O ENSINO DA ESCRITA PARA SURDOS EM UMA ESCOLA INCLUSIVA E
UMA ESCOLA ESPECIAL
Giuliana Diniz e Maysa Corrêa
Este estudo pretende contribuir para as discussões a respeito da alfabetização da pessoa
surda no Ensino Regular e Especial1.
No curso de graduação Pedagogia: Formação de Professor para Educação Especial:
Deficiência Mental e da Deficiência da Audio-comunicação, com duração de quatro anos;
conhecemos a temática da surdez no terceiro e quarto ano da faculdade, sendo que, no terceiro ano
começamos a analisar o processo de alfabetização do aluno na instituição especializada. Agora no
quarto ano, estamos estudando a educação do surdo no ensino regular e continuamente na escola
especial, com a supervisão de estágio da disciplina de Prática Supervisionada de Ensino DAC II.
Com vistas a essas realidades da instituição especial e da educação inclusiva, partimos do
princípio que precisaríamos considerar o papel de uma língua para mantermos a comunicação na
escola. No caso do surdo, esta língua seria a língua de sinais como primeira língua, tendo o
português como segunda língua.
A língua de sinais adquiriu o status de língua a partir dos trabalhos do pesquisador e
lingüista norte-americano Willian Stokoe, na década de 60. As pesquisas de Stokoe foram
pioneiras, pois foram os primeiros estudos sistematizados da língua de sinais americana, a ASL,
revelando todas as características lingüísticas e paralinguisticas desta língua (Santoro:1994). Stokoe
descreveu três parâmetros básicos de comunicação viso-gestual, aos quais, posteriormente, foi
incluído um quarto parâmetro por seus seguidores, quais sejam:
1)
2)
3)
4)
tabulação – local do corpo onde o sinal deve ocorrer;
designação – configuração das mãos;
signação – o uso e movimento de uma ou das duas mãos;
orientação das mãos em relação ao corpo.
No Brasil destacaram-se as pesquisas da Dra. Lucinda Ferreira Brito, do Rio de Janeiro, que
tem estudado e comparado, desde 1979, a Língua de sinais dos centros Urbanos Brasileiros (LCSB)
e a língua de Sinais Kaapor Brasileira (LSKB), usada pelos índios urubus-kaapor na floresta
Amazônica, no Estado do Maranhão (Ferreira Brito, 1993). Segundo esta autora, a Libras2 que
usamos no Brasil sofreu muita influência da ASL. A língua de sinais é uma língua com estrutura
homogênea, que sofre alterações regionais, não sendo uma língua universal. Possui regras próprias
e é tão complexa quanto qualquer língua oral; apresenta estruturas sistemáticas em todos os níveis
lingüísticos e permite a tradução de qualquer assunto e conceito. Expressa sentimentos, estados
psicológicos, conceitos concretos e abstratos e processos de raciocínio (Ferreira Brito, 1998).
Acreditamos na filosofia da educação bilíngüe, embora escolher uma entre as várias
abordagens educacionais para o aluno surdo não seja tarefa das mais fáceis, principalmente quando
se consideram as características próprias de cada aluno. Tal decisão, porém, deve ser uma opção
familiar e do próprio aluno. Neste sentido, fizemos uso desta filosofia porque os alunos já faziam
uso da língua de sinais, não falavam e nem faziam terapia de fonoaudiologia. Resgatamos o uso da
língua de sinais e reforçamos a escrita, sem imposição externa.
1
“Instituição especializada, destinada a prestar atendimento psicopedagógico a educandos portadores de deficiência e
de condutas típicas, onde são desenvolvidos e utilizados, por profissionais qualificados, currículos adaptados,
programas e procedimentos metodológicos diferenciados, apoio em equipamentos e materiais didáticos específicos”.
(Política Nacional de Educação Especial 1994).
2
A LIBRAS é a língua de sinais brasileira usada pelas comunidades surdas dos centros urbanos brasileiros.
Histórias, teatro e jogos na escola do aluno surdo
As histórias, o teatro e os jogos são mediados pela linguagem. Desde o nascimento, o bebê
brinca manuseando os objetos que estão em seu campo visual; mais tarde, a criança passa a conferir
significados aos objetos e a utilizá-los de acordo com o significado social. Ainda mais adiante, a
criança consegue separar o significado usual do objeto de outros significados possíveis. Sendo
assim, ela pode fingir que um pedaço de pau é um cavalo e brincar fazendo os movimentos de um
cavalo de verdade. Em etapa posterior, poderá desvincular o signo dos gestos característicos do
objeto e, por exemplo, fingir que uma caixa de fósforo é um cavalo, fazendo movimentos sem
relação com aqueles que o cavalo de verdade executa. (Vygotsky 1989).
Depois, as crianças começam a criar jogos de enredo, onde a situação imaginária e os papéis
são explícitos, as regras implícitas, seguindo as normas sociais. Por exemplo, brincando de casinha,
cada criança faz um papel retratando as regras vividas em suas próprias casas. Após os jogos de
enredo, a criança passa para os jogos com regras explícitas, nos quais a situação imaginária e os
papéis dos personagens são subentendidos, passando também a fase dos jogos didáticos, teatro,
dramatizações, esportes etc. Na idade escolar, inicia-se a fantasia, situação na qual não é mais
necessário o uso dos objetos e nem da fala social, mas sim utilizando a fala interior, a criança cria
suas situações de brincadeiras.
Essas idéias de Vygotsky nos levam a pensar sobre o desenvolvimento das crianças surdas,
pois, segundo o autor, a linguagem é responsável por todo desenvolvimento infantil.
O próprio autor estudou crianças surdas e percebeu a importância de a criança ter acesso a
uma língua que pudesse ser adquirida plenamente, sem dificuldades, no caso, a língua de sinais,
ainda denominada mímica na época. Criticou a educação que pretendia apenas ensinar de forma
artificial a língua oral para o surdo.
Pensando assim como Vygotsky, utilizamos algumas propostas lingüísticas como história,
teatro e jogos, para ajudar na escolarização do aluno surdo. Sendo assim, garantimos uma língua,
que é pré-requisito para se pensar sobre a escrita; com isso, criamos estratégias para que os alunos
se apropriassem da escrita de tal forma que os sons do mundo ouvinte não fossem pistas principais,
e sim a configuração visual dos sinais.
Escola Inclusiva
Relato de experiência da estagiária Maysa Corrêa
Na cidade de Campinas-SP, as escolas municipais têm o apoio de um professor itinerante3.
O estágio é realizado com a aluna Paula, de oito anos, com surdez profunda, ou seja, com
pouco resíduo auditivo, na 1a. série onde estão matriculados trinta alunos ouvintes.
Além de freqüentar a escola regular, Paula vai ao CEPRE (Centro de Estudo e Pesquisa em
reabilitação Dr. Gabriel Porto – FCM/ Unicamp).
* três vezes por semana em horário oposto ao período escolar. Lá, ela aprende a língua de
sinais com outros alunos surdos de outras escolas.
Quando Paula entrou na escola regular, já tinha domínio parcial da língua de sinais, o que
facilitou o meu trabalho. A professora da sala de aula não faz uso da língua de sinais; apenas eu,
como estagiária, e a professora itinerante conhecemos sinais. Todas as atividades propostas pela
professora da sala são transmitidas por mim para a aluna através da língua de sinais,
contextualizada no concreto, seja por meio de figuras, jogos ou brincadeiras.
Todos os dias no começo da aula, a professora inicia a aula com a “rotina do dia” (nomeado
pela turma). Cada aluno tem uma tarjeta de cartolina colorida com o seu nome escrito com letra de
forma feito no computador; são selecionados dia-a-dia na seqüência da lista de chamada um menino
3
“Trabalho educativo desenvolvido em várias escolar por docentes especializados, que periodicamente trabalha com
educando portador de necessidades especiais e com o professor de classe comum, proporcionando-lhes orientação,
ensinamentos e supervisão adequada” (Política Nacional de Educação Especial: 1994 p. 20).
e uma menina, que ficam na frente da classe em direção aos alunos com os nomes nas mãos, a aluna
com o nome das meninas e o aluno com o nome dos meninos. Os ajudantes levantam uma tarjeta
de cada vez e o dono da tarjeta levanta-se, pega seu nome e coloca num palhaço que fica pregado na
parede da sala de aula. Quando o ajudante levanta a tarjeta, a professora diz:
Professora
_ Esse nome começa com que letra?
Alunos
_ Com a letra P?
Professora
_ Quem na classe o nome começa com a letra P?
Alunos
_ Paula!
E assim por diante, até acabarem todos os nomes. Logo em seguida contam em voz alta
quantas meninas e quantos meninos vieram, e a professora coloca na lousa.
Laço (meninas) = 17
Faltaram = 02 meninos
Boné (meninos) =15
TOTAL = 34 alunos
Os que ganham vibram e os que perdem ficam bravos no dia seguinte porque o amigo faltou, feito
isso eles somam a quantidade de alunos presentes.
No cabeçalho a professora pergunta:
Professora
_ Que dia é hoje?
Alunos
_ Terça- feira.
Professora
_ Se hoje é terça-feira, ontem foi? E amanhã?
Professora _ E o dia em numeral?
Alunos
_ Vinte cinco.
Professora _ Como escreve vinte cinco?
Alunos
_ Dois e cinco.
Professora _ E o mês? Que número indica esse mês?
O objetivo dessas atividades é para Paula perceber que cada amigo tem seu nome próprio,
que há formas de identificar cada um e que cada nome é diferente do outro; esta estratégia foi
orientada pela professora itinerante.
Paula é uma aluna muito esperta, é líder da sala de aula, tem uma socialização e
dramaticidade incríveis, ela obtém sempre um jeito para se comunicar com os alunos, seja por
gestos, desenhos, escrita e todos entendem. Por exemplo, ela queria contar para a classe que
ganhara um carrinho de controle remoto, então ela desenhou na lousa, usou gestos, mímicas e todos
entenderam; foi muito interessante.
Em relação às histórias, coloco vários livros em cima da mesa e peço para eles escolherem
um livrinho, conto a história oralmente e ao mesmo tempo faço os sinais para Paula, depois passo
para cada um olhar. Em seguida, conversamos sobre a história e até começamos a rescrever a
história. Eles falam, a Paula se expressa por sinais ou desenho e eu vou rescrevendo a história,
resgatando as letras, principalmente as letras dos nomes dos alunos.
Paula é a aluna que mais se apega aos detalhes da história, os alunos ouvintes contam a
história resumidamente e quando eles ficam pulando partes da história, Paula fica brava, corrigindoos. Ela observa os detalhes quando passa o livrinho na sala de aula. É muito importante para o surdo
a configuração visual e o concreto; tudo sempre tem que estar dentro de um contexto.
Em relação à escrita, ela não está alfabetizada, apenas “copia”; o problema da cópia e da
escrita automatizada, sem significado, é um grande desafio no ensino do aluno surdo na escola
regular. Ela se utiliza desse recurso de copiar em diversas situações: nas provas, nos ditados, nas
lições... Por exemplo numa atividade de ditado em sala de aula, a professora distribuiu a folha e me
disse que o objetivo era para notar a fase de alfabetização dos alunos, segundo as etapas descritas
por Emília Ferreiro. A folha trazia figuras carimabadas, que as crianças deveriam nomear ao lado.
Com a Paula, trabalhei da seguinte forma, mostrava a figura, ela fazia o sinal correspondente, eu
fazia a dactilologia da palavra, bem depressa, sem ficar parando letra por letra para que não
copiasse.
Exemplos da sua escrita:
Baleia = BALR
Rato = AROP
Macaco = PNTS
Pato = EFMV
Sol = HTRLS
Hipopótamo = CODV
Pavão = PBAI
Boneca = BOVEG
Este resultado exemplifica a distância que Paula apresenta da escrita alfabética, e o desafio
de encontrar estratégias para a aprendizagem da escrita que considerem as especificidades
lingüísticas do aluno surdo incluído na rede comum de ensino.
Escola Especial
Relato da estagiária Giuliana Diniz
O conhecimento sobre o processo de alfabetização e, mais especificamente, da aquisição da
leitura e escrita, tem sido objeto de nosso interesse também na escola especial.
Começarei a relatar o estágio na Escola Especial na cidade de Campinas, em série inicial,
com nove alunos de classe sócio-econômica baixa, diagnosticados como surdos profundos, que não
fazem uso da comunicação oral e nem do aparelho auditivo; as idades são variados, de quatro a dez
anos.
A realidade da educação que desperta meu interesse diz respeito diretamente aos surdos.
Preocupam-me, de um lado a grande dificuldade que muitos deles têm em aprender a escrita e de
outro a dificuldade de fazer a relação entre o português escrito e a LIBRAS, que é um sistema
lingüístico que utilizam com os professores e amigos surdos.
Apresento a seguir um pouco sobre o meu percurso no estágio e minha atuação como
professora, na busca de uma explicação para o problema da alfabetização desses alunos que não
utilizavam a comunicação oral, no qual o som não tem função no processo de letramento.
O meu trabalho em sala de aula para o ensino da escrita partiu do princípio de que, diante de
mim, existia um usuário de uma língua diferente da minha, e que eu deveria respeitar suas
possibilidades e limitações, ao auxiliar na construção da escrita.
Na atividade com os conceitos concretos, era fácil: havia sempre o apoio visual. Para ensinar
determinada palavra, a significação era fundamental. A situação da escrita ocorria a partir de um
“relato” de um acontecimento do aluno. O que emergia no contar de cada um à sua maneira, com
sua linguagem própria, era traduzido em texto por mim e pela instrutora surda e transformado em
relato escrito. Eram momentos ricos de criação de textos produzidos pelos alunos entre si. Como
alguns não conheciam sinais, eram aceitos na produção de texto outros recursos expressivos, gestos
e sinais. Esses gestos não pertenciam à LIBRAS. Era uma invenção utilizada com a família que não
conhecia a língua de sinais. Os alunos tiveram acesso aos sinais convencionais apenas na escolas e
com os instrutores surdos.
Os erros da produção da escrita dos alunos eram vistos como decorrentes da aprendizagem
da segunda língua. Ou seja, a língua brasileira de sinais tinha interferência no aprendizado da
segunda língua, o português escrito, um processo esperado para qualquer um que esta aprendendo
uma língua nova, já que parte de um percurso de aquisição de uma segunda língua tem como ponto
de partida, a sua língua materna.. Pesquisas sobre o bilingüismo mostram que é muito importante
proporcionar contextos onde o educando possa ser estimulado para o conhecimento da primeira
língua e, em seguida, desenvolver a segunda língua, no caso o português escrito ou oral.
Minha dificuldade era a de ensinar no plano da abstração, isto é, aquilo que não podia ser
desenhado ou representado por figuras. Teatro, desenho e expressão corporal faziam parte da minha
prática pedagógica, daí a utilização constante da história, revistas e gibis. Na história, a participação
requeria, desde o início, a utilização da língua de sinais. Na produção do texto escrito, as frases e
palavras ganhavam vida através do uso da língua de sinais. Trabalhei também livros apenas com
imagens onde os alunos deveriam partir da imagem e criar uma história. Jogo da memória com o
alfabeto manual fazia parte das brincadeiras em roda. Livros específicos da FENEIS (Federação
Nacional de Educação e Integração de Surdos) para alfabetização de surdos em séries inicias foram
adotados. Também usamos uma fita de vídeo com histórias em sinais dos três porquinhos e
chapeuzinho vermelho; mais tarde, em sala de aula, deveriam contar o que entenderam da história,
sempre numa conversa em grupo.
Outro recurso foi a utilização de fotos que os alunos trouxeram de casa para contar como se
comunicavam com os pais, quais sinais conheciam, entre outras coisas. Em sala de aula, poderiam
utilizar a língua de sinais de forma livre e espontânea, sem o medo de errar, pois a criança surda
tem o direito de ser como ela é. Isso fazia parte da proposta pedagógica.
Ao estabelecer meus objetivos curriculares, foi essencial que levasse em conta a função
social da segunda língua. Nosso primeiro passo no desafio da Educação Especial é garantir ao aluno
surdo o direito a uma educação social e emocionalmente significativa.
Consideramos que nosso trabalho acadêmico se fundiu na prática pedagógica, no registro de
campo e principalmente nas supervisões de estágio. Trata-se de um processo de aprendizagem para
o aluno de pedagogia. Só assim podemos avaliar a nosso prática e proposta e corrigi-la quando
necessário. Neste processo, todas as partes (professora universitária, estagiária e aluno) estão
conjuntamente construindo conhecimento.
Os estudos proporcionaram novos conhecimentos sobre alfabetização e contribuíram para a
realização desta pesquisa e atuação em sala de aula.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Secretária de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial, 1996.
BRITO, L.F. . Integração Social e Educação de Surdos. Rio de Janeiro: Babel, 1993.
SANTORO, Berenice M.R. Contando histórias, programando o ensino: contribuição para a préescola com alunos surdos. São Carlos – SP: UFSCAR 1994. Dissertação (Mestrado em
Educação Especial) – Centro de Educação e Ciências Humanas.
SKLIAR, Carlos (org.). Atualidade de educação bilíngüe para surdos. Porto Alegre: Mediação,
1999.
SOUZA, Regina Maria de. Que palavra que te falta? Lingüística e Educação. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
VYGOTSKY, L.S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
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