UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII
CURSO DE DIREITO
NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA
COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA
ALEXIS DE TOCQUEVILLE: DESCENTRALIZAÇÃO, PODER LOCAL E
LIBERDADE POLÍTICA.
Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do
grau de bacharel em Direito na Universidade do Vale do Itajaí
ACADÊMICO(A): IG HENRIQUE QUEIROZ GONÇALVES
São José (SC), maio de 2005
2
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII
CURSO DE DIREITO
NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA
COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA
ALEXIS DE TOCQUEVILE: DESCENTRALIZAÇÃO, PODER LOCAL E
LIBERDADE POLÍTICA.
Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do
grau de Bacharel em Direito, sob orientação do Prof. MSc. Luis
Magno Bastos Junior.
ACADÊMICO(A): IG HENRIQUE QUEIROZ GONÇALVES
São José (SC), maio de 2005.
3
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII
CURSO DE DIREITO
NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA
COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA
ALEXIS DE TOCQUEVILE: DESCENTRALIZAÇÃO, PODER LOCAL E
LIBERDADE POLÍTICA.
IG HENRIQUE QUEIROZ GONÇALVES
A presente monografia foi aprovada como requisito para a obtenção do grau de
bacharel em Direito no curso de Direito na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.
São José, 16 de junho de 2005.
Banca Examinadora:
_______________________________________________________
Prof. MSc. Luiz Magno Bastos Junior - Orientador
_______________________________________________________
Prof. MSc. Volney Campos dos Santos- Membro
_______________________________________________________
Prof. MSc. Daniela M.L. de Cademartori - Membro
4
Ao meu avô Ignácio Queiroz.
5
AGRADECIMENTOS
Primeiramente dedico aos meus pais, por seu esforço incansável em minha
educação, por sempre apostarem em meus sonhos, e me fazerem compreender que nada serei
sem os estudos, agradeço também pelos exemplos que são, que me obriga a estar sempre
querendo mais, para poder fazer jus a tê-los como pais.
Aos meus irmãos e amigos Bruno e Rafa, com quem posso contar em todos os
momentos.
A minha namorada Roberta por apesar de também estar envolvida com sua
monografia, pacientemente me escutou falar durante horas e horas durante a elaboração do
presente trabalho, o que me ajudou grandemente a organizar meus pensamentos, e também a
sua família que hoje soma-se a minha.
Aos amigos que fiz na faculdade, em especial ao Nado, amizade que levarei
para a vida.
Aos professores que durante a faculdade esforçaram-se para abrir meus olhos:
Ricardo Stanziola, Leonardo Vales Bento, Argemiro, Carla Seeman sem a qual não teria
conhecido o grupo de pesquisa.
Em especial ao professor Volney com quem muito aprendi durante o início do
meu trabalho.
E finalmente o professor Luis Magno, que me acompanha desde meus
primeiros passos no estudo de Aléxis de Tocqueville, e brilhantemente me orientou com sua
sabedoria e paciência, a quem serei eternamente grato.
6
“O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve,
não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não
sabe que o custo da vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha,
do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões
políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e
estufa o peito dizendo que odeia política. Não sabe o imbecil que
da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor
abandonado, o assaltante e o pior de todos os bandidos, que é o
político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio das empresas
nacionais e multinacionais. ”
Bertold Brecht.
7
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................8
INTRODUÇÃO..................................................................................................9
1 INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE ALÉXIS DE TOCQUEVILLE.12
1.1 Pensamento liberal na França e contexto histórico....................................... 12
1.2- Apresentando Tocqueville...........................................................................20
1.3 Fundamentos Epistemológicos de Tocqueville.............................................. 25
2 A
DEMOCRACIA
AMERICANA
DE
TOCQUEVILLE:
SINGULARIDADE HISTÓRICA, MODELO UNIVERSAL........................30
2.1 Traços gerais que marcam a “Democracia na América”. ............................. 30
2.2 Democracia: liberdade política e tirania da maioria. .................................... 35
2.3 Descentralização administrativa e centralização governamental. .................41
3 DESCENTRALIZAÇÃO E PODER LOCAL: DESENVOLVIMENTO
DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS NO BRASIL. ..............................50
3.1 Estado social brasileiro: os desafios à democracia. ...................................... 50
3.1.1 Desigualdade material e democracia individualista................................... 54
3.1.2 Descentralização, poder local e representação política. ............................. 59
3.2 Descentralização e liberdade política: caminhos para a democracia. ............63
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 73
REFERÊNCIAS ............................................................................................... 77
ANEXOS........................................................................................................... 80
I -CRONOLOGIA............................................................................................80
8
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo transportar alguns princípios desenvolvidos por
Alexis de Tocqueville, no início do século XIX, para a democracia brasileira contemporânea.
Acreditando que estes ainda hoje possuem um forte poder explicativo para melhor
compreensão da realidade hodierna e, ainda, tentar aproveitar suas idéias para incrementar o
debate acerca da democracia. Porém mais de um século e meio se passaram desde a
publicação de sua obra, o que força um certo cuidado ao fazer tal transporte, correndo o risco
de serem distorcidas suas teorias se não forem feitas algumas considerações como, por
exemplo, o estudo do contexto histórico em que viveu, suas motivações políticas, a transição
do Antigo Regime para o Estado na forma como conhecemos hoje, enfim, tudo que tenha
influenciado o autor em sua produção intelectual.
9
INTRODUÇÃO
Passaram-se dezessete anos desde a promulgação da Constituição brasileira de 1988,
neste período ganhamos uma nova moeda e uma relativa estabilidade economia. Foram quatro
eleições diretas, quatro presidentes, um impechament. O Brasil alcançou a posição de maior
referencia política e econômica da América Latina, aparentemente com uma democracia
consolidada pelo menos em seus aspectos formais. Mas, por outro lado, possuímos uma das
mais injustas distribuições de renda no planeta, que faz com que nosso estado social seja
marcado por uma extrema desigualdade tanto econômica quanto de oportunidades.
Um país que se esforça para parecer internacionalmente estável, para que possa ter
credibilidade econômica, e atrair investimentos internacionais, mas, internamente, a
população se encontra, em grande desamparo, em sua maioria, largada a uma situação
precária.
O Estado, com toda sua estrutura burocrática, recolhe uma pesada carga tributária dos
contribuintes mas não realiza a contraprestação devida à população, que, de um modo geral,
não possui saúde, segurança ou educação pública de qualidade, sem falar em casos mais
extremos dos que não têm nem o que comer. Enquanto isso, do outro lado da balança, temos
uma minoria que, de quatro em quatro anos, se articula com seus patrocinadores para,
avidamente lutarem pelos votos da população, a fim de que ingressem ou permaneçam no
poder por mais quatro anos.
Elegem-se pregando os ideais democráticos, o combate às desigualdades sociais e o
aumento dos empregos. Mas, depois de eleitos, o que vemos é um governo que não governa
para o povo mas, ao contrário, distancia-se de seus eleitores e usa a maquina do Estado para
gerir seus interesses privados.
Por parte do povo, a apatia política tende a aumentar conforme aumenta a valorização
da importância da vida privada e na busca de saciar os desejos do consumismo e do
materialismo, o homem contemporâneo dedica-se cada vez mais ao desfrute de seu bem estar
material e, cada vez mais, se distancia da sociedade. Como se vivesse sozinho no mundo, ou
melhor, depois que restringe seu círculo de relacionamentos a um pequeno grupo, formado
por seus familiares e amigos, larga, de bom grado, a sociedade a ela mesma. Para ele o Estado
só existe para lhe possibilitar a liberdade necessária a seu progresso pessoal. Os miseráveis, os
10
famintos e os excluídos não lhe interessam, a não ser quando fatalmente algum deles lhe
invade a propriedade ou lhe perturbam em sua liberdade.
No momento que é agredido (assalto, roubo, ou outra violência), o homem
contemporâneo olha para o Estado e lhe cobra segurança, reclama da polícia pois, afinal, ele
paga impostos e a segurança realmente é devida, porém raramente percebe que a relação entre
o seu descaso social e a agressão é muito estreita.
Alexis de Tocqueville desenvolveu algumas idéias e conceitos importantes, que ainda
hoje possuem um grande força explicativa para entendermos a democracia contemporânea. E,
mais que isso, observa meios para tentar frear os perigos a que está sujeita a democracia
durante seu desenvolvimento no mundo ocidental, entre eles a apatia política. Porém um
século e meio se passou desde o surgimento das idéias de Alexis de Tocqueville até os
problemas atualmente enfrentados pela democracia brasileira. O que força um grande
cuidado, ao tentar transportar suas idéias do século XIX para o século XXI.
É exatamente o que pretende o presente trabalho, e para tal fim, organiza-se em três
capítulos: no primeiro capítulo é apresentado o autor, o pensamento político de seu tempo e
sua fundamentação epistemológica, no segundo capítulo, a América empírica analisada com
sagacidade por Tocqueville o que lhe rendeu, interessantes considerações. E, por fim, no
terceiro capítulo, a partir do entendimento do autor e do contexto histórico em que foram
desenvolvidas suas idéias, tentar valer-se de alguns princípios universais para o debate atual
acerca da democracia brasileira.
Seu pensamento foi desenvolvido, depois de uma observação perspicaz da democracia
nos Estados Unidos durante o nascimento da mesma. O que para um aristocrata, filho do
Antigo Regime francês, apresentava-se como um mundo inteiramente novo, um mundo onde
reinava a igualdade entre os cidadãos, realidade extremamente oposta à da sociedade de castas
a que a Europa ainda se vinculava. Diante desta cena, Tocqueville percebe ser necessária à
criação de “uma nova ciência política para um mundo inteiramente novo”.
Sua reflexão basicamente consistiria em tentar responder a pergunta de como seria
possível garantir a liberdade política nos tempos de igualdade. Para o autor, a liberdade
política é único meio de evitar o aparecimento de um novo “tipo de despotismo”, que
trabalharia em função da apatia política de seus cidadãos e comprometeria o futuro das nações
democráticas.
Apresentado o autor, o pensamento político do seu tempo e suas observações, será
feita uma breve reflexão sobre as instituições brasileiras e as dificuldades para se estabelecer
11
uma democracia legítima no Brasil e, por fim tentar demonstrar a importância das teorias de
Tocqueville para incrementar os debates atuais acerca da reforma do Estado.
1
1.1
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE ALÉXIS DE TOCQUEVILLE.
Pensamento liberal na França e contexto histórico.
Antes de adentrar no estudo do pensamento liberal, cabe salientar que o século XVIII
foi o momento culminante das sucessivas transformações culturais vividas a partir do século
XIV pela sociedade européia. Desde o Renascimento1, o homem moderno foi ampliando a
confiança em si mesmo, no poder da razão e da liberdade de pensar. Inspirados pelo mundo
clássico muitos pensadores passaram a lançar teorias sobre os mais diversos assuntos:
filosofia, astronomia, teologia, política entre outros.2
A igreja, os reis absolutistas e a nobreza conservadora, todos muito criticados, não
gostavam dos ataques ao Antigo Regime. Mas as novas idéias foram se espalhando por toda
Europa3, originando o chamado Iluminismo, que apresentava pequenas variações em seus
ideais pelas regiões européias, mas basicamente consistia em um movimento cultural também
baseado na capacidade da razão humana, mas desejava ainda resultados práticos no combate
às injustiças e desigualdades promovidas pelas instituições e crenças estabelecidas pelo
regime absoluto. O iluminismo forneceu a base intelectual para a “Revolução Francesa” e foi
de fundamental importância para história contemporânea, influenciando vários ramos da
ciência e, na política, constitui a origem do pensamento liberal. 4
O germe do pensamento liberal surge na Inglaterra, na figura de nobres e burgueses
que reivindicam contra o Estado absolutista, maior liberdade política para o parlamento, e
limitações ao poder do rei. O que só é alcançado depois de um longo processo que se divide
1
Renascimento é o termo aplicado ao movimento de renovação intelectual e artística iniciada na Itália, no século
XIV, e atingiu seu apogeu no século XVI, influenciando varias outras regiões da Europa. A noção de
renascimento diz respeito à restauração dos valores do mundo clássico. Este conceito foi sistematicamente
desenvolvido por Giorgio Vasari, que acreditava ter a arte decaído esteticamente durante a Idade Média. Para
Vasari, a expressão artística só conseguiu encontrar um verdadeiro caminho com Giotto di Bondone e
Michelangelo Buonarroti, foi o ponto culminante desta renovação. O ideal de “homem renascentista” era
marcado pela crença em uma capacidade ilimitada da criação humana. Esta idéia foi personificada por Leonardo
da Vince e por Leon Battista Albert entre muitos outros. O Renascimento significou uma fase de alargamento
dos limites humanos. O novo espírito de investigação proporcionou progressos técnicos e conceituais, além de
questionamentos religiosos que abriram caminhos para as reformas religiosas. Nova Enciclopédia Ilustrada
Folha. São Paulo. Folha. 1996. v.2 p.830.
2
COTRIM,Gilberto. Historia e consciência do mundo.. 5ª ed.. São Paulo. Saraiva. 1997.p.243.
3
O iluminismo ou política da razão deve muito de sua divulgação pela Europa às Lojas Maçônicas, ver
CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político - o declínio do Estado-Nação monárquico. 1983.
v.2, p.103-110.
4
COTRIM,Gilberto. Historia e consciência do mundo.. 1997.p.243.
13
em quatro momentos principais; Guerra civil (1642-1648); República de Cromwell (16491658); Restauração Monárquica (1660-1688) e a Revolução Gloriosa (1688-1689). Chevalier
comenta que os ingleses estavam fadigados por vinte anos de agitação civil e que não
guardavam boas recordações da experiência republicana, reencontraram com alívio a
monarquia tradicional. Carlos II é reposto no trono Inglês em 1660, e as condições de
entendimento entre ele e o parlamento pareciam preenchidas.5
Carlos II consegue terminar o seu reinado, resistindo às turbulências do governo
principalmente na esfera religiosa entre católicos e protestantes. Quem o sucede no trono é
seu irmão Jaime II, que não possui a mesma habilidade para o governo, e deixa ruir a relação
da monarquia com o parlamento, o que culmina na Revolução Gloriosa e a fuga de Jaime II,
frente ao exército de Guilherme de Orange que é acolhido como libertador, em seus
estandartes estão inscritas estas palavras: pela liberdade, pelo parlamento, pela religião
protestante.6
Mediante a aceitação de uma Declaração de Direitos redigida pelo parlamento inglês
de acordo com a Carta Magna e a Petição de Direitos, Guilherme e Mary (filha do primeiro
casamento de Jaime II) tornam-se conjuntamente soberanos da Inglaterra em fevereiro de
1689. É o triunfo da monarquia constitucional e do parlamento sobre o direito divino e o
absolutismo.7
André Jardin comenta este momento da revolução:
Foi o rei Jaime II que, ao renovar as intenções absolutistas dos Stuarts,
desencadeou a revolução que o condenou ao exílio. Sua filha e seu genro, Guilherme,
pertencente a realeza dos países baixos, tiveram que aceitar os princípios impostos
pela Petition of Rights preparada pelo parlamento, antes de subirem ao trono. Esta
declaração fixou os limites do poder real e garantiu as liberdades do cidadão.
Ademais estabeleceu um regime representativo, em que o parlamento votava as leis e
aprovava os impostos sobre tudo. O parlamento era composto por duas Câmaras, a
dos Lordes, composta por aristocratas de forma hereditária, e a outra a dos Comuns,
que era eleita pelos súditos que tinham direito ao voto. Inspirada na velha tradição
política inglesa, que defendia os interesses absolutistas de um lado, a Petition of
Rights consagrou a colaboração da monarquia, da aristocracia, e do povo, e ainda,
dividiu o poder do estado em três: Legislativo, Executivo e Judiciário. Durante o
século XVIII, este sistema não eliminou nem conflitos, nem abusos, porém seus
mecanismos despertaram os interesses dos liberais franceses. Montesquieu o
demonstrou em rodas e engrenagens, e logo inspirou vários escritores políticos, na
França, e na própria Inglaterra, um milagre de equilíbrio e moderação.8
5
CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983. v.2, p.73
CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983. v.2, p.73
7
Para saber mais sobre a origem do liberalismo político e os Motivos que levaram a Revolução Inglesa, ver
CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983. v.2 , 11-53.
8
JARDIN, André. História del liberalismo político. México: Fondo de cultura econômica. 1998. p.13.
6
14
Há uma grande diferença entre a aristocracia inglesa e a francesa. No primeiro caso a
aristocracia compartilhava interesses “liberais” com a burguesia, tinham laços estreitos de
ligação, formando uma só força contra o poder absoluto do rei, lá a nobreza manteve-se na
direção dos negócios públicos, inclusive reduzindo seus privilégios pecuniários com a
abolição da desigualdade de impostos que a favorecia. Conseguindo manter-se no comando.9
A aristocracia comportou-se de modo diverso na França, a fim de manter seus
privilégios, lutou pela manutenção da imunidade de impostos para compensar a perda do
controle do poder para o governo absoluto e centralizado. Inclusive Tocqueville, anos mais
tarde, ao estudar o processo que levou à Revolução na França, conclui que o abandono da
nobreza de seu lugar de mando e de proteção às comunidades, foi responsável por parte
substancial das mazelas do Antigo Regime.10
Portanto, na França, as idéias liberais se desenvolveram mais lentamente. O
liberalismo francês foi considerado um “liberalismo nobre”, de essência aristocrática pura 11.
Aliás, ele questiona menos o absolutismo em seu princípio (o qual no fim de contas, parece
consolidado) do que em seu exercício por Luís XIV, rei da França na época. Destacam-se
neste período os seguintes pensadores: Sant-Simon, Fénelon e o Conte Henri de
Boulainvilliers.12 Eram influenciados pela produção intelectual inglesa, porém ainda
mantinham vínculos diretos com o Antigo Regime.
Anos mais tarde, a França sofre uma nova influência inglesa, Chevallier chama a
atenção para a estada forçada de Voltaire na Inglaterra, depois que o cavaleiro de Rohan o
mandou indignamente espancar por sua gente, onde permaneceu de maio de 1726 a outubro
de 1728. As Cartas filosóficas, publicadas em 1734, vão, em conseqüência dessa viagem,
fornecer ao público culto de Paris e da província em geral exatamente o que precisavam: uma
informação, atual, rápida, perspicaz e espiritual acerca do país vizinho e rival, próspero e de
espírito avançado. Um país que diferia em muitos pontos e vantajosamente (subentenda-se de
bom grado) da França do cardeal Fleury, ministro do jovem Luís XIV.13
Voltaire comenta em suas cartas o panorama inglês: as letras e as artes na
Inglaterra são respeitáveis aos olhos do povo e mais prestigiadas do que na França. Os
9
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. Rio de Janeiro: ACCESS, 1997.p.293304.
10
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.293.
11
Este termo “liberalismo nobre” é usado por Chevallier para descrever a aristocracia francesa, a quem interessa
em primeiro lugar, à sociedade nobre, ver Capitulo III- Na França: o liberalismo nobre. CHEVALLIER, JeanJacques. História do pensamento político.1983. p.54-55
12
CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983.p.67.
13
CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983, v.2, p.73.
15
escritores desfrutam a consideração que lhes é devida. E quanto ao teatro, a arte dramática,
quem poderia sonhar em condená-los, em nome de uma severidade cristã que Voltaire
qualifica de “barbárie gótica”. Em política:14
[...] a nação inglesa é a única da terra que chegou a regulamentar o poder dos reis
resistindo-lhes, e que de esforço em esforço chegou, enfim, a estabelecer um
governo sábio, onde o príncipe, todo poderoso para fazer o bem, tem as mãos
atadas para fazer o mal; onde os senhores são grandes sem insolência e sem
vassalos, e onde o povo participa do governo sem confusão [...] aqui não ouvireis
falar em alta, média e baixa justiça, nem dos direitos de caçar nas terras de um
cidadão, que não pode dar um tiro se quer em seu próprio campo. Porque nobre ou
padre, um homem não esta isento de pagar certos impostos.15
Escandalosa, contrária à religião, aos bons costumes e ao respeito que se deve aos
poderosos - tal foi o veredicto do parlamento de Paris contra a obra. Essas cartas chamadas
inglesas, que indiretamente atentavam contra as instituições fundamentais do Antigo Regime
francês(“a primeira bomba” – dirá G. Lanson- lançada contra ele), foram condenadas ao fogo
e decretada a detenção do autor. Voltaire escondeu-se em Cirey, na Champagne, na residência
de Mme du Châtelet.16
Tempos depois na França, Montesquieu, filósofo moralista, historiador e
teórico político, alias, junto com Rousseau e Pascal, era um dos autores mais apreciados por
Tocqueville e provavelmente aquele que mais influenciou seu trabalho cientifico17.
Montesquieu irá exercer uma influência tão considerável quanto paradoxal nas assembléias
constituintes revolucionárias francesas. De sua reflexão sobre o espírito das leis, ele induz
uma nova classificação dos regimes políticos, ao cabo da qual o governo moderado, onde é
assegurado uma separação dos poderes, revela-se a única solução institucional da liberdade
política. O método comanda um projeto. Mas qual? Pra alguns, Montesquieu – apesar de suas
nostalgias feudais – tomava resolutamente partido pelo liberalismo; para outros, o barão de La
Bréde tornou-se objeto de uma recuperação revolucionária por causa de um mal entendido:
destinados a preservar os privilégios da nobreza, sua teoria política e jurídica foi desviada de
seu significado a fim de ser posta a serviço da “causa do povo”, ou, pelo menos, do Terceiro
Estado burguês.18
Nas palavras de Marcelo Jasmin, Montesquieu fora um sistematizador de uma
nova concepção de ordem social no século XVIII. Revertendo o argumento contratualista da
14
CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983.v.2, p.73
VOLTAIRE, Essai sur lês Moeurs. Apud: CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político.
1983. v.2. p.67.
16
CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político .1983. v.2. p.67.
17
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política.1997.p.251.
18
CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 1985.p.61.
15
16
impossibilidade do conhecimento verdadeiro a partir da observação empírica, propôs que a
diversidade do direito e dos costumes não era fruto do capricho humano, mas sim resultado de
princípios e leis que ordenavam o comportamento social e suas instituições. Sua definição de
lei como relação, e não como mandamento, supunha a existência de ligações imanentes entre
variáveis fenomênicas, de unidade sob diversidade empírica dos fatos. A realidade histórica
aparecia ordenada por uma legalidade que não fora criada ou imposta pela vontade humana:
eram imposições objetivas derivadas das relações necessárias entre as coisas ou sua natureza.
O contingente submetia-se assim a causas gerais e o acidente não poderia explicar o
desenvolvimento das instituições humanas.19
Para ilustrar esta idéia de Montesquieu, palavras suas:
A lei, em geral, é a razão humana, na medida em que governa todos os
povos da terra, e as leis políticas e civis de cada nação devem ser apenas os casos
particulares em que se aplica essa razão humana. Devem ser elas tão adequadas ao
povo para o qual foram feitas que somente por um grande acaso as leis de uma
nação podem convir a uma outra. Cumpre que se relacionem à natureza e o princípio
do governo estabelecido ou que pretende se estabelecer, que elas o formem, com as
leis políticas, quer elas o mantenham, como fazem as leis civis.
Devem as leis ser relativas ao físico do país, ao clima frio, quente ou temperado; à
qualidade do solo, a sua situação, ao seu tamanho; ao gênero de vida dos povos,
agricultores, caçadores ou pastores; devem relacionar-se com o grau de liberdade
que a constituição pode permitir; como a religião dos habitantes, suas inclinações,
riquezas, número, comércio, costumes e maneiras. Possuem elas, enfim, relações
entre si e coma sua origem, com os desígnios do legislador e com a ordem das
coisas sobre as quais elas são estabelecidas. É preciso considerá-las em todos esses
aspectos.
É isso que pretendo realizar nesta obra. Examinei todas essas relações;
formam elas, no conjunto, o que chamamos de Espírito das Leis.20
Esse espírito, dirá ainda Montesquieu, consiste nas diferentes relações que as leis
podem ter com diversas coisas: com as coisas “inumeráveis”, as relações “i numeráveis”. 21
Lição esta, aprendida por Tocqueville, e aplicada na América, quando analisa a
democracia americana e sua estrutura administrativa, autor conclui ser impossível transpor as
instituições americanas para a França, porém aprender com elas alguns princípios, poderia vir
a ser útil ao pensar as reformas institucionais que seu país necessita.
A Revolução Francesa acontece com um século de atraso em relação à Revolução
Inglesa.22 Na França, a aliança entre girondinos (burguesia) e jacobinos (povo, trabalhadores),
volta-se não só contra o poder absoluto do rei como também contra os privilégios da
19
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.252.
MONTESQUIEU. De l’Esprit dês lois. Apud: CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político
.1983.v.2,p.73.
21
CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983. v.2, p.73.
22
Ver, André Jardin no livro História del liberalismo político , que traz uma análise profunda do pensamento
liberal desde a crise do absolutismo no século XVII até a Constituição francesa de 1875.
20
17
aristocracia francesa. O que se estende por um período sangrento, cabeças da nobreza francesa
rolaram nas guilhotinas, de julho a outubro, em 9 de julho através de inflamadas
manifestações populares, ocorre à proclamação da assembléia nacional constituinte que, abole
os privilégios feudais. É promulgada a declaração dos direitos dos homens e do cidadão e é
instituído pela nova Constituição Liberal o regime da Monarquia Constitucional. Que fracassa
e faz a França mergulhar em um período de instabilidade política. Os girondinos insatisfeitos
com a instabilidade provocada pelos interesses populares, instituíram a República, que
também fracassa, e anos mais tarde apóiam o golpe de estado de Napoleão Bonaparte, que
torna-se Imperador da França, onde governa até sua queda em 1815.23
Mas de um modo geral na Europa, no início do século XIX, o Estado- Nação
constitui-se por toda parte como estado liberal: o liberalismo político é sua filosofia
dominante. Estas concepções liberais dominantes almejam resolver principalmente a “questão
política”, entendida essencialmente como o problema das relações entre o indivíduo e o
Estado. Qualquer que seja a diversidade dessas doutrinas “de acordo com a época, o país, as
tendências numa época e num país”, pode -se perceber a presença de uma dupla preocupação
essencial: o indivíduo deve ser protegido ao mesmo tempo, contra o Estado e contra as
massas; por conseguinte, é preciso encontrar os mecanismos institucionais destinados a
impedir esse duplo perigo.24
Como destaca Châtelet, podem ser distinguidos, a grosso modo, dois tipos de
solução. Uma versão mais ou menos otimista que considera que a aplicação de certas
“receitas” institucion ais pode subtrair o indivíduo do despotismo, enfraquecendo a autoridade
do Estado e impedindo o advento da democracia de massa; o exemplo mais significativo seria
a solução proposta por Benjamin Constant (1767-1830). A outra, versão nitidamente mais
pessimista, considera o advento democrático como inelutável e tenta preconizar métodos
destinados, não a impedir, mas a evitar o excesso de despotismo que um tal advento corre o
risco de promover; coube a Alexis de Tocqueville, de certo, ilustrar do modo mais exemplar
essa segunda versão.25
Benjamin Constant defende um liberalismo contra a democracia. Ele considera que a
sociedade política não tem como fim a igualdade; essa se combina com uma concepção
arcaica da liberdade, legítima para os antigos mas inútil e perigosa para os modernos, iludidos
23
JARDIN, André. História del liberalismo político. 1998. p.108-128..
CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. 1985.p.105.
25
CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. 1985.p.105.
24
18
pela eterna metafísica do Contrato social.26 O objetivo dos antigos era partilhar o poder social
entre todos os cidadãos de uma mesma pátria. Era isso que eles chamavam de liberdade. O
objetivo dos modernos é a segurança nas fruições privadas; e eles chamam de liberdade as
garantias concedidas pelas instituições.27
Para Benjamin Constante, em questão de política moderna, pouco importa ao
indivíduo que se afirme que a soberania é popular, monárquica ou de outro tipo. Se só é
soberano aparentemente, essa aparência já lhe basta, desde que a autoridade do estado seja
limitada.
Será preciso encontrar ainda um sistema que permita combinar essas
características da liberdade com as da soberania popular? O melhor sistema, segundo
Constant, seria o sistema representativo.28E tal sistema implica logicamente, aos seus olhos, a
condenação de qualquer forma de sufrágio universal: o sufrágio deve ser restrito. Ele
desenvolveu uma ingênua astúcia: a condição necessária para o exercício político é o lazer,
pois esse lazer é indispensável para a aquisição das luzes. 29
Não quero cometer nenhuma injustiça contra a classe laboriosa [...] Mas
as pessoas que a indigência conserva numa eterna dependência e que condena a
trabalhos diários não são nem mais esclarecidos do que as crianças, nem mais
interessados do que os estrangeiros numa prosperidade nacional da qual eles não
conhecem os elementos e da qual só indiretamente partilham as vantagens [...].
portanto seria absurdo conferir-lhes direitos políticos, que servirão infalivelmente
para invadir a propriedade. Elas marcharam por esse caminho irregular, em vez de
seguirem a rota natural, o trabalho: seria para eles uma espécie de corrupção; e,
para o Estado, uma desordem [...].30
Quanto à distribuição dos poderes Benjamin segue a idéia de Montesquieu, mas
segundo Châtelet, acrescenta uma contribuição original a sua teoria: o poder do rei não tem
porque governar; os ministros tem o poder ativo e encarregam-se disso. O monarca
constitucional é um “p oder neutro”, que garante os limites da soberania. 31
Tocqueville por sua vez, adota a concepção de um liberalismo democrático. O
autor descobriu a democracia americana, segundo François Châtelet, talvez resida ai a
perspicácia de suas análises, mas também a causa de suas limitações.
26
CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. 1985.p.105.
CONSTANT, Benjamin. De la liberte dês anciens comparée à celle dês modernes. Apud CHÂTELET,
François. Historia das idéias políticas. . 1985.p.105-106.
28
CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. 1985.p.106.
29
CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. Jorge. 1985.p.108.
30
CONSTANT, Benjamin. De la liberte dês anciens comparée à celle dês modernes. Apud CHÂTELET,
François. Historia das idéias políticas. 1985.p.108.
31
CONSTANT, Benjamin. De la responsabilité dês ministres. Apud: CHÂTELET, François. Historia das idéias
políticas. 1985.p.108.
27
19
A primeira novidade na teoria de Tocqueville é o fato do poder irresistível da
democracia sobre o futuro da humanidade, ele a entende como inevitável. Mas é preciso
especificar imediatamente que, para Tocqueville (e nisso reside a sua originalidade), esse fato
democrático é definido a partir da noção de igualdade.32
A ambigüidade do pensamento de Tocqueville, constitui o que Marcelo Jasmin
denomina “dilema tocquevilliano”, que expressa a concepção de que a liberdade política na
sociedade igualitária de massas depende de uma práxis e de um conjunto de valores cujas
bases tendem a ser destruídas pelo desenvolvimento continuado das disposições internas da
própria democracia.33
Estas disposições internas podem ser resumidas pelo individualismo e
materialismo democrático moderno, que preparam o leito para o poder despótico.
Apesar de distintas, as teorias de Constant e Tocqueville são ambas frutos do
pensamento liberal do século XVIII34, que visava principalmente encontrar soluções para
garantir ao indivíduo liberdade contra o Estado e conta as massas. Outra diferença marcante é
a ótica com que os autores vêm o problema, enquanto Benjamin Constante foca seu olhar no
presente, Aléxis de Tocqueville mira o olhar para o futuro.
Enfim foi o pensamento iluminista que, resgatou o homem das trevas, que o
prendiam à ignorância dos preconceitos e das superstições, e o lançou a olhar para si mesmo,
desenvolvendo a idéia de que através de seu esclarecimento poderia agir livremente em seu
próprio benefício, largando de bom grado aquele estado de menoridade política, onde
obedecia apenas à vontade do soberano.35 Originando assim o liberalismo político, escola do
pensamento da qual Alexis de Tocqueville faz parte.
32
CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. 1985.p.109-110.
JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto interesse.In:- democracia hoje: novos
desafios para a teoria democrática contemporânea.UnB.2001.p.204.
34
La obra de Tocqueville, notable por su unidad, abrió pers pectivas nuevas a los valores liberales. El siglo
XVIII, a pesar de las preocupaciones polémicas, los fijó de manera intemporal. Bejamín Constant los había
adaptado a la sociedad de su tiempo, mientras que los doctrinarios intentaron insertalos em la tradición.
Tocqueville los entendió como directrices de la sociedad occidental: señaló los escolhos em los que podia
naufragar, no sólo los de despotismo brutal, sino los Del aneganiento em el bienestar material, com lo que al
parecer presintió la angustia de los hombres de nuestros dias em los umbrales de los regímenes totalitários o de
la sociedad de consumo. Se esforzó por definir las costumbres y las instituciones de uma democracia libre Del
futuro. Por eso es el pensador liberal más leído y más comentado de nuestro dias. JARDIN, André. História del
liberalismo político. 1998. p.382..
35
CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983.v.2, p.104.
33
20
1.2- Apresentando Tocqueville.
Consagrado pela posteridade como escritor, sociólogo da democracia moderna
e historiador do Antigo Regime36, Alexis Charles Henri Clérel de Tocqueville sempre
ambicionou ser um homem da política37. Nascido em julho de 1805, terceiro filho de uma
tradicional família da nobreza normanda, que encaminhara os dois mais velhos à carreira
militar, é provável que desde cedo seu destino como homem público estivesse programado
pelo conde Hervé de Tocqueville, seu pai, para dar continuidade à presença dos Clérel na vida
política. Contudo para além desta destinação familiar, o jovem Tocqueville sempre expressou
uma vontade própria de dirigir os negócios de Estado38, e tinha uma percepção aguçada das
mudanças sociais que estavam ocorrendo em seu país. De 1820 à 1823, foi o único da família
a acompanhar seu pai a Metz, onde ingressou e concluiu sua formação básica no Liceu de
Metz, e ainda passou um longo tempo sozinho na prefeitura onde descobriu a biblioteca dos
filósofos, e em suas leituras solitárias, começou a meditar sobre a evolução da democracia.39
Em 1827, após ter concluído seus estudos de direito em Paris, ingressou na
magistratura em busca de uma carreira provisória à espera do cumprimento das exigências da
legislação eleitoral da Restauração que previa a idade mínima de quarenta anos para uma
candidatura à Câmara dos deputados. Aos vinte e quatro anos tinha clareza da sua ambição:
“C’est I’homme politique qu’il faut faire em nous”, escrevia ao amigo Gustave de Beumont
que com ele partilhava as mesmas pretensões.40
Em 1830, a Revolução continua41, a alta burguesia contra o rei, que culminou
na deposição de Carlos X, que visava estabelecer um regime contrário a todas as conquistas
liberais posteriores a 1789, e em seu lugar foi conduzido ao trono francês, Luís Felipe
D’Orleans, que governou de 1830-1848, teve início a chamada idade de ouro da alta
burguesia, período em que o capitalismo francês
apresentou grande desenvolvimento
industrial e financeiro. Mas em contrapartida evidenciava-se, neste mesmo período, um
complexo conjunto de fatores sócio-econômicos negativos. Misturando-se diferentes ideais
nacionalistas, liberais e sociais.42
36
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.25.
JARDIN, André. História del liberalismo político. 1998. p.372-373..
38
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.25.
39
JARDIN, André. Historia del liberalismo político.. 1998.p.372.
40
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.25-26.
41
Ver anexo – Cronologia.
42
JARDIN, André. História del liberalismo político. 1998. p.372-382.
37
21
Tocqueville prestou juramento ao novo monarca, exigido pela lei de agosto de
1830, embora continuasse ligado aos legitimistas43. Sem alegria comenta em uma carta ao seu
amigo Kergorlay, que é um momento desagradável para ele ter de prestar juramento ao novo
monarca, mas também sem drama de consciência maior, lamentando simplesmente que esse
ato possa ser interpretado como ditado pelo interesse, quando é testemunho de resignação.44
A viagem à América, segundo Furet, é um mistério de origem: em que data
essa idéia lhe ocorreu pela primeira vez? Quando o projeto tomou corpo? E por que a
América?45
Nem os fatos comuns, nem a documentação existente permitem responder de
modo convincente a essas perguntas. Os fatos são claros, mas iluminam apenas um lado
menor da questão: a missão penitenciária. Quando Tocqueville e seu amigo Beaumont
embarcam no Havre, em abril de 1831, os dois jovens magistrados estão investidos de uma
missão de exame das instituições penitenciárias americanas. Missão solicitada pelos
interessados, não paga, mas oficial.46
A documentação disponível não fornece um testemunho irrecusável a respeito de suas
razões profundas. Em carta escrita a seu amigo Beaumont, Tocqueviile menciona as razões
circunstanciais ligadas à Revolução de 1830 que colocou os dois, descendentes de famílias
legitimistas, numa posição delicada. Porém, mesmo admitindo esta motivação “diplomática”,
por que a América? Muitos outros países poderiam oferecer-se a curiosidade dos amigos e
justificar igualmente sua ausência. Principalmente a Inglaterra, devido ter freqüentado com
paixão os famosos cursos de Guizot na Sorbone, e mostrar seu interesse pela história
comparada entre a França e a Inglaterra.47
O fato é que Tocqueville e Beaumont vão para os Estados Unidos, e esta viagem
sugeriu a Tocqueville algumas reflexões. Ele observa e recolhe informações acerca da
civilização e da política norte-americana. A partir desses dados refletiu sobre o governo em
geral e a democracia em particular. O resultado desse trabalho foi publicado em A
Democracia na América. A primeira parte do livro saiu em 1835; nela o autor estuda a
história e a tradição política dos americanos e suas influências sobre as instituições que
observou. Na segunda parte, publicada cinco anos depois, trata da influência das instituições
43
Legitimistas eram os políticos franceses ligados a monarquia restaurada de Luís XVIII e Carlos X, que não
aceitavam o governo de Luiz Felipe D’ Orleans, que favorecia os interesses da alta burguesia, ver JARDIN,
André. História del liberalismo político. p. 318-328.
44
FURET, François. Prefácio. In: A democracia na América. Martins Fontes. São Paulo. 2001.v.1,p. XV.
45
FURET, François. Prefácio. p.XI.
46
FURET, François. Prefácio. p.XI.
47
FURET, François. Prefácio. p.XII.
22
sobre os costumes. O que torna segundo suas palavras, o primeiro livro mais americano que
democrático e o segundo mais democrático que americano48. Todo o livro, contudo, unifica-se
em torno de uma preocupação fundamental: como evitar o que o igualitarismo ameace as
liberdades, ou em outras palavras como impedir que se instaurasse a tirania da maioria.49
Em nova carta ao seu amigo Kercolay, em janeiro de 1835, ou seja, depois da
publicação do primeiro livro da Democracia, apresenta seus motivos mais íntimos, pela
escolha da América. Primeiro ele observa que, sendo inevitável a marcha para a igualdade, o
problema central da época é saber se ela será compatível com a liberdade; e acrescenta:
Não foi portanto sem ter refletido maduramente a esse respeito que me
abalancei a escrever o livro que ora estou publicando. Não dissimulo em absoluto o
que há de incômodo na minha posição: ele não deve atrair para mim as simpatias
vivas de ninguém. Uns acharão que no fundo eu não gosto da democracia e que sou
severo para com ela; outros pensarão que favoreço imprudentemente o seu
desenvolvimento. O que haveria de mais feliz para mim que não se lesse o livro, e
essa é uma felicidade de que talvez desfrutarei. Sei de tudo isso mais eis a minha
resposta: há dez anos venho pensando uma parte das coisas que logo lhe exporei. Fui
para a América apenas para me esclarecer sobre esse ponto. O sistema penitenciário
era um pretexto: tomei-o como um passaporte que me permitiria penetrar em todos os
lugares dos Estados Unidos. Nesse país onde encontrei mil objetos que estavam fora
da minha expectativa, percebi que muitos deles diziam respeito às perguntas que
fizera a mim mesmo.50
Esta carta demonstra a precocidade com que Tocqueville ingressa na vida intelectual e
política, é como se a viagem fosse a origem da formação do sistema conceitual de
Tocqueville51, que opera segundo Marcelo Jasmin, pela justaposição de dois níveis distintos,
formados cada um deles, por pares de conceitos opostos, o que será visto em detalhes no
próximo tópico sobre a epistemologia de Tocqueville.52
Sua estadia na América durou um pouco mais de um ano, ao voltar à França,
Tocqueville, em conjunto com Beaumont, publica em 1832 “Système Pénitentiaire aux États Unis et son Application en France”, fazendo sua estréia no mundo literário, porém apenas
depois da publicação dos dois volumes de “A Democracia na América”, que as portas da fama
lhe abriram definitivamente.53
Com as novas condições da lei eleitoral, inauguradas pela constituição de 1830, que
reduzia de quarenta para trinta anos o limite mínimo de idade para as Candidaturas,
48
JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto interesse. 2001. p.203
WELFORT, Francisco C.seleção de textos. Os Pensadores. 2ª ed. Abril cultural. São Paulo. 1979.p.180.
50
TOCQUEVILLE, Alexis. Carta. Apud: FURET, François: Prefácio. In: A democracia na América. 2001. v.1,
p. XIII.
51
Este organização do sistema conceitual de tocqueville é feita por Marcelo Jasmin, grande especialista
brasileiro em Toquevillle. JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.34.
52
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.34.
53
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.26.
49
23
Tocqueville lançou-se tão logo pode na busca de uma vaga no Parlamento. Em seguida a um
arranjo familiar que lhe destinou o castelo de Tocqueville em 1836, Alexis foi candidato
derrotado a deputado, aos trinta e dois anos, no arrondissement de Valognes, o maior colégio
eleitoral da época. Dois anos depois conseguira a primeira de uma série de vitórias eleitorais
em 1839, 1842, 1846, 1848, 1849, que o manteriam na Câmara até o golpe de Estado de 2 de
dezembro de 1851.54
Em 1848, a França passa por outra crise que resulta na deposição de Luís Felipe do
trono, e é instaurada a República novamente. Foi formado um governo provisório com
participação de representantes da burguesia liberal e dos socialistas. Porém, houve um
massacre ao movimento socialista, o que marcou o rompimento definitivo entre os projetos
políticos da burguesia e do proletariado socialista. Os líderes burgueses sentiam a necessidade
de consolidar as instituições políticas para impor um clima de ordem pública no país.
Tocqueville é eleito para a Assembléia Constituinte. Promulga-se, então, uma nova
Constituição da República e marcaram-se eleições para presidência. Luís Napoleão
Bonaparte, sobrinho de Napoleão Bonaparte, tornou-se o primeiro presidente da República
francesa. Apoiado pelo exército, pela igreja e pela burguesia temerosa de revoltas socialistas.
Luís Napoleão, pouco antes de terminar seu mandato, deu um golpe de Estado, proclamandose Imperador dos franceses, com o título de Napoleão III. O segundo Império napoleônico
durou até 1873.55
Durante um breve intervalo de cinco meses que se estendeu de 3 de junho a 31 de
outubro de 1849, assumiu a pasta dos Negócios Exteriores do ministério Odilon Barrot, sob o
governo de Luís Bonaparte na Segunda República. Em seguida, retornou às atividades
legislativas, mas em função de uma crise de tuberculose foi obrigado a licenciar-se da
Assembléia. Entre julho daquele ano e março de 1851, durante sua recuperação em seu
castelo e em Sorrento, na Itália, escreveu as duas primeiras partes dos “ Souvenirs” e elaborou
o primeiro plano do que viria a ser “ L’Ancien Regime et la Révolution”. Regressando ao
Parlamento, participou intensamente das negociações para a revisão da Constituição
republicana de modo a permitir a reeleição de Luis Napoleão e evitar solução de continuidade
da ordem vigente. Com o golpe de 2 de dezembro, após denunciar a farsa bonapartista na
imprensa inglesa, afastou-se da cena política e recolheu-se aos estudos.56
54
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.27.
COTRIM,Gilberto. Historia e consciência do mundo. 1997.p.314.
56
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.27.
55
24
Voltando à cena pública em 1856 como historiador publicou o livro “ Do Antigo
Regime a Revolução”, em seu segundo período pr odutivo, considerados por muitos como sua
obra prima. Nele Tocqueville estudou a especificidade do passado francês, alcançava uma
possibilidade de identificação das responsabilidades humanas tanto no curto como em longo
prazo. Ainda que a conjuntura revolucionária estivesse determinada pelos princípios
formadores da história nacional francesa, a análise comparativa concluía que, tanto a
centralização administrativa dependeu de opções políticas para se desenvolver, como, uma
vez desenvolvida enquanto princípio constitutivo da modernidade na França, ainda deixava
espaço para que ações politicamente adequadas produzissem efeitos diversos daqueles
alcançados de fato.57
Seria um equívoco se o grande sucesso literário de Tocqueville e sua consagração
acadêmica como sociólogo e historiador obscurecessem o fato permanente de que a política
era o motor maior de sua vida.58 Entristecia-se a cada vez que por motivos de saúde afastavase do parlamento e lamentava não ter vocação para liderança parlamentar o que dificultava a
realização de grandes coisas para as quais gostava de sentir-se destinado a fazer. Mesmo
assim, jamais abandonou a perspectiva pragmática do conhecimento. A atividade política
permaneceu sempre o ponto de partida de suas indagações e tudo que lia e escrevia o fazia
com os “olhos do cidadão”, na expressão de Seymour Drescher, ou, o que para Marcelo
Jasmin parece mais adequado, com os olhos do estadista.59
Como escritor seu objetivo não era o reconhecimento acadêmico, embora esse lhe
agradasse e ainda servia de estratégia política para ganhar notoriedade. Queria na verdade
influir no comportamento dos homens, governar seus pensamentos e sentimentos. Importavalhe mais a reflexão dirigida para a resolução dos problemas políticos que julgava
fundamentais ao desenvolvimento da modernidade francesa, principalmente a perda do
espírito cívico e, conseqüentemente, da base da liberdade política.60 Aliás, o pragmatismo é
marca registrada em toda sua produção intelectual, com a proposta de uma “nova ciência
política para um mundo inteiramente novo”. Que elabora nas primeiras páginas da
Democracia na América.61Tocqueville faleceu em suas propriedades em 1859, em virtude de
57
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.310.
Porém mesmo ele admitiu em 1851 que seu legado seria mais importante como teórico político do que como
homem de Estado. JARDIN, André. História del liberalismo político. 1998. p.378.
59
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.28-29.
60
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.27.
61
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.27.
58
25
da tuberculose pulmonar que o acometia. Para constar Tocqueville fora casado com uma
plebéia chamada Mary Motley.62
No próximo tópico serão analisados os fundamentos epistemológicos do pensamento
tocquevilliano, e o que ele quer dizer com a proposta de uma “nova ciência política para um
mundo inteiramente novo”.
1.3 FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS DE TOCQUEVILLE.
Apresentado o autor e o pensamento político de seu tempo, resta para concluir
este primeiro capítulo, o estudo da contribuição epistemológica de Tocqueville para a ciência
política e seu modo peculiar de ver a história. Será utilizado como base para tal tarefa o
estudo de Marcelo Jasmin, sobre “A historiografia como ciência da política em Tocqueville”.
Desde o século V a.C., a historia é vista pelos gregos como “mestra da vida”, ou seja,
os antigos acreditavam que ao conhecer a história poderiam repetir os sucessos anteriores sem
incorrerem novamente nos antigos erros. Num contexto de pensamento em que a imitação da
experiência alheia era prescrita como remédio para a ausência de experiência própria, e em
que se considerava o sucesso anterior dos grandes homens como bom critério na avaliação do
possível êxito das ações contemporâneas, a história ganhou o estatuto de saber indispensável à
formação dos homens públicos.63
Esta teoria resistiu por um longo período até o século XVIII, quando foi posta em
cheque a natureza exemplar dos eventos pela descoberta da unidade dos processos históricos
subjacente à noção iluminista do processo. Admitiu-se assim uma espécie de pluralidade dos
mundos humanos com a possibilidade de formas inéditas de vida, o que implicava a
descolagem definitiva do horizonte de expectativas em relação a toda a experiência pregressa.
Termos como “torrente”, “marcha”, “corrente” e “fluxo”, antes usados na referencia à
natureza, foram incorporados ao vocabulário político, de onde migravam para o conhecimento
historiográfico em geral. O processo histórico parecia deslocado dos seus atores. As filosofias
da história do século XIX consolidaram a inversão do voluntarismo iluminista: a história
62
63
JARDIN, André. História del liberalismo político. 1998. p.379.
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.2.
26
deixava de ser vista como o resultado da vontade e da ação humanas para ser representada
enquanto processo autônomo, independente dos homens e cuja força não se podia contrariar.64
Tocqueville tem uma visão peculiar da história, e esta visão se transforma desde seus
primeiros trabalhos (1828-1840) em um momento mais fatalista, para seus últimos trabalhos
onde se dedica à produção de sua historiografia pedagógica (1848-1851). Tocqueville não
compartilhava do otimismo iluminista de que a razão humana bastaria por si só para o
progresso da humanidade, acreditava que a força inevitável não era a razão e sim a
democracia como “despotismo democrático” cuja opressão política só poderia ser controlada
com a intervenção cidadã no processo.65
Como foi dito anteriormente, Marcelo Jasmin separa o sistema conceitual de
Tocqueville em dois níveis.
O primeiro é a oposição entre aristocracia e democracia, para Tocqueville o fim do
antigo regime e o domínio inevitável da igualdade, na figura da democracia, são fatalidades,
este entendimento determinista, da força natural da democracia leva Tocqueville ao segundo
nível do seu sistema, uma vez consumada a sociedade democrática, a questão agora é a
escolha entre as duas opções que ela oferece: a servidão ou liberdade. A primeira é a opção
natural a que levam os vícios da democracia, como o materialismo, o individualismo e a
apatia política. A segunda opção, a da liberdade, que requer a intervenção do indivíduo no
processo natural da história, ou seja, para garantir a liberdade na sociedade democrática é
preciso cultivar uma prática cidadã onde os indivíduos transformem auto-interesse em
interesse bem compreendido, só assim é possível manter a liberdade política e frear os efeitos
funestos do desenvolvimento da igualdade e a conseqüente “servidão moderna”.
66
No segundo livro da Democracia na América, o autor faz uma comparação
entre o modo como o historiador aristocrático e o democrático vêm a história. Tocqueville
compara o historiador com um espectador de uma peça, na qual, o palco era formado por
alguns atores principais que se encarregam de dar desfecho à história, ou seja, nos séculos
aristocráticos os grandes acontecimentos eram derivados da ação de grandes homens (ou pelo
menos assim entendiam os historiadores destes séculos) sem perceberem as grandes causas
que também participavam do desfecho.
64
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.8-11
Para saber mais sobre as formas da história, ver o primeiro capitulo do livro “JASMIN, Marcelo Gantu s. A
historiografia como ciência da política. 1997.p.1-24”
66
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.34-50..
65
27
No caso democrático, a destruição do papel exclusivo da direção política
desempenhado pela nobreza viria a obscurecer também o seu lugar privilegiado do exercício
do poder de ação.67 Agora o mesmo palco é tomado por uma multidão de atores coadjuvantes,
o historiador não consegue ou desiste de tentar, identificar os atos de cada ator, como causa
do desfecho e atribui a causas gerais os resultados. Em outras palavras, o historiador, nos
tempos democráticos, não crê ou subestima, a ação do indivíduo no desfecho da história. O
que Tocqueville considera desastroso para a democracia, pois favorece o desenvolvimento de
seus vícios.68Isto fica latente quando, seguindo a identificação feita por Jasmin, Tocqueville
explica o que acredita ser o historiador democrático:
Um escritor democrático dirá naturalmente, de maneira abstrata, as
capacidades para significar os homens capazes, e sem entrar no detalhe das coisas a
que essa capacidade se aplica. Falará das atualidades para pintar com uma só
pincelada as coisas que se passam neste momento diante dos seus olhos e
compreenderá pela palavra eventualidades tudo que pode ocorrer no universo a partir
do momento em que fala. Os escritores democráticos fazem sem cessar palavras
abstratas dessa espécie ou tomam um sentido cada vez mais abstrato as palavras
abstratas da língua. Mais ainda, para tomar o discurso mais rápido, personificam o
objeto dessas palavras abstratas e o fazem agir como um indivíduo real. Dirão que a
força das coisas exige que as capacidades governem. 69
Tocqueville conclui desta análise que em tempos democráticos a causas gerais
realmente são mais importantes para explicar a história, mas o problema é que a observação
apenas das causas gerais pode levar as pessoas a desacreditarem em seu poder de ação para
mudarem o próprio destino, o que no segundo nível de seu sistema conceitual os levaria à
servidão.70
Pode-se identificar como proposta epistemológica de Tocqueville que a
ciência política presta-se à educação para a participação cidadã, tornando o indivíduo
responsável para com seu futuro. E o papel do historiador democrático é conseguir observar,
67
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.92.
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.91-94.
69
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.2, p.80-81.
68
70
No momento em que o autor afirma ser inevitável o advento democrático, não estaria ele próprio caindo em
contradição com sua proposta de sociologia pedagógica? Não seriam os conceitos de igualdade e de democracia
idéias gerais e abstratas do mesmo tipo daquelas às quais os indivíduos democráticos recorrem para falar da
realidade no mundo da similitude? Tocqueville tem consciência da questão[...] e em um tom ambíguo que oscila
entre autocrítica e a resignação, diz: “ não vejo nada melhor que explicar meu pensamento por meu próprio
exemplo: com freqüência, fiz uso da palavra igualdade num sentido absoluto; ademais, personifiquei a igualdade
em vários lugares , e foi assim que me ocorreu dizer que a igualdade fazia certas coisas ou se abstinha de certas
outras” JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.99-100.
28
nas causas gerais, a intervenção do indivíduo (no caso democrático da associação de
indivíduos) na alteração do processo, em seu benefício.71
Este caráter pedagógico da ciência política concorreria para a educação do
cidadão na era democrática, levando-o a ocupar o seu lugar na organização social,
conscientizando-o da importância da participação na administração pública para a
manutenção de sua liberdade. E em face do já mencionado caráter pragmático de suas
observações, Tocqueville as escreve para que seus leitores aprendam como garantir a
liberdade nos tempos de igualdade.72
Daí a necessidade de uma nova ciência política para um mundo inteiramente
novo, um saber que pudesse tanto esclarecer as condições objetivas em que a ação poderia se
dar, como persuadir os homens de que, sem ação politicamente concertada, as disposições da
igualdade conduziriam a democracia a uma forma inédita de opressão política – o
“despotismo democrático”.
73
Destinado a eternizar a menoridade política dos cidadãos democráticos pela
suspensão da exigência da participação nos negócios comuns e a conseqüente destruição do
espírito cívico que dela decorre, o moderno despotismo tem a vocação de consolidar o
isolamento dos indivíduos e seu confinamento nas esferas privadas do bem-estar. Sem
violentar os corpos, a nova opressão que devem temer os homens modernos oculta sua face
perversa sob as formas exteriores da liberdade, fundadas na delegação de responsabilidade
política ao Estado soberano e corrompe a alma dos indivíduos ao interditar a sua efetiva
realização política.74
Quando nada mais importa ao homem que a segurança de seus bens e sua vida
privada, ele larga de bom grado o valor intrínseco da liberdade e aceita qualquer ordem desde
que sua tranqüilidade esteja assegurada. Impedidos de participaçar nos negócios públicos e
acostumados à tutela estatal para a resolução de quaisquer problemas exteriores ao seu restrito
círculo familiar, os indivíduos perdem a faculdade da autodeterminação política e tornam-se
incapazes de agir com liberdade.75
71
Tocqueville faz duas criticas à historiografia democrática, a primeira epistemológica, através da qual o
reconhecimento da adequação das categorias abstratas e das causas gerais à experiência democrática não arrefece
a exigência metodológica de consideração do papel dos indivíduos na história; a segunda, ético-política, e de
maior relevância para Tocqueville, que trata das conseqüências políticas das concepções históricas modernas
sobre o espírito público, especialmente a paralisia da atividade pública que decorre de perspectivas fatalistas.
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.104.
72
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.306.
73
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.306.
74
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.306.
75
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.307.
29
Se Alexis de Tocqueville ofereceu à tradição posterior o emblema da ruptura
com a tradição e a conseqüente destruição intelectual das bases analógicas sobre as quais
sustentava-se a antiga “história como mestra da vida”, a elaboração de uma nova ciência
política para um mundo inteiramente novo encontrou, no interior da moderna história
processual, a possibilidade de manutenção do caráter pragmático e pedagógico da história.
Opondo-se às perspectivas fatalistas e a todas aquelas que ocultavam o sujeito do
conhecimento sob a narrativa “objetiva” dos eventos, exigiu que a ciência das causas se
adequasse aos valores indispensáveis da liberdade. A historiografia tocquevilliana demonstrou
que o passado não deixou de iluminar o futuro e a história continuou ensinando aos homens
políticos o valor de sua liberdade.76
76
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.311-312.
2
A DEMOCRACIA AMERICANA DE TOCQUEVILLE: SINGULARIDADE
HISTÓRICA, MODELO UNIVERSAL.
2.1
Traços gerais que marcam a “Democracia na América ”.
A América do início do século XIX era vista na Europa como uma ex-colônia
britânica em formação, sem respaldo político, despertando interesse apenas como um convite
à aventura. Porém, ao desembarcar nos Estados Unidos, Tocqueville percebe que está diante
de algo novo77, uma sociedade igualitária de amplas proporções.78
Já passara neste momento, mais de cinqüenta anos da declaração de independência
americana, que ocorreu em 4 de julho de 1776. O que mais impressionou o autor foi ter
encontrado o ambiente perfeito pra analisar uma sociedade marcada por um “estado social” de
extrema igualdade, o que para ele era a concretização da própria idéia da “inevitabilidade da
democracia”. Preocupou -se menos em atribuir causas a essa igualdade, como as
características geográficas, históricas e sobre tudo as peculiaridades de seu povo, e mais em
analisar suas conseqüências para o mundo político.79
O ano era 1836, o presidente Andrew Jackson estava no exercício de seu primeiro
mandato, marcado por uma forte política de democratização. 80 Os colonos que chegaram ao
77
Bem evidenciadas por Raymond Aron: “ Tocqueville descobriu a democracia na América. Talvez resida nisso
a origem da extraordinária perspicácia de suas análises, mas também a causa de suas limitações. A interpretação
de sua obra, de resto, põe um certo número de dificuldades metodológicas”. GA LLIMARD. Lés étapes de la
pensée sociologique. Apud: CHÂTELET, François, A historia das idéias políticas, 1985.p.109.
78
JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. Democracia hoje: novos
desafios para a teoria democrática contemporânea.UnB.2001 p.201.
79
FURET, François. Prefácio. In: A Democracia na América, 2001, p.XVII.
80
Andrew Jackson (1767-1845). O governo do presidente foi marcado por uma série de medidas que visavam
criar condições concretas para fazer emergir uma sociedade realmente igualitária: afastaram-se as restrições de
sufrágio, aboliram-se as exigências de propriedade para o exercício de mandatos e limitou-se sua duração.
Afirma-se que essas medidas eram fundamentais para impedir que se formasse, num Estado que se pretendia
democrático, uma aristocracia ou uma elite burocrática. Esse contexto histórico sugeriu a Tocqueville algumas
reflexões, como a importância da participação cidadã para alcançar a liberdade política, em sociedades
democráticas. WELFORT, Francisco C. Os pensadores. 1979. p.180-181.
31
Novo Mundo eram movidos pelas mesmas paixões, a igualdade e a liberdade, que agitavam a
Europa, mas na América era um sentimento “calmo” e “tranq üilo”. 81
O “estado social”
82
é, ordinariamente, o produto de um fato, às vezes das leis, mas
quase sempre destas duas causas reunidas. Porém, uma vez que existe, podemos considerar
ele mesmo como uma causa primeira da maioria das leis, costumes e idéias que regem a
conduta das nações, o que ele não produz ele modifica. Para conhecer a legislação e os
costumes de um povo, é necessário, pois, começar pelo estudo de seu estado social. 83.
O autor definiu o “estado social” dos americanos como sendo “essencialme nte
democrático”, como resultado da singularidade histórica da colonização da América do Norte
e da incomensurabilidade das condições que os puritanos ingleses encontraram no Novo
Mundo, entre elas a extensão de seu território, sua topografia, a ausência de vizinhos bélicos,
em suma, tudo que pudesse ser considerado um produto do acaso. Segundo Tocqueville era
como se o próprio Deus tivesse deixado virgem, aos puritanos ingleses, a terra americana para
o desenvolvimento da sociedade igualitária, através da prática intensa dos ideais da
modernidade.84 Marcelo Jasmin destaca que o argumento central desenvolvido por
Tocqueville na abertura de sua obra consiste na idéia de um “ponto de partida” fundador do
“caráter da civilização anglo -americana”, que reunia pela primeira vez, de modo íntimo e
harmonioso, o espírito de liberdade e o espírito de religião, ambos originados da pátria mãe,
de onde emigraram em face dos intensos conflitos de origem predominantemente religiosa.85
Para que se entenda melhor a influência do estado social democrático nas leis
americanas, e vice – versa, Tocqueville destaca a lei de sucessões. E como esta influenciou a
propagação da igualdade entre os americanos durante o inicio do povoamento na América do
Norte. A partir da independência americana, a lei de sucessões mudou, antes era adotada a lei
da pátria mãe, que basicamente atribuía a transmissão de todos os bens do patriarca ao seu
filho progenitor, criando um vínculo quase eterno da família com a terra. A nova lei de
sucessões, apesar de ser matéria de direito civil, provocou uma grande transformação social e
política nos Estados Unidos, pois estabelecera que as propriedades do pai seriam divididas em
81
Esta idéia é ilustrada melhor por esta frase de Tocqueville “Na América tem -se idéias e paixões democráticas;
na França, temos ainda paixões e idéias revolucionárias”. FURET, François. Prefácio. In: A Democracia na
América, 2001. p.XX.
82
Tocqueville entende por idéia de “estado social”; o conjunto de características que marcam um determinado
povo, como seus hábitos, costumes, tradições, história, religião, leis, clima. TOCQUEVILLE, Aléxis. A
democracia na América.2000.v.1 p. 56.
83
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América.2000.v.1 p. 55.
84
85
JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. 2001. p.201-202.
JASMIN , Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. 2001.p.202.
32
partes iguais entre os seus filhos. Diferença esta que resultaria em fracionar cada vez mais as
grandes propriedades86. E Tocqueville observa que, após sessenta anos de lei, quase não há
grandes propriedades, tornando ainda mais iguais os anglo-americanios.87
Como foi visto, para Tocqueville o “estado social” é o produto de um fato, de uma lei
ou de ambos. Neste exemplo podemos perceber que o fato é a própria vastidão de terras
disponíveis no novo mundo, que favorece o aparecimento de várias pequenas propriedades. E
a lei de sucessões, que dificulta a acumulação de propriedades durante as gerações, faz com
que rapidamente se perca o amor familiar à propriedade imobiliária, o herdeiro passa a ver
nela um bem de fácil monetarização, o que permite com a venda do imóvel, o desfrute dos
prazeres do materialismo democrático.88 Uma vez que para Tocqueville a idéias de igualdade
e democracia estão intimamente ligadas, explica-se através deste exemplo sua classificação
quanto ao estado social dos americanos ser “essencialmente democrático”, sendo um produto
do fato e do direito.89
A América modelar, foi concebida por Tocqueville como uma novidade histórica
radical, o que o historiador alemão Reinhart Koselleck denominaria, um século e meio depois,
86
Ora, a partir do momento em que se tira dos proprietários fundiários um grande interesse de sentimento,
lembranças, orgulho, ambição em conservar a terra, pode-se estar certo de que sedo ou tarde eles irão vendê-la,
porque têm um grande interesse pecuniário em fazê-lo, já que os capitais mobiliários produzem mais
rendimentos que os outros e se prestam mais facilmente a satisfazer as paixões do momento. TOCQUEVILLE,
Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p.58-59.
87
A lei de sucessões inglesa foi abolida em quase todos os Estados americanos. A primeira geração passou; as
terras começaram a dividir-se. O movimento tornou-se cada vez mais rápido à medida que o tempo caminhava.
Hoje quando transcorrem apenas sessenta anos o aspecto da sociedade já é irreconhecível; quase todas as
famílias dos grandes proprietários fundiários naufragaram no seio da massa comum. No estado de Nova York,
onde havia grande número deles, dois mal conseguem sobreviver sobre esse abismo pronto para tragá-los. Os
filhos desses opulentos cidadãos são hoje comerciantes, advogados e médicos. E o autor ainda acrescenta que
não é que nos Estados Unidos não existam ricos, pelo contrário não conhece nação que o amor pelo dinheiro
ocupe maior lugar no coração dos cidadãos, mas lá a fortuna circula com incrível rapidez, e a experiência ensina
que é raro ver duas gerações recolherem seus favores. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América.
2000. v.1, p. 60.
88
A lei de partilha igual segundo Tocqueville, procede por dois caminhos: agindo sobre a coisa, ela age sobre o
homem; agindo sobre o homem ela age sobre à coisa. Das duas maneiras, ela consegue atacar profundamente a
propriedade fundiária e fazer desaparecer com rapidez tanto as famílias como as fortunas. Sendo a terra a
propriedade mais sólida, encontramos de tempo em tempo homens ricos que se dispõe a fazer grandes sacrifícios
para adquiri-la e que perdem de bom grado uma porção considerável de sua renda para garantir o resto. Mas
trata-se de acidentes. O amor à propriedade imobiliária só se encontra habitualmente hoje em meio aos pobres. O
pequeno proprietário fundiário, que tem menos luzes, menos imaginação e menos paixão que o grande, em geral
só é movido pelo desejo de aumentar seu domínio, e acontece com freqüência que as sucessões, os casamentos
ou os acasos do comércio lhe forneçam pouco a pouco os meios para tanto. Ao lado da tendência que leva os
homens a dividir a terra, existe pois uma outra que os leva a aglomerá-la. Essa tendência que basta para impedir
que as propriedades se dividam infinitamente, não é forte o bastante para criar grandes fortunas territoriais, nem
sobre tudo para mantê-las nas mesmas famílias. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1,
p. 59 e 517.
89
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América.2000. v.1, p.55-63.
33
“o deslocamento do horizonte de expectativas em relação ao espaço de experiências, o abismo
fundador da modernidade” 90. Concebida como um todo abstrato, a América oferecia-se como
a própria imagem da democracia moderna - uma sociedade de massas fundada sobre a
igualdade das condições sociais - e como um modelo teórico que permitia vislumbrar suas
últimas e mais radicais conseqüências. É nesse sentido que Tocqueville afirmou que a
América representava o futuro da Europa, invertendo como François Furet argutamente
discerniu, a hipótese tradicional do processo civilizatório.91
Desse “estado social democrátic o”, derivam suas leis e sua organização administrativa.
Assim o argumento desenvolvido em sua obra inicia-se com um olhar específico às
características ímpares que deram origem ao estado social dos americanos, e alcança a
projeção lógica da universalidade da igualdade de condições como base fundadora de todo o
raciocínio sobre a moderna democracia.92
Com o entendimento de que a idéia de democracia, para Tocqueville, está diretamente
ligada à idéia de igualdade. É preciso atentar para o fato de que a força invencível da
democracia, e portanto da igualdade a que o autor se refere, não é exatamente a extrema
igualdade material ou religiosa “americana”. Esta igualdade invencível é a igualdade
“democrática”, como uma generalização de idéias, opiniões e vontades, q ue é percebido na
América pela primeira vez, e denominado por Tocqueville como “tirania da maioria”, no
mundo político representa a força esmagadora das massas sobre a opinião das minorias,
sufocando a liberdade política e conseqüentemente destruindo os pilares de sustentação da
democracia. Que como foi visto no capitulo anterior, para Marcelo Jasmim, constitui o dilema
tocquevilliano, que ganha proporções universais para as sociedades democráticas ocidentais
de um modo geral.93
Tocqueville tinha plena consciência, quando se lançou a escrever para a França do
século XIX, da impossibilidade de transpor as instituições americanas para a Europa. Por esta
razão, não se poderia empreender uma cópia servil da América empírica, mas de considerar os
princípios gerais da América democrática.94
90
KOSELLECK, Reinhart. Futures Past. Apud. JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade
e o auto-interesse. 2001. p.204
91
. JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. 2001. p.204.
92
JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. 2001. p.203.
93
JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. 2001. p. 202
94
JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. 2001. p. 203.
34
Como se sabe, a colonização na América começou pela costa leste e marchou rumo ao
oeste, e é justamente nos novos Estados do oeste em que o quadro da igualdade95 é ainda mais
extremo.96
Conforme chegavam, os colonos estabeleciam suas propriedades no deserto, portanto
sem nenhum vínculo familiar anterior com a terra. Além desta igualdade de fortunas,
Tocqueville afirma que encontravam a sua disposição meios iguais em todas as áreas, sendo
estabelecido um nível mediano de conhecimentos humanos, não havendo nem ignorantes,
tampouco pessoas com mentes brilhantes. O autor atribui esta característica à precocidade
com que largam os estudos, pois na América havia um certo pragmatismo em seus atos97, o
que estimula o americano a aprender um ofício e viver do seu trabalho, não dando
profundidade a seus conhecimentos, dá preferência aos lucros de seu ofício e os prazeres do
materialismo.98
Aqui está o grande perigo do estado social democrático americano, quando
Tocqueville nota que, apesar de nas democracias o povo ter um gosto instintivo pela liberdade
o que amam com ardor é a igualdade99, o que será visto em detalhes a seguir em a “tirania da
maioria” e o perigo que ela apresenta para o desenvolvimento das democracias.
Tocqueville afirma que é impossível compreender que a igualdade não acabe entrando
no mundo político como em outras partes100. E conclui que só conhece duas maneiras de fazer
reinar a igualdade no mundo político: dar direitos a cada cidadão ou não dar a ninguém.101
Porém, no momento histórico em que o autor analisa os Estados Unidos, admite que, a
partir desta igualdade de fortunas e inteligências medianas102, o povo americano conseguiu
95
Aqui Tocqueville se refere tanto à igualdade material (fortunas) como a igualdade democrática
(oportunidades), [...] Lá os homens se mostram mais iguais por sua fortuna e por sua inteligência, ou, em outras
palavras, mais igualmente fortes que são em qualquer outro país do mundo e do que foram em qualquer outro
século de que a história conserve lembrança. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América .2000. v.1, p.
62-63.
96
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América .2000. v.1p. 61.
97
Os americanos dirigem sua atenção apenas para uma matéria especial e lucrativa; estudam uma ciência como
se abraça um ofício e só se interessam pelas aplicações cuja utilidade presente é reconhecida. TOCQUEVILLE,
Aléxis. A democracia na América .2000. v.1p. 61.
98
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América .2000. v.1p. 59.
99
De fato, há uma paixão vigorosa e legítima pela igualdade que leva todos os homens a querem ser fortes e
estimados. Essa paixão tende a elevar os pequenos ao nível dos grandes; mas também existe, no coração humano
um gosto depravado pela igualdade, que leva os fracos a quererem atrair os fortes a seu nível e que reduz os
homens a preferirem a igualdade na servidão à desigualdade na liberdade. Não é que os povos cujo estado social
seja democrático desprezem naturalmente a liberdade; ao contrário, eles têm um gosto instintivo por ela. mas a
liberdade não é o objeto principal e contínuo de seu desejo: o que eles amam com um amor eterno é a igualdade.
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p. 63
100
Tocqueville explica que, não poderia conceber os homens eternamente desiguais entre si num só ponto e
iguais em outros; portanto eles chegarão, num tempo dado, a selo em todos. TOCQUEVILLE, Aléxis. A
democracia na América. 2000. v.1, p.63.
101
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p. 63.
35
manter a sua soberania, através do poder comunal, ou seja, dando direitos a cada cidadão, e
atribui tal virtude à capacidade de combinarem suas forças em prol da liberdade política, o
que fez com que se tornasse ao mesmo tempo o povo mais forte e esclarecido da história.103
2.2
Democracia: liberdade política e tirania da maioria.
Tocqueville não fala claramente sobre a sua concepção de liberdade104,contudo
identificá-la é de fundamental importância para a compreensão da Democracia na América,
afinal de contas, é a paixão pela liberdade que o impele à reflexão teórica.
Marcelo Jasmin trabalha de maneira separada a liberdade aristocrática e a liberdade
democrática. A primeira105 é associada a um forte sentimento de valor individual, a um gosto
sublime pela independência compreendida como privilégios de alguns, acessível apenas a
indivíduos especiais, restritas a uma classe, é o tipo de liberdade que subsiste facilmente em
um contexto em que a “liberdade geral não existe”.
106
A liberdade democrática107 segundo Tocqueville é diferente, esta acontece quando
cada homem presumindo que recebeu da natureza as luzes necessárias para conduzir-se, traz,
desde o seu nascimento, um direito igual e imprescritível de viver de modo independente de
102
No entanto não só as fortunas são iguais: a igualdade se estende até certo ponto às próprias inteligências.Não
creio que haja país no mundo em que, guardada a proporção, encontremos tão poucos ignorantes e menos sábios
do que na América. A instrução primária esta ao alcance de todos; a instrução superior quase não esta ao alcance
de ninguém. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América .2000. v.1 p.61.
103
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p. 63.
104
KLAUS, Frey. Descentralização e poder local em Aléxis de Tocqueville. 2000, p.85.
105
Em uma das raras passagens em que Tocqueville pronuncia-se de maneira explicita sobre sua representação
do conceito de liberdade, evidência-se a liberdade como um valor sobremaneira “aristocrático”, como no
seguinte trecho: “O que em todos os tempos, tão fortemente agarrou os corações de certos homens à liberdade é
sua própria atração, seu encontro, independentemente de suas dádivas; é o prazer de poder falar, agir, respirar
sem constrangimento sob o único Deus e de suas leis. Quem procura na liberdade outra coisa que ela própria foi
feito para a servidão[...]. Não me peçam para analisar um gosto sublime, que é preciso sentir. Entra por si mesmo
nos grandes corações que Deus preparou para recebê-lo, enchendo-os e inflamando-os. Temos que renunciar
explica-lo às almas medíocres que nunca sentiram” TOCQUEVILLE, Aléxis. Do Antigo Regime à Revolução.
Apud: KLAUS, Frey. Descentralização e poder local em Aléxis de Tocqueville. 2000, p.86.
106
JASMIN, Marcelo. As Américas de tocqueville a comunidade e o auto-interesse. 2001. p.205.
107
Para Tocqueville, a liberdade democrática moderna depende do fato político da existência pública dos
indivíduos livres como cidadãos, da mobilização da vontade de cada um na formação da vontade soberana, o que
introduz um elemento de vontade cívica como condição para a legitimidade do poder político igualitário livre.
JASMIN, Marcelo. As Américas de tocqueville a comunidade e o auto-interesse. 2001. p.206.
36
seus semelhantes em tudo o que só diz respeito a si próprio, a decidir sobre o seu próprio
destino.108
É a partir deste conceito de liberdade como valor intrínseco, que Tocqueville trabalha
a idéia que diante das ameaças despóticas do igualitarismo, e os males democráticos do
materialismo e do individualismo, a busca incansável pela liberdade política é o único
caminho a ser seguido, haja vista que a desistência equivale à servidão109. Essa é uma de suas
contribuições mais originais para o liberalismo, cujos fundadores focam muito mais a
liberdade enquanto um meio e um efeito, e muito menos enquanto um valor que deve ser
buscado em si mesmo.110
Aqui vale ressaltar uma diferenciação feita por Klaus Frey entre a concepção
rousseauniana e a tocquevilliana acerca da liberdade. No primeiro, a liberdade é estreitamente
vinculada à igualdade social e à efetivação da vontade geral, para o segundo independe de
condição social111 e corresponde basicamente a uma modalidade do agir político, esta própria
dos espíritos mais elevados.112
Cabe relembrar a relação direta entre liberdade política e supremacia da maioria, o
chamado “dilema tocquevilliano”, que consiste na idéia de que a liberdade política na
sociedade de massas depende de uma prática e de um conjunto de valores cujas bases tendem
a serem derrubadas pelo desenvolvimento continuado das disposições internas da própria
democracia.113 Que seria o “ind ividualismo” inerente ao estado social democrático que
consiste no confinamento dos indivíduos na privacidade, de suas vidas particulares, gerando
uma crescente indiferença cívica, que constitui o caldo de uma cultura da emergência do novo
tipo de despotismo, uma dominação política inédita, que lentamente degradaria os homens
sem atormentá-los, uma espécie de pátrio poder que obriga os indivíduos a eterna menoridade
política.114 E o centro do “dilema tocquevilliano” está exatamente no ponto em que a
108
JASMIN, Marcelo. As Américas de tocqueville a comunidade e o auto-interesse. 2001. p.205.
Como expusera na Democracia, e já mencionado anteriormente, o contexto social igualitário permite duas
alternativas a liberdade ou a servidão. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p. 63.
110
KLAUS, Frey. Descentralização e poder local em Aléxis de Tocqueville. 2000, p.87.
111
O amor pela a liberdade política representa o valor mais sublime na concepção política tocquevilliana, como
ele salienta em O antigo regime a revolução:” Muitas vezes cheguei a me perguntar onde estaria a fonte desta
paixão pela liberdade política que, em todos os tempos, levou os homens a realizar as maiores coisas que a
humanidade cumpriu e em que sentimentos esta enraizando e alimentando”. TOCQUEVILLE. Alexis. Do
Antigo Regime à Revolução.Apud: KLAUS, Frey. Descentralização e poder local em Aléxis de Tocqueville.
2000, p.86.
112
Este detalhe é salutar para o estudo mais a frente da idéia desenvolvida por Fernando Magalhães sobre a
igualdade de condições isolada de um conteúdo material, Ver ponto 3.1.1 - Desigualdade material e democracia
individualista.
113
JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville a comunidade e o auto - interesse. 2001. p. 204.
114
JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville a comunidade e o auto - interesse. 2001. p.207.
109
37
participação cívica é uma espécie em extinção no contexto da privatização das relações
sociais na moderna sociedade de massas imaginada por Tocqueville.115
Este despotismo democrático surge para Tocqueville originalmente como a “tirania da
maioria” 116.Todo americano acreditava ser o único senhor de seu futuro, e para o autor isso
não estava muito longe de ser verdade, pois partindo do pressuposto que todos encontravamse mais ou menos na mesma condição, é de se deduzir que todos tenham mais ou menos os
mesmos anseios. Dito isso, pode-se imaginar as conseqüências desta supremacia da vontade
da maioria sobre o governo dos Estados Unidos.
O autor não é contra que da vontade da maioria originem-se todos os poderes. O que
Tocqueville não consegue conceber é que todo o governo de um povo fique a mercê das
paixões populares e vontades momentâneas da maioria117, sem a devida cadência e
responsabilidade que um governo deve possuir, qualidade essa que o autor atribui ao governo
da aristocracia118. Tocqueville entende que da mesma forma que não assimila a tirania de um
só, não pode submeter-se à tirania de muitos, pois, da mesma forma estar-se-ia lhe privando
de sua liberdade119.
O autor acredita que as Constituições Estaduais americanas favoreçam o
desenvolvimento da “tirania da maioria” , sobretudo no poder legislativo. O corpo legislativo é
eleito pelo povo, de ano em ano, mudando seus representantes com extrema velocidade, deste
fato decorre a continuidade dos projetos do governo e a vulnerabilidade das paixões
populares.120
Tocqueville ilustra essa idéia com o exemplo de uma campanha promovida pela
população para construção de novos presídios, pois os já existentes estavam super lotados.
Pois bem, a campanha foi um sucesso, novos presídios foram construídos, com o mais alto
padrão de segurança e salubridade, porém os antigos presídios ainda lotados com seus
condenados estavam caindo aos pedaços, sem qualquer higiene, tomados pela corrupção, que
115
JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville a comunidade e o auto - interesse. 2001. p.208.
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1,p.294-305.
117
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001.v.1, p.292.
118
Esta cadencia do governo aristocrático é evidenciada neste trecho: “Como a maioria é a única força que é
importante agradar, contribui-se com ardor para as obras que ela empreende; mas, a partir do momento que sua
atenção se volta para outra coisa, todos os esforços cessam. Já nos estados livres da Europa, onde o poder
administrativo tem uma existência independente e uma posição garantida (aristocracia), as vontades do
legislador continuam a se executar, mesmo se ele estiver cuidando de outros projetos. TOCQUEVILLE, Aléxis.
A democracia na América. 2001.v.1, p.293.
119
O império moral da maioria se baseia, em parte, na idéia de que há mais luzes e sabedoria em muitos homens
reunidos do que num só, mais no número de legisladores do que na escolha. É a teoria da igualdade aplicada às
inteligências. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.290.
120
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001.v.1, p.296.
116
38
lembravam mais as masmorras da Idade Média. Este é um dos exemplos de um efeito funesto
da supremacia da maioria nos rumos do governo. É pela ponte do poder legislativo que as
vontades populares ganham todo o governo121. E contaminam o executivo e o judiciário, que
cada vez mais ficam subordinados a agradar seu único amo, a maioria.122
O autor acredita que esta tendência da vontade geral conduz o país para centralização
administrativa, e com ela à diminuição do interesse social e das liberdades políticas. Esta
relação entre a “tirania da maioria” e a “centralização administrativa”, começa a ser
desenvolvida no livro A Democracia na América, mas é entendido mais claramente com a
obra Do Antigo Regime à Revolução. Durante este processo, a idéia de Tocqueville a respeito
da “tirania da maioria” se transforma, é tratada de maneira diferente entre obra americ ana de
1835 e 1840.123
Originalmente é entendida como a força da opinião da maioria sobre a opinião da
minoria, na escolha de qualquer pleito, não importando a melhor idéia e sim a idéia da
maioria. Dando-se apenas relevância para a opinião majoritária, as idéias e anseios diferentes
são irrelevantes para a deliberação, e o autor percebe que diante desta “tirania” a tendência é a
generalização de opiniões. Ante esta generalização e homogeneização de opiniões a “tirania
da maioria” se transforma. Não é mais a quela que subjuga a opinião contrária exercida de
modo seletivo sobre alguns inimigos particulares (minorias). O novo “despotismo” seria mais
amplo e mais brando e degradaria os homens sem atormentá-los, ou seja, não ataca a opinião
contrária, mas impede que ela surja.124
As idéias gerais são tidas como verdadeiras, as pessoas não se importam mais em
deliberar, pois acreditam que tudo anda conforme todos desejam. O poder não é mais tirânico
é tutelar; a nova opressão é regulada e pacífica e, em sua forma mais avançada combina a
centralização administrativa com a soberania do povo, pela incorporação das “formas
exteriores da liberdade” que dão aos súditos a sensação de comandarem a si mesmos. Apesar
de tutelados elegem seus tutores.125
121
Esta vulnerabilidade do governo as paixões populares à que Tocqueville se refere, acontece na esfera
estadual, onde a separação dos poderes é meio obscura. Diferentemente do âmbito da União, onde os três
poderes são claramente divididos, o que será visto com cuidado adiante quando tratar sobre a administração dos
Estados Unidos.
122
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001 v.1, p.293.
123
JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política.p.64-74.
124
Ver Marcelo Jasmin, sobre a transformação da “tirania da maioria” em “despotismo democrático”. JASMIN,
Marcelo. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política. 1997. p.70.
125
JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política. 1997.p.72.
39
Sempre acreditei que essa espécie de servidão regrada, doce e calma que acabo de
pintar poderia combinar-se melhor do que se imagina como alguma das formas
exteriores da liberdade e que não lhe seria impossível estabelecer-se `a sombra mesma
da soberania do povo.
Nossos contemporâneos são incessantemente trabalhados por duas paixões inimigas:
sem a necessidade de ser conduzidos e a vontade de permanecer livres. Não podendo
destruir nem um nem outro destes instintos contrários, esforçando-se para satisfazer
ambos ao mesmo tempo. Imaginam um poder único, tutelar, onipotente, mas eleito
pelos cidadãos. Combinam a centralização com a soberania do povo, o que lhes
proporciona certa trégua. Eles se consolam por estarem tutelados pensando terem eles
próprios escolhido seus tutores. Cada indivíduo suporta que o prendam, porque vê que
não é um homem nem uma classe, mas o próprio povo que segura a porta da cadeia.
Nesse sistema, os cidadãos saem um momento da dependência para indicar seu
senhor e voltam a entrar nela.126
O que importa agora é o tempo livre para poder desfrutar de sua liberdade particular, o
que remete o cidadão democrático ao “individualismo” e esquece da existência da coisa
pública, logo de sua liberdade política.
Então à medida que as condições se igualam, nas sociedades democráticas, se igualam
ou generalizam também sua opiniões, fazendo com que tenham a impressão de que os rumos
que o governo segue são também os seus, não se importando mais com a vida pública, e se
entregando apenas à vida privada, o que faz com que todo cidadão sinta o poder de ser o único
senhor de seu destino, e através de seu próprio esforço sem depender da ajuda de ninguém,
tem seu trabalho, adquire sua propriedade e constitui sua família, não precisando de mais nada
para completar sua felicidade, se esquece ou não percebe que este estado de oportunidades
que goza é fruto da própria liberdade política, que agora larga de mão. Cria um mundo
particular cercado por uma redoma de vidro perdendo o interesse pelas virtudes públicas e
esquecendo que vive em sociedade. Este é o drama do “individualismo”
127
que ganha mais
força com o desenvolvimento do capitalismo e o aumento do materialismo e do
economicismo, que transforma o povo em consumidores e os faz esquecerem que na verdade
são cidadãos.
126
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América livro, 2001. v.2, p.390-391.
O individualismo é uma expressão recente que uma nova idéia fez surgir. Nossos pais só conhecem o
egoísmo.O egoísmo é um amor apaixonado e exagerado que leva o homem a referir tudo a si mesmo e a se
preferir a tudo mais. O individualismo é um sentimento refletido e tranqüilo, que dispõe cada cidadão a se isolar
da massa de seus semelhantes e a se retirar isoladamente com sua família e seus amigos; de tal modo que ,
depois de ter criado assim uma pequena sociedade para seu uso, abandona de bom grado a grande sociedade a si
mesma.O egoísmo nasce de um sentimento cego; o individualismo procede muito mais de um juízo errôneo do
que de um sentimento depravado. Nasce tanto dos defeitos do espírito quanto dos vícios do coração. O egoísmo
resseca o germe de todas as virtudes, o individualismo só esgota, a princípio, as fontes das virtudes públicas;
mas, com o tempo, ataca e destrói todas as outras e termina se absorvendo no egoísmo.O egoísmo é um vício tão
antigo quanto o mundo. Não pertence mais a uma forma de sociedade do que outra. O individualismo é de
origem democrática e ameaça desenvolver-se à medida que as condições se igualam. TOCQUEVILLE, Aléxis. A
democracia na América. 2001. v.2, p.119
127
40
Foi visto então que a tendência natural dos povos marcados por uma extrema
igualdade é a centralização do poder, e que da centralização do poder advém um
distanciamento, por parte dos cidadãos, das virtudes publicas, fazendo com que percam o
interesse político. Com o individualismo, o único interesse legítimo é o próprio interesse.
Esta é uma tendência triste para a democracia, que carece fundamentalmente da
participação política de seus cidadãos para o bom funcionamento do governo.
Porém os Estados Unidos como será visto a seguir, têm uma administração
prodigiosamente descentralizada, o que dificulta o alastramento das vontades da maioria por
todo país. É como se mesmo tendo a força, não tivessem os meios para mobilizar a todos.
Sendo este obstáculo o primeiro freio à tirania da maioria.
O segundo freio para a contenção das vontades das maiorias, está no espírito legista128
Americano
129
, que segundo Tocqueville, possui a cadência e sabedoria, próprias da
aristocracia, mantendo ainda um equilíbrio entre as vontades populares, e a ordem e a forma,
indispensáveis para qualquer governo.
Se a tirania da maioria nas rédeas do governo é seu pesadelo, seu sonho seria um poder
legislativo que representasse a maioria sem ser escravo dela, um poder executivo que tenha
força própria e, um judiciário independente dos outros dois poderes, teríamos ainda um
governo democrático, sem estar à mercê da supremacia das vontades populares, ou seja, a
tradicional fórmula da separação dos poderes de Montesquieu.130
Será apresentada, no próximo ponto, a organização administrativa estabelecida pelos
americanos a partir do estado social democrático e as vantagens políticas que extraem da
descentralização e do poder local. E também o freio que ela representa para o alastramento do
“despotismo democrático”.
128
Tocqueville entende por legistas “os homens que empreenderam um estudo especial das leis granjearam
nesse trabalho hábitos de ordem, um certo gosto pelas formas, uma espécie de amor instintivo pelo
encadeamento regular das idéias, que os tornam naturalmente opostos ao espírito revolucionário e as paixões
irrefletidas da democracia. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.309.
129
Os legistas constituem, nos Estados Unidos, uma força pouco temida, que mal se percebe, que não possui
bandeira própria, que se dobra com flexibilidade às exigências do tempo e se deixa levar sem resistência por
todos os movimentos do corpo social; mas envolve a sociedade inteira, penetra em cada uma das classes que a
compõe, trabalha-a em segredo, age sem cessar sobre ela sem que ela perceba e acaba modelando-a segundo seus
desejos. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.317
130
JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política.p.64-74.
41
2.3
DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E CENTRALIZAÇÃO
GOVERNAMENTAL.
É por meio de instituições livres que os americanos combatem o individualismo e
o despotismo democrático. Tocqueville explica que:
O despotismo, que, por natureza é temeroso, vê no isolamento dos homens
a mais segura garantia de sua duração e, comumente faz de tudo para isolá-los. Não
há vício no coração do humano que lhe agrade tanto quanto o egoísmo: um déspota
perdoa facilmente aos governados não amá-lo, contanto que não se amem entre si.
Não lhes pede para ajudá-lo a conduzir o Estado; basta que não pretendam dirigi-lo.
Chama de espíritos turbulentos e inquietos os que pretendem juntar esforços para criar
a prosperidade comum e, alterando o sentido natural das palavras, chama de bons
cidadãos os que se encerram estreitamente em si mesmos.
Assim, os vícios que o despotismo faz nascer são precisamente os que a
igualdade favorece. Essas duas coisas se completam e se ajudam uma a outra de
maneira funesta. A igualdade coloca os homens um ao lado do outro, sem vínculo
comum a retê-los. O despotismo ergue barreiras entre eles e os separa. A primeira os
dispõe a não pensar em seus semelhantes; a segunda faz da indiferença, para eles,
uma espécie de virtude pública. O despotismo que é perigoso em todos os tempos, é
particularmente temível nas eras democráticas.131
Diante desta idéia percebe-se a necessidade especial dos homens nas eras
democráticas, em garantir sua liberdade. Quando os cidadãos são obrigados a participar dos
negócios públicos, são necessariamente tirados do meio de seus interesses individuais e
arrancados, de tempo em tempo, à visão de si mesmos.132
A partir do momento que os negócios comuns são tratados em comum, cada cidadão
percebe que não é tão independente de seus semelhantes como pretendia anteriormente e que,
para obter o apoio deles, muitas vezes é necessário lhes prestar seu concurso. Os americanos
combateram, pela liberdade, o individualismo que a igualdade fazia nascer, e saíram
vitoriosos.133
Os legisladores da América não acreditaram que, para curar uma doença tão natural do
corpo social nos tempos democráticos e tão destruidora, bastava conceder à nação inteira uma
representação de si mesma. Pensaram que, além disso, convinha dar uma vida política
independente a cada porção do território, a fim de multiplicar ao infinito, para os cidadãos, as
ocasiões de agir juntos e de lhes fazer sentir todos os dias que dependem uns dos outros.134
131
132
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.2, p.125.
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.2, p.125.
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.2, p.126.
134
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.2, p.127.
133
42
Por isso o autor admira tanto as instituições livres e a descentralização administrativa,
que contagiam toda uma nação fazendo com que cada cidadão se apegue aos interesses do
país como se fossem os seus próprios interesses135, gerando uma série de vantagens que nem o
governo centralizado mais forte e poderoso poderia realizar. Por isso, é possível reafirmar que
o estado social dos americanos é essencialmente democrático.136
Antes de falar da descentralização administrativa em Alexis de Tocqueville, deve-se
notar com cuidado que, o que foi observado pelo autor Da Democracia na América, “foi mais
que a América” 137, suas análises e conclusões nem sempre são tomadas a partir do que
realmente viu, tampouco o que viu pode ser generalizado para todo o território americano.
Esta ressalva foi feita pelo próprio autor quando justifica porque limita a sua análise as
comunas da Nova Inglaterra138. Por entender que ali os preceitos democráticos admirados por
ele (soberania do povo) são levados às últimas conseqüências139. Tocqueville nota claramente
que tais preceitos não se alastram com tamanha eficiência por toda a União, mas prefere,
assim mesmo, descrevê-los, pois crê estar fundado sobre este princípio tanto o melhor quanto
o pior dos americanos, preferindo, por fim, apresentar aos leitores as instituições criadas pelos
americanos funcionando em sua forma plena. Mesmo sendo esta uma visão parcial, ao invés
de criticar suas deformidades140 América afora, preferindo apenas citar algumas destas
diferenças e destacar que conforme caminhasse para o sul poderia notar claramente a
135
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.107.
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1. p. 106-107.
137
Essa expressão é usada pelo autor para deixar claro que democracia americana era diversa em suas regiões
autônomas (as relações entre igualdade e religião ou entre liberdade e participação não eram as mesmas em todo
o lugar), abstraí as variações empíricas significativas das terras que visitava – especialmente o sul escravista - e
projeta o que via como a ponta mais avançada da história universal. JASMIN, Marcelo. As Américas de
Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. 2001.p. 203-204.
138
Tocqueville salienta que “há comunas e vida comunal em cada Estado; mas nenhum dos Estados
confederados encontra uma comuna identicamente semelhante a da Nova Inglaterra”. TOCQUEVILLE, Aléxis.
A democracia na América 2001. v.1, p.91.
139
Há países em que um poder, de certa forma exterior ao corpo social, atua sobre ele e força-o caminhar em
certo sentido.Outros há em que a força é dividida, situando-se ao mesmo tempo na sociedade e fora dela. Nada
parecido se vê nos Estados Unidos; lá a sociedade age por si e sobre si mesma. Só há força em seu seio; quase
não se encontra ninguém que ouse conceber e, sobre tudo, exprimir a idéia de buscá-la em outra parte. O povo
participa da composição das leis pela escolha dos legisladores, da sua aplicação pela eleição dos agentes do
poder executivo; pode-se dizer que governa por si mesmo, a tal ponto a importância deixada à administração é
fraca e restrita, ela é marcada por sua origem popular e obedece ao poder de quem emana. O povo reina sobre o
mundo político americano como Deus sobre o universo. Ele é a causa e o fim de todas a coisas. Tudo provém
dele e tudo nele se absorve. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1,p.68.
140
“ Se eu quisesse descer aos detalhes dos meios de execução, teria muitas outras dessemelhanças ainda a
assimilar. Mas meu objetivo não é dar um curso de direito administrativo americano”. TOCQUEVILLE, Aléxis.
A democracia na América 2001. v.1, p.92.
136
43
deformação destas instituições a ponto “da vid a comunal passar para o condado em
determinados Estados”. 141
Antes de adentrar em sua análise político-administrativa das instituições americanas,
cabe distinguir, o que o autor fez com cuidado, a centralização governamental da
centralização administrativa, a primeira é quando se concentra em um mesmo lugar os
interesses comuns de toda a nação “como a formação de leis gerais e relação do povo com
estrangeiros; a segunda é quando os interesses específicos de certas partes da nação, como “os
empreendimentos comunais” concentram -se da mesma maneira em um só lugar.142
Tocqueville aceita a centralização governamental como um bem em si, por uma série
de vantagens como uniformidade das leis, porém não enxerga a segunda com os mesmos
olhos, vê nela um carrasco da liberdade humana, inimiga da liberdade comunal. Na América o
governo é centralizado e a administração prodigiosamente descentralizada.143
Examinar a União antes de estudar os estados é enveredar por um caminho semeado
de obstáculos. A forma do governo federal nos Estados Unidos foi a última a
aparecer; foi apenas uma modificação da república, um resumo dos princípios
políticos difundidos na sociedade inteira antes dela e subsistindo na sociedade
independentemente dela. Aliás, em uma palavra, são vinte e quatro pequenas nações
soberanas, cujo conjunto forma o grande corpo da União. O escritor que quisesse dar
a conhecer o conjunto de semelhante quadro antes de ter mostrado seus detalhes cairia
necessariamente em obscuridades ou repetições.144
Ou seja, os grandes princípios que regem a sociedade americana nasceram e se
desenvolveram nos Estados. Todos os Estados que compõem a União americana oferecem,
quanto aos aspectos externos das instituições, o mesmo espetáculo. A vida política ou
administrativa se encontra concentrada nos três focos de ação que poderiam ser comparados
aos diversos centros nervosos que fazem mover o corpo humano.145 Temos então na base
desta estrutura a comuna, acima o condado e no ápice o Estado.
A analogia do autor de que as comunas estão para a liberdade assim como as escolas
primárias estão para a ciência, resume um pouco da importância que ele atribui a tal
instituição. A comuna tem um poder de ação previamente delimitado por lei, e é dentro deste
espaço que pode agir livremente em prol de seus interesses. As funções nas comunas são
141
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1,p.92-93.
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.98.
143
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.107.
144
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.69.
145
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.70.
142
44
diversas (ao todo dezenove, sendo o cidadão obrigado a aceitar sua função sob pena de multa,
porém em sua maioria são remuneradas)146 .
Essas funções são administradas por um pequeno número de indivíduos os selectmen, que obedecem à lei do Estado quanto as suas obrigações, cabe a eles convocar a reunião
comunal (town- meeting) e presidi-la, a reunião comunal pode ser também provocada por dez
proprietários mediante algum projeto de interesse da comuna. Ademais os select-men são
executantes das vontades populares.147
As comunas da Nova Inglaterra são fortes e independentes, apoiando seus atos sobre o
princípio da soberania do povo, Tocqueville salienta que é como se as comunas tivessem
renunciado em favor do Estado, parte de sua independência original, e não recebido poderes
dele, que só deveria intervir em assuntos que dissessem respeito a mais de uma comuna, o que
Tocqueville chamara de “interesse social”, fora deste âmbito, nenhum habitante toleraria a
intromissão do Estado nos assuntos comunais. Assim ela distribuiu seus poderes a ponto de
envolver o maior número de cidadãos nos assuntos públicos. Talvez seja essa sua maior
virtude, e que é desfrutada por toda a União.148
O que mais admiro na América não são os efeitos administrativos da
descentralização, mas os efeitos políticos. Nos Estados Unidos, a prática se faz sentir
em toda a parte. É um objeto de solicitude desde a cidadezinha até a União inteira. O
habitante se apega a cada um dos interesses de seu país como se fossem os seus. Ele
se glorifica com a glória da nação; nos sucessos que ela obtém, crê reconhecer sua
própria obra e eleva-se com isso; ele se rejubila com a prosperidade geral de que
aproveita. Tem por sua pátria um sentimento análogo ao que sentimos por nossa
família, e é também por uma espécie de egoísmo que se interessa pelo Estado.149
O condado aparece entre a comuna e o Estado, ele não tem a “existência política”
150
da
primeira, sendo uma instituição meramente administrativa com um pequeno número de
funções pré-estabelecidas. Inclusive Tocqueville frisa ser o condado dispensável ao
andamento ordinário da administração, bastando a comuna e o Estado, porém ela é também a
primeira instância do poder judiciário, tendo cada condado um tribunal de justiça representado
146
Este número é referente às comunas da Nova Inglaterra, sofrendo variações em outros Estados.
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.72-73.
147
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.74-77.
148
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.76.
149
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1,p.107.
150
Quando Tocqueville usa esta expressão esta se referindo ao fato do condado não ter representação, ou seja, é
administrado por funcionários não-eleitos pelo povo, mas nomeados pelo governo do Estado, que visa no
condado um interesse puramente administrativo. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1,
p. 81.
45
por um juiz, um xerife para executar as decisões dos tribunais e uma prisão para prender os
criminosos.151
O que mais impressiona Tocqueville “é que não há um centro para o qual os raios do
poder administrativo venham a convergir” nos Esta dos Unidos. As funções administrativas
são distribuídas por muitas mãos e cada um recebe todos os poderes necessários para executar
suas funções, raramente tendo que prestar conta, e sem necessidade de qualquer impulso
externo, sendo difícil de perceber a presença de uma hierarquia administrativa, o condado só
intervém em assuntos do próprio condado. A legislação dos Estados desce a detalhes
minuciosos, restringindo suas obrigações.152
Há uma outra figura responsável, por ser a ponte de ligação entre o homem comum e o
magistrado (o administrador da comuna e o juiz do condado). Estes são os juízes de paz,
nomeados pelo governador do estado dentre os cidadãos do condado, não dispondo o
governador da atribuição de distitui-los. Os juízes de paz não precisam ser conhecedores das
leis, posto que suas funções pairam sobre a moral e os bons costumes.153
Em cada condado são nomeados alguns juizes de paz dos quais três deles formam a
chamada corte das sessões, e se reúnem em média duas vezes ao ano tendo a função de
manter a obediência do maior número de funcionários públicos. Porém a corte das sessões não
tem o direito de fiscalizar os magistrados comunais; essa corte só pode agir, para empregar
um termo de direito154, quando provocada. Por este motivo os americanos dividiram entre eles
o direito de fiscalização e denúncia, como fazem também com outras funções administrativas.
Tendo neste caso o legislador, papel importante confiando não na honestidade da população
para o oferecimento da denúncia, e sim em sua inteligência, fazendo apelo ao interesse
pessoal, inclusive em alguns casos repartindo a multa com o fornecedor da queixa, o que para
Tocqueville garante o cumprimento da lei degradando os costumes, uma vez que o cidadão
151
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.80-81.
Estas restrições que os legisladores do Estado da Nova Inglaterra impõem sobre os administradores do
condado são no sentido de que “[...] a lei desce a detalh es minuciosos; ela prescreve ao mesmo tempo os
princípios e o meio de aplicá-los; ela encerra assim os corpos secundários e seus administradores numa multidão
de obrigações estritas e rigorosamente definidas”. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001.
v.1, p.82.
153
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.86.
154
Em geral pode-se dizer que os administradores do condado não tem o direito de dirigir a conduta dos
administradores da comuna, porém quando chamados a apreciar os atos dos administradores das comunas,
realizam esse sempre como poder judiciário, não como autoridade administrativa. TOCQUEVILLE, Aléxis. A
democracia na América. 2000. v.1, p.84 e 519.
152
46
possa vir a oferecer queixa visando parte da multa e não a lisura do ato administrativo
denunciado. 155
Acima dos magistrados156 do condado não há mais propriamente um poder
administrativo, mas apenas um poder governamental, o Estado.157
O poder legislativo do Estado divide-se em duas casas: a câmara e o senado. A
primeira com o mandato mais curto de seus representantes que a segunda. Desta divisão
extraem-se basicamente duas vantagens: a primeira a de um tribunal de apelação para revisão
das leis e a segunda é de moderar a marcha das assembléias políticas.158
O poder judiciário possui três principais características a primeira é servir de árbitro
(para que ocorra a ação dos tribunais é necessário haver contestação, para que haja juiz é
necessário haver processo). A segunda característica é pronunciar-se sobre os casos
particulares, não sobre os princípios gerais; a terceira característica é só agir quando
provocado. Além destas características o autor destaca o papel político do judiciário que apóia
suas decisões na Constituição em vez de nas leis. Em outras palavras, permite não aplicar as
leis que lhe parecerem inconstitucionais.159
O governador é o representante do executivo160, colocado ao lado da magistratura
como moderador e conselheiro.161 E também reúne em suas mãos todo o poder militar do
Estado, é comandante das milícias e chefe da força armada.162 Após encerrar a descrição da
estrutura administrativa dos Estados, resta saber qual o papel da União nos Estados Unidos.163
À União foi concedido o direito exclusivo de firmar a paz e declarar a guerra, assinar
os tratados de comércio, recrutar exércitos, armar frotas. Quanto aos assuntos internos da
155
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.86-87.
O magistrado do condado, a que Tocqueville se refere é o servidor público do condado, responsável pela
administração, não o juiz de direito, responsável pela primeira instância do judiciário nos condados.
157
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.91.
158
“O senado é habitualmente um corpo legislativo; algumas vezes, porém, torna -se corpo administrativo e
judiciário”. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.95.
159
Tocqueville dispensa um capítulo especial para o poder judiciário, como este não é o objeto principal da
pesquisa encerro aqui sua explicação, para saber mais ver, Capitulo VI da primeira parte do livro I.
160
Tocqueville explica o emprego da palavra representante: “Não é por acaso que utilizei a palavra
representante. O governador do Estado representa, de fato, o poder executivo, mas só exerce alguns dos direitos
deste. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.96.
161
“O governador é armado de um veto suspensivo que lhe permite deter ou, pelo menos, moderar à sua vontade
os movimentos. Ele expõe ao corpo legislativo as necessidades do Estado e lhe dá a conhecer os meios que julga
útil empregar a fim de satisfazê-las; é o executor natural de suas vontades em todos os empreendimentos que
interessam a toda a nação. Na prática não é sempre o governador que executa os projetos que a legislatura
concebeu; é freqüente suceder que esta última, ao mesmo tempo que vota um princípio, nomeia agentes especiais
para supervisionar sua execução. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.97 e 523.
162
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.97.
156
163
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América, 2001. v.1, p.95-96.
47
sociedade, a União não se faz necessária, mas foi deixado a ela o direito de resolver tudo o
que diz respeito ao valor do dinheiro; foi encarregada do serviço postal; foi dado o direito de
abrir as grandes comunicações para unir todo o território nacional.164 Em geral, o governo dos
diferentes Estados foi considerado livre em suas esferas.165 Enfim, para que o governo federal
pudesse cumprir com suas obrigações foi-lhe concedido o direito ilimitado de arrecadar
impostos.166 Quanto ao poder legislativo da União, Tocqueville destaca a superioridade com
que os legisladores elaboraram a Constituição Federal167 em relação às Constituições
Estaduais, entendendo que estas deixam muitos pontos obscuros quanto à separação dos
poderes, logo uma maior vulnerabilidade ao desenvolvimento dos perigos que ameaçam a
democracia. Já no âmbito federal, segundo o autor, a divisão dos poderes é feita de maneira
sábia, e como foi visto anteriormente, representa um importante freio às paixões
democráticas168. Quanto ao poder judiciário169, Tocqueville destaca a sua função política ao
decidir as lides entre os Estados, tentando sempre resolver o caso concreto, evitando julgar as
leis estaduais, o que poderia causar um mal estar para o Estado invadido em sua “esfera
soberana”.
170
Como já mencionado, Tocqueville admite claramente que o que mais admira não são
os efeitos administrativos da descentralização, mas sim, os efeitos políticos que ela produz,
principalmente na democracia.
164
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.131.
Porem se algum Estado abusasse desta liberdade, com algum ato imprudente que viesse a comprometer a
segurança da União. Poderia ela intervir nos assuntos internos dos Estados. TOCQUEVILLE, Aléxis. A
democracia na América 2001. v.1, p.131.
166
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.131.
167
“O governo federal é mais justo e mais moderado em sua marcha que os Estado. A mais sabedoria em suas
concepções, mais duração e combinação sábia em seus projetos, mais habilidade, continuidade e firmeza na
execução de suas medidas”. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.174.
168
Tocqueville entende como de fundamental importância para o desenvolvimento de uma democracia
sustentável a separação bem definida dos poderes, acreditando que a confusão entre eles favorece principalmente
por via do poder legislativo, a “tirania da maioria” e as paixões democráticas nos rumos de todo governo.
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p. 296.
169
O poder judiciário da União é composto pelos tribunais federais e pela Suprema Corte. Ambos tem um papel
político para garantir a soberania da União, para fazerem os cidadãos obedecerem as suas leis, ou para rejeitar as
agressões de que elas seriam objeto, a União tinha pois uma necessidade particular dos tribunais. E a Corte
Suprema dos Estados Unidos foi, portanto, investida do direito de decidir sobre todas as questões de
competência. Tocqueville acrescenta ainda, que para tornar menos freqüentes os processos de competência,
decidiu-se que, em grande numero de processos federais, os tribunais dos Estados teriam direito de se pronunciar
juntamente com os tribunais da União; mas, então, a parte condenada sempre teve a faculdade de recorrer à
Suprema Corte nos Estados Unidos. E o autor ilustra a idéia com o exemplo de um caso que a corte suprema do
Estado da Virginia contestou à Suprema Corte nos Estados Unidos o direito de julgar a apelação de suas
sentenças, mas foi em vão, mantendo a suprema corte sua posição. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na
América. 2000. v.1, p. 161 e 528.
170
Ver capitulo VIII da primeira parte do livro I, “Da Constituição Federal”, onde encontra -se detalhadamente
as funções dos três poderes da União. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.174-175.
165
48
Juntamente com estas o autor trabalha a doutrina do interesse bem compreendido, que
consiste em cultivar as virtudes públicas, não por serem belas ou grandiosas, mas por serem
úteis. Perceberam que, em seu país e em seu tempo, o homem era voltado para si mesmo por
uma força irresistível e, perdendo a esperança de detê-lo, passaram a pensar apenas em
conduzi-lo. Transformando auto-interesse em interesse bem compreendido.171
Tocqueville acredita que a doutrina do interesse bem compreendido, dentre todas as
teorias filosóficas, é a mais apropriada aos homens dos tempos democráticos e vê nela a mais
poderosa garantia contra si mesmos. Portanto é principalmente para ela que o espírito dos
moralistas de nossos dias deve se voltar.172
Não creio que a doutrina do interesse, tal como é pregada na América, seja
evidente em todas as suas partes; mas ela encerra um grande número de verdades tão
evidentes que basta esclarecer os homens para que eles se enxerguem. Cumpre pois
esclarecê-los a qualquer preço, porque a época das devoções cegas e das virtudes
instintivas já vai longe de nós, e vejo chegar ao tempo em que a liberdade, a paz
pública e a ordem social mesma não poderão prescindir das luzes.173
Depois do autor nos apresentar todas as vantagens políticas advindas das instituições
provinciais, Tocqueville surpreende com a revelação de que “as associações políticas nos
Estados Unidos constituem apenas um pequeno detalhe em meio do imenso quadro que o
conjunto das associações civis apresenta” 174.
Esta revelação vem confirmar o que o autor
disse quando fez a analogia de que a comuna está para liberdade assim como a escola
primária para as ciências, pois educa os cidadãos através da prática política. Uma vez
aprendida ela, estimula a associação de pessoas em prol de objetivos comuns, espalhando-se e
aperfeiçoa-se por todos os outros interesses do homem. Para Tocqueville este, é o único meio
para as sociedades democráticas se desenvolverem frente ao perigo do crescimento da
igualdade de condições, que acarretaria por fim em seu maior temor à “tirania da maioria”.
175
Como pôde ser visto, para Tocqueville a maior virtude da descentralização
administrativa é a possibilidade de educar politicamente a população para que, pela suas
171
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.2, p.148.
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.2, p.149
173
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.2, p.150.
174
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.2, p.130.
175
Aqui cabe destacar um trecho de sua obra em que se manifesta a respeito da importância da descentralização
e do poder local para a educação política do cidadão: “Admitirei de resto, se quiserem, que as cidadezinhas e os
condados dos Estados Unidos seriam mais utilmente administrados por uma autoridade central situada longe
deles e que lhes permanecesse estranha, do que por funcionário recrutados em seu seio. Reconhecerei se
exigirem, que reinaria mais segurança na América, que se faria um uso mais inteligente e mais judicioso dos
recursos sociais, se a administração de todo o país fosse concentrada numa só mão. As vantagens políticas que os
americanos extraem do sistema da descentralização ainda me faria preferi-lo ao sistema contrário.
TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. 2001.v.1, p.104.
172
49
próprias mãos, possam resolver os problemas e situações oriundas da localidade em que
vivem e, ali mesmo, na comuna, sem esperar qualquer ajuda superior. Então a
descentralização administrativa viabiliza a liberdade política e prepara o cidadão para a
democracia.
Vale relembra aqui a idéia tocquevilliana desenvolvida anteriormente, sobre a função
pedagógica e pragmática da nova ciência política para um mundo inteiramente novo, que visa
salientar a importância do esclarecimento dos cidadãos, para que possam intervir no processo
histórico, ensinando aos homens das eras democráticas o verdadeiro valor da liberdade
política.
3
DESCENTRALIZAÇÃO E PODER LOCAL: DESENVOLVIMENTO DAS
INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS NO BRASIL.
Bem, depois de apresentado o autor, seu pensamento, e a empírica democracia
americana, o presente capítulo, tem por principal objetivo tentar demonstrar a relevância das
observações do autor para a democracia brasileira. Principalmente no que se refere a idéia de
descentralização administrativa como importante meio para facilitar a promoção e a
ampliação da liberdade política nas democracias em geral. Para tanto, é preciso atentar ao fato
de que no Brasil hodierno, o estado social é extremamente oposto ao descrito por Tocqueville
em sua observação a América no início do século XIX, onde diz ele, ter encontrado um estado
social democrático marcado por uma sociedade que dispunha de amplas igualdades, tanto
material quanto de oportunidades.
O Brasil contemporâneo, ao contrário, é marcado por uma gritante desigualdade
social, segundo Fernando Magalhães, devido a este fato, torna-se difícil pensar em
Tocqueville, ao deliberar sobre a reforma do estado, sobre o risco de, serem produzidos
efeitos contrários dos imaginados pelo autor a um século e meio atrás. Diante desta
dificuldade, tornasse necessário observar o breve panorama traçado a seguir, sobre as
instituições democráticas brasileiras. Para a partir de outros autores como Kalus Frey, que
acreditam serem válidas as considerações tecidas por Tocqueville sobre liberdade política e
democracia em geral, verificar, em que termos pode se falar, atualmente, sobre
descentralização, poder local e liberdade política, a partir das idéias de Tocqueville.
3.1
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO: OS DESAFIOS À DEMOCRACIA.
Como foi visto no capitulo anterior, o estado social dos americanos no início do
século XIX, segundo Tocqueville era “essencialmente democrático”, devido ao alto grau de
igualdade que a população, de um modo geral se encontrava, tanto no aspecto de
oportunidades quanto no aspecto material. Embora Tocqueville reconheça, e destaque como
de grande importância para o desenvolvimento da democracia à igualdade material de que os
americanos dispunham, reside nela também o seu maior risco, devido a possibilidade de
51
tornar-se “despotismo democrático”, po r isso seu foco de estudo esta na igualdade de
oportunidades (liberdades políticas), como principal freio aos problemas advindos do
crescente igualitarismo.176
Tocqueville acreditava que o crescente igualitarismo do povo americano
encaminharia a democracia naturalmente para a centralização do poder, devido à
generalização de opiniões, e o aumento do individualismo, que arrastaria os cidadãos
exclusivamente para suas vidas privadas, largando a sociedade a ela mesma. O que colocaria
o cidadão em uma situação de menoridade política, não esperando mais do Estado do que
segurança, para que desenvolva seus assuntos privados, e conforme as palavras do autor “o
dia que o homem não esperar mais do Estado que sua segurança, não tardará em aparecer o
senhor que lhe colocará as algemas, e lhe tomará o poder”. A importância atribuída por
Tocqueville à liberdade política esta justamente no fato de que apenas através dela, o cidadão
da era democrática pode manter-se responsável sobre os assuntos de interesse público,
garantindo o funcionamento da democracia de forma sustentável.177
A democracia brasileira é marcada por um estado social oposto ao americano, ou
seja, extremamente desigual, o que invertendo a teoria tocquevilliana geraria uma tendência
natural à descentralização do poder, consolidada a partir de uma cultura política baseada na
idéia de “patrimonialismo”, a descentralização brasileira esta associada ao poder das
“oligarquias locais”, e não há uma consciência popular sobre a necessidade de participar do
processo de deliberação pública.
A história da democracia representativa tem coincidido com a história da inclusão
política. Na democracia brasileira não é diferente.178 Os partidos políticos de massa,
instituições mais importantes das democracias representativas, contribuíram grandemente para
alcançamos, pelo menos formalmente o ideal da soberania do povo. Formalmente, pois
somente se a distância entre representantes e representados puder ser relativizada, os partidos
políticos de massa poderão atuar de forma mediadora, o que depende ainda da solução interna
que tenham dado ao problema da representação.179
Atualmente se discute a idéia de Accountability política, que consiste na valoração da
conexão entre representante e representado, através da avaliação do eleitorado sobre as ações
passadas realizadas por seus representantes. Existe também o Accountability legal, que
176
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.55-64.
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.104.
178
ARATO, Andrew.Representação, Soberania Popular e Accountability. Lua Nova, nº 55-56, 2002, p.87.
179
ARATO, Andrew.Representação, Soberania Popular e Accountability, p.87.
177
52
consiste na responsabilização legal do representante quando, por seus atos, infringir a lei. Este
último, contudo, não funciona como instrumento do povo exceto à medida que constitui um
dos instrumentos do constitucionalismo.180
Andrew Arato conclui que181 a Accountability política é um princípio importante que
pode ajudar a dar sentido à noção de soberania popular num regime de democracia
representativa. Porém, o modelo institucional accountability
deve ser completado por
instituições de deliberação, constitucionalismo e representatividade descritiva. Sendo a précondição mais importante para que um sistema de accountability realmente funcione é a
atividade de seus cidadãos nos fóruns públicos democráticos e na sociedade civil. Pois
isolados, colocam-se em risco a própria Accountability.
No atual regime democrático brasileiro, pós-88, as perguntas básicas relativas ao
processo de tomada de decisões do governo, em especial no que se refere à política
econômica e às reformas estruturais do Estado, apontam principalmente para duas questões:
as instituições e as gestões.182 Quão concentrado ou disperso está o poder governamental para
tomada de decisões, levando em conta as regras do jogo formais e informais vigentes, por um
lado, e qual é a efetiva capacidade de tomar decisões e implementá-las evidenciada pelas
gestões governamentais, por outro. 183
Pode-se dizer que o federalismo brasileiro contribui para essa situação precária de
governabilidade no país. É verdade que embora remonte à tradição de governos regionais
fortes em relação ao poder central (devido aos recursos econômicos e administrativos e à
configuração de partidos) prevalecente da República Velha, o peso da administração federal
variou ao longo do século XX. Com os governos do presidente Getúlio Vargas tivemos um
forte impulso de centralização do poder político, que visava a criação de um Estado nacional
moderno e sua própria burocracia.184 O regime militar, por sua vez, ao mesmo momento que,
construía uma base institucional e estatal duradoura à centralização decisória que desfrutava,
o viu obrigado a estabelecer relações com as elites locais, para garantir legitimidade mais
ampla ao regime. O que teve como conseqüência o crescimento do poder político-econômico
dos estados. Por fim, os grupos políticos estaduais converteram-se nos protagonistas
principais da transição, a ponto da democratização ser praticamente identificada com a
180
ARATO, Andrew.Representação, Soberania Popular e Accountability, p.92.
ARATO, Andrew.Representação, Soberania Popular e Accountability, p.103.
182
PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo.
DADOS – Revista de ciências sociais, rio de Janeiro, Vol. 43, nº3, 2000, p.521-522.
183
PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo.
2000,p.522.
184
Ver ponto 3.1.2, sobre paternalismo e clientelismo.
181
53
descentralização política.185 De 1985 até a promulgação da Constituição de 1988, a dimensão
federal teria seus momentos mais expressivos no processo de democratização brasileira, com
a nova Carta Magna, foram introduzidas modificações nas relações entre o presidente e os
estados, dando vigor ao federalismo, concretizando-se, por exemplo, substanciais
transferências financeiras da União para os estados e municípios.186 Em poucos países os
governos estaduais e locais administram uma fatia tão grande das receitas fiscais totais.187
Porém, de um modo geral, o federalismo é de grande importância para a morfologia
político-institucional brasileira. Segundo Mainwaring, das quatro nações federativas da
América Latina; Argentina, Brasil, México e Venezuela, o Brasil é o caso de federalismo mais
consistente, e estima que a dimensão federal é um importante elemento de continuidade entre
o regime democrático até 1964 e o atual, assim como ela deu forma ao funcionamento do
presidencialismo.188
Outro desafio para a democracia brasileira é a fragmentação de seus partidos políticos,
que segundo Jairo Nicolau, é o país que mais possui partidos relevantes no mundo.189
À fragmentação soma-se a instabilidade e, a fragilidade e o fisiologismo. O quadro
partidário modifica-se constantemente. As variações da bancadas variam mês a mês, isto,
associado à fragmentação e ao fisiologismo, torna-se mais difícil para os eleitores diferenciar
programas e distinguir quem é quem, já que nem sempre se apresentam os mesmos atores
(mudanças de siglas, coalizões).190 Apesar dos partidos terem um alcance nacional, todos eles
estão fortemente regionalizados, com as bases (organizacionais e eleitorais) de seu poder
muito desigualmente distribuídas.191 Com seus elementos constitutivos mal definidos, os
partidos políticos tornam-se frágeis, pouco enraizados no eleitorado, o que leva a baixos
índices de identificação partidária, debilidade organizacional, lideranças que se limitam aos
185
PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo.
2000,p.523.
186
SOUZA, Celina. Intermediação de interesses regionais no Brasil: o impacto do federalismo e da
descentralização.Apud: PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e
Gestão de Governo. 2000, p.524.
187
DAIN, Sulamis. Experiência internacional e especificidade brasileira. Apud: PALERMO, Vicente.Como se
governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo. 2000, p. 524.
188
MAINWARING, Scott. Presidentialism and democracy in latina America. Apud: PALERMO, Vicente.Como
se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo. 2000, p. 524.
189
NICOLAU, Jairo Marconi. Multipartidarismo, maiorias Parlamentares e democracia: Notas sobre o Caso
Brasileiro. Apud: PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e
Gestão de Governo. 2000,p.524.
190
PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo.
2000,p.524.
191
NICOLAU, Jairo Marconi. Multipartidarismo, maiorias Parlamentares e democracia: Notas sobre o Caso
Brasileiro. Apud: PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e
Gestão de Governo. 2000,p.524.
54
que exercem cargos eletivos, pouca participação de membros e filiados, salvo casos como o
Partido dos Trabalhadores. E, de um modo geral, abusam de práticas clientelistas.192
Atualmente presencia-se no Brasil um efervescente debate sobre a reforma do Estado.
De um lado temos os argumentos em torno da retração do Estado, que se têm hoje como fato
consumado, e ainda pelos prós e contras da privatização e da descentralização em geral. Por
outro lado à questão do Estado gerente, que traz a idéia de implantar no setor público o
espírito empreendedor que supostamente predomina no mundo da economia privada. Diante
da situação crítica em que se encontra a saúde financeira do setor público, todo esse debate
gira em torno de dois principais objetivos, limitar os gastos públicos e aumentar a eficiência
administrativa do Estado.193
Nesta orientação adotada hoje pelos principais governantes do país, encontramos
muitas das tendências temidas por Tocqueville, em sua viagem à América do século XIX, as
quais segundo ele, seriam conseqüências das condições de crescente igualdade, que
acarretaria na centralização do poder. O que se pretende hoje no Brasil é a inversão da sua
concepção para condições extremamente opostas194 as encontradas por Tocqueville na Nova
Inglaterra, ou seja, para um estado social marcado por uma profunda desigualdade material
entre a população. 195
3.1.1 Desigualdade material e democracia individualista.
Marcelo Magalhães entende que a “história das democracias nos tempos modernos
tem coincidido com a história da democracia americana”. E que todas as sociedades
ocidentais têm se esforçado para seguir seu modelo. O que consiste basicamente na idéia
tocquevilliana de inevitabilidade do advento democrático pelo mundo.196
Representando para o homem contemporâneo o único tipo de regime político capaz de
conduzi-lo ao seu pleno desenvolvimento, ou seja, a conquista da liberdade individual e
192
PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo.
2000,p.524.
193
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 108-109.
194
Ver no capítulo anterior sobre o estado social dos americanos, a respeito da condição de igualdade extrema
em que se encontravam os habitantes da Nova Inglaterra.
195
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 109.
196
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
individualista, Tempo Social: revista de sociologia da USP, v.12, n.1, p.141.
55
igualdade de condições
197
. Entretanto este desenvolvimento igualitário da democracia é
responsável também pelos aspectos negativos de seu funcionamento. Tornando a democracia
sua própria oposição, de duas maneiras, pela atuação de seus agentes e pelo seu conteúdo
individualista especificamente excludente.198
Fernando Magalhães tem duas propostas em seu artigo, a primeira é explorar a idéia de
Tocqueville em relação ao futuro das democracias, e o segundo demonstrar como a igualdade
de condições, isolada de um conteúdo material (social) pode gerar um tipo de discriminação
que torna a sociedade democrática injusta e violenta199.
Esta primeira proposta consiste em explorar uma das principais idéias da Democracia
na América, que é a possibilidade dela tornar-se seu próprio algoz devido ao peso dado às
opiniões da maioria, como quase que sendo a verdade absoluta. E como conseqüência
teríamos a restrição da liberdade política 200.
Assim como na “democracia individualista”, nos regimes socialistas também ocorre a
privação das liberdades, porém no socialismo trabalha-se a idéia de uma igualdade
econômica, cerceando as liberdades individuais em função do conjunto da organização social.
Não há espaço para o desenvolvimento do individualismo, bem como toda a esfera econômica
é controlada pelo Estado. Quer dizer presume-se aqui uma espécie de democracia econômica,
diferente da democracia americana estudada por Tocqueville que igualava todos em
oportunidades 201.
Aqui o autor entende que a esquerda, inclusive a esquerda marxista, perdeu uma
grande oportunidade de considerar as críticas liberais à ditadura das massas. Ocupou-se
durante muito tempo com a igualdade material, transformando o modelo não no coveiro da
burguesia e sim do proletariado. Deixando escapar o que poderia ter sido a fórmula salvadora
do regime socialista, a chamada liberdade política 202.
197
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o
individualista, p.141.
198
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o
individualista, p.141.
199
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o
individualista, p.141.
200
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o
individualista, p.142.
201
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o
individualista, p.142.
202
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o
individualista, p.142.
futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
56
Porém a critica liberal de Tocqueville aplica-se, sobretudo à democracia denominada
burguesa e ao individualismo das sociedades modernas203. Que se presume de vital
importância para a compreensão da sociedade hodierna, que cada vez mais se confirma a
tendência da padronização de opiniões, e estas ideologias que esmagam as minorias em nível
nacional e internacional. 204
Atualmente a democracia é uma realidade na vida de homens e mulheres, e nada leva a
crer que ela seja ameaçada em seus aspectos vitais. Será então a democracia como igualdade
de condições, mesmo com as advertências feitas por Tocqueville, fator suficiente para que
todas os membros de uma comunidade alcancem um padrão aceitável, com o mínimo de
dignidade oferecida ao ser humano?205 Partindo então do pressuposto que a tendência ao
individualismo e a conseqüente padronização do pensamento político-social e sua ação quase
tirânica sobre as minorias, confirma-se nas democracias contemporâneas.206
O problema agora é saber até que ponto os meios encontrados por Tocqueville para
conter a supremacia da maioria são eficientes?207
Tocqueville vê em uma possível instituição análoga à aristocracia, o meio para
moderação das vontades da maioria, para evitar que a liberdade seja sacrificada em nome da
igualdade. Na opinião do autor esta idéia fracassa por dois motivos. Primeiro pelo conceito
limitado de democracia em Tocqueville sobre a ótica exclusiva da defesa dos interesses
privados. E o outro é a respeito da “fórmula formal” de sua concepção de instrumento
moderador. A idéia de um corpo de juristas como contraponto das vontades das massas. Pois
também estariam os membros do judiciário, assim como os legistas, vulneráveis à doutrina
dominante da América. Dessa forma, a democracia na concepção tocquevilliana, dificilmente
conseguirá evitar a opressão da maioria.208
203
Este individualismo nas sociedades modernas tem como conseqüência a repressão das minorias que pode ser
ilustrado pela “reação defens iva daqueles grupos étnicos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de
outras culturas”, a exemplo do que ocorreu no Reino Unido, produzindo uma atitude mesquinha que chamou de
“inglesidade” (englishness). HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Apud: MAGALHÃES,
Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.141.
204
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
individualista, p.143.
205
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
individualista, p.143.
206
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
individualista, p.144.
207
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
individualista, p.144.
208
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
individualista, p.144.
57
Na América analisada por Tocqueville, havia duas tendências em relação às decisões
políticas que ora eram tomadas diretamente pelo povo e ora inclinavam para o instituto da
representação, no decorrer do desenvolvimento democrático o sistema representativo
prevaleceu sobre o direto. Ao ponto que hoje o segundo é raro, e a sociedade fica a mercê da
opinião de uma minoria, embora se tenha a impressão de que a maioria participa das decisões,
pois escolhe seus representantes209. Disso decorre um aumento da apatia política e um avanço
ao individualismo. Aqui é salutar lembrarmos da idéia de sociedade uniformizada que compõe
a definição tocquevilliana de democracia, que padroniza os indivíduos alheios uns aos outros,
em contraposição à estrutura de castas, mas de certa forma comunizada, da sociedade feudal.
Ele lamenta o fim desta, não por conservadorismo aristocrático, mas porque alheios uns aos
outros os indivíduos entreguem-se ao conformismo, aceitando todas as regras sociais impostas
pelo individualismo, o que Tocqueville chama de servilité (servilidade).210
O conformismo massificado e a “cultura do contentamento”
211
tiranizam a vida social,
econômica e política e mesmo intelectual das sociedades pós-modernas212. Reforçando a
crítica ao significado de igualdade tocquevilleana, ser restrito à igualdade liberal de
condições, não levando em consideração sua variante socialista de igualdade econômica. Sua
rejeição à revolução social leva-o a confundir sistemas econômico-políticos com formas de
governo. À democracia liberal opõe o socialismo, e a este a liberdade, não o capitalismo.213
Nas democracias hodiernas os beneficiários do sistema preferem optar por uma inação
em curto prazo, ainda que visíveis os gritantes males sociais, a optar por uma ação benéfica
em longo prazo, mas que resulte no aumento de encargos as classes satisfeitas.214
A igualdade sobre a qual fala Tocqueville tem um cunho restrito que envolve a
questão da individualidade, mas que foi universalizada. Uma democracia pode oferecer a
209
O comparecimento sazonal às urnas, que constitui regra elementar da sociedade democrática, é insuficiente e
enganador, pois ocorre num contexto de menoridade política. JASMIN, Marcelo. Individualismo e despotismo: a
atualidade de Tocqueville Apud: MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a
perspectiva da democracia individualista, p.147.
210
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
individualista, p.145-147.
211
Esta expressão “cultura do contentamento” criada por John Kenneth Galbraith é usada par a definir a tirania da
maioria nos dias atuais, que oprime de maneira violenta as camadas minoritárias, principalmente o segmento
negro. Ou ainda a ditadura da classe satisfeita - isto é o conjunto formado pelos ricos, pela classe média e pelos
estratos em ascensão-aquela que recebe os benefícios do bem-estar material, tornando-se satisfeita por que é
maioria. GALBRAITH, John Kenneth. Questa à dittatura dei ricchi. Apud: MAGALHÃES, Fernando. O
passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.158.
212
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
individualista, p.153.
213
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
individualista, p.153-154.
214
GALBRAITH, John Kenneth. Questa à dittatura dei ricchi. Apud: MAGALHÃES, Fernando. O passado
ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.159.
58
todos oportunidades iguais. Mas os seus benefícios só podem ser desfrutados por todos
aqueles que são iguais. Portanto, sem justiça social para repartir os bens com certa eqüidade,
qualquer valor universal de uma democracia permanecerá sempre excludente. 215
Além deste equivoco, o autor ressalta outro, quanto à idéia de Tocqueville sobre a
existência de um corpo intermediário de caráter similar a sua aristocracia para temperar as
vontades da maioria, com o argumento que este espírito legista estaria constantemente
influenciado pelas paixões populares. A liberdade política tocquevilleana subordina-se,
portanto, aos princípios individualistas que dominam a mentalidade democrática moderna.
Permanecendo a liberdade como instrumento meramente formal, perseguido por uns poucos,
sem condições de atender as necessidades das sociedades democráticas contemporâneas,
marcadas por uma extrema desigualdade social. 216
Portanto, a questão inicialmente formulada, relativa à idéia de igualdade de condições
isolada de um conteúdo material (social), como fruto de uma sociedade democrática violenta
e injusta, fica momentaneamente sem solução, até que a democracia e a liberdade sejam
encaradas por uma outra perspectiva que não a de igualdade de condições, pois sem o mínimo
de igualdade material, Fernando Magalhães conclui não ser possível apropriar-se de
Tocqueville para desenvolver uma democracia mais justa. Portanto, o processo de
igualitarização que na sociedade americana representava o maior risco para a democracia,
pois poderia conduzir a centralização administrativa, no Brasil por sua vez, a diminuição das
diferenças materiais, apresenta-se como uma condição essencial para o desenvolvimento da
democracia. 217
Apesar de diagnosticar tais equívocos218 na teoria de Tocqueville, o autor considera
inquestionável219 o valor de suas análises para a compreensão das democracias
contemporâneas e seus problemas.
215
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
individualista, p.161.
216
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
individualista, p.162.
217
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
individualista, p.142.
218
Para Fernando Magalhães, apesar de a lógica dos argumentos de Tocqueville, quer dizer a construção de seu
edifício teórico, desabar diante das próprias bases que o alicerça, o que, não impede que o eco de suas
observações se faça ouvir em várias gerações subseqüentes. MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o
futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.162.
219
Entre outras afirmações em relação à relevância do estudo do autor destaca-se esta “a sociologia e a ciên cia
política de Tocqueville possuem fundamental importância para a compreensão da época em que vivemos.”
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia
individualista, p.143.
59
A recente análise de Francisco de Oliveira220,que mostra de forma bastante reveladora
a tendência da política brasileira mais recente, em especial nas duas gestões do Presidente
Fernando Henrique Cardoso, à privatização não apenas das empresas públicas, mas também a
própria esfera pública, tendo como efeito a anulação da política, aliada a uma destruição da
fala. Temores estes que sempre afligiam a mente de Tocquevillle.
As empresas multinacionais que atuam nos mercados globalizados não
dependem mais como antes da benevolência do governo central; pelo contrário, cada vez mais
essas empresas impõem suas condições aos governos estatais. Não só dentro dos governos do
mundo todo como também nas relações internacionais, em especial as relações desiguais de
comercio entre o hemisfério norte e sul.221
Segundo Klaus Frey, um dos pensamentos mais importantes de Tocqueville para
repensar a reforma do estado está em sua desconfiança em relação à mera engenharia
institucional, pois ele acreditava que acima de tudo é indispensável contemplar um paradigma
desejável para uma ordem razoável da convivência humana.222
O surgimento de novas elites econômicas e sua predominância na sociedade
globalizada, assim como o isolamento em círculos fechados, que se observa hoje no Brasil223,
na opinião do autor, não desvalorizam224 as previsões de Tocqueville no que se refere ao
aumento do economicismo, e a tendência ao individualismo ou isolamento individual e o
desinteresse da vida pública, mesmo porque Tocqueville nunca chegou a confundir o aumento
das chances sociais com a realização efetiva da igualdade social.225
3.1.2 Descentralização, poder local e representação política.
Enquanto na democracia americana observada por Tocqueville, a descentralização
administrativa constituiria um dos principais mecanismos para a manutenção da liberdade
política, funcionando como motor para o atuar cívico. No Brasil a descentralização tem sido
220
OLIVEIRA. Francisco de. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo
neoliberal. Apud: FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 110.
221
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 110.
222
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 111.
223
OLIVEIRA. Francisco de. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo
neoliberal. Apud: FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 111.
224
Klaus Frey salienta que se refutarmos de antemão nosso pensador por seu viés conservador, que sem dúvida
se encontra presente em vários aspectos da sua obra, corremos o risco de perder de vista suas valiosas
advertências e propostas. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 111.
225
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 111.
60
associada historicamente à personalização do poder na figura das elites locais, não chegando a
ser desfrutado pela população, governando as elites locais através de práticas
“clientelistas”.
226
Por outro lado, a centralização do poder na experiência federativa brasileira, foi
promovida durante a história por governos ditatoriais, que governaram sempre através de
práticas “paternalistas”, o que faz com que a descentralização seja também associada à
democratização, o que no caso brasileiro evidencia-se como um grande perigo, se não forem
levados em conta o papel das elites locais. Estas tendências centralistas e descentralistas que
marcam o desenvolvimento do Estado brasileiro, necessitam portanto, serem esclarecidas.227
Para que se compreenda a origem do patrimonialismo e do clientelismo brasileiro, é
necessário voltar os olhares para o passado, e observar como foram estabelecidas essas
relações no cenário político nacional, e como se perpetuam durante séculos.228 O momento
histórico é o Segundo Reinado, que segundo Raymundo Faoro:
Não constitui o sistema político brasileiro o soberano legitimado pelo poder
moderador, nem a centralização articulada na Corte. Este assenta sim sobre a tradição,
teimosa de sua permanência de quatro séculos, triturando nos dentes da engrenagem,
velhas idéias importadas, teorias assimiladas de atropelo e tendências
modernizadoras, avidamente imitadas da França e da Inglaterra. Mas a tradição não se
alimenta apenas da inércia, se não de fatores ativos, em movimento e renovação, mas
incapazes de alterar os dados do enigma histórico. Sobre as classes que se armam e se
digladiam, debaixo do jogo político, vela uma camada político social, o conhecido e
tenaz estamento, burocrático nas suas expansões e nos seus longos dedos. Nação,
povo, agricultura e comércio obedecem a uma tutela, senhora e detentora da
soberania.229
A mais de um século, Tavares Bastos em voz de protesto diria que:
Os erros administrativos e econômicos que afligem o Império não são
exclusivamente filhos de tal e tal indivíduo que há subido ao poder, te tal ou tal
partido que há governado: não constituem um sistema seguido, compacto,
invariável.Eles procedem todos de um sistema político afetado de raquitismo, de uma
idéia geradora e fundamental: a onipotência do Estado, a máquina central , e nessa
máquina certas e determinadas rodas que imprimem movimento ao grande todo.230
226
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 101.
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 103.
228
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro,2000. p.400.
229
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro,2000. p.437.
230
BASTOS, A. C. Tavares. Cartas do Solitário. Apud: FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do
patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 437.
227
61
Bonfin traduz a mesma idéia, de maneira mais dura, “Depois de ter sido, durante quase
dois séculos, carne viva para a varejeira lusitana, o Brasil acabou incluindo na sua vida o
próprio estado que, de lá, emigra, na plenitude da ignomínia lusitana”. 231
O estamento burocrático, portanto é a “base”
detêm o poder.
233
232
sobre a qual se apóiam as elites, que
O governo apesar de se esforçar na tentativa de centralizar234 o poder de
decisão para defender o interesse nacional, não logra êxito, pois sofre interferência dos líderes
locais235 que compõe o parlamento nacional, mas defendem seus próprios interesses.236
Para poder governar, a Corte, vê-se obrigada a conceder cargos importantes para
adversários políticos, com o objetivo de formar uma bancada com possibilidade de governar.
Com essa concessão de cargos, que visava a governabilidade do país, a Corte abre espaço para
o aparecimento de novas burocracias, preenchidas com familiares (nepotismo), e aliados
políticos (clientelismo)237. E a garantia para essa situação de conforto perdurar, é a própria
continuidade da permanência no poder do “patriarca”. Portanto a política e os empregos
públicos possuem uma estreita ligação. No momento em que determinado político é eleito, ou
um ministro é nomeado, todos os cargos públicos de alguma maneira vinculados ao seu
arbítrio, serão investidos por único critério, o seu próprio interesse, não importando para ele o
grande prejuízo que esta prática cause à nação.238
A “aristocracia burocrática” fabrica a opinião pública no Brasil, através da imprensa, e
apoiada por empresas industriais, associações mercantes, bancos, agricultores entre tantos
231
BOMFIM, M. O Brasil nação. Apud: Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político
brasileiro. 2000, v.1, p. 437.
232
“A nossa aristocracia” - observam as cartas de Erasmo - “é burocrática”: não que se componha apenas de
funcionários públicos; mas essa classe forma a sua base, à qual adere,por aliança ou dependência, toda a camada
superior da sociedade brasileira.FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político
brasileiro. 2000, v.1, p. 439.
233
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 10ªed. São Paulo:
Globo, 2000, v.1, p. 439.
234
A centralização, além de exigida pelas condições que dão integridade ao sistema, se exacerba continuamente,
levando todos os negócios e assuntos à Corte, com a papelada lenta da antiga subordinação da colônia à
metrópole. As províncias como outrora as capitanias, são à sombra do governo geral, esgotando a sua autonomia
na cópia servil do centro. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro.
2000, v.1, p.442/443.
235
Segundo Raymundo Faoro, O patronato não é, na realidade, a aristocracia, o estamento superior, mas o
aparelhamento, o instrumento em que aquela se expande e se sustenta. Uma circulação de seiva interna, fechada,
percorre o organismo, ilhado na sociedade, superior e alheio a ela indiferente à sua miséria. FAORO, Raymundo.
Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 441.
236
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 437.
237
No contexto, o funcionalismo será a “profissão nobre e a vocação de todos. Tomem -se, ao caso, vinte ou
trinta brasileiros em qualquer lugar aonde se reúna a nossa sociedade mais culta, todos eles ou foram ou são, ou
hão de ser, empregados públicos, se não eles, seus filhos”. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação
do patronato político brasileiro. 2000, v.1,p. 440-441
238
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 441-442.
62
outros, que fornecem recursos improvisados aos detentores do poder, que governam e
legislam para os patrocinadores de suas campanhas.239
Assim ficam acuados os diversos elementos que deveriam compor a mente nacional, o
espírito agrícola, mercantil, literário e artístico, tolhidos no desenvolvimento, não concorrem a
formar a opinião pública.240
Durante as eleições, as “aristocracias burocráticas” concorrem pelos votos do povo, e
uma vez composta as opiniões e o parlamento, a burocracia espera da Coroa o ministério para
governar.241
Sendo assim a soberania que deveria emanar do povo emana de uma entidade
maior, abstrata, segundo Raymundo Faoro:
O governo tudo sabe, administra e provê. Ele faz a opinião, distribui a
riqueza e qualifica os opulentos. O súdito torvado com a rocha que lhe rouba o sol e
as iniciativas, tudo espera da administração pública, nas suas dificuldades grandes e
pequenas, confiando, nas horas de agonia, no milagre saído das Câmaras do paço ou
dos ministérios. Esse perigoso complexo psicológico, inibi há séculos, o povo, certo
de que o Estado não é ele , mas uma entidade maior, abstrata e soberana.242
Para o desenvolvimento espantoso que tem esse corpo oficial entre nós, não concorre,
como muitos pensam, o número dos empregos, e sim a tendência absorvente da administração
a par da falta de iniciativa particular” 243
Surge com isso um paradoxo:
O estado, entidade alheia ao povo, superior e insondável, friamente
tutelador, resistente à nacionalização, gera o sentimento de que ele tudo pode e o
indivíduo quase nada é. O ideal utopicamente liberal, que afirma o domínio, a
fiscalização e a apropriação da soberania de baixo para cima, base do regime
democrático, esse ideal não perece, não obstante sua impotência. Entende a camada
dominante, negando-o, que a sociedade brasileira não dispõe dos instrumentos
necessários de cultura e autonomia para o trato de seus negócios e para governar-se a
si mesma. O dogma não longe de ser verdade, perde-se num circulo vicioso: o povo
não tem capacidade para os negócios porque o sistema lhe impede de neles
participar.244
Este drama foi identificado, por Tocqueville, quando se depara na América do século
XIX, com a “tirania da maioria”, e a possibilidade desta transforma r-se em “despotismo
democrático”, que geraria o “individualismo” moderno, que consiste no isolamento de
indivíduos impotentes de atuar sobre seus destinos, que esperam do Estado a resolução de
239
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 442.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 443.
241
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 442.
242
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 443.
243
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p.439.
244
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p.444.
240
63
todos os problemas públicos245, e com isso, lhe possibilite o máximo de tempo livre para
dispensarem com seus interesses privados. Preocupado em combater a possibilidade do
surgimento e manutenção deste Estado distante, que é fruto do descaso cidadão, o autor
trabalha a idéia de descentralização e o poder local como formas de auxiliar os cidadãos a
transformarem “auto -interesse” em “interesse bem -compreendido”, sugerindo como meio de
estimulação, a criação de um espaço para prática da liberdade política.
3.2
DESCENTRALIZAÇÃO E LIBERDADE POLÍTICA: CAMINHOS PARA A
DEMOCRACIA.
No Brasil contemporâneo, Klaus Frey trabalha a concepção tocquevilliana a
respeito da descentralização e do poder local, acreditando vir a ser útil, no que diz respeito à
fundamentação teórica de uma abordagem democratizante da descentralização políticoadministrativa.246
O autor parte do pressuposto que não só a democracia brasileira, mas as democracias
contemporâneas de um modo geral, são vítimas de uma estrutura administrativa estatal247 que
não condiz com a complexidade dos problemas trazidos pela globalização248 e a etapa
245
Tudo se espera do Estado, “que sendo a única associação ativa, aspira e absorve pelo imposto e pelo
empréstimo todo o capital disponível e distribui-o, entre seus clientes, pelo emprego público sugando as
economias do pobre pelo curso forçado, e tornando precária a fortuna do rico. FAORO, Raymundo. Os Donos do
Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p.444.
246
FREY, Klaus. Descentralização e poder local em Aléxis de Tocqueville. Revista de sociologia e política nº15,
p.83-96, nov.2000, p.83.
247
De modo geral, na medida que numa sociedade de massa e em um território vasto todas as atenções acabem
se direcionando para um poder único, o sistema político perde estabilidade, fazendo que particularmente em
tempos de crise, o poder central transforme-se no inimigo geral da sociedade. Essa inimizade com o governo
central, assim como as expectativas desmedidas por parte da população, podem segundo Tocqueville, ser
considerados indícios de uma falta de responsabilidade generalizada que necessariamente se propaga em uma
sociedade cujos membros não dispõe de possibilidades de autodeterminar e deliberar sobre assuntos de seu
próprio interesse. FREY,Klaus. Descentralização e poder local: em Aléxis de Tocqueville. p.92.
248
As varias leituras do processo de globalização que caracterizam a etapa contemporânea do capitalismo
permite assinalar, para além das divergências de interpretação, uma tendência no sentido de “uma nova
hierarquia dos espaços”. Isto coloca no centro de atenção os rearranjos institucionais que vêm se cristalizando e
concretizando no espaço global, assim como o crescente papel das cidades e das comunidades locais nas
soluções dos problemas trazidos pela própria globalização. Esses processos ocorrem em detrimento do Estadonação que de acordo com o relatório das Nações Unidas sobre o desenvolvimento humano de 1993 “tornou -se
pequeno demais para as grandes coisas, e grande demais para as pequenas” DOWBOR, Ladislau. A
representação social. Propostas para uma gestão descentralizada. Apud: FREY, Klaus. Descentralização: lições
atuais de Tocqueville. Revista Lua Nova, nº51: p. 97-118, out.2000. p.97
64
hodierna do capitalismo. O problema é garantir o desenvolvimento das sociedades frente ao
desenvolvimento do mundo globalizado, ao mesmo tempo garantindo ou recuperando, as
conquistas ou os ideais da democracia, em especial a igualdade e a liberdade.249
Quais podem ou devem ser as instâncias e os agentes privilegiados e quais os
instrumentos e procedimentos oportunos nessa busca por um desenvolvimento sustentável e
mais humano? 250
Não se pode esperar encontrar tal resposta apenas nos mecanismos de controle e
participação disponibilizados na Constituição Federal brasileira. Que são insuficientes para o
desenvolvimento da cidadania e uma eficiente participação popular na administração pública.
Pois está como se sabe requer uma prática política que tenha como objetivo o
desenvolvimento sustentável da sociedade.251
O autor acredita que para tentar responder a esta pergunta, em primeiro lugar, se deve
observar os exemplos práticos, destacando o caso brasileiro uma revitalização substantiva da
democracia no município, principalmente no que se refere a arranjos institucionais e novas
práticas de participação. Porém alerta que estes ainda são casos isolados e como tendência
contrária, temos que ainda há em muitos municípios a manutenção de práticas clientelistas e
patrimonialistas.252
Estas duas contradições empíricas remetem para a primeira importância do
pensamento tocquevilliano, que é de justamente esclarecer estas duas tendências que marcam
o processo político-institucional no país, a centralização e a descentralização. E, por outro
lado, as concepções teóricas de Aléxis de Tocqueville confrontadas com as condições das
249
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 97.
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 97.
251
Aqui faz-se importante lembrar que Tocqueville compartilha com John Stuart Mill uma postura cética frente
ao liberalismo constitucional que se limita a precauções institucionais para a garantia da liberdade(disso provem
sua crença a insuficiência e ineficácia dos dispositivos constitucionais elaborados pelos formuladores da
constituição americana para proteger ou promover a liberdade).É próprio do liberalismo enquanto teoria de
dominação burguesa abstrair a realidade social e, ao mesmo tempo, omiti-la, o que de acordo com Döhn,
representa uma das fraquezas fundamentais de todo o liberalismo. Tanto Mill como Tocqueville, contrapondo-se
a essa concepção formalista do liberalismo constitucional, tematizam a complexidade das pré-condições reais da
dominação social com os temores básicos da liberdade, igualdade e da soberania popular. Ambos autores, o
primeiro salientando as restrições sócio-econômicos, o segundo a centralização da questão dos hábitos e valores
morais, chegam a exigir a ampliação da participação política e uma politização do processo político. O exercício
da liberdade política deve ser enxergado como um processo de aprendizagem, imprescindível para que os
homens possam passar a valorizar a liberdade sem dela abusar. DÖHN, L.Liberalimus Apud: FREY, Klaus.
Descentarlização e poder local em Aléxis de Tocqueville. p.89.
252
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 98.
250
65
sociedades contemporâneas podem ainda hoje fornecer subsídios para a criação de modelos
de desenvolvimento sustentável e democrático.253
Foi principalmente a partir da década de 80, que a descentralização ganhou espaço na
literatura e discussões nos países em desenvolvimento, que buscavam estruturar seus estados
de uma maneira mais justa e eficiente, e foram constatadas duas grandes barreiras que
impediam tal desenvolvimento. A primeira foi à hipertrofia administrativa254 e a ocorrência de
conflitos distributivos dentro das próprias burocracias estatais e, associada a estes fatores, a
generalizada ineficiência organizacional e técnica das administrações de desenvolvimento.
Em segundo lugar, o desrespeito com relação às necessidades da população nos processos de
planejamento e de decisão política, assim como o déficit de democracia e de participação
política.255
A democracia americana como foi visto no capítulo anterior, foi marcada por uma
crescente democratização e uma forte igualdade de condições. Está última, segundo
Tocqueville promoveria uma concentração e centralização do poder, e uma burocratização da
vida pública e da estrutura do Estado. No caso brasileiro dificilmente podemos falar de
igualdade, nem do ponto de vista político nem econômico nem social, somos uma democracia
apenas nas características formais do sistema político. Isto levanta a questão da possível
relevância das observações de Tocqueville para sociedades marcadas por grandes
desigualdades. Pode-se supor que se for aplicada a teoria de Tocqueville inversamente para
sociedades marcadas por desigualdades extremas como é o caso brasileiro, teria-se como
conseqüência uma tendência à descentralização. Essa suposição gera uma certa confusão de
início, pois o conceito de descentralização como foi visto, costuma ser associado à idéia da
repartição e desconcentração do poder256,assim como à democracia e à liberdade257.
253
O autor acredita que os temas de descentralização e do poder local parecem evidenciar de forma bastante
nítida que muitos dos ensinamentos e reflexões de Tocqueville excedem o contexto histórico específico da
primeira metade do século passado. Guardam ainda hoje uma força explicativa significativa para, por um lado,
contribuir para o aumento de nosso entendimento da realidade brasileira e, por outro, subsidiar a elaboração de
estratégias de transformação da nossa ordem social, das quais com certeza não podemos abrir mão, se não
quisermos enterrar de vez as utopias da igualdade e da liberdade. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais
de Tocqueville. p. 99.
254
Aqui é importante salientar que em um corpo político de um país de grande extensão territorial, que é o caso
do Brasil, só poucas pessoas poderão ter acesso a esfera pública. Quanto mais uma comunidade política
centralizar competências e direitos decisórios, tanto menor o número de cidadãos dispondo realmente de acesso a
esfera pública. FREY,Klaus. Descentralização e poder local: em Aléxis de Tocqueville. p.92
255
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 99-100.
256
Fabio Roversi-Monaco, comenta que a luta pela descentralização sempre esteve associada à luta pela
autonomia local, objetivando não somente a descentralização, mas também o fortalecimento da democracia.
ROVERSI-MONACO, Fabio. Descentralização e centralização. Apud: FREY, Klaus. Descentralização: lições
atuais de Tocqueville. p. 100.
257
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 100.
66
Faz-se importante distinguir aqui para um melhor entendimento da realidade brasileira
as concepções de centralização e descentralização como estratégias político-administrativas
da noção de centralização e descentralização enquanto orientações ou inclinações naturais ou
instintivas das sociedades democráticas ou, de modo correspondente, das sociedades
hierárquicas e autoritárias258. No ponto de vista de Klaus Frey, existe em sociedades como a
brasileira, marcada por grandes desigualdades, uma inclinação natural ao surgimento de
centro de poderes locais, isto é, oligarquias regionais e locais que dedicam toda sua atenção e
esforços à manutenção da desigualdade das condições econômicas e políticas, que lhes é
benéfica, e buscam sempre resistir a qualquer vontade de centralizar o poder, temendo que
com isso sejam promovidos, um aumento da igualdade, e um nivelamento das diferenças e
das disparidades de poder. Deduz-se então que em sociedades heterogêneas, a centralização
só possa interessar a grupos sociais que agem de forma desinteressada e altruísta, aos que não
dispõe de poder ou, finalmente, aos que vêm à chance de elevar-se ao poder hegemônico, ao
poder nacionalmente dominante. Neste sentido se pode pensar, por exemplo, no interesse das
massas populares, que geralmente encontram-se desprovidas de poder em levantar-se por
meio de uma revolução, para fazer valer suas pretensões hegemônicas, ou então os militares
que na América latina reiteradamente se apropriaram ou tentaram-se apropriar do poder e, na
história latino-americana, revelaram-se como as únicas forças capazes - e também só de
maneira limitada - a disputar com os caudilhos e chefes políticos, o poder nas regiões do
âmbito de influência destes.259
De acordo com essa interpretação, a descentralização natural manifesta-se na figura
dos caudilhos e coronéis260, que nas sociedades hierárquicas da América Latina, é comparável
às dinastias e principados da Europa Feudal.261
Na América latina apenas em raros casos consegue-se estabelecer um poder central
forte, e que geralmente foi alcançado pela aplicação da força e violência. Na maioria dos
casos, o poder central permaneceu relativamente fraco, e viu-se obrigado a recorrer a práticas
258
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 100.
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 101.
260
Os caudilhos e coronéis representam aqui as oligarquias locais que se empenham em ampliar suas posições de
poder tanto por meios políticos como militares, em apropriar-se do tesouro do estado central mediante estratégias
de busca de rendas (rent-seeking), valendo-se da lealdade política como instrumento de pressão e de chantagem
frente ao governo central, ao passo que o governo central por sua vez, vê-se obrigado a fazer esforços para
prescrever um sistema de ordem apto a integrar e conter os chefes locais. FREY, Klaus. Descentralização: lições
atuais de Tocqueville. p. 102
261
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 101.
259
67
clientelistas e nepotistas, assim como a distribuição de favores e recursos públicos. A fim de,
por meio de tais arranjos, obter a benévola tolerância e o apoio dos poderes regionais.262
Isto mostra a importância da centralização e da descentralização como estratégias
políticas. Assim como em sociedades democráticas a descentralização ou “a indepe ndência
individual e as liberdades locais serão sempre um produto da arte”
263
, também em sociedades
hierarquizadas, ou seja, aquelas sociedades marcadas por desigualdades nítidas entre as
classes que a compõe, sempre dependerá de esforços artificiais a promoção de uma
solidariedade coletiva e de compromissos mútuos abrangendo toda a população do país, como
também a criação de um poder central264, imprescindível para o aumento da igualdade
territorial.265
Portanto conclui-se através desta interpretação que, temos duas tendências e forças
antagônicas. No caso das sociedades democráticas uma tendência natural à centralização,
devido ao processo de nivelamento social, e o surgimento de uma opinião generalizada sobre
os assuntos de interesse público, tal qual Tocqueville identificou na América do século XIX.
Neste caso, a descentralização só é possível à medida que as forças sociais comprometidas
com os valores da liberdade política estabelecerem artificialmente uma descentralização
administrativa que nessas sociedades passa a ser necessária para prevenir o surgimento de um
“despotismo democrático”. E no outro caso, o das sociedades hierárquicas e autoritárias temos
uma tendência natural à descentralização do poder, que fica retido nas mãos das elites locais
como é o caso das sociedades da América Latina de um modo geral, e apenas através de
esforços artificiais, geralmente recorrendo à força e à violência, estabelecem um governo
central, a fim de promover a conservação da unidade nacional.266
Como foi visto em detalhes no ponto anterior, o poder central, sempre preocupado em
manter seu próprio poder, e vinculado à idéia de igualdade e unidade nacional, só consegue
impor-se por meio dos centros de poderes locais e regionais à medida que esteja disposto a
262
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 102
TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na Améica. Apud: FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de
Tocqueville. p. 102.
264
O caso brasileiro de uma centralização artificial, pode ser ilustrado com o Estado Novo de Getúlio Vargas,
marcado por uma crescente institucionalização política e burocrática, tendências de caráter centralizador, opostas
a descentralização natural. Esta burocratização tem dois efeitos distintos, o primeiro a uniformização dos
processos político-administrativos, o segundo o fortalecimento do governo central. FREY, Klaus.
Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 102
265
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 102
266
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 103
263
68
fazer compromissos e atender às reivindicações das oligarquias locais, entrando com isso um
jogo de barganha política.267
Trata-se no caso brasileiro menos de poderes formais, como as agências estatais de
desenvolvimento regional ou partidos políticos, que desempenham a função de intermediação
de forma regular. Mas, acima de tudo, trata-se de padrões de negociações informais entre
lideres políticos nacionais, regionais e locais, assim como várias instituições de intermediação
– patronagem política, clientelismo, nepotismo, fisiologismo e a corrupção – que marcam
profundamente a sociedade268 e no Estado brasileiro, fazendo parte de nossa cultura política e
são aceitos por amplos setores da sociedade. 269
Cabe salientar aqui o caráter ambíguo destas negociações intermediarias que por um
lado garantem o funcionamento das sociedades heterogêneas e por outro contribuem para ao
aumento das injustiças sociais tendo em vista que os principais beneficiários destas práticas
são as próprias elites locais, e não a população de um modo geral.270
Deste fator advém o principal argumento contra a descentralização do poder, por
temerem, com razão, que ao invés de ser ampliado o espaço para o controle do governo pelo
povo, ou uma maior participação no processo deliberativo, a descentralização sirva os
interesses das oligarquias locais. Porém este argumento ignora ou não reconhece que o
favorecimento das elites locais não é uma conseqüência imediata da descentralização e sim de
uma interação de tendências centralistas e descentralistas que marcam a estruturação de nossa
sociedade. Conforme entende Klaus Frey, a principal questão na discussão acerca da
descentralização, não é o grau de centralização das instituições político-administrativas.
Outros fatores parecem pesar muito mais nessa questão, como a possibilidade da sociedade
civil e outras instituições concorrentes exercerem um controle democrático efetivo e de
influenciar nas decisões políticas. Contudo, partindo do pressuposto de uma certa vontade
política por parte da população, a possibilidade de alcançar tais pretensões parece maior no
caso do predomínio de estruturas descentralizadas.271
É exatamente aqui que os ensinamentos de Aléxis de Tocqueville sobre poder local
são extremamente importantes, tendo em vista a esperança por ele depositada na política
267
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 103.
No caso das democracias da América latina há uma outra institucionalização(paternalismo, clientelismo),
onde o particularismo e normas informais determinam o funcionamento do processo político. O,DONNELL,
Guillermo. Democracia delegativa? Apud: FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p.
104.
269
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 104.
270
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 104-105.
271
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 106
268
69
comunal, como meio de preservação da liberdade e ampla participação de quase todos os
cidadãos no processo político local.272
A afirmação generalizadora de uma ligação direta e irrestrita entre democracia,
liberdade e descentralização273 não se justifica.274
Pois além dos riscos já apontados a respeito da descentralização pode-se destacar
também a concepção de cunho neoliberal275 que costuma confundir descentralização com
privatização, que corre grande risco de entregar os desamparados nas mãos da autocracia
local, devido à retração do poder público, ou ainda ressalta o autor na versão mais difundida
hoje, de entregar os desamparados nas mãos do crime organizado276, daí a importância de
considerar a estrutura de poder em nível local.277
Por um lado temos atualmente na sociedade brasileira um interesse, por uma parte da
população de conquistar uma maior participação na política, o que deixa claro que, o Brasil
superou aquele estado estático com hierarquias sociais nítidas e raramente contestadas. Por
outro lado o centralismo, que encontra na apatia política da maior parte da população a
garantia de sua duração, possibilita o aparecimento de lutas entre várias elites, nacionais,
regionais e locais, que deram origem a novas forças sociais278, como as ONG´s por exemplo,
cujo surgimento dificilmente poderia ser previsto por Tocqueville.279
O resultado deste processo ambíguo e contraditório, onde existe o conformismo da
maior parte da população, os interesses dominantes das elites tradicionais na manutenção do
status quo e finalmente as crescentes demandas por uma participação ampliada por parte das
272
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 106.
Ver no primeiro capítulo a distinção feita por Tocqueville entre descentralização governamental e
administrativa, fundamental para compreensão da idéia de poder local.
274
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 106.
275
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 106, Apud, Felicíssimo.
276
Como por exemplo, o que acontece nos morros do Rio de Janeiro, onde o traficante chefe do morro supre de
certa maneira o papel do estado, ou ainda o apoio oferecido por igrejas e seitas a população carente, com
métodos propagandistas cada vez mais agressivos. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville.
p. 106.
277
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 108.
278
Neste sentido Sergio Abranches, faz uma crítica aos movimentos sociais no Brasil, pois em sua opinião eles
substituem a ação cidadã. E movem-se mais sob o comando de seus grupos dirigentes(quase todos são máquinas
de mobilização, ou de advocacia de interesses específicos) que sob a inspiração das necessidades daqueles que
mobilizam. A ação que aqui se diz popular é comandada pelas elites, cuja formação educacional e cujo status
ocupacional às vezes pouco têm a ver com a vida concreta daqueles que mobilizam. É esse aparelhamento da
sociedade que tolhe as manifestações espontâneas, inibe o povo, coopta os necessitados e promove este misto
trágico de quietismo da maioria e violência e afronta ao primado da lei pela minoria dirigente. E conclui, que
para a representação política responder aos cidadãos é preciso existir um mínimo de ação direta independente.
“Há ocasiões em que nada substitui um panelaço”. ABRANCHES, Sergio. O fator Tocquevile, Revista Veja ano
37, nº18, de 5de maio de 2004, p.58.
279
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 112.
273
70
novas forças sociais, está em aberto.280 E conforme a concepção tocquevilliana, este processo
ambíguo só pode ser resolvido pela própria prática política, ou seja, pela participação
continuada dos cidadãos nos processos políticos, a fim de, criar hábitos e costumes
democráticos.281 Dito isso fica evidente que não será nem a centralização nem a
descentralização que transformarão a sociedade brasileira em uma sociedade democrática de
fato e não apenas no “paciente” papel da Constituição, que traz em seu conteúdo liberdades
282
e direitos políticos.283
Mas acima de tudo, a partir da abertura de um espaço para o mínimo de participação
direta da população na política do país, e este espaço parece mais fácil de ser conquistado
dentro de uma estrutura descentralizada. Ao passo que a participação ativa na política
contribui para o crescimento humano individual, cresce a chance da valorização do bem
comum284 na sociedade.285
Tocqueville evidencia-se como um crítico feroz daquela “cultura da democracia” que
prega o consumismo e o divertimento desenfreado, cujo nascimento ele presenciou e cuja
marcha triunfal e irresistível previu e lamentou.286O autor não considerava que a democracia
fosse apenas um sistema político, para ele, ela era mais que isso, um verdadeiro e peculiar
“modo de vida”, que visaria sempre, como objetivo último, a valorização do bem comum e a
virtude pública. De acordo com seu raciocínio, essa transformação social não dependeria
como já foi dito antes de novas leis ou invenções institucionais287, nem tão pouco de um
sistema parlamentarista, ou de um novo sistema eleitoral288, apesar de no Brasil muitos
280
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 112.
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 112.
282
Tocqueville ensina que o caminho para o despotismo democrático, só pode ser evitado pela junção da
liberdade não apenas com a igualdade, mas também com a moralidade, a religião e a ordem. “Assim como a
igualdade é a precondição da justiça, amoralidade e a ordem são precondições da grandeza. A solução do
problema da democracia implica mostrar que nenhum desses componentes pode ser sacrificado e, ademais, que
nenhum precisa ser sacrificado, posto que juntos eles constituem uma unidade harmônica”. ZETTERBAUM,
Marvin. Tocqueville and the problem of democracy. Apud: FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de
Tocqueville. p. 112-113.
283
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 112.
284
Tocqueville defende uma ética da sobriedade e frugalidade que unicamente tem o potencial de trazer a
sociedade de volta à busca do bem comum e da felicidade, o que passa necessariamente por um papel renovado
da política. “Há apenas uma grande meta neste mundo, que merece os esforços do homem: é o bem da
humanidade”. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 113.
285
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 113.
286
MCCLELLAND, J.S. A History of Western Political Thought. Apud :FREY, Klaus. Descentralização: lições
atuais de Tocqueville. p. 113.
287
Enquanto autores como Lock ou Madison se dedicaram à análise das leis e das instituições e se perguntam se
a Constituição consegue assegurar os direitos privados, Tocqueville vê no “caráter”, no “espírito” e nos
“costumes” os fatores transformadores da sociedad e. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de
Tocqueville. p. 114.
288
Tocqueville considera a participação nas eleições representativas uma oportunidade muito importante do
cidadão valer-se do uso do livre arbítrio, mas também é uma prática curta e rara e portanto insuficiente para
281
71
analistas políticos depositarem muita esperança em tais reformas.289
Para ele, estas
transformações formais constituem um aspecto secundário da democracia, pois as
transformações devem partir da própria sociedade, à medida que os indivíduos adquirirem
hábitos e habilidades através do exercício prático da política.290
Não que Tocqueville menospreze as instituições políticas, pois como se sabe avaliou a
autonomia local como de vital importância para a democracia americana291, e certamente
aprovaria qualquer arranjo institucional que visasse proporcionar oportunidades de
participação. Sua desconfiança resulta da origem destas reformas, quando partirem
unilateralmente do governo. E não corresponderem aos hábitos e costumes reinantes na
sociedade, pois correriam o risco de produzirem resultados totalmente opostos e reforçarem
ainda mais o elitismo local292. Ou seja, a autonomia comunal (municipal) não substitui a
moralidade pública ou o bom senso, além disso, ela só pode tornar-se real em uma
comunidade com um razoável grau de igualdade293. O que fazer diante deste dilema? Se não
se dispõe de uma moralidade pública integradora, se não se pode mais – ou sempre menos –
recorrer a uma religião que desse as orientações necessárias, como Tocqueville imaginou?294
É unicamente o penoso e moroso caminho da prática política e participativa nas bases
da sociedade que pode gradativamente levar à consolidação de uma cultura mais democrática,
à transformação de habitantes e consumidores em cidadãos e à valoração do bem comum nos
processos políticos e sociais.295
É neste sentido que Tocqueville deposita suas esperanças no poder comunal, como
centro de aprendizagem e educação política, onde o cidadão exerce seus direitos e adquire
valores e habilidades necessários para consolidação de uma cultura democrática, apesar de
considerar que não sejam as instituições locais a garantia para uma democracia sustentável,
impedir que os cidadãos”percam pouco a pouco a faculdade de pensar, de sentir e de agir por si mesmos, e que
não venham a cair assim, gradualmente, abaixo do nível da humanidade”. “Na verdade, é difícil imaginar como
poderiam homens que renunciam inteiramente ao hábito de se dirigir por si mesmos conseguir escolher bem
aqueles que os devem conduzir; e nada fará acreditar que um governo liberal enérgico e sábio jamais possa sair
do sufrágio de um povo de servos”. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. Apud: FREY,Klaus.
Descentralização e poder local: em Aléxis de Tocqueville. p.93.
289
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 113.
290
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 114.
291
Tocqueville atribui o engajamento do cidadão em nível local como um valor fundamental não apenas para a
democracia local em si, mas também para dar sustentação à democracia no nível nacional. FREY,Klaus.
Descentralização e poder local: em Aléxis de Tocqueville. p.90.
292
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 114.
293
Ver crítica de Fernando Magalhães no primeiro ponto deste capítulo, a respeito da igualdade de condições
isolada de um conteúdo material.
294
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 115.
295
FREY, Klaus. Descenralização: lições atuais de Tocqueville. p. 115.
72
considera que, este é possivelmente o único caminho viável para o fortalecimento do espírito
cívico e público.296
Ao contrário dos Estados Unidos contemporâneo, que segundo Commager,
abandonaram a idéia de progresso no campo da inovação política e democrática, no Brasil
pode-se testemunhar em muitos municípios o potencial que a política local representa,
principalmente no que se refere às possibilidades de experimentação de novos padrões de
ação política. O êxito duradouro dessas experiências dependerá da consolidação do
processo.297 Fica claro que, sem um fortalecimento destas tendências, a democracia dependerá
apenas do sucesso da economia, uma perspectiva não muito animadora no atual contexto da
globalização, para países em desenvolvimento como é o caso do Brasil.298
Por fim, os grandes problemas que afligem as democracias contemporâneas299 não
dependem apenas de novas invenções técnicas, uma revolução de eficiência na administração
publica ou da liberação das forças produtivas de mercado, mas sobretudo de uma
experimentação democrática, instituída a partir de instituições básicas da sociedade que visem
o aumento da participação e engajamento político social, e finalmente o amor à liberdade
política, assim criando um ambiente favorável e propício para as transformações que uma
sociedade sustentável exige.300
296
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 115.
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 115.
298
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 115.
299
Contudo, os mesmos problemas que afligiram a mente de Tocqueville são os temas e preocupações centrais
na teoria democrática contemporânea, evidenciando am isso a atualidade do pensamento tocquevilliano para
nossos tempos. FREY,Klaus. Descentralização e poder local: em Aléxis de Tocqueville. p.95.
300
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 116.
297
73
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Alexis de Tocqueville definitivamente desenvolveu idéias de valor intertemporal, e ele
próprio sabia da verdadeira importância futura de sua obra. Diante do caráter pedagógico de
sua ciência política, que procura de todas as maneiras, convencer o leitor da importância
imprescindível da liberdade política para o desenvolvimento de uma democracia sustentável.
Sua voz ecoa e se faz ouvir no Brasil contemporâneo. Tocqueville pretendia que através da
leitura de seu texto os “cidadãos democráticos” acreditassem serem capazes de intervir no
processo histórico, ou seja, que tivessem consciência de que só através da transformação do
“auto interesse” em “interess e bem compreendido” poderiam, tomar a rédea de seus futuros, e
mudá-los para melhor.
Portanto, conclui-se com a presente pesquisa, ser positiva a resposta a pergunta
inicialmente feita a respeito da validade das observações feitas por Tocqueville, para hoje
incrementar os debates sobre democracia e reforma do estado no Brasil, mesmo em se
tratando de realidades extremamente opostas, pois em democracia, o fundamental é trabalhar
sempre no sentido de propiciar o desenvolvimento da liberdade política, sendo ela um bem em
si, que educa o “cidadão democrático” para poder perceber seu lugar na sociedade e
juntamente com ela se desenvolver e prosperar.
De modo geral, na medida que numa sociedade de massa e em um território vasto,
como é o caso brasileiro, todas as atenções acabem se direcionando para um poder único, o
sistema político perde estabilidade, fazendo que particularmente em tempos de crise, o poder
central transforme-se no inimigo geral da sociedade. Essa inimizade com o governo central,
assim como as expectativas desmedidas por parte da população, podem segundo Tocqueville,
ser considerados indícios de uma falta de responsabilidade generalizada que necessariamente
se propaga em uma sociedade cujos membros não dispõe de possibilidades de autodeterminarse e deliberar sobre assuntos de seu próprio interesse. Conforme Raimundo Faoro, o
argumento da camada dominante, de que o povo brasileiro não possui os instrumentos
necessários de cultura e autonomia para o trato dos negócios e para governar-se a si mesma,
apesar deste dogma não estar longe de ser verdade, perde-se num circulo vicioso: o povo não
tem capacidade para os negócios, porque o sistema impede-lhes de participar. Porém, o Brasil,
em certa medida superou este estado estático de hierarquias sociais nítidas e raramente
74
contestadas. Se tomarmos como exemplo mais extremo de desigualdade urbana, o que
acontece na cidade do Rio de Janeiro. Lá onde a retração do estado para, muito antes de
chegar aos morros (periferias), onde os moradores não possuem o mínimo de estrutura para o
desenvolvimento da cidadania, quando muito para o desenvolvimento da própria família,
vêm-se obrigadas a viverem acuadas sobre as “regras” do “líder do tráfico local”, que através
do terror mantém uma relativa “ordem” na favela. Até lá, as utopias da modernidade, em
especial a liberdade e a igualdade, hoje não precisam, como antigamente, de porta vozes
intelectuais que falavam em nome dos oprimidos. Hoje os próprios oprimidos tem voz, e
falam por si mesmos.
Um exemplo marcante deste fenômeno que vem atentamente sendo observado não só
pela imprensa mais por intelectuais, cientistas políticos e a própria classe artística, é o
movimento hip-hop301, que apesar de importado dos norte-americanos onde possui letras
levianas, no Brasil consolidou-se como um poderoso instrumento de reivindicações sociais, e
porque não, de liberdade política. O cantor é um espectador que encontra-se no seio da
miséria, no extremo mais amargo da desigualdade, e daí consegue descrever a realidade sem
anestesia ou maquiagem, ou qualquer distorção. Não são dados são relatos do cotidiano.
Este relato proseado tem um efeito imediato de identificação na comunidade narrada.
Os moradores da periferia identificam-se com o quadro apresentado nas letras, e por terem
voz, depositam esperança em seus futuros, pois se identificam nesta mesma realidade
excludente. Temos então pessoas “iguais em suas mazelas”. Dentro do contexto de extrema
desigualdade brasileiro, são os mais esquecidos pelo governo, ou melhor, só lembrados em
época de eleição. Os excluídos são portanto, iguais em seus anseios e em suas mazelas, ou
seja, iguais na miséria econômica e na falta de oportunidade.
Enquanto nas comunas da Nova Inglaterra, observadas por Tocqueville, encontravamse pessoas iguais em fortunas e oportunidades. Nas periferias brasileiras encontramos pessoas
iguais nas misérias e na falta de oportunidade.
Um fator pode ser determinante para a aproximação destes dois extremos, tal fator é a
liberdade política. Os excluídos não precisam mais de porta vozes, precisam sim, que sejam
desenvolvidos meios, pelos quais possam praticar política, deliberar sobre problemas comuns,
e finalmente com “uma estrutura”, que seria desenvolvida pelo Estado, que certamente não
gastaria mais recursos com sua implementação, do que com as práticas clientelistas e
301
Ver anexo II.
75
patrimonialistas que encarnam o governo, sem falarmos da corrupção que desvia cifras
inimagináveis dos cofres públicos.
A implementação de instituições locais fortes evidentemente deve variar conforme a
necessidade da população local, fortalecendo com isso a idéia tocquevilliana da relação direta
de poder local com descentralização administrativa. O poder local será mais forte onde os
problemas forem maiores. E naturalmente mais fracos onde a população gozar de mais
conforto, logo menos anseios.
Sendo assim, o principal argumento contra a descentralização do poder, por temerem,
com razão, que ao invés deste ser gozado pelo povo, o seja pelas oligarquias locais, não é
absoluto, pois ignora ou não reconhece que o favorecimento das elites locais não é uma
conseqüência imediata da descentralização e sim de uma interação de tendências centralistas e
descentralistas que marcam a estruturação de nossa sociedade. Segundo Klaus Frey, a
principal questão na discussão acerca da descentralização, não é o grau de centralização das
instituições político-administrativas. Outros fatores parecem pesar muito mais nessa questão,
como a possibilidade da sociedade civil e outras instituições concorrentes exercerem um
controle democrático efetivo e de influenciar nas decisões políticas. Contudo, partindo do
pressuposto de uma certa vontade política por parte da população, a possibilidade de alcançar
tais pretensões parece maior no caso do predomínio de estruturas descentralizadas. Além do
que, o espaço aberto pela falta de iniciativa popular, é justamente o espaço onde se
desenvolvem as práticas informais de negociação.
A idéia tocquevilliana de liberdade política como única forma de garantia legítima da
soberania do povo, não desqualifica de modo algum, outras formas de encarar os problemas
acerca da reforma do Estado, como a implementação de um estado gerente, que vise limitar os
gastos públicos e a eficiência administrativa do Estado, ou o controle dos representantes
através do Accontability político ou legal, entre tantas outras idéias interessantes. Ao contrario
vem somar-se a estas para legitimá-las como, iniciativas emanadas do povo.
Diante disso, podemos dizer que várias são as matérias de Direito Público brasileiro
que merecem um estudo aprofundado a luz das teorias de Alexis de Tocqueville. Como por
exemplo, possíveis meios de aproximação da população com as subsecretarias implementadas
pela descentralização administrativa promovida pelo atual governo de Santa Catarina ou a
Participação social em audiências públicas, em especial as referentes à lei de responsabilidade
fiscal, que fiscaliza os gastos das gestões públicas, ou ainda, na maximização dos
Mecanismos constitucionais de participação social, para sua efetiva utilização pela população.
76
Enfim, as idéias tocquevillianas ainda hoje são uma importante fonte teórica, para
entendermos melhor a sociedade em que vivemos, além de incrementar as discussões acerca
da reforma do estado, participação política, descentralização, cidadania, fiscalização, controle
externo ou qualquer matéria que vise encontrar caminhos para o desenvolvimento de uma
democracia sustentável.
Diante de uma série de obstáculos, que se apresentam para impedir seu
desenvolvimento, a democracia brasileira, ainda tem um longo e difícil caminho a percorrer,
até que se alcance o ideal, ou seja, uma democracia mais justa e igual. Porem não se caminha
mais nas trevas, Tocqueville iluminou o trajeto através de suas lições, e ainda indicou a
principal arma que se deve usar para lograr êxito nessa jornada, rumo ao encontro da
soberania do povo, tal arma é: a liberdade política.
REFERÊNCIAS
ABRANCHES, Sérgio. O fator Tocqueville. Revista VEJA. São Paulo, maio, v.37, n.18, p.58
5 de maio, 2004.
ARATO, Andew. Representação, soberania popular e Accountability. Revista de cultura e
política Lua Nova, São Paulo, n.55-56, p.85-103, 2002.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 7.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
BUARQUE, Aurélio. Novo dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1975.
CHÂTELET, François. História das idéias políticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1985.
CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político: o declínio do Estado Nação monárquico. 1.ed. Rio de Janeiro. Zahar editores, 1983.
COTRIM, Gilberto. História e consciência do mundo. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
DIAS, Luiz Cláudio Portinho. A democracia participativa brasileira. Jus Navigandi,
Teresinha,
a.3,
n.27,
dez.
1998.
disponível
em:
<www1.jus.com.br/doutrina/
texto.asp?id=61>. Acesso em: 10 de janeiro de 2005.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 10.ed.
São Paulo: Globo, 2000. 2v.
FREY, Klaus. Descentralização e poder local em Alexis de Tocqueville. Revista de sociologia
política, n.15, p. 83-96, nov. 2000.
FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. Revista de cultura e política
Lua Nova, São Paulo, n.51, p.99-118, 2000.
78
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Introdução à história da sociedade patriarcal
no Brasil. 42.ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
FURET, François. Prefácio. In: TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. São
Paulo: Martins Fontes, 2000, v.1, p.XI-XLIX.
GLADSTON, Madete. Hipocrisia: o mito da cidadania no Brasil. Revista de informação
Legislativa. Brasília. v.134, p.219-229, abr/jun. 1997.
JARDIN, André. História Del liberalismo político. De la crisis Del absolutismo a la
Constitución de 1875. 2.ed. México: Fondo de cultura econômica, 1998.
JASMIN, Marcelo Gantus. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política.
Rio de Janeiro: Access, 1997.
______. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. Democracia Hoje:
novos desafios para a teoria democrática contemporânea: UnB. 2001
LACERDA, Denise. Cidadania participação e exclusão: uma análise do grau de instrução
no eleitorado brasileiro. Itajaí: Univali, 2000.
MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro Toqueville e a perpectiva da
democracia individualista. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, v.12, n.1, p.41-164,
maio. 2000.
MOTTA, Carlos Guilherme. Revolução Francesa. 7.ed. São Paulo: Ática. 1996.
OLIVEIRA, Adriana T. Cidadania: a busca por uma sociedade democrática. Espaço Juricico/
revista do curso de direito, São Miguel do Oeste, v.6, p. 29-40, jul/dez. 2002
PALERMO, Vicente. Como se governa o Brasil? O debate sobre instituições políticas e
gestão de governo. DADOS - Revista de ciências sociais, Rio de Janeiro, vol. 43, n. 3, p.521557. 2000.
79
REIS, Helena Esser dos Reis. Democracia: soberania e poder. Fragmentos de Cultura.
Goiânia. v.13, Especial, p.89-99, out.2003.
SALDANHA, Nelson. O que é o poder legislativo. São Paulo: Brasiliense,1982.
SHIRAI, Masako. A problemática da democracia como processo de democratização.
Cadernos de direito constitucional e ciência política. São Paulo, v.9, p.73-80, out/dez. 199
TARSO, Genro. Crise democrática e democracia direta. Revista do direito social. São Paulo,
v.4, p. 11-23, 2001.
THE CONSCISE GUINNESSENCYCLOPEDIA - ENCICLOPÉDIA COMPACTA ISTOÉ GUINNESS DE CONHECIMENTOS GERAIS. São Paulo: TRÊS. 1995.
THE OXFORD ILLUSTRATED ENCYCLOPEDIA -NOVA ENCICLOPÉDIA
ILUSTRADA FOLHA. São Paulo: Folha de São Paulo, março a dezembro de 1996. 2v.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. São Paulo: Martin Fontes, 2001. 2v.
______. El Antiguo Régimen y la Revolución. México: Fondo de cultura econômica, 1996.
WELFORT, Francisco C. Tocqueville vida e obra. In:______. Os pensadores. 2.ed. São
Paulo: Abril cultural, 1979. p.179-182.
ANEXOS
I -CRONOLOGIA
1689 - Revolução Inglesa.
- Quatro momentos principais: guerra civil (1642-1648); republica de Cromwell(1649-1658);
restauração monárquica(1660-1688) e a revolução gloriosa(1688-1689).Guilherme de Orange
assina a declaração dos direitos (Bill of Rights). A revolução inglesa foi à primeira revolução
burguesa na Europa ocidental. Antecipou em 150 anos a Revolução Francesa. Representou a
destruição do Estado absolutista e a criação de condições para o avanço do capitalismo
industrial na Inglaterra.302
-Embora esta revolução tenha ocorrido mais de um século antes do nascimento de Alexis de
Tocqueville, o influenciou, tanto em sua vida pessoal quanto em suas idéias. Durante todo o
século XVIII na França, que se seguiu a revolução inglesa, a aristocracia gaulesa lutou por
mais liberdade política frente à concentração de poder nas mãos do Rei, o que acabou
culminando junto com outros fatores importantes na Revolução Francesa, que caçou a
aristocracia a qual Tocqueville viria a pertencer. Quanto as suas idéias foram influenciadas a
partir da sugestão de seu Professor na faculdade de Paris, Guizot, quanto Tocqueville tinha
302
COTRIM, Gilberto. História e consciência do mundo. Ed. Saraiva. São Paulo. 5ª edição, 1997. p.242.
81
pouco mais de vinte anos de idade, e lançou-se a estudar a historia da Inglaterra, onde apesar
de sua imaturidade já trabalhava conceitos importantes que mais tarde utilizaria em sua
viagem a América.
1748- O jurista Montesquieu escreve o Espírito das leis defendendo a separação funcional dos
poderes do Estado em Legislativo, Executivo e Judiciário.
1750- Revolução Industrial – grande processo de transformações sócio-econômicas.
1762- O filósofo suíço Rousseau escreve O contrato social.
1776- Elaboração da declaração de independência dos Estados Unidos.
1787- Proclamação da Constituição dos Estados Unidos.
1787-1788- Revolta dos notáveis (nobreza)
1788-1789- Anuncia-se em 8 de agosto, a convenção dos Estados Gerais para o dia 1 de maio
de 1789. Nos Estados Unidos, George Washington é eleito primeiro presidente americano.
1789-Revolução Francesa.
- De julho a outubro, a revolução popular. “o grande medo”, proclamação da assembléia
nacional constituinte(9 de julho); Tomada da Bastilha(14 de julho); A constituinte abole os
privilégios feudais na noite de 14 de agosto; declaração dos direitos dos homem e do
cidadão(26 de agosto); retorno de Luiz XVI de Versalhes para Paris, sob pressão popular(5 de
outubro).
- a revolução francesa foi um período de grande terror para a aristocracia. Que em grande
número, foram decapitados pela revolução, inclusive o avô de Tocqueville.
1791- A Constituição liberal adota o regime da monarquia constitucional.
1791-1792- Fracasso da monarquia constitucional. Tentativa de fuga e prisão de Luiz XVI.
82
1792- Guerra contra a Áustria e a Prússia (absolutistas). Vitória do exército revolucionário
em Valmy; Fundação da 1ª. República Francesa (1792-1804).
1792-1795- Período revolucionário da Convenção. Vitória do sufrágio universal. O
“despotismo da liberdade”; Ascensão e queda de Danton, Saint -Just, Robespierre e outros
jacobinos.
1793- Luíz XVI é guilhotinado(21 de janeiro). Nova constituição. Jacobinos dominam a
Convenção.
1793-1794- Terror. Aprofundamento da Revolução com Robespierre e jacobinos, de julho de
1793 a julho de 1794.
1794- Robespierre, Saint- Just e companheiros são guilhotinados(28 de julho).
1795-1799- Período do diretório. Reação burguesa girondina.
1796 - “Conjuração dos Iguais”, de Graco Babelf, última tentativa socializante da República.
1798-Vitória eleitoral dos jacobinos, não tolerada pelos girondinos (burguesia).
1799- A Assembléia é dissolvida e o Diretório é substituído por três cônsules provisórios:
Napoleão, Sieyès e Ducos. É o golpe de Estado do 18 Brumário, dando início ao consulado de
Bonaparte, que liquidaria a República em 1804. Consulado (1799-1804)
1804- A monarquia é restabelecida e Napoleão é nomeado imperador. Império(1804-1815).
1806- Bloqueio continental a Inglaterra determinado por Napoleão.
1805- Nasce em julho na França, Alexis Charles Henri Clérel de Tocqueville.
1812- Apogeu do império napoleônico.
83
1815- Napoleão é derrotado na batalha de Waterloo, em 18 de junho. Foi preso pelos ingleses,
e exilado na ilha de Santa Helena, no oceano atlântico, onde permaneceu até sua morte em
1821. Luís XVIII ainda em 1815, foi reconduzido ao trono Francês(Monarquia dos Bourbon).
1814-1815- Congresso de Viena. Foi a união dos países conservadores com o objetivo de
restabelecer o equilíbrio político na Europa. Tendo em vista os interesses monárquicos
conservadores, sufocando os movimentos liberais revolucionários.
1824-1830- com a morte de Luís XVIII, seu irmão Carlos X assume o trono francês,
implementou uma política antiliberal, e provocou a reação das forças burguesas que temiam o
restabelecimento pleno do absolutismo.
1830- Eclodem as revoluções nacionalistas (movimento liberal) na Europa. A revolução de
1830, teve a alta burguesia contra o rei, que culminou na deposição de CarlosX, e em seu
lugar foi conduzido ao trono francês, Luís Felipe D’Orleans, que governou de 1830 -1848,
teve início a chamada idade de ouro da alta burguesia, períldo em que o capitalismo francês
apresentou grande desenvolvimento industrial e financeiro. Mas em contra partida
evidenciava-se neste mesmo período, um complexo conjunto de fatores sócio-econômicos
negativos. Misturando-se diferentes ideais nacionalistas, liberais e sociais.
1835- Publicação do livro I A democracia na América, por Tocqueville.
1836- Alexis de Tocqueville foi candidato a deputado derrotado, aos trinta e dois anos, no
arrodissement de Valognes, à época o maior dos oito colégios eleitorais da Mancha. Dois
anos depois conseguia a primeira de uma série de vitórias eleitorais(1839, 1842, 1846, 1848,
1849) que o manteriam na Câmara até o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1951.303
1840- Publicação do livro II A Democracia na América.
1848- Luís Filipe é deposto e a república, instaurada novamente. Sendo formado um governo
provisório com participação de representantes da burguesia liberal e dos socialistas. Porem
ouve um masacre ao movimento socialista, o que marcou o rampimento definitivo entre os
303
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. Rio de Janeiro: ACCESS, 1997.p.27.
84
projetos políticos da burguesia e do proletariado socialista. Os líderes burgueses sentiam a
necessidade de consolidar as instituições políticas para impor um clima de ordem pública no
país. Tocqueville é eleito para a assembléia constituinte. Promulga-se, então , uma nova
constituição da república e marcaram-se eleições para presidência. Luís Napoleão Bonaparte,
sobrinho de Napoleão Bonaparte, tornou-se o primeiro presidente da república francesa.
Apoiado pelo exercíto, pela igreja e pela burguesia temerosa de revoltas socialistas, Luís
Napoleão, pouco antes de terminar seu mandato, deu um golpe de Estado, proclamando-se
Imperador dos franceses, com o título de Napoleão III. O segundo Império napoleôniaco
durou até 1870. Os pensadores Marx e Engels escrevem O Manifesto Comunista.
1849- Tocqueville é nomeado ministro das relações exteriores do governo de Luís Napoleão;
após cinco messes no cargo, que se estendeu de 3 de julho a 31 de outubro de 1849, pede
demissão.
1850- Retornando as atividades legislativas, Tocqueville foi obrigado a licenciar-se da
assembléia no mês de março, em função de uma crise de tuberculose pulmonar que o levaria
lentamente ate a morte nove anos mais tarde. Entre julho daquele ano e março de 1851
durante sua recuperação na Itália, escreveu as duas primeiras partes dos Suvenirs e elaborou o
primeiro plano do que viria a ser L’Ancien Regime et la Révolution. 304
1851- De volta ao parlamento, participou intensamente das negociações para a revisão da
Constituição republicana de modo a permitir a reeleição de Luís Napoleão e evitar solução de
continuidade da ordem vigente. Com o golpe de 2 de dezembro, após denunciar a farsa
bonapartista na imprensa inglesa, afastou-se da cena política e recolheu-se aos estudos.305
1852- Após um golpe de estado, Luis Napoleão torna-se Imperador, seu governo se estendeu
até 1873. Governa a França como Napoleão III.
1856- Tocqueville publica O Antigo Regime e a Revolução.
304
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. Rio de Janeiro: ACCESS, 1997.p.27.
305
JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. Rio de Janeiro: ACCESS, 1997.p.27.
85
1859- Tocqueville morre com tuberculose.
1861-1865- Guerra Civil Americana.
1870- Fim do império de Luís Bonaparte. Rendição francesa as tropas germânicas,
estabeleceu-se na França um governo de caráter conservador, comandado por Thiers.
1871- Comuna de Paris. Durou alguns messes e foi derrubada pelo exército do governo de
Thiers. A comuna de Paris foi considerada a primeira conquista do poder político pela classe
operária e a primeira tentativa de criação de uma democracia socialista.
1893- São publicadas postumamente as Lembranças de 1848(Souvenirs), de Tocqueville.
II- ANEXO
Durante a conclusão do presente trabalho, foi utilizado o argumento de que, hoje os
excluídos não precisão de porta vozes. Portanto o presente anexo, traz a letra da música “Só
Deus pode me julgar” do rap MV Bill, que ilustra esta conscientização da classe excluída em
relação aos problemas nacionais. MV Bill é um raro exemplo de um rapper que alcançou
como eles chamam, a “visibilid ade”, ou seja, foi notada sua existência pela sociedade. Foi
através desta visibilidade que Luiz Eduardo Soares, antropólogo e ex-subsecretário de
Segurança Pública do Rio de Janeiro de 1999 à 2000 e Secretário Nacional de Segurança
Pública em 2003, conheceu MV Bill e juntamente com Celso Athaíde escreveram o livro
“Cabeça de porco” , que segundo MV Bill: " é um documento importante principalmente por
não ficar somente debruçado nos acontecimentos, mas assumimos o nosso lado marginal e
nossas contradições. Ler esse livro é mesmo que fazer uma viagem ao próprio corpo, que
estão tão perto, mas ao mesmo tempo é tão desconhecido", Ele é um, dentre milhares que
querem mudar a realidade em que vivem, mas não possuem os meios necessários.
86
BILL, MV. Só Deus pode me julgar: Rio de Janeiro. BMG. 2002.
Vai ser preciso muito mais pra me fazer recuar
Minha auto-estima não é fácil de abaixar
Olhos abertos fixados no céu
Perguntando a Deus qual será o meu papel
Fechar a boca e não expor meus pensamentos
Com receio que eles possam causar constrangimentos
Será que é isso? Não comprei meu compromisso
Abaixar a cabeça e se manter omisso
A hipocrisia, a demagogia se entregue a orgia
Sem ideologia, a maioiria fala de amor no singular
Se eu falo de amor e de uma forma popular
Quem não tem amor pelo povo brasileiro
Não me representa aqui nem no estrangeiro
Uma das piores distribuições de renda
Antes de morrer talvez você entenda
Confesso para ti que é difícil de entender
No país do carnaval o povo nem tem o que comer
Ser artista, Pop Star, pra mim é pouco
Não sou nada disso, sou apenas mais um louco
Clamando por justiça, igualdade racial
Preto, pobre é parecido mas não é igual
É natural o que fazem no senado
Quem engana o povo simplesmente renúncia o cargo
Não é caçado, abre mão do seu mandato
Nas próximas eleições bota a cara como candidato
Povo sem memória, caso esquecido
Não foi assim comigo, fiquei como bandido
Se quiser reclamar de mim, que reclame
Mas fale das novelas e dos filmes do Van Dame
Que Tv no Brasil, no programa do Gugu
Rebolo, vacilou, agachou e mostrou
Volta pra América e avisa a Madona
Que aqui não tem censura meu pais é uma zona
Não tem dono, não tem dona, nosso povo tá em coma
erga sua cabeça que a verdade vem a tona
EH! Mantenho minha cabeça em pé!
Fale o que quiser, pode vir que já é!
Junto com a rale! Sem dar marcha ré!
Só Deus pode me julgar, por isso eu vou na fé !
Soldado da guerra a favor da justiça
Igualdade por aqui é coisa fictícia
Você ri da minha roupa, ri do meu cabelo
Mas tenta me imitar se olhando no espelho
Preconceito sem conceito que apodrece a nação
Filhos do descaso mesmo pós – abolição
Mas de 500 anos de angustia e sofrimentos
87
M acorrentaram, mas não meus pensamentos
Me fale quem ... Quem!?
Tem o poder ... Quem!?
Pra condenar ... Quem!?
Pra censurar ... Alguém!?
Então me diga o que causa mais estragos
100 gramas de maconha ou um maço de cigarros?
O povo rebelado ou polícia na favela?
A música do Bill ou a próxima novela?
Na tela seqüela, no poder corrupção
Entramos pela porta de serviço
Nossa grana não
Tapão ... só pra quem manda bater
Pisando nos humildes e fazendo nosso bode crescer
MST, CUT, UNE, CUFA, PCC
O mundo se organiza, cada um a sua maneira
Continuam ironizando
Vendo como brincadeira, besteira
Coisa de moleque revoltado
Ninguém mais quer ser boneco
Ninguém mais quer ser controlado
Vigiado, programado, calado, ameaçado
Se for filho de bacana o caso é abafado
A gente é que é caçado, tratados como Réu
As armas que eu uso é microfone, caneta e papel
A socialyte assiste a tudo calada
Salve ! Salve ! Salve!
Oh ! pátria amada, mãe gentil
Poderosos do Brasil
Que distribuem para as crianças cocaína e fuzil
Me calar, me censurar porque não pode fala nada
É como se fosse o rabo sujo falando da bunda mal lavada
Sem investimento, no esquecimento, explode o pensamento
Mais um homem violento
Que pega no canhão e age inconseqüente
Eu pego o microfone com discurso contundente
Que te assusta uma atitude brusca
Dignificando e brigando por uma vida justa
Fui transformado no bandido do milênio
O sensacionalismo por aqui merece um premio
Eu tava armado mas não sou da sua laia
Quem é mais bandido? Beira mar ou Sérgio Naya?
Quem será que irá responder
Governador, Senador, Prefeito, Ministro ou você?
Que é caçado e sempre paga o pato
Erga sua cabeça pra não ser decepado
EH! Mantenho minha cabeça em pé!
Fale o que quiser pode vir que já é!
Junto com a rale! Sem dar marcha ré !
Só Deus pode me julgar por isso eu vou na fé !
88
Como pode ser tragédia a morte de um artista
E a morte de milhões, apenas uma estatística ?
Fato realista de dentro do Brasil
Você que chorava lá no gueto ninguém te viu
Sem fantasia realidade dói
Segregação, menosprezo é o que destrói
A maioria é esquecida no barraco
Que ainda é algemado, extorquido e assassinado
Não é moda quem pensa incomoda
não morre pela droga, não vira massa de manobra
Não idolatro a mauricinho de Tv, não deixa se envolver
Porque tem proceder Pra que? Porque?
Só tem paquita loira, aqui não tem preta como apresentadora
Novela de escravo a emissora gosta mostra os pretos
Chibatadas pelas costas
Faz confusão na cabeça de um moleque que não gosta de escola
E admira uma intra-tek Clik – clek Mão na cabeça
Quando for roubar dinheiro público
Vê se não esquece que na sua conta tem a honra de um homem envergonhado
Ao ter que ver sua família passando fome
Ordem e progresso e perdão
Na terra onde quem rouba muito não tem punição
EH!Mantenho minha cabeça em pé!
Fale o que quiser pode vir que já é!
Junto com a rale! Sem dar marcha ré!
Só Deus pode me julgar por isso eu vou na fé !
A letra da música “Só Deus pode me julgar” esta disponível em: <http://mv bill.letras.terra.com.br/letras/72674/>
Informações sobre o livro “Cabeça de porco”, disponível em:
<http://www.cuca.org.br/literaturacabecaporco.htm>
89
Download

Alexis de Tocqueville