A sociedade, o Estado e a política
externa: em busca da sintonia
Haroldo Ramanzini Júnior
Rogério de Souza Farias
In the last years the involvement of civil society in Brazilian foreign policy became a hot topic in the press and
academia. A major aspect of this debate is the need to increase the participation of civil society in the decision
making process. We argue in this article that the focus should be not in participation as an end in itself; the
objective should be translating actual influence on Brazilian foreign policy. The article examines particular
forms of interaction between state and society that translate civil society participation into influence in the
making of Brazilian foreign policy.
Introdução
Nos últimos anos, tem sido crescente o
debate sobre como introduzir maior atuação da sociedade na política externa brasileira. O Itamaraty tem participado do debate por intermédio de diversas ferramentas eletrônicas e pela organização dos
Diálogos sobre Política Externa, instância
que busca formular um livro branco sobre
quatorze temas para a diplomacia brasileira. No discurso de abertura dos Diálogos,
em 26 de fevereiro de 2014, em Brasília, o
chanceler Luiz Alberto Figueiredo Machado, examinando a relação entre o Ministério
das Relações Exteriores e a sociedade, afirmou que “uma política externa alheia às
aspirações da sociedade torna-se carente de
sustentação e respaldo”.1 É um argumento
compartilhado por seu antecessor, Antonio
Patriota: “o aperfeiçoamento da ação da
democracia brasileira envolve uma abertura crescente do governo aos insumos da
sociedade civil. Nesse espírito, o Itamaraty
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vol 23 Nº 2
está adotando iniciativas específicas que
apontam na direção de uma diplomacia
mais aberta à interação com a sociedade”
(Patriota, 2013).
No âmbito acadêmico, deve-se destacar
a Conferência “2003-2013: uma nova política externa”, um evento organizado por
movimentos e organizações sociais, partidos
políticos, organizações não governamentais,
instituições acadêmicas, de pesquisa e de
governo. A iniciativa demonstrou o grande
interesse da sociedade sobre a formulação e
a implementação das estratégias de inserção
internacional do Brasil. Em uma importante
reflexão sobre o evento, os professores Maria
Regina Soares de Lima e Carlos R. S. Milani
Haroldo Ramanzini Júnior é doutor em Ciência Política
pela USP, professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), pesquisador do CEDEC e do INCT-INEU. Colaborador do IEEI-UNESP.
Rogério de Souza Farias é doutor em Relações Internacionais pela UNB e Associate do Centro de Estudos sobre
América Latina da Universidade de Chicago.
out/nov/dez 2014
artigos
afirmaram: “o insulamento burocrático de
qualquer agência do Estado democrático
enfraquece a própria capacidade de formulação e gestão de políticas governamentais
(Lima e Milani, 2014)”.
Existe, portanto, um consenso sobre a
necessidade de mudanças. Mas o que e
como isso deve ser feito? Nos últimos três
anos, temos desenvolvido uma agenda de
pesquisa sobre o assunto, particularmente
no tema comercial. Nosso propósito, nesse
breve texto, é refletir sobre uma via politicamente viável e realista e que traduza
maior participação dos atores sociais em
influência na definição da política externa
brasileira. Tanto nossa análise como nossas
conclusões são amparadas por ampla pesquisa em fontes primárias de quase setenta
anos de formulação da política externa em
negociações comerciais multilaterais, na
literatura estrangeira sobre o tema e no
ativo e abundante debate sobre instâncias
participativas da sociedade na formulação
e acompanhamento das políticas públicas
no Brasil.2
Desigualdade
Na sociedade, há desigualdades de recursos entre indivíduos e organizações.
Assim, ao se pensar em uma maior abertura do Estado para a sociedade, uma primeira preocupação refere-se ao perigo, para a
democracia, se o resultado final reproduzir
os interesses de uma minoria influente e
poderosa. Isso é um risco. A seguir, mencionaremos formas possíveis de se evitá-lo.
Mesmo assim, deve-se considerar que
grupos de interesse poderosos estarão
presentes em qualquer domínio onde seus
objetivos estratégicos forem discutidos.
Isso será verdade tanto no Ministério das
Relações Exteriores, como em Conselhos
ou em um hipotético Ministério do Comércio Exterior. A tese de que a diplomacia
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não é responsiva a tais grupos, aliás, não
encontra respaldo no registro histórico. Das
repetitivas renegociações dos compromissos brasileiros (Lista III) no Acordo Geral
sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio
(GATT) à construção do regime automotivo
no Mercosul, esses atores foram, em sua
maioria, bem-sucedidos na defesa de seus
interesses.
Não obstante a coordenação do Itamaraty, representantes de poderosos setores
econômicos tiveram assento formal em dez
das doze unidades negociadoras de 1946 a
2005 que definiram a posição do Brasil no
sistema GATT/OMC, sem contar o fato de,
em algumas situações, terem atuado como
delegados brasileiros nos próprios encontros multilaterais. A diplomacia profissional
pode ser loquaz em apontar sua neutralidade, mas certamente não teria o poder que
adquiriu caso não considerasse os interesses estratégicos desses atores.
Portanto, qualquer que seja o foro, grupos de interesse poderosos, com recursos
abundantes, buscando favorecer seus interesses no processo decisório, sempre estarão presentes, o que não quer dizer que
automaticamente ou em todas as situações
tenham condições de capturar as instâncias
do Estado ou que a política externa desconsidere os interesses mais amplos da sociedade. A questão que se fortalece no debate
sobre institucionalização da participação
dos atores sociais na política externa é justamente no sentido de equilibrar a composição e de dar transparência às instâncias
decisórias. Isso seria um antídoto poderoso
contra possibilidades de privatização da
política externa. De modo que, por exemplo, entidades que representam grandes
grupos empresariais deliberem em uma
mesma instância decisória com atores sociais, organizações de trabalhadores, atores
governamentais e não governamentais, a
posição a ser apresentada pelo Brasil no
âmbito internacional.
POLÍTICA EXTERNA
a sociedade, o estado e a política externa
Conselho de política externa
Uma das sugestões presentes no debate
para lidar com os desafios de uma política
externa democrática é a criação de Conselhos, inspirada nos diversos já em funcionamento, inclusive em outras áreas temáticas.
Na sociedade, emerge salutar discussão
sobre um Conselho Nacional de Política
Externa (CONPEB), cujo formato está sendo
debatido. A instância contribuiria para a
definição de diretrizes dessa política pública.
Teria presença dos setores governamentais
específicos da política externa e de uma
pluralidade de organizações não governamentais, setores empresariais, movimentos
sociais, centros de pesquisa, fundações
partidárias, acadêmicos, entre outros.
A análise da literatura sobre o funcionamento dos atuais Conselhos e o registro
histórico dos que existiram no passado pode
ser útil para se avançar no debate, principalmente no que se refere à questão da separação da instância de coordenação, no plano
doméstico e da negociadora, no plano internacional. Em 1985, antes, portanto, da transição definitiva para a nova ordem democrática, o cientista político Oliveiros S. Ferreira propôs a criação de um “Conselho de
Política Internacional”, presidido pelo Itamaraty e composto pelos ministros da Fazenda e do Planejamento, pelo ministro-chefe do EMFA, pelo presidente do Senado
Federal e por um representante da oposição.
Os representantes da sociedade civil poderiam ser ouvidos. Ele identificou que dois
aspectos estratégicos da iniciativa eram o
acesso à informação classificada e a confiança presidencial. Ao Conselho caberia oferecer as opções; à Presidência da República,
escolhê-las. O papel principal, no entanto,
era acabar com os feudos administrativos
que geravam caos e confusão pela superposição de mandatos, interesses e iniciativas (Ferreira: 1985, 73). A Constituição de
1988 não criou um “Conselho de Política
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vol 23 Nº 2
Internacional”, mas criou o Conselho da
República e o de Defesa Nacional, tendo o
primeiro seis cidadãos entre seus membros
e o último com prerrogativas e composição
semelhante à proposta por Ferreiros. Criados
no contexto da Constituinte, ambos se mantêm sem relevância efetiva no cotidiano da
administração.
Desde 1988, diversos Conselhos foram
criados para servir de instância consultiva
ou participativa, muitos tendo como eixo
central a aproximação de parte da sociedade junto ao governo. Na estrutura do Ministério das Relações Exteriores, por exemplo, já existe uma instância. No Artigo 2º,
inciso VI do Decreto Nº 7304, de 22 de setembro de 2010, há formalmente um “Conselho de Política Externa.”3 Uma instância
interna do Itamaraty, voltada para “aconselhar as autoridades políticas envolvidas
pela formulação e execução da política
externa”, infelizmente inexiste informações
adequadas sobre suas ações. Provavelmente
não foi concretizado até o momento, apesar
da previsão legal.
Para os propósitos de nossa discussão,
convém citar o Conselho Consultivo do
Setor Privado (CONEX), no âmbito da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX). Sua
primeira reunião, em fevereiro de 2006, foi
mais uma iniciativa do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior
(MDIC) de oferecer uma lecture do que um
esforço para receber as opiniões e os interesses de parte da sociedade envolvida no tema
das negociações comerciais internacionais.
Isso não foi uma surpresa. Dentro do governo, não se tinha conhecimento atualizado
sobre o que ocorria em Genebra. As informações circuladas oficialmente entre os órgãos da área decorriam de resumos sistematizados pelo Itamaraty (que não participou
do encontro) – em alguns casos mais desatualizados e superficiais do que os boletins
especializados da área (como o WTO Reporter); o relato encaminhado para os membros
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artigos
da CONEX era a glosa desse resumo. A segunda reunião do CONEX foi realizada
somente em abril – mais de dois meses depois. Nela, foram apresentados mais “informativos” e a Rede Brasileira pela Integração
dos Povos (REBRIP) e a Central Única dos
Trabalhadores (CUT) apresentaram trabalhos sobre as negociações da Rodada Doha
da Organização Mundial do Comércio
(OMC). Não é possível identificar qualquer
impacto dessas iniciativas sobre a posição
brasileira nas negociações.4 O CONEX não
teve influência. O ponto que gostaríamos de
destacar desse caso e que pode ser interessante para reflexão sobre novas experiências
é a desvinculação da atuação do CONEX com
o processo decisório real. Isso não quer dizer
necessariamente que os atores sociais envolvidos foram excluídos; mas parte importante
de sua interação foi realizada em reuniões
informais com autoridades em Brasília, sem
que tal dinâmica fosse divulgada ou existisse
algum mecanismo de monitoramento para
identificar se suas demandas foram aceitas
pelo governo. A dinâmica de reuniões do
Grupo Técnico Informal (GTI), que contribuiu
para as posições do Brasil no G20 agrícola
durante uma parte da Rodada Doha, seguiu
perspectiva semelhante.
Não foi sempre assim. Até a Rodada
Uruguai (1986-1994) do GATT, atores não
estatais tinham assento cativo nas próprias
unidades negociadoras. Eles atuaram no
cotidiano, exercendo seu direito de voz
diretamente sobre o processo decisório e
monitorando se suas preferências eram ou
não levadas em conta. Já na Rodada Tóquio
(1973-1979), o Itamaraty tentou afastá-los
da Unidade de Negociação (a instância
responsável por coordenar a posição brasileira); apesar de ter fracassado nesse momento, o órgão alcançou seu objetivo na
Rodada Uruguai. Agora, no âmbito da
Rodada Doha (2001-atual), pelo CONEX,
optou-se pela fórmula de criar uma via paralela e “consultiva” ao processo decisório
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real. Aplacou-se, assim, o argumento que
esses atores estavam excluídos, mas sem
integrá-los no processo decisório.
O poder da informação
Na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, a criação de instâncias consultivas,
apesar de todas as boas intenções, geralmente implica a admissão da necessidade
de ter um ponto de apoio na sociedade, mas
sem que isso ocasione, necessariamente,
uma mudança da cultura burocrática ou
um comprometimento efetivo de levar em
consideração o exercício como elemento
essencial da formulação e implementação
de políticas públicas. Desse modo, a realidade do poder da Esplanada, em seus constrangimentos, em termos de cultura institucional, e nas possibilidades efetivas de
transições incrementais, deve ser levada em
consideração, já que mudanças mais profundas, em geral, só são viáveis em tempos
de turbulência e ruptura institucional, situação distante da atualidade.
O primeiro aspecto a ser considerado é
que o exercício deve ser voltado não para
a participação como um fim em si mesmo;
o objetivo deve ser a garantia de influência
de diversos atores da sociedade na inserção
internacional do país. A diferença não é
sutil. Desde a década de 1960, a literatura
especializada aponta como burocratas podem utilizar diversos mecanismos participativos para dar um verniz de legitimidade
às suas próprias preferências (Arnstein:
1969). Muitos dos exercícios conduzidos
pelo governo brasileiro, desde os anos 1990,
não são diferentes.
O que se depreende da análise de doze
unidades que coordenaram a posição brasileira em negociações comerciais multilaterais de 1946 a 2005 é que a letra fria da lei
não é suficiente para obstar essa realidade.
Nossa análise do acervo documental e de
POLÍTICA EXTERNA
a sociedade, o estado e a política externa
entrevistas conduzidas com decisores é a
repetida distância entre as prescrições formais sobre como o processo decisório deveria ocorrer e como ele, de fato, funciona.
A CAMEX é um exemplo. Criada, entre
outros motivos, para coordenar o processo
decisório da definição da posição do país,
sempre teve dificuldade em superar a centralidade do Itamaraty nessa tarefa.
A tentativa de separar a instância negociadora daquela de coordenação não funcionou adequadamente em outros momentos – como na década de 1960, quando se
criou o Conselho Nacional de Comércio
Exterior (CONCEX). Várias razões concorrem para as dificuldades. A que desejamos
salientar é o papel do conhecimento especializado e da informação. Dois dos fundamentos weberianos para justificar a forma
de autoridade amparada na burocracia são
a sua base legal e seu conhecimento especializado. Para Weber, um político poderia
até ter sucesso, no curto prazo, em fazer
com que uma burocracia seja guiada por
sua visão, mas no longo prazo isso estaria
fadado ao fracasso. O fundamento básico
da burocracia, portanto, está em proteger
seu controle sobre o conhecimento especializado como salvaguarda aos diletantes que
tentam invadir seu domínio (Weber: 1978,
223-226). A única forma de desafiar essa
estrutura é, portanto, atuar na base legal e
no conhecimento. A base legal já foi repetidamente mudada, sem resultados efetivos;
resta, agora trabalhar com o papel estratégico do conhecimento especializado, de
maneira a aumentar a possibilidade de convergir resultados com objetivos propostos.
O conhecimento especializado deve ser
visto, em nosso caso, em dois níveis. Primeiro, na formação técnica. De 1946 até a Rodada Tóquio, era comum a permanência de
representantes da sociedade civil,5 de outras
áreas do governo e até da Academia nas
delegações brasileiras. Muitos trabalharam
meses em Genebra. Ao retornarem ao Brasil,
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vol 23 Nº 2
sabiam exatamente que tipo contribuição era
mais efetiva para colaborar com a atuação
brasileira. Formaram, além do mais, redes
de relacionamentos com técnicos estrangeiros e forneciam aos seus órgãos no Brasil via
paralela de fontes de informações. Serviam,
além do mais, de colaboradores da diplomacia em seus respectivos órgãos. A diplomacia
se acostumara tanto com esse sistema que
as oportunidades em que ele não se concretizava gerava estranheza, como em 1968,
quando o embaixador George Maciel reclamou ao presidente da Confederação Nacional da Indústria que a ausência dos economistas da organização, em Genebra, “poderia dificultar o bom encaminhamento das
negociações”.6 Essa é uma situação distinta
da existente desde o início dos anos 1990.
Não obstante a existência de um posto
exclusivo em Genebra com mais de vinte
servidores dedicados a negociações comerciais multilaterais, é escassa a utilização de
atores da sociedade e até de servidores de
outros órgãos para atuar nessa instância –
mesmo existindo um Programa de Formação Complementar e Pesquisa em Comércio
Internacional voltado para interessados na
sociedade. A criação, em 2008, do cargo de
adido agrícola, em algumas Embaixadas do
Brasil, no exterior, tem potencial para representar modificação relativa nesse sentido, mas ainda é cedo para fazer um julgamento definitivo.7 Do mesmo modo, a recente demanda da Confederação Nacional
da Indústria (CNI) pela criação do cargo de
adido de indústria e comércio em Embaixadas do Brasil no exterior, segue perspectiva similar. Elas, contudo, são iniciativas
que não representam o conjunto de preferências da sociedade, mostram inclusive a
diferença na capacidade de organização e
influência entre os atores domésticos com
interesse em questões de política externa e
negociações internacionais.
Em Brasília, o Itamaraty tem o monopólio da informação dos postos do serviço
out/nov/dez 2014
artigos
exterior sobre o que se passa nas capitais e
em Genebra. Isso tem consequências para
o processo decisório. Primeiro, ao serem
solicitadas recomendações das áreas técnicas do governo, esses “pedidos de subsídios” por vezes chegam a órgãos não
atualizados sobre o que se passa no plano
externo – ou simplesmente não dispostos a
parar o seu cotidiano para respondê-los. A
segunda consequência é a ineficiência no
processo decisório – parte importante das
reuniões em Brasília geralmente é ocupada
com representantes do Itamaraty relatando
os últimos passos das negociações internacionais. A terceira é o fato de essa situação
dificultar o julgamento autônomo de outros
atores sobre a política das negociações e o
monitoramento sobre como o Itamaraty
executa as diretrizes formuladas no plano
doméstico.
Fatos, estatísticas, propostas, papéis de
trabalho, análises e notícias sobre as negociações em curso são essenciais para a
produtiva contribuição das áreas setoriais
do governo e da sociedade. A série telegráfica do Itamaraty referente às negociações
comerciais internacionais poderia ser distribuída em terminais de órgãos pertinentes. Essas informações também devem ser
compartilhadas, de forma mais aberta, com
atores não governamentais, que, inclusive,
têm cada vez mais acompanhado as questões de política externa. Destaque-se, nesse
âmbito, o trabalho da REBRIP na Rodada
Doha, apresentando propostas e avaliando
as posições oficias do governo. A Lei de
Acesso à Informação, sancionada em 18 de
novembro de 2011, pode ser um mecanismo
utilizado pela sociedade nesse processo. Mas
pode acabar como um remédio tardio de
monitoramento, pois se estará, novamente,
à mercê da discricionariedade estatal.
Além da questão da informação, como
os governos devem atuar para realmente
conduzir um arranjo participativo voltado
para a efetiva democratização do processo
178
decisório? Deve-se pensar com cautela na
questão. Em um arranjo adequado, mais
participantes trazem mais ideias e um perfil de interesses diversos, mas pode ser um
fardo para o processo decisório se não
conduzido de forma adequada. Deve-se
pensar no dilema de tamanho e foco; no
risco de vazamento de informação e na
pressão de tempo. Deve-se ser sincero com
os interessados em apresentar qual o propósito da iniciativa, as expectativas e as
regras. Deve-se dar o feedback adequado
sobre se e como o exercício foi utilizado no
processo decisório. Deve-se garantir que
todos tenham a oportunidade de expressar
suas opiniões; deve-se responder a todas as
perguntas da forma mais detalhada possível e fornecer a documentação solicitada.
O mais importante, no entanto, é o compromisso dos atores governamentais, enfrentando com espírito aberto quando suas
próprias preferências são criticadas e descartadas. E esse é um desafio difícil de ser
superado. Frequentemente os governos
utilizam tais exercícios somente como mecanismo legitimador de suas próprias
preferências – como um atento observador
afirmou, “O ministro [das Relações Exteriores] será tentado a usar sua criatura para
informar e convencer a sociedade, não
para consultá-la e ajustar o que precisa ser
ajustado”.8
O primeiro passo do governo ao tratar
uma agenda de negociação internacional
deve ser apresentar tal intento à sociedade
(Diário Oficial e outros canais) e, em linhas
gerais, indicar a agenda a ser confrontada,
abrindo canais para a interação. Esse tipo
de ação existe em outros países e em diversas políticas públicas no Brasil. Ela também
não é estranha na área comercial. Mesmo
no autoritário Estado Novo, as atas do Conselho Federal de Comércio Exterior chegaram a ser publicadas no Diário Oficial; na
preparação da Rodada Annecy do GATT
(1949), fizeram-se várias chamadas nos
POLÍTICA EXTERNA
a sociedade, o estado e a política externa
jornais da capital para a atuação de interessados nos trabalhos preparatórios. Posteriormente, a Confederação Nacional da
Indústria, a Confederação Nacional do Comércio e a Sociedade Rural Brasileira (antes
da criação da Confederação Nacional da
Agricultura) serviram de eixo condutor
para levar os desafios dessa agenda para
interessados em todo o Brasil, em uma
época em que o Estado tinha pouca capilaridade para realizar esse tipo de consulta.
Do ponto de vista do exercício participativo, deve-se garantir a ampla diversidade de opiniões e interesses do governo e da
sociedade. Isso é um desafio. Só no âmbito
do governo, há mais de vinte órgãos com
incidência regulatória na área do comércio
exterior; na sociedade, os pontos de vistas
são tão numerosos e diversos que seria temerário apresentar um número. Criar uma
instância geral com toda essa diversidade
pode ser um primeiro passo, mas pode não
ser suficiente para avançar em relação a
garantir maior influência da sociedade na
política externa. Uma saída engenhosa,
utilizada no passado, foi a formação de
grupos de trabalho permanentes e temáticos, como os da Unidade de Negociação,
que formulou a posição brasileira na Rodada
Tóquio (1973-1979).
Os atores engajados nessas atividades
não devem ser tratados como meros espectadores e ouvintes. Os recorrentes formatos
de seminários (para um número maior) ou
de reuniões de apresentação de resumos
(para grupos seletos) devem se voltar para
a resolução de problemas específicos. A
dispersão e a carência de problemas concretos para lidar pode gerar esvaziamento
das instâncias de participação da sociedade.
É somente dentro do próprio processo decisório, examinando demandas reais, que a
influência pode ser exercida de forma efetiva e rotinizada. É por intermédio dessa
via que a cultura de colaboração poderá
traduzir a participação em influência.
179
vol 23 Nº 2
E como evitar que tais instâncias sejam
capturadas por poderosos grupos de interesse? No passado, foram estruturados alguns arranjos que buscavam contornar tal
problema. Um foi a utilização de representantes por proxy. Assim, no final da década
de 1940, a Comissão Consultiva de Intercâmbio Comercial com o Exterior delegou ao
Ministério da Fazenda a responsabilidade
de representar os interesses dos consumidores, tendo por isso um voto a mais. Hoje, tal
via poderia ser utilizada por um representante do PROCON ou do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).
Outra via foi procurar na própria sociedade
instâncias que pudessem representar essa
maioria. Na década de 1960, no âmbito das
atividades do Conselho de Política Aduaneira (CPA), deu-se assento para um representante de sindicatos de trabalhadores. Até o
final da década de 1970, no entanto, os mais
ativos participantes da sociedade eram os
de confederações e federações da indústria,
do comércio e da agricultura. Em pouco
número, poderosos politicamente, bem capacitados e atuando por vários anos lado a
lado de atores governamentais nas negociações, eles conseguiram uma influência que
desde a Rodada Uruguai (1986-1994) não
consegue ser reproduzida.
Conclusão
O desafio da democratização não é uma
tarefa só do Estado. A sociedade tem um
papel essencial nessa transformação. Os decisores em Brasília não raro lidam com interessados desinformados, sem conhecimento
técnico adequado ou simplesmente defensores de causas inviáveis e setoriais. Para contornar essa situação, os atores da sociedade
com interesse em influenciar a inserção internacional do Brasil em negociações comerciais
internacionais devem continuar desenvolvendo capacidade técnica, construir redes de
out/nov/dez 2014
artigos
relacionamentos, saber como o subsistema da
política pública funciona (quem está envolvido, como um assunto é examinado, qual
informação é estratégica, como as decisões
são tomadas, qual o vocabulário utilizado)
e participar por longo tempo da arena decisória. A influência raramente é alcançada
com a interação episódica predominante
atualmente. Todo esse exercício deve ser
contínuo e cotidiano. A democratização
envolve necessariamente o constante diálogo e, também, de meios de monitoramento,
de forma que a sociedade saiba como suas
preferências estão sendo executadas. A tarefa, dessa maneira, está longe de ser concluída quando os negociadores se dirigem para
as reuniões internacionais.
As lições de outras arenas institucionais
demonstram que a cultura organizacional
da burocracia tem grande efeito sobre que
tipo de relacionamento observaremos. A
transição de árbitro para parceiro é algo que
não será alcançado apenas com molduras
formais. O maior desafio para o Itamaraty,
dessa forma, talvez seja dentro de si mesmo,
refletindo sobre a forma como seus servidores interagem com as demandas da sociedade. O essencial é não arrogar-se do
papel privilegiado de intérprete do interesse nacional, escondendo nessa crença a
possibilidade de descartar seletivamente as
vozes das ruas.
Outubro de 2014
Notas
1. Discurso proferido pelo ministro de Estado das Relações
Exteriores, Luiz Alberto Figueiredo Machado, na abertura dos “Diálogos sobre Política Externa” (Palácio Itamaraty, 26 de fevereiro de 2014). Disponível em: www.itamaraty.gov.br. Acesso em: 10 de maio de 2014.
2. Parte dessa pesquisa foi apresentada no encontro de
2014 da LASA. Haroldo Ramanzini Júnior and Rogério
de Souza Farias. Interest, Participation, Control and Influence: Democratization, Civil Society,Bbureaucratic
Conflicts and the Shaping of a Public Policy in Brazil.
Latin American Studies Association. Chicago, 2014. Disponível em: <http://www.academia.edu/7088888/Interest_participation_control_and_influence_democratization_civil_society_bureaucratic_conflicts_and_the_shaping_of_a_public_policy_in_Brazil._Prepared_for_delivery_at_the_2014_Congress_of_the_Latin_American_
Studies_Association_Chicago_IL_May_21_-_24_2014>.
Acesso: 31 de maio de 2014.
3. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2010/Decreto/D7304.htm acesso em 21/05/2014.
4. Com base na documentação classificada compartilhada
por um dos participantes das reuniões desse período.
5. Ainda que, quando se fala em sociedade civil durante
parte desse período, naturalmente não seja o mesmo
núcleo de atores a que se refere o conceito atualmente.
6. Telegrama de George Álvares Maciel para Thomás
Pompeu de Souza Brasil Netto. GATT. Lista III. Delegação
brasileira. Representantes da CNI. 24 de outubro de 1968,
660.(04) – outubro de 1968. AHI-BSB. Trata-se das
renegociações iniciadas com uma derrogação da Lista III
brasileira. Elas só seriam concluídas na década de 1970.
7. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2008/Decreto/D6464.htm
8. Matias Spektor. “Portas abertas?” Folha de S. Paulo, 10
de julho de 2013.
Bibliografia
ARNSTEIN, S. R. “A ladder of citizen participation.”
Journal of the American Institute of planners, v. 35, nº 4,
p. 216-24. 1969.
180
FERREIRA, O. S. “Política externa e liberdade de manobra!” Política e Estratégia, v. 3, nº 1, p. 70-95. 1985.
POLÍTICA EXTERNA
a sociedade, o estado e a política externa
Lima, M. R. Soares de e Milani, Carlos R. S. “Privatização ou democratização da Política Externa Brasileira?” Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/?/
Editoria/Internacional/Privatizacao-ou-democratizacao-da-Politica-Externa-Brasileira-/6/30632%3E. Acesso: 4 de
abril de 2014.
181
vol 23 Nº 2
PATRIOTA, A. de Aguiar. “Diplomacia e Democratização.”
Política Externa, vol. 22, nº 2, 2013.
WEBER, Max. Economy and Society: an Outline of Interpretive Sociology. Berkeley: University of California Press,
1978.
out/nov/dez 2014
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