
na capa da obra, mas passa a ser também o herói que está dentro da obra.
Ao se pensar nessa assertiva, na sociedade midiática, a escrita de si busca
um efeito de real. Esse efeito produzido pela escrita de si se revela como um
desejo de algo que falta, e este algo é o próprio real. Dentro da autoficção o
autor está livre para criar o real tal como lhe for interessante.
Philippe Gasparini, citado por Klinger, classifica três tipos de
enunciação
autobiográfica
ficcional:
autobiografia
fictícia;
romance
autobiográfico e autoficção. O que interessa nesta pesquisa é a diferença
feita por Gasparini entre romance autobiográfico (termo usado também por
Lejeune) e autoficção.
Ambas estratégias se distinguem pelo grau de ficcionalidade: a diferença entre
ambas reside nos elementos que permitem ao leitor fazer uma validação da
identificação, quer dizer, no nível de verossimilhança. O romance autobiográfico se
46
inscreve na categoria do possível, do verossimilmente natural, ele suscita dúvidas
sobre sua verificabilidade mas não sobre sua verossimilhança; enquanto que a
autoficção mistura verossimilhança com inverossimilhança e assim suscita dúvida
21
tanto a respeito da sua verificabilidade quanto da sua verossimilhança.
Segundo Klinger (2007:47), “a categoria de autoficção implica não
necessariamente uma corrosão da verossimilhança interna do romance, e
sim um questionamento das noções de verdade e de sujeito”, pois:
O sujeito que “retorna” nessa nova prática de escritura em primeira pessoa, não é
mais aquele que sustenta a autobiografia: a linearidade da trajetória da vida estoura
em benefício de uma rede de possíveis ficcionais. Não se trata de afirmar que o
sujeito é uma ficção ou um efeito de linguagem, como sugere Barthes, mas que a
ficção abre um espaço de exploração que excede o sujeito biográfico. Na
autoficção, pouco interessa a relação do relato com uma “verdade” prévia a ele, que
o texto viria saciar, pois como aponta Cristopher Lasch, “o autor hoje fala com sua
própria voz mas avisa ao leitor que não deve confiar em sua versão da verdade”.22
O que está em jogo aqui não é mais a relação entre o texto e a vida
do autor como na (auto) biografia, mas sim da criação de um mito, o mito do
escritor. A autoficção é uma máquina capaz de produzir mitos sobre o
escritor, pois proporcionam um espaço narrativo capaz de englobar tanto
vivências do narrador quanto momentos em que o autor introduz uma
referência à própria escritura. Importante aqui é compreender que o mito não
é uma mentira e sim um valor que não tem a verdade como sanção e o
escritor como figura que está entre a “mentira” e a “confissão” em um
processo de criação da subjetividade e, também, do real.
21
Klinger, Diana. Escritas de si, escritas do outro. O retorno do autor e a virada etnográfica.
2007, pg. 46
22
Id. Ibid. pgs. 49-50
47
2. A memória como pressuposto da escritura autobiográfica
Toda escritura autobiográfica pressupõe uma memória, não é possível
escrever sobre si mesmo se não existirem recordações e lembranças. A
memória é o primeiro e principal instrumento para aquele que quer deixar
registrada a sua vida.
Em uma narrativa autobiográfica, a memória é o tempo todo
requisitada, de diferentes maneiras e em diversos níveis. Ela passa por um
processo de contínua atualização enquanto o narrador escreve sua
autobiografia. Esse busca em sua memória fatos que merecem destaque em
sua narrativa, momentos que deseja que fiquem registrados para a
posteridade, acontecimentos que poderão torná-lo imortal na lembrança de
seus leitores.
Até meados do século XIX, a memória era concebida apenas como
uma capacidade mental e individual. Seu funcionamento era pensado pelo
campo da neurologia, que considerava o cérebro como um armazém de
informações, e o processo que fazia com que essas informações viessem à
tona, era visto como estritamente mecânico. No entanto, uma série de
estudiosos (entre eles destacam-se: Halbwachs, Bartlett, Luria e Vygotsky)
começou a questionar esta visão mecanicista sobre a memória e a pensá-la
como formada a partir da história social da humanidade e como um
fenômeno muito mais complexo, processual e dinâmico do que vinha sendo
pensado até então.
48
Pela memória, o ser humano se configura como um ser passível de
constituir o mundo, porque é pela memória que se estabelece a
possibilidade da constituição da unidade, porém é necessário ter cuidado
com a mesma, pois, a partir do momento que entendemos que a memória
não é apenas individual, mas sim coletiva, já que o que chamamos de
memória individual é formada pelo imaginário coletivo e o contexto em que
se vive, podemos ter em nossa memória informações das quais não
podemos atestar a veracidade. Um exemplo é o próprio García Márquez,
que, em Vivir para contarla, enquanto narra sua chegada e a da mãe em
Aracataca, avista pela janela do trem as paisagens e sua mãe lhe mostra o
lugar onde, em 1928, o exército teria matado um número absurdo de
homens que trabalhavam nas plantações de banana; García Márquez
(2007:21) então, esclarece a seus leitores: “Yo conocía el episodio como si
lo hubiera vivido, después de haberlo oído contado y mil veces repetido por
mi abuelo desde que tuve memoria”.
Assim como García Márquez, todos nós estamos sujeitos a termos
em nossas lembranças, recordações que não são efetivamente nossas, mas
que estão tão vivas em nossa memória, que é como se fossem.
A partir desta discussão, é preciso entender e explicar a relação da
memória com a verdade. É praticamente unânime que quando uma pessoa
afirma que se lembra de algo, este algo seja visto como verídico, porém,
como observamos no caso relatado por García Márquez, o escritor não pode
atestar a veracidade do fato por não tê-lo presenciado.
Mas, o que é
verdade? Aquilo que pode ser verificado... Na aurora do pensamento
49
ocidental, a verdade era entendida como a “privação do esquecimento”. Ter
algo na memória nada mais era do que o seu não esquecimento. Assim
sendo, podemos afirmar que tudo o que se tem na memória é verdade,
mesmo quando não há veracidade.
Uma história autobiográfica é então, partindo do pressuposto que o
instrumento principal para tal é a memória, sempre verdadeira, mesmo que
não se possa verificar sua autenticidade.
A figura do narrador aparece como algo importantíssimo desde
tempos remotos.
Antes da invenção da imprensa, tal figura era
extremamente valorizada, pois o narrador era aquele que detinha um dos
bens mais preciosos: a memória. Era através da memória que o narrador
poderia perpetuar as histórias de um povo e não deixar que tradições se
perdessem.
A partir da imprensa, a memória parece não ser tão valorizada como
antes, pois todo e qualquer acontecimento pode ser rapidamente registrado,
para que não precisemos nos preocupar em guardar exclusivamente na
memória.
Escrever uma autobiografia é um exercício para a memória, pois faz
com que o narrador busque informações que, para a maioria das pessoas, já
caíram no esquecimento. Narrar sua própria vida não só denota o desejo de
perpetuação de sua história, mas também reforça o mito da história que
nunca acaba, porque mesmo que não haja mais narradores para contar as
histórias, existe o registro que não as deixam cair no esquecimento.
50
3. A pós-modernidade
Se a modernidade se esforçou para desconstruir
a morte, em nossa época pós-moderna é a vez
de a imortalidade ser desconstruída.
Zygmunt Bauman
Para Zygmunt Bauman (1998), o que a modernidade tinha como
marca registrada era o “excesso de ordem”, a essa marca havia uma
companheira inseparável – “a escassez de liberdade”. A pós-modernidade,
de certa forma, inverteu essa situação, fazendo com que a liberdade
reinasse soberana. A liberdade individual, que outrora era vista como um
problema para os edificadores da ordem, tornou-se uma qualidade e um
recurso para a autocriação do universo. No entanto, quando se ganha algo
em uma troca, automaticamente perde-se outra e como afirma Bauman
(1998: 10):
...os ganhos e as perdas mudaram de lugar: os homens e mulheres pós-modernos
trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de
felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de
segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade
individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de
liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena
demais.
O modernismo foi um movimento quase de protesto contra promessas
não cumpridas, esperanças frustradas e um testemunho da seriedade com
as promessas e esperanças tratadas. Para os modernistas o tempo anda em
uma única direção: o que vem depois é sempre melhor, sua batalha era em
prol da aceleração.
Assim como a modernidade trouxe avanços técnicos e científicos e
inovações nas artes, a pós-modernidade trouxe, inicialmente um novo
51
cotidiano em que as máquinas eram substituídas pela informação, as
fábricas pelos Shopping(s) Center(s), o contato entre pessoas pelo contato
através de vídeo.
O termo “pós-modernidade” começa a ser usado enfaticamente na
década de 60 por alguns críticos literários, mas só na década de 70 o
mesmo ganha “força” sendo aplicado à arquitetura, à dança, ao teatro, à
pintura, ao cinema e à música.
Para Andreas Huyssen (1991:34), o pós-modernismo nunca foi uma
rejeição ao modernismo, mas sim à versão do modernismo dos anos 50
...incorporada pelo consenso liberal-conservador da época e transformada em arma
de propaganda no arsenal cultural e político da guerra fria anticomunista. [...] Em
outras palavras, a revolta surgiu precisamente a partir do sucesso do modernismo,
do fato de nos Estados Unidos, como na Alemanha Ocidental e na França, o
modernismo ter sido pervertido, convertendo-se em uma forma de cultura afirmativa.
Ele continua dizendo que o mais importante no pós-modernismo
contemporâneo é o fato de que dicotomias como: tradição e inovação,
conservação e renovação, cultura de massas e grande arte, tenham caído
por terra. Existe sim um campo de tensão entre tais dicotomias, porém não
existe mais o privilégio de um ou outro. O pós-modernismo se caracteriza
também por repensar sobre o valor da multiplicidade e do provisório. Existe
também uma “promessa de um mundo “pós-branco”, “pós-masculino”, “póshumanista”, “pós-puritano”.” (Huyssen, 1991: 40).
Linda Hutcheon (1991:39) tem uma ideia semelhante:
O que o pós-modernismo faz, conforme seu próprio nome sugere, é confrontar e
contestar qualquer rejeição ou recuperação modernista do passado em nome do
futuro. Ele não sugere nenhuma busca para encontrar um sentido atemporal
transcedente, mas sim uma reavaliação e um diálogo em relação ao passado à luz
do presente.
52
Para Rouanet (1987:269), o homem,
através de uma pós-
modernidade fictícia,
...está querendo despedir-se de uma modernidade doente, marcada pelas
esperanças traídas, pelas utopias que se realizaram sob a forma de pesadelos,
pelos neofundamentalismos mais obscenos, pela razão transformada em poder,
pela domesticação das consciências no mundo industrializado e pela tirania política
e pela pobreza absoluta nos 3/4 restantes do gênero humano.
Essa é a verdade do pós-moderno. Sua ilusão é a tentativa de reagir às patologias
da modernidade através de uma fuga para frente.
O pós-moderno, na verdade, não é uma ruptura com o moderno, mas
sim uma continuação, pois não nega suas referências, se vale delas e é nas
artes onde isso se torna mais perceptível. Ele questiona o sistema, mas não
o destrói, reconhece a necessidade das pessoas de estabelecerem uma
ordem, mas percebe que essa ordem não passa de elaborações humanas,
nada é pré-determinado ou preexistente.
A arte dos nossos dias não está inclinada a nada que se refira a uma
realidade social, mas se eleva dessa em uma realidade auto-suficiente. As
artes em geral, compartilham da cultura da pós-modernidade na qual a
liberdade predomina sobre a ordem. “A Arte, agora, é uma entre as muitas
realidades alternativas” (Bauman, 1998: 129) e um importante legado do
mundo ocidental que faz com que isso se torne cada vez mais concreto, foi a
invenção do romance como obra ficcional.
Cada vez mais, as pessoas lêem romances e isso se dá, segundo
Umberto Eco (in:Bauman, 1998: 151),
...porque eles nos oferecem a agradável impressão de habitar mundos em que a
noção de verdade é inabalável. Por comparação, o mundo real parece ser uma
terra extraordinariamente incerta e traiçoeira...
[...] É na ficção, afirma Eco, que procuramos a espécie de certeza e segurança
intelectual que o mundo real não pode oferecer... Lemos romances a fim de localizar
uma forma na informe quantidade de experiências terrenas.
53
As razões que nos fazem crer em uma ficção são muito menos
complexas do que as que nos fazem crer em um livro de História, por
exemplo. As verdades nascidas na ficção são capazes de preencher uma
deficiência deixada pela realidade.
54
2ª PARTE
A OBRA DE GARCÍA MÁRQUEZ
MEMORIA DE MIS PUTAS TRISTES
55
IV. ENTRE O EROTISMO E O AMOR NO ROMANCE DO ESCRITOR
COLOMBIANO
1. Entre o amor e o erotismo
Quando lemos a palavra “amor” logo nos vem à mente um sentimento
puro, acalentador, tranquilo; ao contrário, quando lemos a palavra “erotismo”
ou “erótico”, pensamos em um desejo carnal, avassalador, que não tem a
ver com o sublime. No entanto, com relação ao amor, podemos diferenciá-lo
em vários tipos: o amor paterno ou materno; amor fraterno; amor de amigo e
o amor entre homem e mulher. Ao pensar neste último, o amor que existe
entre um homem e uma mulher, que a princípio pareciam contrários,
podemos facilmente associar amor e erotismo como complementares, pois
aquele que ama, também ama o corpo, sente desejos, atrações e instintos.
A relação entre amor e erotismo exige cautela, pois quando o erotismo se
sobrepõe ao amor, ao invés de se completarem, podem se destruir.
Para esta pesquisa, o que vai interessar é o amor entre homem e
mulher, como já foi dito, ou seja, o amor do enamoramento. Para que um
homem se apaixone por uma mulher e vice-versa, é preciso que um se fixe
no outro, que de alguma forma um chame a atenção do outro, que deixe de
estar na mesma esfera de todos para estar em uma mais elevada. Quando
isso acontece, ainda não temos o amor, mas uma situação que podemos
chamar de preliminar e, a partir desta preliminar, abre-se espaço para o
fenômeno amoroso, a possibilidade do enamoramento.
56
Em O Banquete de Platão (1991), na festa de aniversário de Afrodite,
a deusa da beleza, o Amor foi gerado, por Pobreza, que se aproveitou da
embriaguez de Recurso. O Amor então nasce com a carência essencial da
mãe, o ilimitado poder aquisitivo do pai e a beleza da deusa festejada. A
partir desses atributos,
...a ação do Amor se define como ação de fixação, de continuidade. Todos os
estranhos atos que ele inspira orientam-se para um único fim, a reprodução de outro
ser que continue o anterior. É nisso que a geração de um ser se revela como algo
divino, nesse perpetuar um ser mortal, que na vida da espécie tem o seu modo de
ser sempre paralelo ao dos deuses23
O Amor, sendo esse ser intermediário entre os deuses e os homens,
inspira o desejo de ter sempre o bem. Sua ação garante aos homens a
imortalidade já que o seu fim é a reprodução de um ser que continue o
anterior.
O amor (agora em letra minúscula, pois não se refere mais ao de
Platão, mas sim ao sentimento) não é a busca pela imortalidade, mas sim
um fazer-se imortal através da reprodução. Para Octavio Paz (2004:221):
El amor no es la eternidad; tampoco es el tiempo de los calendarios y los relojes, el
tiempo sucesivo. El tiempo del amor no es grande ni chico: es la percepción
instantánea de todos los tiempos en uno solo, de todas las vidas en un instante. No
nos libra de la muerte pero nos hace verla a la cara. […] No es el regreso a las
aguas de origen sino la conquista de un estado que nos reconcilia con el exilio del
paraíso.
Amor e erotismo são, na concepção de Paz (2004:9), “la llama doble
de la vida” na qual: “la llama es “la parte más sutil del fuego, que se eleva y
levanta a lo alto en figura piramidal”. El fuego original y primordial, la
sexualidad, levanta la llama roja del erotismo y ésta, a su vez, sostiene y
alza otra llama, azul y trémula: la del amor”. Ou seja, sexo, erotismo e amor,
23
Platão. O Banquete. 1991, pg. 59.
57
apesar de distintos, estão interligados. De acordo com Lucia Castello Branco
(2004), o erotismo surge a partir de impulsos sexuais, mas é capaz de
ultrapassá-lo. O erotismo estaria ligado ao amor, no sentido de união dos
seres. Por isso, é preciso que haja certo cuidado com a relação entre o amor
e o erotismo, pois se um dos envolvidos deixar de entender esta relação
sublime e tentar ser superior ao outro, o que antes era nobre e grandioso,
passa a ser grosseiro, o que era erótico, passa a ser vulgar.
O sexo é um dos principais fatores para a determinação de poder em
uma relação. Segundo Foucault (1988:90), “o poder vem de baixo; isto é,
não há no princípio das relações de poder [...] uma opção binária e global
entre os dominadores e dominados”. No começo de uma relação, não existe
diferença de poder, não existe um mandante e um mandado, isso se dá com
o tempo. Em uma relação homem / mulher, o sexo é um dos principais
motivos para que a relação que até certo momento era igualitária, passe a
ser binária.
Quando o sexo é atrelado ao poder, ainda segundo Foucault
(1988:81), se dá uma relação negativa.
Com respeito ao sexo, o poder jamais estabelece relação que não seja de modo
negativo: rejeição, exclusão, recusa, barragem ou, ainda, ocultação e
mascaramento. O poder não “pode” nada contra o sexo e os prazeres, salvo dizerlhes não; se produz alguma coisa, são ausências e falhas; elide elementos, introduz
descontinuidades, separa o que está junto, marca fronteiras. Seus efeitos tomam a
forma geral do limite e da lacuna.
Em Memoria de mis putas tristes, García Márquez transita com
grande destreza por esses caminhos do amor, do erotismo e do sexo. Ele
monta em sua obra o caminho, que segundo Paz (2004) é primordial, pois
afirma que o sexo, primeira etapa percorrida por García Márquez, é o mais
58
antigo dos três, e a fonte essencial, já o erotismo e o amor, segunda e
terceira etapas, são formas derivadas do instinto sexual.
O narrador de Memoria de mis putas tristes começa sua narrativa
dizendo que em seu nonagésimo aniversário quer se dar de presente uma
noite de amor louco com uma jovem virgem e para isso entra em contato
com uma antiga amiga, Rosa Cabarcas, dona de uma casa de prostituição
que costumava frequentar.
Neste momento, García Márquez passeia pelos caminhos do sexo e
do poder que este pode ter. Em dado momento, seu personagem confessa
que nunca se deitou com uma mulher que não tenha pagado, e as poucas
que não o faziam por dinheiro, ele as convencia de recebê-lo.
A noite chega, e o narrador se prepara para sua “festinha de
aniversário”, no entanto, quando chega à casa de Rosa Cabarcas e esta o
leva ao quarto onde a jovem virgem o espera, encontra a menina: nua e
dormindo. Sem despertá-la, tira sua própria roupa, deita ao seu lado na
cama e começa a observá-la. A seguir, divide mais algumas de suas
memórias com seus leitores:
...siempre había escogido al azar las novias de una noche más por el precio que por
los encantos, y hacíamos amores sin amor, medio vestidos las más de las veces y
siempre en la oscuridad para imaginarmos mejores. Aquella noche descubrí el
placer inverosímil de contemplar el cuerpo de una mujer dormida sin los apremios
24
del deseo o los estorbos del pudor.
É difícil distinguir as linhas que separam os caminhos do sexo, do
erotismo e do amor, porém, podemos dizer que, a partir desta confissão do
narrador de García Márquez, ele começa a deixar o caminho do sexo puro e
24
García Márquez. Memoria de mis putas tristes. 2004, pg. 32.
59
passa a caminhar pelas vias do erotismo. À medida que a história é contada,
percebemos um encantamento cada vez mais intenso por parte do narrador
que
encontra
sua
jovem
virgem
sempre
adormecida
e
ele,
consecutivamente, se põe a contemplá-la. Como o encantamento é intenso,
ele passa a levar presentes para deixar no quarto onde ocorrem os
encontros para torná-lo mais acolhedor: “...llevé un ventilador portátil y un
cuadro de Orlando Rivera, el querido Figurita, […] cepillos de dientes, pasta
dentífrica, jabón de olor, Agua de Florida, tabletas de regaliz.” 25. Neste
momento o narrador já sabe que o que sente não é apenas um desejo
carnal, nem mesmo um fetiche, mas sim o que ele próprio interpreta como
um milagre: o primeiro amor de sua vida.
Depois de o narrador percorrer os caminhos do sexo puro e sem
compromisso, do erotismo e do amor verdadeiro, ele termina sua narrativa
como se quisesse confirmar as afirmações de Octavio Paz (2004), citadas
anteriormente. Para o autor mexicano, o amor não é eterno e nem nos livra
da morte: “Salí a la calle radiante y por primera vez me reconocí a mí mismo
en el horizonte de mi primer siglo. […] Era por fin la vida real, con mi corazón
a salvo, y condenado a morir de buen amor en la agonía feliz de cualquier
día después de mis cien años” (García Márquez, 2004:109).
25
Id. Ibid. pg. 63
60
2. Entre o desejo e o corpo
O que vem a ser desejo? Por que a relação desejo e corpo é sempre
algo vergonhoso? Tais questões estão presentes em nosso dia-a-dia e
foram abordadas por Félix Guattari. Sobre o que vem a ser o desejo,
Guattari (2007:260) afirma:
O desejo aparece como algo flou, meio nebuloso, meio desorganizado, espécie de
força bruta que precisaria estar passando pelas malhas do simbólico e da castração
segundo a psicanálise, ou pelas malhas de algum tipo de organização de
centralismo democrático segundo outras perspectivas – fala-se, por exemplo, em
“canalizar” as energias dos diferentes movimentos sociais. Poder-se-ia enumerar
uma infinidade de tipos de modelização que se propõem, cada um em seu campo, a
disciplinar o desejo.
Neste breve trecho, Guattari define bem como o desejo é visto em
nossa sociedade, algo sem muita forma, que deve ser disciplinado. Como
disciplinar algo que nem sabemos explicar exatamente o que é? Não
existiria outra maneira de entender o desejo? Segundo Guattari (2007:261):
A questão consiste em saber se não há uma outra maneira de ver e praticar as
coisas, se não há meios de fabricar outras realidades, outros referenciais, que não
tenham essa posição castradora em relação ao desejo, a qual lhe atribui toda uma
aura de vergonha, toda essa espécie de clima de culpabilização que faz com que o
desejo só possa se insinuar, se infiltrar secretamente, sempre vivido na
clandestinidade, na impotência e na repressão.
Assim, o filósofo francês propõe “denominar desejo a todas as formas
de vontade de viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de
inventar uma outra sociedade, outra percepção do mundo, outros sistemas
de valores.” (2007:261). Desejo seria então, não apenas a atração pelo
corpo de outra pessoa, não apenas a vontade carnal, mas, sobretudo, toda e
qualquer vontade de alcançar um objetivo.
Na obra de García Márquez pode-se perceber facilmente essa
dualidade sobre o que vem a ser desejo, tanto o desejo carnal quanto o
61
desejo mais “sublime” que Guattari afirma estar ali presente. A primeira frase
da obra de García Márquez já nos remete ao desejo carnal: “El año de mis
noventa años quise regalarme una noche de amor loco con una adolescente
virgen.” (2004: 9) e um pouco mais adiante continua: “(Rosa Cabarcas) me
ofreció una media docena de opciones deleitables, pero eso sí, todas
usadas.” (2004: 9). Ao se iniciar a leitura crítica dessa obra, levando em
consideração tais frases, imagina-se que esta será uma obra muito ligada ao
erótico, ao desejo carnal.
Quando Rosa Cabarcas avisa ao seu velho amigo que conseguiu
uma jovem virgem para sua noite de amor, ele se arruma e vai ao seu
encontro como que seguindo um ritual (García Márquez, 2004: 22-23):
Me vestí de acuerdo con la ventura de la noche: el traje de lino blanco, la camisa a
rayas azules de cuello acartonado con engrudo, la corbata de seda china, los
botines remozados con blanco zinc, y el reloj de oro coronario con leontina
abrochada en el ojal de la solapa.
Fica claro que ele vai conseguir o que propôs na primeira linha da
obra, porém, com o decorrer da leitura, percebe-se que o primeiro encontro
não acontece como foi planejado: ao chegar ao local onde está a jovem
virgem, o personagem principal a encontra dormindo e, para espanto do
leitor que espera que ele a acorde, ele não o faz: “Entré en el cuarto con el
corazón desquiciado, y vi a la niña dormida, desnuda y desamparada [...].
Me senté a contemplarla” (2004: 28-29). A partir deste momento, aquela
impressão de um livro erótico começa a se desfazer e a ideia de desejo
como algo carnal, sexual, também começa a mudar; um pouco mais adiante,
o personagem comenta (2004:32): “Aquella noche descubrí el placer
inverosímil de contemplar el cuerpo de uma mujer dormida sin los apremios
62
del deseo o los estorbos del pudor.” Neste momento, apesar de ainda se
falar em corpo, é perfeitamente perceptível que a relação de desejo e corpo
é totalmente diferente do que se viu no começo da obra, é um contemplar e
não um possuir.
A partir dessas pequenas citações da obra de García Márquez é
possível entender o que Guattari propõem como desejo, citado acima, algo
não só relacionado ao carnal, sexual, mas também algo que pode estar
associado ao simples fato de contemplar, de admirar. O desejo e o prazer
podem ser encontrados muito além de uma relação sexual segundo García
Márquez (2004:58) pela voz de seu personagem: “... empecé a secarla con
la toalla mientras le cantaba en susurros la canción de Delgadina [...]. Fue un
placer sin límites...”. Porém, como concebe Guattari (2007:339):
Há um certo tratamento serial e universalizante do desejo que consiste
precisamente em reduzir o sentimento amoroso a essa espécie de apropriação do
outro, apropriação da imagem do outro, apropriação do corpo do outro, do devir do
outro, do sentir do outro.
Talvez por darmos este “tratamento serial e universalizante” ao desejo
que, ao pensarmos nele, logo o associamos a algo carnal, de conotação
erótico-sexual. Na obra Memoria de mis putas tristes, o personagem
principal não mantém relações com a jovem e, por isso, pode-se dizer que
ele não se apropria dela. Entretanto, há trechos, na obra do escritor
colombiano, que ilustram este tipo de apropriação do outro, como por
exemplo, quando fala de sua empregada Damiana (2004:17):
[...] la vi por casualidad inclinada en el lavadero con una pollera tan corta que dejaba
al descubierto sus corvas suculentas. Presa de una fiebre irresistible se la levanté
por detrás, le bajé las mutandas hasta las rodillas y la embestí en reversa.
Neste episódio fica claro esta apropriação do corpo do outro, um ato
quase animal. Esta apropriação não acontece em relação à jovem: o
63
personagem a deseja, mas o fato de chegar ao quarto do prostíbulo e
encontrá-la dormindo mexe com algo em seu interior e a cada encontro ele
se encanta mais por ela. Neste momento, o desejo carnal dá espaço a um
sentimento mais nobre e sublime, o amor.
Após falar do que vem a ser o desejo, e como este nem sempre está
relacionado ao corpo com uma conotação sexual, cabe aqui analisar o que
vem a ser esse corpo que remete sempre a algo vergonhoso, o qual deve
ser tratado com pudor.
Guattari (2007:336) tem uma ideia muito significativa sobre o corpo:
“Penso que nos atribuem um corpo, que produzem um corpo para nós, um
corpo capaz de se desenvolver num espaço social, num espaço produtivo,
pelo qual somos responsáveis.”. Um pouco mais adiante, continua:
[...] em nossas sociedades, as grandes fases de iniciação da infância aos fluxos
capitalísticos consistem, exatamente, em interiorizar a seguinte noção de corpo:
“você tem um corpo nu, um corpo vergonhoso, você tem um corpo que tem de se
inscrever num certo tipo de funcionamento de economia doméstica, de economia
social". O corpo, o rosto, a maneira de se comportar em cada detalhe dos
movimentos de inserção social é sempre algo que tem a ver com o modo de
inserção na subjetividade dominante.
O que Guattari quer dizer é que a sociedade capitalista, na qual
estamos inseridos, nos atribui um corpo e que somos obrigados a nos inserir
em tal padrão se quisermos ser aceitos por tal sociedade. É necessário
seguir o modelo. Esta ideia de que existe um corpo pré-estipulado é
facilmente perceptível na obra de García Márquez, logo no início, quando o
narrador descreve a si mesmo (2004:10): “... soy feo, tímido y anacrónico.
Pero a fuerza de no querer serlo he venido a simular todo lo contrario.” A
seguir, a joven (2004:27): “… era bella, limpia y bien criada”. A partir destes
dois fragmentos podem-se constatar as concepções filosóficas de Guattari,
64
que nos atribuem um corpo, porque só se podem fazer comparações se
temos um modelo padrão, ou seja, García Márquez só pôde dizer que seu
personagem era feio e que a menina era bela porque tinha um modelo em
mente, modelo este criado pela sociedade da qual fazemos parte.
O corpo nu também aparece na obra de García Márquez (2004:30),
porém este corpo só se mostra na casa de Rosa Cabarcas, lugar apropriado
para os delírios e fantasias carnais: “Tratando de no despertarla me senté
desnudo en la cama con la vista ya acostumbrada a los engaños de la luz
roja, y la revisé palmo a plamo.” Mais adiante (2004:89):
Había crecido, pero no se le notaba en la estatura sino en una madurez intensa que
la hacía parecer con dos o tres años más, y más desnuda que nunca. […] sus senos
habían crecido hasta el punto de que no me cabían en la mano, sus caderas habían
acabado de formarse y sus huesos se habían vuelto más firmes y armónicos.
Este corpo que García Márquez descreve é justamente o corpo
condenado pela sociedade capitalista, o corpo do qual devemos nos
envergonhar, pois não seguem os padrões impostos.
Até aqui se falou em desejo e corpo, mas em momento algum em
sexo, García Márquez (2004:69-70), em sua obra, afirma: “El sexo es el
consuelo que uno tiene cuando no le alcanza el amor.”, ou seja, quando
alguém não encontra um amor verdadeiro se satisfaz com o sexo.
Já
Guattari (2007:338) diferencia sexo e desejo:
Se Gilles Deleuze e eu tomamos o partido de praticamente não falar em
sexualidade, e sim em desejo, é que consideramos que os problemas da vida, da
criação, nunca são redutíveis a funções fisiológicas, a funções de reprodução, a
alguma dimensão particular do corpo. Eles sempre envolvem tanto elementos que
estão além do indivíduo no campo social, no campo político, quanto elementos que
estão aquém do indivíduo. Esses elementos não são tão captáveis quanto
pensaram os psicanalistas com sua noção de complexos estereotipados, estruturas
gerais, universais: nessa vertente, aquém do indivíduo e do corpo, existem
singularidades complexas que não podem ser rotuladas.
65
Este trecho reforça o que já foi dito anteriormente, desejo não só é
algo carnal, mas também é muito mais que isso, qualquer tentativa de se
alcançar um objetivo requer um desejo.
Sobre sexualidade Guattari (2007:338) afirma: “A sexualidade, antes,
era reservada ao domínio privado, às iniciativas individuais, aos clãs e às
famílias. Agora, a máquina de desejar é uma máquina de trabalhar.”. Apesar
de a profissão de prostituta ser uma das mais antigas de qualquer
sociedade, o sexo era algo reservado como comenta Guattari, porém isso
vem mudando gradativamente, a apelação sexual nunca foi tão utilizada
como vem sendo agora, não só em relação às prostitutas nas ruas, mas
principalmente em programas televisivos, filmes, entre outros, o sexo foi
transformado em produto altamente lucrativo.
As várias facetas do comércio do sexo também podem ser
observadas em Memoria de mis putas tristes sem, contudo, excluir os
valores literários da obra, a começar pelo próprio nome que se refere
diretamente às muitas prostitutas que provavelmente passaram pela vida do
narrador, personagem principal, e muitos trechos da obra (2004:16): “Nunca
me he acostado con ninguna mujer sin pagarle, y a las pocas que no eran
del oficio las convencí por la razón o por la fuerza de que recibieran la plata
aunque fuera para botarla en la basura.” A seguir, comenta que, a princípio,
dormia com essas mulheres por gosto apenas, mas que acabou ajudando o
seu ofício (2004:19):
Dormía en el Barrio Chino dos o tres veces por semana, y con tan variadas
compañías, que dos veces fui coronado como el cliente del año. […] Lo hacía por el
gusto, pero terminó por ser parte de mi oficio gracias a la ligereza de lengua de los
grandes cacaos de la política, que les daban cuenta de sus secretos de Estado a
66
sus amantes de una noche, sin pensar que eran oídos por la opinión pública a
través de los tabiques de cartón.
Neste último trecho percebe-se que o comércio do sexo era útil
também ao personagem principal não apenas por satisfação própria, mas
como fonte de informação para seu trabalho já que era colunista em um
jornal.
3. Entre a subjetividade e a desterritorialização
3.1 Subjetividade e Singularidade
Como foi visto há pouco, a sociedade capitalista nos impõe conceitos
e regras a serem seguidos, modelos padronizados. O desejo é algo que,
segundo tais modelos, deve ser disciplinado, canalizado; o corpo é mais
vergonhoso ainda, devemos modelá-lo de modo que possamos nos inserir
no funcionamento da economia doméstica e social. Isso não é diferente
quando se pensa em estilo de vida, a forma como vemos e pensamos o
mundo. Existe em nossa sociedade o que Guattari chama de “produção de
subjetividade capitalística”. Mas o que vem a ser tal produção? Como ela se
dá? Segundo Guattari (2007:22):
A cultura de massa produz, exatamente, indivíduos: indivíduos normalizados,
articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores,
sistemas de submissão – não sistemas de submissão visíveis e explícitos, [...] mas
sistemas de submissão muito mais dissimulados. [...] o que há é simplesmente uma
produção de subjetividade. Não somente uma produção da subjetividade
individuada – subjetividade dos indivíduos – mas uma produção de subjetividade
social que se pode encontrar em todos os níveis da produção e do consumo. E mais
ainda: uma produção da subjetividade inconsciente.
67
O que se pode apreender desta acepção de Guattari é que os
modelos padrões já fazem parte do cotidiano social e por isso a massa os
segue sem se dar conta do que está fazendo, aceita qualquer situação sem
se questionar. De um modo geral, as pessoas fazem coisas não porque
querem, gostam, ou acham aquilo certo, mas, simplesmente, porque todas
as outras pessoas também o fazem. Seria possível fazer algo diferente, fugir
desses padrões que nos são impostos? Todas as pessoas vivenciam da
mesma forma essa produção de subjetividade?
Para Guattari (2007:22-23), existem duas maneiras de vivenciar essa
subjetividade: de certo modo, há uma relação passiva de alienação e
opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe;
de outro modo uma relação de criação, na qual o indivíduo se reapropria da
subjetividade e produz um processo que o filósofo denomina de
“singularização”. Tal processo seria oposto à produção de subjetividade:
Eu oporia a essa máquina de produção de subjetividade a idéia de que é possível
desenvolver modos de subjetivação singulares, aquilo que poderíamos chamar de
“processos de singularização”: uma maneira de recusar todos esses modos de
encodificação preestabelecidos [...]. Uma singularização existencial que coincida
com um desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no
qual nos encontramos, com a instauração de dispositivos para mudar os tipos de
sociedade, os tipos de valores que não são os nossos.
Com a singularização proposta, uma nova indagação pode surgir:
quem são os responsáveis por essa produção de subjetividade? Certamente
existe o envolvimento de muitas pessoas, ao invés de uma só que impõe
uma forma de pensar e agir; no entanto, pessoas que estão diretamente
ligadas à formação de opinião do indivíduo atuam de forma mais incisiva
nessa produção de subjetividade. No entender de Guattari (2007:37):
...aqueles que se convencionou chamar de “trabalhadores sociais” – jornalistas,
psicólogos de todo tipo, assistentes sociais, educadores, animadores, gente que
68
desenvolve qualquer tipo de trabalho pedagógico ou cultural em comunidades de
periferia, em conjuntos habitacionais, etc. – atua de alguma maneira na produção de
subjetividade. [...] Eles se encontram numa encruzilhada política e micropolítica
fundamental. Ou vão fazer o jogo dessa reprodução de modelos que não nos
permitem criar saídas para os processos de singularização ou, ao contrário, vão
estar trabalhando para o funcionamento desses processos na medida de suas
possibilidades e dos agenciamentos que consigam pôr para funcionar.
Ao pensar nessas pessoas que podem atuar na produção de
subjetividade, vale à pena destacar aqui um trecho da obra Memoria de mis
putas tristes que fala sobre o ofício do personagem principal: “Durante
cuarenta años fui el inflador de cables de El Diario de La Paz [...]. Nunca
hice nada distinto de escribir.” (2004:12). O personagem é um típico produtor
de subjetividade, trabalha em um jornal, um dos principais veículos utilizados
na formação de opinião. Quantos milhões de leitores leram suas colunas e
as consumiram como verdade indiscutível? Porém, a partir do momento em
que começa a escrever suas memórias e as torna pública, ele mostra o
quanto sua subjetividade é singular e faz com que seus leitores comecem a
pensar e repensar suas opiniões, pois o padrão é um homem amadurecer,
casar, ter seus filhos, criá-los, envelhecer e morrer, mas não o personagem
de García Márquez (2004:16 e 42) que “hasta los cincuenta años eran
quinientas catorce mujeres con las cuales había estado por lo menos una
vez.”
e que “las putas no le dejaron tiempo para ser casado.”. O
personagem nos faz pensar constantemente nesses modelos que nos são
impostos, como podemos não aceitá-los e como podemos desenvolver
nossos próprios processos de singularização. De acordo com Guattari
(2007:55),
...o que vai caracterizar um processo de singularização é que ele seja
automodelador. Isto é, que ele capte os elementos da situação, que construa seus
próprios tipos de referências práticas e teóricas, sem ficar nessa posição constante
69
de dependência em relação ao poder global, em nível econômico, em nível do
saber, em nível técnico, em nível das segregações, dos tipos de prestígio que são
difundidos. A partir do momento em que os grupos adquirem essa liberdade de viver
seus processos, eles passam a ter uma capacidade de ler sua própria situação e
aquilo que se passa em torno deles. Essa capacidade é que vai lhes dar um mínimo
de possibilidade de criação e permitir preservar exatamente esse caráter de
autonomia tão importante.
No entanto é importante não confundir subjetividade singular ou
singularidade com identidade. Singularidade é um conceito existencial, já a
identidade é um conceito de referenciação. Processos de singularização, no
entender de Guattari (2007:80-81),
...não tem nada a ver com identidade. Tem a ver, sim, com a maneira como em
princípio todos os elementos que constituem o ego funcionam e se articulam; ou
seja, com a maneira como a gente sente, como a gente respira, como a gente tem
ou não vontade de falar, de estar aqui ou ir embora.
García Márquez é um estrategista em relação a frases de impacto.
Em Memoria de mis putas tristes, ele (2004:61) ilustra a diferença entre
identidade e singularidade pela voz do personagem principal da obra: “La
edad no es la que uno tiene sino la que uno siente.” A identidade do
personagem é a de um senhor de noventa anos, mas a singularidade está
em todos os seus atos que fogem o padrão e, principalmente, por ser ele
um senhor de noventa anos que descobre, nesta idade, o primeiro amor de
sua vida por uma jovem de quatorze anos.
Muito mais importante que nossa identidade é nossa singularidade. A
identidade é facilmente percebida pelos outros, mas nossa singularidade é o
que nos torna diferentes, únicos.
70
3.2 Territorialização e Desterritorialização
Em prosseguimento ao trabalho e aos conceitos tratados por Guattari,
discutiremos agora sobre “territorialização” e “desterritorialização”. Estar
territorializado para Guattari é o mesmo que “estar à vontade” em algum
lugar, estar em um ambiente que lhe cause conforto. Um fazendeiro, por
exemplo, em sua fazenda se sente completamente territorializado, no
entanto, se este mesmo fazendeiro é obrigado a ir a uma cidade grande,
provavelmente, ele se sentirá desterritorializado por não ser aquele um lugar
que o deixe confortável. Nada impede também que alguém que esteja
desterritorializado venha a se territorializar, é uma questão de adaptação na
maioria dos casos.
Para este trabalho utilizar-se-ão os conceitos de “territorialização” e
“desterritorialização” segundo Guattari nos apresenta, ou seja, conceitos
ligados ao espaço físico e humano, para falar sobre o prostíbulo de Rosa
Cabarcas e também far-se-á uso dos mesmos com uma pequena
adaptação, ao invés de falar em espaço, falar-se-á em tempo. A questão
temporal a ser levantada é a seguinte: o personagem principal de Memoria
de mis putas tristes de Gabriel García Márquez se desterritorializa por ser
um senhor que aos 90 anos descobre o primeiro amor de sua vida por uma
jovem de 14 anos?
Vale à pena destacar aqui um pequeno trecho da obra Micropolítica:
cartografias do desejo (2007:342-343) que trata dos conceitos de
territorialização, desterritorialização e desejo:
71
O amor anda impossível?
Que a família implodiu, já sabemos. Isso não é de hoje. Dela restou uma
determinada figura de homem, uma determinada figura de mulher. Figura de uma
célula conjugal. Mas esta vem se “desterritorializando” a passos de gigante. O
capital inflacionou nosso jeito de amar: estamos inteiramente desfocados. Muitos
são os caminhos que se esboçam a partir daí: do apego obsessivo às formas que o
capital esvaziou (territórios artificialmente restaurados) à criação de outros territórios
de desejo, topamos com inúmeros perigos, por vezes fatais.
Em um dos extremos, é ao medo da desterritorialização que sucumbimos: nos
enclausuramos na simbiose, nos intoxicamos de familialismo, nos anestesiamos a
toda sensação do mundo, endurecemos. No outro extremo – quando já
conseguimos não resistir à desterritorialização e, mergulhados em seu movimento,
tornamo-nos pura intensidade, pura emoção de mundo –, um outro perigo nos
espreita. Fatal agora pode ser o fascínio que a desterritorialização exerce sobre
nós: ao invés de vivê-la como uma dimensão imprescindível da criação de
territórios, nós a tomamos como uma finalidade em si mesma. E, inteiramente
desprovidos de territórios, nos fragilizamos até desmanchar irremediavelmente.
Entre esses dois extremos, ou essas diferentes maneiras de morrer, ensaiam-se
desajeitadamente outros jeitos de viver. E todos esses vetores da experimentação
coexistem, muitas vezes na vida de uma mesma pessoa.
A partir deste fragmento será possível compreender como um
prostíbulo pode, ao mesmo tempo, ser um lugar de desterritorializados e
territorializados. Desde tempos remotos homens vão a prostíbulos para
satisfazerem seus desejos carnais, desejos estes que não podiam satisfazer
em casa já que a relação conjugal estava ligada à procriação. Hoje a
situação é bem diferente, a relação conjugal já não se resume a ter filhos, no
entanto, a procura por prostíbulos continua grande, os motivos são os mais
variados. Um motivo aparente é a vulnerabilidade conjugal, as pessoas
estão cada vez mais independentes e por isso os relacionamentos estão
cada vez menos sólidos, como alerta o trecho acima: “o capital inflacionou
nosso jeito de amar: estamos inteiramente desfocados”(Guattari, 2007: 342).
O prostíbulo de Rosa Cabarcas, assim como qualquer outro prostíbulo,
aparece como o lugar da desterritorialização, ou seja, é um lugar condenado
pela sociedade, posto à margem, entretanto, as pessoas que frequentam
essas casas vão ali porque se sentem confortáveis por algum motivo e esse
72
conforto faz com que elas se sintam territorializadas. A questão dos
prostíbulos é um jogo paradoxal porque a sociedade, ao mesmo tempo em
que cria uma situação de desterritorialização por condenar aquele ambiente,
também cria um ambiente em que as pessoas descriminadas possam se
sentir territorializadas.
Para o personagem principal de Memorias de mis putas tristes, a casa
de Rosa Cabarcas e outros prostíbulos que frequentou eram ambientes em
que ele se sentia totalmente territorializado, e isso é facilmente perceptível
em várias passagens da obra como, por exemplo, já citada anteriormente,
(2004:19): “Dormía en el Barrio Chino dos o tres veces por semana, y con
tan variadas compañías, que dos veces fui coronado como el cliente del
año.”. Contudo, o personagem passa por outro tipo de desterritorialização.
Tudo começa com um delírio, um desejo de passar seu aniversário de
noventa anos com uma jovem virgem, porém os encantos desta jovem o
fascinam e isso lhe causa temor, por isso fala da jovem a Rosa Cabarcas
com desdém: “su estado es tan deplorable que no se puede contar con ella
ni dormida ni despierta: es carne de hospital.” (2004:47).
Aos poucos o personagem principal deixa transparecer, cada vez
mais, seu sentimento pela jovem: começa a fantasiá-la em sua casa, apesar
de encontrá-la sempre dormindo no prostíbulo; leva enfeites para deixar o
quarto mais agradável, até que ele começa, efetivamente, a declarar ao
leitor seus sentimentos como nestas duas passagens:
“Hoy sé que no fue una alucinación, sino un milagro más del primer amor de mi vida
a los noventa años.” (2004: 62)
73
“Era tal mi desvarío, que en una manifestación estudantil con piedras y botellas,
tuve que sacar fuerzas de flaqueza para no ponerme al frente un letrero que
consagrara mi verdad: Estoy loco de amor.” (2004: 66-67)
O personagem já não esconde mais seus sentimentos e isso faz com
que ele se reterritorialize, já não se importa em ocultar o que sente. Quando
Rosa Cabarcas se vê obrigada a fechar a casa por algum tempo, por causa
de um escândalo, e o personagem fica sem ver sua jovem amada, adoece
de amor, não tem vontade de sair de casa, de se arrumar, se pentear ou
qualquer outra coisa:
Pasé hasta una semana sin quitarme el mameluco del mecánico ni de día ni de
noche, sin bañarme, sin afeitarme, sin cepillarme los dientes, porque el amor me
enseñó demasiado tarde que uno se arregla para alguien, se viste y se perfuma
para alguien, y yo nunca había tenido para quién. (2004: 81)
La secretaria que me había besado la tarde del cumpleaños me preguntó se estaba
enfermo. […] Enfermo de amor. (2004: 84-85)
O auge da reterritorialização do personagem principal se dá quando
sua velha amiga, Rosa Cabarcas, comenta com ele: “Esa pobre criatura está
lela de amor por ti.” (2004:109). Assim termina a obra: “Salí a la calle
radiante y por primera vez me reconocí a mí mismo en el horizonte remoto
de mi primer siglo. […] Era por fin la vida real, con mi corazón a salvo, y
condenado a morir de buen amor en la agonía feliz de cualquier día después
de mis cien años.”
74
V. LEITURA CRÍTICA DE MEMORIA DE MIS PUTAS TRISTES
1. Memoria de mis putas tristes: autobiografia ou romance
autobiográfico?
Memoria de mis putas tristes, começa com a confissão de um desejo:
o narrador expressa que, em seu nonagésimo aniversário, gostaria de se
auto-presentear com uma noite de amor louco na companhia de uma jovem
virgem. O título e o início da obra fazem com que o leitor comece a lê-la
imaginando-a como uma história real, afinal o título nos indica que a obra é
escrita a partir de memórias e a pessoa que a narra, o faz em primeira
pessoa, o que sugere alguém narrando sua própria história.
Seria possível então classificá-la como uma obra autobiográfica?
Como já foi visto anteriormente, não é tão simples assim. Segundo Lejeune,
para uma obra ser considerada autobiográfica, ela deve preencher certos
parâmetros essenciais. Primeiro a obra deve ser uma narrativa em prosa,
segundo, o assunto deve ser a vida, a história de alguém contada numa
retrospectiva, terceiro, e talvez o mais importante, deve haver identidade
entre autor, narrador e personagem. O primeiro parâmetro é preenchido sem
problema algum por Memoria de mis putas tristes, já que esta é uma
narrativa em prosa. O segundo também, pois, apesar de a obra não ser
totalmente linear, ela tem como assunto a história de alguém e é contada de
forma retrospectiva. Com relação ao terceiro parâmetro, nos deparamos com
um problema, o nome registrado na capa do livro, Gabriel García Márquez,
75
renomado escritor colombiano. Em momento algum seu nome aparece no
interior do livro, na verdade, nem o seu, nem qualquer outro que possa
identificar o personagem principal. Ele simplesmente narra a história, porém
não se apresenta de fato ao leitor. As memórias terminam e não se sabe o
nome de quem as narra, quem realmente é esta pessoa. O principal
parâmetro não é preenchido, não se pode afirmar que exista identidade
entre autor, narrador e personagem. Narrador e personagem sim, nós
sabemos que é a mesma pessoa, já que a história é narrada em primeira
pessoa, existe um “eu” explícito, porém não podemos afirmar que o autor
também o seja, pois não há como verificar.
Apesar de não se poder verificar a identidade entre autor, narrador e
personagem, pode-se constatar muitas semelhanças entre a vida “fictícia” do
narrador-personagem e a vida real do autor, isso é possível, principalmente,
tomando como base a obra autobiográfica de García Márquez, Vivir para
contarla (2007). A primeira semelhança entre autor e narrador é o fato de os
dois serem colombianos. Outras são a de os dois serem escritores e de
terem começado a carreira jornalística de forma semelhante, escrevendo
contos a um jornal. García Márquez informa em Vivir para contarla
(2007:268) que seu primeiro conto foi publicado no Suplemento Literário de
El Espectador de Bogotá, que era o jornal mais importante e severo da
época, o que lhe causou grande surpresa. Já os primeiros contos de o
narrador de Memoria de mis putas tristes precisaram de uma “forcinha” de
sua mãe que pagou pelas publicações, mas que ele próprio só descobriu
anos depois, quando sua coluna semanal já voava com asas próprias e não
76
tinha mais como se envergonhar (2004:18). Além de semelhanças, também
existem as divergências entre Gabriel García Márquez e o narrador da obra:
a primeira delas é a idade, García Márquez nasceu em 6 de março de 1927,
então, em 2004, ano em que escreveu a obra, ele contava com 77 anos e
seu personagem, como aparece na primeira linha da obra, completava 90.
Outra diferença é com relação ao matrimônio, García Márquez se casa com
Mercedes Barcha e tem dois filhos, Rodrigo e Gonzalo, e seu personagem,
apesar de sua mãe ter-lhe suplicado em seu leito de morte para que se
casasse (2004:37) isso não ocorreu com a desculpa de que a vida libertina
não havia lhe deixado tempo para tal (2004:42).
A partir dessas semelhanças e divergências, pode-se descartar a
ideia de classificar a obra como autobiográfica, no entanto, obras do tipo de
Memoria de mis putas tristes, que não se pode verificar a identidade entre
autor, narrador e personagem, mas que existe certa semelhança entre a
história narrada e a vida do autor, são enquadradas, segundo Lejeune, como
“romances autobiográficos”.
O “romance autobiográfico”, como já vimos anteriormente, se insere
na categoria do possível, na qual pode haver dúvidas sobre sua
verificabilidade26, mas não sobre sua verossimilhança27, diferente da
autoficção,
por
exemplo,
que
mescla
verossimilhança
com
inverossimilhança28, ou seja, além de suscitar dúvidas sobre sua
verificabilidade, também as suscita sobre sua verossimilhança.
26
Aquilo que pode ser empiricamente verificável.
Qualidade do que é verossímil, que parece verdadeiro, plausível.
28
Caráter de inverossimilhante, condição do que não parece verdadeiro ou provável.
27
77
No caso de Memoria de mis putas tristes, a história narrada não
repugna a verdade provável, ou seja, ela pode ser perfeitamente admitida
como verdadeira, o que descartaria a possibilidade de classificá-la como
autoficção, pois, apesar de incitar dúvidas sobre sua verificabilidade, não
necessariamente incita dúvidas sobre sua verossimilhança.
Outro fator que deixa lacunas para classificar Memoria de mis putas
tristes como “romance autobiográfico” são os pactos que, segundo Lejeune,
devem ser cumpridos. Esta obra, segundo as categorizações de Lejeune, se
enquadra em uma rede complexa, pois há total indeterminação. Além de o
nome do personagem principal não ser explicitado, o pacto também o é. Não
existe qualquer indicação sobre a natureza ficcional no livro e também não
há uma afirmação autobiográfica. Sendo assim, segundo afirma Lejeune,
cada leitor pode “classificá-la” de acordo com seu humor.
Desta forma, é totalmente possível e coerente pensar em Memoria de
mis putas tristes, de Gabriel García Márquez, como um “romance
autobiográfico”.
2. Memoria de mis putas tristes e o pós-modernismo
Quando se pensa em romances pós-modernos, os livros de Ítalo
Calvino e García Márquez são geralmente citados como exemplos. Porém,
para esta pesquisa, o que interessa é pensar a pós-modernidade na obra
Memoria de mis putas tristes, de García Márquez, e se o narrador desta obra
se comporta como um pós-moderno.
78
Para pensar a obra como sendo ou não pós-moderna, farei uso aqui
de alguns traços que Ihab Hassan29 menciona como aplicáveis às artes pósmodernas, porém afirma que, apesar de ajudarem a aferir o clima do
discurso, não definem o pós-modernismo.
O primeiro traço que aqui será apresentado é o da descanonização,
uma deslegitimação dos grandes códigos, uma subversão e desmistificação
à ordem. Há várias passagens de Memoria de mis putas tristes que
serviriam de exemplo a esta descanonização, afinal, a obra conta a história
de um homem que aos 90 anos nunca se casou, não teve filhos e nunca
dormiu com uma mulher que não tivesse pagado. No entanto, a título de
exemplo, destaco aqui o trecho no qual ele afirma que dormia em
prostíbulos, antes por prazer, depois como parte de seu ofício.
Dormía en el Barrio Chino dos o tres veces por semana, y con tan variadas
compañías, que dos veces fui coronado como el cliente del año. […] Lo hacía por el
gusto, pero terminó por ser parte de mi oficio gracias a la ligereza de lengua de los
grandes cacaos de la política, que les daban cuenta de sus secretos de Estado a
sus amantes de una noche, sin pensar que eran oídos por la opinión pública a
través de los tabiques de cartón.30
Outro traço importante a ser destacado é o apagamento do eu. “O
pós-modernismo esvazia o eu tradicional” (Hassan; 1988: 57), rejeita o herói
romântico e os símbolos. Porém permite os jogos autorreflexivos, por isso o
exercício das escritas de si é considerado um exercício pós-moderno. Para
exemplificar esta rejeição ao herói no estilo romântico de ser, pode-se
29
Os traços que me refiro encontram-se no texto Fazer sentido: as atribulações do discurso
pós-moderno. 1988, p. 57-59
30
Gabriel García Márquez. Memoria de mis putas tristes. 2004, p.19
79
destacar o trecho no qual o narrador descreve a si mesmo: “No tengo que
decirlo, porque se me distingue a leguas: soy feo, tímido y anacrónico” 31.
O próximo traço a ser apresentado foi denominado por Ihab Hassan
de o inapresentável. Há uma rejeição a mimese e uma contestação aos
modos de sua própria representação. Interessa-lhe o silêncio, o sublime, o
objeto, o inefável, o indisível. Para este traço, também existem muitos
exemplos ao longo da obra, porém o trecho que aqui será destacado é
quando o narrador encontra pela primeira vez com a jovem. Ela adormecida
e ele põe-se a contemplá-la.
Entré en el cuarto con el corazón desquiciado, y vi a la niña dormida, desnuda y
desamparada. […] Me senté a contemplarla […]. Era morena y tibia. La habían
sometido a un régimen de higiene y embellecimiento que no descuidó ni el vello
incipiente del pubis. La habían rizado el cabello y tenía en las uñas de las manos y
los pies un esmalte natural, pero la piel del color de la melaza se veía áspera y
maltratada. […] Pero ni los trapos ni los afeites alcanzaban a disimular su carácter:
la nariz altiva, las cejas encontradas, los labios intensos.32
Passaremos agora para o traço denominado performance. “A
indeterminação supõe participação; os espaços têm que ser preenchidos.”
(Hassan; 1988: 58). Este, talvez, seja o traço mais pertinente para esta
pesquisa, pois, durante todo o texto, o narrador faz uma performance. Para
começar, o narrador, protagonista da história não tem seu nome revelado
em momento algum da obra, ele passa a vida toda tentando ser alguém
diferente daquele que a sociedade espera que seja, ou que se convencionou
ser. Não casa, não tem filhos e resolve comemorar seu nonagésimo
aniversário em uma noite libertina. Se por um lado, a jovem virgem, a quem
chama Delgadina, não tenha seu verdadeiro nome revelado; por outro lado,
31
32
Id. Ibid, p. 10
Id. Ibid, p. 28-29
80
o protagonista criou uma “Delgadina” em suas fantasias e, talvez, tenha
medo de saber seu nome real. O trecho de Memoria de mis putas tristes que
servirá de exemplo aqui, será justamente o trecho em que o protagonista
esclarece que não quer saber a verdadeira identidade de sua jovem amante:
“Se sorprendió (Rosa Cabarcas) cuando mencioné el nombre de Delgadina.
No se llama así, dijo, se llama. No me lo digas, la interrumpí, para mí es
Delgadina” 33.
Por fim, o último traço que aqui será estudado é o construcionismo.
Constitui-se em construir a realidade através de ficções. Este talvez seja um
complemento
do
traço
visto
anteriormente.
O
narrador
imagina
acontecimentos que são tão reais que ele mesmo desconfia se o que
imaginou não aconteceu realmente.
Cuando pasó el aguacero seguía con la sensación de que no estaba solo en la
casa. Mi única explicación es que así como los hechos reales se olvidan, también
algunos que nunca fueron pueden estar en los recuerdos como si hubieran sido.
Pues si evocaba la emergencia del aguacero no me veía a mí mismo solo en la
casa sino siempre acompañado por Delgadina. La había sentido tan cerca en la
noche que percibía el rumor de su aliento en el dormitorio, y los latidos de su mejilla
en mi almohada. […] Recordaba cómo preparó al día siguiente un desayuno que
nunca fue, y puso la mesa mientras yo secaba los pisos y ponía orden en el
naufragio de la casa. Nunca olvidé su mirada sombría mientras desayunábamos:
¿Por qué me conociste tan viejo? Le contesté la verdad: La edad no es la que uno
tiene sino la que uno siente.34
Depois desta análise crítica de Memoria de mis putas tristes, vale
ressaltar que não foram apresentados aqui todos os traços descritos por
Hassan, apenas os mais pertinentes para a discussão.
33
34
Id. Ibid, p. 69
Id. Ibid, p. 61
81
3. García Márquez, um narrador pós-moderno
Para tentar entender o que é um narrador pós-moderno e se o
narrador de Memoria de mis putas tristes pode ser considerado como tal,
faremos uso aqui do texto O narrador pós-moderno (1986), de Silviano
Santiago, como aporte principal para esta parte da pesquisa.
O texto começa com o seguinte questionamento: quem é este
narrador pós-moderno? É aquele que narra a sua própria experiência ou
aquele que narra o que vê? No primeiro caso o narrador transmite sua
própria vivência, no segundo, transmite a vivência de outra pessoa. No
primeiro caso a narrativa expressa uma ação, que por ser a própria
experiência de quem a narra,
é considerada como autêntica, já o outro
caso, por ser a narrativa de uma experiência alheia a quem narra, sua
autenticidade se torna discutível.
A partir dessas primeiras considerações, Silviano Santiago (1986: 4)
extrai uma primeira hipótese de trabalho: “o narrador pós-moderno é aquele
que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um
repórter ou de um espectador”.
Se pensarmos no narrador de Memoria de mis putas tristes, a partir
desta primeira hipótese acerca do narrador pós-moderno, nos depararíamos
com um problema: o narrador desta obra narra suas próprias experiências:
de como se tornou jornalista, de suas muitas noites em prostíbulos e como
resolveu comemorar seu aniversário de 90 anos.
82
No entanto, Silviano Santiago apresenta uma segunda hipótese de
trabalho:
...o narrador pós-moderno é o que transmite uma “sabedoria” que é decorrência da
observação de uma vivência alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida
na substância viva da sua existência. Nesse sentido, ele é o puro ficcionista, pois
tem de dar “autenticidade” a uma ação que, por não ter o respaldo da vivência,
estaria desprovida de autenticidade. Esta advém da verossimilhança que é produto
da lógica interna do relato. O narrador pós-moderno sabe que o “real” e o
“autêntico” são construções de linguagem.
A partir desta segunda hipótese, ainda nos depararíamos com o
problema de o narrador da obra contar sua própria história, porém, como
vimos anteriormente, quando falamos dos traços que Ihab Hassan diz serem
aplicáveis
às
artes
pós-modernas,
mais
precisamente
sobre
construcionismo, podemos perceber que o narrador de Memoria de mis
putas tristes é um ficcionista e tem uma capacidade de dar autenticidade a
algo que sabemos ser ilusório, mas ele nos enlaça em seus delírios. Mesmo
sabendo que são delírios, confiamos piamente no que ele expõe,
principalmente quando afirma: “Hoy sé que no fue una alucinación, sino un
milagro más del primer amor de mi vida a los noventa años.” (2004: 62).
Para Silviano Santiago (1986: 4), “o narrador se subtrai da ação
narrada e, ao fazê-lo, cria um espaço para a ficção dramatizar a experiência
de alguém que é observado e muitas vezes desprovido de palavra.”
A ficção existe para falar da incomunicabilidade de experiências: a experiência do
narrador e a do personagem. A incomunicabilidade, no entanto, se recobre pelo
tecido de uma relação, relação esta que se define pelo olhar. Uma ponte, feita de
palavras, envolve a experiência muda do olhar e torna possível a narrativa.35
Ao pensar desta forma, Silviano Santiago faz uma constatação: sendo
a ação pós-moderna jovem e inexperiente, ela é privada da palavra, por isso
35
Silviano Santiago. O narrador pós-moderno. 1986, p. 8.
83
não pode ser dada pelo narrador, pois se subentende que o narrador seja
alguém experiente, por isso, detentor da palavra. Se o narrador tenta ser um
conselheiro, surge uma incomunicabilidade entre o mais e o menos
experiente. A palavra passa a não ter sentido, o que lhe traz sentido é o
olhar do mais experiente sobre aquele com menos experiência.
O narrador de Memorias de mis putas tristes apenas observa a jovem
adormecida, sem nunca despertá-la e com isso inicia um diálogo. Ele tem
consciência de que não é possível um diálogo entre os dois, por isso se
subtrai, para manter aceso o amor que sente pela jovem, amor que surgiu a
partir do olhar.
O narrador pós-moderno não quer narrar o seu ontem, e sim
enxergar o seu ontem em um jovem hoje e é justamente isso que o narrador
da obra aqui estudada faz, apesar de contar suas peripécias, ele enxerga
em sua jovem amante a possibilidade de ele se sentir jovem novamente, e
são vários os exemplos que podem ser dados, de como o narrador começa
a passar por situações e se vê em meio a sentimentos e confusões pelos
quais os jovens passam quando se deparam com o primeiro amor:
Era tal mí desvarío, que en una manifestación estudiantil con piedras y botellas,
tuve que sacar fuerzas de flaqueza para no ponerme al frente con un letrero que
consagrara mi verdad: Estoy loco de amor. (p. 66-67)
La falta de sosiego acabó con el rigor de mis días. […] ¿Pensaba en mí? […] Pasé
hasta una semana sin quitarme el mameluca de mecánico ni de día ni de noche, sin
bañarme, sin afeitarme, sin cepillarme los dientes, porque el amor me enseñó
demasiado tarde que uno se arregla para alguien, se viste y se perfuma para
alguien, y yo nunca había tenido para quién. (p. 81)
No me reconocía a mí mismo en mi dolor de adolescente. No volví a salir de la casa
para no descuidar el teléfono. (p. 82)
84
De acordo com Silviano Santiago (1986: 12), “Num conto pósmoderno, morte e amor se encontram no meio da ponte da vida. [...] pelo
desejo se reinventa a vida na morte”. Pela voz do ensaísta brasileiro,
podemos resumir o que ocorre com o narrador de Memoria de mis putas
tristes, quando encontra sua jovem virgem e descobre nela o primeiro amor
de sua vida.
85
CONCLUSÃO
Após a análise crítica de Memoria de mis putas tristes, pudemos
verificar que as histórias vividas e escutadas por Gabriel García Márquez
têm uma influência significativa na realização de suas obras, o que fica claro
após uma leitura de sua autobiografia Vivir para contarla (2007), que foi de
suma importância para esta conclusão.
Inicialmente, foi apresentado um breve panorama do contexto cultural
e literário da América Hispânica desde princípios do século XX até a
narrativa contemporânea, destacando-se a prosa regionalista e o chamado
boom da literatura hispano-americana, no qual se insere García Márquez,
como forma de situar o autor colombiano num espaço e tempo bem
definidos.
O segundo capítulo foi dedicado exclusivamente ao romancista,
destacando sua importância e influência, tratando brevemente de suas obras
mais significativas, enfatizando, sem dúvida, Cien años de soledad, seu
romance ícone que o levou a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura em 1982.
No capítulo seguinte, destacamos os pontos teóricos imprimindo
maior relevo às “escritas de si”, principalmente para a autobiografia e a
autoficção.
Para
a
autobiografia
empregamos,
sobretudo,
o
Pacto
Autobiográfico (2008) de Philippe Lejeune e para a autoficção, Escritas de si,
escritas do outro. O retorno do autor e a virada etnográfica (2007) de Diana
Klinger. Estas leituras foram de grande importância para entender a
estratégia da escritura de García Márquez.
86
Os dois capítulos subsequentes já formam a segunda parte do
presente trabalho e destacam-se pela análise crítica de Memoria de mis
putas tristes (2004).
No quarto capítulo, tivemos como base teórica a obra de Félix
Guattari e Suely Rolnik, Micropolítica: cartografias do desejo (2007).
Pudemos concluir que a relação entre desejo e corpo ainda é vista como
algo que deve ser condenado, ou melhor, como Guattari afirma, disciplinado,
as pessoas ainda veem tal relação com olhos de pudor. A obra de García
Márquez vem nos ajudar a ver tal relação com outros olhos: desejo pode ser
muito mais que uma atração sexual, como se pôde perceber no personagem
principal, que nutre um desejo sentimental pela jovem virgem. O corpo não é
algo que devemos nos envergonhar e sim contemplar como obra da
natureza, assim como o corpo da menina é contemplado e admirado pelo
personagem, como ele mesmo diz: sem os estorvos do pudor.
A obra também nos ajuda a pensar em nosso modo de vida, em como
devemos
tentar
ser
diferentes,
criar
nossa
singularidade
e
não,
simplesmente aceitar esta subjetividade capitalística que criam para nós.
Devemos ser seres pensantes, que saibam questionar, indagar e também
responder. É importante criarmos uma subjetividade própria que nos faça
seres únicos, que não sejamos mais um na massa e sim que sejamos o que
move a massa.
Para finalizar esse capítulo, nos demos conta de que não devemos
temer a desterritorialização. Estar desterritorializado é quase um estado de
87
espírito, devemos sim é ser fortes o suficiente para, no temor da
desterritorialização, sabermos nos reterritorializar.
No quinto e último capítulo, com o auxílio do apoio teórico, concluímos
que Memoria de mis putas tristes pode ser entendida, de acordo com os
gêneros
aqui
estudados
(autobiografia,
romance
autobiográfico
e
autoficção), como um “romance autobiográfico”; no entanto, o que importa
aqui não é sua classificação, e sim as mil formas pelas quais ela pode ser
lida. Cada leitor tem total liberdade de leitura e interpretação.
Ainda no mesmo capítulo, passamos ao foco do narrador, tomando
como teórico principal Silviano Santiago, e realizando a análise da obra de
García Márquez contraposta ao texto O narrador pós-moderno (1986).
Embora Silviano Santiago frise que o narrador pós-moderno é aquele que
não fala de suas próprias experiências, mas sim daquelas que observa.
Pudemos concluir que o narrador da obra aqui estudada, mesmo ao narrar
suas experiências, deve ser considerado como um narrador pós-moderno,
pois seu foco principal são os amores, conflitos e distúrbios que a jovem por
quem se apaixona lhe causa. O narrador vê nesta jovem a possibilidade de
se sentir jovem novamente.
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ANEXO
I
La soledad de América Latina
[Discurso de aceptación del Premio Nobel 1982 -Texto completo]
Gabriel García Márquez
Antonio Pigafetta, un navegante florentino que acompañó
a
Magallanes en el primer viaje alrededor del mundo, escribió a su paso por
nuestra América meridional una crónica rigurosa que sin embargo parece
una aventura de la imaginación. Contó que había visto cerdos con el ombligo
en el lomo, y unos pájaros sin patas cuyas hembras empollaban en las
espaldas del macho, y otros como alcatraces sin lengua cuyos picos
parecían una cuchara. Contó que había visto un engendro animal con
cabeza y orejas de mula, cuerpo de camello, patas de ciervo y relincho de
caballo. Contó que al primer nativo que encontraron en la Patagonia le
pusieron enfrente un espejo, y que aquel gigante enardecido perdió el uso
de la razón por el pavor de su propia imagen.
Este libro breve y fascinante, en el cual ya se vislumbran los
gérmenes de nuestras novelas de hoy, no es ni mucho menos el testimonio
más asombroso de nuestra realidad de aquellos tiempos. Los Cronistas de
Indias nos legaron otros incontables. Eldorado, nuestro país ilusorio tan
codiciado, figuró en mapas numerosos durante largos años, cambiando de
lugar y de forma según la fantasía de los cartógrafos. En busca de la fuente
de la Eterna Juventud, el mítico Alvar Núñez Cabeza de Vaca exploró
durante ocho años el norte de México, en una expedición venática cuyos
miembros se comieron unos a otros y sólo llegaron cinco de los 600 que la
emprendieron. Uno de los tantos misterios que nunca fueron descifrados, es
II
el de las once mil mulas cargadas con cien libras de oro cada una, que un
día salieron del Cuzco para pagar el rescate de Atahualpa y nunca llegaron a
su destino. Más tarde, durante la colonia, se vendían en Cartagena de Indias
unas gallinas criadas en tierras de aluvión, en cuyas mollejas se
encontraban piedrecitas de oro. Este delirio áureo de nuestros fundadores
nos persiguió hasta hace poco tiempo. Apenas en el siglo pasado la misión
alemana de estudiar la construcción de un ferrocarril interoceánico en el
istmo de Panamá, concluyó que el proyecto era viable con la condición de
que los rieles no se hicieran de hierro, que era un metal escaso en la región,
sino que se hicieran de oro.
La independencia del dominio español no nos puso a salvo de la
demencia. El general Antonio López de Santana, que fue tres veces dictador
de México, hizo enterrar con funerales magníficos la pierna derecha que
había perdido en la llamada Guerra de los Pasteles. El general García
Moreno gobernó al Ecuador durante 16 años como un monarca absoluto, y
su cadáver fue velado con su uniforme de gala y su coraza de
condecoraciones sentado en la silla presidencial. El general Maximiliano
Hernández Martínez, el déspota teósofo de El Salvador que hizo exterminar
en una matanza bárbara a 30 mil campesinos, había inventado un péndulo
para averiguar si los alimentos estaban envenenados, e hizo cubrir con
papel rojo el alumbrado público para combatir una epidemia de escarlatina.
El monumento al general Francisco Morazán, erigido en la plaza mayor de
Tegucigalpa, es en realidad una estatua del mariscal Ney comprada en París
en un depósito de esculturas usadas.
III
Hace once años, uno de los poetas insignes de nuestro tiempo, el
chileno Pablo Neruda, iluminó este ámbito con su palabra. En las buenas
conciencias de Europa, y a veces también en las malas, han irrumpido
desde entonces con más ímpetus que nunca las noticias fantasmales de la
América Latina, esa patria inmensa de hombres alucinados y mujeres
históricas, cuya terquedad sin fin se confunde con la leyenda. No hemos
tenido un instante de sosiego. Un presidente prometeico atrincherado en su
palacio en llamas murió peleando solo contra todo un ejército, y dos
desastres aéreos sospechosos y nunca esclarecidos segaron la vida de otro
de corazón generoso, y la de un militar demócrata que había restaurado la
dignidad de su pueblo. En este lapso ha habido 5 guerras y 17 golpes de
estado, y surgió un dictador luciferino que en el nombre de Dios lleva a cabo
el primer etnocidio de América Latina en nuestro tiempo. Mientras tanto 20
millones de niños latinoamericanos morían antes de cumplir dos años, que
son más de cuantos han nacido en Europa occidental desde 1970. Los
desaparecidos por motivos de la represión son casi los 120 mil, que es como
si hoy no se supiera dónde están todos los habitantes de la ciudad de
Upsala. Numerosas mujeres arrestadas encintas dieron a luz en cárceles
argentinas, pero aún se ignora el paradero y la identidad de sus hijos, que
fueron dados en adopción clandestina o internados en orfanatos por las
autoridades militares. Por no querer que las cosas siguieran así han muerto
cerca de 200 mil mujeres y hombres en todo el continente, y más de 100 mil
perecieron en tres pequeños y voluntariosos países de la América Central,
Nicaragua, El Salvador y Guatemala. Si esto fuera en los Estados Unidos, la
IV
cifra proporcional sería de un millón 600 mil muertes violentas en cuatro
años.
De Chile, país de tradiciones hospitalarias, ha huido un millón de
personas: el 10 por ciento de su población. El Uruguay, una nación
minúscula de dos y medio millones de habitantes que se consideraba como
el país más civilizado del continente, ha perdido en el destierro a uno de
cada cinco ciudadanos. La guerra civil en El Salvador ha causado desde
1979 casi un refugiado cada 20 minutos. El país que se pudiera hacer con
todos los exiliados y emigrados forzosos de América latina, tendría una
población más numerosa que Noruega.
Me atrevo a pensar que es esta realidad descomunal, y no sólo su
expresión literaria, la que este año ha merecido la atención de la Academia
Sueca de la Letras. Una realidad que no es la del papel, sino que vive con
nosotros y determina cada instante de nuestras incontables muertes
cotidianas, y que sustenta un manantial de creación insaciable, pleno de
desdicha y de belleza, del cual éste colombiano errante y nostálgico no es
más que una cifra más señalada por la suerte. Poetas y mendigos, músicos
y profetas, guerreros y malandrines, todas las criaturas de aquella realidad
desaforada hemos tenido que pedirle muy poco a la imaginación, porque el
desafío mayor para nosotros ha sido la insuficiencia de los recursos
convencionales para hacer creíble nuestra vida. Este es, amigos, el nudo de
nuestra soledad.
Pues si estas dificultades nos entorpecen a nosotros, que somos de
su esencia, no es difícil entender que los talentos racionales de este lado del
V
mundo, extasiados en la contemplación de sus propias culturas, se hayan
quedado sin un método válido para interpretarnos. Es comprensible que
insistan en medirnos con la misma vara con que se miden a sí mismos, sin
recordar que los estragos de la vida no son iguales para todos, y que la
búsqueda de la identidad propia es tan ardua y sangrienta para nosotros
como lo fue para ellos. La interpretación de nuestra realidad con esquemas
ajenos sólo contribuye a hacernos cada vez más desconocidos, cada vez
menos libres, cada vez más solitarios. Tal vez la Europa venerable sería
más comprensiva si tratara de vernos en su propio pasado. Si recordara que
Londres necesitó 300 años para construir su primera muralla y otros 300
para tener un obispo, que Roma se debatió en las tinieblas de incertidumbre
durante 20 siglos antes de que un rey etrusco la implantara en la historia, y
que aún en el siglo XVI los pacíficos suizos de hoy, que nos deleitan con sus
quesos mansos y sus relojes impávidos, ensangrentaron a Europa con
soldados de fortuna. Aún en el apogeo del Renacimiento, 12 mil
lansquenetes a sueldo de los ejércitos imperiales saquearon y devastaron a
Roma, y pasaron a cuchillo a ocho mil de sus habitantes.
No pretendo encarnar las ilusiones de Tonio Kröger, cuyos sueños de
unión entre un norte casto y un sur apasionado exaltaba Thomas Mann hace
53 años en este lugar. Pero creo que los europeos de espíritu clarificador,
los que luchan también aquí por una patria grande más humana y más justa,
podrían ayudarnos mejor si revisaran a fondo su manera de vernos. La
solidaridad con nuestros sueños no nos haría sentir menos solos, mientras
VI
no se concrete con actos de respaldo legítimo a los pueblos que asuman la
ilusión de tener una vida propia en el reparto del mundo.
América Latina no quiere ni tiene por qué ser un alfil sin albedrío, ni
tiene nada de quimérico que sus designios de independencia y originalidad
se conviertan en una aspiración occidental.
No obstante, los progresos de la navegación que han reducido tantas
distancias entre nuestras Américas y Europa, parecen haber aumentado en
cambio nuestra distancia cultural. ¿Por qué la originalidad que se nos admite
sin reservas en la literatura se nos niega con toda clase de suspicacias en
nuestras tentativas tan difíciles de cambio social? ¿Por qué pensar que la
justicia social que los europeos de avanzada tratan de imponer en sus
países no puede ser también un objetivo latinoamericano con métodos
distintos en condiciones diferentes? No: la violencia y el dolor desmesurados
de nuestra historia son el resultado de injusticias seculares y amarguras sin
cuento, y no una confabulación urdida a 3 mil leguas de nuestra casa. Pero
muchos dirigentes y pensadores europeos lo han creído, con el infantilismo
de los abuelos que olvidaron las locuras fructíferas de su juventud, como si
no fuera posible otro destino que vivir a merced de los dos grandes dueños
del mundo. Este es, amigos, el tamaño de nuestra soledad.
Sin embargo, frente a la opresión, el saqueo y el abandono, nuestra
respuesta es la vida. Ni los diluvios ni las pestes, ni las hambrunas ni los
cataclismos, ni siquiera las guerras eternas a través de los siglos y los siglos
han conseguido reducir la ventaja tenaz de la vida sobre la muerte. Una
ventaja que aumenta y se acelera: cada año hay 74 millones más de
VII
nacimientos que de defunciones, una cantidad de vivos nuevos como para
aumentar siete veces cada año la población de Nueva York. La mayoría de
ellos nacen en los países con menos recursos, y entre éstos, por supuesto,
los de América Latina. En cambio, los países más prósperos han logrado
acumular suficiente poder de destrucción como para aniquilar cien veces no
sólo a todos los seres humanos que han existido hasta hoy, sino la totalidad
de los seres vivos que han pasado por este planeta de infortunios.
Un día como el de hoy, mi maestro William Faullkner dijo en este
lugar: "Me niego a admitir el fin del hombre". No me sentiría digno de ocupar
este sitio que fue suyo si no tuviera la conciencia plena de que por primera
vez desde los orígenes de la humanidad, el desastre colosal que él se
negaba a admitir hace 32 años es ahora nada más que una simple
posibilidad científica. Ante esta realidad sobrecogedora que a través de todo
el tiempo humano debió de parecer una utopía, los inventores de fábulas
que todo lo creemos, nos sentimos con el derecho de creer que todavía no
es demasiado tarde para emprender la creación de la utopía contraria. Una
nueva y arrasadora utopía de la vida, donde nadie pueda decidir por otros
hasta la forma de morir, donde de veras sea cierto el amor y sea posible la
felicidad, y donde las estirpes condenadas a cien años de soledad tengan
por fin y para siempre una segunda oportunidad sobre la tierra.
Agradezco a la Academia de Letras de Suecia el que me haya
distinguido con un premio que me coloca junto a muchos de quienes
orientaron y enriquecieron mis años de lector y de cotidiano celebrante de
ese delirio sin apelación que es el oficio de escribir. Sus nombres y sus
VIII
obras se me presentan hoy como sombras tutelares, pero también como el
compromiso, a menudo agobiante, que se adquiere con este honor. Un duro
honor que en ellos me pareció de simple justicia, pero que en mí entiendo
como una más de esas lecciones con las que suele sorprendernos el
destino, y que hacen más evidente nuestra condición de juguetes de un azar
indescifrable, cuya única y desoladora recompensa, suelen ser, la mayoría
de las veces, la incomprensión y el olvido.
Es por ello apenas natural que me interrogara, allá en ese trasfondo
secreto en donde solemos trasegar con las verdades más esenciales que
conforman nuestra identidad, cuál ha sido el sustento constante de mi obra,
qué pudo haber llamado la atención de una manera tan comprometedora a
este tribunal de árbitros tan severos. Confieso sin falsas modestias que no
me ha sido fácil encontrar la razón, pero quiero creer que ha sido la misma
que yo hubiera deseado. Quiero creer, amigos, que este es, una vez más, un
homenaje que se rinde a la poesía. A la poesía por cuya virtud el inventario
abrumador de las naves que numeró en su Iliada el viejo Homero está
visitado por un viento que las empuja a navegar con su presteza intemporal
y alucinada. La poesía que sostiene, en el delgado andamiaje de los tercetos
del Dante, toda la fábrica densa y colosal de la Edad Media. La poesía que
con tan milagrosa totalidad rescata a nuestra América en las Alturas de
Machu Pichu de Pablo Neruda el grande, el más grande, y donde destilan su
tristeza milenaria nuestros mejores sueños sin salida. La poesía, en fin, esa
energía secreta de la vida cotidiana, que cuece los garbanzos en la cocina, y
contagia el amor y repite las imágenes en los espejos.
IX
En cada línea que escribo trato siempre, con mayor o menor fortuna,
de invocar los espíritus esquivos de la poesía, y trato de dejar en cada
palabra el testimonio de mi devoción por sus virtudes de adivinación, y por
su permanente victoria contra los sordos poderes de la muerte. El premio
que acabo de recibir lo entiendo, con toda humildad, como la consoladora
revelación de que mi intento no ha sido en vano. Es por eso que invito a
todos ustedes a brindar por lo que un gran poeta de nuestras Américas, Luis
Cardoza y Aragón, ha definido como la única prueba concreta de la
existencia del hombre: la poesía. Muchas gracias.
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