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Larissa Casagrande Faller Muniz
A CONFIGURAÇÃO DO JEITINHO BRASILEIRO EM NARRATIVAS LITERÁRIAS
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras – Mestrado, área de
concentração em Leitura e Cognição,
Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC,
como requisito parcial para obtenção do título
de Mestre em Letras.
Orientadora: Profª. Dra. Eunice Terezinha Piazza Gai
Santa Cruz do Sul, junho de 2009
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Larissa Casagrande Faller Muniz
A CONFIGURAÇÃO DO JEITINHO BRASILEIRO EM NARRATIVAS LITERÁRIAS
Esta Dissertação foi submetida ao Programa
de Pós-Graduação em Letras – Mestrado, área
de concentração em Leitura e Cognição,
Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC,
como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Letras.
Dra. Eunice Terezinha Piazza Gai
Professora Orientadora
Dr. Norberto Perkoski
Dra. Maria Eunice Moreira
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AGRADECIMENTOS
No decorrer desta caminhada, muitas pessoas foram fundamentais para que eu
conseguisse chegar até aqui.
Agradeço, em primeiro lugar, a Deus, por ser tão maravilhoso me dando a vida,
uma família, amigos e me presenteando com ótimas oportunidades.
A professora Doutora Eunice Terezinha Piazza Gai, pela orientação,
ensinamentos, paciência, incentivo, motivação e auxílio nos momentos mais
inquietantes.
Ao professor Doutor Norberto Perkoski, pelos inesquecíveis momentos de
“devaneios poéticos” nas aulas ministradas no Mestrado em Letras e por ter
aceitado fazer parte da banca examinadora desta dissertação.
A professora Doutora Maria Eunice Moreira, por aceitar fazer parte da banca
examinadora e dedicar tempo para esta dissertação.
A todos os professores do Mestrado em Letras, por terem oportunizado o meu
crescimento humano e intelectual através das nossas aulas e conversas.
A professora Ana Maria Lisboa de Mello, por ser uma das grandes
responsáveis pela continuação dos meus estudos na área de Letras.
Ao professor Olívio Vicentini, pelo auxílio, conhecimento e contribuições a mim
transmitidos.
Aos meus amigos, em especial a Karin Brauer, Tiago Pelizzaro e Carine Reis,
que trilharam esta caminhada ao meu lado, pelo incentivo, alegria, amizade e
companheirismo que dedicaram a mim.
A minha família, que foram meus primeiros mestres e grande incentivadores,
pelo acolhimento, amparo e amor sempre demonstrados.
A Mariana, “co-autora” desse trabalho, que passou todos os meses de
gestação interagindo enquanto eu elaborava o final da dissertação.
Ao Havner Muniz, com muito amor, por entender os momentos difíceis e de
ausência necessários para que eu completasse esta trajetória; pelo amparo,
incentivo e confiança depositados em mim, além de toda a contribuição com
discussões pertinentes à temática da dissertação.
Muito obrigada!
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RESUMO
O presente trabalho é o resultado de um estudo elaborado sobre a ocorrência
da instituição do jeitinho, tendo a literatura ficcional brasileira contemporânea como
foco principal. O jeitinho possui características variadas, podendo ser visto como
algo bom ou mau. Para fazer tal descoberta, tornou-se necessário um percurso
pelas principais obras da tradição literária a fim de observar como o tema é
apresentado ao longo dos anos. No desenvolvimento da dissertação, são analisadas
seis obras ficcionais da literatura brasileira com o intuito de tentar mostrar o emprego
do comportamento do jeitinho. O estudo tem como corpus as obras Meninos no
poder (2005), de Domingos Pellegrini, e Mundo perdido (2006), de Patrícia Melo. A
dissertação abrange, ainda, a análise de outras narrativas pertencentes à literatura
ficcional: Memórias de um sargento de milícias e Macunaíma o herói sem nenhum
caráter (romances); Teoria do medalhão e O homem que sabia javanês (contos).
Tais obras servem para configurar o jeitinho nas narrativas ficcionais literárias
brasileiras. Nos estudos realizados, constata-se que ele sobrevive ao tempo, mas
com o passar das épocas, vem sofrendo modificações, tomando formas e conceitos
diversificados: umas personagens mais malandras, outras mais maquiavélicas.
Apresenta-se, ainda, um terceiro grupo capaz de chegar às últimas conseqüências
para conseguir o que deseja: é a instituição do jeitinho em prol da mentira, da
criminalidade. Algumas particularidades das personagens e ambientes comprovam
que essas mudanças, que ocorrem no âmbito ficcional, acompanham a
modernização da sociedade, fazendo com que ficção e realidade se aproximem.
Portanto, a trajetória percorrida pelo jeitinho, na literatura ficcional, passa por
modificações que podem ter como contribuição o crescimento desenfreado das
sociedades.
Palavras-chave: jeitinho, ironia, malandragem, narrativas literárias, crime.
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RESUMEN
El trabajo se propone a estudiar la ocurrencia de la institución de lo jeitito cómo
tiendo la literatura de ficción brasileña contemporánea cómo foco principal. El jeitito
tiene características variadas, pudiendo ser observado cómo algo bueno o malo.
Para hacer tal descubrimiento, hace necesario un precurso por las principales obras
de la tradición literaria con la finalidad de observar cómo el tema é presentado a lo
largo de los años. En el desenvolvimiento de la disertación, son analizadas seis
obras de ficción de la literatura brasileña con la intención de intentar mostrar el
empleo de el comportamiento de lo jeitito. El estudio tiene cómo corpus las obras
Niños en el poder (2005), de Domingos Pellegrini, y Mundo perdido (2006), de
Patrícia Melo. La disertación abarca, todavía, la análisis de otras narrativas que
pertenecen a la literatura de ficción: Memoria de un sargento de milicias y
Macunaíma el héroe sin ningún carácter (romances); Teoría del medallón y El
hombre que sabía javanés (cuentos). Tales obras sirven para la configuración de lo
jeitito en las narrativas de ficción de la literatura brasileña. En los estudios
efectuados, constatase que el sobrevive al tiempo, mas con lo pasar de las épocas,
viene sufriendo modificaciones, ganando maneras y conceptos diversificados: unas
personajes más pillos, otras más maquiavélicas. Presentase, todavía, un tercero
grupo capaz de llegar as ultimas consecuencias hacia conseguir lo que desea: es la
institución de lo jeitito a favor de la mentira, de la criminalidad. Algunas
particularidades de los personajes y ambientes comprueban que esas mudanzas,
que ocurren en ámbito de la ficción, acompañan la modernización de la sociedad,
haciendo con que la ficción y realidad se aproximen. Por lo tanto, la trayectoria
recurrida por lo jeitito, en la literatura de ficción, pasa por modificaciones que pueden
tener cómo contribución el crecimiento desenfrenado de las sociedades.
Palabras-llave: jeitito, ironía, picardía, narrativa literaria, delito
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................8
1 POR UMA TEORIA DO JEITINHO BRASILEIRO .................................................15
1.1 Aspectos antropológicos e sociológicos .......................................................16
1.1.1 Favor, corrupção e jeitinho ...........................................................................19
1.1.2 O jeitinho e o “você sabe com quem está falando?”
..................................20
1.1.3 Teoria e prática do jeitinho ............................................................................22
1.1.4 Origem do jeitinho na sociedade brasileira .................................................24
1.2 Aspectos filosóficos e psicológicos ...............................................................31
2 PERSPECTIVAS CRÍTICAS: A IRONIA ...............................................................39
2.1 A comicidade, o riso, a ironia ...........................................................................45
2.2 O humor e a ironia .............................................................................................48
2.3 A ironia na literatura ficcional ..........................................................................50
3 O JEITINHO NA LITERATURA BRASILEIRA ......................................................53
3.1 A presença do jeitinho em obras da tradição literária ...................................58
3.1.1 Leonardo, o malandro ....................................................................................58
3.1.2 Macunaíma e a malandragem na literatura ..................................................66
3.1.2.1 O caráter do brasileiro ................................................................................67
3.1.2.2 Jeitinho e malandragem .............................................................................69
3.1.2.3 Jeitinho e malandragem em Macunaíma ...................................................70
3.1.3 A máxima maquiavélica e a presença do jeitinho como forma de vencer,
enriquecer e se sobressair .....................................................................................75
3.1.3.1 Jeitinho e ironia nos contos de Machado de Assis e Lima Barreto .......77
3.1.3.2 A Teoria do medalhão .................................................................................77
3.1.3.3 O homem que sabia javanês ......................................................................78
3.1.3.4 A teoria e a prática ......................................................................................79
7
3.2 A manifestação do jeitinho em romances brasileiros contemporâneos .....82
3.2.1 Meninos no poder: o jeitinho na política ......................................................82
3.2.2 Mundo perdido: o jeitinho e o crime .............................................................96
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................114
REFERÊNCIAS .......................................................................................................121
8
INTRODUÇÃO
Ao olhar-se para a cultura brasileira, depara-se com a presença de certos
comportamentos e valores que remetem à idéia1 de uma institucionalização de
atitudes, que poderiam estar associadas à concepção do jeitinho, conforme
explicitado pela Lei de Gérson2. No intuito de entender melhor o significado e as
possíveis conseqüências desta tendência considerada por muitos como integrante
do caráter do brasileiro, empreende-se este estudo.
O foco principal do estudo é analisar a ocorrência do jeitinho também na
literatura ficcional brasileira contemporânea, mas para isso, um regresso na história
da literatura se torna necessário, a fim de identificar desde quando ele seria visível
na literatura brasileira. Por esse motivo, faz-se um percurso através das principais
obras com a finalidade de detectar quais delas apresentam o jeitinho como tática de
vida de personagens. A partir daí, são analisadas seis obras na tentativa de verificar
o emprego deste comportamento que já se torna uma instituição3.
A literatura é um adequado veículo de conhecimento, pois, nas obras literárias
é possível deparar-se com um processo revelador. Mesmo tendo a convicção de que
tais obras apresentam a arte ficcional, elas tomam por base os indivíduos e as
coisas reais, o que as fazem ascender ao patamar das idéias. A literatura, por tratarse de ficção, imita a realidade. Dessa forma, a partir de textos literários, é possível
se chegar ao conhecimento desta realidade, ao conhecimento do mundo em que se
vive, ou seja, da própria vida. E nesse meio, encontra-se o jeitinho que faz parte do
dia-a-dia do homem, da realidade, e que é apresentado pela literatura ficcional.
1
A dissertação seguirá os padrões da língua portuguesa utilizados antes das mudanças das novas
regras ortográficas, pois essas, mesmo estando em vigor, serão obrigatórias somente a partir de
2012.
2
A Lei de Gérson está ligada à pessoa que gosta de levar vantagem em tudo no sentido negativo de
se aproveitar de situações em benefício próprio. Essa expressão originou-se em meados de 1970,
com o polêmico jogador Gérson, da Seleção Brasileira de Futebol, que utilizou a seguinte frase em
uma propaganda de cigarros: “você também gosta de levar vantagem em tudo, certo?”.
3
Ao se referir a “instituição”, nesta dissertação, subentende-se a própria definição do jeitinho.
9
Portanto, é possível delinear uma ligação entre a literatura, o conhecimento e o
jeitinho.
A pesquisa sobre o conceito de jeitinho inicia-se com os estudos decorrentes
das ciências sociais, especialmente nas disciplinas de sociologia, antropologia,
filosofia e psicologia. Neste espaço, tal temática é tratada por autores como
DaMatta, Lívia Barbosa, Fernanda Carlos Borges, Lourenço S. Rega, entre outros.
Após
uma
análise
percorrendo
conceitos,
problematizações
e
diferentes
perspectivas sobre o assunto, busca-se, também em textos literários ficcionais,
alguns elementos que comprovem a utilização do jeitinho na literatura brasileira.
O jeitinho é uma instituição marcante no cotidiano do brasileiro. Todos sabem,
se já não o praticaram, o que é o famoso jeitinho que teve o jogador de futebol da
seleção brasileira, Gérson, como marco na história. Mas não é a partir deste
momento que tudo se inicia. Gérson serviu apenas como meio para que o assunto
viesse à tona e se popularizasse.
Nota-se que o tratamento relacionado ao jeitinho é quase sempre visto como
algo mau, como problema de caráter, mas nem todo o jeitinho é feito com a intenção
de maldade. Segundo Lívia Barbosa (1992, p. 130), a instituição do jeitinho não é
um problema de caráter e sim um elemento cultural, de “identidade social”.
Também, para a filósofa Fernanda Carlos Borges (2006), o jeitinho se contextualiza
através do corpo e é apoiado por aspectos cognitivos.
Estudos comprovam que existe o jeitinho prático e o teórico e, principalmente,
o jeitinho bom e o mau. É sobre este último aspecto que o trabalho volta a sua maior
atenção, pois, conforme Lourenço Stelio Rega (2000), ele pode ser bom, como
forma de sobrevivência, ou mau, quando é utilizado para prejudicar outros, como ato
de mentir, de enganar. Para Borges (2006), o indivíduo recorre ao aspecto
emocional para poder usufruir do jeitinho, uma vez que o ser humano é capaz de
modificar a forma de pensar quando é levado a um alto grau de emoção.
Depois do estudo de aspectos das ciências sociais, o trabalho apresenta uma
breve pesquisa sobre a ironia, pois ela está intimamente ligada com a temática do
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jeitinho e com o cotidiano de cada ser humano. A perspectiva da ironia é levada em
conta durante todo o desenvolvimento da dissertação, pois sendo ela uma
característica de muitas4 obras, é possível percebê-la através da constância do
jeitinho.
A investigação volta-se para a presença do jeitinho na literatura ficcional
brasileira. Para isso, são analisadas, primeiramente, quatro narrativas, sendo dois
romances e dois contos. O jeitinho é mais amplo do que se pensa e, por isso, vai-se
em busca de narrativas anteriores à Lei de Gérson, que popularizou o assunto.
Além dos estudiosos antropólogos e filósofos que refletem sobre o tema do
jeitinho, outro autor que serve como fonte de estudo é Nicolau Maquiavel, com a
obra O príncipe. O autor propõe um modelo ideal para se chegar a um principado e
tal exemplo exposto remete à características que se assemelham ou que podem ser
comparadas com o jeitinho mau, o jeitinho mentiroso, que engana, que é capaz de
utilizar qualquer recurso para alcançar um objetivo. Dessa forma, a palavra
maquiavelismo, muito difundida popularmente, também é utilizada na tentativa de
caracterizar o jeitinho exibido nas obras de ficção.
Por conseguinte, a análise literária inicia-se com Memórias de um sargento de
milícias, de Manuel Antonio de Almeida. A personagem que mais interessa para o
estudo é Leonardo, um rapaz que tenta de todas as formas usufruir do jeitinho para
escapar dos estudos, do trabalho, das broncas dos mais velhos. Mediante estudos
feitos por Antonio Candido (1970), a personagem é o típico malandro, demonstrando
ser irreverente, fugindo das normas legais regidas pela burguesia da época para se
dar bem e surpreendido, em meio à narrativa, pelo amor. Leonardo se apaixona e
prefere deixar a vida malandra da desordem e partir para um enquadramento nas
normas sociais, a da ordem.
A outra personagem a ser analisada é Macunaíma, da obra de Mário de
Andrade, Macunaíma o herói sem nenhum caráter5. Esta personagem, de 1928,
4
A utilização de pronomes demonstrativos na dissertação se faz necessária para não deixar nenhuma
obra ou autor fora do rol dos que estudam ou têm relação com o jeitinho.
5
A utilização do título e subtítulo da obra de Mário de Andrade segue as especificações do livro
consultado. Nesse, não há pontuação alguma separando os dois elementos. Dessa forma, quando
esses forem empregados, também não levarão sinal gráfico. A referência completa se encontra no
11
também apresenta características do jeitinho malandro, daquele que quer ter vida
boa sem muito esforço. Ele vive da esperteza, da criatividade, e dessa forma, se
sobressai. O jeitinho de Macunaíma é utilizado também como instinto de
sobrevivência, pois quando o perigo é detectado, imediatamente ele tenta dar um
jeito para escapar das enrascadas em que se embrenha.
Machado de Assis e Lima Barreto também demonstram muito bem a idéia da
instituição jeitinho através de suas obras. O conto Teoria do medalhão apresenta os
conselhos de um pai ao seu filho que completa 21 anos e entra para a maioridade.
Em sua opinião, o filho deve ter a profissão de medalhão como garantia de boa vida.
Ao explicar o que é ser medalhão, o pai enfatiza o maquiavelismo, que traz como
proposta a idéia de que os fins justificam os meios. É a maneira utilizada para se
tornar um medalhão a causa de todas as trapaças e mentiras sugeridas pelo pai,
pois o que importa é o sucesso a ser alcançado. Da mesma forma se evidenciam
características do jeitinho maquiavélico quando o pai explica ao seu sucessor que a
posição social, a glória, o bom êxito é o que importa e para a obtenção de tudo isso
não é necessário trabalhar muito.
No outro conto, O homem que sabia javanês (1911), de Lima Barreto, Castelo
é a personagem que chama a atenção pelo fato de ter inteligência suficiente para
enganar um senhor, um velho Barão, afirmando ser conhecedor da língua javanesa.
Castelo utiliza a trapaça, o dolo, a fraude para chegar ao fim que deseja. Apesar de
se aproveitar desta mentira para a sobrevivência, a personagem não é o malandro
como Leonardo e Macunaíma. Ele é mais astuto e mentiroso e seu jeitinho já pode
ser classificado como mau, uma vez que há outros meios de sobrevivência, mas ele
prefere o logro.
A partir de estudos dos textos literários acima referidos é possível estabelecer
um caminho do jeitinho na literatura brasileira até chegar às obras contemporâneas,
que são analisadas neste trabalho para evidenciar outras manifestações do jeitinho.
São elas: Meninos no poder (2005), de Domingos Pellegrini e Mundo perdido (2006)
de Patrícia Melo. Ambas possuem personagens que se utilizam da instituição do
jeitinho para conseguir chegar ao objetivo final, porém, agora, as características vão
final da dissertação.
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além da simples malandragem das personagens Leonardo e Macunaíma e passam
para o jeitinho da má-fé. São personagens que estão dispostas a tudo, pagam
qualquer preço para alcançar o que pretendem.
Compondo a trajetória literária, em Meninos no poder é possível perceber o
quanto o jeitinho é utilizado na política para se ganhar uma eleição. As técnicas
adotadas por Maquiavel, em O príncipe, também são levadas em consideração para
a análise desta obra, uma vez que a proposta da personagem ficcional Ari Chimite
possui uma linha muito sutil de ligação com os ensinamentos de Maquiavel.
A obra Meninos no poder demonstra toda a arte do jeitinho enganador,
passando por mentiras, trapaças, roubos, enganações com o objetivo de conseguir o
fim proposto: vencer a eleição majoritária. Mesmo tendo o lado mau do jeitinho
presente na narrativa, nela também se encontra o lado cômico possibilitando ao
leitor rir da obra e da condição das personagens. Trata-se, pois, da ironia presente
na narrativa.
Muitas pessoas são envolvidas na trama, mas sem saber que participam de um
“jogo sujo” elaborado por Ari. Pensam estar ali para mudar o que está errado com o
município, dando mais condições de sobrevivência à população, principalmente para
a mais carente. É dessa forma que Ari manipula e joga com as pessoas que o
cercam, deixando transparecer para o leitor seu lado maquiavélico e cômico, ao
mesmo tempo. Algumas pessoas, as mais simples, chegam a desconfiar das boas
intenções de Ari, mas a personagem consegue convencê-las de que aquele caminho
é o melhor e mais digno para chegar onde se deseja.
Na obra Mundo perdido, o jeitinho está ligado ao mundo do crime. É a maneira
como a personagem consegue, através desta instituição, levar uma vida clandestina,
percorrendo inúmeros lugares, misturando-se com a sociedade e, mesmo assim,
viver foragido, sem ser visto, ou sem que as autoridades consigam prendê-lo.
É assim que vive Máiquel, a personagem principal desta obra. Ele é um
foragido da justiça que está à procura de sua filha, de sua ex-companheira e de um
pastor, esposo dela. A personagem sai de seu esconderijo, após a morte da tia, e
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está disposto a qualquer coisa para reencontrar a filha que não vê há dez anos e
que está com o casal Érica e Marlênio. Máiquel só não quer é voltar para a prisão,
lugar onde passa pouco tempo e consegue fugir, mas guarda péssimas
recordações. Para isso, ele é capaz de tudo: mentir, ameaçar, roubar e, inclusive,
matar.
É possível viver na clandestinidade por quanto tempo? Máiquel não dá a
resposta, mas prova que, se o indivíduo quiser, ele se torna invisível no meio da
multidão, a prova disso é que a personagem percorre um longo trajeto pelo Brasil,
passando por várias cidades, em diferentes estados e indo até países vizinhos, sem
ser pego pela polícia. Ele é conhecido em todo o Brasil por ser assassino de aluguel,
aparece em capas de jornais e seus crimes têm repercussão nacional. Mesmo
assim, Máiquel transita livremente entre as pessoas, ameaçando o casal que está
com sua filha, mas a polícia, que está de prontidão, não consegue pegá-lo. Ele
sempre consegue escapar dando um jeitinho. A personagem é um fora-da-lei, um
malandro bandido.
A obra Mundo perdido é a continuação de outra, da mesma autora, que tem por
título O matador. Nessa narrativa encontram-se as explicações de onde vêm e como
chegam a tal lugar ou posição as personagens citadas em Mundo perdido,
principalmente Máiquel. Esta obra não é utilizada para minucioso estudo, serve
somente como base de pesquisa para reconhecer as personagens da obra
analisada.
Nas obras escolhidas, as quatro primeiras personagens possuem uma aversão
ao trabalho, procuram as facilidades da vida através do instinto do malandro. Já nas
duas últimas, nas contemporâneas, percebe-se um malandro mais maldoso, que
trabalha, mas vive da fraude. Em Meninos no poder, a política desprovida de boa-fé
faz com que a personagem tente alcançar seu objetivo através de atos
questionáveis. Em Mundo perdido, a personagem é um bandido, foragido e que não
se incomoda em ter que matar, seja lá quem for.
Nas duas obras contemporâneas não é possível encontrar o mesmo tom risível
existente em Memórias de um sargento de milícias e Macunaíma, o que torna o
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jeitinho na literatura contemporânea diferente dos demais pesquisados no decorrer
da literatura brasileira. Macunaíma e Leonardo são mais ponderados em suas
trapaças e não chegam às últimas conseqüências como Máiquel, que é criminoso.
Já nas ações de Ari existe uma linha paralela entre o maquiavelismo e a comicidade,
que faz a obra se tornar risível em certas passagens.
Em suma, o trabalho está centrado na análise das seis obras relacionadas
acima, sob a perspectiva da temática do jeitinho, levando em consideração o aporte
teórico sobre o assunto encontrado em livros das ciências sociais, o que sustentará
as discussões feitas aqui. Com isso, pretende-se desenvolver algumas reflexões
sobre a trajetória da instituição jeitinho na literatura brasileira, tendo em vista as
obras de diferentes épocas e suas características.
15
1 POR UMA TEORIA DO JEITINHO BRASILEIRO
Muito se fala, no Brasil, sobre a expressão “dar-se um jeito”. O famoso jeitinho
é muito utilizado no dia-a-dia do brasileiro e em análises antropológicas,
sociológicas, psicológicas, filosóficas, enfim, no grupo das ciências sociais, mas
menos considerado na teoria literária brasileira, na qual a análise deste
comportamento não é muito comum. Por esse motivo, utilizam-se as investigações
sócio-antropológicas já existentes para procurar discutir conceitos ou estabelecer
uma definição para tal prática social no âmbito dos estudos literários.
Primeiramente, é possível descobrir que é raro encontrar alguém no Brasil que
não saiba responder, quando questionado, sobre o que é o jeitinho. Então, afirma-se
que a pluralidade dos brasileiros reconhece que o jeitinho é uma forte instituição que
marca o seu dia-a-dia, sendo conhecido e legitimado por segmentos sociais. O
antropólogo Roberto DaMatta afirma que o jeitinho é “como um instrumento que
ajuda a navegar o oceano turbulento do cotidiano brasileiro, um dia-a-dia marcado
pelo inferno das incoerências entre as leis explícitas... e as práticas sociais” 6. Notase, assim, que a utilização do jeitinho é comum entre a população, que usufrui de tal
prática social por diversos motivos.
No contexto popular, a instituição do jeitinho é uma forma singular de atingir
objetivos de forma peculiar, sem percorrer as normas pré-estabelecidas, ou seja,
sem respeitar as leis, burlar, enganar, mentir com a intenção de conseguir alcançar
algum propósito. No Novo dicionário Aurélio (1999, p. 1158), a significação para a
palavra jeito é: “1. Modo, maneira. 2. Aspecto feitio. 3. Índole, caráter. 4. Tendência.
5. Habilidade. 6. Torcedura, luxação. 7. Bras. Boas Maneiras. Dar um jeito. Bras.
Encontrar uma solução para determinada situação”. Assim, fica fácil perceber que a
palavra jeito possui a característica de ser uma maneira, uma habilidade (mesmo
que seja a de enganar) que faz parte do caráter do indivíduo e que, no popular
6
Roberto DaMatta utiliza esta frase no prefácio que escreveu no livro de sua orientanda em
doutoramento Lívia Barbosa, intitulado O jeitinho brasileiro – a arte de ser mais igual que os outros.
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brasileiro, dar um jeito é “encontrar uma solução para determinada situação”
(AURÉLIO, 1999, p. 1158) difícil de ser deliberada, problemática, não importando se
a resolução de tal dificuldade será a longo ou curto prazo.
1.1 Aspectos antropológicos e sociológicos
O jeitinho, na maioria das vezes, é visto pejorativamente, como algo mau,
prejudicial, como uma falta de caráter. Dependendo do ponto de vista e da posição
em que o indivíduo se encontra (se é ele quem usufrui do jeitinho ou se é vítima
desse), a afirmação tem seu cunho de franqueza, mas não é somente dessa forma
que o jeitinho pode ser percebido. Ele pode ser visto não só como forma de burlar as
leis, mas também como de sobrevivência: é o lado bom e o mau do jeitinho, como
conceitua Lourenço Stelio Rega7, na obra Dando um jeito no jeitinho – como ser
ético sem deixar de ser brasileiro (2000). Nos estudos feitos pelo autor é visível a
divisão do jeitinho entre os aspectos mau e bom. O aspecto mau, que segundo ele é
mais perceptível e mais considerado como jeitinho, é quando ele é visto como forma
de burlar, de enganar, a fim de prejudicar o outro com veemência. Inúmeros casos
podem ser citados para exemplificar essa forma negativa, entre eles, quando o
jeitinho passa a ser desmoralizante e inconveniente. É o lado nefasto, o lado nocivo
do jeitinho. Entretanto, existe outro contexto desta instituição que se manifesta no
instinto de sobrevivência. É quando o ser humano se vê obrigado a ultrapassar seus
limites de certo e errado perante as normas pré-estabelecidas de convívio em
sociedade a fim de continuar a viver. Esta questão é facilmente identificada quando,
por exemplo, uma pessoa perde o emprego e, para prover o seu sustento, se vê
obrigada a vender, nas ruas dos grandes centros, mercadorias nem sempre lícitas. É
o aspecto positivo do jeitinho, no qual se burla certa norma com o impulso
espontâneo e alheio à razão para, de qualquer modo, continuar a sobreviver ou
promover o sustento da família. Em casos como esse, o prejuízo dificilmente é de
grandes proporções se utilizado deste jeitinho com fim específico e em curto prazo.
O escritor exemplifica a situação afirmando:
7
Lourenço Stelio Rega é teólogo, escritor e educador. É bacharel e mestre em Teologia, pósgraduado em Análise de Sistemas, licenciando em Filosofia, mestre em Educação e doutorando em
Ciências da Religião. É membro da equipe editorial da revista Edições Vida Nova e possui o site
http://www.etica.pro.br/jeitinho.
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Assim é o brasileiro: dá jeito em tudo. Sua versatilidade abrange um semnúmero de situações: é o pára-lama do carro amarrado, em vez de soldar;
são os juros embutidos no valor da prestação fixa; é o "dar um por fora"; é
matar a avó pela quinta vez para justificar a ausência a uma prova, na
escola. Mas o jeitinho é também pedir a um médico amigo para atender uma
pessoa carente ou para fazer uma cirurgia pela Previdência; é o
revezamento dos vizinhos para socorrer uma pessoa doente; é conseguir
um emprego para um pai desempregado8. (REGA) [s/d].
Com o jeitinho também se torna possível a criação de invenções, a conciliação,
o improviso, pois, muitas vezes, para se dar bem é necessária muita criatividade.
Rega (2000) ainda lembra que tal instituição pode significar a diferença entre a
morte e a sobrevivência e, por esse forte motivo, ela é empregada por todos, sem
distinção.
A antropóloga Lívia Barbosa, na obra O jeitinho brasileiro (1992), atesta que a
instituição do jeitinho é vista pela população tanto com sentido positivo, 9 o que tem
aprovação, o valorizado, o elogiado, quanto negativo, aquele desaprovado,
recusado, repelido. Quando é utilizado em questões políticas e econômicas, é visto
como negativo como um “produto direto das distorções institucionais”; no entanto, ao
ser empregado nas relações sociais, é visto como saudável capaz de “promover
ajustes face às imponderabilidades da vida e humaniza as regras a partir da
igualdade moral entre os homens e das desigualdades sociais” (BARBOSA, 1992, p.
49).
Barbosa (1992, p. 32-33) também tem sua definição para a expressão:
Para todos, grosso modo, o jeitinho é sempre uma forma ‘especial’ de se
resolver algum problema ou situação difícil ou proibida; ou uma solução
criativa para alguma emergência, seja sob a forma de burla a alguma regra
ou norma preestabelecida, seja sob a forma de conciliação, esperteza ou
habilidade. Portanto, para que uma determinada situação seja considerada
jeito necessita-se de um acontecimento imprevisto e adverso aos objetivos
do indivíduo. Para resolvê-la, é necessária uma maneira especial, isto é,
eficiente e rápida para tratar do ‘problema’. Não serve qualquer estratégia. A
que for adotada tem que produzir os resultados desejados a curtíssimo
prazo. E mais, a não ser estas qualificações, nenhuma outra se faz
necessária para se caracterizar o jeito. Não importa se a solução
encontrada for definitiva ou não, ideal ou provisória, legal ou ilegal.
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“Positivo e negativo”: denominações elaboradas pela autora para diferenciar o jeitinho.
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Refletindo sobre as palavras da autora, é possível considerar que não existe
uma única classe social na qual o jeitinho não tenha sua utilidade. Ele é aproveitado
por todas as camadas sociais, porém não da mesma forma e a grande diferença
reside na maneira através da qual cada uma consegue tirar sua vantagem. Uns
usam o dinheiro, outros a argumentação, outros a coerção, mas todos os segmentos
da sociedade incorporaram essa conduta na sua rotina, não somente nos seus atos,
como também nas suas palavras, pois para se dar um jeitinho, basta que o indivíduo
tenha “boa vontade” (BARBOSA, 1992, p. 32). Na linguagem popular, o jeitinho
possui várias acepções e as mais usuais são: “jogo de cintura”, “sair do aperto”,
“possuir ginga” “se dar bem”, entre outras tantas expressões percebidas
diariamente.
Os dados apresentados acima foram retirados de uma pesquisa feita pela
etnóloga Lívia Barbosa, que entrevistou 200 brasileiros de diferentes idades, sexo,
raça e chegou à conclusões interessantes, como a de que o jeitinho possui uma
marca geral, ou seja, todos os entrevistados “conhecem, praticam ou fazem uso das
expressões jeitinho brasileiro ou dar um jeitinho” (BARBOSA, 1992, p. 32), além de
ele receber praticamente a mesma definição por todos, ou a mais próxima possível.
Nesta pesquisa a escritora chegou à conclusão de que o domínio do jeitinho é a
burocracia, pois se (principalmente) a coisa pública fosse mais rápida e eficiente, o
uso de tal método não seria de tanta precisão, entretanto a autora discorda do
pensamento de que esta instituição possa vir a desaparecer, pois, segundo ela, o
jeitinho é “afeito [...] aos domínios urbanos, impessoais, onde impera a
representação da racionalidade e da igualdade. Ele nasce, justamente, do encontro
da regra impessoal com a pessoalidade do sistema”. (BARBOSA, 1992, p. 14).
Assim, para que o jeitinho possa vir a desaparecer, uma mudança quase que total
deveria acontecer em todas as instituições: públicas e privadas, na legislação, no
ambiente social e individual, enfim, nos apontamentos de Barbosa, o jeitinho se
manterá enquanto existir convivência em sociedade.
A autora também conclui que para se fazer uso do jeitinho tem-se toda uma
técnica e, segundo os seus entrevistados, inicia-se com o controle do tom de voz.
Saber falar manso, num tom calmo, mantendo a tranqüilidade ao máximo, ser
fraterno, ter “voz macia, ares simpáticos e olhos suplicantes” (BARBOSA, 1992, p.
19
11), é essencial. Percebe-se aqui que não é difícil fazer uso da instituição, basta o
indivíduo exercer algumas técnicas. Entretanto, elas não servem como regra, pois
para cada caso há diferentes formas de usufruir da instituição. Cada pessoa vai
criar, segundo uma necessidade imposta, a maneira com a qual vai tentar se valer
do jeitinho.
1.1.1 Favor, corrupção e jeitinho
Barbosa (1992) afirma que o jeito não é o favor, nem a corrupção, mesmo que
a linha que os diferencia seja muito tênue. Talvez por esse motivo algumas pessoas
confundam os três elementos, pois é mesmo difícil de precisar com exatidão onde
começa um e termina outro. O favor é algo que pede uma reciprocidade, ou seja,
geralmente as pessoas fazem favor umas às outras esperando algo em troca, ou
ainda, se fica para pagar com outro favor quando o favorecedor precisar. Aqui já
começa a diferença com o jeitinho que não tem a necessidade de ser retribuído;
outro ponto diferencial, segundo a autora, é que quando se pede um favor se faz às
pessoas conhecidas, pois ele envolve confiança, no entanto, em se tratando do
jeitinho, esse poderá ser pedido a qualquer pessoa, incluindo aos desconhecidos; o
terceiro item de diferenciação é que o favor “não envolve a transgressão de alguma
norma ou regra estabelecida, enquanto que o jeitinho envolve, quase sempre, algum
tipo de infração”; um quarto ponto é o de que o favor “seria um comportamento mais
formal, enquanto que o jeitinho, mais informal” (BARBOSA, 1992, p. 34).
Mesmo com essas diferenças, a autora lembra que é possível “pedir a alguém
para ‘quebrar meu galho’ e não infringir nenhuma regra, como posso pedir um ‘favor’
a alguém e transgredir uma lei” (BARBOSA, 1992, p. 34). Está aí a sutil ligação
estabelecida entre o favor e o jeitinho, cujo limite é difícil de precisar.
Já a corrupção é distinguida do jeitinho através da “vantagem material advinda
da situação” (BARBOSA, 1992, p. 34-35). A distinção entre esses dois elementos
também é um pouco confusa, pois dependendo da situação o jeitinho poderá ser
confundido com corrupção ou vice-versa. Sobre isso, a autora afirma que se o
resultado do montante da vantagem material for grande, a ação é configurada como
corrupção, caso contrário, trata-se do jeitinho, mas isso, como já foi dito, vai
20
depender de cada caso e de como se configura, pois são de fácil confusão, como
Barbosa (1992, p. 33) mesmo explica:
Sabemos que o jeito se distingue de outras categorias afins no universo
social brasileiro como favor e corrupção. Entretanto, o que distingue o jeito
do favor ou da corrupção é difícil de estabelecer. Sabemos, por várias
entrevistas, que ‘jeitinho demais leva à corrupção’ e que ‘não peço favor a
qualquer um’, embora não seja necessário se conhecer alguém para se
pedir um jeito. Mas, onde, nitidamente, termina um e começa o outro é difícil
de precisar.
Portanto, existem algumas diferenças entre o jeitinho, favor e corrupção, porém
é mais fácil perceber tal distinção quando os conceitos estão expostos teoricamente;
já na prática, a divisão fica muito próxima, podendo facilmente ter um conceito
confundido com outro, inúmeras vezes.
1.1.2 O jeitinho e o “você sabe com quem está falando?”
No estudo de DaMatta (1997), existem algumas comparações entre as
expressões dar um jeitinho e “você sabe com quem está falando?”. Esta segunda
locução, conforme o autor, exprime muito mais a idéia de poder do que a instituição
do jeitinho, pois o jeito pode ser utilizado por qualquer um, de qualquer classe social,
desde o menos qualificado, até o mais graduado, desde aquele com menos posse
até o mais abastado. Já o “você sabe com quem está falando?” não é utilizado
freqüentemente pelos que não possuem um lugar de destaque no quadro social,
nem pelos que não têm algum tipo de status ou influência.
No entanto, quando é aberta a possibilidade de se ultrapassar uma norma, uma
lei, utilizando a expressão “você sabe com quem está falando?”, as pessoas fazem
uso dela. Como exemplo é possível citar alguém que tenha um cargo no governo
(influência) e que queira uma vaga num estacionamento quase lotado. O “você sabe
com quem está falando?” será utilizado para mostrar poder ao empregado que está
cuidando do local. Para esses casos também é interessante se ter um parentesco ou
amizade íntima com pessoas influentes, pois dessa maneira, poderá ser dito: “você
sabe com quem está falando? Sou a esposa do Coronel fulano de tal”, ou “sou
21
amiga da filha do Presidente da República”.10 Já com o jeitinho, não é necessário
mostrar poder, nem status para pedir ou para conseguir o intento, visto que, na
maioria das vezes, o jeitinho é obtido sem ao menos as pessoas envolvidas se
conhecerem, pois o que rege essa instituição é o sorriso, os olhos de lamúria, a voz
suave, dentre outras características afáveis. É importante lembrar, ainda, que
embora ambos lidem com uma situação de confronto, a solução invocada
pelo usuário do jeitinho jamais é a hierarquização do você sabe com quem
está falando?, mas sempre a barganha, a argumentação. (BARBOSA, 1992,
p. 74).
Lívia Barbosa (1992, p. 73), analisando a locução “você sabe com quem está
falando?”, em detrimento ao jeitinho, aponta que o “’você sabe com quem está
falando?’ expressaria justamente nossa vertente hierárquica e autoritária, ao passo
que o jeitinho encarnaria nosso lado cordial, tão valorizado por nós, dessa mesma
vertente”.
Outra diferença é que a expressão “você sabe com quem está falando?”
separa as posições sociais: quem tem o poder de um lado, contra quem não tem o
poder de outro e o jeitinho faz justamente o contrário: ele iguala os envolvidos na
situação, anulando as diferenças sociais. Entretanto, mesmo sendo o jeitinho um ato
que nivela a todos, ele gera a desigualdade no momento em que a pessoa que é
beneficiada por ele é separada do grupo das demais que se encontram na mesma
condição. A etnóloga citada acima faz referência a tal questão explicitando:
Enquanto o ‘você sabe’ exprime a tensão entre essas duas visões de
mundo [hierárquica e individualismo] e a tentativa metafórica de limitar o
avanço do individualismo, através da colocação de todos nos seus devidos
lugares, o jeitinho exprimiria a relação que a sociedade brasileira tem
tentado estabelecer entre as duas, de forma a que nenhuma seja
hegemônica em relação à outra. (BARBOSA, 1992, p. 84-85).
Mesmo essas duas expressões possuindo as diferenças mais explícitas, ainda
assim é possível haver uma evolução do jeitinho e esse se tornar um “você sabe
com quem está falando?” ou vice-versa, transformando as duas em situações
10
Exemplos criados de forma aleatória, pela autora da dissertação, com o intuito meramente
ilustrativo.
22
sociais “contínuas uma a outra” (BARBOSA, 1992, p. 76), uma vez que as duas são
enquadradas como sociais e movem-se entre os indivíduos da sociedade.
1.1.3 Teoria e prática do jeitinho
O historiador João Camilo de Oliveira Torres11 observa no jeito dois aspectos: o
prático e o teórico. Segundo ele (1973, p. 213), “do ponto de vista prático, o jeito se
traduz na capacidade de adaptação a situações inesperadas ou difíceis”. Oliveira
Torres (1973) exemplifica ressaltando que, durante a guerra, na campanha dos
Apeninos, em pleno inverno, os brasileiros que não estavam tão familiarizados com
a neve souberam se proteger muito mais do que os americanos, que já deveriam
estar habituados ao clima, mais freqüente na região onde moram. Ocorre que, com
os pés sendo congelados, os brasileiros trataram de enrolá-los com jornais para
minimizar o frio e para que os seus efeitos fossem menos drásticos; enquanto que
os americanos ficaram esperando orientações da junta médica para o problema. Em
outro exemplo, o autor lembra: “o intelectual brasileiro, mais do que qualquer outro, é
capaz de cuidar de várias atividades, de ser, por exemplo, professor de muitas
disciplinas diferentes, ou exercer muitas profissões, e por vezes bem” (OLIVEIRA
TORRES, 1973, p. 213).
A explicação para tais ocorrências, como foi visto nos argumentos dos estudos
feitos por teóricos das ciências sociais, está no jeitinho brasileiro, na capacidade que
este povo tupiniquim tem de resistir às determinadas situações adversas. Nos dois
exemplos citados acima a palavra-chave é sobrevivência. É o aspecto prático, é o
lado bom, positivo do jeitinho de que fala Oliveira Torres.
Além disso, a colonização dos Estados Unidos, na concepção do mesmo autor,
foi facilitada porque eles andavam em grupo e isso fazia com que as dificuldades
diminuíssem. Nunca estavam sozinhos, diferentemente do Brasil, onde os homens
estavam esparsos, isolados em seu degredo nas capitanias hereditárias, pouco ou
11
João Camilo de Oliveira Torres foi escritor, professor, historiador e jornalista. Faleceu em 1973,
mesmo ano em que escreveu a obra Interpretação da realidade brasileira: introdução à história das
idéias políticas no Brasil. Neste livro há um capítulo intitulado Introdução à teoria do “jeito” do qual
foram feitos os estudos para esta dissertação.
23
nada conhecedores do clima, do ambiente, da natureza e tendo que se adaptar a
todas essas diferenças. Desse modo, o autor explica:
Os primeiros habitantes do Brasil não conheceram a adaptação de suas
formas de vida à nova situação: foram conduzidos a criarem novas formas
de vida. E, quase sempre, o indivíduo isolado, que tinha que dar um jeito ou
morrer... (OLIVEIRA TORRES, 1973, p. 214).
É por esses e outros aspectos que o historiador defende a praticidade do
jeitinho brasileiro. E a respeito do ponto de vista teórico, “essa plasticidade brasileira
torna-se patente à técnica do palpite, isto é, de acertar por sorte com a solução”
(OLIVEIRA TORRES, 1973, p. 215). O autor lembra ainda dos jogos de azar, das
adivinhas, das brincadeiras com múltiplas escolhas, das traduções de sonhos, em
que há possibilidade de acerto, mas é remota: é o palpite, muito usado e que pode
dar certo, no entanto é uma questão de sorte e lembra que “daí para o conhecimento
científico vai uma boa distância” (OLIVEIRA TORRES, 1973, p. 215).
Entre as escrituras (normas e leis) e as reais necessidades de cada indivíduo,
também há uma diferenciação e o etnólogo DaMatta explica:
É como se tivéssemos duas bases por meio das quais pensássemos o
nosso sistema. No caso das leis gerais e da repressão, seguimos sempre o
código burocrático ou a vertente impessoal e universalizante, igualitária, do
sistema. Mas, no caso das situações concretas, daquelas que a ‘vida’ nos
apresenta, seguimos sempre o código das relações e da moralidade
pessoal, tomando a vertente do ‘jeitinho’, da ‘malandragem’ e da
solidariedade como eixo de ação. Na primeira escolha, nossa unidade é o
indivíduo; na segunda, a pessoa. (DAMATTA, 1997, p. 218).
Desta forma, tenta-se caracterizar o jeitinho como uma modalidade de
sobrevivência, um estado de necessidade (na maioria das vezes individual), ou
simplesmente uma forma especial de resolver os problemas reais, solucionar
situações de difícil resolução, e que pode ocorrer de forma prática ou teórica,
positiva ou negativa.
24
1.1.4 Origem do jeitinho na sociedade brasileira
A origem do jeitinho está ligada, segundo estudos de Sérgio Buarque de
Holanda, Roberto Campos, Oliveira Torres, Roberto DaMatta 12, aos princípios
culturais da colonização desde a época em que Portugal esteve no Brasil pela
primeira vez. Ao transferir a sua corte para cá, os colonizadores necessitavam de
novas leis, ou ao menos da adaptação destas normas que já existiam no país
português. Como eram locais totalmente distintos, desde os aspectos físicos,
geográficos e até humanos, era natural que tais preceitos jurídicos não pudessem
ser os mesmos. No entanto, estas normas legais dos lusitanos foram trazidas para o
Brasil e executadas tal e qual se dava no país colonizador. Com as diferenças e as
múltiplas nuances entre Brasil e Portugal, as regras começaram a ser burladas, pois
não era possível fazer aqui o que era legítimo lá. É mister esclarecer que o
descumprimento das leis estava ligado menos à criminalidade do que à adaptação
por parte dos vassalos do Novo Mundo.
Alberto Guerreiro Ramos13, sociólogo brasileiro, trata da origem do jeitinho
como tendo este uma raiz no formalismo, caráter de doutrina que situa a moralidade
na obediência incondicional a normas estabelecidas, ou seja, as leis são regras que
podem determinar o desfecho de qualquer caso, sem referenciar-se aos modelos
externos. Isso explicaria a presença de tal instituição não somente no Brasil, mas em
vários países latino-americanos. O formalismo é apresentado com rigor exagerado
no cumprimento das normas. Segundo Guerreiro Ramos (1966), citado por Barbosa
(1992, p. 12),
essa característica dos países latino-americanos pode ser definida como a
discrepância existente entre as nossas instituições sociais, políticas e
jurídicas e as nossas práticas sociais. Entre o que é prescrito e o que
realmente ocorre; entre nossa constituição, nossas leis e regulamentos e os
fatos e as práticas reais do governo e da sociedade.
12
São autores da sociologia e da antropologia que possuem publicações e estudos sobre a
colonização e a cultura brasileira.
13
Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) foi uma figura de grande importância para as ciências
sociais. Professor da Universidade do Sul da Califórnia e professor visitante da Universidade de
Santa Catarina. Deputado federal pelo Rio de Janeiro e membro da delegação do Brasil junto à ONU.
Escreveu dez livros e inúmeros artigos disseminados para outras línguas. O estudo sobre o jeitinho
está na obra Administração e estratégia de desenvolvimento, de 1966.
25
Com o formalismo, os países latino-americanos tentam ultrapassar a fase de
desenvolvimento em que se encontram criando leis, decretos e assim, abrem
possibilidades de minimizar algumas tensões da sociedade. Sobre o assunto, Lívia
Barbosa (1992, p. 12) se manifesta dizendo:
Portanto, sob esse ponto de vista, é um recurso ideológico do qual lançam
mão as elites dominantes com vistas a escamotear a realidade na tentativa
de, literalmente, ‘tapar o sol com a peneira’. Enquanto o formalismo é uma
estratégia primária, o jeitinho seria uma estratégia secundária, isto é,
suscitada pelo formalismo.
Ainda em seu estudo, Guerreiro Ramos (1966) afirma que com o tempo o
jeitinho está fadado ao desaparecimento e isso ocorrerá a partir do momento em que
estas sociedades (em desenvolvimento) começarem a prosperar econômica e
socialmente, pois, a partir daí, elas seriam obrigadas a ter posturas mais próximas à
realidade social. Com isso, o jeitinho não seria necessário, ou seria utilizado com
menos freqüência. Já Lívia Barbosa (1992, p. 13) não concorda com o fim do
jeitinho, pois,
no Brasil, as relações pessoais atuam mais como fatores estruturais do
sistema do que como sobrevivências do passado que o jogo atual do poder
e das forças econômicas irá marginalizar. Supor, portanto, que o nível de
industrialização e desenvolvimento econômico vá modificar nosso universo
social e assim dar fim ao jeitinho é adotar uma visão linear e simplista da
realidade que não abre espaços para outro tipo de mediação no processo
social brasileiro. [...] [o jeitinho] está longe de ser fruto de estruturas
arcaicas, relações familiares e clânicas, fadado ao desaparecimento com a
chegada das forças modernizadoras.
Roberto DaMatta analisa na obra O que faz o brasil, Brasil? (1997), mais
especificamente no capítulo intitulado O modo de navegação social: a malandragem
e o “jeitinho”, defende a seguinte tese:
O dilema brasileiro residia numa trágica oscilação entre um esqueleto
nacional feito de leis universais cujo sujeito era o indivíduo e situações onde
cada qual se salvava e se despachava como podia, utilizando para isso o
seu sistema de relações pessoais. Haveria assim, nessa colocação, um
verdadeiro combate entre leis que devem valer para todos e relações que
evidentemente só podem funcionar para quem as tem. (DAMATTA, 1997, p.
95-96).
DaMatta (1997 p. 99) classifica o Brasil como o país do “não pode” e é por isso
que se torna fácil, segundo o autor, “descobrir e aperfeiçoar um modo, um jeito, um
26
estilo de navegação social que passa sempre nas entrelinhas desses peremptórios e
autoritários ‘não pode!’”. É a confluência daquilo que é permitido com o que não se
permite que dá origem a tal prática social brasileira, que passa a ser “um modo
simpático, desesperado ou humano de relacionar o impessoal com o pessoal... é um
modo pacífico e até mesmo legítimo de resolver tais problemas, provocando essa
junção inteiramente casuística da lei com a pessoa que a está utilizando”
(DAMATTA, 1997 p. 99). Em Carnavais, malandros e heróis – para uma sociologia
do dilema brasileiro, o antropólogo lembra a observação de Alexis de Tocqueville:
Os costumes e praxes estabelecidos pela primeira classe da sociedade
servem de modelo a todas as outras, cada uma das quais, por sua vez,
estabelece seu código próprio, a que todos os seus membros são obrigados
a obedecer. Assim, as regras de polidez formam um complexo sistema de
legislação, difícil de ser dominado perfeitamente, mas do qual é perigoso
para qualquer um desviar-se; por isso, os homens estão constantemente
expostos a infligir ou receber, involuntariamente, afrontas amargas.
(TOCQUEVILLE, 1969, p. 257-258 apud DAMATTA, 1997, p. 188).
Observa-se nesta citação, que o mesmo problema que ocorreu quando
Portugal transferiu sua corte para o Brasil e trouxe as mesmas regras de lá, se
repete quando o que é legal e o que é ilegal são definidos através de um único
padrão, ou seja, quando as normas são criadas por um grupo de pessoas, mas
devem ser seguidas por todos. Este único padrão vai de encontro com a
individualidade humana, pois existem ocorrências contrárias às vontades das
pessoas que, nestes casos, sem outra solução, se obrigam a apelar para o jeitinho.
O escritor e ensaísta Roberto Campos (1967, p. 9) diz que a instituição do jeito
não pode ser chamada de “legal nem ilegal é ‘paralegal’”. Sociologicamente,
continua o escritor, existem três fatores principais ligados à origem do jeitinho: os
aspectos históricos, a forma como a sociedade encara as leis e um aspecto de
cunho religioso. Historicamente, nos países latinos, o feudalismo14 se fez presente
por muito mais tempo do que nos países anglo-saxões. Nesse regime, a
desigualdade é imensa e vê-se as leis sendo aplicadas somente para vassalos e
servos, ou seja, os subordinados.
14
Regime resultante dum enfraquecimento do poder central e que une estreitamente autoridade e
propriedade da terra, estabelecendo entre vassalos e suseranos uma relação de dependência.
27
Em termos de legalidade e fato social, ainda nos países latinos, as
constituições são regras padrões e regimentais, criando, assim, um descompasso
entre a própria regra e o comportamento da sociedade, o que gera uma permanente
tensão institucional. Assim, “o descumprimento da lei é uma condição de
sobrevivência do indivíduo e de preservação do corpo social sem um inordinato
atrito” (CAMPOS, 1967 p. 17).
Outra maneira de explicar as origens do jeitinho é através da religiosidade,
quando o autor observa que: “no catolicismo, rígido é o dogma, e a regra moral,
intolerante. No protestantismo, complacente é a doutrina, e a moral, utilitária. Há
menos beleza e também menos angústia” (CAMPOS, 1967, p. 18), isto é, a Igreja
Católica é muito intolerante, por outro lado tem-se o Protestante que é mais
benevolente e quando uma determinada situação exige, a norma é modificada.
Sobre a tese de Roberto Campo, observada acima, Lívia Barbosa faz algumas
ressalvas: 1- a autora não concorda com a afirmação de que o jeitinho é prática
comum nos países latinos, pois “Só há jeito como categoria social, quando há [...] o
reconhecimento, a classificação de uma determinada situação como tal; e [...]
quando utilizamos dessa instituição para definir o estilo de uma determinada
população lidar com certos problemas” (BARBOSA, 1992 p. 15-16); 2 – discorda da
posição de que as práticas feudais contribuíram para o jeitinho; 3 – acha
problemático falar sobre a cristalização das leis: “a idéia de que o sistema jurídico
português não era pragmático precisa ser melhor estudada, pois o que justamente
ele cristalizava em lei era a ausência de uma norma universalizante” (BARBOSA,
1992, p. 16); 4 – para terminar, não concorda com o aparecimento do jeitinho
através das questões religiosas, fazendo apontamentos sobre o catolicismo e o
protestantismo de Lutero.
Nos estudos de Lívia Barbosa é apresentado o autor Keith S. Rosen15,
professor de direito da Universidade de Ohio, que escreveu The jeito – Brazil’s
Institutional Bypass of the Formal Legal System and its Development Implications
(1971), que diz, em citação indireta da escritora, ser difícil estudar o jeitinho por
15
Lívia Barbosa fez citações indiretas desse autor na obra O jeitinho brasileiro. Dessa forma, todas as
passagens em que Keith S. Rosen aparece citado foram consultadas do livro da autora.
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causa “da sua multiplicidade de formas e as diversas conseqüências daí advindas
para o funcionamento da sociedade” (BARBOSA, 1992, p. 21). Keith elabora uma
listagem de comportamentos de diferentes tipos de pessoas (funcionários públicos,
da iniciativa privada, cidadãos comuns...) e algumas de suas atitudes nas quais é
possível identificar o jeitinho.
A história do jeitinho, segundo Keith Rosen (apud BARBOSA, 1992, p. 23),
pode ser encontrada: 1 – no “passado português”, com uma administração
dominante e leis não muito claras; 2 – no “caráter português”, que era tolerante à
corrupção e não possuía “responsabilidade civil”; 3 – e no sentimentalismo, com a
idéia do “complexo de coitado”. Concordando com o ensaísta Roberto Campos e
sem fazer acréscimos, Keith cita o feudalismo, o catolicismo e o compromisso legal
para designar o surgimento do jeitinho.
O professor da Universidade de Ohio explana, ainda, sobre as questões que
ocorrem, principalmente em cidades menores, do interior, onde todos se conhecem.
Em tais lugares, há ocorrências nas quais os patrões assumem os problemas e
dificuldades dos empregados e subalternos e de certa forma tentam resolvê-los,
uma vez que o patrão é mais bem reconhecido que o empregado e tem mais força e
poder para dar um jeito em nome dos seus prestadores de serviços, como
exemplifica Barbosa (1992, p. 23), ao citar indiretamente Keith (1971):
Historicamente, as elites brasileiras têm se comportado de forma
paternalista, concedendo constituições e leis ao povo brasileiro sem
qualquer preocupação com os desejos dos agraciados. Ao invés de ser o
produto legítimo de pressões populares, de um estudo objetivo ou, ainda, da
cristalização do costume, a legislação brasileira tem sido decorrentemente o
produto que um pequeno grupo imagina ser o ideal para o povo. A
centralização do poder nas mãos de uma minoria e a pouca vontade de
delegar poderes levam a uma imensa burocracia que, sem dúvida alguma,
facilita ainda mais o jeito.
Dando continuidade às questões que, segundo Keith Rosen (apud Barbosa,
1992 p. 23), propiciam o jeitinho, ainda é citado o “legalismo”, ou seja, há uma
necessidade no Brasil de se colocar tudo no papel, inclusive casos que ainda não
ocorreram, mas que futuramente possam vir a acontecer e a “tendência de acreditar
como resolvido tudo aquilo que é transformado em lei”. Porém, pelas próprias
experiências brasileiras, percebe-se que, muitas vezes, essa não é a solução para
29
os problemas sociais, pelo contrário, só dá mais espaço para que o jeitinho se
configure.
Nos estudos de Keith é enfatizado que tal instituição implica “custos e
benefícios” para a sociedade brasileira. Como custo, ele cita o “econômico que gera
má alocação de recursos, aumento dos custos de produção ou má qualidade do
produto e injustiça social [...], retardam também a eficiência administrativa”. Já os
benefícios são encontrados quando ele: 1 - “proporciona um mecanismo mais
eficiente no processo de desenvolvimento, [...]”; 2 – (quando) “surge como uma fonte
permanente de estabilidade e previsibilidade, [...]”; 3 – (quando ele aparece) “sob
forma de gorjeta” (BARBOSA, 1992, p. 24).
Ao citar a “eficiência no processo de desenvolvimento”, Keith aponta para
soluções de problemas tendo custos baixos; sobre o segundo benefício mencionado,
o professor se refere às freqüentes mudanças nas leis, o que transforma o país
numa instituição em contínua modificação e, “sob forma de gorjetas”, faz menção a
complementação salarial que funcionários podem receber em detrimento às baixas
remunerações recebidas.
Lívia Barbosa (1992), em sua tese, ao analisar os estudos sobre o jeitinho,
indicou alguns aspectos recorrentes que são enumerados nesta dissertação:
1 – (o jeitinho) é visto exclusivamente como mecanismo de adaptação e ajuste às
situações perversas da sociedade brasileira (BARBOSA, 1992, p. 12);
2 – a ligação do jeitinho com aspectos históricos gerais;
3 – segundo a perspectiva evolucionista, ele “é sempre interpretado como um
sintoma, um indicador, uma sobrevivência de estágios de subdesenvolvimento
econômico e social que os eventos da modernidade e do progresso tratarão de
dissipar” (BARBOSA, 1992, p. 27);
4 – a ênfase nos aspectos morfológicos e funcionais sem se referir ao “significado no
nível das representações”. (BARBOSA, 1992, p. 27);
5 – a discussão de que o jeitinho é uma “instituição tipicamente brasileira, arriscando
prognósticos sobre sua permanência ou não no interior da nossa sociedade”
(BARBOSA, 1992, p. 27).
30
Outra manifestação interessante sobre o assunto é das autoras do trabalho
Dimensões da cultura brasileira na visão os expatriados16, (2005) que analisam a
forma como estrangeiros vêem o Brasil e interpretam a maneira de viver que o
brasileiro leva. No estudo, as autoras afirmam que:
na sua origem, o Jeitinho referia-se basicamente a uma série de artifícios
empregados para contornar obstáculos burocráticos portugueses. Na época
da mineração, por volta de 1700, se utilizavam imagens de santos católicos
com o interior oco para transportar clandestinamente o ouro extraído na
então Colônia, evitando incidência de impostos da Coroa Portuguesa sobre
o ouro comercializado. Outro exemplo clássico foi a forma com que os
negros trazidos da África associaram os orixás a estes mesmos santos
católicos, conseguindo com que suas crenças fossem paulatinamente
aceitas, o que originou o significativo sincretismo religioso que temos no
Brasil, além da extrema tolerância religiosa própria deste país.
(GUILLAUMON; CASADO, 2005, p. 4).
Lívia Barbosa, na pesquisa já citada, faz um estudo sobre a identidade nacional
para tentar entender (ou inserir) o jeito neste contexto. Assim, ela defende que:
Quando nos referimos ao jeitinho brasileiro como um elemento de
identidade social, não significa dizer que acreditamos que ele simbolize a
totalidade da sociedade brasileira em todas as suas expressões, nem que
expresse o comportamento ‘típico’ do brasileiro e, muito menos, que essa
forma da ação social possua a ‘essência’ exclusivamente nossa. Significa
apenas que, em determinados contextos, ele sinaliza um conjunto de
relações e procedimentos que os brasileiros ‘percebem’ como sendo deles.
E que essa totalidade expressa na categoria brasileiro só se mantém intacta
a uma certa distância de um determinado ponto específico. (BARBOSA,
1992, p. 130).
Após as explanações desses inúmeros conceitos e aplicações, fica claro que o
jeitinho na sociedade brasileira não representa a totalidade do povo. Outro aspecto é
que ele possui caráter histórico e está fixado no meio social desde os primórdios do
descobrimento e, mesmo que a expressão continue atual, ela é conhecida e
praticada há séculos no Brasil, segundo observa-se nos estudos históricosociológicos e antropológicos.
1.2 Aspectos filosóficos e psicológicos
16
O trabalho pertence às autoras Siegrid Guillaumon Dechandt, da Universidade Federal da Bahia e
de Tânia Casado, da USP. A referência completa está no final da dissertação.
31
A filosofia também tem seu parecer sobre o estudo do jeitinho brasileiro, mas
não difere tanto do que já foi visto por antropólogos e sociólogos, sendo mais uma
complementação dos estudos. Em Crítica da razão tupiniquim, Roberto Gomes
(1982) escreve que, até onde lhe parece, o brasileiro é o único povo que se utiliza do
jeito para tentar resolver impasses e que o segredo da formação do jeito é a “nãoradicalização”, ou seja, o lado moderado, flexível deste povo auxilia na
representação do jeitinho, pois é notória a preferência por soluções sem
radicalização, sem grandes conflitos, optando-se, assim, por dar um jeito nas
situações que tendem ao agravamento e a um possível final inflexível. Com isso, há
uma intensa busca da harmonia, dando o jeito para que essa não se desestabilize.
“Um homem que se exalta perde a capacidade de ‘dar um jeito’. Um país que entra
num processo revolucionário não soube descobrir o ‘jeito’ de evitar coisa tão
desagradável” (GOMES, 1982, p. 43).
Com o objetivo de procurar um possível conceito para a instituição jeitinho,
Gomes (1982, p. 44-45) expressa que “nosso ceticismo guarda a noção essencial de
que por detrás das formalidades se encontram valores mais respeitáveis do que um
‘eu’ 3 por 4. O jeito é, portanto, uma maneira marota de desrespeitar a extrema
formalidade em respeito a valores maiores”. O filósofo também concorda que “se
nos limitarmos à superfície, o jeito é promotor de uma atitude de tolerância e de
abertura intelectual. Como expressão da razão conciliadora, um dos produtos mais
lamentáveis de potencial despótico e conservador” (GOMES, 1982, p. 49).
Os autores já estudados nesta dissertação, tanto sociólogos, antropólogos
como filósofos, concordam que o sistema emocional e todas as suas características
como humildade, alegria, sinceridade, são muito importantes para que o indivíduo
conquiste o que necessita e que tais peculiaridades podem dar origem a tal
característica humana. Para ilustrar a afirmação, Roberto Gomes (1982, p. 52)
completa dizendo que tal sistema também é “responsável pela rudimentaridade de
nossas posições”.
Para Fernanda Carlos Borges, na obra A filosofia do jeito – um modo brasileiro
de pensar com o corpo (2006, p. 21), o jeitinho é tratado de duas formas: como
32
processo de cognição e “como modo pelo qual esse processo é afirmado na cultura
brasileira”. Independente de ser cognitivo ou cultural, o jeitinho faz com que a
“universalidade” ceda lugar ao individual. As leis são institucionalizadas levando em
conta o coletivo, deixando de lado as particularidades de cada um sendo aqui que se
apresenta o jeitinho, que tenta defender as características peculiares de cada ser,
resolvendo mesmo que em parte ou por pouco tempo, situações de difícil solução.
No Brasil não são somente as leis que regem o cotidiano; os problemas
fundamentais e próprios de cada um também fazem parte do conceito de igualdade
entre os homens.
A autora lembra que o jeitinho tem como característica o apelo emocional do
qual as regras normativas não dão conta e, para isso, o jeito de se expressar, a
simpatia, a humildade e a demonstração de que tal situação é necessária são
indispensáveis à obtenção de tal auxílio. A instituição estudada também tem uma
relação entre o público (universal) e o particular. “Mais especificamente, entre a
permanência normativa que iguala as diferenças e a mudança sensível que
diferencia cada um” (BORGES, 2006, p. 21). Além disso, ele apresenta a
possibilidade de rever as atitudes que já estavam estanques, que já tinham sua
decisão tomada, dando uma versatilidade maior às soluções de problemas e com
isso, o aparecimento, muitas vezes, da criatividade, de idéias novas.
A pesquisadora expõe que o jeito do corpo tem relação com o jeitinho
brasileiro, pois o corpo, em diferentes situações, se “molda”, ou seja, “dá um jeito” a
fim de conseguir enfrentar os problemas propostos pelo cotidiano. Ele, além de ter
uma concepção cultural, segundo Borges, também é biológico. Esta comparação
entre o jeito do corpo com o jeitinho é possível uma vez que um dos principais
objetivos da instituição é fazer algo para tentar solucionar situações complicadas. É
dessa forma que o corpo se comunica com o universo, como indica a filósofa:
Neste livro, o jeito é entendido como o modo pelo qual a mente é envolvida
com o sistema sensório-motor e suporta, portanto, uma abordagem
universalizável. Mas esse jeito também é entendido como um processo
afirmativo da cultura brasileira, e suporta uma abordagem singularizada
como jeitinho brasileiro. (BORGES, 2006, p. 23).
33
A filosofia parece estar preocupada em perceber as semelhanças e diferenças
entre as situações, entre as pessoas, entre as coisas e, dessa forma, Borges (2006,
p. 24), citando Deleuze17 (1998, p. 417), mostra que “a diferença continua marcada
pela maldição; foram apenas descobertos meios mais sutis e mais sublimes de fazêla expiar ou de submetê-la, de resgatá-la sob as categorias da representação”. Essa
diferença está no jeito que toma para si uma postura que não é universal, mas que,
naquele momento, no âmbito individual, é de extrema necessidade. A autora insiste
na semelhança entre o jeito e o jeitinho brasileiro, dizendo que o jeito, por fazer parte
do nosso sistema sensório-motor e, dessa forma, é característico da índole do ser
humano, também aparece fazendo parte da cultura popular através da conhecida
expressão jeitinho brasileiro e do ambiente em que este povo vive. No Brasil o
jeitinho é um traço da cultura do povo, faz parte da identidade nacional.
Quando Fernanda Borges (2006, p. 58) tenta aproximar o jeito do corpo do
jeitinho brasileiro, esclarece que “o conceito do ‘jeitinho’ revela que algumas forças
foram identificadas, destacadas, enfatizadas, valorizadas e assumidas como
próprias. Forças que correspondem ao jeito do corpo transformado em característica
cultural”. E continua:
O jeitinho é uma dessas forças e se coloca como alternativa ao modo de
vida do homem polido e erudito que encontrou desenvolvimento no modo de
vida protestante. O jeitinho continua uma alternativa ao modo de solucionar
problemas do modelo coercitivo, exclusivo e imparcial da civilização
messiânica. (BORGES, 2006, p. 105).
O psicanalista Contardo Calligaris, na obra Hello Brasil18 (2000, p. 79), “vê no
jeitinho a conseqüência dos nossos problemas com a função paterna”. A filósofa
Fernanda Borges (2006) destina alguns trechos do seu livro para descrever tal
“paternidade”. Sob seu ponto de vista, ela é a hierarquização ocorrida no mundo.
Assim, explica tal conceito dando o exemplo de o Brasil sendo o filho e os
colonizadores fazendo o papel de patriarcas que viram neste país a possibilidade de
17
A citação foi retirada da obra Diferença e repetição, de Giles Deleuze e aparece no livro de
Fernanda C. Borges, A filosofia do jeito.
18
Contardo Calligaris é psicanalista, autor da obra Hello Brasil! Notas de um psicanalista europeu
viajando ao Brasil (2000), na qual descreve as impressões que europeus tiveram e registraram de
viagens ao Brasil. Segundo ele, estas escritas “nem sempre são de forma objetiva, mas quase
invariavelmente de maneira estimulante para o leitor brasileiro que, a cada relato que lê se confronta
com o estranho, ou seja, aquilo que é, ao mesmo tempo, familiar e desconhecido”.
34
fácil exploração. Calligaris também dispõe de conceitos sobre o jeitinho falando não
só do explorador, mas também do comportamento dos colonos, pois esses se
fortalecem mais como sujeitos ao burlar as leis ou as imposições. Para ele, jeitinho é
“um epifenômeno da marginalidade” (CALLIGARIS, 2000, p. 112). Fernanda Borges
(2006, p. 60-61) cita Calligaris (2000) ao falar da marginalidade:
Calligaris traça um paralelo com a Europa, mostrando que lá o bandido tem
mais consciência do custo-benefício, que as pessoas têm mais consciência
do prazer obtido pelo esforço, que seus nomes próprios são escolhidos com
critérios mais significativos, que nos Estados Unidos o protestantismo
favoreceu o distanciamento necessário para a autofundação de sucesso,
etc.
A diferença vista pela filósofa entre o Brasil e os norte-americanos é que lá as
leis são cumpridas e o individual é muito mais valorizado do que o coletivo, então,
a igualdade dos indivíduos é entendida como igualdade perante a lei, num
sistema legal apoiado em princípios gerais capazes de garantir as
liberdades individuais. [...] Já no Brasil, as situações de jeitinho estão
apoiadas numa outra concepção de igualdade, uma igualdade diante da
condição humana. (BORGES, 2006, p. 61-62).
Wilhelm Reich, psiquiatra, autor de A função do orgasmo19, é citado por
Fernanda Borges para ressaltar a questão do público e do privado. Segundo ela, o
psiquiatra ressalta:
tem-se de reformular por completo o modo de pensar, para que não se
pense do ponto de vista do estado e da cultura e disso e daquilo, mas do
ponto de vista daquilo que as pessoas precisam, daquilo que elas sofrem.
Então se adaptam as instituições sociais de acordo com isso. Não o
contrário. (REICH, 1977, p. 58 apud BORGES, 2006, p. 85-86).
Novamente percebe-se que alguns estudiosos da temática promovem a defesa
do jeitinho ao pensá-lo como uma instituição capaz de olhar o individual e não o
coletivo, uma vez que os seres humanos diferem uns dos outros desde o formato do
seu corpo, seu caráter, sua formação, até suas necessidades e problemas.
O psicanalista Calligaris percebe o jeitinho como um meio de resolver alguma
dificuldade, por um período não-definitivo, enquanto a verdadeira solução não
19
REICH, Wilhelm. A função do orgasmo. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.
35
acontece. Com esse posicionamento, para o psicanalista, o jeitinho tenderia a
acabar no momento em que o problema fosse resolvido em definitivo. Ele ainda
consegue perceber o jeitinho como sendo uma expectativa:
sua nobreza tem que ser considerada numa estrutura onde a origem da lei
aparece como uma prepotência escravizante, e o ato nas margens é o lugar
onde se espera uma dignidade de sujeito. Deste ponto de vista, o jeitinho
não parece ser símbolo de um crônico subdesenvolvimento simbólico: ele é
também uma esperança. (CALLIGARIS, 2000, p. 113).
Entretanto, a filósofa Fernanda Borges (2006) considera pouco provável o
desaparecimento do jeitinho com o desenvolvimento econômico ou histórico do país,
pois ele não é um “desvio cultural ou um costume”, ele é muito mais, segundo ela,
pois
trata-se de um procedimento apoiado em um processo cognitivo, que é o
jeito do corpo, característico de todos os homens, que na cultura brasileira
se afirma na aceitação da capacidade de articular uma regra geral abstrata
e universal com a solidariedade das relações pessoais contextualizadas.
(BORGES, 2006, p. 80).
Também, tal instituição, segundo a autora, não é característica de algum tipo
de classe e sim de uma “espécie de resultante híbrida entre as relações de favor e
as relações individuais” (BORGES, 2006, p. 64).
Como o jeito do corpo tem relação direta com o jeitinho brasileiro, segundo
Fernanda (2006, p. 65), então “o processo cognitivo de mapeamento da relação
corpo-objeto acontece diante das situações “humanas”. Pode-se observar esse
esclarecimento da autora através da comprovação de que cada vez que o corpo é
tomado por uma situação pela qual ele não espera, esse toma uma nova forma para
escapar da situação-surpresa. José Ângelo Gaiarsa20, renomado psiquiatra
brasileiro, trata da questão do corpo interligado à consciência. Ele afirma que a
“consciência ‘está’ – na verdade ‘se forma’ – onde há um ajuste delicado a realizar,
onde uma relação está perturbada, onde algo novo germina” (GAIARSA, 1988, p.
128 apud BORGES, 2006, p. 75).
20
GAIARSA. José Ângelo. A estátua e a bailaria. São Paulo: Ícone, 1988.
36
Com essas indicações, percebe-se que há uma relação direta entre jeitinhocorpo-consciência. A situação do jeitinho se comunica com o corpo, que também dá
jeitos para se moldar ao ambiente e esses dois participam junto à consciência que,
ao detectar algo fora da normalidade, exige uma mudança de atitude para se
adequar à nova forma, mesmo que este ajuste seja necessário apenas por certo
período. A autora referenciada explica:
a condição humana é a condição do jeito. E o jeitinho afirma essa condição
humana de um jeito peculiar, ao eleger valores e critérios para dar ou não
um jeitinho. [...] A maneira de falar é o que pode haver de mais radicalmente
diferente da fria universalidade legal e institucional. É incapaz de ser
apreendida e tornada universal, sob controle impessoal. (BORGES, 2006, p.
83).
Cada vez que se tem uma mudança de comportamento tem-se, igualmente,
uma mudança no “padrão biomecânico habitual” (BORGES, 2006, p. 87), pois com
esse procedimento o corpo se reequilibra da perda da forma e evita a possível
queda provocada pelo desequilíbrio corporal. A filósofa traz à tona a questão
propondo uma nova força para se somar à idéia de uma provável queda:
O jeitinho propõe um outro modo de lidar com o risco de queda capaz de
abrir mão do orgulho e de experimentar a transformação por meio da
percepção do outro, que deixa de ser o culpado que ameaça o equilíbrio
habitual para ser apropriado como forma renovadora. (BORGES, 2006, p.
132).
As fortes reações emocionais são capazes de alterar a percepção do ser
humano. Elas estão ligadas ao cérebro, aos movimentos, e possuem capacidade de
interferir nas atitudes humanas, pois através das ações ou, como diz Borges (2006,
p. 90), “através dos músculos”, elas adquirem alguns aspectos caracterizando-as.
Se o jeitinho é envolvido por atitudes emocionais a ponto de conseguir fazer com
que uma pessoa “se coloque no lugar da outra” através de “apelos aos ‘bons
sentimentos’, à ‘boa vontade’ e ‘compreensão’, está acontecendo algo que tem um
considerável valor ético”. (BORGES, 2006, p. 90). A autora cita Damásio 21 (2000, p.
80) o qual esclarece: “as emoções são inseparáveis das idéias de bem e de mal”.
Essas variações de ânimo abrem possibilidades para “relações entre diferentes
culturas e permitem que a arte, a literatura, a música e o cinema cruzem fronteiras”
(DAMÁSIO, 2000, p. 77 apud BORGES, 2006, p. 90).
21
DAMÁSIO, Antônio. O mistério da consciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
37
Assim, percebe-se, através da declaração acima, que há uma insistência entre
os estudiosos de que as emoções constituem-se em um dos fatores importantes
capazes de fazer a diferença no momento de se conseguir o benefício do jeitinho e
que tanto a suavidade da voz, como o “jeito do corpo” (BORGES, 2006, p. 94)
possuem mais valor do que o melhor e mais elaborado argumento. O que está em
jogo não é a forte argumentação e sim o jeito como o assunto é tratado entre ambas
às partes. Dessa forma, o jeitinho cria novas possibilidades de resolver certos
problemas, deixando para o segundo plano as normas legais e dando origem ao
emprego de novas habilidades, novas aptidões humanas.
Fernanda Borges (2006) faz um estudo sobre a palavra jeitinho citando Gaiarsa
(1988, p. 92) para concluir que, etmologicamente, ela provém de “dissolver de novo”;
ora, algo que precisa ser dissolvido de novo é porque necessita ser desmanchado.
Assim, chega-se à palavra resolver, pois tudo o que é desmanchado faz-se dessa
forma para alcançar uma resolução. A conclusão de Fernanda Borges (2006, p. 92),
então, é: “resolver é dar um jeito!”.
O assunto jeitinho ainda aponta para a discussão sobre o legal e o de direito.
Assim, a filosofia de Borges (2006) defende a diferenciação entre as leis para o
individual e para o coletivo. Segundo ela, os humanos, apesar de serem da mesma
espécie, de possuírem características semelhantes, não são iguais. Como já foi
explicitado neste trabalho, o jeitinho ocorre no Brasil porque
O fato de convivermos com essa concepção dupla da igualdade, como um
direito e como um fato, permite que em algumas situações o mesmo
argumento universalizante da igualdade, cuja raiz é a igualdade diante da
lei, possa ser usado como igualdade diante da condição humana. Trata-se
da convivência entre a igualdade jurídica, a igualdade substancial, corporal,
que legitima as urgências e as necessidades da condição humana
envolvidas nas situações em que se pode ou não dar um jeitinho.
(BORGES, 2006, p. 95-96).
O jeitinho, de fato, apareceu, segundo estudos da autora (2006), com a
chegada da modernidade industrial no Brasil. As expressões mais utilizadas para
designar tal instituição são percebidas somente após a década de 50 e, nos meios
de comunicação, a partir de 1974. Dessa forma, “a emergência da expressão jeitinho
38
brasileiro segue o desenvolvimento de uma identidade cultural no Brasil, a partir da
década de 1930” (BORGES, 2006, p. 99). A constatação, feita pela autora, não é a
mesma defendida nos estudos da antropologia e da sociologia, que datam o
surgimento do jeitinho com a chegada da Corte Real Portuguesa ao Brasil.
Para finalizar, Fernanda Borges (2006, p.132) traça uma conexão sobre o
envolvimento do jeitinho na sociedade e declara:
O jeitinho não pressupõe que os esforços pela vida devam ser conduzidos
por uma instância modelar a ser reproduzida em série, com a função de
proteger a subjetividade dos perigos da diversidade, da circunstância e da
parcialidade. Ao contrário, está envolvido com uma percepção da diferença
e pode ser localizado nessa genealogia que remete à economia do ser das
sociedades matrilineares.
Como é possível observar, diferentes autores tratam do jeitinho desde seu
surgimento e o percebem de maneira diferente: os defensores do jeitinho mau e os
que admitem que a instituição tenha seu lado positivo também. Portanto, a temática
observada é muito mais complexa do que simplesmente ser considerada como um
conceito ou um modo de agir. Ela requer estudos de casos individuais, pois as
pessoas são diferentes e não possuem comportamentos e condições de vida, sejam
elas sociais, culturais ou financeiras, iguais.
2 PERSPECTIVAS CRÍTICAS: A IRONIA
39
A ironia está muito presente no cotidiano e convive-se com ela diariamente em
diferentes lugares. É um fenômeno bastante difundido, dado que até mesmo quem
pensa não ser, não consegue escapar, ao menos por alguns instantes, de ter uma
atitude ou pensamento irônico. O ser humano é irônico constantemente e esta
capacidade está incutida no ser racional. A literatura possui uma forte inclinação
para o uso da ironia, uma vez que ela destrói verdades pré-concebidas, tornando-se
um antídoto não só contra o preconceito como também contra as verdades prontas.
O jeitinho está relacionado com a ironia, pois para se dar um jeito, necessitase, muitas vezes, se valer da ironia, ferramenta muito usada para desmitificar as préconcepções incutidas nos seres humanos. A instituição do jeitinho recorre à ironia,
quando parte para desestabilizar uma situação que já se apresenta estável e, dessa
forma, transformar um assunto (ou ocasião) sério em atitude passível de riso.
Nas artes verbais, a ironia pode ser detectada com maior facilidade. O
estudioso D. C. Muecke, na obra Ironia e o irônico (1995, p. 17), aponta que talvez
só existam duas maneiras de ocorrência da ironia nas artes não-verbais:
“incongruências de propriedades formais e paródias de clichês, maneirismos, estilos,
convenções, ideologias e teorias de artistas, escolas ou períodos anteriores”. Esse é
o motivo pelo qual se tem a impressão de que só se faça uso dela nas artes verbais,
uma vez que nas não-verbais ela ocorre com maior complexidade.
Um dos méritos da ironia reside também no fato de ela possuir características
como a seriedade, a sisudez, a sobriedade, a franqueza, entre outras, que a fazem
um ponto de equilíbrio capaz de harmonizar o status quo. A ironia, para Muecke
(1995, p. 19),
é como um giroscópio que mantém a vida num curso equilibrado ou reto,
restaurando o equilíbrio quando a vida está sendo levada muito a sério ou,
como mostram as tragédias, não está sendo levada a sério o bastante,
estabilizando o instável, mas também desestabilizando o excessivamente
estável.
Dessa forma, é fácil perceber que a ironia, além de estar presente no cotidiano,
faz-se necessária na vida, pois cria uma ordem, uma simetria indispensável para a
estabilidade mental e emocional do ser racional.
40
Quando se traz à tona o tema da ironia logo se pensa no agente do assunto,
que nesse caso vem a ser a pessoa irônica. Sobre ele é importante lembrar que o
irônico e o não-irônico podem ser opostos que se complementam, pois são
desejáveis e necessários, mas nenhum deles é inteiramente completo, nenhum é
capaz de alcançar sozinho determinado patamar a ponto de saciar todas as
necessidades. Assim, percebe-se os dois como algo único, que num momento é
capaz de se valer da ironia e em outro não. Só assim o ser humano é considerado
inteiro, completo.
A apreciação da ironia é muito discutida desde os primeiros estudos sobre o
assunto, talvez porque não seja possível conceituá-la de uma única maneira, pois
ela é instável e seu conceito muda de lugar para lugar (o que é ironia no Brasil pode
não ser no Japão), além de depender, também, dos momentos em que ela ocorre e
dos tempos históricos transcorridos. Dessa forma, para os conhecedores do
assunto, ela é um pensamento possuidor de inúmeras significações. Muecke tenta
encontrar uma resposta para estes diferentes julgamentos, principalmente quando
esses se referem aos anos decorridos. Em suas palavras,
Historicamente, nosso conceito de ironia é o resultado cumulativo do fato de
termos, de tempos em tempos, no decurso dos séculos, aplicado o vocábulo
ora intuitivamente, ora negligentemente, ora deliberadamente, a fenômenos
que pareciam, talvez erroneamente, ter bastante semelhança com alguns
outros fenômenos aos quais já o vínhamos aplicando. (MUECKE, 1995, p.
22).
O modo de pensar a ironia é tão complexo que pode mudar conforme as
pessoas que a utilizam, a ocasião, o lugar, a compreensão e o fim a que ela se
destina; além de depender também do ponto de vista do estudioso que está
interessado em analisar o assunto. Todos esses aspectos influenciam na definição
de uma significação única e universal para a ironia. Ela é algo possível de ser vista,
de ser praticada e a qual, normalmente, há uma reação. Também é tão antiga que
antes de possuir um nome (ironia) e um conceito, já era praticada e utilizada, como
explica Muecke (1995, p. 30): “‘O termo ironia’ aparece em algumas traduções da
Poética como uma versão da peripeteia (peripécia) aristotélica (súbita inversão de
circunstâncias) que talvez abrangesse parte do significado a ironia dramática”.
41
A ironia surge com Sócrates e o primeiro registro que se tem conhecimento
sobre o assunto aparece na obra República, de Platão e que, segundo Muecke
(1995, p. 31), “parece ter significado como uma forma lisonjeira, abjeta de tapear as
pessoas [...]. Para Aristóteles, a ironia é a ‘dissimulação, autodepreciação, superior a
seu oposto que é a alazoneia’”. Já Demóstenes afirma que a eiron é aquela pessoa
que não cumpre seu papel de cidadão por se eleger incapaz; para Teofrasto, um
eiron é “evasivo e reservado”, trata os outros com falsidade e suas respostas nunca
são completas, deixando sempre lacunas, enquanto Cícero utiliza a ironia de duas
formas: “como a figura de retórica ou como a ‘pretensão amável’ totalmente
admirável de um Sócrates, ironia como um hábito pervasivo do discurso” (MUECKE,
1995, p. 31). A esses dois conceitos de Cícero, Quintiliano acrescenta outro: “a
ironia como elaboração de uma figura de linguagem num raciocínio completo [...]”
(MUECKE, 1995, p. 32). Assim, os dois últimos citados viam a ironia como “um
modo de tratar o oponente num debate e enquanto estratégia verbal de um
argumento completo”. (MUECKE, 1995, p. 32).
Em 1841, Soren Aabye Kierkegaard escreve a sua tese O conceito de ironia
constantemente referido a Sócrates, que versa sobre o tema. Segundo o autor,
Sócrates repreende os sofistas com a ironia afirmando que eles sabem “muito bem
falar, mas não conversar” (KIERKEGAARD, 1991, p. 40). Sócrates praticava-a
quando perguntava, pois o ato de perguntar supõe uma resposta, mas no caso de
Sócrates, não. O que ele menos queria era uma solução, mas sim a comprovação
de que não havia respostas as suas perguntas, chegando, assim, ao tão conhecido
silogismo “só sei que nada sei” 22.
Kierkegaard (1991, p. 212) afirma que a ironia “é uma determinação da
subjetividade”. A partir deste conceito, supõe-se que ela só poderá ter uma nova
aparição se a subjetividade se fizer valer de uma forma ainda mais alta: “Tem de
existir uma segunda potência da subjetividade, uma subjetividade da subjetividade,
correspondente à reflexão da reflexão”, diz o autor (1991, p. 212) que complementa
que “a ironia essencialmente é prática, e que ela só é teoria para novamente ser
22
Silogismo: Dedução formal tal que, postas duas proposições, chamadas premissas, delas, por
inferência, se tira uma terceira, chamada conclusão.
42
prática ou, com outras palavras, que a ironia não se ocupa com a coisa e sim
consigo mesma”. (KIERKEGAARD, 1991, p. 223).
A palavra ironia, com o passar dos tempos, foi empregada para situações
diversas, contendo muitos significados e evoluindo através dos séculos. Antes de
1502 o seu conceito não aparece no inglês nem na arte literária, o que vem a
acontecer somente a partir do século XVIII. Tanto na Inglaterra como no resto da
Europa, tal pensamento se desenvolveu muito lentamente. No princípio, foi encarado
pura e simplesmente como uma figura de linguagem, o que é o mais usual e por
muito tempo foi visto dessa forma, como transcreve o autor da obra Ironia e o
irônico:
Definia-se o termo como ‘algo que diz uma coisa, mas significa outra’, como
uma forma de ‘elogiar a fim de censurar e de censurar a fim de elogiar’ e
como um modo de ‘zombar e escarnecer’. Era também usado para
significar dissimulação, mesmo dissimulação não-irônica, subentendidos, e
paródia. (MUECKE, 1995, p. 33).
A partir de 1790, a disseminação do conceito de ironia ocorre de forma muito
acelerada. No final do século XVIII e início do XIX, a antiga definição assumiu novos
significados havendo uma tendência muito forte em depreciar a ironia satírica como
vulgar e a cética como cruel, porém as idéias mais antigas não perderam seu
caráter, mesmo com essas mudanças sendo tão significativas, tão radicais. Nesta
época predominou o conceito da ironia niilista, doutrina segundo a qual nada é
absoluto e, dessa forma, não há verdade moral tampouco hierarquia de valores.
Politicamente, no preceito do niilismo, só será possível o progresso da sociedade
após a destruição do que socialmente já existe. Mas tal doutrina não é eterna e, no
século XX, passou-se para a ironia relativista, a qual afirma que as verdades
(morais, religiosas, políticas, científicas, etc.) variam conforme a época, o lugar, o
grupo social e os indivíduos. Depois deste período surgiram inúmeros conceitos que
podem definir ironia e um deles é apresentado pelo teórico Muecke (1995, p. 34-45),
quando diz:
onde se encarava a ironia como algo essencialmente intencional e
instrumental [...] agora era possível considerar a ironia como algo que, ao
invés podia ser não intencional, algo observável e, por conseguinte,
representável na arte, algo que aconteceu ou de que alguém se tornou ou
43
se podia tornar consciente. De agora em diante a ironia tem natureza dupla,
ora instrumental, ora observável.
Após este momento, a definição apresentada para a ironia (de que ela
pronunciava algo e suas palavras ganhavam outro sentido) foi substituída por: “a
ironia é dizer alguma coisa de uma forma que ative não uma, mas uma série
infindável de interpretações subversivas” (MUECKE, 1995, p. 48). A negatividade é
seu núcleo e ela não pressupõe a verdade, pois a verdade é o real. Assim, é
incorreto afirmar que a ironia é tudo o que é diferente daquilo que parece ser, nem
tampouco que ela é uma maneira de dizer alguma coisa que, na verdade, possui
outro significado. Entretanto, o único conceito apresentado nos dicionários da língua
portuguesa traz como definição a ironia como figura de retórica, apontando-a como
uma expressão usada para dizer o contrário do que se deseja expressar.
O problema é que, muitas vezes, esta tradicional significação acaba
demarcando o alcance da ironia e indo de encontro às definições mais elaboradas
dos especialistas no assunto, pois a ironia é muito mais do que tal conceito
apresenta. Ela é algo ambíguo, que não manifesta um sentido definitivo, que não
possui intenção de moralizar e sim de fazer o sujeito pensar, de deixar que as
verdades tomem vida sem a interferência do pensamento do ironista. Northrop Frye,
em Anatomia da crítica (1973), expõe seu estudo sobre o tema, dizendo:
A ironia, enquanto modo, nasceu do imitativo baixo; toma a vida exatamente
como a encontra. Mas o ironista fabula sem moralizar, e não tem objetivo, a
não ser o seu assunto. A ironia é naturalmente um modo exigente, e a
principal diferença entre a ironia exigente e a ingênua é o que o ironista
ingênuo chama a atenção para o fato de estar sendo irônico, ao passo que
a ironia exigente apenas afirma, e deixa o próprio leitor acrescentar o tom
irônico. (FRYE, 1973, p. 46).
O primeiro estágio da mudança sofrida pelo conceito de ironia sucede quando
se percebe que o autor, sozinho, não pode ser irônico, que ele necessita de uma
vítima. Assim foi constatado que a ironia não se constrói só, e para que ela aconteça
é preciso um interlocutor, alguém que transforme um discurso ou um diálogo em
irônico, uma vez que ela não ocorre de forma ativa, e sim, passiva, ou seja, se
sucede pela vítima e não pelo autor. Além do mais, a ironia só é válida quando tal
vítima consegue compreendê-la, caso contrário, não será confirmada como tal.
Poderá ser um mal entendido, um logro, uma mentira, mas nunca uma ironia,
44
mesmo que essa não compreensão possa ser a verdadeira ironia. A confusão entre
ironia e logro/mentira ocorre porque o termo latino que designava ironia era
dissimulatio e, dessa forma, ela era ligada diretamente à trapaça, à dissimulação.
Muecke (1995, p. 54) faz uma tentativa de diferenciação afirmando que “nos logros
existe uma aparência que é sonegada, mas na ironia o significado real deve ser
inferido do que diz o ironista ou do contexto em que o que se diz está inserido”.
A ironia não está na pessoa, no ser humano, ela está na situação, no
fenômeno, mas só se concretiza quando o irônico toma a situação para si e a
apresenta como ironia aos outros. Se um ironista for “polemicamente desenvolvido”
(MUECKE, 1995, p. 63), é possível que ele veja ironia em qualquer coisa, num
mínimo detalhe se assim desejar. Não há nada que esse não possa transformar em
ironia, “sempre existe em algum lugar um contexto contrastante” (MUECKE, 1995, p.
63). As pessoas que estão assistindo têm o direito de questioná-lo em relação ao
critério utilizado para transformar tal cena em ironia ou mesmo o propósito e os
objetivos dessa, mas a intenção irônica será sempre inquestionável.
Já a comicidade, o riso, ao contrário, estão na pessoa e não existem fora
daquilo que é humano. É um fenômeno ligado a situações naturais de informalidade.
Na Poética, Aristóteles revela que, em se tratando do riso, esse seria uma
característica própria dos seres humanos e é algo que os diferencia dos animais,
pois está ligado à inteligência e ao entendimento de uma situação, o que só é
possível com a capacidade de raciocínio lógico. Em Comicidade e riso (1992),
Vladimir Propp também utiliza o riso para diferenciar o ser racional do irracional:
O animal pode alegrar-se, regozijar-se, até mesmo manifestar sua alegria
com bastante impetuosidade, mas ele não pode rir. Para rir é preciso saber
ver o ridículo; em outros casos é preciso atribuir às ações algum valor moral
(a comicidade da avareza, da covardia, etc.). (PROPP, 1992, p. 40).
O referido autor (1992, p. 39) lembra que “as coisas não podem praticar ações,
é impossível que sejam ridículas”. Nada que é inanimado poderá provocar o riso se
não tiver a interferência do homem. E é dessa forma que ocorre a diferenciação
maior entre o riso e a ironia: um ocorre a partir de uma situação, de um fato; o outro
necessita das pessoas para que ocorra e não sucede em objetos inanimados.
45
2.1 A comicidade, o riso, a ironia
Quando se ri da atitude de um animal é porque esse teve uma postura
humana, procedeu como se fosse homem, assim como todas as suas características
que lembrarem o homem também serão risíveis. Ao rir de um objeto ou de um lugar,
a comicidade ocorre não por conta da coisa em si, mas sim pelo formato que essa
recebeu por ocasião da interferência do ser humano. Se uma vestimenta provoca
risos, eles não ocorrem pelos fios com os quais é confeccionada a peça de pano e
sim pela indumentária como um todo, criada por mãos humanas; o mesmo vale para
as formas grotescas encontradas no cotidiano. A linguagem recebe procedimento
idêntico: se torna risível porque é modelada pelas mãos humanas. Henri Bergson
(2001) lembra de pesquisadores que elaboraram explicações sobre o ser humano,
afirmando que “[...] vários definiram o homem como ‘um animal que sabe rir’. [...]
Poderiam também tê-lo definido como um animal que faz rir”. (BERGSON, 2001, p.
3).
Não é possível caracterizar o riso de uma única forma, pois ele se apresenta de
diversas maneiras, em diferentes ocasiões e com características distintas entre si. O
processo do riso se dá em três etapas: a origem, o ato e a proposta. A origem é o
que proporciona o riso; o ato de rir é realizado objetivando a proposta que poderá
ser de alegria, de zombaria, ironia, de pouco caso, dentre tantos outros. Esta
explanação foi constatada pelo teórico e historiador soviético de comédia
cinematográfica R. Iurêniev (41, 8), transcrito por Vladimir Propp (1992, p. 27-28):
O riso pode ser alegre ou triste, bom e indignado, inteligente e tolo, soberbo
e cordial, indulgente e insinuante, depreciativo e tímido, amigável e hostil,
irônico e sincero, sarcástico e ingênuo, terno e grosseiro, significativo e
gratuito, triunfante e justificativo, despudorado e embaraçado. Pode-se
ainda aumentar a lista: divertido, melancólico, nervoso, histérico, gozador,
fisiológico, animalesco. Pode ser até um riso tétrico!
Sobre a citação de Iurêniev, Propp (1992) afirma que, apesar de ela ser de
estimável importância, deveria ser acrescentado o riso da zombaria na listagem, pois
esse tipo de riso merece grande consideração na literatura para se fazer possível a
“compreensão” das obras literárias. É o riso da zombaria, conforme Propp, que está
46
“permanentemente ligado” ao cômico e é o “tipo de riso que mais se encontra na
vida” (PROPP, 1992, p. 28).
Com essa diversidade de risos, chega-se à proposição de que se pode rir de
tudo o que o ser humano faz ou sobre o que ele é: traços de caráter biológicos,
comportamentais, físicos, culturais, psicológicos, morais, etc.; tudo pode ser risível,
menos o sofrimento. A dor, a aflição, o desastre, não são passíveis de riso, pois tais
situações perturbam e quando isso acontece, não há riso, pois nesses casos a
emoção é adversa e, segundo Bergson (2001, p. 3), “a insensibilidade acompanha o
riso”. O referido autor continua: “Parece que a comicidade só poderá produzir
comoção se cair sobre uma superfície d’alma serena e tranqüila”, diferentemente da
ironia que possui ligação com o emocional, uma vez que as mesmas áreas que são
capazes de gerar maior número de ironias são, também, as que se revestem de
maior carga emocional: amor, história, política, religião, moral. O poder da ironia
será medido conforme a qualidade de “emoção que o leitor ou observador investir na
vítima ou no tópico da ironia” (MUECKE, 1995, p. 76).
Propp (1992, p. 46) também lembra que “quando o princípio espiritual
prevalece sobre o físico, não ocorre o riso”, ou seja, o ser humano ri de um
semelhante gordo, mas se este for intelectual, tal característica prevalece sobre a
primeira e ele não se torna ridículo, diferente de outros gordos que não tenham a
intelectualidade ou outra particularidade que o referido autor chama de “espiritual” e
que é vista como característica sobressalente. Se o que o distinguir fisicamente for
uma doença, o riso também deixa de ocorrer.
A comicidade, assim como a ironia, depende igualmente da época e de cada
povo, pois ela é algo específico, portanto se forem trocados os lugares (regiões), o
tempo (cronológico) e as pessoas (com suas particularidades) o riso pode tornar-se
incompreensível e não ocorrer. O traje, por exemplo, usado pelos povos da Escócia
pode parecer cômico para outros países, enquanto que para eles é muito comum.
Existem pessoas que têm o riso como uma virtude, uma dádiva, pois a
facilidade com que o provocam é impressionante. É o caso dos humoristas que
apresentam uma destreza em transformar qualquer coisa em risível. A técnica é
47
aperfeiçoada por eles, mas a aptidão que alguns possuem é maior que a de outros.
É um talento natural. Por outro lado, também tem aquelas que têm dificuldade em rir
e Propp (1992, p. 33) diz que a normalidade é as pessoas rirem e que “a
incapacidade de rir, às vezes, pode ser explicada como sinal de obtusidade e de
insensibilidade. As pessoas incapazes de rir são deficientes em todos os aspectos”
Para que a comicidade tenha um bom resultado e chegue a sua finalidade, é
necessário que ela seja trabalhada com a “inteligência pura” (BERGSON, 2001, p.
4), mas não é somente isso, pois o riso não vive no isolamento, ao contrário, ele
ocorre quando se tem um grupo de pessoas que participa do mesmo quadro social,
da mesma atividade, que tenha algo em comum, algum tipo de cumplicidade. “Para
compreender o riso, é preciso colocá-lo em seu meio natural, que é a sociedade; é
preciso, sobretudo, determinar sua função útil, que é uma função social [...]. O riso
deve ter uma significação social”. (BERGSON, 2001, p. 6). Toda coletividade possui
regras que devem ser cumpridas. Quando isso não ocorre, tal transgressão é vista
como um defeito risível e torna-se cômica perante o resto da sociedade. O que
provoca o riso é aquilo que não está programado para acontecer e que geralmente é
involuntário. Uma atitude provocada por alguém para que outrem sofra, de forma
contrária a sua vontade, de forma acidental, também provoca o riso.
Com esses argumentos, é possível reportar-se ao jeitinho como sendo,
também, uma fonte de comicidade, em certos casos. O sujeito age de tal maneira
usufruindo de aspectos desta instituição que ela recebe uma carga de comicidade e
transforma o que era dor, sofrimento ou dificuldade, em riso. Nota-se que certas
transgressões sociais são passíveis de comicidade principalmente quando não há
maldade e as atitudes do transgressor não têm o fim previsto por ele e sim algo
totalmente inesperado.
Quando a pessoa se reporta a casos cômicos ocorridos consigo mesmo, dá-se
conta de que a comicidade não é de todo transparente para a vítima, ela se torna
perceptível, em alguns casos, somente para os outros. Assim, é comum perceber
risos sobre uma roupa, um gesto, uma atitude que o sujeito tenha e que o mesmo
não perceba a comicidade, pelo contrário, depara-se com uma situação dentro da
48
normalidade. Por esse motivo, muitas pessoas não ousam criar e procedem dentro
daquilo que a sociedade chama de normal, como atesta Bergson (2001, p. 15):
Pelo medo que inspira, o riso reprime as excentricidades, mantêm
constantemente vigilantes e em contato recíproco certas atividades de
ordem acessória que correriam o risco de isolar-se e adormecer; flexibiliza
enfim tudo o que pode restar de rigidez mecânica na superfície do corpo
social.
Portanto, o riso denota uma incorreção, um defeito, que pode tanto ser do
indivíduo como de uma sociedade e que tem como fundamento encontrar a forma
mais adequada para corrigi-lo ou ao menos tentar fazê-lo parecer com aquilo que a
sociedade considera como correto e social. Dessa forma, como diz Propp (1992, p.
59), “toda particularidade ou estranheza que distingue uma pessoa do meio que
circunda pode torná-la ridícula”. De certo modo, o riso está ligado ao bom
andamento do sujeito e da sociedade em que está inserido, pois é capaz de criar
uma censura explícita, chegando a castigar as pessoas.
2.2 O humor e a ironia
A regra geral é a de que “obtém-se efeito cômico transpondo para outro tom a
expressão natural de uma idéia” (BERGSON, 2001, p. 92) e essa transposição pode
ser irônica ou humorística, a diferença está no fato de, na ironia, ela ocorrer quando
”pode-se enunciar o que deveria ser, fingindo acreditar que isso é precisamente o
que é” e no humor “descrever minuciosa e meticulosamente o que é, fingindo
acreditar que assim as coisas deveriam ser”. (BERGSON, 2001, p. 95). Assim
sendo, é possível concluir que ironia é o oposto do humor.
O problema está no fato de que o segredo da ironia é poder dizer num tom
sério o que, na verdade, não é levado tão a sério assim e nesse aspecto ela se
mistura e, inúmeras vezes, se confunde com o humor. Entretanto, estes dois
conceitos são diferentes e a distinção é observada no momento em que a ironia é
um riso sarcástico, zombeteiro, já o humor é um riso puro, é o rir do próprio erro, é rir
de si. O filósofo André Comte-Sponville, autor de Pequeno tratado das grandes
virtudes (1995, p. 231), traz à tona tal diversidade fazendo o seguinte apontamento:
49
A ironia não é uma virtude, é uma arma – voltada quase sempre contra
outrem. É o riso mau, sarcástico, destruidor, o riso da zombaria, o riso que
fere, que pode matar, é o riso do ódio, é o riso do combate. Útil? Como não,
quando necessário! Que arma não o é? Mas nenhuma arma é a paz,
nenhuma ironia é o humor.
Além disso, o que vai definir se certo episódio é uma ironia ou um humor é o
contexto em que um deles está inserido, bem como o ser ativo, o enunciador da
mensagem, pois como os conceitos, mesmo diferentes, são muito próximos, é
extremamente difícil fazer inferência a algo que está fora de um encadeamento de
idéias, como por exemplo, em uma palavra apenas, ou numa frase solta. Outro
ponto que merece consideração é que na ironia o interlocutor se exclui, divergindo
do humor, no qual há uma inserção do falante. Em sua pesquisa, Sponville cita Rilke
para distinguir os dois temas:
Rilke dera o remédio: “atinjam as profundezas: a ironia não desce até lá”.
Isso não seria verdadeiro para o humor, e essa é a primeira diferença. A
segunda, a mais significativa, prende-se a reflexividade do humor, à sua
interioridade, ao que gostaríamos de chamar sua imanência. A ironia ri do
outro (ou do eu, na autoderrisão, como de um outro); o humor ri de si ou do
outro como de si, e sempre se inclui, em todo o caso, no disparate que
instaura ou desvenda. (SPONVILLE, 1995, p. 232).
Mesmo contendo tais diferenças observadas, assim como na ironia, como já foi
esclarecido por Muecke (1995), no humor também é possível rir de qualquer
assunto: amor, fracasso, riqueza, saúde, tortura, entre outros, mas é na maneira
com que o tema é versado que vai se chegar à conclusão sobre se tal gracejo é uma
ou outra das definições acima estudadas.
Algo importante a ser destacado é que a ironia possui a capacidade de
engrandecer-se em seu interior e transformar-se na arte de bem falar, na
capacidade de convencer com facilidade. No humor, diferentemente, para que algo
seja salientado “descemos cada vez mais no interior do mal que existe, para notar
suas particularidades com a indiferença mais fria”. (BEGSON, 2001, p. 95).
Complementando as diferenciações aplicadas por vários autores, entre os temas
tratados, André Comte-Sponville finaliza o capítulo da 17ª virtude em seu livro
distinguindo drasticamente o humor da ironia:
A ironia fere; o humor cura. A ironia pode matar; o humor ajuda a viver. A
ironia quer dominar; o humor liberta. A ironia é implacável; o humor é
50
misericordioso. A ironia é humilhante; o humor é humilde. (SPONVILLE,
1995, p. 234).
Milan Kundera (1994), em Os testamentos traídos: ensaios, afirma que o humor
tem data para sua invenção; ele está ligado ao surgimento do romance e segue
citando Octavio Paz que reitera: tal temática “é a grande invenção do espírito
moderno”. Assim, nas palavras de Kundera, o humor se faz rir, é burlesco e não
somente um riso, uma graça, uma zombaria. Ele é muito mais. À vista disso, podese afirmar:
O humor: centelha divina que descobre o mundo na sua ambigüidade moral
e o homem em sua profunda incompetência para julgar os outros: o humor:
embriaguez da relatividade das coisas humanas; estranho prazer nascido
da certeza de que não há certeza. (KUNDERA, 1994, p. 30).
Como pode ser constatado, há inúmeras diferenças de conceitos a respeito de
pontos de vista entre a ironia e o humor, sem contar que tal assunto é tratado por
muitos pesquisadores e estudiosos de diversas áreas e que contribuem, de certa
forma, para a complementação da temática examinada. Mesmo com tantas
diferenças, também é possível atentar para o fato de que os dois objetos de
observação (ironia e humor), mesmo possuindo tantas dessemelhanças, são muito
próximos, o que os torna passíveis de confusões, em alguns casos. Por isso é muito
importante que os temas não sejam tratados de forma isolada e sim embasados em
conceitos, numa totalidade de pensamentos capazes de auxiliar em tal diferenciação
sem causar prejuízo ao interlocutor, tampouco a qualquer envolvido no assunto, seja
ele ouvinte, leitor ou vítima direta do humor ou da ironia.
2.3 A ironia na literatura ficcional
Na literatura é comum observar a ironia como dizendo o mínimo com o intuito
de dizer o máximo possível, ou seja, oferecendo apenas pistas sobre o todo e
deixando a cargo do público leitor o acréscimo de algo, se este achar necessário, ou
ainda proporcionar interpretações de várias formas chegando-se, assim, à ironia
prevista pelo irônico. Partindo dessa idéia, volta-se a Sócrates, que dizia saber que
não sabia nada, o que para a ironia essa se torna a concepção principal e, portanto,
o ironista diz não saber nada, inclusive negando a característica de ser irônico. Em
51
Anatomia da crítica, Frye (1973, p. 46) atesta que “a objetividade completa e a
supressão de todos os julgamentos morais explícitos são essenciais a este método”.
Por mais esse motivo, percebe-se a importância da ironia na literatura, pois, com
sua negatividade, o leitor tem mais liberdade para manifestar seu pensamento, não
ficando preso às reflexões do autor.
A ironia na ficção não é exclusiva de um único gênero, ela aparece na prosa,
na poesia, na dramaturgia, com formas diferenciadas e características próprias. Por
esse motivo, nem sempre o que fica bom na dramaturgia vai ter o mesmo efeito na
prosa ou na poesia. Por isso, os autores devem ter certo cuidado ao deslocar uma
obra ficcional para outro gênero, pois se corre o risco de haver perdas importantes
que podem determinar o sucesso ou fracasso desta alteração.
Sobre o estilo romance, Muecke (1995) denomina de “Ironia Autotraidora” a
que o caracteriza, pois segundo ele, é onde “a falsa imagem que uma personagem
formou de si mesma conflita com a imagem que a obra induz o leitor a formar”
(MUECKE, 1995, p. 109), ou seja, a personagem expressa algo que não condiz com
todo o ambiente preparado para aquela cena. É o que se constata quando, por
exemplo, há uma disparidade entre a vida interna e a externa de alguma
personagem, pois se abrem possibilidades para a observação irônica. “O romancista
irônico pode, de um lado ‘romantizar’ a vida interior de suas personagens e, de
outro, ‘banalizar’ o contexto social delas” (MUECKE, 1995, p. 116).
A escritora Patrice Bollon (1993) acredita que a ironia é capaz de tornar a
vítima fraca, débil e a faz voltar para a realidade da qual havia se afastado para
adentrar ao mundo das aspirações, das idéias vagas. “A ironia pode ser um meio
‘elegante’ de fugir de uma realidade que ‘desagrade’”. (BOLLON, 1993, p. 122).
Dessa forma, admite-se que a ironia pode, numa primeira visão, ser algo um pouco
cruel, mas, após uma maior reflexão percebe-se que ela faz com que o ser humano
se engrandeça internamente, pois são abertas lacunas para que a vítima reflita e,
possivelmente amadureça com tais meditações.
Para terminar, tem que se concordar que os questionamentos que deram
origem à ironia, com Sócrates, sobrevivem e são esses que dão continuidade a tal
52
conceito, o qual quer colher frutos através da negatividade, do ceticismo, do não
querer respostas prontas e sim fazer com que o ser humano se defronte com a
dúvida, fazendo-o refletir sobre determinado assunto.
3 O JEITINHO NA LITERATURA BRASILEIRA
53
Na história da literatura brasileira, autores já identificavam este traço
comportamental em suas personagens muito antes da já referida Lei de Gérson que
é dos anos 70. Desde o século XIX, com a poesia satírica de Gregório de Matos
Guerra, que denunciava maledicências e trapaças do meio social, político e religioso
da época, passando por Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio
de Almeida; Machado de Assis; Lima Barreto; Macunaíma, de Mário de Andrade, O
auto da compadecida, de Ariano Suassuna, que coloca a personagem João Grilo em
situações que só mesmo o jeitinho pode salvá-lo.
Este traço é reempregado nas obras da literatura contemporânea e como
exemplo é possível citar Meninos no poder (2005), de Domingos Pellegrini e Mundo
perdido (2006), de Patrícia Melo. Muitas personagens de outras obras ainda podem
ter a identificação com o jeitinho, mas este estudo focaliza especialmente as duas
últimas obras citadas por fazerem parte da literatura brasileira datada como
contemporânea e por, de certa forma, enfocar diferentes métodos do traço
característico estudado.
Na literatura ocidental percebem-se diferentes faces do jeitinho; cada obra,
cada personagem, cada atitude salienta uma maneira de se trabalhar, de se
observar, de se dar enfoque ao jeito. Assim, elaboram-se três classificações básicas
para distingui-los: o jeitinho ingênuo, o malandro e o maquiavélico. É provável que
existam outras classificações com outros elementos, mas o que nos interessa, no
momento, são essas três diferentes formas de se dar um jeito utilizados na literatura.
O ingênuo é aquele que demonstra total inocência, que é simples, puro,
desprovido de malícias, que pratica o jeitinho como instinto de sobrevivência, quase
como uma legítima defesa ante as atrocidades que a vida impõe. Um grande
exemplo deste jeitinho com o intuito da sobrevivência é o romance picaresco.
Nascido e muito difundido na Europa nos séculos XVII e XVIII, possui autoria
anônima e narração em primeira pessoa. O herói deste tipo de romance é de origem
humilde, sem perspectiva de futuro, que se encontra sozinho pelo mundo e tendo
que dar seus jeitinhos para poder sobreviver. Antonio Candido, na Dialética da
malandragem (1970, p. 69), ressalta que
54
um traço básico do pícaro: o choque áspero com a realidade, que leva à
mentira, à dissimulação, ao roubo, e constitui a maior desculpa das
“picardias”. Na origem o pícaro é ingênuo; a brutalidade da vida é que aos
poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quase como defesa. [...]
Mais ainda: a humildade da origem e o desamparo da sorte se traduzem
necessariamente, para o protagonista dos romances espanhóis e os que os
seguiram de perto, na condição servil. [...] passando de amo a amo o pícaro
vai-se movendo, mudando de ambiente, variando a experiência e vendo a
sociedade no conjunto.
Assim, o romance picaresco serve de apoio para diferenciar o jeitinho
classificado de ingênuo, do malandro, que se utiliza da burla, da mentira para a
própria sobrevivência.
Diferentemente do ingênuo, no jeitinho malandro a personagem se utiliza da
confiança dos outros. É aquele que vive em função da esperteza para se sobressair,
para obter o fim esperado; é o astuto, o matreiro. “O malandro seria um profissional
do ‘jeitinho’ e da arte de sobreviver nas situações mais difíceis [...] é um papel social
que está à nossa disposição para ser vivido no momento em que achamos que a lei
pode ser esquecida ou até mesmo burlada com certa classe ou jeito”, é o que relata
o antropólogo Roberto DaMatta (1997, p. 102-103). Nesta classificação, poder-se-á
citar o romance Macunaíma, de Mário de Andrade, bem como Memórias de um
sargento de milícias. Este último foi, inclusive, confundido com o romance picaresco,
mas Antonio Candido (1970), no estudo já citado, caracteriza o romance
demonstrando diferenças entre esse e o Pícaro. Assim, o autor apresenta a
personagem da seguinte forma:
Digamos então que Leonardo não é um pícaro, saindo da tradição
espanhola; mas o primeiro grande malandro que entra na novelística
brasileira, vindo de uma tradição quase folclórica e correspondendo, mais
do que se costuma dizer, a certa atmosfera cômica e popularesca do seu
tempo, no Brasil. (CANDIDO, 1970, p. 71).
Então, quando se trata de dar um jeitinho de forma malandra, Candido
apresenta Leonardo, personagem de Manuel Antônio de Almeida, que pratica “a
astúcia pela astúcia [...] manifestando um amor pelo jogo-em-si que o afasta do
pragmatismo dos pícaros, cuja malandragem visa quase sempre ao proveito ou a
um problema concreto, lesando freqüentemente terceiros na sua solução”
(CANDIDO, 1970, p. 71).
55
Macunaíma o herói sem nenhum caráter também é considerado personagem
que se utiliza da malandragem para aproveitar as facilidades da vida através da
utilização do jeitinho. Segundo DaMata (1997), a realidade interior se sobressai à
exterior, deixando que seus objetivos individuais sejam mais importantes do que os
da coletividade. “O malandro é um ser deslocado das regras formais, fatalmente
excluído do mercado de trabalho, aliás, definido por nós como totalmente avesso ao
trabalho e individualizado pelo modo de andar, falar e vestir-se” (DAMATTA, 1997, p.
263). Macunaíma é o típico malandro, aquele que consegue transformar todas as
desvantagens em vantagens, característica que, segundo DaMatta (1997, p. 274) é
sinal de “um bom malandro”.
DaMatta, na obra O que faz o brasil, Brasil? (1997, p. 104-105), relata que a
malandragem
trata-se mesmo de um modo – jeito ou estilo – profundamente original e
brasileiro de viver, e às vezes sobreviver, num sistema em que a casa nem
sempre fala com a rua e as leis formais da vida pública nada têm a ver com
as boas regras da moralidade costumeira que governam a nossa honra, o
respeito e, sobretudo, a lealdade que devemos aos amigos, aos parentes e
aos compadres.
A terceira classificação é a maquiavélica, na qual o sujeito é desleal, trai, é
pérfido. Parecido com o malandro, porém é mais maldoso, mais ardiloso, é o
maquiavelista, enquanto que o malandro é astuto e acompanhado de humor, o que
nem sempre ocorre com o maquiavélico. A designação da expressão maquiavélica
remete à obra O príncipe, de Nicolau Maquiavel, através da idéia comum de que os
fins justificam os meios. Não se questionam os meios utilizados para alcançar tal
objetivo, o importante é o sucesso. O autor (2007, p. 217) explica:
vemos, efetivamente, que os homens, em demanda de glória e riqueza,
procedem de formas diversas: uns usando a cautela, outros, de impulso;
uns, por meio da violência, outros, por meio da astúcia; um com paciência,
outro com impaciência. Sem dificuldade, todos eles podem vir a alcançar a
meta das suas ambições.
Na literatura brasileira o maquiavelismo também é encontrado. Machado de
Assis demonstra este traço no conto Teoria do medalhão, no qual o pai dá
conselhos ao filho que completa 21 anos para que esse possa se sobressair perante
56
a sociedade. Ele precisa, além de escolher uma profissão para seguir, ter algumas
atitudes que o transforme em medalhão.
Na Teoria do medalhão é possível observar que o conto é a própria teoria, pois
o conceito desta palavra implica num conhecimento especulativo, meramente
racional, uma suposição, e é o que ocorre no texto. Também se atenta para a
existência de uma paródia do rito de passagem: o rapaz, entrando na maioridade,
recebe conselhos do pai para esta nova fase da vida, porém tais aconselhamentos
são de como ser vigarista e mentiroso. O diálogo tinha um único fim: o proveito
próprio, independentemente dos meios que ele utilize para chegar a determinado
fim, nesse caso específico, na alta posição social. E no conto esta idéia foi bem
aproveitada, pois a fraude, a bajulação, o jeitinho, deveriam ser bem utilizados para
se chegar ao tão esperado resultado.
Outra obra ficcional escolhida para análise é o conto O homem que sabia
javanês, de Lima Barreto. Trata-se da personagem Castelo que se utiliza de uma
técnica trapaceira para, além de ganhar a vida, atrair a atenção das pessoas da
sociedade. Este conto apresenta uma personagem mais maquiavélica que não tem
as características de um “bom malandro”, como cita DaMatta (1997), pois ele é mais
perspicaz, mostrando um desenvolvimento maior da personagem para o jeitinho
mau.
O conto demonstra conhecimentos que Castelo, personagem principal, não
possui, em princípio. Ele é um farsante, mestre na arte de burlar e que se utiliza da
esperteza para se sobressair. Castelo também não tem dinheiro para comida,
pensão e outros gastos, mas, diferente do Pícaro, ele é malandro e não depende
única e exclusivamente da trapaça, poderia fazer outras atividades legais, mas
prefere a burla, por considerá-la mais fácil.
Nos romances selecionados da literatura brasileira contemporânea, Meninos
no poder e Mundo perdido, é possível perceber um crescimento ainda maior do
jeitinho malandro, passando pelo maquiavélico, até chegar nesses dois últimos
romances. Os meios utilizados pelas personagens das duas narrativas, Ari e
Máiquel, são extremamente ardilosos, e não possuem o fim apresentado nos textos
57
analisados no decorrer da dissertação.
Eles são capazes de ir até as últimas
conseqüências para alcançar o que desejam.
É notório que a expressão dar um jeitinho com a finalidade de obter favores ou
vantagens para si ou para outrem, ou a fim de tentar resolver situações
embaraçosas, independente do tipo de apelo utilizado (emocional, social, cultural...),
é recorrente, não só na sociedade brasileira, mas também na literatura. Esse traço
não surge somente nos últimos tempos. Como foi investigado, ele perpassa os anos
e estabelece raízes desde os primórdios do descobrimento do Brasil, estando no
cerne estrutural da identidade brasileira.
A literatura ficcional, como sendo um retrato de tudo o que existe de fato, deixa
claro que o jeitinho é bem aproveitado em romances, contos, crônicas, poesias e
que os autores, alguns de forma implícita, outros bem explícitos tratam do assunto
com o objetivo de denunciar certos aspectos comportamentais de determinada
pessoa, de um lugar, de uma sociedade ou mesmo de um regime de governo.
Assim,
o
jeitinho
pode
representar
um
modelo
de
sobrevivência
independentemente de ser considerado o malandro ou o herói, pois não se pode
fazer uma distinção específica do certo e do errado, do bom e do ruim, do justo e do
injusto. Tem que ser levados em consideração muitos aspectos ligados à
individualidade, às condições de tais situações.
Tanto para os autores que tratam do assunto em questão, como para os
leitores, torna-se vantajoso tratar sobre o jeitinho, porque como ele é uma das
marcas da sociedade brasileira, facilmente consegue-se escrever sobre o tema e
com a mesma facilidade se consegue ler sobre o assunto, uma vez que o receptor
prontamente identifica essa característica no meio em que vive.
Não está comprovado nesta pesquisa, que o jeitinho seja uma particularidade
exclusivamente brasileira e o estudo não se detém a esse foco. Pretende-se fazer
uma análise da temática e perceber quando, onde e, mais importante, como este
aspecto ocorre na literatura brasileira, uma vez que ele traça um longo caminho com
58
o passar dos tempos e se apresenta, também, em narrativas ficcionais
contemporâneas, que é o principal foco do estudo.
3.1 A presença do jeitinho em obras da tradição literária
3.1.1 Leonardo, o malandro
Memórias de um sargento de milícias é um romance de Manuel Antônio de
Almeida, publicado originalmente em folhetins no Correio Mercantil do Rio de
Janeiro, nos anos de 1852 e 1853. Primeiramente, os textos não tinham autoria. Em
1854 e 1855, quando se tornou livro, foi assinado com o pseudônimo de “um
brasileiro”. Somente em 1863 é que o livro foi publicado nomeando Manuel Antônio
de Almeida como autor. A narrativa possui um estilo próximo ao do jornalismo,
fugindo dos padrões da época.
O historiador José Veríssimo, em 1894, classifica a obra como romance de
costumes, pois essa descreve lugares e cenas cariocas da época do Rei; Mário de
Andrade, em 1941, afirma que Memórias de um sargento de milícias é um “romance
tipo marginal, afastado da corrente média das literaturas, como os de Apuleio e
Petrônio, na Antiguidade, ou Lazarillo de Tormes, no Renascimento” (CANDIDO,
1970, p. 67). Porém, em 1956, Darcy Damasceno, discordando das críticas feitas
anteriormente, e preferindo que a designação fosse romance de costume, escreve:
Não há que considerar-se picaresco um livro pelo fato de nele haver um
pícaro mais adjetival que substantival, mormente se a este livro faltam as
marcas peculiares do gênero picaresco; nem histórico seria ele, ainda que
certa dose de veracidade haja servido à criação de tipos ou à evocação de
época; menos ainda realista, quando a leitura mais atenta nos torna
flagrante o predomínio do imaginoso e do improvisado sobre a retratação ou
a reconstituição histórica. (DAMASCENO, 1956, p. 156).
Sob esse aspecto, Antonio Candido faz coro com a voz de Damasceno e
exemplifica, no texto Dialética da malandragem (1970), as suas argumentações.
Discordando de Josué Montello (1968), que através de pesquisa diz ter encontrado
as origens de Memórias de um sargento de milícias em obras como La vida de
Lazarillo de Tormes (1554) e Vida e hechos de Estebanillo Gonzáles (1945),
Candido traça comparações entre as características das obras, afirmando que
59
Antônio Manuel de Almeida pode ter tido a influência de outros romances espanhóis,
mas não do pícaro.
O autor ainda cita, por exemplo, o fato de o pícaro ter suas aventuras narradas
em primeira pessoa, diferente da obra de Antônio Manuel de Almeida; e mesmo
sendo Leonardo filho de “um beliscão e uma pisadela”, tendo sua origem humilde e
sendo largado no mundo, ainda não pode ser considerado pícaro, pois este último
não apenas é largado, mas abandonado pela família e o mais importante:
lhe falta um traço básico do pícaro; o choque áspero com a realidade, que
leva à mentira, à dissimulação, ao roubo; e constitui a maior desculpa das
‘picardias’. Na origem o pícaro é ingênuo; a brutalidade da vida é que aos
poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quase como defesa.
(CANDIDO, 1970, p. 69).
A diferença do pícaro e de Leonardo, conforme o estudioso referenciado acima,
é que o segundo tem a malandragem no sangue; ele já traz essa característica de
berço, tanto que desde muito pequeno já demonstra suas peraltices “como se
tratasse de uma qualidade essencial, não um atributo adquirido por força das
circunstâncias” (CANDIDO, 1970, p. 69) e esse detalhe é importante para se ter
clareza da distinção entre as narrativas.
A obra Memórias de um sargento de milícias recompõe a história da vida de
Leonardo-Pataca e seu filho Leonardo23, na época de Dom João VI. São dois
arquétipos da malandragem e deixam transparecer essa essência durante toda a
narrativa. Desde os primeiros momentos, ainda quando Leonardo-Pataca chega ao
Brasil, já é possível presenciar a malandragem, o jeitinho utilizado por este
português, vindo de Lisboa, para conseguir um emprego na nova pátria. O narrador
comenta que “fora Leonardo algibebe em Lisboa, sua pátria; aborrecera-se, porém
do negócio, e viera ao Brasil. Aqui chegando, não se sabe por proteção de quem,
alcançou o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos,
desde tempos remotos”. (ALMEIDA, 1998, p. 14).
23
Quando a referência for a Leonardo-Pataca, este será o pai. O filho é referido somente como
Leonardo.
60
A expressão “não se sabe por proteção de quem” dá indícios do já comentado
dar um jeitinho. Leonardo-Pataca não gosta da profissão que desenvolve em
Portugal e, ao chegar ao Brasil, consegue por intermédio de algum influente na área
substituir a ocupação de algibebe24, em Portugal, por meirinho25, no Brasil. É dessa
forma que a narrativa vai se desenrolando, com a presença de pessoas influentes
capazes de dar um jeito na vida das personagens a fim de que essas alcancem os
objetivos traçados com o mínimo de esforço necessário. O filho Leonardo é o mais
astuto entre os dois e tenta resolver tudo sob a forma da malandragem, desde os
pequenos castigos e traquinagens até as liberações da prisão. Ele faz o que pode
para se dar bem de forma que não necessite trabalhar nem se cansar muito.
Leonardo, ainda na fase da meninice, já apronta muitas travessuras e sempre
encontra um jeitinho para se dar bem, pois tem a esperteza de um malandro. Filho
de Leonardo-Pataca e Maria-das-Hortaliças, não obedece às ordens e, se
contrariado, parte para atitudes de criança teimosa e arteira. Na adolescência e
idade adulta, Leonardo se torna um típico malandro: não possui emprego e fica
vadiando pela cidade. O pai, após ser traído e abandonado pela esposa, deixa o
filho Leonardo sob a guarda do barbeiro, que também vem a ser padrinho do
menino.
Tudo o que Leonardo faz é apoiado pelo padrinho que acha suas trapaças,
birras e travessuras muito comuns. Nos primeiros dias, ao ficar sob a custódia de tal
homem, até que Leonardo se porta bem, mas com o passar do tempo, ele começa a
se mostrar como realmente é, seu verdadeiro lado astuto, e a situação piora cada
vez mais, após ele perceber que sempre tem o padrinho em sua defesa, como
demonstra o autor:
Apesar disto, porém, captou do padrinho maior afeição, que se foi
aumentando de dia em dia, e que em breve chegou ao extremo da amizade
cega e apaixonada. Até as próprias travessuras do menino, as mais das
vezes malignas, achava o bom do homem muita graça; não havia para ele
em todo o bairro rapazinho mais bonito, e não se fartava de contar à
vizinhança tudo o que ele dizia e fazia; às vezes eram verdadeiras ações de
menino malcriado, que ele achava cheias de espírito e de viveza; outras
vezes eram ditos que denotavam já muita velhacaria para aquela idade, e
que ele julgava os mais ingênuos do mundo. (ALMEIDA, 1998, p. 21).
24
25
Algibebe: aquele que fabrica e vende roupas novas ou usadas.
Meirinho: antigo funcionário judicial, correspondendo, hoje, ao Oficial de Justiça.
61
Tal trecho do romance denota que Leonardo, desde muito novo já pratica atos
de grosserias, de indelicadezas e que recebe toda a proteção do padrinho que sai
em sua defesa e não consegue ter a percepção da maldade nas atitudes do
afilhado, pelo contrário, encontra muita graça e afirma que é coisa de criança
mesmo e geralmente começa a rir das situações.
O padrinho começa a preocupar-se com a profissão a qual Leonardo deve
seguir, pois esta será o seu sustentáculo, o seu futuro. Dessa forma, pensa em
muitas atividades, mas não quer, por outro lado, desgastar o afilhado com algo que
seja muito cansativo e que seja pouco remunerado. Então, o homem,
gastava às vezes as noites em fazer castelos no ar ao seu respeito;
sonhava-lhe uma grande fortuna e uma elevada posição, e tratava de
estudar os meios que os levassem a esse fim. Eis aqui pouco mais ou
menos o fio dos seus raciocínios. Pelo ofício do pai... (pensava ele) ganhase, é verdade, dinheiro quando se tem jeito, porém sempre se há de dizer: ora, é um meirinho!... Nada... por este lado não... Pelo meu ofício... verdade
é que eu arrajei-me, porém não o quero fazer escravo dos quatro vinténs
dos fregueses... .(ALMEIDA, 1998, p. 22).
Nota-se que a malandragem do rapaz sempre foi apoiada pelo padrinho que
não queria que o afilhado se sentisse fatigado. Assim, ele pensa em algo que dê
dinheiro, mas pouco esforço. Essa é mais uma característica que pode afastar
Leonardo de um pícaro, pois este vai dando rumo a sua vida conforme as exigências
que ela lhe impõe, tirando lições e ensinamentos das necessidades que passa e
vindo a amadurecer com isso. Já Leonardo, sob a proteção principalmente do
padrinho barbeiro, tem sua vida de antemão definida, pensada e estruturada por
outras pessoas (padrinho, madrinha,...) que poupam a ele inclusive o esforço de
pensar no que está por vir.
Todas as vezes que personagens como Leonardo-Pataca e Leonardo
acabavam presos ou se metiam em enrascadas, lá estavam o compadre e a
comadre de Leonardo-Pataca que são, conseqüentemente, padrinhos de Leonardo
para dar um jeitinho e tirá-los das encrencas. Isso ocorre porque os dois estão
sempre intervindo com o coronel, com o major, com um companheiro, com um
62
amigo, enfim, com qualquer pessoa que tenha influência suficiente para poder livrálos de tal situação embaraçosa.
Quando Leonardo comete suas malcriações e é punido, mais do que depressa
pensa em uma forma de vingança. Não interessa quem é a pessoa que sofrerá com
suas peraltices, se vizinha, se o professor, se homem da lei, ou se outra pessoa
qualquer. Ele trata logo de colocar a malandragem em prática e ir à desforra contra
aquele que o reprimiu. Foi assim, por exemplo, com o mestre-de-cerimônias da
Igreja. Esse passa uma “sarabanda”
26
em Leonardo e seu amigo. Os dois acabam
descobrindo que tal homem tem alguns encontros às escondidas e rapidamente
elaboram um plano de vingança. Alguns dias antes da pregação do mestre-decerimônias, os meninos o avisam que a celebração terá início às 10 horas, quando
na verdade ela começa uma hora antes. Com isso, o mestre-de-cerimônias chega
atrasado ao compromisso e se depara com outro em seu lugar fazendo a
celebração. O homem fica tão bravo que pede a expulsão de Leonardo dos seus
afazeres como coroinha. Para completar, os meninos insinuam que o mestre-decerimônias se atrasou porque estava na companhia de uma moça, o que o deixa
com mais raiva ainda. Em outro episódio, o pai Leonardo-Pataca também se envolve
com tal mestre-de-cerimônias e deixa-o sem reação diante da polícia. Novamente é
o caso com aquela moça, uma cigana, a qual já foi citada na passagem da
pregação. Com tudo o que lhe ocorreu e, depois de novo escândalo, tal homem
larga seus afazeres naquela igreja e vai-se embora.
Leonardo, já na vida adulta, não quer trabalhar mesmo. Prefere viver na
malandragem. Não é clérigo, como sonhara o padrinho, nem artista ou estudioso
como queria a madrinha. Até Dona Maria, amiga da madrinha e tia de Luisinha tenta
um emprego para o rapaz em um cartório, mas não foi possível, pois Leonardo gosta
mesmo é da vida que está levando, sem compromissos, na malandragem, e, como
caracteriza o autor, “constitui-se um completo vadio, vadio-mestre, vadio-tipo”
(ALMEIDA, 1998, p. 66).
O rapaz, mesmo levando a vida desregrada, sem objetivos concretos, vivendo
cada dia como se fosse único, se apaixona e começa a sentir a “dor do amor”. A
26
Repreensão
63
partir daí, tenta melhorar de vida, mas não consegue. Busca empregar-se, mas tal
hábito não faz seu estilo. A causadora de toda essa mudança é Luisinha, sobrinha
de Dona Maria que, após perder os pais, foi morar com a tia. A madrinha de
Leonardo, percebendo que ele guarda certo interesse por Luisinha, tenta dar sua
ajuda, pois vê na sobrinha de sua amiga, Dona Maria, uma possibilidade de o rapaz
se dar bem, visto que a moça é herdeira de uma fortuna deixada pelo seu falecido
pai. No entanto, a madrinha passa por um tormento: como unir Leonardo e Luisinha,
uma vez que ela sabe que sua amiga tende a recusar o enlace “e com justa razão,
se as coisas continuassem do mesmo modo, quando chegasse o momento do
desfecho das coisas, [poderia] recusar sua sobrinha a um rapaz que não se ocupava
em coisa alguma e que não tinha futuro” (ALMEIDA, 1988, p.75).
Aparece, no meio da história de amor de Leonardo, outro rapaz chamado José
Manuel, que também se mostra interessado em Luisinha, ou ao menos no futuro que
ele pode ter casando-se com ela. A madrinha, percebendo o perigo, resolve dar um
jeitinho e faz falsas acusações ao rapaz para a tia de Luisinha a fim de que Dona
Maria o mande embora de sua casa para não mais voltar. E foi o que aconteceu.
Com habilidade e astúcia a madrinha deu um jeitinho para abrir novamente os
caminhos para Leonardo, porém, Dona Maria descobre que sua amiga havia
mentido sobre o rapaz e as duas amigas acabam tendo uma pequena desavença.
Dona Maria chama José Manuel e reabre as portas de sua casa para o rapaz, que
confessa estar interessado em Luisinha e acaba recebendo a permissão da tia para
o casamento.
Leonardo conhece Vidinha, se enamora dela e é correspondido. Após ser posto
novamente para fora da casa do pai, Leonardo vai morar na casa dos familiares da
moça e, desde o princípio recebe muito carinho e atenção da mãe e das tias de
Vidinha. Com a confiança das tutoras ele não tem afazeres e, assim, não se
incomoda muito e leva a vida da maneira com que sonha, pois “[...] passava vida
completa de vadio, metido em casa todo o santo dia, sem lhe dar o menor abalo o
que se passava lá fora pelo mundo. O seu mundo consistia unicamente nos olhos,
nos sorrisos e nos requebros de Vidinha” (ALMEIDA, 1998, p. 116). Sem emprego e
sem precisar se preocupar com isso, o malandro Leonardo não se abala em dar
trabalho para os outros, desde que ele não precise fazer esforço.
64
O major Vidigal, outro personagem da narrativa, está à procura de Leonardo,
pois não suporta um homem que viva sem ocupações, só de malandragem. Dessa
forma, Leonardo vira freguês de Vidigal que quando tem oportunidade manda
prender o rapaz. Entretanto, esse é tão malandro que sempre dá um jeitinho de
escapar das garras do major, além de fazê-lo de bobo diversas vezes. Assim, para
Vidigal, além dos motivos já descritos, a prisão de Leonardo passa a ser caso
pessoal.
Na primeira vez que o major apanha Leonardo, esse consegue escapar. Mais
tarde ele é preso novamente e dessa vez torna-se um granadeiro 27 ficando aos
cuidados e a serviço de Vidigal, que pensa que “[...] com efeito o Leonardo, sendo
naturalmente astuto, e tendo até ali vivido numa rica escola de vadiação e
peraltismo, deveria conhecer todas as manhas do ofício” (ALMEIDA, 1998, p. 136).
Mesmo assim o rapaz não deixa de usar as trapaças e malandragens para se dar
bem, ou simplesmente com o propósito de rir das vítimas de suas armadilhas.
Apronta para o Vidigal, vai preso novamente e destituído do cargo. Sua madrinha é
avisada de que ele, além de estar preso, levará uma surra para ver se aprende a
lição. Mais do que depressa vai ela conversar com Dona Maria para que as duas
dêem um jeito de tirar Leonardo da cadeia e livrá-lo do castigo de Vidigal.
As duas, que já tinham se reconciliado, organizam um plano e vão conversar
com Maria-Regalada que fora, em outros tempos, a grande paixão de Vidigal. A
intenção é de convencer a mulher a ajudá-las a dar a liberdade de volta a Leonardo:
“[...] queriam nada menos do que a soltura e perdão do Leonardo, e contavam, para
alcançar semelhante coisa, com a influência da Maria-Regalada sobre o major”
(ALMEIDA, 1998, p. 148).
Então, foram as três mulheres na casa de Vidigal tentar dissuadi-lo do castigo e
fazer com que ele concedesse a liberdade a Leonardo. Dona Maria e a madrinha,
cheias de lamúrias, tentam argumentar das mais variadas formas em favor do rapaz,
mas em vão. Vidigal até se comove, mas não quer soltá-lo. Em certo momento,
Maria-Regalada conversa com ele, em particular, e faz uma promessa. Esse gosta
27
Soldado
65
do que ouve e concorda em soltar Leonardo. Mais tarde, as amigas ficam afoitas
para saber o conteúdo do tal juramento que fez Vidigal mudar de idéia e MariaRegalada explica que há muito o major faz propostas para que os dois morem juntos
e que, se ele soltasse Leonardo, ela estaria disposta a aceitar o convite. O que
ninguém esperava é que, além de solto, Leonardo arrumasse uma ocupação através
de Vidigal: “Ficariam todos muito contentes com a simples soltura do Leonardo; e
não só ele aparecia solto e livre, como até elevado ao posto de sargento, o que já
não é no exército pouca coisa” (ALMEIDA, 1998, p. 153).
Já livre da prisão e com uma ocupação, Leonardo vai ao encontro de Dona
Maria para “[...] agradecer o interesse que por ele havia tomado, fazendo por
intermédio de Maria-Regalada que o major não só lhe alcançasse perdão do castigo
que lhe era destinado, como também o acesso de posto que repentinamente tivera”
(ALMEIDA, 1998, p. 155). Nota-se, novamente, que o jeitinho malandro se configura
na obra, não só na astúcia de Leonardo, mas também com as influências que a
madrinha, Dona Maria e outras personagens comprovam ter.
O estudioso da obra, Antonio Candido, afirma que a narrativa varia no âmbito
da ordem, passando pela desordem e voltando ao estágio inicial das regras legais.
O cunho especial do livro consiste em certa ausência de juízo moral e na
aceitação risonha do “homem como ele é”, mistura de cinismo e bonomia
que mostra ao leitor uma relativa equivalência entre o universo da ordem e o
da desordem; entre o que se poderia chamar convencionalmente o bem e o
mal. (CANDIDO, 1970, p. 78-79).
Leonardo é um homem que circunda entre o campo da ordem e da desordem e
essas características transparecem na malandragem, pois em algumas passagens
da narrativa, principalmente depois de apaixonar-se, a personagem até tenta ter
uma vida mais regrada e, mesmo que somente por alguns instantes, preocupa-se
com seu futuro, mas não consegue levar essa idéia muito além, tanto que na
primeira oportunidade de vida fácil ou de fazer graças, acaba voltando para a
desordem. Somente no final da narrativa é que ele reconcilia-se com Luisinha e
passa a ter uma vida em família, com heranças e com emprego nas Forças
Armadas. Um final feliz para alguém que passou a vida toda entre a ordem e a
66
desordem, em meio ao bem e ao mal, entre o labor e a malandragem, aproveitando
os recursos proporcionados pelas circunstâncias para transformar sua situação.
3.1.2 Macunaíma e a malandragem na literatura
A obra Macunaíma o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, pode
ser considerada um dos pilares da cultura brasileira, pois apresenta uma mescla de
temas que percorre a mitologia indígena, com visões folclóricas, aproveitando lendas
e rituais, que tratou da região da Amazônia e do resto do país, com uma linguagem
bem brasileira para a sua composição, como explicou o próprio autor em carta
escrita a Carlos Drummond de Andrade, datada de 19 de janeiro de 192728:
O caso é que me veio na cachola o diacho duma idéia de romance
engraçado e já posso apresentar pra você o Sr. Macunaíma, índio legítimo
que me filiou aos indianistas da nossa literatura e andou fazendo o diabo
por esses Brasis à procura duma muiraquitã perdida. Os heróis, além desse
principal, são os manos dele Maanape já velhinho e Guiguê 29 a força do
homem. E o gatuno da muiraquitã é o regatão peruano Venceslau Pietro
Pietra que é o gigante Piaimã, comedor de gente. Não tem senão dois
capítulos meus no livro, o resto são lendas aproveitadas com deformação
ou sem elas.
Mesmo com essa passagem da sua carta, referindo-se ao indianismo, é bom
lembrar que em outras correspondências enviadas a Drummond, Mário de Andrade
(1927) explica que o livro não é indianista, pois a narrativa acontece, na maior parte
dos episódios, em São Paulo e o fato de o protagonista ser índio não implica em tal
denominação.
É na pesquisa da obra de um etnólogo alemão30 que Mário de Andrade
encontra a essência do brasileiro da qual estava em busca para escrever
Macunaíma. Em prefácio que não foi publicado com o livro, Mário de Andrade
explicita seu achado31:
28
A carta está descrita no livro A lição do amigo cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de
Andrade, anotadas pelo destinatário. Uma coletânea de cartas feita por Carlos Drummond de
Andrade. Esta carta se encontra nas páginas 100 e 101 da obra.
29
Na versão definitiva do livro está grafado Jiguê.
30
Theodor Koch-Grünberg, no livro Vom Roroima zum Orinoco, v.2\: Mythen und Legender der
Taulipag und Arekuna Indianern, Stuttgard, Streck and Schröder, 1929. Segundo Mário de Andrade,
este livro serviu como motivação para a escritura de Macunaíma.
31
Este prefácio está descrito na edição crítica de Macunaíma o herói sem nenhum caráter, de Mário
de Andrade, elaborada por Telê Porto Ancona Lopes, nas páginas 218-220.
67
O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação
em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional
dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que me
parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha
falado isso antes de mim, porém a minha conclusão é uma novidade para
mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter
não determino apenas uma realidade moral não, em vez entendo a entidade
psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na ação
exterior no sentimento na língua na História na andadura, tanto no bem
como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem
civilização própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e
assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo
iminente, ou consciência de séculos tenham auxiliado, o certo é que esses
uns têm caráter. Brasileiro não. Está que nem o rapaz de vinte anos: a
gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas ainda não é
tempo de afirmar coisa nenhuma. […] Pois quando matutava nessas coisas
topei com Macunaíma no alemão de Koch-Grünberg. E Macunaíma é um
herói surpreendentemente sem caráter. (Gozei).
Assim, o próprio autor, em princípio, deixa claro que “o brasileiro não tem
caráter”, mas explica que não está se referindo ao caráter moral e faz uma
comparação com outros povos como os franceses e os mexicanos. O fato de ser um
herói “sem caráter” significa que ele não é bom nem mau ou tem a capacidade de
ser bom ou de ser mau.
Para o objetivo da dissertação, este perfil se encaixa no processo que está
sendo denominado de malandragem e que explicita uma maneira de observar o
jeitinho
na
literatura
brasileira.
Macunaíma
e
outras
personagens
se
metamorfoseiam com a finalidade de fugirem de certas circunstâncias não
desejáveis trazendo, assim, a lembrança do malandro, do astuto, do que tenta
resolver seus problemas através do jeitinho malandro.
3.1.2.1 O Caráter do brasileiro
A obra Macunaíma o herói sem nenhum caráter faz parte do meio brasileiro,
pois, além de livro, já foi filme, peça de teatro, pintura e, inclusive, enredo de escola
de samba32. Por esse motivo, Mário de Andrade é lembrado por muitos brasileiros,
visto que ele ultrapassa as páginas da obra fazendo parte da história desta cultura
em diversos aspectos. Uma das razões para que tal expansão literária pudesse
32
A Escola de Samba Portela (RJ) desfilou em 1975 com o tema Macunaíma, cujo samba-enredo foi
criado por David-Corrêa e Norival Reis.
68
ocorrer é o próprio contexto do livro, já que o autor transcreve processos culturais
com aspectos bem brasileiros à procura do verdadeiro caráter deste povo. Em
correspondências trocadas entre Mário de Andrade e outros escritores, observa-se
certos indícios de que o autor tenta transmitir a sua visão sobre a sociedade
brasileira da época:
Si foi escrito brincando, ou milhor, divertidamente, por causa da graça que
eu achara no momento entre a consciência dum herói ameríndio tão sem
caráter e a convicção a que eu chegara de que o brasileiro não tinha caráter
moral, além do incaracterístico físico duma raça inda em formação, si foi
escrito divertidamente, a releitura do livro me principiou doendo fundo em
seguida. [...] Por outro lado não tive intenção de fazer de Macunaíma um
símbolo do brasileiro. Mas si ele não é o Brasileiro ninguém não poderá
negar que ele é um brasileiro e bem brasileiro por sinal. [Carta de Mário de
Andrade para Augusto Meyer, datada de 16 de julho de 1928] 33.
O que procurei caracterizar mais ou menos foi a falta de caráter do brasileiro
que foi justamente o que me frapou quando li o tal ciclo de lendas sobre o
herói taulipangue. Os caracteres mais principais que a gente percebe no
livro são a sensualidade, o gosto pelas bobagens um certo sentimentalismo
melado, heroísmo coragem e covardia misturados, uma propensão prá
política e pro discurso. Porém nem tive intenção de fazer um livro importante
de psicologia racial não. Fiz o que me vinha na cabeça unicamente me
divertindo e nada mais. [Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de
Andrade, datada de São Paulo, 20 de fevereiro de 1927] 34.
Sempre imaginei fazer um poema se ocupando dos homens sem caráter
nenhum, produto mesmo do caos humano, mexendo-se no abismo
brasileiro, reflexo de elementos disparados na arritmia gostosa a indicar o
maravilhoso destino da nossa gente. [...] [Carta a Ademar Vidal, datada de
São Paulo, 20 de abril de 1929] 35.
Tais correspondências deixam transparecer que a intenção do autor, ao
confeccionar a obra, não é a de caracterizar propriamente o caráter bom ou mau do
brasileiro, nem fazer dela uma obra geradora de polêmicas sobre os moradores do
Brasil. Simplesmente a idéia é a de compor de forma divertida, com graça,
exprimindo sua percepção daquele momento, representando o que lhe parecesse
interessante e que chamasse atenção para a obra.
No dicionário, a palavra caráter serve tanto para informar que o indivíduo tem
bom caráter como mau caráter; é uma palavra “neutra”. Porém, essa expressão do
pensamento é, na maioria das vezes, associada ao bom caráter. Quando se enuncia
33
Carta descrita por Lygia Fernandes (org.), na obra Mário de Andrade escreve cartas a Alceu, Meyer
e outros, nas páginas. 58-59.
34
Carta descrita por Carlos D. de Andrade, na obra A lição do amigo cartas de Mário de Andrade a
Carlos Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário, na página 104.
35
Carta descrita por Ademar Vidal, na Revista do Livro, nas páginas 27-28.
69
que fulano é de caráter, significa, popularmente, que a pessoa tem um bom caráter,
mesmo não explicitando se é positivo ou negativo. O escritor Carlos Sandroni, no
livro Cultura e política em Mário de Andrade (1988, p. 19-20), tem seu ponto de vista
sobre a discutida expressão “sem nenhum caráter”:
O subtítulo de Macunaíma - ‘o herói sem nenhum caráter’ – às vezes é
interpretado no primeiro sentido36. Mário de Andrade, no entanto, não atribui
a sua criação o epíteto ‘herói de mau caráter’, e nem mesmo de ‘herói sem
caráter’: na dupla negação de ‘sem nenhum caráter’ parece residir a
necessidade de enfatizar a ausência total de qualquer espécie de caráter,
seja bom ou mau. Ausência de características fixas, de feitio moral, de
permanência. Macunaíma seria antes um herói sem cara, caleidoscópico,
eternamente diferente do que acabara de ser.
Percebe-se, na citação acima, que é equivocado afirmar que Mário de Andrade
quer apresentar ao mundo um Macunaíma, possível representante brasileiro,
produzindo um ser sem escrúpulos, tomado sempre pela malandragem, não
conseguindo ser honesto e confiável. O subtítulo, segundo Sandroni (1988), tem a
intenção específica de fazer alusão àquele homem que não é bom, nem mau. A
palavra “sem” é a inexistência e não a afirmação de que “sem caráter” a
personagem é totalmente inescrupulosa.
3.1.2.2 Jeitinho e malandragem
Robson Pereira Gonçalves, pesquisador da obra Macunaíma, afirma que tal
narrativa está interligada com “o confronto entre a burocracia medieval dominante na
sociedade brasileira e os ‘jeitinhos’ e a malandragem que permeiam o cotidiano
brasileiro”. E continua dizendo que o autor demonstra, a partir da obra, estar em
busca da “identidade brasileira”. (GONÇALVES, 1982, p.11-12). Para o pesquisador,
o que ocorre em Macunaíma, a nível de tomada de consciência, é uma
reflexão sobre a formação da sociedade brasileira, desde o que lhe é
próprio, congênito e que não é privilegiado, até os falsos pilares morais que
moldam a burguesia e a ‘ordem patriarcal’, que regem as normas e as
conveniências sociais brasileiras. (GONÇALVES, 1982, p. 41-42).
Em correspondências trocadas entre Mário de Andrade e Manuel Bandeira,
também há indícios do caráter do protagonista, como acentua o autor de
36
Sentido de mau caráter.
70
Macunaíma em carta datada de 31 de outubro de 1927, no livro Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira:37
Fiz questão de mostrar e acentuar que Macunaíma como brasileiro que é
não tem caráter. [...] Ponha reparo: Macunaíma ora é corajoso, ora covarde.
Nada sistematizado em psicologia individual ou étnica. Avança e vence o
monstro Capei, porém foge duma cabeça decepada. [...] Ele que só
conseguira moçar Ci com a ajuda dos irmãos e foge bancando o valentão
‘Me acudam que senão eu mato’. [...] Macunaíma como todo brasileiro que
sabe um pouquinho, vira pedantíssimo. O maior pedantismo do brasileiro
atual é o escrever português de lei: academia, Revista de Língua
Portuguesa e outras revistas, etc. [...].
Em outra carta, remetida também a Manuel Bandeira, datada de 7 de
novembro de 1927, Mário de Andrade novamente discorre sobre o assunto:
Macunaíma vive por si, porém, possui um caráter que é justamente o de não
ter caráter. Foi mesmo a observação disso, diante das conclusões a que eu
chegara, no momento em que lia Koch-Grünberg, a respeito do brasileiro,
do qual eu procurava tirar todos os valores nacionais, que me entusiasmou
pelo herói. (ANDRADE, 1927, p. 363-364).
A observação de Mário de Andrade pode remeter à afirmação já vista de Carlos
Sandroni (1988) quando faz referência à questão de o herói Macunaíma não ter
caráter, trazendo à tona a ausência dessa característica e não o mau-caratismo.
3.1.2.3 Jeitinho e malandragem em Macunaíma
Tal discussão entre ser bom ou mau remete ao tema do jeitinho malandro, que
tenta de todas as formas se defender de enrascadas e em Macunaíma percebe-se
que a personagem utiliza a malandragem para escapar de muitos problemas, de
muitas tramóias que faz. Desde a infância já demonstra muita preguiça e, sendo
assim, necessita ser malandro para não precisar trabalhar como os outros. Enquanto
seus irmãos e sua mãe trabalham, o herói, que aprecia os prazeres amorosos, sai
com sua cunhada e, para tê-la como mulher, utiliza-se da transformação e torna-se
um príncipe. Esta mutação aparece desde o início da obra e é um dos indícios da
utilização da malandragem. Certos pesquisadores de Macunaíma tendem a tratar o
37
Em uma nota de rodapé, o autor da coletânea Correspondências, escreve que “no manuscrito da 1ª
versão do prefácio, Mário de Andrade desenvolve a idéia de que ‘o brasileiro não tem caráter porque
não possui nem civilização própria nem consciência nacional’”. (MORAES, 2000, p. 359).
71
assunto apresentado no livro como “fruto do dilema brasileiro”, um exemplo disso é a
citação do pesquisador Robson Pereira Gonçalves (1982, p. 79):
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, é fruto do dilema brasileiro:
produto de uma sociedade historicamente determinada, mas que apresenta
as suas identidades através de valores que são invariantes, imutáveis,
perenes – próprios das categorias a-históricas, a-temporais. O dilema do
brasileiro, a falta de caráter de Macunaíma é não ‘sentir’, é camuflar a sua
história.
Na rapsódia, quando Macunaíma conhece Piaimã, que é o monstro comedor
de gente, tenta retirar-lhe a muiraquitã, pedra que a personagem ganha de presente
de Ci, sua amada e que serve de amuleto. Para alcançar o objetivo o herói veste-se
de francesa a fim de enganar o monstro. Esse aceita trocar o objeto por favores
sexuais, mas o herói não está disposto a aceitar a oferta. Mais uma vez percebe-se
que Macunaíma utiliza artimanhas para conseguir o que quer, ou seja, nesse caso,
recuperar a muiraquitã, pois se cobrindo com roupas de francesa, o herói tenta
valer-se do jeitinho malandro para alcançar sua finalidade, mas não foi feliz e teve
que elaborar novas estratégias para chegar ao objetivo determinado.
É possível perceber que, durante toda a rapsódia, o herói tenta, independente
da forma, se dar bem. Não interessa como, nem se o procedimento é legal, o que
importa é a conquista do que quer. Tal situação remete ao jeitinho malandro, aquele
que usa da esperteza para tirar vantagem; é o matuto, o sabido. É importante
ressaltar que as artimanhas e trapaças elaboradas por Macunaíma, mesmo sendo
consideradas malandras, são passíveis de riso. Para ilustrar tal afirmação, algumas
situações em que o herói se vale da malandragem são descritas a seguir:
- Como Macunaíma não consegue vencer o gigante resolve apelar para a
macumba e encomendar-lhe uma grande surra.
- Macunaíma fica sem dinheiro e escreve para as Icamiabas para que estas
lhe enviem uma quantia de cacau para ser usado no escambo.
- Induz seus irmãos a caçarem em pleno asfalto
- Macunaíma vai pescar, mas como não tem vara nem anzol, resolve se
transformar em uma piranha para cortar a linha de um inglês que ali está
pescando. Mas Ceiuci, mulher do monstro Piaimã, também está ali e, com
uma tarrafa, pesca a piranha-Macunaíma. O herói transforma-se em pato,
mas quase vai para a panela. Para escapar, ludibria Ceiuci, brinca com sua
filha e foge num cavalo corredor.
- Se disfarça de pianista para ver se consegue uma bolsa de estudo para ir
à Europa atrás do gigante.
- Um macaco também usa da malandragem para enganar Macunaíma e rir
deste. O herói está com fome e vê o macaco comendo. Macunaíma
72
pergunta o que ele come naquele momento e este responde que está
quebrando a bolsa escrotal para comer. Macunaíma resolve imitá-lo, pega
um paralelepípedo e esmigalha sua bolsa escrotal. Cai morto. Ressuscita
porque Maanape é feiticeiro e troca os órgãos destituídos por dois côcos-daBahia, assopra fumaça de cachimbo e reanima-o com guaraná e uma dose
de pinga.
- Quando Piaimã volta da Europa, Macunaíma não pensa em outra coisa a
não ser acabar com ele. Coloca-o balançando em um cipó e embala-o com
tanta força que este cai dentro de um buraco no qual Ceiuci prepara uma
macarronada. Com isso, Piaimã morre e Macunaíma recupera a muiraquitã,
pedra da sorte.
- Vei, a Sol, querendo se vingar de Macunaíma, envia uma “cunhã
lindíssima” (ANDRADE, 1978:142) para tentá-lo e este não resiste. Vai atrás
desta, porém ela é uma uiara e o mutila devorando lhe a perna, os brincos,
o côco-da-Bahia, as orelhas, os dedões, o nariz, o beiço e leva também a
muiraquitã. O herói procura a pedra, mas sem sucesso. Encontra todo o
resto do corpo, menos a muiraquitã.
- Macunaíma resolve deixar a terra, de tão triste que está e o Pai do Mutum
o transforma na constelação da Ursa Maior. Transformando-se em estrela,
Macunaíma prova que ele é a encarnação da esperteza, da improvisação38.
Macunaíma utiliza-se de ferramentas como o embuste, a trapaça, abusa da
confiança dos outros, não gosta do trabalho, além de ser muito esperto, astuto e
matreiro. Adora uma traquinagem e travessuras. Robson Gonçalves (1982, p. 71)
aproxima Macunaíma do mundo do malandro, afirmando que
Se o ócio é uma das principais características do curumim andradino,
também o é a ganância, o embuste para conseguir dinheiro fácil.
Poderíamos, dessa forma, ajustar a concepção de Antonio Candido, que se
refere a Macunaíma como a ‘encarnação da malandragem nacional’,
contrária ao pragmatismo dos pícaros, com o personagem que simboliza o
carnaval, que abre espaço próprio entre a hierarquia e a igualdade.
Gonçalves (1982, p. 45) insiste que a “individualização da saga do malandro”
se aproxima de uma “visão do coletivo” e que é através desse que se pode
identificar uma “problemática social em relação ao ‘caráter do brasileiro’". Dessa
forma, Macunaíma pode ser visto como o malandro, o aproveitador, aquele que se
utiliza da confiança dos outros para alcançar seus objetivos, como afirma Antonio
Candido (1967, p. 141):
Mário de Andrade, em Macunaíma (a obra central e mais característica do
Movimento), compendiou alegremente lendas de índios, ditados populares,
obscenidades, estereótipos desenvolvidos na sátira popular, atitudes em
face do europeu, mostrando como cada valor aceito na tradição acadêmica
e oficial correspondia, a tradição popular, um valor recalcado que precisava
adquirir estado de literatura.
38
Passagens retiradas de Macunaíma o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade.
73
Segundo a teoria do autor Lourenço Stelio Rega (2000), Macunaíma usa o
“lado mau” do jeitinho, que é aquele que burla, que engana, que prejudica o outro,
que é inconveniente. Entretanto, mesmo com essas características, para o
pesquisador Gonçalves (1982, p. 77), Macunaíma não desce “aos liames do
marginal, do fora-da-lei”, pois o herói sabe como dar um jeitinho com perspicácia,
não sendo bandido e exemplifica o contexto:
Assim, temos as empulhações que o herói faz com seus irmãos,
enganando-os sucessivamente na narrativa, no intuito de evitar o trabalho e
o esforço. Bem como a atuação de ‘travesti’ que caracteriza a ação esperta
do malandro em transfigurar-se, no objetivo de alcançar um prêmio. No
caso, trata-se de embuste que Macunaíma faz ao regatão Venceslau Pietro
Pietra, passando-se por uma prostituta francesa para enganar Piaimã e
reaver o seu amuleto da felicidade – a muiraquitã. (GONÇALVES, 1982, p.
77).
DaMatta (1997, p. 202) também faz suas observações sobre Macunaíma
lembrando que ele é um “bom malandro”, pois ao perceber que está no prejuízo,
rapidamente se vale do jeitinho para transformar a situação a seu favor tirando
proveito do acontecimento. Gonçalves lembra que a malandragem de Macunaíma o
beneficia nas situações em que o herói está em desvantagem e só se utilizando
dessa é que Macunaíma consegue chegar ao seu objetivo:
A malandragem de Macunaíma é que o leva a derrotar o gigante Piaimã, o
regatão comedor de gentes. É neste espaço de subversão que o herói
encontra os elementos próprios para enfrentar as forças da hierarquia e da
ordem constituída. É o espaço da malandragem, o espaço da inversão
carnavalesca, que institui ao herói a esperança de um relacionamento social
com maior justiça e igualdade. Pois, se Macunaíma é um relativizador dos
códigos sociais, ele é quem pode trazer uma melhor harmonia entre os
pólos da ordem e da desordem. (GONÇALVES, 1982, p. 77).
Ao observar que Macunaíma apresenta o que Rega (2000) chama de “jeitinho
mau” e, ao mesmo tempo o que DaMatta (1997) afirma ser “o bom malandro”, tentase demonstrar que o herói é um malandro que ultrapassa a ingenuidade do Pícaro.
Mesmo assim, a malandragem do herói de Mário de Andrade torna-se risível e não
chega a dar indícios de banditismo ou criminalidade a fim de se dar bem. Ele,
simplesmente, tem aversão à labuta e evita, ao máximo, ter que trabalhar.
Macunaíma é um livro “todo ele de segunda intenção", nas palavras do próprio
autor. O protagonista Macunaíma é um típico personagem que se vale, na maioria
74
dos capítulos do livro, do jeitinho para poder se livrar de encrencas, para poder se
dar bem, ou alcançar seus objetivos, como já foi citado pela autora Lívia Barbosa
(1992) que conceitua o jeitinho como a forma “especial” de se resolver um problema
e este jeitinho é visto, no contexto de Macunaíma, como malandro.
Dependendo do ponto de vista, os jeitinhos dados por Macunaíma são típicos
de malandro, mas não é possível afirmar isso com toda a convicção, pois como foi
explicitado no início desta dissertação, depende se quem está julgando é o
observador, que também poderá ter mais que um posicionamento, ou se é o próprio
protagonista. Assim, temos uma ironia, pois a resposta de que Macunaíma é ou não
o típico malandro dependerá do contexto e de quem faz a leitura. O observador
poderá chegar à conclusão de que o herói é o típico malandro, pois se aproveita do
jeitinho para se livrar de confusões muitas vezes causadas por ele mesmo. Esta
malandragem poderia ser evitada se Macunaíma seguisse algumas normas e regras
sociais.
Por outro lado, ao focalizar a personagem, percebe-se que Macunaíma se vale
do jeitinho para tentar consertar alguns erros que comete, como por exemplo,
quando perde a muiraquitã, presente da sua amada Ci, a deusa do mato-virgem.
Assim, o observador poderá concluir que o herói só tem certas atitudes porque são
vitais. Sendo assim, pode-se considerar, em alguns casos, que é o instinto de
sobrevivência que se manifesta na personagem.
3.1.3 A máxima maquiavélica e a presença do jeitinho como forma de vencer,
enriquecer e se sobressair
A ironia é um recurso muito presente em textos importantes da literatura
brasileira. Neste capítulo busca-se explicar a utilização da temática do jeitinho a
partir da perspectiva da ironia em dois textos. Serão abordados os contos Teoria do
medalhão, de Machado de Assis e O homem que sabia javanês, de Lima Barreto,
pois tais narrativas apresentam o enredo capaz de facilitar a identificação e
exemplificação sobre o assunto. Também serão discutidas, neste capítulo, a obra O
75
príncipe, de Maquiavel39, trazendo à tona a máxima “os fins justificam os meios” e a
difundida “Lei de Gérson”, que trata do “dar um jeitinho a fim de estar sempre a levar
vantagem”. Outras obras de teóricos que abordam a temática igualmente servirão de
referência.
Um dos escritores brasileiros mais lembrados por seu tom irônico é Machado
de Assis que deixa um legado de escritos até hoje considerados enigmas para os
estudiosos, prova disso é que as obras deste grande escritor são estudadas
incansavelmente e, mesmo assim, sempre há algo para se descobrir. Isso se deve à
maneira como ele escreve, dando sugestões ao leitor, fazendo com que esse
procure as pistas em seus textos e traduza conforme sua vivência, sua concepção
de mundo e a realidade atual em que está inserido. Machado de Assis, como autor
irônico, deixa em aberto algumas questões em suas narrativas evitando as opiniões
conclusivas e fazendo com que o leitor se prenda ao assunto em busca de uma
resposta. Solução essa que não será encontrada, de forma explícita, nas palavras
de Machado de Assis. E esse é o grande trunfo da ironia: não dar respostas prontas.
O filósofo Kierkegaard (1991, p. 51) já afirmava isso em sua tese sobre a ironia:
É essencial ao irônico jamais enunciar a idéia como tal, mas apenas sugerila fugazmente, e tomar com uma das mãos o que é dado com a outra, e
possuir a idéia como propriedade pessoal, a relação naturalmente se torna
ainda mais excitante.
No caso de Machado de Assis, a professora doutora Eunice Piazza Gai (2005,
p. 72) escreveu que “há uma tendência, de buscar em Machado ‘um discurso
afirmativo, a defesa de uma verdade, de uma ideologia que ele de fato não
assumira’”.
Percebe-se, na citação acima, que é recorrente o fato de tentar descobrir em
Machado de Assis certas respostas, o que é um trabalho em vão, uma vez que o
autor tem muito presente em suas obras a temática da ironia. Ele exibe um realismo
perpassado de humor e ironia no qual demonstra o intimismo de cada personagem,
preocupando-se em trazer à tona a verdadeira realidade humana e esta busca pela
39
Maquiavel escreve O príncipe tendo como temática principal o fato de que os príncipes devem
manter o controle sobre seus territórios. Então, na obra, muitas questões e máximas são
apresentadas para que se alcance determinado fim. Daí a conhecida expressão “os fins justificam os
meios”.
76
verdade, este diálogo com o leitor são estabelecidos como características
marcantes. Alfredo Bosi (1982, p. 203) entende o escritor Machado de Assis como:
Menos do que ‘pessimismo’ sistemático, melhor seria ver como suma da
filosofia machadiana um sentido agudo do relativo: nada valendo como
absoluto, nada merece o empenho do ódio ou do amor. Para a
antimetafísica do ceticismo, a moral da indiferença.
Machado de Assis apresenta alguns valores próprios cuja presença da ironia e
crítica aos valores da sociedade dá vida aos acontecimentos, abrindo um leque de
expectativas entre os leitores.
Outro autor brasileiro que se vale da ironia em sua obra é Afonso Henriques de
Lima Barreto, nascido no Rio de Janeiro, em 1881 e falecido em 1922. Lima Barreto
apresenta contextos que abordam, muito freqüentemente, amarguras e decepções.
Ele luta contra o preconceito racial, contra a opressão e isso fica demonstrado
explicitamente em seus romances. Além disso, o escritor tentou fazer parte dos
imortais da Academia Brasileira de Letras, sem sucesso.
Nas suas obras apresentam-se alguns aspectos de crônica: situações
cotidianas, vida burocrática, o ambiente, além de expor traços naturalistas, mas são
apenas aspectos, Lima Barreto não era naturalista. Ele mostra o submundo muito
mais que Machado de Assis e também, por essa razão, não quer ser comparado
com o autor por achar que ele trata do momento como um todo e Machado de Assis
só faz uso de uma fatia. Porém, a partir de seus contos observa-se que eles
possuem certa semelhança. Alfredo Bosi (1982, p. 361) faz a seguinte afirmativa:
Quanto a Lima Barreto um encontro mais íntimo com o seu estilo sugere
uma que outra semelhança com o ‘andamento’ da frase machadiana, cuja
velada ironia se entremostra nas restrições, nas dúvidas, nas ambíguas
concessões à mentalidade que deseja agredir: é a linguagem do ‘mas’, do
‘talvez’, do ’embora’, sistemática nos romances de Machado [...].
No caso deste estudo, constata-se que nos contos Teoria do medalhão e Um
homem que sabia javanês, ambos os escritores tratam do tema do jeitinho de forma
irônica e crítica.
3.1.3.1 Jeitinho e ironia nos contos de Machado de Assis e Lima Barreto
77
3.1.3.2 A Teoria do medalhão
No conto Teoria do medalhão, o pai, ao dialogar com o filho, observa que
“qualquer que sejas a tua profissão meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou
pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum”. (MACHADO DE
ASSIS, 1959, p. 288). Como a maioria dos pais, esse também ambiciona que seu
filho tenha uma vida de ascensão. Não gosta da idéia de que o herdeiro seja apenas
mais um dentre a população, mas sim que tenha o seu destaque.
O autor escreveu este conto, publicado no livro Papéis avulsos, em outubro de
1882. É a história de um pai aconselhando seu filho que completa 21 anos, entrando
na maioridade, portanto, a fim de que esse possa vencer na vida com galhardia.
Começa a falar sobre as possíveis profissões que o filho poderá ter. O pai afirma
que o descendente pode ter muitas profissões, mas deve manter uma de precaução,
a qual, se necessário, usará para se defender. E sugere que a mais útil e cabida,
para tanto, seja a de medalhão:
Assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim
também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que
os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa
ambição. (MACHADO DE ASSIS, 1959, p. 288).
Para ser medalhão não se necessita de tanto esforço, basta ser cordial, não
agredir ninguém com idéias e não manter posição política ou filosófica firme, ou seja,
ser maleável. Segundo o pai, esse era seu grande sonho quando jovem, mas não
teve ninguém que o orientasse como está fazendo com o seu filho. A importância
que o pai dá ao assunto mostra que tal conversa é muito comum para a época, é
uma herança de homem para homem. Então, orienta-o no sentido de que se deve
ter pouquíssimo conhecimento, originalidade, ironia, não se deve ter idéias próprias
entre outras características do mesmo estilo. Outro conselho do pai é o de que o
filho não permaneça por muito tempo só, pois a solidão pode trazer idéias e o
medalhão delas deve fugir. Também usar pouco do vocabulário adornado, uma vez
que ele está ligado às idéias; dar preferência ao vocabulário simples. Os recursos de
adjetivação também poderão ajudar na profissão de medalhão. “Foge de tudo o que
78
possa cheirar a reflexão, originalidade, etc, etc...” (MACHADO DE ASSIS, 1959, p.
293).
Por fim, depois de tantos outros conselhos do pai para que seu filho vença os
impasses da vida sem muitas preocupações, parabeniza-o pela passagem para a
vida adulta, pois o diálogo acaba se estendendo além da meia-noite. No mais, pede
que o herdeiro pense bem em toda a conversa que tiveram, pois lhe será muito útil
posteriormente. Mais do que isso, o pai insinua que toda a exposição sobre o
assunto “guardadas as devidas proporções, [...] vale O príncipe de Machiavelli”
(MACHADO DE ASSIS, 1959, p. 293), sugerindo estar ele exercendo o papel que o
próprio autor de O príncipe teve ao levar e tentar implantar suas idéias de como
manter o poder de um soberano sobre seu reino.
3.1.3.3 O homem que sabia javanês
O homem que sabia javanês é um conto no qual um amigo, Castelo, relata a
outro, Castro, a técnica trapaceira utilizada para sobreviver. Este procedimento
consiste em ensinar a língua javanesa, mas o detalhe é que Castelo não sabe a
língua a qual deve ministrar. Então, ele aprende o alfabeto, mais meia dúzia de
palavras e começa a lecionar para um senhor que o contrata. Assim, ele lê em
javanês para este senhor. Mais tarde, é nomeado cônsul de Java e representa o
Brasil em uma reunião de sábios; palestra e publica sobre Java não só no Brasil,
mas para o Mundo.
Castelo chega ao Rio de Janeiro e está na miséria. Não tem dinheiro para
comer, nem para pagar a pensão. Por sorte, vê um anúncio num jornal pedindo um
professor de língua javanesa. Entra em uma biblioteca para conseguir informações
sobre a tal língua, copia o alfabeto de um livro e decora-o. A partir daí, passa a
ensinar javanês ao Barão de Jacuecanga, já surdo, o que facilita a embromação. Foi
enviado a congressos, palestras, entre outros. E continua a sobreviver disso.
3.1.3.4 A teoria e a prática
79
A Teoria do medalhão é um conto de Machado de Assis que apresenta a
supressão do narrador, ou seja, o conto é dialogado. Observa-se que o conto é a
própria teoria, pois o conceito desta palavra implica num conhecimento especulativo,
meramente racional, uma suposição, o que ocorre no texto.
É possível perceber a demonstração de uma paródia do rito de passagem: o
rapaz, entrando na maioridade, recebe conselhos do pai para essa nova fase da
vida (a adulta), porém estes conselhos são de como ser vigarista e mentiroso a fim
de se sobressair entre os integrantes da sociedade.
O autor consegue, no conto, transpor as barreiras do tempo e apresentar uma
obra a-temporal através de algo que existiu efetivamente, os medalhões, e que não
se perdeu com a sucessão dos anos, pois ainda é possível encontrar medalhões na
sociedade. Gai (2005, p. 73) manifesta seu modo de ver o assunto afirmando que “a
obra de Machado se destaca e se atualiza pela forma ampla e incansável com que o
autor registrou a experiência humana”.
Essa “teoria” exposta no conto Teoria do medalhão é demonstrada em Lima
Barreto através do conto O homem que sabia javanês, uma vez que a fórmula da
trapaça, da embromação fica explícita. Um conto ensina como fazer; o outro torna
evidente, na prática, o funcionamento com sucesso.
Por isso, O homem que sabia javanês torna-se um paradigma de orientação de
como conseguir sucesso sem muito esforço e é através da narrativa que Lima
Barreto aproveita para denunciar as trapaças que em geral são vistas como uma
virtude. A atitude de Castelo em enganar o Barão leva-o a ter o gosto pelas
aparências e não pelo empenho, pelo estudo, comportamento próprio do malandro.
Os dois contos utilizam personagens populares e, neste ponto, o que os
diferencia é a posição social e o caráter de cada um. O pai ensina como ser o
bajulador; Castelo ensina como ser o burlador. Os fins são os mesmos: o proveito
próprio, mas os meios são diversos. A questão é centrada na posição social e não
na vocação profissional. Essa síntese remete ao O príncipe, de Maquiavel (1982), na
idéia totalitária de que os fins justificam os meios. No caso dos contos, esta idéia
80
maquiavélica foi bem aproveitada, pois não importa que meios os protagonistas
utilizam para ser bem sucedido (bajulação, fraude, etc.). O importante é o resultado
final.
Outra questão importante é a de possuir alguns requisitos, considerados
básicos por Maquiavel, para não necessitar passar por tantas dificuldades, porém se
não é possível possuir certa condição, se faz de extrema importância aparentar tê-la:
Não é necessário a um príncipe ter todas as qualidades mencionadas, mas
é indispensável que pareça tê-las. Direi, até, que, se as possuir, o uso
constante delas resultará em detrimento seu, e que, ao contrário, se não as
possuir, mas aparentar possuí-las, colherá benefícios. Daí a conveniência
de lhe parecer clemente, leal, humano, religioso, íntegro e, ainda de ser
tudo isso, contanto que, em caso de necessidade, saiba tornar-se inverso.
(MAQUIAVEL, 2007, p. 160).
Dessa forma, Maquiavel ainda sugere que o Príncipe sempre faça o bem, mas
no momento em que não for possível, ele deve conduzir-se pelo caminho do mal.
O autor de O príncipe tenta mostrar a importância de se manter sempre as
aparências, não dando importância para o temor da suposição de que os outros
poderão vir a desmascará-lo, pois
os homens em geral formam as opiniões guiando-se antes pela vista do que
pelo tato; pois todos sabem ver, mas poucos sabem sentir. Cada qual vê o
que parecemos ser; poucos sentem o que realmente somos. E estes poucos
não ousam opor-se à opinião dos muitos que, atrás de si, têm a defendê-los
a majestade do poder. (MAQUIAVEL, 2007, p. 161).
Machado de Assis trabalha também com o humor, aplicando em seus textos
tons irônicos, pois ele vê o mundo com todas as gamas da ironia. Segundo a
doutora Eunice P. Gai (2005, p. 79), o emprego da ironia por Machado de Assis
ocorre do seguinte modo:
Machado utiliza-se da ironia para fazer crer que é preciso ler o contrário do
que está escrito. Trata-se de tendência muitas vezes reiterada em sua
própria obra e consiste em apresentar de modo afirmativo e conclusivo uma
idéia que corresponde a determinada situação, mas não está em
consonância com os valores morais apregoados ou pressupostos. Há então
81
uma discrepância entre o pensamento e a palavra, entre o ideal e a
realidade.
Ao final do conto Teoria do medalhão, o filho pergunta se na profissão proposta
pelo pai é possível rir. Diante disso, o pai afirma que ele poderá rir desde que o riso
seja espontâneo e despreocupado, mas que existe um “ponto melindroso”...
– Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca,
cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por
Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos céticos e
desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga,
gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara
dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias e
arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça [...]. (MACHADO DE
ASSIS, 1959, p. 293).
Nos referidos contos, é possível observar a capacidade do jeitinho, no qual
para tudo há solução, independente de ter que ser vigarista ou correto, trapaceiro ou
manter a conduta que rege uma sociedade. Nota-se aí que a Lei de Gérson não é a
origem do jeitinho que está arraigado num lugar mais remoto da história, como se
pode perceber já nas obras de Lima Barreto e Machado de Assis.
O conto de Lima Barreto se tinge de uma ironia que avança para o tom
sarcástico, zombeteiro. Encontra-se um traço de irreverência, um deboche. Com o
conto de O homem que sabia javanês ele zomba das instituições, dos famosos
medalhões da sociedade, ironiza os padrões idealizados. Essa afirmação é
comprovada no fragmento da narrativa, no dizer de Castelo “-Só assim se pode
viver... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras,
aborrece, não achas? Não sei como me tenho agüentado lá, no consulado!” (LIMA
BARRETO, 1986, p. 49).
Numa abordagem irônica, é possível afirmar que, na Teoria do medalhão, o
narrador ensina a arte de enganar, enquanto que em O homem que sabia javanês,
Castelo conta como se põe em prática tal teoria. Então, a Teoria do medalhão é o
ensinamento através da hipótese, da suposição de estratégias de ascensão social e,
em O homem que sabia javanês é a aplicação desta teoria através da experiência
vivida pela personagem Castelo.
82
Nos dois contos denuncia-se o gosto pelas aparências. O intelectual é
dispensável, o importante é a boa lábia, a ousadia de conseguir ser vigarista,
mentiroso a ponto de convencer o outro, levando assim, a pessoa ao êxito. O
interessante é que se tais narrativas forem transportadas para o momento vivido,
nem o conto de Lima Barreto, tampouco o de Machado de Assis envelheceram. Eles
continuam atuais, é só olhar ao redor para se deparar com muitos “medalhões” e
outros que “sabem falar javanês”.
3.2 A manifestação do jeitinho em romances brasileiros contemporâneos
3.2.1 Meninos no poder: o jeitinho na política
A obra Meninos no poder, de Domingos Pelegrini, é datada de 2005 e traz à
tona, dentre outras temáticas, a do maquiavelismo, que é a mais relevante para o
trabalho aqui proposto. Para a organização do estudo, toma-se a obra O príncipe, de
Nicolau Maquiavel, em especial a máxima de que “os fins justificam os meios” para
mostrar como ocorre o jeitinho no mundo da política e a presença da máxima
maquiavélica neste meio. Verifica-se se há a possibilidade de vencer em uma
eleição através do jeitinho e das técnicas adotadas em O príncipe. Na narrativa
estudada, tanto pelo jeitinho, quanto pelo maquiavelismo, que em certos pontos
acabam inclusive se fundindo, tornando-se um só, as pessoas são levadas a
concordar com o planejamento de uma única personagem.
Até agora foi exemplificado, em outras obras da literatura brasileira, o jeitinho
como astúcia, como esperteza, apresentando personagens e situações nas quais a
malandragem é explicitada de diversas formas e serve, principalmente, para que
algumas personagens levem vantagem naquilo que estão fazendo ou pretendem
executar.
Em Meninos no poder também é possível o leitor se deparar com a temática do
jeitinho, porém fica claro que esse não é o mesmo daquele já visto em Macunaíma
ou em Memórias de um sargento de milícias. A personagem de Ari Chimite,
candidato a vice-prefeito, demonstra, desde as primeiras páginas, que os seus
planos possuem uma ligação com a idéia de que os fins justificam os meios.
83
Nas obras analisadas (Macunaíma e Memórias de um sargento de milícias) as
personagens citadas são malandras e se apoderam dessa característica para tornar
a vivência mais fácil, mais amena, sem muitas dificuldades. Já em Meninos no
poder, a personagem Ari Chimite não mede esforços para chegar ao objetivo
traçado: o de vencer uma eleição municipal com chapa majoritária 40. Nas
exemplificações a seguir, pode-se comprovar que a personagem utiliza-se da
máxima maquiavélica de que os fins justificam os meios 41 para conseguir chegar ao
poder. A palavra maquiavelismo é negativamente conotada como abjeta, pois
quando alguém se refere a algo maquiavélico, geralmente está se reportando a
alguma trapaça, algo em que há má-fé. Mas, quando Maquiavel deixa subentendido
que os fins justificam os meios, tenta exemplificar que é de acordo com o objetivo
que se traçam os planos e a maneira como esse será alcançado. Foi o que Ari
Chimite fez: o objetivo é chegar ao pleito vencendo as eleições e, a partir dessa
informação, ele planeja toda a campanha.
O livro inicia apresentando duas personagens que mais tarde serão cabos
eleitorais na campanha de Carlos Alberto Pessoa, de apelido Caboré42, e de Ari
Chimite: Bel e Quim43. Após esta introdução, a narrativa passa para o primeiro
comício, ainda fora do prazo legal, que reúne muitos curiosos. Nesta reunião,
Caboré e Ari tentam convencer os moradores da favela de que os dois podem
cumprir promessas, chamadas eleitorais, antes mesmo das eleições, o que daria
credibilidade aos candidatos. Uma das principais reclamações dos eleitores em
relação ao pleito é a de que os candidatos prometem e, assim que se elegem, não
tornam efetivo o compromisso. Por isso, o projeto de Caboré e Ari é o de conquistar
a confiança da população executando algumas promessas ainda antes das eleições.
Neste caso, nesta localidade, o compromisso seria o de fechar uma fábrica que
40
A chapa majoritária, numa eleição, é aquela que ganha a maioria dos votos. Assim, através desses,
se elegem o Presidente da República, o Governador de um Estado, Senadores e Prefeitos.
41
É importante salientar, aqui, que “os fins justificam os meios” se refere à máxima maquiavélica.
Porém, Nicolau Maquiavel nunca a escreveu em sua obra O príncipe. Apesar disso, ela é a melhor
expressão para resumir a sua forma de pensar.
42
Caboré lembra caburé, que na língua Tupi significa “que vive no mato”. O dicionário traz caburé
como caipira; indivíduo atarracado, achaparrado; pequena espécie de coruja.
43
São dois meninos que moram na favela e praticam pequenos crimes, como furto de bolsas em
estacionamentos e pelas ruas. Um dos sonhos desses meninos é o de comer em uma churrascaria, o
quanto quiserem, carne quentinha, sem serem escorraçados pelos proprietários porque estão mal
vestidos.
84
ladeia o local e que expele um odor insuportável. A proposta é de “acabamos com
esse fedor ou não merecemos seu voto!” (PELLEGRINI, 2005, p. 12). Dessa forma,
o problema deve ser resolvido antes mesmo das eleições.
O livro faz uma regressão ao passado para que o leitor entenda o que ocorreu
até aquele momento em que Caboré e Ari chegam à favela e ali fazem seu primeiro
(não-oficial) comício. O início pela favela foi proposital. Nessa atitude nota-se uma
relação com Maquiavel (2007, p. 98), que afirma em sua obra que “[...] quem chega
à condição de príncipe com o auxílio dos magnatas conserva-a com maiores
dificuldades do que quem chega com o auxílio do Povo”. Parece que Ari,
organizador de tudo, tinha noção de tal passagem, pois o caminho traçado pelo
candidato a vice está de acordo com as idéias propostas por Maquiavel.
Caboré é um radialista que trabalha na Rádio Norte, num dos programas mais
populares do local que recebe o nome de “Café com Caboré”
44
. Trata-se de um
programa de rádio que conta com a participação de pessoas humildes, simples, que
vão até o estúdio e fazem relatos de seus problemas e sofrimentos:
seus dramas, suas dores, seus parentes desaparecidos, sua luta com a
burocracia, com o descaso do governo, o esgoto entupido, o buraco na rua,
a falta de remédio, queixas e reclamações, apelos e lamentos, em
entrevistas curtas com o radialista que sabia perguntar curto e fino e curto e
grosso concluía depois de cada caso. (PELLEGRINI, 2005, p. 17-18).
Caboré tenta, através da emissora, denunciar alguns abusos sofridos por quem
o procura ou mesmo ajudá-los a encontrar uma solução para seus problemas,
porém esse auxílio é apenas através de conversas e exposições na rádio, ele não
promete nada a ninguém, somente empresta os microfones do seu programa
popular e sua voz para que as queixas sejam efetuadas. E deixa claro: “o que
podemos desejar é sorte [...] e as bênçãos de Deus para que continue se curando
em casa” (PELLEGRINI, 2005, p. 18). Além disso, segundo Joana, assistente da
rádio, a saleta de Caboré é “o altar [...] onde cada um ia pedir ao Deus da Rádio a
sua graça ou milagre” (PELLEGRINI, 2005, p. 17).
44
O próprio programa lembra um café da manhã. As pessoas que procuram a rádio recebem pão com
manteiga e café enquanto fazem seus relatos.
85
Assim se apresenta o sucesso de Caboré com a população. Ele é um homem
comum, despido de formalidades, harmonizado com o povo, principalmente com os
mais humildes e necessitados que vêem nele um caminho para a solução de seus
problemas. O público que o procura na rádio é constituído pela massa que o respeita
pela sua posição e ter o apoio desse grande público/povo é o sonho de qualquer
político ou de qualquer pessoa que pretenda ingressar na política.
Num dia de programa aparece um “cidadão baixinho de suspensórios”
(PELLEGRINI, 2005, p. 17) dizendo à Joana que quer falar com Caboré, mas que
não pode ser enquanto ele estivesse no ar. Mais tarde, então, ele é levado ao
encontro do radialista, quando aproveita para anunciar que quer convidá-lo para ser
o candidato a prefeito e que ele, Ari, será seu vice. Na primeira conversa, Caboré
leva um susto e chama Ari de louco, pois nunca se imaginou participando da arte de
governar, uma vez que não concorda com os métodos utilizados pelos políticos em
relação ao poder público e à população. Caboré chega a dizer para Ari que só
concorre “se a política mudar de um jeito que deixe de ser política!” (PELLEGRINI,
2005, p. 19). Ari concorda e diz que é do município que esta mudança tem que partir
e nada melhor do que a proposta de os dois fazerem uma política, um governo
diferente de todos os já vistos até agora para que a visão do governante comece a
mudar em relação ao povo, ao poder público e à própria maneira de fazer política,
como quer o radialista.
A dupla Caboré-Ari tem tudo para dar certo, inclusive levando-se em
consideração a lógica de Maquiavel que afirma que o príncipe tem que usar a
técnica do homem e a do animal:
existem dois modos de combates: um com as leis, outro com a força. O
primeiro é próprio do homem, o segundo dos animais. Não sendo, porém,
suficiente o primeiro, convém recorrer ao segundo. Por conseguinte, a um
príncipe é importante saber comportar-se como homem e como animal. [...]
Tendo, portanto, necessidade de proceder como um animal, deve um
príncipe adotar a índole ao mesmo tempo do leão e da raposa; porque o
leão não sabe fugir das armadilhas e a raposa não sabe defender-se dos
lobos. (MAQUIAVEL, 2007, p. 157-158).
Os dois unidos poderiam ter a astúcia de uma raposa e a voracidade de um
leão, sem perder a legalidade humana. Se eles se separarem, essas características
86
também se separarão, pois Caboré é o homem correto, cumpridor das leis, amante
do respeito, da ordem; já em Ari tem aflorado o lado animal, do leão e da raposa
juntos: é astuto e voraz. Portanto, a dupla unida poderá render muitos votos.
Para Ari chegar ao nome de Caboré para candidato a prefeito, antes de tudo
ele organiza uma pesquisa sobre a vida pessoal, profissional, hábitos, ficha na
polícia e na justiça do suposto candidato e descobre que o radialista é uma pessoa
completamente honesta, sem antecedentes de mau comportamento, que ajuda o
bairro onde mora, bem como as entidades beneficentes e faz parte da caridade da
igreja que freqüenta. Assim, é possível observar os primeiros indícios de que Ari não
fez nada sem antes se precaver de qualquer falha que o suposto candidato poderia
ter. O aspirante à vaga que Ari procura para ser o prefeito deve ser esta pessoa que
o povo, principalmente o mais humilde, espera: uma pessoa que não tenha
envolvimento com a vida político-partidária, que obtenha a confiança da população,
que seja conhecida e respeitada por essa (e Caboré é o radialista popular), e que,
acima de tudo, seja um exemplo de cidadania.
Dessa forma, Caboré, após achar a história de ser candidato sem fundamento,
começa a ver a possibilidade de, através dela, ajudar o município e, em
conseqüência, toda aquela população que o procura diariamente na rádio. Por outro
lado, ainda mantém o receio de ceder a todas as pressões políticas e se tornar mais
um dos que se deixa levar pela ganância, pelo poder, pela ambição que torna cegos
muitos homens de bem. Esta indecisão vai do início ao fim da campanha, com
muitas dúvidas divididas com a esposa e com pessoas de sua confiança, sobre o
que realmente deve fazer: continuar ou desistir.
Ari Chimite começa bem o planejamento em busca do objetivo, pois não
procura qualquer um ou alguém possuidor de pendências no passado capazes de
comprometer a campanha. Pelo contrário, vai buscar o ingênuo, o possuidor de
requisitos como: ter vontade de transformar a atual política respeitando os desejos,
as necessidades do povo; ser detentor da pureza, da inocência indispensáveis para
se deixar convencer a entrar no jogo, fazendo parte de todas as estratégias. Após a
escolha do candidato, Ari começa a traçar metas para chegar ao seu grande
objetivo: ganhar as eleições municipais. A princípio, a escolha de um candidato
87
parece algo sem muita importância, uma vez que qualquer cidadão, exceto aquele
com alguma restrição segundo a Lei Eleitoral, pode ser candidato a um cargo
público. Mas, para Ari isso não bastava porque tal pessoa deveria ter as
características já citadas para não correr o risco de ser pego de surpresa no
decorrer da campanha e colocar todo seu planejamento a perder. Assim, Ari tenta
convencer Caboré a concorrer:
Quem pode exibir um currículo assim entre os candidatos a prefeito?! O
povo quer honestidade e trabalho, você tem o que outros candidatos
pagariam fortunas para ter! Mas jamais terão, porque são políticos
profissionais, e você é um cidadão exemplar que, como a maioria, quer ver
mudar esse estado de coisas! Então vamos fazer mudar! (PELLEGRINI,
2005, p. 28).
O estrategista Ari tinha tudo tão bem pensado que até os “seis pilares de
sustentação da campanha” já estavam arquitetados: “ética, transparência,
austeridade, participação, agilidade e solidariedade” (PELLEGRINI, 2005, p. 24). A
primeira letra dessas seis palavras forma a enunciação etapas, que apresenta a
mudança proposta pela chapa Caboré-Ari, por meio de programas de ação e
exemplos, através de fases. Outra idéia de Ari é a de informatizar a prefeitura e
evitar que os contribuintes fiquem horas em uma fila. Esse programa se intitula SIM
(Sistema Informatizado Municipal), nome criado por Joana, que se torna a
marqueteira da campanha. As propostas de Ari para uma nova política são tão reais
que convencem Caboré de que é possível fazer política de outra forma que não a
tradicional e transformar o mundo num lugar melhor e mais justo.
Caboré é filiado ao PBT (Partido Brasileiro Trabalhista), do qual é secretário e
só assumira tal função porque no dia da reunião para compor a chapa faltaram
filiados interessados em participar. Já Ari é filiado ao PPT. A estratégia é unir os dois
partidos para aumentar o tempo de horário gratuito nos veículos de comunicação:
“coligando PBT e PPT, com a chapa Caboré-Ari, vamos somar três minutos na tevê
e no rádio, duas vezes por dia, e não é preciso mais pra apresentar os seis pilares e
o programa de governo” (PELLEGRINI, 2005, p. 29), diz Ari, o que demonstra que
tudo na campanha é muito bem raciocinado e organizado desde o início. O
candidato a vice não faz nada sem pensar, sem ter inúmeras estratégias prontas
para chegar ao fim proposto que é o poder, a soberania.
88
Caboré, com sua ingenuidade, só quer o melhor para o povo. Sonha com boas
escolas e vagas para todos, postos de saúde em pleno funcionamento e distribuição
de remédio a quem necessite, criança com direito à merenda escolar, enfim, como
diz ele: “o povo merece o melhor” (PELLEGRINI, 2005, p. 37). Percebendo tal
singeleza, Ari se torna mais forte e apela para este lado emocional de Caboré
dizendo que ele pode fazer muito pela população se se eleger prefeito.
Dentre as muitas passagens interessantes, uma de destaque ocorre quando
Maria do Socorro Rocha, uma velhinha, que fora a primeira vereadora daquela
cidade, há quarenta anos, tenta convencer Caboré a ser candidato a prefeito e diz:
“o senhor pode não querer, mas precisa ser, queira Deus, e Deus vai fazer o senhor
mudar de idéia para servir ao seu povo, que é a melhor forma de agradecer a Deus
pela nossa vida” (PELLEGRINI, 2005, p. 44). Dentre tantas outras, essa é mais uma
maneira de tentar convencer Caboré de que ele é a pessoa certa para a
administração pública, pois é honesto, trabalhador e engajado com os problemas do
povo, principalmente aos mais pobres e necessitados. Em O príncipe também há
uma passagem, no capítulo IX, na qual o pensador trata sobre o principado civil.
Nesse caso, a pessoa é levada ao poder pelo povo ou pelos nobres e não por
hereditariedade de cargo:
É que em qualquer cidade se encontra estas duas forças contrárias, uma
das quais provém de não desejar o povo ser dominado nem oprimido pelos
grandes, e a outra de quererem os grandes dominar e oprimir o povo. [...] os
grandes, certos de não poderem resistir ao povo, começam a dar força a um
de seus pares, fazem-no príncipe, para, à sombra dele, terem a
oportunidade de dar liberdade aos seus apetites; o povo, por sua vez, vendo
que não pode fazer frente aos grandes, procede pela mesma forma em
relação a um deles para que esse o proteja com a sua autoridade.
(MAQUIAVEL, 2007, p. 97-98).
E por isso o povo quer Caboré como seu representante, pois a identificação
com o radialista é grande, uma vez que esse já demonstra, através do programa
“Café com Caboré”, que ouve o povo e clama por ele. Assim, ele é mais uma
esperança para quem muito precisa da assistência social. O candidato é perfeito,
não só aos olhos do vice Ari, mas também na percepção do povo, pois Caboré é
mais que um mero radialista que exerce um jornalismo comunitário, visto que
89
também leva estes princípios para a sua vida pessoal, colaborando com entidades
assistenciais e com a comunidade na qual está inserido.
Ari descobre, em suas caminhadas e pesquisas pelos bairros e ruas da cidade,
que o grande veio da campanha eleitoral são os problemas ambientais. Se combater
ou fizer promessas de exterminar as “fedentinas” largadas por grandes indústrias,
eliminar os lixões, fazer desaparecer os esgotos clandestinos e a poluição sonora,
tudo isso pode se tornar um agrupamento muito grande de votos. E é com essa
tática que a campanha inicia invadindo as favelas, os becos e os bairros mais
pobres da cidade.
O candidato a vice, Ari, utiliza a expressão: “estamos só usando um truque
para enganar malandro, usando o barco dos bandidos sem vender a alma pra
bandidagem!” (PELLEGRINI, 2005, p. 77). Com isso a personagem comprova, em
sua fala, o tom malandro/maquiavélico que se pretende ressaltar nesta dissertação,
além do mais, quando se observa as atitudes de Ari Chimite, se percebe claramente
as suas intenções de vencer a eleição custe o que custar e com tal intuito ele utilizase de meios, lugares, pessoas, tudo o que puder para que seu maior objetivo seja
alcançado.
Para justificar a candidatura perante o advogado João Alfredo Bispo, que será
o defensor das causas da campanha, Ari fala, referindo-se aos políticos que estão
prestes a concorrer e àqueles que já estão no poder algum tempo: “eles se
especializaram tanto em manter essa política velha e antipovo, que não é difícil
assaltar de surpresa os pontos fracos desse regime injusto e hipócrita, que tem
bilhões para gastar com os bancos e tira centavos da boca dos velhos e das
crianças!” (PELLEGRINI, 2005, p. 79-80). Ao pronunciar esse discurso, Ari aproveita
e levanta a voz para que as pessoas que estão no mesmo bar que eles também
ouçam, uma vez que tal conversa pode dar frutos não só com a confiança de Bispo,
o advogado, mas daqueles que participam da audição dessa oratória proferida.
No entanto, esta nova política proposta por Ari não é tão diferente daquela que
o povo já está acostumado. Ele compra, suborna, ameaça a quem for preciso em
troca de votos, mas tudo ocorre longe dos olhos de Caboré, que entra na campanha
90
acreditando mesmo que será uma política diferente e que luta por uma grande
causa; que Ari está pensando no bem da população e que as maracutaias que
existem no meio político, principalmente para se vencer uma eleição, não
acontecerão com a chapa Caboré-Ari.
Mas Caboré engana-se, pois Ari instrui até as associações de bairro que se
dirigem aos veículos de comunicação e à promotoria pública para reclamarem de
problemas ambientais e como justificativa para tal interferência, diz que o povo
precisa de alguém que os oriente, que eles têm a vontade, mas se não tiverem um
guia, alguém que os ensine o que fazer e como fazer, as idéias se dissolvem e não
são levadas adiante para serem colocadas em prática. Vaslinda, esposa de Caboré,
comparece a uma assembléia e volta para casa perplexa, pois conclui que a chapa
está manipulando o povo. Mas ouve de Ari a explicação de que
o povo brasileiro é infantil [...] quer pai, quer que alguém diga vá por aqui,
faça isso ou aquilo! [...] As lideranças são o sal da massa! Se a gente não
mostrar o rumo e clarear o caminho, a massa é como farinha que não se
junta e nunca vira pão! (PELLEGRINI, 2005, p. 94).
Para justificar os questionamentos que surgem de Caboré e Vaslinda, Ari
ressalta que “com malandro a gente tem que ser malandro e meio!” (PELLEGRINI,
2005, p. 144), ao se referir aos partidos políticos aos quais os dois são coligados.
Caboré e Ari pedem para a população que se filiem em tais partidos para poderem
votar no dia da convenção partidária que decidirá quem serão os candidatos a
prefeito e vereadores pelo partido. Ao mínimo receio de sabotagem da candidatura
Ari já está prevenido:
Política é um jogo com muita trama [...]. É uma guerra sem violências [...]. E
nessa luta há generais e soldados, estrategistas e porta-bandeiras, cada um
com sua função, e a minha função é mesmo tramar, urdir, preparar,
espionar, prevenir, contra-atacar, conjeturar, fingir [...]. (PELLEGRINI, 2005,
p. 119).
Com esse discurso, Ari tenta acalmar Caboré que aos poucos fica sabendo das
trapaças do seu candidato a vice e quer explicações, pois ele entrou nesta vida de
candidato graças às promessas de Ari de que tudo seria diferente, a começar pela
campanha, porém Caboré foi procurado até por pessoas que agradeceram as
91
promessas de Ari de um emprego na prefeitura se eles recebessem o apoio e se
elegessem.
Iniciam as campanhas para o primeiro turno. A chapa de Caboré-Ari ganha
voluntários para trabalhar. Caboré, ao ver aquele imenso número de pessoas para
serem voluntárias, pergunta a Ari como eles irão pagar a todos. Esse responde que
tais pessoas passarão por uma seleção e só os melhores é que ficarão. Caboré
continua questionando e afirma que o candidato a vice promete serviço para todos e
que isso não é legal, no que Ari responde:
Não, companheiro, o cadastramento é que é aberto a todos... Além disso,
Caboré, a maioria é medíocre mesmo, se contenta com uma camiseta, um
sanduíche, um pouco de atenção, uma condução até o comício, uma noite
agitando bandeira e sambando e pronto, vão dormir felizes e vão votar na
gente com gratidão... São os otários, meu amigo, para quem eleição é só
uma festa... (PELLEGRINI, 2005, p. 154).
A idéia de Ari é fazer de tudo para que os comícios pareçam humildes, feitos
pelo povo e para o povo, com animações, mas sem showmícios, com voluntários
para que as pessoas mais humildes se identifiquem com a situação e para que
aqueles com posses financeiras pensem que eles têm o apoio maciço de
voluntários. E muito importante: Caboré deve estar entre a população o tempo todo,
fazendo o chamado “corpo-a-corpo”
45
, pois conforme Ari, “o primeiro dever do
candidato [...] (é) aparecer” (PELLEGRINI, 2005, p. 175), e esta oportunidade não
pode ser desperdiçada, visto que, além de os outros candidatos da oposição se
valer desse meio, o povo adora ter contato físico com políticos, ídolos, atores,
pessoas que são muito visadas e sem esquecer que os meios de comunicação
também oferecem mais espaços em noticiários para quem está nas ruas, com o
povo. A intenção de tais atitudes é mostrar que a massa está colaborando com a
chapa Caboré-Ari, que eles os aceitam. Na obra O príncipe (2007), Maquiavel afirma
que o povo faz seus julgamentos através daquilo que vêem e não daquilo que
tocam; assim, muitos podem ver, mas sentir, são poucos os que conseguem e a
visão pode enganar e levar o indivíduo a ver aquilo que está somente ao alcance,
mas não o mais profundo. Com os inúmeros voluntários foi essa a estratégia, pois
com os eleitores vendo tanta gente trabalhando em prol da campanha teriam a
45
Expressão utilizada pelos candidatos para se referir ao encontro entre o político e o povo, com troca
de abraços, apertos de mão, conversinhas, sorrisos.
92
tendência a apoiar aquela chapa a qual eles percebem estar mais forte, mais
organizada, com mais colaboradores, passando a impressão de ser a melhor.
Passado o início da campanha, chega o primeiro debate. Caboré, sem
experiência, pode expor seus sonhos para uma cidade melhor e ser pego de
surpresa com perguntas maldosas feitas por outros candidatos. Para que ele não se
desespere e coloque fora todo o trabalho realizado até aquele momento, Ari chamao para conversar e transmite alguns ensinamentos: “- Fale com paixão, Caboré, com
o coração, mas cuidado com as palavras...” (PELLEGRINI, 2005, p. 184). Se o
aspirante ao cargo tiver cuidado será quase impossível os outros candidatos
conseguirem encurralá-lo, pois Caboré é muito correto no que faz em sua vida, tanto
pessoal, como profissional e não deixa margem para acusações.
Num dos diálogos entre os dois candidatos da majoritária, Caboré discute a
questão dos voluntários na campanha, pois imagina que Ari esteja prometendo
empregos para esses após a vitória. Ari, sem cerimônias, afirma: “Milionários e
miseráveis são os mais fáceis de enganar porque se enganam fácil. Vivem iludidos,
por terem dinheiro demais ou de menos” (PELLEGRINI, 2005, p. 191), e continua
dizendo que não promete nada, e não tem culpa se as pessoas se deixam iludir
achando que irão receber algo após as eleições. Caboré, sem provas concretas das
promessas de campanha feitas por Ari, fica sem ter como reagir para impedir essa
atitude condenável por ele. Uma técnica utilizada por Ari, ensinada por Maquiavel
(2007, p. 159) é a de que
é preciso saber mascarar bem a índole astuciosa e ser grande dissimulador.
Os homens são tão simplórios e obedecem de tal forma às necessidades
presentes, que aquele que engana encontrará sempre quem se deixe
enganar.
Para as voluntárias que saem diariamente pelas ruas em busca de votos para a
chapa Caboré-Ari, o discurso de ensinamento proferido antes da partida é: “Na
batalha das ruas a luta era corpo a corpo, a munição eram as sacolas de santinhos e
as caixas de cartazes, as armas eram o sorriso e a civilidade, tinha ensaiado Ari, e o
coração, falar com o coração, olhar nos olhos, vestir com garra a Camisa-12”
(PELLEGRINI, 2005, p. 197-198). Essa é uma das formas de chamar os eleitores
93
para a campanha, de fazer com que a população tome conhecimento de quem são
os candidatos do Camisa-12 e suas propostas de mudanças para a cidade e
população.
No decorrer da campanha, Ari foi acusado pelo candidato da oposição, um
deputado, de ser gay e de estar nesta campanha como vingança contra tal
candidato porque, em um episódio, quando Ari era estudante, ele era o diretor de
uma escola na qual o candidato a vice foi pego com outro menino em atos
obscenos. O diretor contou para os pais dos envolvidos e o outro menino implicado,
após ter apanhado muito, se suicida. Já os pais de Ari mudaram de Estado (foram
morar na Bahia) para que o escândalo fosse abafado e não se falasse mais no
assunto.
Diante da situação, para se livrar da acusação, Ari vai à Bahia, local onde havia
residido quando criança e adolescente, volta com uma moça que diz ser seu amor
de infância e afirma estar noivo dela. Isso tudo serve para despistar a acusação de
homossexualismo que recaiu sobre o vice e que pode estragar a campanha toda. A
moça se chama Marlene e, ao se deparar com toda a movimentação eleitoral,
imediatamente se apaixona pela situação política e se engaja na campanha dos
Camisa-12.
Quase no final do segundo turno, o deputado, que desvendara tal história de
Ari, vai à casa de Caboré e conta tudo a ele, além de afirmar que usará tal
informação no último debate. E assim aconteceu. No último encontro dos dois
candidatos na televisão, para o confronto final, o candidato da oposição conta a
história para os eleitores alegando que Ari não é uma pessoa de confiança. Caboré,
para contornar a situação, faz um discurso contra todos os tipos de preconceito e diz
que em sua campanha todos têm espaço, independente de raça, opção sexual,
deficientes, ou outra situação que ele entende como preconceituosa.
Em um episódio da narrativa, os Camisa-12 precisam fazer uma modificação
numa fita cassete da campanha que irá ao ar no último programa gratuito de
televisão, porém o horário para a entrega do material já se encerrara. Ari, com o
94
material na mão, chama Joana e pede que ela dirija o carro até um caixa automático
mais próximo:
Saiu do banco correndo, Joana avisou que já passava das dez, tinha
perdido a hora, não adiantava correr, e ele passou o cinto dizendo que era
verdade...
-... se a gente não estivesse no Brasil. (PELLEGRINI, 2005, p. 234).
A citação acima apresenta um dilema brasileiro: o de que para tudo há um
jeitinho. Ari paga e consegue o que quer, mesmo que os prazos já tenham se
esgotado.
Depois de conhecer toda a história de Ari, Caboré discute com ele e o declara
a pessoa “mais obsessiva e diabólica” e que ele é capaz de “usar a própria mãe pra
conseguir o que quer!” (PELLEGRINI, 2005, p. 260). Pede para ele repassar todas
as informações sobre os gastos da campanha e Ari responde: “- Ta tudo no meu
computador. Senha Maquiavel – a voz de Ari saía fria e distante do corpo imóvel,
sentado com as mãos cruzadas e os olhos fechados” (PELLEGRINI, 2005, p. 260261).
A senha do computador com todos os gastos de campanha feitos por Ari é um
forte indício, senão uma confirmação, de que o candidato a vice tem conhecimento
do escritor Nicolau Maquiavel e que, se não lera, ao menos possui sólida noção do
conteúdo da obra O príncipe. Essa afirmação é possível depois da constatação de
todos os planejamentos e estratégias elaboradas por Ari para que a campanha
tenha êxito e que ele alcance seu objetivo, independente do que tenha que fazer.
Nicolau Maquiavel concentra inúmeros leitores de sua obra, pois sua doutrina
que fundamenta um comportamento político baseado no princípio de que “os fim
justificam os meios” pode ser utilizado e expandido para diversas áreas, como em
domínios comercial, industrial e econômico e não só para se conquistar um
principado.
No resultado final, Caboré é eleito com 12% de votos a mais do que o
deputado rival. Ari é internado em uma clínica para se tratar e quando volta para
95
casa lembra poucas coisas. O psiquiatra explica que uma das seqüelas, no caso de
Ari, é a “amnésia parcial” (PELLEGRINI, 2005, p. 280). As outras pessoas que se
empenharam muito na campanha como Marlene, Joana, Bel e Quim ganham um
cargo na Prefeitura, junto de Caboré; já os outros assessores são escolhidos por
eleição, como havia informado o prefeito eleito. Por causa da doença, Ari fica em
licença-saúde por tempo indeterminado.
Dessa maneira, a narrativa é finalizada demonstrando o desenrolar de uma
trama política na qual há a presença do jeitinho e como ele ocorre com tal facilidade
que mesmo as pessoas mais próximas não conseguem perceber a participação
neste esquema, ou, quando percebem, têm dificuldade de discernir o justo daquilo
que faz parte do jeitinho maquiavélico, pois como já foi citado, esse pode ser bom ou
mau, dependendo da situação e do ponto de vista do qual ele é observado.
Além disso, uma porção de humor e de ironia também são notados na narrativa
principalmente quando há a aparição de Ari Chimite. A loucura da personagem
torna-se por vezes humorística porque não se espera de uma pessoa, com as
características de Ari, certas atitudes, o que o expõe à sociedade, fazendo dele um
grande candidato à comicidade. Por outro lado, também é possível a percepção da
ironia em algumas passagens da obra, pois há uma desconstrução daquilo que é
provável e as pré-concepções acabam não se concretizando, indo de encontro às
expectativas do leitor.
3.2.2 Mundo perdido: o jeitinho e o crime
Neste capítulo será abordada a temática do jeitinho configurada no mundo da
criminalidade. De que forma se caracteriza o jeitinho no mundo do crime, como é
possível viver clandestinamente durante certo período de tempo? O jeitinho,
temática principal da dissertação, foi apresentado de formas diversas: o malandro, o
jeitinho maquiavélico e, agora o objeto principal de estudo será o aspecto mau,
perverso do jeitinho, a maneira com que as pessoas utilizam-se do tão conhecido
jeitinho para fazer o mal, para fugir da justiça, para viver na ilegalidade. É possível
viver na clandestinidade, ser um ninguém no meio de uma multidão, mesmo que sua
96
foto esteja estampada nos veículos de comunicação? Esse aspecto é abordado na
obra Mundo perdido, datada de 2006.
A personagem Máiquel é o protagonista do livro Mundo perdido, escrito por
Patrícia Melo que apresenta uma trajetória de vida na qual a clandestinidade se
torna possível através do jeitinho, das escapatórias. Máiquel é uma personagem
conhecida dos leitores de Patrícia, pois em outro livro intitulado O matador (1995),
que se tornou filme, a autora o apresenta como um matador de aluguel, além de
mostrar como tudo começou em sua vida.
Máiquel é um rapaz considerado honesto, com trabalho fixo, que não deve
nada para a justiça, até que uma aposta faz com que ele mude de aparência (corta e
pinta cabelo e bigode). A partir desse momento, ele se sente renovado, uma nova
pessoa. Por causa de uma desavença sem muita importância, que se transforma
numa promessa de vingança, num convite a um duelo, ele mata o primeiro homem,
noivo de Érica, que é bandido e odiado pelas pessoas da localidade onde mora.
Esse foi o início, pois após saber que Máiquel havia matado um homem, um dentista
oferece-lhe serviços odontológicos “gratuitos” em troca de outro assassinato e ele
aceita o acordo. Dessa forma, o enredo vai se configurando e apresentando a vida
bandida levada pelo protagonista, além de exibir todas as personagens que
aparecem na obra posterior e suas respectivas atividades.
A obra Mundo perdido traz à tona a idéia de que a vida pode ser vivida
ocultamente. Para isso, apresenta alguns métodos e atitudes que fazem com que a
personagem consiga seguir do sudeste do Brasil, São Paulo, até o norte, passando
por outro país da América Latina sem ser pego pela polícia. Através de meios ilícitos
configurados como jeitinho, a personagem protagonista mata, rouba e foge sem
nenhum empecilho legal.
No enredo deste livro, Máiquel é essa personagem. Ele é um foragido da
polícia que sai em busca da filha, Samanta, seqüestrada pela ex-namorada, Érica, e
por um pastor da Igreja Evangélica que se torna seu companheiro, o Marlênio. Neste
trajeto, o protagonista ignora leis, justiça e segue seu caminho. Ainda que foragido e
97
tendo a polícia sempre muito próxima, Máiquel consegue cometer outros crimes
violentos e, mesmo assim, não é capturado.
Já se passam 10 anos desde que Érica fugiu com Samanta. Essa é fruto de
uma relação de Máiquel com Cledir, a esposa a qual ele assassinara. Em uma
conversa de Máiquel com seu ex-sócio Santana, esse revela que: “O Marlênio disse
que você estrangulou sua mulher. Ele também abriu uma queixa-crime contra você.
E fez outra acusação grave: que você está ameaçando Érica de morte. O negócio
fedeu, Máiquel” (MELO, 2006, p. 51).
Érica não suporta a vida perigosa e de violência conduzida por Máiquel e
depois de ameaçar ir embora muitas vezes resolve deixá-lo levando consigo a
enteada Samanta. As duas fogem com Marlênio, pastor de uma Igreja Evangélica,
que mais tarde é promovido a bispo, juntamente com a esposa. Érica cuida de
Samanta desde que ela era bebê, já que essa perdeu a mãe muito cedo.
Máiquel, após fugir da polícia passando por diversas cidades, de esconderijo
em esconderijo, volta a São Paulo porque sua tia Rosa falece. Então, aproveita a
ocasião para sair em busca da filha. Para isso, tem que começar procurando por
Marlênio e Érica, pois eles estão com a menina a qual, provavelmente, desconhece
ser filha de outro casal. Érica a raptou quando a menina ainda era bebê; agora ela
tem pouco mais de 11 anos.
Marlênio, quando percebe que o matador está em busca de sua família, avisa a
polícia dando início a uma troca de residências e de cidades constantemente a fim
de tentar se livrar de Máiquel. O bispo sabe do perigo que corre, pois conhece as
vinganças do protagonista, o qual, mesmo sendo foragido do sistema prisional, está
à solta, à procura dos três.
Muitas pessoas fazem a ligação do jeitinho com a maldade. É o que o escritor
Lourenço Stelio Rega (2000) denomina como o “lado mau do jeitinho”. Na obra em
questão, é possível perceber tal posição do jeito a partir do momento em que o
foragido necessita de meios, freqüentemente ilegais, para poder continuar seguindo
98
seu rumo sem ser interrompido pela burocracia, pela legislação, ou mesmo pelos
padrões impostos pela sociedade.
Máiquel não conta com nenhum familiar. As ajudas e apoios que têm são de
profissionais como detetives, pessoas desconhecidas até então, ou mesmo
indicadas pelos próprios detetives. Ele confia, principalmente, em sua força, seu
espírito vingativo e sua habilidade em dar um jeitinho para encontrar o casal e a
filha. No contexto em que vive, ele é um indivíduo perigoso, que não mede esforços
para conquistar o que quer, porém usando da violência, do crime, do delito. Palavras
como suborno, trama, ajuste de contas, enfim, a maldade como um todo, o
acompanha por onde quer que passe. E seu caminho é longo, estando em diversas
cidades e indo parar, inclusive, num acampamento dos sem-terra. Envolve-se com
quadrilhas internacionais e tráfico de drogas com a finalidade de encontrar sua filha
e acabar com a vida de Marlênio.
O protagonista deixa claro que é foragido já na primeira frase do livro: “Sou
foragido” (MELO, 2006, p. 9). Ele tem a convicção do que pode e do que não pode
fazer para continuar nesta vida de clandestinidade. Sua certeza é tamanha que sabe
cada passo, cada atitude que deve seguir e ouve dicas de outras pessoas:
O segredo, dizia um rapaz que me escondeu quando fugi de São Paulo, o
segredo, se você não quer ser preso, é não andar com mais de três. Nem
sozinho. E, se estiver sozinho, enfia um jornal debaixo do braço, vão pensar
que você é honesto. [...]. Multidão não tem problema, contanto que você
evite estádio de futebol e baile funk, que é confusão na certa. (MELO, 2006,
p. 9).
Esse mesmo conhecido de Máiquel ainda lhe dá outros conselhos falando
sobre como, no ponto de vista dele, funciona o país chamado Brasil:
No Brasil, ele dizia, não é nenhuma vergonha ter ordem de prisão contra
você. Tanto faz, pobre, rico, branco, os caras lá em cima, digo, ministro,
vereador, bambambã, todo mundo tem. Brasileiro é assim, escroto mesmo.
Faz parte da nossa cultura roubar, sacanear. (MELO, 2006, p. 9).
A citação passa a impressão de que é muito normal o brasileiro levar a vida
sempre dando um jeitinho em tudo para não ser detido pela justiça, que o povo
99
deste país é culturalmente desonesto, não cumpridor de leis, que vive tentando darse bem sem se importar com a moral e a ética de uma população.
Durante toda a obra, Máiquel se vale do jeitinho para continuar vivendo na
clandestinidade, para dar prosseguimento a esta situação de foragido da polícia. As
pessoas que o apóiam, fora os profissionais contratados, o fazem, a maioria, sem
saber realmente quem é Máiquel e, principalmente, sem saber que ele é um foragido
e perigoso.
Nesta obra, Eunice é o nome da sua namorada. Moradora de Nova Iguaçu, no
Rio de Janeiro, trabalha como caixa em um supermercado. Pessoa de quem
Máiquel gosta muito, apesar de estimar pouquíssimas pessoas, afirma que por esta
mulher ele tem afeição. Ela até o acompanha no trajeto rumo ao encontro da filha,
de Érica e de Marlênio, mas sem acreditar que ele possa ser um foragido. Julga ser
esta história só mais uma brincadeira para despistá-la. Um dia, ela se cansa de ser
maltratada e de acompanhar esta vivência de Máiquel e, como Érica, o abandona.
Mesmo assim, o foragido fica ligando e pensando nela com freqüência.
Máiquel reflete muito sobre o passado e volta a São Paulo em busca deste
reencontro, mas dez anos já se passaram e ele não é mais o matador que foi
aclamado por uns, por ter acabado com a bandidagem local, e temido por outros.
Não. Agora ele é outro, não querido pelos lugares onde anda, é um foragido.
Deixou-se levar pelo ódio das coisas que tinham acontecido e se sente como se
tivesse feito o bem para as pessoas e elas o teriam traído, o que não ocorreu, na
verdade, porém ele reforça esse sentimento nocivo:
De repente, senti uma coisa ruim, um gosto ruim na boca. Ódio daquela
cidade, que só me fez mal. Trabalhei para eles. Cuidei daquelas pessoas.
Fiz coisas muito importantes. Ganhei até troféu. E meus amigos estavam
mortos. A casa vazia. Eu ali, um foragido. Gente escrota. Ódio da Érica
principalmente. A Érica não podia ter feito aquilo comigo. Fugir com um
pastor. Roubar minha filha. (MELO, 2006, p. 15).
Depois de se deixar invadir pelo ódio das pessoas do passado, Máiquel só tem
um propósito: “Estava na hora de procurar Érica e minha filha. Era isso que eu ia
100
fazer. Estava decidido” (MELO, 2006, p. 15). E assim inicia sua trajetória em busca
destas pessoas de quem, ao mesmo tempo, guarda amor e ódio.
Uma das primeiras atitudes de Máiquel é procurar seu advogado Sr. Haroldo,
para que ele o auxilie nos serviços financeiros, mas o avisa que “[...] ia ser chato pra
caralho se a polícia me achasse logo agora que vim te visitar” (MELO, 2006, p. 22).
O advogado entende a mensagem que não é tão subliminar. Doutor Haroldo é
incumbido de duas tarefas: retirar o dinheiro da poupança da tia Rose (recém
falecida) e vender a casa dela. O protagonista é o único herdeiro vivo da tia e por
isso recebe tudo o que ela deixou. Da poupança, Máiquel herda R$ 9.030,00 e da
casa, mais R$ 18.000,00, dinheiro esse que é utilizado para iniciar a viagem em
busca do grande objetivo: encontrar Samanta, Érica e Marlênio.
Após a compra de um carro, ele passa num despachante (uma sociedade entre
dois irmãos), para quem já havia trabalhado como matador, e solicita a confecção de
documentos falsos: a identidade e uma carteira de motorista. A falsificação faz parte
do ramo destes despachantes. Máiquel percebe que, mesmo após 10 anos
decorridos, as coisas continuam iguais e não há muita dificuldade para quem tem
poder aquisitivo. Diz ele: “as coisas estavam iguaizinhas. Era só pagar. Nada muda,
na verdade, se você tem dinheiro e está disposto a pagar o preço. E eu estava. Não
podia sair por aí desprevenido” (MELO, 2006, p. 27-28). Após a falsificação, ele é
Rogério da Silva Pereira (MELO, 2006, p. 30), nome que consta nos novos
documentos.
Em uma passagem da obra, Máiquel afirma a facilidade que é viver na
clandestinidade no Brasil. Com a ajuda do jeitinho tudo é possível, até mesmo se
passar por qualquer brasileiro, honesto, cumpridor das leis, impunemente, sem ser
notado, nem importunado, mesmo sendo um matador perigoso, que já foi capa de
jornal e é procurado pela polícia:
De repente me deu uma pressa, uma vontade louca de mudar minha vida,
de encontrar Érica, de ter minha filha perto de mim, talvez ainda fosse
possível fazer alguma coisa, pensei, nós três juntos novamente, começar
tudo de novo, em algum lugar, o Brasil é tão grande, ninguém te acha se
você não quiser, se a Érica me perdoasse, se eu perdoasse a Érica, juntos,
com documentos falsos, sei lá, a gente podia começar uma vida nova, numa
101
cidadezinha, um emprego, tudo isso me passou pela cabeça. (MELO, 2006,
p. 28-29).
Divani é outra personagem feminina, dentre tantas, que se envolve com
Máiquel. Sabendo do seqüestro da sua filha, tentando ajudar na solução do crime e
sem saber do passado de Máiquel, a mulher apresenta-o para Bruno, um cabo da
polícia militar. Esse, no início, não o reconhece, mas mais tarde lembra-se dele e
sabe que a personagem é um foragido. Bruno teve o primo morto pelo protagonista.
Assim, o cabo vai atrás dele ao perceber que a casa que foi da tia Rosa foi vendida
e, ao encontrá-lo num hotel, dá voz de prisão, mas em conseqüência, acaba sendo
morto por Máiquel, com três tiros.
O matador contrata um detetive chamado Jonas que rastreia o paradeiro da
família de Marlênio e informa ao cliente que eles estão em Campo Grande, no
estado do Mato Grosso do Sul. O casal uniu-se em matrimônio e Samanta recebeu o
sobrenome deles. Assim, o protagonista decide iniciar sua trajetória por lá utilizando
o dinheiro que recebera.
Eunice questiona Máiquel sobre sua vida pregressa. Ela não sabe quase nada
sobre ele e reclama porque ele é “cheio de proibições [...]. O que mais não sei sobre
você? Um monte de coisa, admiti, sou um assassino perigoso. Foragido. Já mandei
muita gente para o beleléu. Ela não sabia se acreditava” (MELO, 2006, p. 47).
Já iniciada a viagem em busca do casal e da filha, Máiquel atropela um
cachorro e resolve ficar com ele, mesmo contrariando a vontade de Eunice que não
simpatiza com o animal. O cachorro, batizado de Tigre, torna-se seu companheiro
para todos os momentos. Em todas as viagens, ao brigar e ser deixado por Eunice,
em encontros com outras mulheres, onde quer que Máiquel vá, lá está Tigre, seu
cachorro-companheiro. Se houver qualquer tipo de proibição para o animal ir a
algum lugar, então seu novo dono também não vai.
Antes de chegar ao destino, Máiquel tenta contato, via telefone, com Érica, mas
só quem o atende é a empregada ou a secretária eletrônica que informam que a
família não está em casa. Nestas ligações ele não se identifica e pede para dizer
que um amigo ligou. Com isso, Érica e Marlênio passam a desconfiar de que
102
Máiquel esteja atrás deles e provavelmente rastreando-os, já que ele havia
conseguido o número do telefone. Dessa forma, o casal arruma as malas e troca de
cidade freqüentemente, deixando tudo para trás: vida construída, casa, escola,
amigos e parte em busca de um lugar seguro. Mas este espaço livre de perigo, não
existe. Não para Máiquel que não mede esforços para ir ao encontro do casal e
resgatar a filha Samanta.
A história de Máiquel parece ser de abandono desde pequeno. É a narração de
acontecimentos que todos já ouviram ou presenciaram, de alguma forma. Ao citar
sua trajetória adulta, de ser capaz de sair em meio a uma multidão sem ser visto,
mesmo sendo foragido, se lembra da infância: “A primeira coisa que meu pai me
ensinou foi que eu era invisível. E a segunda foi que eu não valia nada. [...] Isso foi
ruim durante muito tempo. Hoje é bom” (MELO, 2006, p. 55). É assim que Máiquel
se vê: um ninguém, um qualquer e tal sentimento não se dá após a vida de
bandidagem e sim desde criança, pois ele aprende isso em casa, ouvindo no próprio
lar.
Entretanto, observa-se que Máiquel também tem vontade de se tornar um
homem livre, alguém que não precise se esconder, se passar por outro, viver
correndo perigo e sob pressão de a qualquer momento ser flagrado e voltar para a
carceragem:
logo depois que tudo desmoronou, quando minhas fotos apareciam nos
jornais, quando as televisões e rádios falavam de mim, quando eles
estavam em todo lugar, os policiais, me procurando, pensei que nuca mais
ia conseguir sentir o que era isso, sair na rua, invisível, anônimo, livre, sem
ninguém me perseguindo, me aporrinhando. [...] E, quando tudo piorou, tive
que me enfiar numa série de muquifos por aí, ficar meses e meses
trancafiado, olhando para o teto, o revólver sempre embaixo do travesseiro.
(MELO, 2006, p. 55).
Após a sua prisão, por ser um matador, Máiquel ganha fama de perigoso e
passa a ser conhecido por diversas pessoas. A situação tem seu lado confortável,
de celebridade, mesmo que seja através do crime, mas por outro lado não é essa a
vida que ele quer. Ele simplesmente pede para voltar a ser um anônimo, pois
acredita ser mais fácil conciliar a vida dessa forma, até porque, para alguém que é
ou já foi do crime, o Brasil tem suas vantagens:
103
Levei um tempo para ser um nada novamente e para aprender que o Brasil
é um imenso buraco, ninguém te acha se você não quiser. Ninguém te vê,
essa é a verdade. Você pode sair. Só precisa esperar eles te esquecerem.
E nem demora muito. Porque a verdade é que você não vale nada. (MELO,
2006, p. 56).
Máiquel chega à casa de Érica, em Campo Grande, mas ela já havia partido
junto de sua família para outro lugar onde pudesse se esconder. “Não fazia muito
tempo que eles tinham deixado o local” (MELO, 2006, p. 70). Então, sua ida até lá foi
em vão. O caminho a percorrer, de agora em diante, será mais longo e em outra
direção.
Na trama, além de tantas outras pessoas que ajudam Máiquel na trapaça, no
jeitinho, também aparecem os detetives. Jonas é o primeiro, mas como a
personagem protagonista necessita trocar de cidade com freqüência, o detetive
transfere seus serviços para Anderson, grande amigo seu, da mesma profissão, que
mora em Campo Grande, pois a distância de Jonas, residente em São Paulo, em
relação ao caso atrapalha as investigações e Anderson, que está mais perto, pode
dar um apoio melhor. Então, Máiquel vai falar com Anderson, deixa-o informado
sobre o que está acontecendo e afirma que precisa saber urgentemente do
paradeiro de Samanta, sua filha. Anderson diz que vai conseguir notícias o mais
rápido possível, mas a primeira novidade não alegra Máiquel:
Érica se mandou, e você está perdendo seu tempo aqui em Campo Grande,
ele disse. Pode fazer a mala e se picar. Ela deixou a cidade faz quatro dias.
O safado do marido foi junto. Venderam o sítio, aliás, esse era o único
imóvel que estava no nome deles. O resto era alugado. Sumiram. (MELO,
2006, p. 86).
O casal mudou-se para Cuiabá, informação que Máiquel obtém com a
empregada da casa vizinha a qual Érica morava. Então, ele quer seguir para Cuiabá,
mas o detetive diz que Érica “[...] a essa altura deve estar indo para Roraima. O
projeto é Boa Vista. Uma igreja para índios. Foi isso que eu descobri” (MELO, 2006,
p. 93).
O detetive Anderson leva Máiquel até um acampamento de sem-terra, perto de
Rondonópolis, em Mato Grosso, pois ali o foragido está mais seguro, uma vez que
104
capangas e seguranças contratados por Marlênio estão atrás dele e querem matá-lo
para acabar com o tormento da família. Marlênio e Érica conhecem Máiquel o
suficiente para saber que ele não irá desistir até que os encontre e tente o resgate
de Samanta, e o assassinato do bispo Marlênio, de quem Máiquel guarda grande ira
e, mesmo estando foragido é capaz de encontrá-los antes da polícia. Por esse
motivo, Marlênio se cerca de pessoas para tentar se defender.
No acampamento dos sem-terra, Máiquel estaria um pouco mais protegido
desses capangas e da polícia também, pois eles não invadem estes locais a procura
de foragidos, exceto através de denúncias, o que não é o caso. Anderson explica:
“aqui não entra polícia. Isso é área federal” (MELO, 2006, p. 94).
Novamente, a capa de um jornal ilustra a foto de Máiquel falando sobre o
perigoso foragido. Essa mesma matéria já havia sido publicada num veículo
impresso em São Paulo, então Máiquel já tinha conhecimento do conteúdo.
Anderson o alerta: “Sabe o que significa para um delegadinho daqui pegar sua
cabeça? Porra, é a loto. É bom você se enfiar no mato, descobrir um caminho
alternativo. Os caras de Campo Grande disseram que vão te achar de qualquer jeito”
(MELO, 2006, p. 94). Esse é um alerta para que o foragido se esconda porque a
situação não é tão favorável naquele lugar.
Percebe-se, com facilidade, através das falas de Máiquel, que quando se tem
dinheiro fica muito fácil ser um ninguém, passar despercebido, pois um pouco de
dinheiro tem tanto poder que compra tudo: roupas, materiais, silêncio e até pessoas,
como diz: “com dinheiro a gente é querido em todo lugar” (MELO, 2006, p. 100). No
caso da personagem, ele não possui tanta riqueza, então, quando não é possível se
valer desse método, ele escapa utilizando as artimanhas do jeitinho.
Mas ele não se importa, o seu maior interesse é fugir e encontrar a filha e o
casal. Então ele declara: “Claro que morri com uma grana. Aliás, nessa confusão
toda, boa parte do meu dinheiro desapareceu. Tive que pagar fulano, sicrano, disse
Anderson. Foda-se, pensei. Contanto que eu continuasse livre e chegasse em
Roraima” (MELO, 2006, p. 95).
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No acampamento dos sem-terra, Máiquel conhece Ana, a professora do lugar,
com quem manteve um envolvimento amoroso. Com isso, ele arruma confusão com
o ex-companheiro, Osório, acaba esfaqueando-o e tendo que fugir para não ser
denunciado à polícia, pois dessa forma os homens poderiam invadir o local atrás do
tal foragido perigoso que aparece em muitas edições dos jornais.
Uma rebelião ocorre em Rondonópolis e deixa Máiquel atento, pois numa
revolta como essa o número de policiais nas ruas aumenta e ele não quer correr
risco algum. Assim, entra em contato com Anderson e pergunta qual é a melhor
maneira de chegar a Roraima e ele explica a Máiquel: “Pega o rumo norte e se
manda. Se embrenha na mata, na floresta. Pega as cabriteiras deste país, quem vai
te achar?” (MELO, 2006, p. 102). O detetive também é tão ardiloso quanto seu
cliente, pois sabe como proceder em todas as urgências de Máiquel.
Na nova fuga, Máiquel conhece Josias, um caminhoneiro que ama sua
profissão. Ele é apresentado por Beto, primo de Ana e que também mora no
acampamento. Beto arruma esse esquema para Máiquel para ele poder sair
daquelas instalações e fugir em direção a Cuiabá após ter esfaqueado Osório. Como
pagamento, Máiquel teve que deixar seu carro com Beto que o leva para a saída de
Rondonópolis e explica que um homem, chamado Josias, virá buscar e levá-lo para
Cuiabá. Conforme o combinado, uma Kombi pára junto dele e uma pessoa diz ser
amigo do Josias e que tem como função levá-lo até o caminhoneiro. E assim o fez.
Já em viagem com o recém-conhecido, Josias confessa que está cansado de ser
honesto no Brasil. “Aqui no Brasil, se você quer ser alguma coisa na vida, tem que
roubar, tem que ser ladrão. Todo mundo rouba” (MELO, 2006, p. 106).
No caminho a polícia ataca o caminhão. O motorista instrui Máiquel a ficar no
veículo e não falar nada que ele resolve o problema. A atitude impressiona o próprio
foragido. “O esquema funcionava de verdade. Antes que eu achasse meus
documentos falsos na mochila, ele (Josias) já estava de volta, tudo bem, ele disse,
estamos liberados” (MELO, 2006, p. 108-109).
Máiquel chega a Cuiabá, mas seu destino é Boa Vista, onde estão Marlênio e a
família. Porém, na última conversa com Anderson, descobre que o casal havia
106
desistido da capital de Roraima e rumara para La Paz, na Bolívia. Anderson diz para
Máiquel ir a Corumbá e pegar o Trem da Morte, pois assim ele sai da jurisdição
brasileira, ou seja, a polícia do Brasil não pode mais persegui-lo e ele continuará
atrás do seu objetivo.
Para chegar a Corumbá, Máiquel arruma carona de outro caminhoneiro.
Chegando ao local, o foragido é informado de que deve procurar o Nei que é primo
do detetive, dono de um açougue e de um abatedouro clandestino. Este tem um
envelope com fotos e fitas de Érica, enviadas por Anderson. Máiquel oferece
dinheiro para que Nei o ajude a chegar a Porto Soares, primeira cidade boliviana,
pois está encontrando dificuldades para andar de ônibus ou táxis já que Tigre, seu
cachorro, o acompanha. Nei topa. Após deixá-lo perto do Ministério do Governo
Boliviano, Nei pergunta se Máiquel sabe como as coisas funcionam:
Eu não sabia de nada.
Você vai precisar de visto para atravessar a fronteira.
E como é que eu faço?
Vai lá com seu passaporte e diz que quer o visto, Insista, porque eles fazem
corpo mole, para te pegar mais tarde na Bolívia sem visto e te achacar.
Até parece que eu tinha passaporte.
Depois, vai naquele guichê ao lado e compra a passagem. (MELO, 2006, p.
127).
A passagem pelo Ministério ocorreu sem problemas, mas ao chegar para
comprar a passagem, o guichê estava fechado e só abriria às seis horas do outro
dia. Após esperar, ele compra o bilhete e aguarda o trem que deveria partir às
quinze horas, mas que acaba saindo somente às vinte e duas horas, numa viagem
que dura dezoito horas. Para andar no trem, Máiquel ainda tenta outro disfarce, que
para o povo, em geral, não é utilizado para se ocultar e sim, como roupa comum:
“chinelo, bermuda, camiseta com a foto do Che Guevara, tudo normal, discreto, na
boa, não tinha nada de especial para ficarem me olhando. Sei lá, sou foragido. Não
gosto que me encarem” (MELO, 2006, p. 132).
Neste trajeto, Máiquel chega à estação da cidade de Santa Cruz de La Sierra e
pretende pegar um ônibus para La Paz, mas, em contato com o detetive, descobre
que Érica muda novamente de planos e está em Belém, capital do estado do Pará,
107
hospedada num hotel chamado Nacional, pois lá irá ocorrer uma reunião da igreja
com evangélicos de todo o país.
Outra vez Máiquel tem que mudar seus planos e rumar para Belém. Para isso,
conta com a ajuda de Lúcia, ex-mulher de Nei, a quem ele conhece em Santa Cruz
de La Sierra e que arrumou uma carona de avião, com um amigo, o Rôni. Mas,
como nada é de graça, Máiquel deve fazer um favor ao aviador em troca da
condução. Diz ele: “estou indo para Porto Velho. Depois te levo para Belém.
Perguntei qual era a minha parte. Me dar segurança numa entrega” (MELO, 2006, p.
153).
Rôni também sabe de toda a vida bandida levada por Máiquel, pois Lúcia
arrolou tudo sobre o seu passado:
Sabemos que você é um foragido. Sabemos que você matou sua mulher.
Sabemos que você matou uma porrada de gente. Sabemos que você matou
um policial em São Paulo. Que você foi sócio de um delegado corrupto.
Cara, sabemos até a cor da tua cueca, disse Rôni, quando perguntei como
ele sabia que eu tive uma firma de segurança patrimonial. (MELO, 2006, p.
155).
De Porto Velho, onde o avião pousa, os dois se dirigem com um carro alugado,
a uma cidade chamada Mocambo, onde mora o irmão de Rôni, o Adailton. Nessa
passagem, Rôni pede para que Máiquel assassine seu irmão, pois ele tem feito
muita coisa errada, é um traidor, e se o protagonista, a mando de Rôni não o matar,
os chefões vão torturá-lo até a morte. Sem escolha, Máiquel vai até a casa de
Adailton e executa o serviço, mas depois se arrepende, pois seu objetivo é o
Marlênio e não o irmão de Rôni que não tem nada a ver com a sua história. Depois
do assassinato, os dois partem para Belém e Máiquel procura um hotel para ficar.
Após se instalar num hotel barato, o matador vai até o hotel Nacional, onde
está a família, se apresenta como pastor e diz ter um encontro com Marlênio. O
recepcionista informa que não há nenhuma pessoa com aquele nome hospedado ali.
Depois de um suborno, colocando dinheiro sobre o balcão, aparece o gerente do
hotel dizendo que se lembra de Marlênio e que eles deixaram o hotel há dois dias.
Então, Máiquel liga para o detetive que diz que só continua a dar informações se ele
108
pagar. Contrariado, vai ao banco, faz um depósito e liga para o detetive que informa
que o foragido deve procurar pelo bispo Otávio Freitas. E ele não titubeia, vai em
busca do tal bispo, mas é levado para conversar com o pastor Edmundo que diz
estar fazendo a intermediação entre ele e o bispo já que esse não pode atendê-lo no
momento. Máiquel inventa que é investigador de polícia e que está atrás de um
assassino perigoso chamado Máiquel e que esse procura por Marlênio, que corre
risco de morte. Imediatamente, o pastor Edmundo
Foi logo abrindo o jogo. Disse que o bispo Marlênio e a bispa Érica estavam
com o bispo Otávio numa viagem de lazer, de barco, e estariam em Manaus
dentro de alguns dias num encontro evangélico para discutir os trabalhos
missionários. (MELO, 2006, p. 171).
Com as informações que precisa, Máiquel procura um navio com destino a
Manaus. No caminho, a embarcação faz uma parada em Santarém, a mais
demorada. As outras, em Almeirim, Prainha, Monte Alegre, Óbidos e Juruti foram
somente para embarque e desembarque. Esta viagem levou, aproximadamente,
cinco dias. Nela, Máiquel conhece um homem que se apresenta como Francisco.
Mais tarde, descobre que tal homem, além de não se chamar Francisco (o nome que
consta no Registro Geral é Éder), também não é seu amigo e está ali para matá-lo a
pedido de Marlênio. Após ter a farsa descoberta,
o falso Francisco contou que o pastor Edmundo avisou o Marlênio e a Érica
que eu tinha ido na igreja, em Belém. A polícia também tinha sido
informada. Estão sabendo que você está chegando em Manaus, ele falou. A
polícia convenceu Marlênio a ficar em Manaus e dar a palestra na cidade.
Vão usar o Marlênio como isca para te pegar. Esse é o plano. Querem que
você pense que eles não sabem de nada. Só vão te pegar no dia em que
você aparecer para ver sua filha. [...]. (MELO, 2006, p. 183).
Marlênio havia mandado o homem atrás de Máiquel antes da polícia para
acabar com ele. Porém, o vingativo matador, sem piedade das súplicas do homem
para ficar vivo, deu dois tiros e acabou com ele ali, no meio do mato, na parada feita
em Santarém, sem testemunha alguma.
Enfim, Máiquel chega a Manaus. Lá, uma adolescente chamada Giane, com
aproximadamente 15 anos, com cara de índia, presta-se a ser sua guia turística
enquanto ele estivesse naquele lugar. Leva-o para o hotel Amazonas Palace, que,
segundo ela, é barato.
109
Em Manaus, Máiquel tem o maior cuidado, pois sabe que, além dos
seguranças e capangas contratados por Marlênio, ainda tem a polícia à sua espreita.
Como um foragido, conhecedor desta vida, Máiquel examina tudo minuciosamente,
pois não quer ser pego de surpresa: “Você tem que olhar tudo, essa é a regra.
Quem está na frente, atrás, dos lados. Porque é assim que você dança. Você relaxa,
pensa que está tudo sob controle, e então, quando menos espera, alguém mete um
balaço na sua fuça” (MELO, 2006, p. 186).
Ao se instalar no hotel, Máiquel recebe novas informações de Anderson: “o
casal-bíblia já deve estar aí, ele falou. No hotel Veredas” (MELO, 2006, p. 187).
Giane, sem saber de nada sobre Máiquel, o acompanha e fica com ele no hotel, mas
não há nada entre o casal a não ser ajuda mútua: Máiquel deixa Giane dormir no
quarto e alimenta-a, enquanto essa o acompanha nos lugares em que precisa para
espionar e montar uma estratégia a fim de acabar com Marlênio. Para executar o
plano, Máiquel compra uma pistola e um silenciador e vai até o hotel. Percebe que lá
há viaturas e policiais fazendo a segurança da família de Marlênio.
Com o cabelo raspado, um cavanhaque, boné e óculos escuros, Máiquel está
pronto para o encontro com Marlênio. Primeiro, se dirige ao estádio onde o bispo vai
palestrar. Tenta atirar dali, mas está muito longe, o que impossibilita a tarefa. Vai
embora com Giane e no caminho aluga um gol preto. Estaciona o carro um pouco a
frente do hotel onde estão hospedados Marlênio e a família; deixa Giane lá, pega a
pistola, desce do carro. Passa sem problemas pelo policial responsável pela
segurança, pois esse dorme dentro da viatura. Ao entrar, encontra uma sala com
vidros escuros para o uso de computadores. Vai até lá, lugar onde há mais facilidade
em espiar a chegada de Marlênio sem ser visto. Samanta, sua filha, aparece e fala
com ele, mas julga se tratar de um desconhecido, ao menos para a menina é. O
matador reconhece Érica, no saguão. As duas entram no elevador e vão em direção
ao quarto.
Marlênio chega. Passa pela recepção em direção ao elevador, entra e quando
esse já está quase fechando a porta, Máiquel entra. O bispo ainda tenta sair, mas foi
em vão. Máiquel dá dois tiros na barriga dele. O elevador abre a porta no quinto
110
andar e lá está Samanta, à espera do pai Marlênio. Ao ver aquela cena do pai
ensangüentado e Máiquel com a arma em punho, Samanta sai correndo e entra no
apartamento sendo seguida pelo matador.
Lá estão os três: Máiquel, Érica e Samanta. Érica começa a rezar e não
responde as incessantes perguntas de Máiquel sobre se Samanta sabe a verdade
sobre sua vida, seu nascimento, seus pais verdadeiros. Ela só reza e pede pela vida
da filha Samanta.
Com receio de que alguém descubra o corpo de Marlênio, Máiquel dá seu
último recado à Érica: “Vocês acabaram com tudo, eu disse, você e o Marlênio”
(MELO, 2006, p. 204). Tranca as duas no banheiro, sai do Veredas sem ser visto,
pega o carro, vai até seu hotel, paga a conta, deixa Giane na calçada e, em
companhia do cachorro Tigre, entra no carro e parte.
A obra mostra toda a trajetória de Máiquel, um foragido que sai de São Paulo,
região sudeste e vai parar em Manaus, capital do Amazonas, no norte do Brasil. O
país possui uma área de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, o que equivale a
47% do território sul-americano46. O foragido em questão consegue andar por
aproximadamente 19 lugares, incluindo estados e cidades. Até em território
estrangeiro ele esteve (Bolívia). Mesmo sendo um bandido de alta periculosidade,
pois carrega em sua ficha muitas mortes, procurado pela polícia de muitos estados,
principalmente daqueles pelo qual ele passa e tendo a foto estampada em muitos
jornais do país, Máiquel consegue sair de São Paulo e ir até Manaus sem ser pego.
Não bastando todas as mortes das quais é acusado, no trajeto o qual percorre,
Máiquel ainda comete mais quatro homicídios. Alcança seu objetivo sem ser pego e
continua foragido.
Toda esta trajetória de assassinatos, de investigações, de vida clandestina,
teve a ajuda de algumas pessoas que facilitaram o caminho para Máiquel encontrar
Marlênio, Érica e Samanta. Foram mais de 15 pessoas, a maioria desconhecidas,
que não sabiam a história real de Máiquel. Outras nem tanto, pois já eram desta vida
46
Informação extraída do portal do Governo Brasileiro: http://www.brasil.gov.br/pais/sobre_brasil/
111
clandestina, já trabalhavam e viviam com o auxílio do jeitinho, da bandidagem, do
roubo, do trambique.
Para a análise da dissertação, todos esses dados são importantes, entretanto,
o que mais merece consideração é a maneira com que o jeitinho é utilizado para a
sobrevivência através da clandestinidade, da imoralidade, da falta de ética.
Não é possível negar que o jeitinho é utilizado por Máiquel para sobreviver,
para não ser preso novamente, mas as conseqüências de suas atitudes para chegar
ao objetivo são inaceitáveis, sem citar o próprio objetivo que é o de tirar a vida de
um homem pelo fato de que sua ex-namorada havia raptado sua filha e fugido com
este homem. Isso é fazer justiça com as próprias mãos, o que não é legal no Brasil.
A partir destes trechos da obra é possível verificar que o jeitinho na narrativa,
ocorre em diversas instituições, tais como com o advogado, com os despachantes,
detetives, polícia, em estabelecimentos como o dos sem-terra. O que é de admirar é
que tais instituições devem servir para fazer com que a legislação seja cumprida,
porém não é o que os trabalhadores de tais órgãos fazem, como afirma Rega (2000,
p. 89):
Hoje, para sobreviver no meio de tanta complicação burocrática, além do
despachante há outros profissionais do jeito: o advogado, o contador e as
empresas lobistas que vendem verbas federais aos municípios ou que
facilitam favores junto às autoridades.
A instituição do direito47 é um sistema de normas determinadas por um
conjunto de pessoas ligadas às instituições que determinam o que é legal e o que
não é. Assim, é desta instituição a responsabilidade de predeterminar as regras que
devem ser seguidas por uma sociedade para que a ordem se mantenha. Na obra
Mundo perdido, o advogado de Máiquel auxilia-o na fuga no momento em que faz a
retirada do dinheiro da herança no banco e envia-o para o matador, pois assim, esse
não aparece e não corre o risco de ser preso. O advogado, que supostamente é
operador do direito, não cumpre com sua função profissional, ao contrário, ele
47
As informações sobre o direito, os despachantes, a polícia, os detetives e o Movimento dos SemTerra foram retiradas de pesquisas feitas sobre os assuntos em questão e transcritas, de forma
indireta, para a dissertação.
112
favorece o criminoso através do jeitinho sem ser incomodado por ninguém, uma vez
que ele está (ou deveria estar) exercendo uma função legal.
O serviço dos despachantes deveria ser o de cuidar de documentos, de
atender ao público que necessita de algum tipo documentação, como de serviços
veiculares, escrituras, etc., mas não é isso que fica demonstrado na obra. O
escritório de despachantes, nesse caso, serve como fachada para uma quadrilha de
falsificadores de documentos. Eles têm o poder de autenticar, de validar declarações
legais, mas utilizam o escritório com fins escusos, ilícitos, pois é provável que este
serviço lhe dê mais rendimentos financeiros do que o trabalho honesto, o de
despachante como é legalizado.
O mesmo ocorre com a polícia, que tem a função de aplicar determinadas leis
para garantir a segurança da população. No entanto, na obra, vê-se a instituição a
serviço da criminalidade, obtendo e repassando informações sigilosas às pessoas
favorecedoras do crime, da bandidagem. Os detetives, por sua vez, também têm o
exercício de sua função legalizada, embora não regulamentada no Brasil. A tarefa
desses é a de investigar; independentemente de ser autônoma, a profissão está
interligada aos serviços da polícia. Em Mundo perdido, é possível percebê-los
trabalhando em prol de Máiquel, apesar de saberem do histórico de crimes e
assassinatos cometidos pelo matador, ou seja, auxiliando, através do jeitinho,
alguém que deveria estar detido.
O movimento dos sem-terra é um movimento social brasileiro que tem como
objetivo a implantação da reforma agrária no país. Porém, Máiquel utiliza o
acampamento como esconderijo para manter-se seguro contra qualquer investida
policial, não tendo nada a ver com os moradores do local, tampouco com as lutas do
movimento. Impressiona o comentário do detetive que o esconde no acampamento,
pois este tem a total convicção de que ali o matador não precisa se preocupar com a
polícia, ao menos que haja alguma denúncia.
E por fim, o jeitinho se apresenta através do suborno, quando Máiquel, para
conseguir uma informação, oferece dinheiro ao gerente do hotel que aceita e conta o
que o protagonista quer saber. Assim, volta-se ao comentário do matador afirmando
113
que “dinheiro compra tudo”, e mais ainda, esta é a confirmação do popular cada
homem tem seu preço. É possível perceber, precedido da teoria, a linha tênue que
separa o jeitinho da corrupção e o que facilita tal situação é a impunidade.
Portanto, o jeitinho mau está presente tanto na literatura quanto na sociedade
brasileira, tendo mais ênfase na prática do que na teoria. Tal afirmação pode ser
confirmada, não só através dos estudos apresentados por pesquisadores sobre o
jeitinho, como também pelas narrativas ficcionais da literatura brasileira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A dissertação A configuração do jeitinho brasileiro em narrativas literárias teve
como objetivo principal delinear as formas de constituição do jeitinho brasileiro em
narrativas ficcionais. O foco principal são os dois romances contemporâneos
Meninos no poder e Mundo perdido, mas volta-se a atenção para outros romances
da tradição em que o tema está bastante evidente: Memórias de um sargento de
milícias, Macunaíma, e nos contos: Teoria do medalhão e O homem que sabia
javanês.
O capítulo que trata da ironia visa somente mostrar que os textos
caracterizados pelo irônico não estão em busca de uma verdade acabada e não
apresentam uma afirmação para o leitor. As personagens analisadas despertam o
receptor para a tentativa de responder às interrogações exibidas. Como exemplo,
cita-se a obra Meninos no poder, na qual a honestidade vence as eleições, mas a
114
forma de condução do governo, nos próximos quatro anos, continua sendo uma
promessa, uma vez que a obra acaba com o resultado das eleições, não deixando
indícios de como será conduzido o governo nos próximos anos. Dessa forma, temse uma ironia, pois a questão não está encerrada. Ari Chimite utiliza o
maquiavelismo de forma incessante, doentia. Já Caboré crê na possibilidade de um
governo mais justo e igualitário, o que mostra certa utopia em relação a uma política
melhor, na qual a dignidade vence.
A partir dos estudos realizados, constata-se que o jeitinho sobrevive ao tempo,
porém, no decorrer das épocas, ele vai tomando formas e conceitos diversificados.
Personagens como Leonardo e Macunaíma utilizam-se da instituição para se dar
bem e o grande objetivo deles é fazer de tudo para não precisar trabalhar, preferindo
a vida boa a uma ocupação que lhes seja fatigante.
Já o filho a quem o pai pretende tornar medalhão e com a personagem
Castelo, dos contos Teoria do medalhão e O homem que sabia javanês,
respectivamente, o jeitinho já ultrapassa a simples vontade de não fazer nada, do
ócio improdutivo e passa para um jeitinho mais maquiavélico, mais astuto. Essas
duas personagens utilizam a instituição para poder ter mais sucesso, serem
brilhantes perante a sociedade. Isso é possível constatar em uma das falas do pai
do rapaz que está entrando na maioridade, no conto Teoria do medalhão, quando
ele aconselha o filho a ter como segunda opção a profissão de medalhão, que
servirá como uma segurança para a vida futura. “[...] assim como é de boa economia
guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um
ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o
esforço da nossa ambição” (MACHADO DE ASSIS, 1959, p. 288). Dessa forma,
percebe-se que o filho poderia ter outras profissões, mas que também se
empenhasse para ser medalhão.
Algo parecido ocorre com Castelo, personagem do conto O homem que sabia
javanês. Ele tem um gosto pela malandragem, pela vida fácil. Mesmo podendo ter
outros ofícios, prefere o da embromação, o da trapaça, e comprova isso quando se
candidata a uma vaga de professor de javanês, língua que ele não conhece. Seu
objetivo é alcançar a boa vida sem esforço; não quer se empenhar, exercer um
115
ofício legal na sociedade, prefere viver das aparências a ter uma atividade digna que
lhe exija muito esforço.
Nos romances contemporâneos, a forma de jeitinho existente supera os
demais, ultrapassando as malandragens que as outras obras citadas anteriormente
mostram. Este jeitinho também é mais específico, mais objetivo: na política, um faz
de tudo para ganhar uma eleição e outro, no mundo do crime, para fugir, esconderse. Essa especificidade não é percebida nas duas primeiras obras, quando as
personagens utilizam esta instituição com uma finalidade diferente a cada momento.
Em Meninos no poder, Ari Chimite “[...] é capaz de usar a própria mãe pra
conseguir o que quer!” (PELLEGRINI, 2005, p. 260), como afirma o companheiro de
chapa, candidato a prefeito Carlos Caboré. Constata-se que a personagem Ari vai
mais além do que os malandros caracterizados nas outras obras, aqueles que
simplesmente querem ter vida boa com pouco esforço. Ele é capaz de mentir, burlar,
criar situações que comprometam fortemente sua imagem e a dos que o cercam, se
for descoberto. Sem escrúpulos, para ele não há limites, pois a cobiça pelo poder,
nesse caso específico, leva Ari às últimas conseqüências, sem medo do que possa
vir a acontecer, para que seus planos dêem certo. Ele se previne de todas as formas
para alcançar tal objetivo. Não admite perder, quer ser o melhor, quer vencer a
batalha política a qualquer custo sem medir esforços físicos, emocionais ou
psicológicos.
Além de todas essas características, Ari ainda parece ser um louco, ou um
doente e isso se torna cômico no decorrer da narrativa. Ele consegue demonstrar
dois lados distintos: o maquiavélico e o risível. Por mais que demonstre ser um
estrategista, também faz com que o leitor ria de certas situações, transformando,
assim, alguns trechos em pura comicidade. Ari está nesta gangorra entre o jeitinho
mau e o riso, mas na política, este jeitinho apresentado pela personagem é fatal e
acaba definindo a maior parte do enredo.
Em Mundo perdido, Máiquel é um foragido que usa a chantagem, a tortura,
matando se preciso for para conseguir alcançar sua meta. Para ele, correr riscos é
natural. Não admite pensar na possibilidade de perder, de não encontrar a filha e,
116
principalmente de voltar para a prisão. A personagem quase atravessa o país em
busca do seu objetivo. No trajeto vai descobrindo soluções para alcançá-lo, mesmo
que isso envolva crimes, tráficos, roubos e a morte de pessoas, algumas quase
desconhecidas. Seu grande pesadelo é a possibilidade de voltar para o sistema
prisional, lugar pelo qual já passou. Máiquel é um conhecedor das leis da justiça e
das leis dos malandros. Com a ajuda de conhecidos ele utiliza-se do jeitinho para
escapar da polícia e reencontrar sua filha Samanta.
Máiquel se envolve no mundo do crime de tal maneira que voltar atrás sem
sofrer conseqüências é impossível. Ele não está sozinho, pois conta com o apoio de
pessoas de boa índole, algumas delas não têm conhecimento da vida ilegal levada
por ele; outras o conhecem, sabem do seu passado enredado pelo crime e, mesmo
assim, tentam facilitar a fuga para o protagonista poder ir atrás do seu objetivo. O
maior problema está no fato de tais pessoas, além de conhecerem seu passado
como assassino e o ajudarem, são seres que contam com meios legais (tornando-os
ilegais) para esse amparo. É o caso do advogado, do despachante (que é um
falsificador de documentos), dos detetives e do próprio Movimento dos Sem Terra
(MST).
Nestes dois últimos romances analisados, foi possível perceber que o jeitinho
vem se configurando de uma forma mais brutal, mais macabra, com possibilidade de
crimes hediondos em busca de um objetivo próprio. Nas outras obras o jeitinho se
manifesta de forma mais risível, mais cômica do que em Meninos no poder e Mundo
perdido.
A análise da trajetória do jeitinho permite, então, afirmar que ele ocorre desde
as primeiras narrativas ficcionais brasileiras, mas de diferentes formas e com
diversas características. Os primeiros dois textos analisados apresentam um
malandro preocupado em manter a vida fácil, sem ter que se desgastar muito com o
trabalho. Os malandros não possuem uma finalidade única. A todo o momento se
utilizam do jeitinho para escapar dessa ou daquela situação, procurando a solução
imediata para um problema. Nos dois contos, o malandro é apresentado de forma
mais objetiva, mais ligada aos princípios de Maquiavel. Preferem a vida fácil ao
trabalho árduo, mas estão preocupados, principalmente, com a posição social, com
117
as aparências. Nos dois romances contemporâneos, as personagens querem chegar
aos seus objetivos custe o que custar. O alvo é traçado e eles empregam os piores
métodos, se necessário, para ter êxito. Para eles, o cansaço não existe, nem o
medo, pois chegam às últimas conseqüências.
Diferentes nas características (uns não querem trabalhar, outros trabalham
muito mais preocupados em dar um jeitinho do que se optassem por um trabalho
honesto), todas as obras analisadas apresentam a instituição estudada em seus
enredos. Assim, o jeitinho se configura nas personagens de narrativas ficcionais
brasileiras muito antes do surgimento da Lei de Gérson. O que não foi conjeturado é
o fato de que, com o decorrer dos anos, ele se caracterizaria de formas diversas.
Uns malandros, mas sem conseqüências drásticas; outros chegando ao ápice do
fora-da-lei,
com
conseqüências
graves
para
a
sociedade,
envolvendo
a
criminalidade, inclusive comprometendo a seriedade de instituições legalizadas. O
fato é que o jeitinho sempre existiu nas narrativas ficcionais brasileiras e vem
permeando a literatura de tempos em tempos.
As imagens que se obtém das narrativas contemporâneas são diferentes das
que foram pesquisadas ao longo dos períodos literários, mais especificamente nas
quatro primeiras obras deste estudo. Enquanto os contemporâneos apresentam um
jeitinho muito voltado para a desordem e crimes, os anteriores, ou tentam contornar
uma vida repleta de empecilhos e pobreza, ou estão preocupados com as
aparências diante da sociedade. Se for observado, nos dois contos apresentados
paira sobre as personagens um malandro mais maquiavélico, provavelmente já
delineando um trajeto para os próximos autores que tratam do tema. O jeitinho, na
literatura contemporânea, fez com que a figura do malandro ficasse muito próxima
da vida da criminalidade, do banditismo, do fora-da-lei. As marcas da violência não
aparecem nas primeiras quatro obras como nas duas últimas. Pode-se considerar,
então, que houve um crescimento na maneira com que as personagens tomam o
jeitinho como parte de suas vidas
A teoria do jeitinho, vista sob o foco das ciências sociais, apresenta para a arte
literária uma revelação no momento em que aponta mais de uma característica para
118
o jeitinho: o teórico e o prático; o bom e o mau, tendo nessa última classificação a
base que fundamenta o estudo elaborado nesta dissertação.
O passar dos anos trouxe não só a modernização para a sociedade, para as
cidades, as modificações no espaço físico e social, como também a mudança das
pessoas, o que é percebido no aumento da marginalização do ser humano. Tudo
isso começou a ser retratado na literatura, uma vez que esta, mesmo sendo
ficcional, retrata um tanto da realidade vivida pela sociedade e pelo meio no qual ela
se insere.
Com Macunaíma e Leonardo, o riso se faz muito mais presente do que outro
tipo de reação dos leitores. O malandro apresenta, através da pouca vontade de
trabalhar, uma resposta para as dificuldades que enfrenta diariamente. Já na vida de
Máiquel, a violência virou rotina, assim como a enganação, a mentira e o logro
estiveram presentes constantemente na vida de Ari. Máiquel também se deixou levar
pelo suposto poder que a sociedade lhe incutiu, ao considerá-lo o “homem do ano”.
A sociedade e a mídia reforçam a idéia de que ser assassino atrai não só dinheiro,
mas fama e poder.
É possível olhar para a sociedade deste século e perceber as mudanças
ocorridas em detrimento da modernização e do crescimento: as favelas, o
amontoamento de casas, de gente, as precárias condições de sobrevivência. Num
outro extremo estão as grades protegendo os condomínios, as casas de luxo;
seguranças a serviço de pessoas com alto poder aquisitivo. Tudo isso fomenta mais
e mais a disparidade entre ricos e pobres. Em conseqüência, a violência, o
banditismo afloram como forma de manifestação dos que se sentem desprotegidos,
largados às condições subumanas. Assim, esses se utilizam dos meios ilegais,
dando um jeitinho para poderem sobreviver, mesmo tendo a convicção do seu
envolvimento com a criminalidade. Além do mais, estes indivíduos acabam se
sobressaindo no meio em que vivem. É o caso do traficante, do “dono da favela”,
daquele que mata alguém da alta sociedade.
Antonio Candido (1967) afirma que a literatura é compreendida não só pelos
aspectos que ela manifesta da realidade, mas também que ela “deriva das
119
operações formais postas em jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade que a torna de
fato independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social, considerado
inoperante como elemento de compreensão” (CANDIDO, 1967, p. 4). Assim, as
duas visões se incorporam para completar uma obra, “fundindo texto e contexto,
numa interpretação dialeticamente íntegra”.
Sabe-se que a literatura, mesmo sendo ficcional, tem como base a realidade.
Com isso, os autores levam em conta alguns fatores como os culturais e
psicológicos para transportarem suas obras para o mais próximo possível da
realidade de uma sociedade. Candido explana a condição de a ficção e a realidade
possuírem uma ligação:
Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em
conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite
identificar na matéria do livro a expressão de uma certa época ou de uma
sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo
historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudado
no nível explicativo e não ilustrativo. (CANDIDO, 1967, p. 7).
O autor citado ainda enumera os estudos de tipos sociológicos na literatura em
seis modalidades; na segunda, ele se refere ao estudo de obras que “espelham ou
representam a sociedade, descrevendo seus vários aspectos [...]”. Ela resume-se
“basicamente em estabelecer correlações entre os aspectos reais e os que
aparecem no livro” (CANDIDO, 1967, p. 11). Dessa forma, pode-se considerar que
as obras estudadas são ficção, mas retratam uma possível realidade e moldura de
uma sociedade.
Ao considerar os aspectos descritos, portanto, é possível conceber a
modernização, o crescimento desenfreado das sociedades, as desigualdades
sociais, como contribuintes para a configuração de diferentes formas do jeitinho
apresentadas com o passar dos anos, tanto na literatura, como na sociedade, tendo
em vista este fio de ligação entre o real e o ficcional. Tal diversidade de formas é
apresentada
na
literatura
brasileira,
comprovada
pelas
obras
analisadas,
confirmando esta relação próxima da ficção com o real. Na trajetória feita pela
literatura até as obras contemporâneas, percebem-se modificações na maneira de
120
se portar do indivíduo, das formas como o jeitinho atua, transparecendo diferenças
entre o passado e o presente.
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