BOLETIM DE INTERESSES DIFUSOS
SUMÁRIO
LEGISLAÇÃO
Direitos dos consumidores
DOUTRINA
Cláusulas contratuais gerais
UM CASO PRÁTICO
Cláusulas contratuais gerais
1
Procuradoria-Geral da República
Março de 1994
O Boletim “Interesses Difusos”, cuja publicação ora se inicia, pretende
contribuir para a informação actualizada de todos os Magistrados e Agentes do
Ministério Público relativamente a legislação, doutrina e jurisprudência atinentes à
problemática dos interesses difusos.
O Boletim, elaborado pelo Gabinete do Procurador-Geral da República, terá
periodicidade trimestral e será distribuído a todos os Magistrados e Agentes do
Ministério Público.
Privilegiar-se-á a divulgação de intervenções processuais do Ministério
Público que, pela dimensão ou novidade da situação, possam representar um contributo
para a resolução de questões de contornos semelhantes.
A sua utilidade será tanto maior quanto mais completa e actual for a informação
nele contida. Daí que a colaboração dos destinatários seja fundamental, quer através da
transmissão dos elementos solicitados pela Circular n.º 3/94, de 15 de Março, quer
mediante a indicação de lacunas nos elementos de legislação e doutrina recenseados.
Esperando-se que a esta iniciativa possa corresponder um interesse prático
proporcional ao empenho que nela foi posto, confia-se no enriquecimento que a
contribuição de todos lhe trará.
O presente número inicia a divulgação de legislação relativa à defesa dos
direitos dos consumidores, que terá sequência nos números seguintes. Os elementos
doutrinais e as peças processuais respeitam à problemática das cláusulas contratuais
gerais, na óptica da protecção do consumidor.
José Narciso da Cunha Rodrigues
Procurador-Geral da República
LEGISLAÇÃO 1
1. Lei n.º 29/81, de 22 de Agosto
(Defesa do consumidor)
2. Decreto-Lei n.º 187/93, de 24 de Maio
(Estabelece a orgânica do Ministério do Ambiente e Recursos Naturais)
3. Decreto-Lei n.º 195/93, de 24 de Maio
(Estabelece a orgânica do Instituto do Consumidor)
4. Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro
(Regime das infracções antieconómicas e contra a saúde pública)
Rectificação publicada no DR, I Série, de 31 de Março, 2.º Suplemento
Decreto-Lei n.º 345/84, de 29 de Outubro
(Introduz alterações ao Decreto-Lei n.º 24/84)
5. Decreto-Lei n . º 214/84, de 3 de Julho
(Estabelece regras de funcionamento da Comissão de Aplicação de Coimas em
Matéria Económica)
6. Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro
(Institui o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais)
7. Decreto-Lei n.º 272/87, de 3 de Julho
(Regulamenta as modalidades de venda ao domicílio e por correspondência e
proíbe as vendas em cadeia e as vendas forçadas)
8. Decreto-Lei n.º 383/89, de 6 de Novembro
(Responsabilidade decorrente de produtos defeituosos)
9. Decreto-Lei n.º 330/90, de 23 de Outubro
(Aprova o Código de Publicidade)
Decreto-Lei n.º 74/93, de 10 de Março
(Estabelece uma nova disciplina para a publicidade na venda de automóveis
ligeiros de passageiros)
10. Decreto-Lei n . º 359/91, de 21 de Setembro
(Estabelece normas relativas ao crédito ao consumo)
Declaração de rectificação n.° 199-B/91, publicada no DR. I- A Série,
Suplemento de 21 de Setembro de 1991
1
Primeira indicação de legislação relativa à defesa dos direitos dos consumidores.
11. Decreto-Lei n . º 275/93, de 5 de Agosto
(Regime jurídico da habitação periódica)
12. Decreto-Lei n.º 237/92, de 27 de Outubro
(Disciplina o regime de segurança dos brinquedos)
13. Decreto-Lei n.º 110/91, de 18 de Março
(Estabelece diversas normas relativas a vistorias, revistorias, inspecções e
reinspecções periódicas de elevadores)
Declaração de rectificação n.° 67/91, publicada no DR, I-A Série, de 30 de Abril,
Suplemento
14. Decreto-Lei n.º 213/87, de 28 de Maio
(Estabelece normas relativas a todos os fornecimentos de bens e prestações de
serviços que, quando utilizados em condições normais ou previsíveis, possam
implicar perigo para a segurança física e saúde dos consumidores)
DOUTRINA
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS 2
Almeida, Carlos Ferreira de
Os Direitos dos Consumidores
Coimbra, Livraria Almedina, 1982
pp. 95 – 103
Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico
Coimbra, Livraria Almedina, 1992, Volume II
pp. 873 - 958
Cordeiro, António Menezes
Direito das Obrigações
Lisboa, AAFDL, 1978, 1.° Volume
Lições dadas ao 3.º ano jurídico no ano lectivo 1978/1979
pp. 193 – 228
Teoria Geral do Direito Civil
Lisboa, AAFDL, 1987, 2.º Volume
pp. 213 -265
e Costa, Mário Júlio Almeida
Cláusulas Contratuais Gerais - Anotação ao Decreto-Lei n.º 446/85,
de 25 de Outubro
Coimbra, Livraria Almedina., 1991, reimpressão
Direito das Obrigações
Coimbra, Coimbra Editora, 1984, 4.ª edição remodelada
pp. 175-187
e Cordeiro, António Menezes
Cláusulas Contratuais Gerais – Anotação ao Decreto-Lei n.º 446/85
de 25 de Outubro
Coimbra, Livraria Almedina, 1991, reimpressão
Faria, Jorge Leite Areias Ribeiro de
Das Obrigações
2
Indicação da bibliografia portuguesa existente na Biblioteca da Procuradoria-Geral da República.
Coimbra, Livraria Almedina, 1.º Volume
Apontamentos das lições proferidas na Universidade Católica – Porto
pp. 190-211
Fernandes, António Joaquim
Contratos de Adesão e Defesa do Consumidor
Instituto Nacional de Defesa do Consumidor, Lisboa, 1987
Estudos n.º 7
Júnior, E. Santos
Sobre a Teoria da Interpretação dos Negócios Jurídicos
Estudo de Direito Privado
Lisboa, AAFDL, 1988
pp. 173-185 (artigos 10.º e 11.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de
Outubro)
Machado, Miguel Nuno Pedrosa
Sobre Cláusulas Contratuais Gerais e Conceito de Risco
Separata da Revista da Faculdade de Direito, Lisboa, 1988
Monteiro, António Pinto
Contratos de Adesão - O Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais
Gerais, instituído pelo Decreto-Lei n . º 446/85, de 25 de Outubro
Revista da Ordem dos Advogados, Ano 46, III, Dezembro 1986
pp. 733- 769
Pinto, Carlos Alberto da Mota
Contratos de Adesão - Uma Manifestação Jurídica da Vida Moderna
Coimbra, 1973, Separata da Revista de Direito a Estudos Sociais, Ano XX,
Abril - Dezembro, n.°s 2, 3 e 4
Ribeiro, Joaquim de Sousa
Responsabilidade e Garantia em Cláusulas Contratuais Gerais
Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de
Coimbra - «Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Ferrer Correia»
- 1984
Cláusulas Contratuais Gerais e o Paradigma do Contrato
Coimbra, 1990, Dissertação para exame do curso de pós-graduação na
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Santos, Correia dos (neto)
Cláusulas Contratuais Gerais - Decreto-Lei n . º 446/85, de 25 de
Outubro
Porto, Porto Editora
Telles, Inocêncio Galvão
Direito das Obrigações
Coimbra, Coimbra Editora, 1989, 6.ª Edição revista e actualizada
pp. 74-76
Varela, Antunes
Direito das Obrigações em Geral
Coimbra, Livraria Almedina, 1989, 6 . ª edição, revista e actualizada,
Volume I
pp. 257 – 265
UM CASO PRÁTICO
Acção de condenação na abstenção da utilização de cláusulas
contratuais gerais, proposta pelo Ministério Público, ao abrigo e nos
termos do disposto no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.
• O Ministério Público propôs uma acção contra a “
, Lda”,
pedindo a condenação da Ré na abstenção da utilização de algumas cláusulas
contratuais gerais do contrato tipo, por serem absolutamente proibidas, em
todos os contratos que de futuro viesse a celebrar com os seus clientes, bem
como em dar publicidade a tal proibição;
• Na 1.ª instância, a Ré foi condenada no pedido apenas relativamente a duas
das cláusulas;
• Em apelação do Ministério Público e da “
, Lda.”, o Tribunal da
Relação de Lisboa negou provimento a ambos os recursos;
• Em revista pedida por ambas as partes, o Supremo Tribunal de Justiça
concedeu apenas a do Ministério Público, obtendo, assim, o autor a satisfação
integral do pedido.
PA 211/91
Ex.mo Senhor
Juiz de Direito do Tribunal Cível
de Lisboa,
O Ministério Público vem, ao abrigo do disposto no art.º 25.º - n.º 1 - c) do
Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, propor acção declarativa com processo
sumário contra:
limitada com sede na Rua
, LDª, sociedade comercial por quotas de responsabilidade
,
nos termos e pelos fundamentos seguintes:
1.º
A Ré tem vindo a celebrar, em Portugal, com os consumidores de gás que com
ela pretendem contratar, contratos do fornecimento do gás e de aluguer do material
(contador e redutores) cujas cláusulas são as constantes do documento n.º 1 que se junta,
e cujo teor aqui se dá por inteiramento reproduzido.
2.º
Tais cláusulas foram elaboradas de antemão pela Ré.
3.º
a qual apresenta aos candidatos a consumidores de gás impressos por ela elaborados, nos
quais cláusulas já se encontram totalmente preenchidas.
4.º
limitando-se cada candidato a preencher, em espaços em branco a isso destinados, a sua
identidade e o local do consumo, bem como qual o tipo de material que é objecto de
aluguer, e a assinar o mesmo contrato.
5.º
Tal contrato-tipo destina-se, ainda, a utilização futura por parte da Ré para
contratação com quaisquer candidatos a consumidores de gás, nos termos acima
indicados.
6.º
Na cláusula 1.ª de tal contrato-tipo, estabelece-se que “o fornecimento de gás
poderá ser feito directamente pela
L.da e/ou por pessoa ou entidade por esta a
designar”.
7.º
Tal cláusula é absolutamente proibida, num contrato deste tipo, já que predispõe,
a favor da Ré, a possibilidade de ceder a sua posição contratual, ou de subcontratar, sem
acordo da contraparte, e sem mencionar expressamente no contrato a identidade do
terceiro – cfr. art.ºs 20.º e 18.º - alínea l) do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.
8.º
Na cláusula 3.ª - § 4.º do contrato-tipo, estabelece-se que “os preços do gás e do
aluguer são os fixados pela
Lda., que em qualquer momento os poderá alterar”.
9.º
Tal cláusula é absolutamente proibida, já que, não impondo à Ré quaisquer
limites temporais nem quantitativos para aumentos de preços do gás e do aluguer, permite
a esta elevações de preços dentro de prazos mínimos, de semanas ou dias, e elevações de
preços quantitativamente ilimitadas – cfr. art.º 22.º - alínea d) do mesmo diploma.
10.º
Na cláusula 5.ª, alínea a) do mesmo contrato, estabelece-se que o consumidor se
obriga a reconhecer que “... à
, Lda. não cabe qualquer responsabilidade por qualquer
acidente originado ou determinado, qualquer que seja a forma, pelo gás fornecido ou por
deterioração ou vício da instalação para tal fornecimento e/ou do material alugado...”.
11.º
Tal cláusula é absolutamente proibida, por força do disposto nos artigos 20.º e
18.º, n.º 1 – alíneas a) a c) do referido diploma legal.
Nestes termos, e nos mais de direito, deve a presente acção ser julgada
procedente, por provada, e, em consequência:
a) Condenar-se a Ré a abster-se de utilizar as cláusulas contratuais gerais acima
referidas em todos os contratos que de futuro venha a celebrar com os seus
clientes, especificando-se na sentença o âmbito de tal proibição (art.º 29.º, n.º 1
do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro);
b) Condenar-se a Ré a dar publicidade a tal proibição, sugerindo-se que tal seja
efectuado em anúncio a publicar em dois dos jornais diários de maior tiragem
editados em Lisboa, durante três dias, consecutivamente, e através de
comunicação escrita a todos os consumidores de gás com os quais a Ré
anteriormente tenha contratado nos termos acima expostos – art.º 29.º - n.º 2 do
mesmo diploma.
Factos a provar: todos os articulados.
Valor: 2.000.001$00 (dois milhões e um escudos)
Junta: 1 documento e duplicados legais
O Delegado do Procurador da República,
(Fernando Bento)
Revista 83.348 (211FS)
2.ª Secção
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
A - O MINISTÉRIO PÚBLICO propôs a presente acção com processo sumário
contra “
, Lda”, pedindo que a ré seja condenada a abster-se de utilizar as 1.ª, 3.ª § 4.º, e 5.ª - a) cláusulas contratuais gerais do contrato tipo, por serem absolutamente
proibidas, em todos os contratos que, de futuro, venha a celebrar com os seus clientes,
bem como em dar publicidade a tal proibição.
No despacho saneador, foi a acção julgada parcialmente procedente e a ré
condenada no pedido no que respeita às clausulas 3.ª - § 4.ª e 5.ª - a) do contrato tipo e
à publicidade à parte decisória da sentença.
Em apelação do MINISTÉRIO PÚBLICO e da “
, Lda”, a Relação de
Lisboa negou provimento a ambos os recursos.
Mantendo as suas posições respectivas, ambas as partes pedem revista do
acórdão da Relação e, ao alegarem, o Ministério Público formula as seguintes
conclusões:
1.º - A C1.ª 1.ª do “Contrato” permite à ré a sub-contratação de terceiro para
fornecimento de gás, sem acordo do aderente.
2.º - A subcontratação, sem acordo do aderente, é absolutamente proibida, nos
termos do art. 18.º, alínea 1) do D.L. n.º 446/85, de 25 de Outubro.
3.º - Assim, o douto Acórdão, ora recorrido, viola tal preceito legal e ainda os
dos arts. 20.º e 11.º, n.º 2 do referido D.L. n.º 446/85, de 25/10.
4.º - Acresce que tal C1.ª, permitindo à ré, unilateralmente, desobrigar-se da
única obrigação que tem, no contrato, viola o princípio da boa fé, consagrado no art.
16.º do D.L. n.º 466/85, de 25 de Outubro.
5.º - O douto Acórdão viola também, assim, o referido preceito legal.
Por sua vez, a ré, conclui nos termos seguintes:
1 – São proibidas as cláusulas contratuais gerais que permitam elevações de
preços, nos termos e de harmonia com o disposto no artigo 22.º, alínea d), do
Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.
2 – A retribuição que o locador, no caso de aluguer, aufere pela cedência de uso
e fruição de coisa móvel de que é proprietário denomina-se aluguer.
3 – A única e correcta interpretação do preceituado no artigo 22.º, alínea d), do
Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, é que no mesmo não se proibem cláusulas
contratuais gerais que permitam a elevação de alugueres, atento o sentido literal da
referida disposição e a vontade expressa pelo legislador.
4 – A cláusula 3.ª - § 4.º do contrato tipo de fornecimento de gás não viola o
disposto no artigo 22.º, alínea d), do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.
5 – A responsabilidade do dono da instalação de gás pelos danos causados pelo
fornecimento de gás ou pelo dita instalação, é excluída, caso tais danos resultem de
culpa do lesado.
6 – Não exclui ou limita a responsabilidade do dono da instalação de gás a
cláusula contratual geral que estabelece a responsabilidade do lesado, no caso de dano
causado pelo fornecimento de gás ocorrer por culpa do próprio lesado, isto é, o
consumidor do gás.
7 - A cláusula 5.ª, alínea a) do contrato tipo de fornecimento de gás referido
não viola o disposto no artigo 18.º, alíneas a) a c), do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de
Outubro.
8 - O acórdão recorrido violou, pois, o dispostos nos artigos 10.º, 18.º, n.º 1,
alíneas a) e c), e 22.º, alínea d), do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, 9.º e 509.º
do Código Civil, e 13.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 262/89, de 17 de
Agosto.
9 - Impõe-se, assim, como expressamente, se requer, o total provimento do
presente recurso de revista e, por via dele, a revogação do acórdão recorrido e a sua
substituição por outro que declare válidas as cláusulas 3.ª, § 4.º, e 5.ª, alínea a), do
contrato de adesão referido nos autos.
Não foram produzidas contra-alegações.
***
B – Cumpre decidir.
1. Está referido repetidamente nos autos o circunstancialismo, génese e fins do
DL 446/85 (diploma a que pertencerão as disposições legais que se citarem sem
indicação).
“A observância do cumprimento dos imperativos constitucionais de combate
aos abusos do poder económico e da defesa do consumidor, aliada à necessidade de
preservar a autonomia privada, determinaram o legislador português, à semelhança de
outros ordenamentos jurídicos europeus, à regulamentação das cláusulas contratuais
gerais (também designadas “condições negociais gerais”, “condições gerais dos
contratos”, “contratos de ou por adesão”, “contratos de série” e “contratos
standardizados”) elaboradas de antemão, que proponentes ou destinatários
indeterminados se limitem, respectivamente a subscrever ou a aceitar” (João Lobo, O
Contrato no Direito Civil Português: seu Sentido e Evolução, pág. 18).
Dispensamo-nos, por isso, de insistir neste tema, sobre o qual, de resto, existe consenso.
Acrescentaremos apenas que, em nosso entender, as regras para interpretação e
integração das cláusulas contratuais gerais contidas nos arts. 10.º e 11.º são reflexo
daquela filosofia de protecção à parte mais fraca, não intervindo, porém, na decisão de
acções do tipo daquela de que nos ocupamos, que visam, precisamente, evitar, tanto
quanto possível, que os contratos tipos contenham cláusulas que suscitem dúvidas ou que
possam reverter injustificadamente contra o aderente.
***
2. As questões a decidir são unicamente de direito e consistem em determinar se
são válidas as cláusulas 1.ª (proposta pelo Ministério Público), e 3.ª - § 4.º e 5.ª - a)
(propostas pela ré) do contrato tipo de fls. 23, face ao disposto no DL 446/85, de 25 de
Outubro.
***
3. Em causa estão, pois, as cláusulas que estipulam:
“1.ª: [O CONSUMIDOR pelo presente contrata com a
, Lda. o fornecimento
de gás de petróleo liquefeito – ao adiante designado apenas por GÁS – e o aluguer
de .........]
O fornecimento de Gás poderá ser feito directamente pela
, Lda. e/ou por
pessoa ou entidade por esta a designar.
“3.ª, § 4.º: Os preços do Gás são fixados oficialmente e os preços de aluguer do
contador são fixados pela
, Lda. que em qualquer momento os poderá alterar”.
“5.ª, a): O CONSUMIDOR obriga-se a observar escrupulosamente as instruções
que a
, Lda. ou a pessoa ou entidade que, por indicação da
, Lda., directamente
lhe fornecer GÁS, lhe fornecerem para uso do GÁS e reconhece que à
, Lda. não cabe
qualquer responsabilidade por qualquer acidente originado ou determinado, qualquer que
seja a forma, pelo GÁS fornecido ou por deterioração ou vício da instalação para tal
fornecimento e/ou do material alugado ou por deficiente utilização”.
Vejamos.
***
4. Com referência àquela primeira cláusula, posta em crise no recurso do
Ministério Público, é a mesma confrontável com o disposto no art. 18.º - 1), segundo o
qual “são em absoluto proibidas as cláusulas contratuais gerais que consagrem, a favor de
quem as predisponha, a possibilidade de cessão da posição contratual, de transmissão de
dívidas ou de subcontratar, sem o acordo da contraparte, salvo se a identidade do terceiro
constar do contrato inicial”.
Entendeu-se na decisão recorrida que, sendo a razão da proibição a possibilidade
de utilizar os referidos institutos para limitação da responsabilidade, e não sendo isso
possível pela referida cláusula que não autoriza a ré a ceder a sua posição ou a
subcontratar, a mesma é válida.
Com o devido respeito, discordamos deste entendimento.
Os termos da cláusula permitem perfeitamente a sua interpretação com o sentido
de cessão da posição contratual ou de subcontratação, proibido m absoluto pela alínea 1)
do art. 18.º.
Formalmente, a
, Lda. estaria dentro do permitido pela cláusula cedendo a
terceiro a sua posição de fornecedor de gás ou subcontratando terceiro para fazer esse
fornecimento, limitando-se, quando muito, a informar os aderentes que tinha designado
tal sociedade ou tal pessoa para o fazer.
Dir-se-á porventura que, com o recurso às regras de interpretação e integração
dos arts. 10.º e 11.º, se obstaria a tal entendimento.
Mas, como dissemos acima, cremos que essas regras são de aplicar para dirimir
conflitos surgidos em contratos concretos já celebrados, devidamente individualizados e
subjectivados, e não inteiramente para decidir acções do tipo da presente, que visam, com
a proibição de utilização de certas cláusulas, obstar, tanto quanto possível, a que surjam,
entre as partes, conflitos originados nessas mesmas cláusulas ou que o aderente fique
colocado numa posição de inferioridade.
Procede, pois, a argumentação do Ministério Público.
***
5. Na cláusula 3.ª - §4.º, depois de se afirmar que os preços do gás são fixados
oficialmente, declara-se que os preços de aluguer do contador são fixados pela
,
Lda., que em qualquer momento os poderá alterar.
Entendeu a decisão recorrida que tal cláusula, nessa parte, é proibida pelo
disposto na alínea d) do art. 22.º, segundo o qual “são proibidas [...] as cláusulas
contratuais gerais que permitam elevações de preços, em contratos de prestações
sucessivas, dentro de prazos manifestamente curtos, ou, para além desse limite, elevações
exageradas, sem prejuízo do que dispõe o artigo 437.º do Código Civil”.
Defende a ré que a permissão do aumento do aluguer do contador
unilateralmente e em qualquer momento não é proibida pela referida disposição porque
este se refere a “preço” e a retribuição pela cedência do uso e fruição do contador é
“aluguer” e não preço.
É para nós claro que a ré não tem razão.
Como se diz na decisão recorrida, o aluguer é o preço pago pela cedência e
fruição de coisa móvel e é sem dúvida esse o sentido que um declaratário normal,
colocado na posição do real declaratário, atribui à expressão usada na cláusula em análise
“preços de aluguer do contador”.
Aliás, a mesma razão que proíbe cláusulas que permitam elevações de preços,
nos contratos de prestações sucessivas, exageradas ou dentro de prazos manifestamente
cursos, é a mesma quer se trate de preço como contraprestação da coisa ou direito
adquirido no contrato de compra e venda, quer se trate de retribuição de serviço prestado
ou de aluguer: e continua a ser a defesa da parte mais fraca a fim de restabelecer o
equilíbrio com a mais poderosa.
Improcedem, assim, os argumentos da ré contidos nas conclusões 1 a 4.
6. Na cláusula 5ª - a) estipula-se que “o consumidor obriga-se a observar
escrupulosamente as instruções que [...] lhe forneceram para uso do GÁS e reconhece que
à
, Lda. não cabe qualquer responsabilidade por qualquer acidente originado ou
determinado, qualquer que seja a forma, pelo GÁS fornecido ou por deterioração ou
vício da instalação para tal fornecimento e/ou do material alugado ou por deficiente
utilização.
A decisão recorrida julgou esta cláusula proibida em absoluto pelo art. 18.º,
alíneas a) a d), que prevêem as cláusulas contratuais gerais que:
- excluam ou limitem, de modo directo ou indirecto, a responsabilidade por
danos causados à vida, à integridade moral ou física ou à saúde das pessoas;
- excluam ou limitem, de modo directo ou indirecto, a responsabilidade por
danos patrimoniais extracontratuais, causados na esfera da contraparte ou de terceiros;
- excluam ou limitem, de modo directo ou indirecto, a responsabilidade por não
cumprimento definitivo, mora ou cumprimento defeituoso, em caso de dolo ou de culpa
grave;
- excluam ou limitem, de modo directo ou indirecto, a responsabilidade por actos
de representantes ou auxiliares, em caso de dolo ou de culpa grave.
Diz, porém, a ré que a dita cláusula tem apenas em vista excluir a sua
responsabilidade no caso de os danos resultarem de culpa do lesado, não excluindo nem
limitando a responsabilidade do dono de instalação de gás, no caso de o dano causado
pelo fornecimento de gás ocorrer por culpa do próprio lesado, isto é, o consumidor do gás.
Mas não tem razão.
Claro que, com esse sentido, a cláusula seria de todo inútil face ao disposto nas
disposições da lei geral, nomeadamente nos arts. 483.º (responsabilidade civil por factos
ilícitos, princípio geral, 486.º (omissões), 487.º (culpa), 493.º - 2 (danos causados por
coisas, animais ou actividades) e 509.º (responsabilidade pelo risco, danos causados por
instalações de energia eléctrica ou gás), do Código Civil.
O que, na verdade, a cláusula inculca – e é esse o sentido que um declaratário
normal lhe atribui – é que a
, Lda. se propõe eximir-se da responsabilidade que, pela
lei geral, lhe é atribuída em consequência de acidentes provocados pelo gás fornecido, por
si ou concomitantemente com as respectivas instalações, sem olhar à culpa ou à ausência
de culpa do lesado ou de terceiro.
E é precisamente isso que a lei visa evitar com o DL 446/85, concretamente com
a proibição das cláusulas previstas nas alíneas a) a d) do art. 18.º.
Não merece, pois, censura o acórdão sob revista no que se refere à questão em
análise, improcedendo a argumentação que a
, Lda. desenvolve na sua alegação e
resume nas conclusões 5 e seguintes.
***
C – Dado o exposto, decide-se negar a revista da Ré e conceder a do Ministério
Público e, em consequência, mantendo a condenação proferida pelas instâncias,
condenam a ré a abster-se igualmente de utilizar em todos os contratos que de futuro
venha a celebrar com os seus clientes a segunda parte da cláusula 1.ª do contrato tipo de
fls. 23 no inciso que diz que “o fornecimento de Gás poderá ser feito directamente
pela
, Lda. e/ou por pessoa ou entidade por esta a designar” e a incluir na publicidade
a dar à parte decisória de sentença a presente condenação.
Não são devidas custas – art. 28.º.
Lisboa, 26 de Maio de 1993
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