JOSÉ EVANDRO PEREIRA DA SILVA
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA JULGAR OS
ACUSADOS DO MENSALÃO SEM PRERROGATIVA DE FORO
Monografia apresentada ao curso de
graduação em nome de José Evandro
Pereira da Silva da Universidade Católica
de Brasília, como requisito parcial para
obtenção do Título de Bacharel em Direito
Orientador: Joel Arruda de Souza
Brasília
2012
Monografia de autoria de José Evandro Pereira da Silva, intitulada
“COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA JULGAR OS
ACUSADOS DO MENSALÃO SEM PRERROGATIVA DE FORO” apresentada como
requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito da Universidade
Católica de Brasília, em
,defendida e aprovada pela banca examinadora
abaixo assinada.
__________________________________________________________
Prof. Joel Arruda de Souza
Orientador
Direito/Direito Constitucional – UCB
__________________________________________________________
Prof.
__________________________________________________________
Prof.
Brasília
2012
RESUMO
Referência: PEREIRA DA SILVA, José Evandro. Competência do Supremo
Tribunal Federal para julgar os acusados do mensalão sem prerrogativa de
foro. 2012. 67 Páginas. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Direito
– Universidade de Brasília, Brasília, 2012.
Estuda-se com a presente monografia os institutos do juiz natural e o
garantismo, bem como a competência do Supremo Tribunal Federal em matéria
penal para julgar aqueles com foro “privilegiado”, explica-se, também, a conexão e
continência como fenômenos atrativos à competência originária dos acusados do
“mensalão” (Ação Penal 470) que não a detém. Apresenta um panorama geral sobre
a supremacia dos tratados internacionais sobre direitos humanos no ordenamento
jurídico brasileiro, evidenciando que, como normas infraconstitucionais que são não
podem nunca ser perpassadas a aplicação de seus princípios expressos.
Reverencia ao status supralegal que estas Convenções carregam. Analisa o Pacto
de São José da Costa Rica e a imperativa ordem de aplicação do princípio do duplo
grau de jurisdição, devido processo legal e do juiz natural, focando-os como
garantias fundamentais que eles são. Examina a consequência da lesão ao princípio
duplo grau de jurisdição, para os acusados do “mensalão”, que não têm sua matéria
devidamente reexaminada por outro órgão julgador, verifica-se que só se
considerará juiz natural o órgão judiciário cujo poder de julgar derive de fontes
constitucionais. Enfoca que esta ilegalidade, por ser matéria de ordem pública pode
ser reconhecida a qualquer tempo, determinando o justo desmembramento deste
processo, garantindo a aplicação dos ínsitos princípios constitucionais, concertandoo, desta forma, o choque entre normas hierarquicamente diversas (Pacto de São
José da Costa Rica versus Código de Processo Penal).
Palavras-chave: Conexão e continência. “Mensalão”. Supremo Tribunal Federal.
ABSTRACT
He studied up to the present monograph the institutes of natural judge and
guaranteeism as well as the competence of the Supreme Court in criminal court to try
those "privileged", explained also the connection and continence phenomena as
attractive jurisdiction originally accused of the "monthly allowance" (Criminal Action
470) than holds. It presents an overview of the supremacy of international treaties on
human rights in the Brazilian legal system, showing that standards can’t pervade
infra principles expressed in these conventions, in reverence to the supralegal status
that they cary, as the two levels of jurisdiction . Analyzes the principle of the legal
process and of the natural judge, focusing on them as fundamental guarantees.
Demonstrates that a judge only will be considered natural or a competent autority the
judicial body that power derives from the constitutional sources. Examines the result
of injury to the principle of natural judge, demonstrating the process is invalid
because of the incompetence generated by the absolute disregard of constitutional
rules on jurisdiction. Analyzes the Súmula 704 of the Supremo Tribunal Federal, its
precedents and proposes limits to its application. Examines how this súmula has
been applied in the Superior Courts, noting that a rule merely procedural, as is the
connection and continence, should not have the power to ward off the natural judge
set by the Federal Constitution, as has been occurring with the indiscriminately
application of this command sumulado.
Keywords: Connection and continence. “Mensalão”. Supremo Tribunal Federal.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 6
2 JUIZ NATURAL ....................................................................................................... 8
2.1 BREVE HISTÓRICO ............................................................................................ 8
2.2 O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA ............. 8
2.3 NATUREZA GARANTISTA. DIREITO INDIVIDUAL. CLÁUSULA PÉTREA .... 13
3 COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL .................................... 17
3.1 PREVISÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ...................................... 17
3.2 FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO .................................................... 20
3.2.1 DIFERENÇA ENTRE FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E FORO PRIVILEGIADO
.................................................................................................................................. 22
3.3 COMPETÊNCIA POR CONEXÃO OU CONTINÊNCIA .................................... 22
3.3.1 EFEITOS DA CONEXÃO E CONTINÊNCIA ............................................................... 25
3.3.2 ESPÉCIES DE CONEXÃO ..................................................................................... 26
3.3.3 DA CONTINÊNCIA ............................................................................................... 28
3.3.4 COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA , EM AÇÃO
PENAL , JULGAR CORRÉUS EM FACE DA CONEXÃO E CONTINÊNCIA ................................. 29
4 PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA ........................................................... 39
4.1 NATUREZA JURÍDICA ...................................................................................... 39
4.1.1 TRATADO INTERNACIONAL E SUA APLICAÇÃO ....................................... 46
4.2 GARANTIA DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO ............................................. 55
4.2.1 CASO ‘MENSALÃO ” ............................................................................................. 59
5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 64
6. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA..........................................................................66
6
1 INTRODUÇÃO
O objeto do presente estudo visa, considerando os princípios constitucionais
do juiz natural e, de forma implícita, o do duplo grau de jurisdição, a luz, também, da
Convenção Americana de Direitos Humanos, defender a inconstitucionalidade do
julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, dos corréus do caso “mensalão”, Ação
Penal nº 470, que não detém foro por prerrogativa de função.
No capítulo a ser destinado sobre o princípio do juiz natural, este será
abordado em sua origem, momento histórico de criação e evolução em outros países
ao longo do tempo. Será visto, também, à luz da Constituição Federal de 1988, a
aplicação de tal princípio, seu desenvolvimento, e, outrossim, legitimado pela
corrente garantista, sua proteção à dignidade humana.
Na segunda abordagem temática do presente trabalho esmiuçaremos a
competência originária do Supremo Tribunal Federal para, em matéria penal,
processar e julgar aqueles que detêm prerrogativa de foro. Estabelecerá a diferença
entre as terminologias prerrogativa de função e foro privilegiado, estudando também,
como o fenômeno da conexão e continência, altera a competência originária dos
corréus sem prerrogativa de foro para um julgamento único, sem a garantia, para
tanto, de usufruir do seu direito ao duplo grau de jurisdição.
No último capítulo, destinado à análise do Pacto de San José da Costa Rica,
dará se enfoque nas discussões historicamente travadas acerca da natureza jurídica
dos tratados internacionais, a evolução destes na hierarquia normativa brasileira até
atingirem, os que versam sobre direito humanos, a atual posição hierárquica de
norma supralegal.
Após esta vitória hierárquica piramidal, demonstrar-se-á que o princípio do
duplo grau de jurisdição, expressamente contido no Pacto, implicitamente dessumido
na Carta Magna de 1988, visa assegurar a máxima proteção dos direitos e garantias
fundamentais do cidadão, impondo-se, sempre, contra quaisquer procedimentos
legais atrativos de competência.
Assim, na parte conclusiva desta monografia, asseverar-se-á o imperativo, em
razão dos fundamentos construídos, pelo necessário, para não dizer Constitucional
desmembramento do julgamento dos corréus da Ação Penal 470, vulgo “mensalão”,
privilegiando o respeito à ordem constitucionalmente estabelecida aos Tratados
7
Internacionais de Direitos Humanos,
e também a correta aplicação de seus
princípios frente a gritante injustiça praticada contra estes infortunados.
8
2 JUIZ NATURAL
2.1 BREVE HISTÓRICO
Propedeuticamente, o princípio do juiz natural, em sua origem, desenvolveuse na ordem jurídica anglossaxônica e se derramou, posteriormente, nos
constitucionalismos norteamericano e francês, identificando-se nos dias de hoje,
pura e simplesmente com a proibição dos denominados tribunais de exceção.
Nos dizeres dos brilhantes doutrinadores Magalhães Gomes Filho, Scarance
Fernandes e Ada Pelegrini Grinover acerca do nascimento do juiz natural e sua
ramificação:
A competência territorial, erigida em princípio constitucional, é a nota
original das Cartas de Direitos americanas do Séc. XVIII, confluindo na
Emenda VI, de 1971, à Constituição Federal de 1787, que proclama: “Em
todos os processos criminais o acusado terá direito a julgamento pronto e
público por um júri imparcial do Estado e distrito onde o crime tiver sido
1
cometido, distrito previamente determinado por lei” .
Entretanto, como no caso da França, o princípio em debate fora alocado
apenas em termos abstratos, sem objetivismo em sua aplicação, satisfazendo, os
tribunais e a legislação francesa em uma única garantia do juiz natural, a proibição
de tribunais de exceção.
Em contrapartida os outros sistemas constitucionais, no particular o da
Bélgica, Espanha, Alemanha e Portugal, espanca a proibição de justiças
especializadas, mantendo o princípio do juiz natural em sua dúplice garantia: a da
vedação de juízos extraordinários e a da proibição da derrogação de competência.
2.2 O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS
O princípio do Juiz Natural, manteve-se previsto em praticamente todas as
constituições brasileiras, com exceção da constituição de 1937. Vejamos:
1
GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades do processo penal / Ada Peregrine Grinover, Antônio Magalhães
Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes.12. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
p. 42
9
Já na primeira Constituição em 1824, veio contemplado da seguinte forma:
“Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos
Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a
propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira
seguinte.
(...)
XI. Ninguém será sentenciado, senão pela Autoridade competente, por
virtude de Lei anterior, e na forma por ela prescrita;
(...)
XVII. À exceção das causas, que por sua natureza pertencem a juízos
particulares, na conformidade das leis, não haverá foro privilegiado, nem
2
comissões especiais nas causas cíveis, ou crimes.”
A Constituição de 1891 previa da seguinte forma:
“Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança
individual e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
§ 15 - Ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente, em
virtude de lei anterior e na forma por ela regulada.
(...)
§ 23 - À exceção das causas que, por sua natureza, pertencem a Juízos
3
especiais, não haverá foro privilegiado.”
Constituição de 1934:
Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à
subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
25) Não haverá foro privilegiado nem Tribunais de exceção; admitem-se,
porém, Juízos especiais em razão da natureza das causas;
26) Ninguém será processado, nem sentenciado senão pela autoridade
4
competente, em virtude de lei anterior ao fato, e na forma por ela prescrita;
Constituição de 1946:
Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
2
3
4
Art. 179, inciso XI, XVII, da Constituição Federal de 1824.
Art. 72, § 13, §23, da Constituição Federal de 1891.
Art. 113, 25 e 26, da Constituição Federal de 1934
10
(...)
§ 26 - Não haverá foro privilegiado nem Juízes e Tribunais de exceção;
§ 27 - Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade
5
competente e na forma de lei anterior;
Constituição de 1967:
Art 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
§ 15 - A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela
Inerentes. Não haverá foro privilegiado nem Tribunais de exceção.
(...)
Emenda constitucional de 1969:
(...)
Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, à segurança e à propriedade, nos têrmos seguintes:
(...)
§ 15. A lei assegurará ao acusados ampla defesa, com os recursos a ela
6
inerentes. Não haverá fôro privilegiado nem tribunais de exceção.
E por fim, previsto no art. 5º, incisos XXXVII e LIII da Constituição Federal de
1988, visa garantir basicamente a imparcialidade e segurança jurídica contra
possíveis arbitrariedades impostas pelo Estado. Princípio taxativo na Constituição
Federal com a seguinte redação:
Art. 5º
(...)
XXXVII – Não haverá juízo ou tribunal de exceção;
(...)
LIII – Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade
competente;
Dessarte, pode-se entender que, juiz natural é aquele integrado no Poder
Judiciário, com garantias institucionais e pessoais previstas na Constitucional
5
Art. 1441, §25 e §27, da Constituição Federal de 1946.
Art. 150, § 15, da Constituição Federal de 1967, alterado pela Emenda constitucional de 1969. Art.
153, §15.
6
11
Federal garantindo que cada cidadão tem o direito de saber antecipadamente por
qual juízo será processado e julgado, caso venha a cometer algum delito. Entendese como princípio básico do juiz natural como um juiz previamente estabelecido.
Nos dizeres dos anteriormente citados doutrinadores:
A expressão constitucional do art. 5º inciso LIII, (“Ninguém será processado
nem sentenciado senão pela autoridade competente”), deve ser lida,
portanto, como garantia do juízo constitucionalmente competente para
processar e julgar. Não será juiz natural, por isso, o juiz constitucionalmente
incompetente e o processo por ele instruído e julgado deverá ser tido como
7
inexistente .
Juiz natural é assim, aquele previamente conhecido, segundo regras objetivas
de competência estabelecidas anteriormente à infração penal, investido de garantias
que lhe assegurem absoluta independência e imparcialidade. Eugênio Pacelli de
Oliveira explica que:
“(...) a subtração ao juiz cuja competência seja prevista na Constituição, é
dizer, o seu afastamento por quaisquer critérios que não constituam
exceção de natureza constitucional, configurará sempre violação à regra do
juiz natural, seja como instituição do juiz ou tribunal de exceção, maculandose a impessoalidade que devem imperar na distribuição de jurisdição, seja
8
como inadequação do serviço estatal prestado” .
Esse foi, igualmente, o entendimento do Min. Marco Aurélio, em julgamento
cujo pronunciamento destaca-se o seguinte trecho:
“A competência do Supremo é de direito estrito e está prevista em diploma
de envergadura maior - a Constituição Federal. Normas instrumentais
comuns não acarretam o aditamento a essa mesma competência, a ponto
de apanhar situações concretas em que envolvido quem não detém a
prerrogativa de foro. Aliás, quanto à prerrogativa de foro, vejo-a como uma
exceção e, por isso mesmo, interpreto as normas que a revelam de forma
estrita.
Há mais, verifica-se o envolvimento de cidadãos que teriam,
constitucionalmente, direito a certos juízos naturais. E a atração do
processo para esta Corte, sem norma constitucional que a preveja, acaba
por ferir de morte - é o meu convencimento - o princípio do juiz natural, o
princípio do devido processo legal, até porque ocorrerá julgamento em
penada única, aspecto negativo da própria prerrogativa de foro, quando
normalmente existe a possibilidade de revisão de possível decreto
condenatório. O Supremo também pode errar quer na arte de proceder,
9
quer na de julgar e, decidindo, não há a quem recorrer.
7
GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades do processo penal / Ada Peregrine Grinover, Antônio Magalhães
Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
p. 44.
a
8
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 254-255.
9
Inq 2.462, Rel. Min. Cezar Peluso.
12
O princípio em análise veda o tribunal de exceção que é a criação de um
órgão jurisdicional após o cometimento do ato litigioso para julgar este fato,
configurando assim a sua imparcialidade. Vejamos o posicionamento de Alexandre
de Morais a respeito do Juiz Natural:
O referido princípio deve ser interpretado em sua plenitude, de forma a
proibir-se, não só a criação e tribunais ou juízos de exceção, mas também
de respeito absoluto às regras objetivas de determinação de competência,
para que não seja afetada a independência e imparcialidade do órgão
10
julgador .
Diversamente do que ocorre com a competência de foro, que não é
constitucionalmente atribuída, o vício, no caso de não respeitado o princípio do juiz
natural, poderá levar à nulidade de qualquer ato judicial, mas não sua inexistência,
emanado de um juízo ou tribunal que houver sido instituído após a prática de
determinados
fatos
criminosos,
especificamente
para
processar
e
julgar
determinadas pessoas.
Faz-se mister esclarecer que no ordenamento jurídico brasileiro, a proibição
da constituição de tribunais de exceção não significa impedimento à criação de
justiça especializada ou de vara especializada, já que, nesse caso, apenas são
reservados a determinados órgãos, inseridos na estrutura judiciária fixada na própria
Constituição, o julgamento de matérias específicas.
Coadunado com tal pensamento, Marcelo Novelino ensina que:
A criação de varas especializadas, a competência determinada por
prerrogativa de função, a instituição de câmaras de férias em tribunais, o
julgamento proferido por órgão colegiado composto por juízes convocados e
as hipóteses de desaforamento previstas no Código de Processo Penal não
caracterizam uma ofensa ao princípio do juiz natural, tendo em vista que em
11
todas as situações as regras são gerais, abstrata e impessoais .
Assim, concluímos que além de proibir o juízo ou tribunal de exceção o
princípio do Juiz Natural tem como finalidade garantir fundamentalmente o
julgamento por órgão investido de jurisdição com todas as garantias institucionais e
pessoais previstas na Constituição Federal.
Em síntese o princípio do juiz natural, estabelece que só podem exercer
jurisdição os órgãos instituídos pela Constituição Federal, fonte primária do juiz
natural; ninguém poderá ser processado e julgado por órgão jurisdicional criado
10
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p.75.
NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro. Forense: São Paulo, Método, 2011. p.
504
11
13
após o fato delituoso e que entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem
taxativa de competência que impede qualquer discricionariedade.
2.3 NATUREZA GARANTISTA. DIREITO INDIVIDUAL. CLÁUSULA PÉTREA
No nosso atual Estado democrático de direito, a eficácia concreta dos direitos
fundamentais depende de um mecanismo que permita a sua garantia frente a tutela
jurisdicional efetiva, isso porque, sem ela, o possuidor do direito não disporá desta
necessária proteção do Estado ao seu pleno gozo.
A efetiva tutela jurisdicional não se dessume-se apenas a uma garantia, mas,
ela própria, também é um direito fundamental, sendo que sua irrestrita eficácia deve
ser assegurada, em reverência o mor princípio, qual seja da dignidade da pessoa
humana.
No expecto do Direito Processual procura-se normativizar o exercício da
jurisdição através de princípios e regras que conferem ao processo a mais ampla
efetividade, o maior alcance prático e o menor custo possível na proteção concreta
dos direitos dos cidadãos.
Mas, tudo isso não significa que os fins justifiquem os meios. Veja que, como
toda relação jurídica plurissubjetiva, complexa e dinâmica, o processo em si mesmo
impende moldar-se e desenvolver-se com absoluto respeito ao primado da dignidade
da pessoa humana, principalmente às partes deste processo, de tal forma que a
justiça do seu resultado se coloque, antes de tudo, assegurada na implementação
de regras mais propícias à ampla e equilibrada participação dos interessados, bem
como a isento e adequado conhecimento do juiz, somando, também, a verificação
da verdade objetiva: um meio justo para um fim justo.
Na nossa Carta Magna, o garantismo do processo humanizado, alicerça-se
prioritariamente nos incisos XXXV, LIV e LV do artigo 5º, onde firmam as garantias
da inafastabilidade da tutela jurisdicional, o devido processo legal, o contraditório e a
ampla defesa, sem esquecermos nos já citados princípios gerais da administração
pública, bem como, também, no princípio da isonomia, no da fundamentação das
decisões, dentre outros expressamente contidos em nossa Constituição Federal.
Muitos doutrinadores entendem que a garantia revela em seu conteúdo a
proteção do princípio da legalidade, com a nítida finalidade de, por meio dele,
assegurar a independência no dia a dia da função jurisdicional. A vigência deste se
14
condicionaria pela atuação do legislador na elaboração das regras legais de
competência. O que era antes como fiança da jurisdição penal, hoje alcança todas
as espécies de jurisdição.
Assim, a garantia do juiz natural tem por escopo primário garantir a igualdade
de acesso à justiça de todos os cidadãos e, também, a paridade de tratamento. Veja
que, o art. 14, § 1º, do Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas
proclama:
Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça.
Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas
garantias por um tribunal competente, independente e imparcial,
estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal
formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de
caráter civil. A imprensa e o público poderão ser excluídos de parte ou da
totalidade de um julgamento, que por motivo de moral pública, de ordem
pública ou de segurança nacional em uma sociedade democrática, quer
quando o interesse da vida privada das partes o exija, quer na medida em
que isso seja estritamente necessário na opinião da justiça, em
circunstâncias específicas, nas quais a publicidade venha a prejudicar os
interesses da justiça; entretanto, qualquer sentença proferida em matéria
penal ou civil deverá tornar-se pública, a menos que o interesse de menores
exija procedimento oposto, ou o processo diga respeito a controvérsia
12
matrimoniais ou á tutela de menores .
A luz da determinação dessa igualdade, se no mesmo lugar coabitarem dois
ou mais órgãos jurisdicionais concorrentemente competentes para as mesmas
causas, essa escolha deve-se impor por critério absolutamente objetivo e impessoal,
geral, aplicável a qualquer outro caso idêntico, não podendo resultar do arbítrio nem
de qualquer dos jurisdicionados, nem de qualquer dos juízes ou de outra autoridade
judiciária, administrativa ou legislativa.
O Princípio do juiz natural é segurança na aplicação típica às regras de
competência absoluta, não podendo coexistir dois ou mais juízos competentes para
a mesma causa, entre as quais qualquer sujeito possa exercer um direito de
escolha.
A segurança na predeterminação legal do órgão e do seu ente é, pois,
acepção dúplice: objetivo ou orgânico e subjetivo ou pessoal. Entretanto, não basta
apenas que o órgão esteja precitado na lei, com anterioridade e generalidade, e um
muito mais, a pessoa do juiz que exercerá a jurisdição do órgão deve nele ter sido
investida através do procedimento legalmente previsto, particularizando pela
12
Direitos civis e políticos das Nações Unidas, disponível em
http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_dir_politicos.htm>. Acessado em 01/09/2012.
15
utilização do critério de escolha impreterivelmente impessoal, utilizável a todos os
casos idênticos.
No voto do douto Ministro Marco Aurélio, no julgamento da famigerada Ação
Penal 470 – caso mensalão – dispõe, preservando o juiz natural frente a atração dos
corréus para o julgamento no Supremo Tribunal Federal daqueles que não têm foro
por prerrogativa de função, que:
Cumpre salientar, mais, que é inerente à cidadania o princípio do juiz
natural. Os acusados não detentores de tal prerrogativa têm o direito ao
devido processo legal e este há de fazer-se presente com a atuação da
primeira instância e a recorribilidade cabível. O cidadão tem o direito de
saber quem o acusará em nome do Estado e quem, também em nome
deste, o julgará, premissa conducente à existência das duas figuras, a do
promotor natural e a do juiz natural, definidas, sob o ângulo da
individualização, pelo arcabouço normativo. Não me impressiona a
argumentação concernente à possibilidade de decisões conflitantes em
relação a corréus, pois estas são próprias ao sistema e podem ser
corrigidas, podem ser afastadas, mediante o manejo do sistema recursal
previsto no ordenamento jurídico.
[...]
Por tais razões – salientando a necessidade de este Tribunal mostrar- se
rigoroso com a preservação de princípios, porquanto, em Direito, o meio
justifica o fim, mas não este aquele, principalmente quando em jogo o juiz
natural, ou seja, aquele adrede constituído para julgamento da ação –,
acolho a questão de ordem suscitada para determinar o desmembramento
da Ação Penal no 470/MG em relação aos réus não detentores da
prerrogativa de foro, observando-se o aproveitamento dos atos processuais
até aqui realizados. Vale dizer, o processo irá à primeira instância
13
aparelhado para apreciação.
A ação de determinar como critério incidente antes dos fatos, ou antes de que
se torne evidente a perspectiva de sua apreciação judicial, ou antes do início do
próprio processo, não é um dogma absoluto, pois a racionalização do serviço
judiciário e a eficácia da prestação jurisdicional podem exigir alterações na
competência.
O primordial, a luz do garantismo, é de que essas modificações obedeçam à
reserva de lei e sejam procedidas por critérios absolutamente objetivos e gerais, o
que gera a segurança de que não tiveram por finalidade subtrair a causa de um juiz
imparcial, mas seguem submetendo-a às regras gerais aplicáveis a todos os
cidadãos em igualdade de condições.
Ainda que o primado da legalidade requeira a atuação de todos os órgãos do
Estado, o juiz natural ou juiz legal, dentro dos direitos e garantias fundamentais do
13
Voto Min. Marco Aurélio - AP 470.< http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20120806-09.pdf>.
Acesssado em 15/09/2012
16
processo, somente se aplica ao juízo previamente definido, e não ao Ministério
Público ou aos serventuários. Vejamos:
A chamada garantia do promotor natural é, no máximo, uma peculiaridade
do Direito brasileiro, e não uma garantia fundamental do processo imposta
pela dignidade humana do réu. Não existe o direito fundamental do acusado
a um determinado acusador. A impessoalidade do Estado impõe paridade
de tratamento, mas não vinculação do exercício da função pública a um
determinado órgão ou a um determinado agente. A paridade de tratamento
é que pode ficar comprometida pelo promotor natural, sem falar no interesse
público que pode vir a ser sacrificado pela conduta pessoal deste ou
daquele representante do Ministério Público. Trata-se de um extremismo
autoritário que, a pretexto de subtrair o interesse público do arbítrio do
14
Procurador-Geral, submete-o ao arbítrio do promotor natural .
A especialização de competências, até mesmo em benefício de órgãos de
outros Poderes, como ocorre com o Senado no julgamento de crimes de
responsabilidade do Presidente da República, também não viola a garantia do juiz
natural. O que se opõe ao juiz natural é o juiz de exceção, criado para julgar
determinadas situações, casos ou fatos particulares.
14
V.em Firly Nascimento Filho, “Princípios Constitucionais do Direito Processual Civil, in Os Princípios da
Constituição de 1988, obra coletiva comemorativa dos 60 anos da PUC-Rio, ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro,
2001, pág.320, várias decisões do Superior Tribunal de Justiça, que repudiaram o princípio (HC 1.669/GO, HC
12.616/MG, ROMS 745/RJ, RESP 11.722/SP, RESP 2.123/ES e RESP 9.132/AC); em Nelson Nery Junior,
ob.cit., págs. 122/126, a defesa do princípio como inerente ao Estado de Direito, citando acórdão do Supremo
Tribunal Federal que o acolheu (HC 67.759).
17
3 COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A competência do STF está prevista na Constituição Federal como: originária
com fulcro no art. 102, I, “a” a “r”; recursal ordinária prevista no art. 102, II e
recursal extraordinária com base no art. 102, III.
A competência originária ocorre quando o STF é acionado diretamente
através de ações que lhe cabe processar e julgar. Essa competência elenca a
função precípua do STF que é realizar o controle de constitucionalidade do Direito
Brasileiro, ou seja, é competência exclusiva do STF o julgamento de ações diretas
de
inconstitucionalidade
por
omissão
e
as
ações
declaratórias
de
constitucionalidade.
3.1 PREVISÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
A discussão na Constituinte sobre a instituição de uma Corte Constitucional,
que deveria ocupar-se, fundamentadamente, do controle de constitucionalidade,
acabou por permitir que o Supremo Tribunal Federal não só mantivesse sua
competência tradicional, com algumas restrições, como, também, adquirir-se novas
e significantes contribuições.
A Constituição de 1988 ampliou significativamente a competência originária
do Supremo Tribunal Federal especialmente no que concerne ao controle de
constitucionalidade de leis e atos normativos e ao controle da omissão
inconstitucional.
A atual Magna Carta (CF de 1988), vale-se de diferentes critérios para fixar a
competência dos órgãos jurisdicionais:
“compete ao Supremo Tribunal Federal, o julgamento das infrações
cometidas pelo Presidente da República, vice-presidente, deputados
federais, senadores, seus próprios ministros, procurador-geral da República,
advogado-geral da União, ministros de Estado, comandantes das Forças
Armadas, ministros dos Tribunais superiores, membros do Tribunal de
15
Contas da União, chefes de missão diplomática de caráter permanente”
“compete ao Superior Tribunal de Justiça, o julgamento das infrações
cometidas pelos governadores dos Estados e Distrito Federal,
desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito
Federal, membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito
Federal, membros do Tribunal Regional Federal, membros dos Tribunais
15
Art. 102, inciso I, alíneas "b" e "c" da CF/8
18
Regionais Eleitorais do Trabalho, membros dos Conselhos ou Tribunais de
Contas dos Municípios, membros do Ministério Público da União que oficiem
16
perante os Tribunais”;
compete ao Superior Tribunal Militar, o julgamento de crimes militares, e
17
oficiais generais das Forças Armadas”;
“compete aos Tribunais Regionais Federais o julgamento de infrações
cometidas por juízes federais, juízes do Trabalho, juízes auditores da
Justiça Militar, membros do Ministério Público Federal que oficiem em
18
Primeira Instância”;
“compete ao Tribunais Regionais Eleitorais o julgamento nos crimes
19
eleitorais e a eles conexos, juízes e promotores de justiça eleitorais”;
“compete aos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal o
julgamento de prefeitos, juízes estaduais, membros do Ministério Publico
20
Estadual. ”.
Veja que, no Agravo Regimental nº 1.738, de relatoria do ministro Celso de
Mello, ficou consignado que o princípio da reserva constitucional de competência
originária e, assim, toda a atribuição do Supremo Tribunal Federal está explicitada,
taxativamente, no art. 102, I, da CF/8821.
A competência do STF – cujos fundamentos repousam na CR – submete-se
a regime de direito estrito. A competência originária do STF, por qualificarse como um complexo de atribuições jurisdicionais de extração
essencialmente constitucional – e ante o regime de direito estrito a que se
acha submetida –, não comporta a possibilidade de ser estendida a
situações que extravasem os limites fixados, em numerus clausus, pelo rol
exaustivo inscrito no art. 102, I, da CR. Precedentes. O regime de direito
estrito, a que se submete a definição dessa competência institucional, tem
levado o STF, por efeito da taxatividade do rol constante da Carta Política, a
afastar, do âmbito de suas atribuições jurisdicionais originárias, o processo
e o julgamento de causas de natureza civil que não se acham inscritas no
texto constitucional (ações populares, ações civis públicas, ações
cautelares, ações ordinárias, ações declaratórias e medidas cautelares),
mesmo que instauradas contra o presidente da República ou contra
qualquer das autoridades, que, em matéria penal (CF, art. 102, I, b e c),
dispõem de prerrogativa de foro perante a Corte Suprema ou que, em sede
de mandado de segurança, estão sujeitas à jurisdição imediata do Tribunal
22
(CF, art. 102, I, d).
A Competência originária para o exercício do controle concentrado, e como
órgão de cúpula do Poder Originário, cabe originariamente ao STF o julgamento das
mais altas autoridades da República.
No que cerne as infrações penais comuns, serão julgados pelo STF o
presidente e o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios
16
Art. 105, inciso I, alínea "a" da CF/88
Art. 6º, inciso I, alínea "a", da Lei 8.457/92
18
Art. 108, inciso I, da CF/88
19
Art. 29, inciso I, alínea "d" da Lei 4.737/65
20
Art. 29, inciso X; art. 96, inciso III da CF/88
21
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Saraiva, 2011.
22
Precedentes. Pet 1.738-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 1º-9-1999, Plenário, DJ de
1º-10-1999.
17
19
ministros e o Procurador-Geral da República (CF, art. 102, I, b). Assim, alude o
ilustre doutrinador Marcelo novelinho.
Na linguagem constitucional, crime comum é utilizado em contraposição aos
impropriamente chamados crimes de responsabilidade, cuja sanção é
política. Por conseguinte, o termo abrange todas as modalidades de
infrações penais, inclusive os delitos eleitorais e as contravenções. Em
razão da especialidade deste dispositivo, a norma que garante a instituição
do júri (CF, art. 5º, XXXVIII) não se aplica às autoridades com prerrogativa
23
de foro perante o STF.
E continua:
Nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os
Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da
Aeronáutica, ressalvada a competência do Senado no caso de crime de
responsabilidade ser conexo com o praticado pelo Presidente da República,
os membros dos Tribunais Superiores, do Tribunal de Conta da União e os
24
chefes de missão Diplomática de caráter permanente (CF, art. 102, I, “c”).
Em relação às causas cíveis, por efeito da taxatividade do rol consagrado na
Constituição Federal e pelo regime de direito estrito a que se submete a definição da
competência institucional do STF, impõe-se-lhes o afastamento do âmbito das
atribuições jurisdicionais originárias de processo e julgamento. Desta forma, a
prerrogativa de foro de que dispõem algumas Autoridades nas infrações penais
comuns e nos crimes de responsabilidade, não se estende a ações populares, cíveis
cautelares, dentre outras..
O Supremo Tribunal Federal possui orientação firmada no sentido de que
inexiste foro por prerrogativa de função nas ações de improbidade administrativa.
Não obstante, o Tribunal entendeu ser de sua competência o julgamento quando
essas ações forem ajuizadas contra seus próprios membros, sob o fundamento de
que submetê-los a julgamento perante um juiz de 1º grau quebraria a sistemática
adotada pela Constituição em relação ao judiciário.
Ainda em relação ao tema, o Supremo adotou o entendimento de que a
constituição não admite a concorrência entre dois regimentos de responsabilidade
político-administrativa para os agentes políticos.
23
NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro. Forense: São Paulo, METODO,
2011.
24
NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro. Forense: São Paulo, METODO,
2011.
20
Assim, no que tange ao aos crimes com competência determinada com base
no foro por prerrogativa de função, cumpre, ainda, salientar várias questões que
serão relacionadas mais adiante.
3.2 FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
Pode-se conceituar prerrogativa de foro como um mecanismo jurídico
designado para viabilizar o processo e julgamento, de forma originária, de
determinadas pessoas (investidas de relevantes cargos públicos) acusadas pela
prática de crimes penais comuns ou mesmo de responsabilidade, por tribunal, de
segunda instância, ou superior.
Segundo as palavras do emérito professor Renato Brasileiro, conceitua-se o
foro por prerrogativa de função:
Em face da relevância das funções desempenhadas por certos agentes, a
Constituição Federal, as Constituições Estaduais e a legislação
infraconstitucional lhes conferem o direito de serem julgados por Tribunais.
25
Cuida-se da denominada competência ratione funcionae
Essa jurisdição especial, muito embora seja criticada por dar privilégios a
entes políticos (ou até mesmo por não ser nenhum privilégio, em se tratando de
julgamento em última instância), não visa alocá-los acima dos cidadãos comuns, e
sim, tem como finalidade, conceder uma maior segurança aos julgamentos de
pessoas investidas de cargos de maior relevância.
Coadunado com o pensamento supra, é o entendimento do Ilustre
processualista penal Tourinho Filho, observe:
Há pessoas que exercem cargos de especial relevância no Estado, e em
atenção a esses cargos ou funções que exercem no cenário político-jurídico
da nossa Pátria gozam elas de foro especial, isto é, não serão processados
e julgadas como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas pelos órgãos
26
superiores, de instâncias mais elevada .
Para alguns, essa modalidade de competência, se dá em razão da pessoa,
ratione personae, levando-se em consideração a característica específica das partes
envolvidas no processo.
25
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol. I, 2. ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012. p.
663.
26
TORINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, 15. ed. rev. e de acordo com lei
12.403/2011. São Paulo, Saraiva, 2012. p. 320.
21
Fala-se de competência ratione personae quando determinadas pessoas,
“em razão da alta relevância da função que desempenham, têm o direito ao
27
julgamento por um órgão de maior graduação.”
Mas, para outros, sendo a maioria esmagadora, e, também, o pensamento
dominante na doutrina, que esta competência não é em razão da pessoa do
acusado e sim com relação a função relevante que este agente ocupa na
administração.
Neste sentido ensina-nos Renato Brasileiro:
Essa jurisdição especial assegurada a certas funções públicas tem como
matriz o interesse maior da sociedade de que aqueles que ocupam certos
cargos possam exercê-los em sua plenitude, com alto grau de autonomia e
independência, a partir da convicção de que seus atos, se eventualmente
questionados, serão julgados de forma imparcial por um Tribunal. Como se
percebe, a competência por prerrogativa de função é estabelecida não em
virtude da pessoa que exerce determinada função, mas sim como
instrumento que visa a resguardar a função exercida pelo agente. Daí o
motivo pelo qual preferimos utilizar a expressão ratione funcionae em
28
detrimento de ratione personae .
Assevera-se, que essa condição especial de processamento é concedido ao
agente público, à pessoa, entretanto em nítida atenção à importância ou relevância
do cargo ou função que exerça.
Chama-nos atenção Tourinho Filho de que:
(...) a competência funcional originária ratione personae vel muneris é
exercida em uma única instância. Não existe para ela o duplo grau de
jurisdição. Embora se presuma o acerto das decisões dos órgãos
superiores, visto que colegiados, o ideal seria, e ainda o acalentamos,
atuassem os Tribunais, no processo e julgamento das pessoas
subordinadas às suas jurisdições, pelas suas Câmaras ou Turmas, isto é,
pelos seus órgãos fracionários, funcionando o plenário como órgão de 2º
29
grau .
A especialidade que nos trás o foro por prerrogativa de função em
contraponto com princípios sensíveis da Constituição Federal , a exemplo o da
isonomia e do juiz natural, possuindo uma ratio própria de existir, específica,
justificável, que transforma o termo privilégio, no sentido pejorativo da palavra, para
prerrogativa essencial ao bom exercício da função pública.
27
TÁVORA, Nestor et al. Curso de Direito Processual Penal. 3. ed. Bahia: JusPODIVM, 2009. p.215.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012. p.
321
29
TORINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, 15. ed. rer. e de acordo com lei
12.403/2011. São Paulo, Saraiva, 2012. p. 321.
28
22
Dessarte, em uma Constituição Federal que pretende tratar igualitariamente
as pessoas comuns, as situações de prerrogativa de foro, pelo privilégio que de
certa forma conferem, devem ser interpretadas restritivamente.
3.2.1 DIFERENÇA ENTRE FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E FORO PRIVILEGIADO
Para dissertar sobre a diferença de tais institutos, cumpre-se ter, como ponto
de partida, as palavras de Tourinho Filho que diz: “o privilégio decorre de benefício à
pessoa, ao passo que a prerrogativa envolve a função”30.
Aqueles que militam a presença da prerrogativa de função asseveram que ela
sustenta a função e atividade de determinado cargo, em outras palavras, faz parte
do interesse público atribuir foro privilegiado a certas pessoas. “Quando a
Constituição proíbe o "foro privilegiado", ela está vedando o privilégio em razão das
qualidades pessoais, atributos de nascimento.”31.
Entretanto, a necessária prerrogativa de função “dá-se tratamento especial
não à pessoa, mas ao cargo ou função que exerce, de especial relevância para o
Estado”32.
Destarte, tecnicamente asseverasse incorreto proferir que determinado
agente público tem foro privilegiado, mas sim, melhor se diz que tal agente tem um
foro diferente dos outros cidadãos em função do cargo que ocupa.
Assim, esta blindagem a outros foros somente se sustenta quando o agente
público “estiver em efetivo exercício, não se estendendo àquele que estiver
licenciado, ainda que no exercício de outra função, para a qual não se assegure a
mesma garantia” 33.
3.3 COMPETÊNCIA POR CONEXÃO OU CONTINÊNCIA
Conexão e continência são institutos, previsto nos artigos 76 e 77 do Código
de Processo Penal, com a finalidade de reunir processos, obtendo com esta uma
maior celeridade processual e segurança nos julgamentos reunidos.
30
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 15. ed. rev. e de acordo com a
Lei n. 12.403/2011. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 322.
31
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, Vol I. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 122.
32
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 10ª Ed., São Paulo: Atlas, 2000. p. 67.
33
OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2008. p. 202.
23
Nos dizeres do professor Renato Brasileiro, a conexão e continência se dão:
Em determinadas circunstancias, em virtude da intima ligação entre dois ou
mais fatos delituosos, ou entre duas ou mais pessoas que praticaram um
mesmo crime, apresenta-se conveniente a reunião de todos eles em um si
processo, com julgamento único (simultaneus processus). Além de
possibilitar a existência de um processo único, contribuindo para a
celeridade e economia processual, a conexão e a continência permitem que
o órgão jurisdicional tenha uma perfeita visão do quadro probatória
34
evitando-se, ademais, a existência de decisões contraditórias.
A conexão é um instrumento processual usado para reunir mais de um
processo, quando o delito praticado em ambos encontra-se a esse vinculado,
garantido, por meio desse nexo, ao julgador uma melhor análise das provas e
simultaneamente de um melhor entendimento dos fatos, podendo dessa forma,
aplicar a justiça com mais segurança.
O Emérito Doutrinador Tourinho Filho, em sua obra Manual de Processo
Penal, conceitua a conexão como:
A conexão é o nexo, a dependência recíproca que as coisas e os fatos
guardam entre si; disjunção é a separação delas, separação forçada, por
isso mesmo que o todo criminal deve ser indivisível.
A conexão existe quando duas ou mais infrações estiverem entrelaçadas
por um vínculo, um nexo que aconselha a junção dos processos,
propiciando assim ao julgador perfeita visão do quadro probatório e, de
consequência, melhor conhecimento dos fatos, de todos os fatos, de molde
35
a poder entregar a prestação jurisdicional com firmeza e justiça.
Por sua vez, a continência é uma forma de conexão acrescida de outros
requisitos. Ela é estabelecida quando uma demanda, em face de seus elementos,
quais sejam, partes, pedidos e causa de pedir, estiver contida em outra.
Cuida-se, pois, de “um vínculo jurídico entre duas ou mais pessoas, ou entre
dois ou mais fatos delitivos, de forma análoga a continente e conteúdo, de
tal modo que um fato delitivo contém as duas ou mais pessoas, ou uma
conduta humana contém dois ou mais fatos delitivos, tendo como
consequência jurídica, salvo causa impeditiva a reunião de duas ou mais
pessoas, ou dos dois ou mais fatos delitivos, em um único processo penal,
36
perante o mesmo órgão jurisdicional”.
Dá-se a continência quando uma causa estiver contida em outra, não
havendo, dessa forma, possibilidade de cingir uma da outra.
34
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol. I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012.p.
778.
35
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 15ª. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2012.p.
360.
36
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012.p. 783. apud
FEITOSA, Denilson. Direito processual penal.: teoria, crítica e práxis.7ª ed. Niteroi/RJ: Editora Impetus, 2010.
24
A continência, comumente falando, salvo a hipótese daquela decorrente do
concurso formal por um só agente, verifica-se na suposição de concurso de
pessoas, coautoria ou participação, estando aí a causa de pedir (causa petendi).
Conclui-se que, como o fato é o mesmo (caso de coautoria e de participação) ou a
conduta é uma só (no caso de concurso formal), a continência está em função de
identidade da causa petendi ou da unidade de conduta. Por essas razões, não se
concebe a pluralidade de processos quando a causa de pedir (penal) é a mesma.
Portanto, dá-se a continência entre duas ou mais ações sempre que há identidade
quanto às partes e à causa de pedir, mas o objeto de uma, por ser mais amplo,
abrange o das outras.
O respeitado doutrinador, Fernando da Costa Tourinho Filho, no que diz respeito a
concurso de jurisdição de diversas categorias, defende que:
“(...) se houver conexão ou continência envolvendo pessoas que devam ser
processadas e julgadas pelo STF, ou STJ, ou Tribunal Regional Federal, e
outras não elencadas nos arts. 102, 105 e 108 da CF? A competência
desses Tribunais vem fixada na Lei Maior. Como nesta não existe nenhuma
regra explícita, ou implícita, permitindo-lhes o julgamento de outras pessoas
além daquelas ali elencadas, e não podendo a lei ordinária alterar-lhes a
competência, segue-se deva haver a disjunção dos processos. Na verdade,
se a Constituição não permite a esses Tribunais o julgamento de outras
pessoas, como poderia ocorrer o simultaneus processus? Não se pode
alterar a competência por prerrogativa de foro fixada na Constituição a não
ser por meio de emenda constitucional. É possível que a solução não seja
justa, em face das inconveniências resultantes da cisão dos processos;
contudo é legal, e, além do mais, parece-nos um não senso dar ao texto
constitucional interpretação extensiva. Poder-se-á dizer que a Lei Maior não
trata da conexão. Não é verdade. A Carta de 1946, no seu art. 119, VII, e a
Emenda Constitucional nº 1/69, no seu art. 137, VII, diziam competir à
Justiça Eleitoral o processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos
37
comuns que lhe fossem conexos (...)” .
Conexão e continência são, a toda evidência, causas de modificação da
competência em abstrato. O único caso de modificação da competência em concreto
é o desaforamento. Em melhor explicação, alude o ínclito doutrinador Vicente Greco
Filho, sendo citado na obra do professor Renato Brasileiro, afirmando que:
(...) é costume que a conexão e a continência modificam a competência.
Essa afirmação, porém, somente é válida no que concerne à competência
em abstrato, ou seja, no caminho que se desenvolve antes da fixação
definitiva, em concreto. O desaforamento, sim, modifica a competência em
a
FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Manual de Processo Penal. 15 ed. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 365/366.
37
25
concreto, depois de definitiva. A conexão e a continência atuam antes dessa
38
definição.
Assim, mais a frente, veremos como se opera a conexão e continência no
Processo Penal Brasileiro.
3.3.1 EFEITOS DA CONEXÃO E CONTINÊNCIA
A conexão e continência tem como preceito básico o fato de que os
processos que contenham vínculo, ao invés de ser julgado independentemente,
deve ter sua matéria apreciada em conjunto. Vejamos o posicionamento do
doutrinador Tourinho Filho:
Conclui-se dessas noções, com facilidade, que a conexão tem como efeito a
unidade dos processos, isto é, todas as infrações interligadas ratione
conexitatis devem ocorrer em um simultaneus processus, e, por
consequência, deflui daí outro efeito, que é o prorrogatio fori. De fato. Se um
crime foi cometido em Taquaritinga e outro em Itápolis, havendo entre ele
conexão, ambos serão apreciados em um só processo, que, obviamente,
39
tramitará por esta ou aquela comarca. Haverá, pois, prorrogação do foro.
Dessa forma, além da economia processual amplamente demostrada, a
conexão e a continência, radiando-se no seus efeitos, evitam, também, a divergência
no julgamento.
Entretanto, com relação à competência absoluta extraída da Constituição, a
exemplo, Tribunal do Júri, foro por prerrogativa de função originária e outras, tem-se
que a continência, em relação à sua aplicação, não perfaz nenhum resultado.
Em outras palavras, esclarece-nos o já citado Professor Renato Brasileiro, “na
medida em que conexão e a continência funcionam como critérios de alteração da
competência, só poderão incidir sobre hipóteses de competência relativa” 40.
Rememore-se que a competência absoluta não pode ser modificada, ou seja,
é inderrogável. A título de exemplo, a competência da Justiça Militar e da Justiça
eleitoral prevista na Constituição Federal é determinada em razão da matéria,
espécie de competência absoluta, ainda que haja conexão entre crimes militares e
eleitorais, não será possível a reunião dos feitos de nenhuma forma (simultaneus
38
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol. I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012. p.
779. apud GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p.
160
39
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 15ª. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2012. p.
360.
40
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol. I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012.p. 778
26
processus). Logo, só se admite que a conexão e a continência venham alterar a
competência relativa e nunca a absoluta.
Veja que, a luz da jurisprudência, eventual violação às regras de conexão e
continência dão ensejo, apenas, em uma nulidade relativa, sendo que após seu
conhecimento, sob pena de preclusão, fica estabelecido o marco para sua arguição,
além de claro, para a ocorrência desta junção, a comprovação do prejuízo alegado.
Exemplifica a Súmula 122 do STJ: “Compete à Justiça Federal o processo e
julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se
aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal”, sendo que na
eventual conexão ou continência entre crimes estaduais e federais, deve prevalecer
o último. Não obstante, é claro, caso haja o julgamento em separado destes
processos, nada impede, depois, de junta-los, efetuando a soma das penas quando
da execução destas.
3.3.2 ESPÉCIES DE CONEXÃO
Dentre as ligações, os nexos que determinam a conexão, podem ser
conceituadas como: intersubjetivas; objetiva e instrumental.
Assim, passemos à primeira: a conexão intersubjetiva, prevista no art. 76, I,
do Código de Processo Penal, que, para a conceituarmos, teremos ainda que
explicar suas três subdivisões.
Conexão Intersubjetiva por Simultaneidade: Esta, também, é conhecida como
subjetiva-objetiva ou meramente ocasional. Em explicação exemplificada de
Tourinho Filho41, esta modalidade de conexão ocorre quando duas ou mais pessoas
andando por uma estrada veem um caminhão tombado. Sua carga: latas de óleo e
produtos de limpeza. Sem qualquer entendimento entre elas, cada uma apanha o
que pode. Haverá destarte, tantos furtos quantos forem os autores; tudo em face do
art. 76, I, 1ª parte, do Código de Processo Penal42 e do art. 7943 do mesmo estatuto
haverá só um processo.
Conexão intersubjetiva por concurso, denominada também conexão subjetiva
concursal: Esta, também é exemplificada por Tourinho Filho da seguinte forma:
41
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 15ª. ed. rev. São Paulo:
Saraiva, 2012. p. 360/361.
42
Art. 76. A competência será determinada pela conexão: I – se, ocorrendo duas ou mais infrações,
houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas (...).
43
Art. 79. A conexão e a continência importarão unidade de processo e julgamento (...)
27
quando duas ou mais pessoas combinam praticar duas ou mais infrações – furto de
carro para assalto a banco; quadrilha ou bando e crimes cometidos pelos
quadrilheiros etc.
Conexão intersubjetiva por reciprocidade: nesta, Tourinho Filho exemplifica
assim: após uma partida de futebol, torcedores das duas equipes em campo passam
à luta causando lesões leves e graves entre si.
Como analisado, na conexão intersubjetiva, não há importância se as
pessoas cometem o crime em reciprocidade ou coautoria. Os crimes se tornam
conexos desde que o mesmo fato seja cometido por mais de uma pessoa. Concluise que a conexão reuni ações penais no mesmo processo, funcionando como causa
de modificação de competência relativa mediante a prorrogação de competência.
O inciso II do art. 76 do Código de Processo Penal prevê a conexão objetiva
ou lógica nos seguintes termos: “Se no mesmo caso, houverem sido umas
praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou
vantagem em relação a qualquer delas”.
A conexão objetiva, pode ser delineada como a intersubjetiva na qual há um
liame entre dois ou mais fatos tipificados como crime, mas sem a necessária
existência de dois ou mais agentes praticando o fato. Nestes termos, o que é
possível notar é que a diferença entre a conexão intersubjetiva e a conexão objetiva
abriga-se no fato de que naquela, haverá a existência de dois ou mais agentes
praticando fatos criminosos, o que não se exige nesta – logo, ainda é possível,
então, concluir que, mostra-se perfeitamente viável a identificação de conexões ao
mesmo tempo intersubjetivas e objetivas.
A conexão objetiva que também pode ser denominada material não só por ser
tratada no CP como também em face das inúmeras consequências de ordem penal
que apresenta, subdivide-se em conexão objetiva lógica ou material e
conexão
objetiva teleológica.
A conexão objetiva lógica ou material ocorre quando um crime é cometido
para facilitar ou assegurar a ocultação, impunidade ou vantagem em relação a outro.
A conexão objetiva teleológica é aquela na qual o agente pratica um crime para
facilitar a prática de um Segundo.
A conexão instrumental ou probatória, também chamada conexão processual,
cuida o inciso III do art. 76 do CPP. “Quando a prova de uma infração ou de
qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração”.
28
A conexão probatória ou instrumental fundamenta-se na influência que a
prova de um crime exerce na existência de outro. Assim defende Tourinho Filho: “Se
a prova de uma infração influi na prova de outra, é evidente deva haver unidade de
processo e julgamento, pois, do contrário, teria o Juiz de suspender o julgamento de
uma, aguardando a decisão quanto à outra.”
Assim, não há qualquer exigência de relação entre o tempo e o espaço dos
delitos praticados, entende-se que a prova de um crime tem total capacidade para
influenciar na prova de outro.
3.3.3 DA CONTINÊNCIA
A continência é configurada quando uma causa está contida na outra, o que
impõe que o julgamento de todos seja realizado em conjunto. Neste sentido, Renato
Brasileiro de Lima cita em, sua obra, entendimento de Denílson Feitosa:
Cuida-se, pois de “um vínculo jurídico entre duas ou mais pessoas, ou entre
dois ou mais fatos delitivos, de forma análoga a continente e conteúdo, de
tal modo que um fato delitivo, contém as duas ou mais pessoas, ou uma
conduta humana contém dois ou mais fatos delitivos, tendo como
consequência jurídica, salvo causa impeditiva a reunião das duas ou mais
pessoas, ou dos dois ou mais fatos delitivos, em um único processo penal,
44
perante o mesmo órgão jurisdicional”.
Fundamentando tal pensamento, é o que dispões o art. 77 do Código de
Processo Penal, in verbis:
Art. 77 – A competência será determinada pela continência quando:
I – duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração;
II – no caso de infração cometida nas condições previstas nos arts. 70, 73 e
74 do código penal.
Partindo dessa condição, doutrinadores classificam a continência em objetiva
e subjetiva.
A primeira é definida quando os crimes forem cometidos em concurso formal,
aberratio ictus ou erro na execução (art. 70 e art. 73, segunda parte, ambos do CP )
e aberracio delicti ou resultado diverso do pretendido (art. 74, segunda parte, do
CP). A segunda ocorrerá quando duas ou mais pessoas forem acusadas da mesma
44
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012.p.
783. apud FEITOSA, Denilson. Direito processual penal.: teoria, crítica e práxis.7ª ed. Niteroi/RJ:
Editora Impetus, 2010.
29
infração penal, ou seja, concurso eventual de pessoas (art. 29 do CP).
Desta feita, a continência se realiza de forma cumulativa subjetiva
quando existe a ocorrência de apenas um crime praticado em concurso de agentes.
Por outro lado, a continência por cumulação objetiva se verifica quando da
existência fática de diversos fatos, que, no entanto, para o Direito Penal, são
examinados em um mesmo continente.
Destarte, a continência, por conta de determinado agente que pratica
inúmeras condutas em crime continuado, as reuni em um só continente, entendendo
ter havido um só crime ocorrido de forma parcelar, merecendo o réu que seja punido
por um só crime, mas com a exasperação da pena.
Em relação ao aberratio criminis de resultado duplo, a ideia é a mesma – o
agente visa praticar determinado crime, mas por erro acaba por praticar o crime que
desejava, mais um outro crime que não desejava, mas que ocorreu por culpa sua.
Nestes casos teremos o concurso formal próprio ou perfeito de crimes.
Quanto a aberratio ictus de resultado duplo, o erro é quanto à execução,
quanto à pontaria. Aqui também teremos um concurso formal próprio de crimes, ou
seja, o agente, embora tenha cometido duas condutas criminosas, será punido
somente por uma, exasperando-se a pena.
E finalmente, também verificamos a continência em outros casos de concurso
formal próprio eventualmente diversos dos antes mencionados. Todavia, a solução
será a mesma, o Direito Penal examina todos os fatos ocorridos e o trata como um
só continente, de modo que, ainda que existam dois processos criminais sobre tais
fatos, a continência haverá de reunir estes referidos processos para que se garanta
uma decisão coerente e passível a se garantir a mais ampla defesa e a melhor
análise global das provas existentes.
3.3.4 COMPETÊNCIA
ORIGINÁRIA DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
PARA , EM AÇÃO
PENAL , JULGAR CORRÉUS EM FACE DA CONEXÃO E CONTINÊNCIA
Denomina-se como competência rationae funcionae
ou
personae, o foro
especial atribuído àqueles agentes públicos investidos de significativos cargos da
administração. Não é, como já explicado anteriormente, um privilégio à pessoa e sim
à proteção da “honra” destes cargos com maior relevo na estrutura do Estado.
30
Desse modo, para que esses cargos possam ser exercidos com a necessária
independência, a Constituição Federal atribuiu competência originária aos tribunais
(ratione personae vel muneris), que para o exato entendimento deste tópico destacase a competência originária do Supremo Tribunal Federal.
Nos dizeres do festejado voto, do então revisor da ação penal 470, Ricardo
Lewandowski, temos que:
(...) o julgamento desses agentes públicos por juízos singulares ou por
órgão colegiados de instâncias inferiores, mais vulneráveis teoricamente, a
pressões populares, políticas ou midiáticas, poderia resultar em decisões
que, no limite, teriam o condão de comprometer a própria ordem
45
democrática.
Tal proteção (competência originária do Supremo Tribunal Federal),
extremamente necessária a estes cargos relevantes, foram pela Constituição
estipulados taxativamente como competência excepcional e, como tal, só podendo
ser utilizada em situações igualmente excepcionais. Dispondo acerca desta
excepcionalidade, o emérito doutrinador Alexandre de Morais, citando o decano
Ministro Celso de Mello, nos explica que:
A competência originária do Supremo Tribunal Federal, conforme acentua
Celso de Mello, qualifica-se como “um complexo de atribuições jurisdicionais
de extração essencialmente constitucional”, não comportando a
possibilidade de extensão, que “extravasem os limites fixados em numerus
clausus pelo rol exaustivo inscrito no art. 102, I, da Carta Política”.
Além dessa competência, o Supremo também deve processar e julgar
originariamente os casos em que os direitos fundamentais das mais altas
autoridades da república estiverem sob ameaça ou concreta violação, ou
quando estas autoridades estiverem violando direitos fundamentais dos
46
cidadãos (CF, art. 102, I, d, i e q).
E mais, o professor Renato Brasileiro, ao comentar sobre o foro especial,
determinada na Constituição Federal, alerta dizendo que:
(...) Constituição Federal que pretende tratar igualmente os cidadãos
comuns, as hipóteses de prerrogativa de foro, pelo privilégio que de certa
forma conferem, devem ser interpretadas restritivamente.
Não restam dúvidas que tal foro, por decorrer de expressa estipulação da lei
maior, não fere, com base no entendimento jurisprudencial e doutrinário, princípios
como o da isonomia, duplo grau de jurisdição ou mesmo do devido processo legal e
seus corolários.
45
Voto Min. Ricardo Lewandowski, AP 470 – disponibilizado
<http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20120803-07.pdf>. Acessado em 15/09/2012
46
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 200. p.489.
31
Gize-se que, para fundamentar os dizeres alhures, o professor Renato
Brasileiro ajuda-nos dizendo:
Essa excepcionalidade do foro por prerrogativa de função em face de
preceitos sensíveis da Constituição Federal, como o da isonomia e do juiz
natural, possui uma razão de ser própria, específica, justificável, que
transmuda sua conotação de privilégio, no sentido pejorativo da palavra,
para prerrogativa especial ao bom exercício da função. Por tal motivo em
uma Constituição Federal que pretende tratar igualmente os cidadãos
comuns, as hipóteses de prerrogativa de foro, pelo privilégio que de certa
47
forma confere, devem ser interpretadas restritivamente.
E continua:
Acusados com foro por prerrogativa de função não tem direito ao duplo grau
de jurisdição, aí entendido como a possibilidade de reexame integral da
sentença de primeiro grau a ser confirmado a órgão diverso do que a
proferiu e de hierarquia superior na ordem judiciária. Não obstante a
previsão expressa do duplo grau de jurisdição na Convenção Americana de
Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), entendeu o Supremo
Tribunal Federal que, como a Constituição Federal silenciou acerca do
cabimento de recursos ordinários nos casos de competência originária dos
48
Tribunais, não poderia o direito infraconstitucional instituí-los.
A resposta desta celeuma, se dá numa reflexão mais aprofundada e
interpretativa da Constituição Federal e seus princípios explícitos e implícitos, bem
como quanto aos impactos constitucionais trazidos pelo Código de Processo Penal
nas hipóteses de conexão e continência, não devendo os artigos 76, 77 e 78, este
especificamente nos incisos III e IV, reunir os processos daqueles que não detêm
foro por prerrogativa de função.
O teor do acórdão prolatado no RHC nº 79.785, este negando a existência do
princípio do duplo grau de jurisdição àqueles com foro especial, fomentou-se, como
uma de suas bases o status hierárquico que a corte guardiã da Constituição Federal
emprestava aos tratados internacionais de direitos humanos à época, qual seja, o de
lei comum/ordinária.
Toda a vez que a constituição prescreveu para determinada causa a
competência originária de um tribunal, de duas uma: ou, também previu
recurso ordinário de sua decisão (CF, arts. 102, inc. II, a; 105, inc. II, “a” e
“b”; 121, § 4º, incs. III, IV e V) ou, não o tendo estabelecido, é que o proibiu.
Em tais hipóteses, o recurso ordinário contra decisões de tribunal, que ela
mesma não criou, a Constituição não admite que o institua o direito
infraconstitucional, seja lei ordinária, seja convenção internacional: é que,
afora os casos de justiça do trabalho – que não estão em causa – e da
justiça Militar – na qual o STM não se superpõe ao outros Tribunais -, assim
47
48
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012. p. 663.
Op cit. p. 667
32
como as do Supremo Tribunal, com relação a todos os demais Tribunais e
juízos do País, também as competências recursais dos outros Tribunais
Superiores – o STJ e o TSE – estão enumeradas taxat5ivamente na
constituição, e só a emenda constitucional poderia ampliar. À falta de
órgãos constitucionais ad quo, no sistema constitucional, indispensáveis a
viabilizar a aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição aos processos
de competência originária dos Tribunais, segue-se a incompatibilidade com
a Constituição da aplicação no caso da norma internacional de outorga da
49
garantia invocada
Tal decisão fora acertada à época, mas atualmente é entendida de outra
forma pelo Supremo Tribunal Federal. Veja que, conforme capítulo próprio irá
demonstrar, a natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos, à
luz da mudança trazida expressamente pela emenda constitucional de nº 45/2004,
acrescentando o § 2º do art. 5º da Constituição Federal, qual seja “Os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e
dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte” que estes têm status supralegal, acima das leis e
abaixo da Constituição.
A excelsa Corte, ao sumular que “não viola as garantias do juiz natural, da
ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do
processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”
equivocou-se em utilizar de institutos infralegais como meio de transformar a
competência natural do cidadão comum em originária desta Corte. Suprimindo pela
consequente atração da competência, garantias fundamentais daqueles que não
detêm foro por prerrogativa de função.
Esta constatação, decorre da lógica que se há de prestar aos princípios
inerentes aos cidadãos comuns obrigados por nossa Carta Magna, no qual se
estabelece que sejam proibidos em confronto com estes critérios ou procedimentos
interpretativos, para anular ou os enfraquecerem, ampliando ou restringindo suas
competências estabelecidas constitucionalmente.
Questiona Tourinho Filho, se em confronto de competência entre aquele que
detêm o foro especial e o outro que não, qual desses deverá vingar? Mire-se:
E se uma pessoa com foro por prerrogativa de função e outra sem tal
regalia cometerem um crime de alçada do Tribunal do Júri? A competência
deste vem fixada na CF. Assim, devem os processos ser separados: um
será julgado pelo Órgão Jurisdicional Superior e o outro, pelo Tribunal do
Júri. Indaga-se: se um Deputado Estadual cometer crime de estelionato e
coautoria com pessoa desprovida daquele “privilégio”, qual o órgão
49
STF, RHC nº 79.785/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29/03/2000
33
competente para o processo e julgamento? Nos termos do art. 78, III, do
CPP, será o Tribunal de Justiça, pelo fato de ser de maior graduação. Como
os parlamentares estaduais à semelhança do que se dá com os Deputados
Federais perderam aquela imunidade no sentido de só poderem ser
processados se a Casa, a que estiverem ligados, (Assembleia, Câmara,
Senado) der autorização, e como a denúncia contra eles pode ser recebida
mas o processo só terá andamento se a Assembleia Legislativa, no exemplo
dado, permitir, evidente que, havendo autorização, o processo tramita em
relação a todos. E se a Assembleia não autorizar o andamento? Embora
esta última solução não seja justa, dando margem a censura ao poder
judiciário (que a final de contas não tem culpa nenhuma), repetindo o velho
jargão de que “cadeia não é para os graúdos” parece que outra solução não
haverá senão o desmembramento do processo, ex vi do art. 80 do CPP
principalmente se um dos coautores estiver preso. Explica-se: quando o
legislativo não autoriza o andamento do processo, o curso da prescrição
não flui enquanto durar o mandato. Todavia, em relação aos demais
continua fluindo... Assim, se se (sic) devesse sustar o processo,
eventualmente dependendo de pena cominada, os coautores e partícipes e,
somente eles, seriam beneficiados pela descrição, mormente se o Deputado
50
continuasse se elegendo.
Estes confrontos acima suscitados, malgrado tenha a jurisprudência tentado
solucioná-los adotando os institutos atrativos da competência prevista em legislação
ordinária, não podem sufragar os direitos e garantias aventados. É, pois, nos dizeres
de Renato Brasileiro:
Todavia, bem diversa é a situação do coautor. De fato o que determina o
simultaneus processus em relação à sua pessoa perante o Supremo é a
continência por cumulação subjetiva, norma prevista em lei ordinária:
Código de Processo Penal, (art. 77 inc. I). Ocorre que, por força desse
julgamento perante o Supremo, o coautor não terá direito de apelar, fica a
dúvida: poderia uma lei ordinária (CPP, art. 77, inc. I) prevalecer sobre
dispositivo que tem status normativo supralegal (Pacto de San José da
Costa Rica, art. 8º, nº 2, “h”), privando o coautor do direito de apelar?
Pensamos que não. Destarte, diante do status normativo supralegal dos
tratados internacionais de direitos humanos, é considerado que a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos prevê de maneira expressa
o direito ao duplo grau de jurisdição, caso o coautor não tenha foro por
prerrogativa de função, impõe-se a separação dos processos, respeitandose quanto a este o direito assegurado no art. 8, nº 2, “h”, do Dec. nº
51
678/1992 .
Em consonância com os argumentos esposados, salienta-se, também o voto
do Ministro Marco Aurélio na Ação Penal 470, vulgo “mensalão”, que: “Sustenta-se,
desta vez, a inconstitucionalidade da extensão da competência especial por
prerrogativa de função ao processo e julgamento daqueles que não a titularizem”.
Corrobora, o Ministro Ricardo Lewandowski, na mesma Ação Penal,
concluindo que :
50
TORINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, 15. ed. rev. e de acordo com lei
12.403/2011. São Paulo, Saraiva, 2012. p. 366.
51
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol. I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012. p 669.
34
Desse modo, não vejo como seja possível admitir-se que a interpretação de
normas infraconstitucionais, notadamente daquelas que integram Código de
Processo Penal - instrumento cuja finalidade última é proteger o jus libertatis
do acusado diante do jus puniendi estatal – derrogue a competência
constitucional estrita fixada pela Carta Magna aos diversos órgãos
judicantes e, mais, permita malferir o princípio do duplo grau de jurisdição,
nela abrigado e mais uma vez acolhido, de livre e espontânea vontade, pelo
Brasil, após a promulgação daquela, quando aderiu sem reservas ao Pacto
52
de San José da Costa
Portanto, não deve os institutos da conexão e continência previstos na
legislação ordinária, quando verificados os requisitos para sua deflagração,
determinar a reunião dos processos. Assim entendendo que esta atração de
competência se dá de forma imprudente e mesmo ilegal, pois não pode funcionar a
Suprema Corte como poder constituinte derivado apto a criar regras procedimentais
próprias de agentes público com competências originárias, na Constituição Federal,
de foro por prerrogativa de função.
O Ministro Ricardo Lewandowski, em seu voto a respeito da questão de
ordem levantada na Ação Penal 470, elenca uma série de decisões, onde a
Suprema Corte optou pelo desmembramento de processos, em se tratando de
corréus sem prerrogativa de foro. Vejamos:
O Supremo Tribunal Federal, levando em conta o estatuído no art. 80 do
CPP em inquéritos e ações penais que nele tramitam, tem, de uns tempos
para cá, sistematicamente, determinado o seu desmembramento pelos mais
variados motivos, como passarei a exemplificar a seguir.
No Inq 517-QO/DF, Rel. Min. Octávio Gallotti, julgado em 8/10/1992, o
Plenário decidiu, à unanimidade, que o fato isolado atribuído a certo
deputado federal não apresentava vínculo de conexão com os demais
indiciados, o que permitiria o desmembramento do feito. O acórdão de
julgamento foi assim ementado:
“FATO ISOLADO, ATRIBUÍDO A DEPUTADO FEDERAL, SEM VÍNCULO
DE CONEXÃO COM OS IMPUTADOS AOS DEMAIS FIGURANTES DO
INQUÉRITO POLICIAL (ART. 76 DO COD. PROC. PENAL).
DESMEMBRAMENTO DEFERIDO EM QUESTÃO DE ORDEM, A
REQUERIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL”.
Observo, por relevante, que naquele julgamento o Min. Sepúlveda Pertence
já alertava sobre o tratamento um tanto quanto aligeirado que o STF
conferia ao conceito de conexão, assentando o seguinte:
“Senhor Presidente, também acompanho o eminente Relator. No habeas
corpus 67.769, no notório caso Naji Nahas, tive oportunidade, à base de
ensinamentos de Xavier de Albuquerque, de mostrar como se tem tratado
52
Voto Min. Ricardo Lewandowski, AP 470 – disponibilizado
<http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20120803-07.pdf>. Acessado em 15/09/2012
35
superficialmente o conceito da chamada conexão probatória ou instrumental
do artigo 76, III, do Código de Processo Penal, que não dispensa um liame
substancial entre os fatos. Não basta um eventual juízo de conveniência de
reunir no mesmo processo fatos similares, mas paralelos, sem nenhuma
conexão substancial entre si”.
No Inq 559-QO/MG, também relatado pelo Min. Octávio Gallotti, e julgado
em 9/12/1992, o Plenário, por maioria de votos, assentou a necessidade de
desmembramento do feito envolvendo três indiciados, um deles
parlamentar, uma vez que, ausente a licença da Câmara dos Deputados,
exigível à época para iniciar o processamento, com a consequente
suspensão da prescrição, tornava-se conveniente a separação do processo,
com base no art. 80 do CPP. Eis a ementa do julgamento:
“PROCESSO A QUE RESPONDEM DEPUTADO FEDERAL, ESTANDO
PENDENTE CONCESSÃO DE LICENÇA DA CÂMARA, JUNTAMENTE
COM OUTROS RÉUS NÃO FAVORECIDOS PELA IMUNIDADE FORMAL
NEM PELO FORO ESPECIAL (ARTIGO 53, § 1o E 4o. DA
CONSTITUIÇÃO). SEPARAÇÃO DETERMINADA POR RELEVANTE
MOTIVO DE CONVENIÊNCIA (ART. 80 DO CPP), DECORRENTE DA
DIFERENÇA DO REGIME DE PRESCRIÇÃO A QUE ESTÃO SUJEITOS
OS ACUSADOS, VISTO ACHAR-SE O SEU PRAZO SOMENTE
SUSPENSO EM RELAÇÃO AO PARLAMENTAR (ART. 53, § 2o DA
CONSTITUIÇÃO). REMESSA DE TRASLADO AO TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
PARA PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO NO JUÍZO DE PRIMEIRO
GRAU, COM RELAÇÃO AOS RÉUS PARA CUJO JULGAMENTO
ORIGINÁRIO E ELE COMPETENTE”.
No mesmo sentido, esta Suprema Corte também decidiu pelo
desmembramento nos feitos a seguir destacados: Inq 542-QO/DF, redator
para o acórdão Min. Néri da Silveira; Inq 242-QO/DF e Inq 736-QO/MS, Rel.
Min. Celso de Mello; Inq 675-QO/PB, Rel. Min. Néri da Silveira; Inq 212/DF,
Rel. Min. Ilmar Galvão e Inq 1720-Qo/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence.
No Inq 1871-QO/GO, Rel. Min. Ellen Gracie, por sua vez, o Supremo optou
pelo desmembramento do processo por entender que a apuração de crimes
que exteriorizam tipos penais distintos, sem qualquer liame, envolvendo
magistrados de tribunais diversos e pessoas não detentoras de foro
privativo, exigiria inexoravelmente tal solução. O acórdão foi assim
ementado:
“INQUÉRITO. Investigação sobre tráfico de influência e suposto esquema
de venda de habeas corpus. Apuração de crimes que exteriorizam tipos
penais distintos, sem qualquer liame, envolvendo magistrados de tribunais
diversos e pessoas não detentoras de foro privativo. Questão de Ordem
resolvida no sentido do desmembramento do inquérito, preservando-se a
competência constitucional de órgãos judiciários distintos”.
Já no Inq 336-AgR/TO, Rel. Min. Carlos Velloso, também por maioria de
votos, entendeu-se que, como apenas um dos 60 réus detinha foro por
prerrogativa de função, o feito deveria ser desmembrado, pois não se
afigurava razoável fazer-se a instrução da ação penal nesta Suprema Corte.
O acórdão daquele julgamento foi assim ementado:
“CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. PENAL. CRIME DE
QUADRILHA. FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. SEPARAÇÃO
DOS PROCESSOS. CPP, art. 80. NÚMERO EXCESSIVO DE ACUSADOS.
PREJUÍZO DA DEFESA: INEXISTÊNCIA. I. - O fato de um dos corréus ser
Deputado Federal não impede o desmembramento do feito com base no art.
80 do Código de Processo Penal. II. - A possibilidade de separação dos
processos quando conveniente à instrução penal é aplicável também em
36
relação ao crime de quadrilha ou bando (art. 288 do Código Penal). III. Agravos não providos”.
Igualmente no Inq 2.628-QO/RJ e na AP 396/RO, Rela. Min. Cármen Lúcia,
esta Corte assentou que, considerada a elevada quantidade de indiciados,
seria de bom alvitre o desmembramento dos feitos para propiciar uma
tramitação célere, sobretudo objetivando evitar eventual prescrição.
Transcrevo a ementa do primeiro julgado:
“INQUÉRITO.
QUESTÃO
DE
ORDEM.
VÁRIOS
INDICIADOS.
NECESSIDADE
DE
CÉLERE
TRAMITAÇÃO
DO
FEITO.
DESMEMBRAMENTO DETERMINADO.
1. Além de serem vários indiciados, deve-se levar em consideração, para o
desmembramento, a necessidade de tramitação mais célere possível do
feito, sobretudo quando há risco de prescrição.
2. Questão de ordem
resolvida no sentido de se determinar o desmembramento do feito”.
Outro exemplo em que o desmembramento foi ordenado pelo Plenário,
tendo como fundamento preponderante a presença de apenas um indiciado
com prerrogativa de foro, é o Inq 2.443- QO/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa,
cujo acórdão recebeu a ementa abaixo:
“AÇÃO PENAL. QUESTÃO DE ORDEM. DESMEMBRAMENTO DO FEITO.
ART. 80 DO CPP. APLICABILIDADE, NA HIPÓTESE. PRECEDENTES.
QUESTÃO DE ORDEM ACOLHIDA, PARA QUE SEJAM APURADOS
NESSA CORTE SOMENTE OS FATOS IMPUTADOS AO ACUSADO COM
PRERROGATIVA DE FORO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
1. O presente caso conta com 10 (dez) denunciados e, na data de hoje, com
78 (setenta e oito) volumes e mais 15 (quinze) apensos, o que demonstra a
inviabilidade do processo e julgamento de tantos acusados por essa Corte e
constitui razão mais do que suficiente para autorizar o desmembramento do
feito, pois apenas um dos acusados detém a prerrogativa de foro prevista no
artigo 102, inciso I, alínea ‘b’, da Constituição Federal.
2. A doutrina e a jurisprudência são uníssonas no sentido de aplicar o art.
80 do Código de Processo Penal nos processos criminais em que apenas
um ou alguns dos acusados detêm a prerrogativa de foro.
3. Não há, no caso, qualquer excepcionalidade que impeça a aplicação do
artigo 80 do CPP.
4. Questão de ordem acolhida, para que sejam apurados nessa Corte
somente os fatos imputados ao Deputado Federal envolvido, extraindo-se
cópias dos elementos a ele relacionados para autuação de um novo
inquérito. Baixa dos autos quanto aos demais acusados” (grifei).
No julgamento do Inq 2.051-AgR/TO, Rela. Min. Ellen Gracie, este Tribunal
manteve desmembramento por ela determinado, considerando a “indicativa
clara da existência de dificuldades para o encerramento das investigações,
dado o número elevado de investigados, e a complexidade dos fatos objeto
de apuração (...)”.
Naquele julgamento a Relatora, consignou, ainda, que: “(...) relativamente à
investigação sobre possível crime de quadrilha, esta Corte já decidiu que há
possibilidade de separação dos processos quando conveniente à instrução
penal, (...) ‘também em relação aos crimes de quadrilha ou bando’”.
Cito, ainda, diversos outros acórdãos do órgão colegiado do Supremo
Tribunal Federal em que o desmembramento foi determinado pelos mais
37
diversos motivos: Inq 2.548-ED-AgR/DF, Inq 2.706-AgR/BA e Inq 2.168ED/RJ, todos de relatoria do Min. Menezes Direito; Inq 2.527-AgR/PB, Rel.
Min. Ellen Gracie; Inq 2.578/PA, Inq 2.718-QO/GO e Inq 2.471-AgRquinto/SP, esses últimos de minha relatoria.
Insisto, pois, que o desmembramento de inquéritos e de ações penais
tornou-se prática corriqueira nesta Corte, sendo as respectivas decisões,
inclusive, cada vez mais levadas a efeito monocraticamente pelos seus
integrantes. Eis aqui alguns exemplos: Inq 2.757/MG e Inq 2.601/RJ, Rel.
Min. Celso de Mello; Inq 2.652/PR, Rel. Min. Dias Toffoli; Inq 2.280/MG, Rel.
Min. Joaquim Barbosa; Inq 2.486/AC e Inq 2.091/RR, Rel. Min. Ayres Britto;
53
Inq 2.239/PI e Inq 1.567/CD, Rel. Min. Sepúlveda Pertence.
Na grande maioria das decisões a respeito do desmembramento do
processos os Excelentíssimos Ministros fundamentaram seus votos no art. 80 do
Código de Processo Penal que faculta a separação dos processos quando há
excessivo número de acusados, ou perante ainda a outro motivo relevante. Fato
este que coincide com o caso abordado.
O Ministro Ricardo Lewandowski reconhece a ofensa aos direitos do corréus
sem prerrogativa de foro ao concluir seu voto no seguinte entendimento:
Esse salutar exame e reexame dos autos ao longo de distintas instâncias
jurisdicionais está sendo indevidamente sonegado aos réus deste processo,
quer dizer, daqueles que não têm foro especial por prerrogativa de função.
Eles serão julgados, repito, em única e última instância nesta Casa, por
pessoas que, embora dotadas – como define a Constituição Federal – de
notável saber jurídico e ilibada reputação, são seres humanos como outros
quaisquer, e, portanto, falíveis, tal qual os seus semelhantes.
E o mais grave é que, com o angusto cronograma de julgamento que esta
Suprema Corte se auto-impôs, dificilmente algum dos Ministros pedirá vista
dos autos, para sanar eventual dúvida que, por certo, surgirá ao longo da
análise do colossal volume de documentos que neles se contém.
Como fazer, nessas condições, indago, por derradeiro, a individualização
das penas exigida pelo art. 5o, XLVI, da Constituição Federal? Como,
procederá esta Suprema Corte na dosimetria das sanções, no caso de
eventual condenação? Qual a técnica que empregará para examinar, dentre
outras circunstâncias judiciais, a conduta social e a personalidade dos réus,
mencionadas no art. 59 do Código Penal, se não os conhece pessoalmente
e nem tem qualquer informação acerca de sua vida extra-autos? São
perguntas que, infelizmente, não querem calar.
Preocupa-me, por fim, o fato de que, se este Supremo Tribunal persistir no
julgamento único e final de réus sem prerrogativa de foro, ela estará,
segundo penso, negando vigência ao mencionado art. 8o, 2, h, do Pacto de
São José da Costa Rica, que lhes garante, sem qualquer restrição, o direito
de recorrer, no caso de eventual condenação, a uma instância superior,
53 53
Voto Min. Ricardo Lewandowski, AP 470 – disponibilizado
<http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20120803-07.pdf>. Acessado em 15/09/2012
38
insistência essa que poderá ensejar eventual reclamação perante a
Comissão ou a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Diante de todo o exposto, resolvo a questão de ordem para assentar que o
desmembramento deste feito se mostra de rigor com relação aos réus sem
prerrogativa de foro, devendo permanecer sob a jurisdição do Supremo
Tribunal Federal apenas aqueles que detém tal status processual por força
da própria Constituição, quando mais não seja por uma questão de
isonomia de tratamento em face dos acusados referidos no mencionado Inq
2.280/MG, os quais se encontram em idêntica situação daqueles outros.
Com seu entendimento o douto Ministro Ricardo Lewandowski, reconhece
que como seres humanos, são passíveis de erro, e em caso de condenação, os
corréus serão privados de direitos garantidos pela Constituição Federal. Assim
defende o desmembramento do processo.
39
4 PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA
4.1 NATUREZA JURÍDICA
É insto da natureza do ser humano de querer relacionar-se com seus pares,
desta forma, desde os primórdios, o homes para poder trocar suas mercadorias,
conhecimentos, mesmo carga genética, celebra com os seus pares, acordos de
vontade, que derivam desta vontade de se relacionar.
Com o grande crescente número de pessoas ao redor do mundo começou-se
com as grandes civilizações, para evitar guerras e outros males, estas tratarem entre
si com acordos das mais diversas formas.
Nos dizeres de Francisco Rezek, dando uma perspectiva histórica para os
tratados, diz:
Parte fundamental do direito das gentes, o direto dos tratados apresenta até
o romper do século XX uma consistência costumeira, assentada, entretanto
sobre certos princípios gerais, notadamente o pacta sunt servanda e o da
boa fé. Como negociam as partes, e através de que órgão; que gênero de
texto produzem, e como asseguram autêntico; como manifestam, desde
logo ou mais tarde, seu consentimento definitivo, e põe o compromisso em
vigor; que efeito produz, então, o tratado, sobre as partes pactuantes, e
acaso sobre terceiros; que formas, enfim, de alteração, desgaste ou
extinção, se podem abater sobre o vínculo convencional: isso tudo constitui
em linhas muito rudes e incompletas, o direito dos tratados, cuja construção
consuetudinária teve início nalgum ponto extremamente remoto da história
54
das civilizações.
Assim, juridicamente, o tratado é todo acordo formal entabulado entre
pessoas jurídicas de direito internacional público, e destinado a produzir efeitos
jurídicos. “Desse modo, a matéria versada em um tratado pode ela própria interessar
de modo mais ou menos extenso o direito das gentes”55: em razão da matéria,
pontificam em importância os tratados dos constitutivos de organizações
internacionais, os que dispões sobre os serviços diplomáticos, sobre o mar, sobre as
solução pacífica de conflitos entre Estados.
Na linha de raciocínio do douto internacionalista Francisco Rezek conclui-se
que:
É certo, contudo, que todos os tratados – mesmo quando disponham sobre
um tema prosaico como a classificação de marcas de origem de vinhos e
54
REZEK, Francisco. Direito Internacional Público, curso elementar. 13. ed. rev. aum. atual. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 35.
55
REZEK, Francisco. Direito Internacional Público, curso elementar. 13. ed. rev. aum. atual. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 38.
40
queijos – interessam igualmente, em razão da forma, a esta parte dos
56
direitos das gentes que ora nos ocupa, o direito dos tratados .
No Brasil, a nossa constituição de 1988, consagrou, no rol dos direitos e
garantias fundamentais do cidadão, que os tratados ingressam no nosso
ordenamento jurídico no mesmo patamar das leis infraconstitucionais. Vide:
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Indubitavelmente esta norma constitucional mostra o caráter meramente
exemplificativo do rol dos direitos e garantias estabelecidos no art. 5º da CF, sendo
uma verdadeira cláusula aberta (numerus clausus) a ser acrescida por outros
princípios constitucionais expressos e implícitos por tratados e convenções
internacionais.
Contudo, embora o objetivo da Carta Magna fora de conferir status de norma
constitucional aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos
internalizados ao ordenamento jurídico pátrio, vingou no STF à interpretação de que
os tratados e convenções internacionais, após devidamente aprovados pelo
Congresso Nacional e ratificados pelo Presidente da República, integram o nosso
ordenamento apenas na condição de norma infraconstitucional, submetendo-se,
inclusive, ao controle de constitucionalidade dos atos normativos.
Dessarte, a luz de uma eventual antinomia com os preceitos constitucionais,
tal conflito resolver-se-ia em favor da supremacia da Carta da República
(compatibilidade vertical).
Veja que tal entendimento revela-se no julgamento do RHC 79.785, DJ
22/11/02, dentre vários que se seguiram à época, ressaltando o Rel. Ministro
Sepúlveda Pertence que há "prevalência da Constituição, no Direito brasileiro, sobre
quaisquer convenções internacionais, incluídas as de proteção aos direitos
humanos". E continua:
Assim como não o afirma em relação às leis, a Constituição não precisou
dizer-se sobreposta aos tratados: a hierarquia está ínsita em preceitos
inequívocos seus, como os que submetem a aprovação e a promulgação
das convenções ao processo legislativo ditado pela Constituição e menos
exigente que o das emendas a ela e aquele que, em consequência (sic),
56
REZEK, Francisco. Direito Internacional Público, curso elementar. 13. ed. rev. aum. atual. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 38.
41
explicitamente admite o controle da constitucionalidade dos tratados (CF,
57
art. 102, III, b).
Portanto, à época, ainda que revestidos de direitos fundamentais, os tratados
e convenções internacionais assentariam numa posição hierárquica abaixo das
normas constitucionais, com status infra-legal, sendo passíveis de controle de
constitucionalidade em caso de eventual incompatibilidade com a Constituição.
Pelo poder dessa sedimentação determinada pelo Supremo, a Emenda
Constitucional de numero 45/2004, sendo esta chamada de reforma do judiciário,
somou ao art. 5º o § 3º na nossa Magna Carta, que diz:
§ 3º - Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que
forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,
por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais.
Esse
quorum
qualificado
não
é
para
internalização
dos
tratados
internacionais, mas sim como requisito para que esses possam ingressar no
ordenamento jurídico em posição hierárquica semelhante à das emendas
constitucionais. Assim, caso não seja obtida a votação em dois turnos, em cada
casa, por três quintos de seus membros, o tratado poderá ser aprovado, porém, sem
a prerrogativa da natureza constitucional de suas disposições.
Para alguns doutrinadores a exemplo, Pedro Lenza, mesmo antes da emenda
Constitucional supra citada, entendia-se que os tratados internacionais de direitos
humanos fundamentais ingressavam no ordenamento jurídico interno por força do
art. 5º, § 2º, da CF/88, “com caráter de norma Constitucional, enquanto outros
tratados
internacionais,
de
natureza
diversa,
com
caráter
de
norma
infraconstitucional” 58.
Noutro vértice, os demais tratados que não ventilarem matérias sobre direitos
humanos sempre serão incorporados como norma infraconstitucional, ainda que
eventualmente aprovados pelo procedimento das emendas. Isto é, não se revelando
a possibilidade de serem elevados ao patamar da Constituição sob o aspecto
material (de direitos humanos), não há necessidade de subsunção ao procedimento
legislativo especial, devendo ser submetidos à apreciação em sessão conjunta do
Congresso com aprovação por maioria simples.
57
RHC 79.785, DJ 22/11/02
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15. ed. ver. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva,
2011.p. 269.
58
42
Por conseguinte, depois da emenda 45, clausula holandesa59, é possível a
coexistência de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos com
força de norma constitucional, tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos hierarquicamente equiparados à legislação ordinária e os demais tratados
e convenções internacionais sempre com natureza infraconstitucional.
A dissidência extremada sobre o assunto é a que diz respeito à situação dos
tratados e convenções incorporados ao ordenamento antes da promulgação da
emenda constitucional nº 45/2004.
Muitos doutrinadores de peso sustentam que apenas alçarão status
constitucional os acordos, tratados e convenções posteriores à emenda que vierem
a se render a aprovação pelo processo legislativo a que se submete as emendas.
Nesse sentido, a opinião de Pedro Lenza:
Diferentemente da regra da Constituição da Argentina, que é expressa em
afirmar que os tratados anteriores sobre direitos humanos passam a ter,
com a Reforma de 1994, hierarquia constitucional, a regra brasileira foi
omissa.
Assim, entendemos que o Congresso Nacional poderá (e, querendo atribuir
natureza constitucional, deverá) confirmar os tratados sobre direitos
humanos pelo quorum qualificado das emendas e, somente se observada
esta formalidade, e desde que respeitados os limites do poder de reforma
das emendas, é que se poderá falar em tratado internacional de ‘natureza
constitucional’, ampliando os direitos e garantias individuais do art. 5º da
60
Constituição.
Conclui o insigne Autor encampando a classificação elaborada pela, também,
e não menos ilustre Flávia Piovesan61, no sentido de que tratados sobre direitos
humanos podem ser material e formalmente constitucionais (aqueles equivalem às
emendas constitucionais em razão do procedimento de incorporação mais solene) e
materialmente constitucionais que, apesar de tratarem sobre direitos humanos, não
passaram pelo procedimento mais solene.
Entretanto, há posição no sentido de discordar dos eminentes doutrinadores.
O constituinte originário, no capítulo reservado aos direitos e garantias
individuais, fez consignar norma expressa preconizando de que a lei não prejudicará
o direito adquirido o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI). Por meio
59
REZEK, Francisco. Direito Internacional Público, curso elementar. 13. ed. rev. aum. atual. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 132.
60
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva,
2011.p. 555.
61
Op cit. p. 556. apud PIOVESAN, Flávia Cristina. Direitos humanos e o direito constitucional internacional.
São Paulo: Max Limonade, 1996. p. 67.
43
desse dispositivo, restou consagrado o princípio da irretroatividade das leis, como
decorrência natural da segurança jurídica.
O teor literal da expressão "lei", tanto no texto constitucional, como na própria
terminologia do princípio consagrada pela doutrina, é inquestionável que as
emendas constitucionais, manifestação do poder constituinte derivado, também se
submetem à vedação da aplicação retroativa. Tanto que podem ser objeto de
controle de constitucionalidade, seja na via direita ou difusa, a teor da jurisprudência
do Supremo :
O Supremo Tribunal Federal já assentou o entendimento de que é
admissível a Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda
Constitucional, quando se alega, na inicial, que esta contraria princípios
imutáveis ou as chamadas cláusulas pétreas da Constituição originária (art.
62
60, § 4º, da CF). Precedente: ADI nº 939 (RTJ 151/755).
Assim sendo, seguindo o caminho das demais normas, a emenda
constitucional é capacitada para reger relações futuras e, eventualmente, os efeitos
futuros de relações jurídicas constituídas antes da sua promulgação (retroatividade
mínima).
A regra, portanto, segundo a interpretação da Suprema Corte, é a
impossibilidade de retroação, cuja exceção deve constar expressamente no texto
constitucional.
Nesse caso, na ausência de disposição transitória relacionada aos tratados e
convenções internacionais que já se encontravam em vigor, não se pode interpretar
que a omissão da norma constitucional imponha a aplicação retroativa de modo a
exigir nova aprovação, agora pelo procedimento das emendas. Ao contrário, diante
da omissão legislativa, deve prevalecer a regra da irretroatividade dos atos
normativos, pois os tratados precedentes foram incorporados ao ordenamento
jurídico com a observância do devido processo legal exigido na época, constituindo
ato legislativo perfeito.
Não existe, desse modo, a necessidade de se submeter à nova votação
qualquer ato normativo editado precedentemente à Constituição, quando esta
passou a exigir, em relação a determinada matéria, já regulamentada anteriormente,
a veiculação por meio instrumento normativo que exija quorum qualificado.
O exemplo clássico, comumente citado pela doutrina, é o Código Tributário
Nacional, editado em 1965 como lei ordinária, mas recepcionado pela atual ordem
62
ADI 1.946-MC, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ, 14/09/01.
44
constitucional como lei complementar em sentido material. É que na oportunidade,
não existia a figura da lei complementar, mas o art. 146, III, Constituição de 1988
passou a exigir essa espécie de lei para regular normas gerais em matéria de
legislação tributária. Por não haver inconstitucionalidade formal superveniente, o
CTN continua em vigor, mas somente pode ser alterado por lei complementar, em
função da reserva estabelecida para essa matéria na Constituição.
Somando
o
raciocínio
acima
exposto,
Francisco
Rezek
notável
internacionalista explicando o caso do Código Tributário Nacional, diz
Uma última dúvida diz respeito ao passado, a algum eventual direito que um
dia se tenha descrito em tratado de que o Brasil seja parte – e que já não se
encontre no rol do art. 5º. Qual o seu nível? Isso há de gerar controvérsia
entre os constitucionalistas, mas é sensato crer que ao promulgar esse
parágrafo na emenda constitucional de 45, de 8 de dezembro de 2004, sem
nenhuma ressalva abajulatória dos tratados sobre direitos humanos outrora
concluídos mediante processo simples, o congresso constituinte os elevou à
categoria dos tratados de nível constitucional. Essa é uma equação jurídica
da mesma natureza daquela que explica que nosso Código Tributário,
promulgado a seu tempo como lei ordinária, tenha-se promovido a lei
complementar à Constituição desde o momento em que a carta disse que
as normas gerais de Direito Tributário deveria estar expresso em diploma
63
dessa estatura
Dessarte, o mesmo pensamento deve prevalecer para os Tratados
Internacionais que tratem sobre Direitos Fundamentais, pois estes, sendo
inteiramente recepcionados como norma constitucional em sentido material, a luz
dos entendimentos do STF antes da Emenda 45, não necessitam de nova
submissão a aprovação nos moldes predeterminados pelo hodierno § 3º do art. 5º
da Carta Maior para serem alçados ao patamar constitucional.
Por perspicaz, a frase "que forem aprovados", dentro do §3º do art. 5º da CF,
tem sua eficácia/aplicação apenas para o futuro, em outras palavras, para os
contemporâneos tratados/convenções que venham a ser pactuados pelo Brasil, a
partir da vigor da Emenda Constitucional nº 45/2004.
Assim, nem mesmo o disposto no art. 49, inciso I, da Constituição Federal, “é
da competência exclusiva do Congresso Nacional: I – resolver definitivamente sobre
tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos
gravosos ao patrimônio nacional”, autorizaria eventual debate pelo Congresso
Nacional em sentido contrário, pois, sendo a incorporação do tratado um ato
63
REZEK, Francisco. Direito Internacional Público, curso elementar. 13. ed. rev. aum. atual. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 133.
45
complexo, o desempenho do parlamento circunda-se à sua aprovação, separandose ao chefe do executivo federal a ratificação mediante decreto.
Neste modelo procedimental de atuação de cada um dos personagens acima
citados, instou didaticamente o seguinte julgado no Supremo Tribunal Federal:
O exame da vigente Constituição Federal permite constatar que a execução
dos tratados internacionais e a sua incorporação à ordem jurídica interna
decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente
complexo, resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do
Congresso Nacional, que resolve, definitivamente, mediante decreto
legislativo, sobre tratados, acordos ou atos internacionais (CF, art. 49,
I) e a do Presidente da República, que, além de poder celebrar esses
atos de direito internacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe —
enquanto Chefe de Estado que é — da competência para promulgá-los
mediante decreto. O iter procedimental de incorporação dos tratados
internacionais — superadas as fases prévias da celebração da convenção
64
internacional (...)." .
Grifo Nosso.
Tudo isto significa que, unilateralmente, o Congresso Nacional, não pode
mais sujeitar os tratados/convenções sobre direitos fundamentais, celebrados no
passado, a nova anuência pelo rito das emendas, a alegação de lhes conferir
natureza normativa constitucional. Isso porque já se exauriu o devido processo legal,
quedando-se irremediável a preclusão procedimental e o ato jurídico perfeito, válido
e eficaz.
Entretanto, temos opiniões em sentido contrário, é o que salienta o Professor
Marcelo Novelino, em sua obra de direito constitucional, sob o seguinte enfoque:
Por consequência, de acordo com sua hierarquia, o tratado poderá servir
como parâmetro, respectivamente, para controle de: I) constitucionalidade
(por via principal ou incidental); II) supralegalidade (via incidental); ou, III)
legalidade (via incidental). Em relação aos tratados internacionais de direitos
humanos aprovados anteriormente à EC 45/2004, entendemos não haver
qualquer obstáculo à possibilidade de serem submetidos a uma nova
votação no congresso nacional e aprovados nos termos do art. 5º., §3.º, da
CF. Nesse caso, a iniciativa para provocar a nova apreciação deve ser
atribuída, por analogia legis, aos legitimados para a propositura de emendas
(CF, art. 60, I aIII). O argumento de que haveria uma recepção automática
desses tratados, com hierarquia equivalente ao de uma emenda à
Constituição, parece-nos insustentável, uma vez que o art. 5º., § 3.º, não
atribuiu status de norma constitucional todos os tratados internacionais de
direitos humanos, mas somente à àqueles aprovados por três quintos e em
65
dois turnos de votação.
64
65
ADI 1.480-MC, Rel. Min.Celso de Mello, DJ 18/05/01
NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro. Forense: São Paulo, Método, 2011. p. 504
46
Diante
de
tudo
esposado,
entende-se
que
os
tratados/convenções
internacionais de direitos humanos/fundamentais que entrem na nossa estrutura
jurídica antes de 31 de dezembro de 2004 foram admitidos pela Emenda
Constitucional de nº 45 como norma constitucional em sentido material, sendo que
somente podem ser revogados ou alterados pelo método especial das emendas
constitucionais, impondo-se, depois da citada data, a todas as relações jurídicas
constituídas anteriormente, das quais os efeitos comecem a aparecer após a sua
alocação ao patamar constitucional.
Conclui-se então que é perfeitamente possível, pelo uso das regras de direito
intertemporal, que um tratado internacional de direitos humanos possua a natureza
de norma ordinária, antes da Emenda Constitucional nº 45/04, e de norma
constitucional, após a mesma, ao longo de sua vigência, e ainda, pode-se dizer,
outrossim, que um tratado que versa sobre direitos humanos, mesmo não sendo
aprovado pelo rito constitucional requerido no art. 5º § 3º da CF, por este tratar de
direitos fundamentais (garantias e direitos individuais de todo cidadão), estes nunca
poderão ser revogados de nosso sistema por serem considerados, a luz do art. 5, §
2º da Constituição da República, cláusulas pétreas.
4.1.1 TRATADO INTERNACIONAL E SUA APLICAÇÃO
A chave que abre esta porta está na própria legislação interna de cada país,
dito de outra maneira, na reverência que cada ente dá ao direito internacional.
Entretanto, há escassas hipóteses em que este ramo do direito se aloque até
mesmo por cima da Constituição de cada País, como se pode observar no raro caso
da Holanda. Mas, nos dias de hoje, evidencia-se na prática quase que impossível à
permanência de um Ente Soberano puro, ou seja, desafeto à gerência do direito
internacional.
Existem duas correntes acerca do tema, teoria dualista e a teoria monista.
Os dualistas levam em consideração que o Direito InternacionaI é a relação
entre Estados, porquanto que as normas internas regulam a ação entre o Estado e
seus cidadãos. Dessa forma as convenções internacionais terão vigência em âmbito
externo até que seja internalizado. Ou seja, o dualismo pincela que o direito interno
e o direito internacional são dois imperativos normatizadores distintos.
47
Não se fala em conflito de normas, já que o direito internacional só terá
validade para o ordenamento jurídico nacional a partir do momento em que aquele
for incorporado neste.
Dessarte, as normas constitucionais não integram de pronto a ordem jurídica
interna do ente estatal, a partir da ratificação, todavia solamente com a devida
incorporação ou internalização, ou seja, realocação da norma de natureza
alienígena para o sistema interno estatal através da devida manifestação legislativa.
Assim, ocorrendo a incorporação do tratado, não se discute mais a
interpretação de uma norma interna e tratado, questiona-se então o conflito entre
dois dispositivos do mesmo ordenamento jurídico.
Perpassadas as explicações supras, surgiram duas subdivisões desse
dualismo: o dualismo radical, o qual, estabelece que o tratado internalizado passará
a ter valor jurídico após a criação de uma lei; e o dualismo moderado, que não faz
exigência de lei, necessita apenas de decreto, observados o procedimento no direito
interno.
Contudo, esta tese supracitada reconhece o instituto da responsabilidade
internacional, que se aplica quando o Estado não proporciona condição para que o
tratado possua eficácia chegando a possibilitar prejuízos a outra parte. Neste modo
a reponsabilidade tem respaldo no princípio do “pacta sunt servanda” in verbis: Todo
tratado em vigor vincula as partes e deve ser por elas executado de boa fé.66
A teoria monista defende apenas uma ordem jurídica formada pelo direito
internacional e direito interno. Dessa forma Accioly explica, "[...] em principio, o
direito é um só, quer se apresente nas relações de um Estado, quer nas relações
internacionais"67. Esta unidade pode se da com a primazia ao direito internacional ou
ao direito interno.
No Monismo com primazia do direito internacional, modalidade esta que teve
como seu maior precursor Hans Kelsen formulando a pirâmide das normas e
aplicando em seu vértice a norma fundamental, qual seja, o “pacta sun servanda”.
Diversos países, principalmente os europeus, foram influenciados por tal tese,
dentre eles a Alemanha, França, Holanda e Inglaterra. Esta teoria também foi
adotada por diversos laudos arbitrais internacionais, dentre elas a Corte
Internacional de Justiça.
66
67
Art. 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969.
ACCIOLY, H. Manual de Direito Internacional Público, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 62
48
Autores afirmam que este é o sistema adotado pelos EUA, pois os tratados
prevalecem quando em contradição com lei estadual, seja ela anterior ou posterior
ao Tratado A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de igual forma
adotou em seu artigo 27 a mesma regra: "uma parte não pode invocar as
disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado".
Esta teoria foi adotada no Brasil, até 1977, pelo Supremo Tribunal Federal,
vigorando ainda para os tratados que versem sobre Direitos Humanos, segundo a
interpretação do art. 5, parágrafo 2 da Constituição Federal.
Destacam-se como os principais estudiosos do assunto, Flavia Piovesan e
Cançado Trindade. Para eles, o Tratado de Direitos Humanos, ao ingressar no
ordenamento jurídico nacional, possui status de lei constitucional. Em caso de
conflito de normas, adota-se a teoria da norma mais benéfica. Celso Mello e H.
Accioly figuram como outros adeptos ao monismo com primazia do Direito
Internacional, no Brasil. Veja decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito do
posicionamento dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no ordenamento
jurídico brasileiro:
Tratando-se de convenções internacionais de direitos humanos, estas
guardem primazia hierárquica em face da legislação comum do Estado
brasileiro, sempre que se registre situação de antinomia entre o direito
interno nacional e as cláusulas decorrentes de referidos tratados
internacionais.
Isso significa, portanto, examinada a matéria sob a perspectiva da
“supralegalidade”, (...), que, cuidando-se de tratados internacionais sobre
direitos humanos, estes hão de ser considerados como estatutos situados
em posição intermediária que permite qualificá-los como diplomas
impregnados de estatura superior à das leis internas em geral, não
obstante subordinados à autoridade da Constituição da República. Grifo
68
do autor
Na corrente monista, o Direito Internacional é superior ao direito interno, em
observância aos artigos 26 e 27 da Convenção de Viena, supracitados.
Desta forma os tratados não necessitam de norma interna para ingressarem
no ordenamento jurídico, ingressa automaticamente, com prevalência sobre o direito
interno.
Quanto ao monismo com primazia ao direito interno, tal modalidade teve
como maior precursor Hegel. Esta teoria determina que a soberania do Estado é
absoluta.
68
RHC 90.450-5/MG, julg. 23.09.2008, in DJU de 06.09/2009.
49
Com a globalização, com o crescimento de atores internacionais no mundo,
com a influência dos laudos dos tribunais internacionais e opiniões de estadistas
estrangeiros, perante nossas cortes, é impossível pensar a soberania do Estado na
forma absoluta.
Esta teoria, adotada em regimes totalitários, choca-se com o art. 27 da
Convenção de Viena.
A maioria doutrinária no Direito Internacional brasileiro acredita que o Tratado
prevalece até que seja ele denunciado internacionalmente.
Neste sentido dispõe o art. 11 da Convenção de Havana sobre Tratados de
1928 (âmbito da América): "Tratados continuarão a produzir seus efeitos, ainda
quando se modifique a Constituição interna dos Estados contratantes".
Ao contrário da posição atualmente adotada pelo STF (vide, infra), os
internacionalistas primam pela superioridade do Tratado. A justificativa para tanto
está no fato de o Tratado possuir forma própria para sua revogação, ou seja, a
denúncia. De outra forma, só podem ser alterados por normas de igual categoria.
Não é compreensível a lógica de que norma interna revogue compromisso
internacional, e o poder legislativo, ao aprovar o compromisso internacional, assume
a responsabilidade de não editar leis posteriores ao Tratado que com ela conflita.
Trata-se de uma obrigação negativa assumida pelo Congresso Nacional – "teoria
do ato próprio" (venire contra factum proprium non valet), que impede que o
Congresso Nacional edite leis posteriores que contradigam o conteúdo do Tratado
internacional anteriormente aprovado.
Além
do
mais, há de
ser realizado um
"controle
preventivo"
da
constitucionalidade e da legalidade do tratado face ao ordenamento interno e aos
interesses do Brasil.
Vale ressaltar que o controle da constitucionalidade, após a internalização do
tratado no ordenamento brasileiro, dá-se pelo STF (via recurso extraordinário), nos
moldes do art. 102, inciso III, alínea "b" da CF, quando a decisão recorrida declarar a
inconstitucionalidade de Tratado, ou pelo STJ (via recurso especial), em
conformidade com o art. 105, inciso III, alínea "a" da CF, quando a decisão recorrida
contrariar Tratado ou negar-lhe vigência.69
Para os internacionalistas, em se tratando de Tratado que verse sobre Direitos
Humanos, nem mesmo a denúncia posterior poderá tirar a força obrigatória das
69
Op. cit.
50
normas já incorporadas no ordenamento brasileiro. Isso, como já debatido o Tratado
de Direitos Humanos, ao ingressar no Brasil, teria status de norma constitucional.
Vejamos:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
70
parte .
Desta forma, enxerga-se no nosso sistema constitucional a não exigência,
para a execução dos tratados no Brasil, a promulgação de Lei (Corrente dualista
extremada ou radical), bastando-se, apenas, com o procedimento previsto na CF,
que compreende a aprovação no congresso nacional e a promulgação por meio de
decreto pelo executivo federal.
Em outros dizeres o Brasil adotou o princípio do dualismo moderado. Desta
forma, podemos dizer que no nosso país há quatro fases distintas de internalização
dos tratados internacionais, citando-as pela classificação do emérito Professor Pedro
Lenza, a saber:
(...) celebração do tratado internacional (negociação, conclusão e
assinatura) pelo Órgão do Poder Executivo (ou posterior adesão [terceira
etapa], art. 84, VIII — Presidente da República); aprovação (referendo ou
“ratificação” lato sensu), pelo Parlamento, do tratado, acordo ou ato
internacional, por intermédio de decreto legislativo, resolvendo-o
definitivamente (Congresso Nacional — art. 49, I); troca ou depósito dos
instrumentos de ratificação (ou adesão, caso não tenha tido prévia
celebração) pelo Órgão do Poder Executivo em âmbito internacional;
promulgação por decreto presidencial, seguida da publicação do texto em
português no Diário Oficial. Neste momento o tratado, acordo ou ato
internacional adquire executoriedade no plano do direito positivo interno,
71
guardando estrita relação de paridade normativa com as leis ordinárias.
Observe como é originado o poder de celebrar tratados:
Vejamos que o poder de celebrar tratados — como é concebido e como de
fato se opera — é uma autêntica expressão do constitucionalismo;
claramente ele estabelece a sistemática de ‘checks and balances’. Ao
atribuir o poder de celebrar tratados ao Presidente, mas apenas mediante o
referendo do legislativo, busca -se limitar e descentralizar o poder de
celebrar tratados, prevenindo o abuso desse poder. Para os constituintes, o
70
71
Art. 5º, § 2º, da Constituição Federal.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012.p.
606.
51
motivo principal da instituição de uma particular forma de ‘checks and
balances’ talvez fosse o de proteger o interesse de alguns Estados, mas o
resultado foi o de evitar a concentração do poder de celebrar tratados no
72
Executivo, como era então a experiência europeia.
Pedro Lenza, ao citar Pedro Dalari, aventa que:
(...) muito embora o dispositivo mencione ‘tratados e convenções
internacionais’, a doutrina, a prática e mesmo a Convenção de Viena sobre
o Direito dos Tratados entendem a fórmula como redundante, já que,
independentemente da denominação que tenha cada documento (tratado,
convenção, acordo, pacto, carta, lei uniforme, protocolo, estatuto,
concordata etc.), o vocábulo ‘tratado’ se aplica a todo acordo internacional
concluído por escrito entre Estados ou organizações internacionais e que
seja destinado a produzir efeitos jurídicos. Observe -se que a própria
Constituição brasileira não é de forma alguma homogênea a esse respeito:
o art. 49, I, faz referência a tratados e acordos; o art. 84, VIII, a tratados e
convenções; o § 2.º do art. 5.º, o art. 102, III, ‘b’, o art. 105, III, ‘a’, o art. 109,
III, e o § 5.º acrescido ao mesmo art. 109, apenas a tratados; e o art. 178,
apenas a acordos.
Dessa maneira, suprema Corte decidiu a matéria em dois recursos
extraordinários73 buscando enfrentar a constitucionalidade da prisão civil para o
inadimplemento em contratos de alienação fiduciária em garantia.
Em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes, acompanhando o voto do relator,
acrescentou os seguintes fundamentos:
“(...) parece mais consistente a interpretação que atribui a
característica de supralegalidade aos tratados e convenções de
direitos humanos”.
Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre
direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de
seu caráter especial em relação aos demais atos normativos
internacionais, também seriam dotados de um atributo de
supralegalidade.
Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não
poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam
lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equiparálos à legislação ordinária seria subestimar o seu valor
especial no contexto do sistema de proteção dos direitos
da pessoa humana” (grifamos). 74
Concluindo, entendeu que a previsão, pelo Pacto e pela
Convenção internacional, da prisão por dívida deixa de ter aplicabilidade.
“tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e
qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela
72
Op. cit. p. 607.
RE 466.343 e RE 349.703.
74
RE 466.343- disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444>.
Acesso em 20/08/2012.p. 49.
73
52
conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da
supremacia da Constituição sobre os atos normativos
internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do
depositário infiel (art. 5.º, inciso LXVII) não foi revogada pela
ratificação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
(art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos
— Pacto de San José da Costa Rica (art. 7.º, 7), mas deixou
de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses
tratados em relação à legislação infraconstitucional que
disciplina a matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de
1916 e o Decreto -lei n. 911, de 1.º de outubro de 1969”.75
Finalmente, entendeu que a prisão civil do devedor fiduciante afronta o
princípio da proporcionalidade, na medida em que existem outros meios “(...)
processuais executórios postos à disposição do credor fiduciário para a garantia do
crédito (...),76
Sintetizando, afirma-se, que, conforme visto os tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos e desde que aprovados por 3/5 dos votos de
seus membros, em cada Casa do Congresso Nacional e em 2 turnos de votação:
equivalem a emendas constitucionais, guardando, desde que observem os “limites
do poder de reforma”, estrita relação de paridade com as normas constitucionais;
tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados pela regra
anterior à Reforma e desde que não forem confirmadas pelo quorum qualificado
terão natureza supralegal (ou mesmo de emenda, vide o tópico anterior); tratados e
convenções internacionais de outra natureza: têm força de lei ordinária.
Os fundamentos que levaram o Supremo Tribunal Federal a rever sua
posição são de máxima relevância para o caso concreto que se está a analisar aqui,
mas também para toda e qualquer discussão que verse sobre a recepção de
tratados internacionais pelo ordenamento jurídico nacional.
O voto do Ministro Gilmar Mendes proferido no RE 466.343 é sintomático e
bem reflete estes fundamentos. Por sua relevância, cabe transcrever algumas
passagens77:
Apesar da interessante argumentação proposta por essa tese, parece que a
discussão em torno do status constitucional dos tratados de direitos
75
RE 466.343- disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444>.
Acesso em 20/08/2012.p.55.
76
RE 466.343. - disponível em
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444>. Acesso em 20/08/2012.p. 64.
77
Páginas 10-11 do voto; fls. 1144-1145 dos autos – grifos originais. Disponível em
http://www.stf.jus.br/imprensa/pdf/re466343.pdf> . Acesso em 05/11/2012.
53
humanos foi, de certa forma, esvaziada pela promulgação da Emenda
Constitucional n- 45/2004, a Reforma do Judiciário (oriunda do Projeto
de Emenda Constitucional n- 29/2000), a qual trouxe como um de seus
estandartes a incorporação do § 3- ao art. 5-, com a seguinte disciplina: "Os
tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais."
Em termos práticos, trata-se de uma declaração eloqüente de que os
tratados já ratificados pelo Brasil, anteriormente à mudança constitucional, e
não submetidos ao processo legislativo especial de aprovação no
Congresso Nacional, não podem ser comparados às normas
constitucionais. Não se pode negar, por outro lado, que a reforma também
acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em
relação aos demais tratados de reciprocidade entre os Estados pactuantes,
conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico.
(...)
Em outros termos, solucionando a questão para o futuro – em que os
tratados de direitos humanos, para ingressarem no ordenamento jurídico na
qualidade de emendas constitucionais, terão que ser aprovados em quorum
especial nas duas Casas do Congresso Nacional –, a mudança
constitucional ao menos acena para a insuficiência da tese da legalidade
ordinária dos tratados e convenções internacionais já ratificados pelo Brasil,
a qual tem sido preconizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal desde o remoto julgamento do RE n° 80.004/SE, de relatoria do
Ministro Xavier de Albuquerque (julgado em 1º.6.1977; DJ 29.12.1977) e
encontra respaldo em um largo repertório de casos julgados após o advento
da Constituição de 1988.
Sobre a teoria consagrada no Supremo Tribunal Federal em 1977, o Ministro
Gilmar Mendes questiona sua validade diante do contexto jurídico-social atual e sob
o ponto de vista internacional78:
É preciso ponderar, no entanto, se, no contexto atual, em que se pode
observar abertura cada vez maior do Estado constitucional a ordens
jurídicas supranacionais de proteção de direitos humanos, essa
jurisprudência não teria se tornado completamente defasada. (...)
No continente americano, o regime de responsabilidade do Estado pela
violação de tratados internacionais vem apresentando uma considerável
evolução desde a criação da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, também denominada Pacto de São José da Costa Rica, adotada
por conferência interamericana especializada sobre direitos humanos, em
21 de novembro de 1969. Entretanto, na prática, a mudança da forma pela
qual tais direitos são tratados pelo Estado brasileiro ainda ocorre de maneira
lenta e gradual. E um dos fatores primordiais desse fato está no modo como
se tem concebido o processo de incorporação de tratados internacionais de
direitos humanos na ordem jurídica interna.
(...)
Tudo indica, portanto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,
sem sombra de dúvidas, tem de ser revisitada criticamente. (...). Importante
deixar claro, também, que a tese da legalidade ordinária, na medida em que
permite ao Estado brasileiro, ao fim e ao cabo, o descumprimento unilateral
78
Páginas 13, 18, 20 e 26-27; fls. 1147, 1152, 1154 e 1160-1161 dos autos – grifos originais.
54
de um acordo internacional, vai de encontro aos princípios internacionais
fixados pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, a
qual, em seu art. 27, determina que nenhum Estado pactuante "pode
invocar as disposições de seu direito interno para justificar o
inadimplemento de um tratado". Por conseguinte, parece mais consistente a
interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e
convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que
os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém,
diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos
internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade.
Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam
afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado
no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria
subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos
direitos da pessoa humana.
(...)
Assim, a premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos
direitos humanos nos planos interno e internacional torna imperiosa uma
mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre
direitos na ordem jurídica nacional. É necessário assumir uma postura
jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos
supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano. (...)
Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais
que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a
sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de
ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia
jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela
conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da
Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão
constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5°, inciso LXVII) não
foi revogada pelo ato de adesão do Brasil ao Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos - Pacto de São José da Costa Rica (art. 7°, 7), mas deixou de ter
aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à
legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o art. 1.287
do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei n° 911, de 1° de outubro de 1969.
Assim, após mais de 30 anos, à unanimidade de votos o Supremo Tribunal
Federal reviu sua posição sobre a hierarquia dos tratados internacionais,
notadamente os relativos aos direitos humanos, para lhes conferir não mais a
paridade com as leis internas nacionais, mas um plano de eficácia superior a elas.
Veja-se a importância dos efeitos desta nova orientação jurisprudencial: no
caso concreto dos Recursos Extraordinários nº 466.343 e 349.703, a legislação que
previa a prisão civil do depositário infiel, o Decreto-lei nº 911/69 e as alterações
promovidas pela Lei nº 6.071/74, deixou de ter “aplicabilidade” em razão do “efeito
paralisante” do Pacto de São José da Costa Rica. É incontestável, pois, que o que
se tem de mais atual na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito da
hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos é a sua prevalência sobre
55
as normas infraconstitucionais e o “efeito paralisante desses tratados em relação à
legislação infraconstitucional que disciplina a matéria”.
4.2 GARANTIA DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
Os acusados com foro por prerrogativa de função não têm direito ao duplo
grau de jurisdição, aí entendido como a possibilidade de reexame integral da
sentença de primeiro grau a ser confiado a órgão diverso do que a preferiu e de
hierarquia superior na ordem judiciária.
Na concepção de Vicente Greco Filho essa garantia fundamental arrima-se no
fundamento que “O juiz único gera grave risco de decisão injusta, daí a necessidade
do sistema recursal; mas também é indispensável a participação do juiz de primeiro
grau, dada a sua imediatidade ao fato e a possibilidade de melhor aferição da
prova”.
Coadunando com tal entendimento Chiovenda reconhece no duplo grau de
jurisdição uma garantia para o cidadão em três aspectos: à medida em que um
julgamento reiterado torna, já por si, possível a correção de erros; porque dois
julgamentos são confiados a juízes diversos que apreciarão independentemente a
matéria; e uma vez que o segundo juiz se apresenta como mais autorizado que o
primeiro79
O professor Cândido Rangel Dinamarco, de seu turno, comungando com tal
pensamento,
manifesta-se
contra
aquilo
que
denomina
de
“bolsões
de
irrecorribilidade”, assentando que eles “(...) transgrediriam o essencial fundamento
político do duplo grau, que em si mesmo é projeção de um dos pilares do regime
democrático, abrindo caminho para o arbítrio do juiz não sujeito a controle algum” 80
O duplo grau de jurisdição encontra também arrimo na Convenção Americana
de Direitos Humanos, o denominado de “Pacto de São José da Costa Rica”,
importante instrumento garantidor dos direitos fundamentais da pessoa, internalizado
no País pelo Decreto 678/1992, o qual, em seu art. 8o, 2, h, estabelece:
“Artigo 8o - Garantias judiciais
1 - Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e
dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente,
independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração
79
GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 1. vol. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2000,
p. 51
80
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. vol. I. São Paulo: Malheiros,
2001, p. 240.
56
de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de
seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer
outra natureza.
2 - Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua
inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o
processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes
garantias mínimas:
(...)
h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”.
Ademais, como se sabe, a nossa Constituição preconiza, em seu art. 5º, § 2º,
que os direitos e garantias nela expressos “não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte”.
Ainda que não se adote a tese segundo a qual todos os direitos fundamentais
previstos em tratados internacionais têm hierarquia constitucional, eis que tal
depende da forma como são internalizados, lembro que a suprema Corte
posicionou-se no sentido de eles possuem, no mínimo, uma natureza supralegal,
segundo definição do Plenário levada a efeito no julgamento dos Recursos
Extraordinários.81
Naqueles julgamentos entendeu-se insubsistente a prisão civil do depositário
infiel, prevista na legislação ordinária, em face da adesão do Brasil, sem qualquer
reserva, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art.
11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7º, 7).
Desse modo, não vejo como seja possível admitir-se que a interpretação de
normas infraconstitucionais, notadamente daquelas que integram Código de
Processo Penal - instrumento cuja finalidade última é proteger o jus libertatis do
acusado diante do jus puniendi estatal – derrogue a competência constitucional
estrita fixada pela Carta Magna aos diversos órgãos judicantes e, mais, permita
malferir o princípio do duplo grau de jurisdição, nela abrigado e mais uma vez
acolhido, de livre e espontânea vontade, pelo Brasil, após a promulgação daquela,
quando aderiu sem reservas ao Pacto de San José da Costa.
Recordo, a propósito, que é regra comezinha de hermenêutica constitucional
que a interpretação das leis deve ser feita em conformidade com a Constituição, e
não o contrário. Com efeito, não se admite que se extraia o sentido desta a partir do
81
Recursos Extraordinários
Peluso.
81
394.703/RS, Rel. Min. Ayres Britto, e 466.343/SP, Rel. Min. Cezar
57
conteúdo daquelas.
Segundo o mestre Canotilho:
“A superioridade normativa da constituição implica, como se disse, o
princípio da conformidade de todos os atos do poder político com as normas
e princípios constitucionais. Em termos aproximados e tendenciais, o
referido princípio pode formular-se da seguinte maneira: nenhuma norma de
hierarquia inferior pode estar em contradição com outra de dignidade
superior – princípio da hierarquia – e nenhuma norma infraconstitucional
pode estar em desconformidade com as normas e princípios constitucionais,
sob pena de inexistência, nulidade, anulabilidade ou ineficácia – princípio da
82
constitucionalidade”
Não se diga, de resto, que o princípio do duplo grau pode ser validamente
desconsiderado nos casos em que se apura infrações penais conexas praticadas
por agentes com prerrogativa de foro em concurso com outros que ostentam
situação processual distinta.
É que, como visto, o afastamento do duplo grau de jurisdição se dá sempre
em caráter excepcional e em situações restritas, ou seja, apenas nos casos em que
a própria Constituição abre uma brecha na regra geral. Mais especificamente, só em
relação aos ocupantes de cargos públicos sujeitos à competência penal originária da
Suprema Corte é que o julgamento é único e irrecorrível, por opção dos próprios
constituintes.
Não obstante a previsão expressa do duplo grau de jurisdição na Convenção
Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), entendeu o
Suprem tribunal Federal, silenciou acerca de cabimento de recursos ordinários nos
casos
de
competências
originárias
dos
tribunais,
não
poderia
o
direito
infraconstitucional instituí-los.
Logo, se um membro do Ministério Público Estadual praticar determinado
delito (salvo crime eleitoral), deverá ser processado e julgado no tribunal de justiça
do respectivo Estado, não tendo o direito de apelar em caso de decisão
condenatória. Isso, todavia, não significa que não possa recorrer, porquanto será
passível a interposição de recurso Extraordinário ou Especial, ou ainda, se cabível,
Habeas Corpus constitucional, nas hipóteses expressamente previstas no art. 102,
inc. I, “i”, 105, inc. I, “c”. No entanto, esses recursos extraordinários não
correspondem ao denominado duplo grau de jurisdição, na medida em que, por meio
.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra:
Almedina, 2003, p. 1148.
82
58
deles não se admite impugnação de matéria de fato e de direito. Prestam-se, muito
mais, à tutela da Constituição Federal e da legislação existência do duplo grau de
jurisdição aos acusados com foro por prerrogativa de função, utilizou como uma de
suas premissas o status hierárquico que a Suprema Corte emprestava aos tratados
internacionais de direitos humanos à época, qual seja, o de lei ordinária. Ocorre que,
posteriormente, houve uma mudança paradigma por parte do Supremo, que passou
a entender que os tratados internacionais de direitos humanos possuem status
normativo supralegal, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação
interna.
Ora, tendo em conta que o duplo grau de jurisdição está previsto
expressamente na Convenção Americana de Direitos Humanos (“Art. 8º, nº 2, “h” –
direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior), resta saber, então, se
esse entendimento do Supremo Tribunal Federal negando o direito ao duplo grau de
jurisdição não está a merecer de posicionamento nos casos em que o corréu sem
foro por prerrogativa de função é julgado pelos Tribunais em virtude da conexão ou
da continência.
De acordo com a súmula nº 704 do Supremo, não viola as garantias do juiz
natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou
conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos
denunciados. Da leitura da referida súmula, que não se faz menção à eventual
violação ao princípio do duplo grau de jurisdição, depreende-se que caso um
deputado federal pratique um crime em coautoria com um cidadão que não faça jus
a foro por prerrogativa de função, ambos poderão ser julgados pela Suprema Corte.
Em relação ao Deputado Federal, pensamos que a questão não apresenta
maiores problemas. Afinal, se a própria Constituição estabeleceu seu foro por
prerrogativa de função perante a mais alta corte do país (art. 53, § 1º), não havendo
um juízo ad quem que possa viabilizar a aplicação do princípio do duplo grau de
jurisdição, este não terá o direito de apelar.
Todavia, bem diversa é a situação do coautor. De fato, o que determina o
simultaneus processus em relação à sua pessoa perante o Supremo é a continência
por cumulação subjetiva, norma prevista em lei ordinária: Código de Processo Penal
(art. 77, inc. I). Ocorre que, por força desse julgamento perante o Supremo, o
coautor não terá o direito de apelar. Fica a dúvida, então: poderia uma lei ordinária
(Código de Processo Penal, art. 77, inc. I) prevalecer sobre dispositivo que tem
59
status normativo supralegal (Pacto de São José da Costa Rica, art. 8º, nº 2, “h”),
privando o coautor do direito de apelar? Pensamos que não. Destarte, diante do
status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos, e
considerando que a Convenção Americana de Direitos Humanos prevê de maneira
expressa o direito ao duplo grau de jurisdição, caso o autor não tenha foro por
prerrogativa de função, impõe-se a separação dos processos, respeitando-se,
quanto a este, o direito assegurado no art. 8, nº 2, “h”, do Dec. Nº 678/1992.
4.2.1 CASO ‘MENSALÃO ”
O julgamento do Supremo Tribunal Federal, ao consolidar com força os
valores republicanos, como o da independência judicial, reprovação da corrupção,
moralidade pública, desonestidade dos partidos políticos, retidão ética dos agentes
públicos, financiamento ilícito de campanhas eleitorais etc., bem como o valor
histórico para não dizer insuperável, é, do ponto de vista procedimental e do respeito
às regras do Estado de Direito, provincianismo e o autoritário, extraído de máximas
do direito latino-americano, incluindo, especialmente, o do Brasil, apresentam-se
estas correntes como pensamentos deploráveis.83
O emblemático caso de Las Palmeras a Corte Interamericana mandou
processar novamente um determinado réu (no Estado da Colômbia) porque o juiz do
processo era o mesmo que o tinha investigado anteriormente. Uma mesma pessoa
não pode ocupar esses dois polos, ou seja, não pode ser investigador e julgador no
mesmo processo.
É o denominado princípio ne procedat iudex ex officio, extraído de mais um
brilhante artigo do Professo Luiz Flávio Gomes, veja-se:
O clássico princípio do ne procedat iudex ex officio visa a exatamente
resguardar o magistrado de qualquer comprometimento psicológico prévio
com a prova. Daí a inconstitucionalidade do art. 3.º da Lei 9.034/95,
reconhecida pelo STF, na ADINn 1570, que atribuía ao juiz competência
para a busca de provas e ao mesmo tempo para julgar o caso.
O juiz que envia a um tribunal um ofício “secreto”, justificando as medidas
judiciais tomadas em um procedimento investigatório clandestino, que pede
para que seu ofício não seja juntado aos autos, que as partes interessadas
não tenham conhecimento dele, para além de retroceder ao tempo da
inquisição e de violar o princípio da publicidade dos atos judiciais, está
claramente impedido de ser o juiz da causa, porque envolvido psicológica e
ativamente com a investigação precedente.
83
GOMES, Luiz Flávio. Mensalão: julgamento do STF pode não valer. Jus Navigandi, Teresina, ano
17, n. 3374, 26 set. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22696>. Acesso em: 5 nov.
2012.
60
Sendo a imparcialidade do juiz uma das mais importantes garantias do
devido processo, resulta claro que todos nós, operadores do Poder Jurídico,
por ela devemos lutar, com todas as nossas forças, porque ela faz parte do
nosso modelo político-jurídico de organização, sintetizado hoje no
denominado Estado constitucional e humanista de direito.
Entretanto, o que mais espanta é que o Regimento Interno do STF, no
entanto (art. 23084), fugindo-se da regra civilizatório já conquistado nas reiteradas
decisões internacionais, impende exatamente isso. O ínclito Ministro Joaquim
Barbosa, no “mensalão”, governou a fase investigativa e, agora, embora
psicologicamente tendencioso com tal aquela, está participando do julgamento. É
aqui que mora o primeiro vício procedimental que poderá dar ensejo a um novo
julgamento a ser determinado pela Corte Interamericana.85
Existe, porém, noutro vértice um grave vício no procedimento da Ação penal
470: que trata da suplantação ao denominado, e explicado princípio do duplo grau
de jurisdição, dito de outra maneira: todo acusado no âmbito criminal tem, por força
da Convenção Americana de Direitos Humanos, de ser processado e julgado em
relação aos fatos e às provas por duas vezes.
O consenso era de que, quem é julgado originariamente pelo STF, à luz do
foro privilegiado, não teria este direito, pois as suas regras de processamento já
estariam previstas na CF.. Mas, como visto, o douto advogado Márcio Thomaz
Bastos suscitou a controvérsia e requereu o desmembramento do processo logo no
início da primeira sessão, o que foi indeferido pela corte por 9 votos a 2.
Outrora convencido com a impossibilidade de aqueles detentores de foro ser
impedido do duplo grau de jurisdição, e hoje não mais, nos cativa com sua
humildade e brilhantismo o emérito Professor Luiz Flávio Gomes (LFG):
Atualmente, depois da leitura de um artigo (de Ramon dos Santos) e de
estudar atentamente o caso Barreto Leiva contra Venezuela, julgado bem
no final de 2009 e publicado em 2010, minha convicção é totalmente
oposta. Estou seguro de que o julgamento do mensalão, caso não seja
anulado em razão do primeiro vício acima apontado (violação da garantia da
imparcialidade), vai ser revisado para se conferir o duplo grau de jurisdição
84
Art. 230. A denúncia nos crimes de ação pública, a queixa nos de ação privada, bem como a
representação, quando indispensável ao exercício da primeira, obedecerão ao que dispõe a lei
processual.
85
GOMES, Luiz Flávio. Juiz que investiga não pode julgar (o STJ suspende ação penal no caso
Castelo de Areia). LFG São Paulo, 15 de fevereiro. 2010 . Disponível em: <
http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20100212094424378&mode=print6>. Acesso em:
5 nov. 2012.
61
para todos os réus, incluindo-se os que gozam de foro especial por
86
prerrogativa de função.
Mire-se que no Tribunal Europeu de Direitos Humanos é pacífico o
entendimento de que o julgamento pela Corte Mor do País não necessita contar com
o duplo grau de jurisdição. Entretanto, salienta-se que no Brasil, desde 1998, está
sujeito aos entendimentos da Corte Interamericana, que sedimentou posicionamento
contrário (no final de 2009). Não se fez, ademais, nenhuma reserva em relação a
esse ponto (os de foro com competência originária). “Então, nosso País tem o dever
de cumprir o que está estatuído no art. 8, 2, h, da Convenção Americana (Pacta sunt
servanda).” 87.
Continua Luiz Flávio Gomes na defesa do duplo grau:
A Corte Interamericana (no caso Barreto Leiva) declarou que a Venezuela
violou o seu direito reconhecido no citado dispositivo internacional, “posto
que a condenação proveio de um tribunal que conheceu o caso em única
instância e o sentenciado não dispôs, em consequência [da conexão], da
possibilidade de impugnar a sentença condenatória.” A coincidência desse
caso com a situação de 35 réus do mensalão é total, visto que todos eles
88
perderam o duplo grau de jurisdição em razão da conexão.
Porém, melhor que interpretar é reproduzir o que disse a Corte:
Cabe observar, por outro lado, que o senhor Barreto Leiva poderia ter
impugnado a sentença condenatória emitida pelo julgador que tinha
conhecido de sua causa se não houvesse operado a conexão que levou a
acusação de várias pessoas no mesmo tribunal. Neste caso a aplicação da
regra de conexão traz consigo a inadmissível consequência de privar o
89
sentenciado do recurso a que alude o artigo 8.2.h da Convenção.
A decisão da Corte foi mais longe:
(...) de esta Sentencia, debe conceder al señor Barreto Leiva, si este así lo
solicita, la facultad de recurrir de la sentencia y revisar en su totalidad el fallo
condenatorio al que hace referencia esta Sentencia (supra párr. No se
encuentra el origen de la referencia.). Si el juzgador decide que la condena
estuvo ajustada a Derecho, no impondrá ninguna pena adicional a la víctima
y reiterará que ésta ha cumplido con todas las condenas impuestas en su
oportunidad. Si por el contrario, el juzgador decide que el señor Barreto
Leiva es inocente o que la condena impuesta no se ajustó a Derecho,
dispondrá las medidas de reparación que considere adecuadas por el
tiempo que el señor Barreto Leiva estuvo privado de su libertad y por todos
los perjuicios de orden material e inmaterial causados. Esta obligación
deberá ser cumplida en un plazo razonable. (...) El Estado debe, dentro de
86
GOMES, Luiz Flávio. Mensalão: julgamento do STF pode não valer. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n.
3374, 26 set. 2012 . Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/22696> .Acesso em: 5 nov. 2012.
87
Op. cit.
88 88
GOMES, Luiz Flávio. Mensalão: julgamento do STF pode não valer. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n.
3374, 26 set. 2012 . Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/22696> .Acesso em: 5 nov. 2012.
89
Op. Cit.
62
un plazo razonable y conforme a los párrafos No se encuentra el origen de
la referencia. No se encuentra el origen de la referencia. de esta Sentencia,
adecuar su ordenamiento jurídico interno, de tal forma que garantice el
derecho a recurrir de los fallos condenatorios, conforme al artículo 8.2.h de
la Convención, a toda persona juzgada por un ilícito penal, inclusive a
90
aquéllas que gocen de fuero especial. Grifos Nossos.
Inclusive os réus com foro especial contam com o direito ao duplo grau; por
isso é que mandou a Venezuela adequar seu direito interno à jurisprudência
internacional:
Sem prejuízo do anterior e tendo em conta as violações declaradas na
presente sentença, o Tribunal entende oportuno ordenar ao Estado que,
dentro de um prazo razoável, proceda a adequação de seu ordenamento
jurídico interno, de tal forma que garanta o direito a recorrer das sentenças
condenatórias, conforme artigo 8.2.h da Convenção, a toda pessoa julgada
91
por um ilícito penal, inclusive aquelas que gozem de foro especial.
Ainda, subsiste uma forte tese favorável ao duplo grau de jurisdição no caso
mensalão, pois, este conta com um total de 118 réus, sendo que 35 estão sendo
julgados pelo Supremo Tribunal Federal e outros 80 respondem a processos em
várias comarcas e juízos do país
O escândalo do mensalão tem pelo menos 118 réus em processos abertos
em diferentes instâncias da Justiça, o triplo da quantidade de acusados em
julgamento há mais de um mês no Supremo Tribunal Federal (STF). O
GLOBO teve acesso à lista de processos iniciados a partir da denúncia
principal do esquema e aos pedidos de investigação encaminhados pela
Procuradoria Geral da República (PGR) às procuradorias da República nos
92
estados .
Todos esses 80 réus contarão com o direito ao duplo grau de jurisdição, que
foi negado pelo Supremo Tribunal Federal para outros réus. Situações idênticas
tratadas de forma absolutamente desigual.93
Assim, Luiz Flávio Gomes questiona:
(...) o que a Corte garante aos réus condenados sem o devido respeito ao
direito ao duplo grau de jurisdição, tal como no caso mensalão? A
possibilidade de serem julgados novamente, em respeito à regra contida na
Convenção Americana, fazendo-se as devidas adequações e acomodações
90
Disponível em: https://www.u-cursos.cl/derecho/2010/1/CPRBSIDH/1/.../271764. CORTE
INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS - CASO BARRETO LEIVA VS. VENEZUELA
SENTENCIA DE 17 DE NOVIEMBRE DE 2009.
91
GOMES, Luiz Flávio. Mensalão: julgamento do STF pode não valer. Jus Navigandi, Teresina, ano
17, n. 3374, 26 set. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22696>. Acesso em: 5 nov.
2012.
92
Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/no-rastro-do-stf-mais-80-reus-no-mensalao-6109002.
93
Op. Cit.
63
no direito interno. Com isso se desfaz a coisa julgada e pode eventualmente
94
ocorrer a prescrição.
Em razão das jurisprudências, nacionais e internacionais citadas, há de
reconhecer a evidencia de que os patronos dos acusados poderão pleitear, junto à
Comissão Interamericana, a consignação de “uma inusitada medida cautelar para
suspensão da execução imediata das penas privativas de liberdade, até que seja
respeitado o direito ao duplo grau”95.
Vindo isto ineditamente a acontecer, os condenados do mensalão, com foro
originário ou não, aguardaria o tão sonhado duplo grau em liberdade. Assim, por
vícios procedimentais da nossa jurisprudência, frente à crescente e inovadora
jurisprudência internacional, corremos o risco de “a mais histórica de todas as
decisões criminais do STF pode ter seu brilho ético, moral, político e cultural
nebulosamente ofuscado”. 96.
94
Op. Cit.
Op. Cit.
96
Op. Cit.
95
64
5 CONCLUSÃO
Conquanto o Supremo Tribunal Federal tenha posicionamento unânime e
consolidado de que a fixação de foro para os detentores de função não viola as
garantias do juiz natural, do contraditório e do devido processo legal (não se pode
olvidar que não se faz menção do duplo grau de jurisdição), o que, inclusive, deu
azo ao enunciado de súmula nº 704, entendimento do qual não há divergência
doutrinária expressiva, é de se concluir, data venia, que o mesmo raciocínio não
pode ser aplicado aos corréus que não detenham foro por prerrogativa de função.
É que, malgrado tenha o STF, por maioria, ratificado no julgamento da AP nº
470, cujo acórdão ainda pende de publicação, a possibilidade de tais corréus
poderem, ante a aplicação dos institutos da conexão e continência, ser julgados
originariamente, pela prática de crime comum, pelo STF, tal inteligência acaba por
negar aos aludidos corréus o direito ao duplo grau de jurisdição, consagrado
expressamente no Pacto de San Jose da Costa Rica, ao juiz natural, devido
processo legal, contraditório e ampla defesa.
Cumpre salientar, mais, que é inerente à cidadania o princípio do juiz natural.
Os acusados não detentores de tal prerrogativa têm o direito ao devido processo
legal e este há de fazer-se presente com a atuação da primeira instância e a
recorribilidade cabível. O cidadão tem o direito de saber quem o acusará em nome
do Estado e quem, também em nome deste, o julgará, premissa conducente à
existência das duas figuras, a do promotor natural e a do juiz natural, definidas, sob
o ângulo da individualização, pelo arcabouço normativo. Não me impressiona a
argumentação concernente à possibilidade de decisões conflitantes em relação a
corréus, pois estas são próprias ao sistema e podem ser corrigidas, podem ser
afastadas, mediante o manejo do sistema recursal previsto no ordenamento jurídico.
Por tais razões – salientando a necessidade de este Tribunal mostrar- se
rigoroso com a preservação de princípios, porquanto, em Direito, o meio justifica o
fim, mas não este aquele, principalmente quando em jogo o juiz natural, ou seja,
aquele adrede constituído para julgamento da ação –, acolho a questão de ordem
suscitada para determinar o desmembramento da Ação Penal no 470/MG em
relação aos réus não detentores da prerrogativa de foro, observando-se o
aproveitamento dos atos processuais até aqui realizados. Vale dizer, o processo irá
à primeira instância aparelhado para apreciação.
Todavia, bem diversa é a situação do coautor. De fato o que determina o
simultaneus processus em relação à sua pessoa perante o Supremo é a continência
65
por cumulação subjetiva, norma prevista em lei ordinária: Código de Processo Penal,
(art. 77 inc. I).
Ocorre que, por força desse julgamento perante o Supremo, o coautor não
terá direito de apelar, fica a dúvida: poderia uma lei ordinária (CPP, art. 77, inc. I)
prevalecer sobre dispositivo que tem status normativo supralegal (Pacto de San José
da Costa Rica, art. 8º, nº 2, “h”), privando o coautor do direito de apelar? Pensamos
que não. Destarte, diante do status normativo supralegal dos tratados internacionais
de direitos humanos, é considerado que a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos prevê de maneira expressa o direito ao duplo grau de jurisdição, caso o
coautor não tenha foro por prerrogativa de função, impõe-se a separação dos
processos, respeitando-se quanto a este o direito assegurado no art. 8, nº 2, “h”, do
Dec. nº 678/1992.
Desse modo, não vejo como seja possível admitir-se que a interpretação de
normas infraconstitucionais, notadamente daquelas que integram Código de
Processo Penal - instrumento cuja finalidade última é proteger o jus libertatis do
acusado diante do jus puniendi estatal – derrogue a competência constitucional
estrita fixada pela Carta Magna aos diversos órgãos judicantes e, mais, permita
malferir o princípio do duplo grau de jurisdição, nela abrigado e mais uma vez
acolhido, de livre e espontânea vontade, pelo Brasil, após a promulgação daquela,
quando aderiu sem reservas ao Pacto de San José da Costa.
Portanto, não devem os institutos da conexão e continência, previstos tão
somente na legislação ordinária, quando verificados os requisitos para sua
deflagração, determinar a reunião dos processos perante as cortes superiores, de
sorte a malversar, máxime, o direito ao duplo grau de jurisdição, previsto em norma
de maior densidade constitucional, de caráter supralegal.
Por tudo isso, a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal processar e
julgar corréus sem foro por prerrogativa de função, data maxima venia, dá-se de
forma ilegal, pois não pode o STF, no afã de fazê-lo.
66
6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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67
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RE 466.343- disponível em
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TÁVORA, Nestor e Antonni, Rosmar. Curso de Direito Processual Penal. 3ª Ed. Bahia:
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<http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20120803-07.pdf>. Acessado em 15/09/2012
GABRIEL, Amélia Regina Mussi. O conflito entre tratado e direito interno face ao ordenamento
jurídico brasileiro e outras questões conexas. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 390, 1 ago. 2004 .
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/5505> . Acesso em: 6 nov. 2012.
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Jose Evandro Pereira da Silva - Universidade Católica de Brasília