P.º R. P. 245/2006 DSJ-CT- Legado por conta da quota disponível a
herdeiro legitimário – Adjudicação do referido legado, em sede de partilha
da herança, a outro herdeiro legitimário, com intervenção de todos os
interessados – Omissão do repúdio do legado ou da sua redução por
inoficiosidade – Natureza do vício de que, eventualmente, sofrerá a
escritura de partilha – Efeitos registrais.
DELIBERAÇÃO
Em 1 de Agosto de 2006, sob a Ap. 03, Maria… requisitou na Conservatória
do Registo Predial da …, o registo de aquisição a seu favor da fracção autónoma
descrita sob o n.º 1017-E, de …, que lhe foi adjudicada por partilha extrajudicial na
sucessão por óbito de seu marido, Silvério…, com quem foi casada em comunhão
de adquiridos.
Instruíram o pedido: a escritura de partilhas, lavrada em 7 de Dezembro de
2005, a fls. 141 do livro n.º 73, do Cartório…, duas certidões fiscais e a respectiva
caderneta predial urbana; e, complementarmente, sob a Ap. 07/20060905, a
escritura de habilitação de herdeiros, celebrada em 10 de Dezembro de 2004, a fls.
5 do livro n.º 602-G, do 1.º Cartório Notarial de …, integrando o testamento
lavrado no mesmo Cartório, em 15/01/03, a fls. 19 do livro n.º 462.
O registo foi recusado, por despacho de 13 de Setembro de 2006, com
fundamento na alínea d) do n.º 1 do artigo 69.º do Código do Registo Predial
(manifesta nulidade do facto), justificada nos termos seguintes: “Verifica-se pelos
documentos juntos que o autor da herança legou a sua filha Sónia … , com a
aquiescência do seu cônjuge, nos termos do artigo 1685.º do C. C., (por conta da
quota disponível), o prédio objecto do pedido de registo. Tal legado constitui um
encargo da herança e, como tal, não entra no cômputo dos bens herdados, nem vai
a partilha, cfr. art.º 2068.º, C. C.. A deixa, porque válida em substância, determina
a sucessão a título singular da referida Sónia …, cfr. art.º 2030.º , C. C..”.
1
Em 28 de Setembro, foi interposto o presente recurso hierárquico, de cujas
alegações decorre a insubsistência legal do teor da decisão agora impugnada, que
se apoiou no disposto nos artigos 2068.º, 1685.º e 2030.º, n.º 2, todos do Código
Civil, por evidente erro dos pressupostos de direito invocados. Ademais, no caso
concreto, considerando que o legado instituído no testamento não produz efeitos
independentemente da vontade da pessoa em benefício de quem foi instituído, a
legatária intervém na escritura de partilha e não obstante o conhecimento do
mesmo acorda em proceder à divisão dos bens de forma diversa, certa da
inoficiosidade que do cumprimento do legado imediatamente deriva – cfr. art.
2168.º C. Civil. Estando na sua disponibilidade a efectivação da partilha sem o
preenchimento do legado de que a mesma é beneficiária ocorre uma situação
integrada no disposto no artigo 2249.º do C. C., sendo que a tal não obsta o
disposto no artigo 2063.º do C. C., na medida em que, da mesma forma que a
aceitação do legado pode ser expressa ou tácita (art.º 2056.º, C. C.), também a
não aceitação pode ocorrer por via tácita, desde que consignada em escritura
pública, como é o caso vertente, apenas se podendo interpretar a vontade dos
intervenientes na escritura daquele modo.”.
Vai no mesmo sentido o parecer da Sr.ª Notária que celebrou a escritura de
partilhas em apreço. Ouvida, a propósito, entende que não se verificou qualquer
nulidade ou acto que possa ser como tal considerado, quer por falta de previsão
legal, quer por inexistir vício a tal conducente, subscrevendo a postura adoptada
pela recorrente, nos termos antes expostos.
A Sr.ª Conservadora recorrida sustentou o despacho de recusa em termos
que aqui se dão por integralmente reproduzidos, sem prejuízo da referência que
nos permitimos fazer às ideias essenciais ali expressas. Assim, sendo válida, em
substância, a deixa feita pelo testador a uma das herdeiras legitimarias, ela
determina, por definição, a sucessão a título singular (art.º 2030.º, n.º 2, C. C.),
incumbindo aos herdeiros cumprir o legado (art.º 2068.º, C. C.). A intervenção da
beneficiária do legado na escritura de partilhas acontece na qualidade de herdeira
legitimária (cfr. art.º 2102.º, n.º 1, C. C.) e não de legatária. A inoficiosidade está
incólume por falta de título – pressupõe, por definição, operações de imputação (e
não o facto de ser visível); pressupõe a aceitação do legado; e pressupõe,
extrajudicialmente, o acordo de todos (herdeiros legitimários e legatários, art.º
2169.º, 1.ª parte e art.ºs 2172.º, 2169.º, 2.ª parte, 2168.º, 2162.º e 2174.º, C.
C.).
2
Reconhece-se que o legado carece de aceitação – expressa ou tácita e
irrevogável (art.ºs 2056.º e 2061.º, C. C.) - , encontrando-se na disponibilidade da
herdeira legitimaria/legatária a efectivação da partilha sem o seu cumprimento (cfr.
art.ºs 2032.º, n.º 2 e 2056.º ex vi do art.º 2249.º). Por seu turno, a não aceitação
só pode ocorrer por repúdio, acto necessariamente expresso e formal (art.ºs
2039.º e 2041.º, C. C.), sendo que a falta de aceitação não equivale a não
aceitação (cfr. art.ºs 2047.º, n.º 1, 2049.º, n.º 1 e 2058.º, n.º 1, C.C.). Só a
resolução da vocação, seja por caducidade do direito de aceitar, por aceitação ou
por repúdio, legitimam a integração do legado em acto de partilha e eventual
adjudicação a pessoa diversa do legatário – é o que acontece, no 1.º caso, face ao
disposto no artigo 2059.º, no 2.º com a redução/revogação por inoficiosidade e no
3.º, inexistindo direito de representação, cfr. art.ºs 2174.º, n.º 2, 1.ª parte e
2317.º, e), todos do Código Civil. O que não pode é a vocação deixar de ser
previamente resolvida no acto da partilha.
O sucessível, seja a que título for, terá que aceitar ou repudiar a herança e o
legado, ou aceitar uma e repudiar o outro, ou vice-versa. Existindo, no caso em
apreço, dupla vocação, legal e testamentária, sendo a sucessível Sónia,
simultaneamente, herdeira legitimaria e legatária e não tendo aceitado a
herança e repudiado o legado, ou vice-versa, o direito mantém-se reservado,
devendo os outros interessados acatar no tempo intermédio, por imperatividade da
lei. Donde se conclui que a escritura não reúne os pressupostos legais de
integração do prédio legado em partilha pelos herdeiros legitimários – é nula por
violação das normas de carácter imperativo do direito de suceder, art.º 285.º, C.
C..”.
Atenta a legitimidade das partes, a tempestividade da impugnação, a
inexistência de nulidades, excepções ou questões prévias impeditivas da apreciação
do mérito, a postura do Conselho vai expressa na seguinte
Deliberação
1 – A extinção de um qualquer sujeito de relações jurídicas passíveis
de transmissão por sucessão determina - por forma a evitar hiatos na
definição da titularidade das mesmas - o chamamento imediato pela ordem
jurídica de determinados sucessíveis que, nos termos legais (n.º1,
art.
3
2032.º, C. Civil) reúnam, nesse momento da abertura da sucessão1, os
pressupostos da vocação sucessória, a saber, prioridade da designação,
existência e capacidade, para efeitos sucessórios.
2 – A designação sucessória, anterior ao dito chamamento, traduz-se
na indicação de um sucessível, feita antes da morte do autor da sucessão,
pela própria lei, por testamento ou por contrato (art.º 2026.º, Cód. cit.),
sujeita, porventura, a alterações decorrentes, v. g. , de modificação da lei,
pré-morte e indignidade do designado, só se fixando, afinal, no momento
do falecimento do “de cuius”.
A designação sucessória pode, assim, pelo mesmo título, determinar
o chamamento à sucessão de várias pessoas nele abrangidas ou, mediante
diversos
títulos,
muitas
vezes
coexistentes
na
mesma
sucessão,
possibilitar a vocação sucessória de variadas pessoas por diferentes
títulos.2
3 – Assim aconteceu no caso em apreço, já que um dos herdeiros
intervenientes na escritura de partilha que titulou o requisitado registo de
aquisição foi chamado à sucessão do “de cuius” por dois títulos: o
testamento, por força do qual foi instituído legatário do prédio (fracção
autónoma) registando; e a lei, na qualidade que esta lhe reconhece, como
filho, de herdeiro legitimário.
1
A abertura da sucessão e a vocação sucessória ocorrem normalmente – nos casos comuns de vocação
originária (n.º 1, art.º 2032.º, C. C.), mas já não nos de vocação subsequente (n.º 2, mesmo art.) - , ambas,
no momento do óbito do “de cuius”, não obstante a anterioridade lógica da primeira sobre a segunda.
2
Acontece que nem todos os designados como sucessíveis são chamados, uma vez que de acordo com o
princípio geral enunciado no citado art. 2032.º, n.º 1, só se converte em vocação a designação sucessória
prevalente no momento da morte do autor da sucessão, momento para o qual se defere, assim, a
apreciação de tal prioridade. De todo o modo, entre as várias designações sucessórias estabelece-se uma
hierarquia, no topo da qual e dentro da medida da sua legítima, se encontram os herdeiros legitimários,
seguidos dos contratuais, testamentários e legítimos. Esta escala de sucessíveis é, porém, até ao momento
da morte, de sua natureza, instável. A designação sucessória, como tal, é flutuante, inconsistente: até à
morte não se sabe nada. E por variadas razões. Se a designação é feita num testamento, pode este ser
livremente revogado ou modificado pelo testador. E a hierarquia dos herdeiros legítimos pode também
sofrer contínuas oscilações, quer porque, a todo o momento pode ser modificada a norma que regula a
ordem legal da sucessão, quer porque podem ocorrer factos ou circunstâncias que venham a modificar a
hierarquia das designações. Além de que os herdeiros testamentários ou legítimos não têm, em qualquer
caso, a certeza de virem a receber os bens do autor da herança, já que este pode, em vida, dispor
livremente deles. Também os herdeiros legitimários não têm a garantia de que receberão a sua legítima
à morte daquele, uma vez que o mesmo pode vender os seus bens em vida, gastando depois o dinheiro em
despesas improdutivas, assim como pode contrair dívidas, vindo o seu património a ser integralmente
executado pelos credores. (Cfr. Pereira Coelho, in “Direito das Sucessões”, 2.ª edição). Pode dizer-se,
parafraseando o mesmo Autor, que a designação é como que uma vocação virtual, e que a vocação é uma
espécie de designação efectiva.
4
4 – Aquela deixa testamentária de coisa determinada feita “in casu”
a um herdeiro legitimário – pode respeitar também a herdeiro legítimo ou
testamentário - configura, legalmente, (art.º 2264.º, C. C.)3 o denominado
pré-legado, atribuição logicamente anterior e prioritária ao conjunto das
instituições de herdeiros ou ao herdeiro único, um dos quais ou o qual é
também o pré-legatário.4
A autonomia desta atribuição, face à instituição de herdeiro que a
suporta, vai-se reflectir na possibilidade de aceitação de uma e de repúdio
de outro, reconhecida pelo artigo 2250.º do Código Civil
5
– que dá
acolhimento, em termos relativamente amplos a tal postura discriminatória
- ,sem prejuízo da possibilidade (em caso de deixa onerada com encargos)
de a repudiar quanto à quota disponível, aceitando-a relativamente à
legítima (art.º 2055.º, n.º 2, aplicável “ex vi” art.º 2249.º, cit. Cód.)
5 – O direito de aceitar ou repudiar é o núcleo essencial da posição
jurídica que a vocação atribui ao chamado, dependendo do exercício desse
direito potestativo no primeiro dos ditos sentidos, o ingresso daquele na
titularidade dos bens ou direitos hereditários, com efeitos retroactivos ao
momento da abertura da sucessão (art.º 2050.º, C. C.), retroactividade de
que também usufruem os efeitos do repúdio, considerando-se como não
chamado o sucessível que a repudia, salvo para efeitos de representação
(art.º 2062.º, C. C.).6
3
Neste sentido, Capelo de Sousa, in “Lições de Direito das Sucessões”, vol. I, pág. 211, e Oliveira
Ascensão, in “Direito Civil Sucessões”, págs. 314/5.
4
Figura que - analisando-se numa atribuição patrimonial que acresce à instituição de herdeiro, sendo
responsáveis pela sua entrega “intra vires hereditatis” todos os herdeiros, inclusive o que é também
legatário - não se confunde com o legado em lugar ou em substituição da legítima , de que se ocupa o
artigo 2165.º do Código Civil, e que consiste numa atribuição endereçada a substituir um direito de
reserva hereditária estabelecida por lei.
5
O n.º 2 deste preceito tem em vista os casos em que o sucessível é, simultaneamente, herdeiro e
legatário, reconhecendo-se-lhe a possibilidade de adoptar comportamentos opostos quanto à herança e ao
legado, aceitando ou repudiando uma e repudiando ou aceitando outro, com a única limitação decorrente
da inadmissibilidade de repúdio da deixa onerada com encargos, seja a título de herança, seja a título de
legado. Para Capelo de Sousa (ob. cit., vol. II, pág.16, nota 31), este regime do n.º 2 do artigo 2250.º não
valerá quanto se trate de herdeiro legitimário, simultaneamente legatário: “Cremos que essa hipótese não
se enquadra na ratio desse preceito, mas na do n.º 2 do artigo 2055.º, que cremos aplicável por força do
artigo 2249.º. É que se o herdeiro legitimário não pudesse repudiar separadamente um seu legado com
encargos especiais instituído pelo mesmo autor da sucessão, estaria aberta a porta para eventuais
ataques à sua legítima, proibidos no artigo 2163.º, dado que o herdeiro legitimário, para se ver livre
desses encargos, poderia ver-se obrigado a repudiar a sua própria legítima.”.
6
“O que significa, do ponto de vista gramatical, e em plena conformidade com o espírito da lei que,
havendo os pressupostos necessários à representação, a despeito de ter havido repúdio o repudiante não
é tido como não chamado. Pelo contrário, ele é tido como chamado, para o efeito da sucessão dos seus
descendentes através do canal do direito de representação.”. – Pires de Lima e Antunes Varela, in
“Código Civil Anotado”, Vol. VI, pág. 103.
5
A aceitação da sucessão pode ser expressa ou tácita (art.º 2056.º,
n.º 1, C. C.), enquanto que o repúdio – na ausência de preceito equivalente
àquele, malgrado o paralelismo que o legislador parece ter querido manter
na fixação do regime de ambas as figuras – só pode ser expresso.7
Entendimento que, a par da exigência de forma – a exigida para a
alienação da herança (art.º 2063.º, com remissão para o art.º2126.º,
ambos do cit. Cód.) – é o que melhor corresponde à intenção legal de
protecção
simultânea
dos
interesses
do
repudiante8
e
respectivos
credores.
7
A este respeito, reconhecendo que a lei não prevê expressamente a possibilidade do repúdio ser tácito,
Carvalho Fernandes, in “Lições de Direito das Sucessões”, pág. 247, pondera se deve ser atribuído ao
silêncio do legislador o sentido de afastar, em absoluto, essa modalidade do repúdio, conquanto entenda
que o mais acertado é negar a hipótese do mesmo. Sem prejuízo de admitir que “Não está, porém, o
legislador impedido de, em norma expressa, consagrar situações de repúdio sob a modalidade de
declaração presumida ou ficta (tácitas, lato sensu)…”, apresentando como exemplos as situações
previstas no n.º 1 do artigo 2057.º (caso da alienação da herança, que, quando feita gratuitamente em
benefício de todos aqueles a quem ela caberia se o alienante a repudiasse, não importa aceitação,
configurando, destarte, um repúdio tácito) e no n.º 2 do artigo 2165.º (caso do legado em substituição da
legítima em que a aceitação do legado implica a perda do direito à legítima, assim como a aceitação da
legítima envolve a perda do direito ao legado) , ambos do Código Civil.
A reforçar o entendimento de que o repúdio deve, em regra, ser expresso, está a consideração dos
efeitos a ele legalmente atribuídos, desde o eventual funcionamento do direito de representação (art.º
2062.º) ou, em alternativa, do direito de acrescer para os outros co-sucessíveis (art.ºs 2301.º a 2307.º), até
à permissão – com o propósito de evitar os prejuízos que dele possam advir aos credores do herdeiro ou
legatário repudiante – que a estes a lei faculta (art.º 2067.º) de aceitarem a herança em nome do
repudiante, tanto mais quanto o exercício deste direito está condicionado a um prazo reportado ao
conhecimento de tal acto. Refere acerca daquele preceito, Capelo de Sousa, in ob. cit., vol. II, pág. 26:
“Permite esta disposição, até ao montante dos créditos dos credores do repudiante, algo semelhante a
uma impugnação parcial do repúdio havido e a uma aceitação da herança (ou do legado – ex vi do n.º 1
do art.º 2249.º e por identidade de razões) por parte e no interesse desses credores, … isto é, a subrogação ou a acção sub-rogatória. (…) sub-rogação … sujeita a um prazo de caducidade, dado que o n.º
2 do art.º 2067.º dispõe que a aceitação se deve efectuar no prazo de seis meses a contar do
conhecimento do repúdio, e não é absoluta, pois há efeitos próprios do repúdio que se mantém, uma vez
que, nos termos do n.º 3…, pagos os credores do repudiante, o remanescente da herança ou do legado
não aproveita a este, mas aos herdeiros imediatos.”.
Este direito de aceitação que a lei confere aos credores do sucessível chamado, apesar de perdido por
ele através do acto de repúdio, é, para Pires de Lima e Antunes Varela (ob. cit., pág.115), perfeitamente
justificável, uma vez que se trata de um direito próprio dos credores, incluído na tutela da garantia
patrimonial do crédito. Esta aceitação em nome do repudiante corresponde (no entender de Rodrigues
Bastos, cit. pelos ditos autores) a uma ficção legal, por virtude da qual os credores se encontram na
mesma situação jurídica em que estariam se o devedor tivesse realmente aceitado; para este, porém, o
repúdio foi válido, razão por que ele fica completamente estranho à herança, nada lhe cabendo, ainda
que depois de pagos os credores exista remanescente.
8
Referem, a propósito, Pires de Lima e Antunes Varela, in ob. cit., págs. 106/107, que é compreensível
que a lei rodeie a realização do repúdio de muito maiores cautelas do que o mero acto de aceitação porque
enquanto a aceitação da herança é um acto que, em princípio só pode acarretar benefícios para o autor,
o repúdio importa quase sempre num acto de perda, mais ou menos volumosa para o património do
repudiante. Daí que, para o proteger de reacções precipitadas, a lei tenha subordinado o repúdio à
celebração de escritura pública, de acordo com o critério da remissão para a forma da alienação da
respectiva herança, sempre que desta façam parte bens cuja alienação só possa ser validamente celebrada
através de escritura pública.
6
6 – Na falta de disposição legal que expressamente preveja – de
modo idêntico ao estabelecido no n.º 2 do artigo 2165.º (legado em
substituição da legítima) – o repúdio tácito do pré-legado, face à aceitação
da vocação sucessória legitimária, não se pode ter aquele por verificado na
escritura
de
partilhas
apresentada
9
;
assim,
a
subsistir,
a
deixa
testamentária em causa teria de ser considerada, como qualquer legado,
encargo da herança (art.º 2068.º, C. C.), a satisfazer previamente ao
preenchimento dos quinhões dos vários herdeiros
10
, o que, como é
notório, não sucedeu, atenta a inclusão do prédio a que diz respeito, no
acervo hereditário a partilhar, constante do aludido documento.
Certo é que o facto do previsto repúdio não se mostrar titulado no
instrumento notarial em causa, não exclui a possibilidade do mesmo ter
acontecido, pese embora a falta de apresentação do correspondente título
formal.
7 – Subsiste, ainda, a probabilidade de aceitação, por parte do
herdeiro, simultaneamente legatário, da vocação sucessória testamentária
e legal, residindo, porventura, na necessidade de redução do legado
9
Saliente-se que, na escritura em apreço, a herdeira legitimaria, simultaneamente legatária do prédio
trazido a registo, não interveio pessoalmente naquele acto notarial, tendo antes sido aí representada pela
viúva do “de cuius”, no uso dos poderes constantes de uma procuração com autorização (de seu
marido), que foi arquivada no Cartório em causa. Dado o carácter pessoal dos actos de aceitação e
repúdio, tem-se questionado a possibilidade da sua feitura por intermédio de representante voluntário,
pronunciando-se, entre outros, no sentido da sua admissibilidade, Capelo de Sousa (ob. cit., pág.14, nota
30), que justifica tal posição com base em que não há quanto a tais actos proibição expressa de
representação voluntária (a exemplo do que acontece no art.º 2182.º, n.º 1, quanto ao testamento), tais
actos revestem um carácter acentuadamente patrimonial, as declarações respectivas são instantâneas (e
não duradouras, como acontece com a vontade testamentária) e não há especiais zonas de liberdade que
não fiquem ressalvadas com a própria passagem da procuração.
Por outro lado, do ponto de vista formal, o art.º 46.º, n.º 3, do Cód. do Notariado exige que da escritura
que formalize o repúdio conste se o repudiante tem ou não descendentes, obedecendo tal imposição ao
intuito de verificar, em cada caso concreto, se há ou não lugar ao direito de representação; na aludida
escritura, nada consta, a respeito, sendo certo que tal omissão não é causa de nulidade, por vício de forma,
do respectivo acto notarial (cfr. art.º 70.º, mesmo Cód.).
10
Nos casos em que o testador atribui um legado a um dos seus herdeiros existe o pré-legado. Não
obstante ser co-herdeiro, o pré-legatário é um legatário, com os direitos inerentes à sua qualidade de
sucessor a título particular, e com a posição relativa que decorre do disposto nos arts. 2068.º e 2070.º e,
sobretudo, no art.º 2265.º, recaindo sobre ele, como herdeiro, o encargo do cumprimento do legado de que
o próprio é titular. Consideram, neste particular, Pires de Lima e Antunes Varela (ob. cit., pág. 417) que
a dita posição relativa dos herdeiros e do pré-legatário pode dar origem a algumas interrogações,
designadamente, no que respeita ao modo de calcular a quota dos outros herdeiros e de preencher o
objecto do pré-legado, concluindo que só a solução de perfazer o pré-legado à custa de toda a herança, e a
de realizá-lo, por inteiro, corresponde ao verdadeiro pensamento da lei, devendo o pré-legado, como
qualquer outro legado, sair, em princípio, como atribuição precípua da herança. Perfilham a mesma
orientação, entre outros, Capelo de Sousa (ob. cit., pág.211), Oliveira Ascensão (ob. e págs. cits.) e
Carvalho Fernandes (ob. cit., pág. 451), os quais, subscrevendo a doutrina dominante, entendem
também que se deve começar por satisfazer o pré-legado, distribuindo-se o remanescente pelos herdeiros.
7
instituído, por ofensa da legítima dos herdeiros legitimários, o motivo da
inclusão do prédio dele objecto na escritura de partilhas.
Não há, todavia, qualquer manifestação da vontade dos sucessíveis
partilhantes nesse sentido; dentre as operações que a partilha hereditária
normalmente
envolve
-
cálculo
do
valor
da
herança
partilhável,
determinação jurídica e em valor abstracto das quotas dos herdeiros, e
preenchimento concreto dos quinhões de cada um deles, operações às
quais, no caso da sucessão legitimaria, tendo em linha de conta o seu
carácter imperativo (arts. 2027.º e 2156.º), acresce a consideração de
diversos institutos, designadamente, o da redução por inoficiosidade das
liberalidades do autor da sucessão, destinados a proteger globalmente os
herdeiros legitimários –, nenhuma das exigidas pelo funcionamento deste
instituto se mostra titulada na escritura em apreço, considerando que a lei,
além de estabelecer como quotas globais da legítima certas fracções da
herança (arts. 2158.º a 2161.º), prevê a forma de proceder ao cálculo da
respectiva massa (art.º 2162.º), na perspectiva da ulterior determinação
das ditas quotas, com vista à redução, bem como a ordem por que esta se
efectiva [começa pelas disposições testamentárias a título de herança,
prosseguindo com as deixas a título de legado (art.º 2171.º)] e os termos
em que se deve concretizar (art.º 2174.º).
8 – Estando em causa uma partilha extrajudicial da herança – e não
obstante os preceitos substantivos que a regulam serem iguais aos da
partilha judicial - , os valores atribuídos aos bens hereditários estão
dependentes do acordo unânime dos directamente interessados na partilha
(cfr. art.º 2102.º, C. C.), que podem valorizá-los como entendam
11
, de
modo diverso até, no caso dos imóveis, do que resulte da respectiva
matriz, assim condicionando ou postergando, o eventual funcionamento do
aludido instituto da redução por inoficiosidade.
9 – Deste modo, a sugerida possibilidade de ter havido repúdio do
legado, associada à falta de indícios sobre a não observância do regime
11
Enquanto que, no inventário judicial, o Código de Processo Civil prevê, no n.º 2 de seu artigo 1375.º,
um mecanismo próprio através do qual e tendo em vista a elaboração do mapa de partilha, se calcula “ …
em primeiro lugar, a importância total do activo – no qual entram, tratando-se de inventário que envolva
sucessão legitimária, os valores dos bens doados e das despesas sujeitas a colação [cfr. arts. 2162.º, C.C. e
1340.º, n.º 2, alínea b), 1365.º, n.º 1, 1367.º e 1374.º, alínea a), C. Proc. Civil] - , somando-se os valores
de cada espécie de bens, conforme as avaliações e licitações efectuadas e deduzindo-se as dívidas,
legados – cujo valor, no caso de sucessão legitimaria, está subordinado a regras próprias [cfr. arts. 1340.º,
n.º 2, alínea b), 1366.º a 1368.º e 1374.º, alínea a), C. P. C.] – e encargos que devam ser abatidos.”.
8
jurídico da redução por inoficiosidade - a cumprir apenas em caso de
ofensa da legítima - , conduzem à desconsideração como manifesto do
vício da nulidade (em termos de configurar o motivo de recusa invocado)
da escritura em causa – perspectivado pelas partes na respectiva
argumentação – e que decorreria, no 1.º caso, da possível partilha de um
bem alheio, e no 2.º, do provável desrespeito pelas normas legais de
carácter imperativo a que se acha subordinada a sucessão legitimaria.
Decisivos, no sentido da identificação dos bens pertencentes à
massa da herança a partilhar, são a declaração e o acordo unânime de
todos interessados, sendo vedado ao conservador interferir nesse cômputo
dos bens herdados, entre os quais se inclui o imóvel legado (como tal, não
submetido a registo). Declaração essa que, para fins notariais e de registo,
é, em regra, prova bastante daquela pertinência ao acervo hereditário,
sendo exigível reforço probatório nesse sentido apenas quando do título
resultem dúvidas – motivadas por eventuais imprecisões ou contradições quanto à sua veracidade.
No caso em análise, atenta a possibilidade de resolução da vocação
testamentária, não é legítimo concluir que a declaração dos herdeiros no
sentido de que o bem em causa integra a herança contraria ou infirma o
conteúdo do testamento.
Face ao exposto, conclui-se pela procedência do recurso.
Esta deliberação foi homologada por despacho do Exmº. Senhor DirectorGeral de 09.05.2007.
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