O DIREITO DA DESCONFIANÇA
Vinícius de Oliveira
Membro do Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos/UFJF
Bacharel em Direito - UFV
[email protected]
De certo, não é incorreto afirmar que, na base do ordenamento jurídico brasileiro,
está um princípio capital, origem de todo o nosso excesso de regulamentação e burocracia: o
princípio da presunção de má-fé ou da desconfiança. Segundo ele, cada cidadão agiria
presumidamente de má fé, até prova em contrário. Não se permite a prática livre dos atos
jurídicos, reservando-se aos lesados o direito de recorrer ao Estado, caso rompa-se do pacto.
Antes, como condição da prática do ato, exige-se a prova de idoneidade, muitas vezes
através de um documento formal que nada prova sob o ponto de vista da lógica rigorosa.
Há absurdos como o dos herdeiros que, interessados em sacar uma quantia muitas
vezes insignificante deixada em conta bancária pelo de cujos, precisam de um alvará judicial
expedido pelo juiz após o parecer do Ministério Público. A medida visa resguardar os direitos
de um possível herdeiro beneficiário de pensão por morte, destinatário legal da quantia
deixada pelo falecido em conta bancária. Mas será mesmo necessária a intervenção do Poder
Judiciário com a participação do Ministério Público? Não bastaria que os herdeiros
apresentassem ao banco a prova do óbito, a prova de sua qualidade de herdeiros e a prova
emitida pelo INSS da inexistência de herdeiros habilitados à pensão por morte? Melhor: não
bastaria apenas a prova da morte e da qualidade de herdeiro, reservando-se ao beneficiário
por pensão por morte o direito de acionar o judiciário caso tenha seu direito preterido pelos
co-herdeiros? Mas não, não se pode confiar demasiadamente nos agentes bancários, seres
humanos tão falíveis, ainda mais se agentes de bancos privados. É preciso incumbir o
incorruptível membro do Judiciário de mais uma tarefa, colocando assim mais um tijolo nas já
tão sobrecarregadas mochilas dos magistrados. E mais, não se pode confiar nos herdeiros,
gente sempre predisposta a passar a perna uns nos outros. É preciso prevenir e não apenas
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reservar o direito de uma repressão estatal em face de um eventual descumprimento da lei.
Situações semelhantes se estendem por todo o arcabouço legal pátrio. Seja no
Direito Público, seja no Privado. A cada passo, o cidadão é instado a dar prova com uma
certidão, um documento público, uma prova pericial, de que é honesto, de que possui tal ou
qual qualidade. Um dispendioso (para o cidadão) e lucrativo (para os fornecedores do
serviço) sistema cartorial compulsório, capitaneado por uma classe de cidadãos privilegiados
por deterem o monopólio outorgado pelo Estado da confiabilidade pública, nutre-se da bacia
hidrográfica da desconfiança que irriga toda a nossa cultura e constitui um interessante tema
de estudos para investigar até que ponto os interesses classísticos do próprio sistema
cartorial são responsáveis pela criação e manutenção da burocracia e do formalismo
paralisante.
Obviamente, a multiplicação dos formalismos, das regulamentações, dos
protocolos, licenças, certidões e taxas têm reflexos importantes sobre a Economia e
constituem uma das causas do proverbial baixo crescimento econômico brasileiro. Segundo
Robert Fendt em estudo publicado na revista “Banco de Idéias” (no. 38, março-abril-maio de
2007), um dos oito entraves ao crescimento econômico no Brasil é a dificuldade de se fazer
negócios, representada pela enorme dificuldade de se empreender no Brasil. Diz Fendt que
no Brasil, segundo o Index of Economic Freedom de 2007 da Heritage Fundation, abrir uma
empresa leva 152 dias, enquanto no Chile gasta-se 27, na Irlanda, 19 e na Dinamarca apenas 5
dias. O Brasil só se compara com países de baixíssimo crescimento econômico como
Botsuana, onde começar um negócio leva 108 dias.
Tamanho emaranhado de regulamentos que entravam o desenvolvimento
econômico reflete, a nosso ver, um ethos de desconfiança arraigado em nossa cultura,
segundo o qual os cidadãos não podem ser deixados livres para estabelecerem relações
jurídicas, entabularem negócios e empreenderem sem a ação tutelar e fiscalizatória do
Estado, caso contrário acabariam por sucumbir à volúpia de prejudicarem-se mutuamente e
de lesarem à coletividade. Há muito de verdade nisto, há razões para a desconfiança, que é
uma via de mão dupla. O Brasil, país dos macunaímas, dos malandros e espertos é um país
onde os homens não inspiram muita confiança uns nos outros. Não se compreende, porém,
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como de uma sociedade de homens indignos de muita confiança poderiam emergir os
impolutos homens de Estado nos quais deveríamos confiar. A prova disso é que a burla à lei,
a propina e as corrupções ativa e passiva são instituições nacionais tão firmes quanto às
instituições legais.
A inspiração da hipótese aqui defendida adquirimos da leitura da obra “A Sociedade
de Confiança”, do sociólogo francês Alain Peyrefitte. Neste livro fartamente documentado,
resultado de uma vida inteira de reflexões, o autor busca encontrar os fatores decisivos do
desenvolvimento econômico europeu desde o Renascimento. Fugindo a toda explicação
materialista, mecanicista ou determinista, o autor faz uso de uma abordagem etológica,
enfatizando que são antes os fatores culturais e psicológicos os decisivos para o
desenvolvimento. E o fator etológico decisivo para o desenvolvimento econômico é o fator
da confiança. É preciso que uma atmosfera psicológica de confiança esteja espalhada pela
sociedade para que o desenvolvimento seja possível. No Ocidente, a grande mutação que
teria tornado possível o formidável desenvolvimento industrial e tecnológico dos últimos
séculos teria sido a Reforma, daí os países protestantes terem tomado a dianteira do
desenvolvimento econômico. Os argumentos de Peyrefite segundo os quais teria sido a
Reforma o primum movens do desenvolvimento podem ser contestados, mas é inconteste
que a confiança é condição necessária do desenvolvimento.
As condições materiais de uma determinada sociedade, suas riquezas naturais, seu
estoque de capital e trabalho, por si só não podem determinar o desenvolvimento. São antes
os caracteres psicológicos e culturais de seus indivíduos que determinaram o
desenvolvimento ou a estagnação. Como afirma o autor na introdução ao livro, “é o imaterial
que comanda.” Propõe Peyrefitte “uma verdadeira revolução copernicana no estudo do
desenvolvimento”, uma “nova abordagem etológica”, a qual coloque os fatores psicológicos
e culturais como centrais para a explicação do desenvolvimento das coisas materiais:
Pôr essas questões em pauta é tentar empreender verdadeira revolução
copernicana no estudo do desenvolvimento. Os dados da história econômica –
matérias-primas, capitais, mão-de-obra, relações de produção, investimentos,
distribuição, índices de crescimento – foram postos até agora no centro das
explicações do desenvolvimento. Os traços mais imateriais da civilização – religião,
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preconceitos, superstições, reflexos históricos, atitudes perante a autoridade,
tabus, motores da atividade, comportamento no tocante à mudança, moral do
indivíduo e do grupo, valores, educação – eram considerados insignificantes,
gravitando penosamente em torno da estrutura central. Ernest Labrousse, após
tantos outros, afirmava que “o mental atrasa o social”, e “o social, o econômico”.
Propomos inverter os papéis. De subfator secundário, de longínqua e
negligenciável conseqüência, as mentalidades tornar-se-ão o centro em torno do
qual tudo gravita: motor essencial do desenvolvimento, ou obstáculo
intransponível. 1
Ao longo de todo o livro o autor dá exemplos de sociedades muito pouco
favorecidas do ponto de vista material que superaram a sua desvantagem inicial e
alcançaram grande desenvolvimento. Tudo depende da atitude psicológica tomada diante da
fortuna, das condições dadas, do inexorável. O exemplo clássico é da Holanda, o país que
teve que vencer o mar para garantir a sua sobrevivência. A comparação que o autor faz entre
Espanha e Holanda é emblemática. O primeiro, diante dos obstáculos físicos ao seu
desenvolvimento se resignava numa atitude fatalista, enquanto o segundo recusava seu
destino natural e adotava uma atitude transformadora:
Demos o exemplo dessa divergência mental em Leçons au Collége de France.
Enquanto os holandeses se recusavam a aceitar seu destino e procuravam salvar-se
das águas construindo pôlderes, os espanhóis desistem de canalizar o Tejo e o
Manzanares: “Se Deus tivesse desejado que esses dois rios fossem navegáveis, um
só fiat teria bastado, e seria atentatório aos direitos da Providência corrigir o que
ela quis deixar imperfeito.2
A mentalidade de desconfiança da Igreja Católica ao longo da Idade Média e do
início da Era Moderna em relação ao lucro e à atividade usurária é apontada como uma das
causas do menor desenvolvimento dos países católicos em relação aos protestantes. O ethos
cavalheiresco dos espanhóis, avessos aos trabalhos práticos, para os quais o ócio era motivo
de orgulho é tida como um dos principais fatores do subdesenvolvimento espanhol. A
desconfiança das autoridades francesas diante das inovações tecnológicas é explicação para
a defasagem industrial da França em relação à Inglaterra.
Na sétima parte da obra, Peyrefitte procura traçar a trajetória intelectual da
abordagem etológica que pretende suplantar as visões tradicionais calcadas no
1 PEYREFITTE, Alain. A Sociedade de Confiança: Rio de Janeiro: Topbooks, 199, pp. 31
2 Idem, pp. 144
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materialismo. Cita como marcos desta abordagem Montesquieu, Hegel, Bastiat, Hayek e
Shumpeter. No capítulo 5, o autor demonstra como os economistas aos poucos foram se
dando conta da preponderância do “terceiro fator imaterial”, mormente após o descrédito
da teoria de Solow segundo a qual o produto nacional bruto é a multiplicação do fator capital
pelo do fator trabalho ter se mostrado incapaz de explicar as diferenças de PNB´s entre as
nações. Era preciso encontrar um terceiro fator, mais decisivo que os dois primeiros para
explicar a divergência do desenvolvimento. Este fator bem poderia ser denominado “fator
Floirat”, em homenagem ao empresário francês Sylvain Floirat que teria afirmado: “Que me
deixem nu como uma minhoca no meio do Saara; sem um centavo, mas perto do caminho
das caravanas; alguns meses depois voltarei milionário.”
A frase do empresário demonstra como a escassez material não é suficiente para
deter um indivíduo de gênio e cheio de confiança em si mesmo que, com um esforço
racionalmente dirigido, queira superar a sua desprivilegiada situação econômica e alcançar
grandes êxitos. É esta atitude resoluta e confiante o fator decisivo, o terceiro fator imaterial.
Impossível haver desenvolvimento sem uma atitude psicológica de confiança
disseminada pela sociedade. Isto inclui a confiança em si mesmo e a confiança nos outros. A
sociedade de confiança é aquela na qual os indivíduos confiam em si mesmos e inspiram
confiança nos outros. Numa sociedade assim até as taxas de juros serão menores, eis que a
inadimplência será baixa e os credores poderão emprestar com mais facilidade e com taxas
menores por ser menor o risco. Isto parece muito óbvio, basta atentar para a semelhança
semântica entre as palavras “crédito” e “confiança”. Mesmo dentre os analistas econômicos
que jamais notaram a importância do fator da confiança em economia, sem o saber,
demonstram como ele é importante neste setor, quando afirmam, por exemplo, que o nível
de investimento estrangeiro em um país depende da estabilidade de suas leis, ou seja, da
confiança que o governo do país inspira no empresariado alienígena com relação às
transformações institucionais. Depende também da confiança que o governo dá quanto à
proteção dos direitos de propriedade.
Inegável que a confiança está intimamente ligada ao nível de intervenção e
regulamentação estatal das relações jurídicas. Quanto maior a desconfiança, maior o papel
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do Estado. Onde a elite política não confia nos seus representados, menor será a liberdade
de ação que lhes outorgará. Onde os grupos sociais não confiam uns nos outros se apelará
certamente ao Estado para que os proteja uns dos outros. Onde os indivíduos não confiam
em si próprios como provedores de suas necessidades materiais, logos se apelará para o
estado assistencialista. Daí a causa de nosso tão execrado Estatismo. Olavo de Carvalho, em
percuciente artigo, afirma que o nosso Leviatã “não é um fenômeno primário, uma causa sui,
mas a simples expressão de uma vida diminuída, onde a busca de segurança se sobrepõe a
todos os sonhos de vitória.”3 Se há todo um aparelhamento burocrático para fiscalizar as
relações de consumo e trabalhistas é porque não se pode confiar muito em fornecedores e
empregadores, sempre dispostos a abusar de sua superioridade econômica e lesar os
consumidores e empregados. Menos ainda se confia na capacidade destes de
organizadamente defenderem seus próprios interesses.
Mas aqui cabe a pergunta, não se pode mesmo confiar na sociedade civil brasileira
deixada livre? Nos empregados e empregadores a livremente estabelecerem os acordos de
trabalhos?
Nos consumidores e fornecedores ao fazerem negócios? Não seria esta
desconfiança a desculpa ideológica dos estatistas para manterem-se no poder e criarem as
enormes burocracias. Até que ponto a baixa confiabilidade do brasileiro, que de fato existe
num certo grau, é justificativa para este nosso Leviatã que tudo quer saber, tudo quer
fiscalizar? Não seria a desconfiança um argumento ideológico dos burocratas?
É inegável que, no Brasil, aparelhamentos burocráticos imensos são montados para
fiscalizar todas as formas de relações sociais, seja trabalhista, de crédito, de consumo,
educacional, médica, etc. E há leis para tudo, minuciosas e abrangentes. E para cada lei uma
infinidade de regulamentos. E para a garantia da observância da lei, inúmeros órgãos de
Administração Pública. A razão disto é a atmosfera de desconfiança que paira sobre a
sociedade cujas razões não nos cabe aqui investigar.
Não é o escopo deste trabalho de curta extensão fazer uma análise exaustiva do
ordenamento jurídico nacional para demonstrar que as leis e instituições aqui refletem o
ethos de uma “sociedade da desconfiança”. Nos limitaremos a comentar alguns casos
3 CARVALHO, Olavo. Doença Existencial e Fracasso Econômico-Social. Porto Alegre: IEE, 2005.
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emblemáticos, escolhidos a esmo. Um estudo que pretendesse provar que vige um “direito
da desconfiança” necessitaria ser mais abrangente, abarcando todos os ramos do Direito no
Brasil e precisaria ser também comparativo, ou seja, seria preciso demonstrar que nas
“sociedades de confiança” o Direito é muito menos regulador, burocráticos e a autonomia
da vontade muito mais ampla. O objetivo deste trabalho é assim o de introduzir um tema
para futuras investigações, uma nova perspectiva crítica do Direito no Brasil, inspirada nos
estudos de Alain Peyrefitte. Escolhemos aqui dois casos particulares. Um diz respeito às
relações trabalhistas, o outro a questão tecnológica e assim procedemos porque ambos
estão intimamente ligados ao desenvolvimento econômico.
Direito trabalhista: a desconfiança ante o direito autônomo
O princípio da desconfiança norteia todo o Direito do Trabalho. Não seria o princípio
da desconfiança o fundamento oculto dos ditos princípios “da imperatividade” e “da
indisponibilidade”? O primeiro traz a presunção de que o trabalhador individualmente ou
livremente associado em sindicatos não pode proteger seus próprios interesses e o segundo
a de que o trabalhador não tem condições de escolher quais direitos deva exercer, quais não.
Junto ao princípio da desconfiança está o princípio da presunção de má-fé, má-fé obviamente
da parte do empregador que estaria sempre disposto a explorar e lesar seus empregados,
nunca lhe ocorrendo que um empregado mais satisfeito em termos de remuneração e
condições de trabalho trar-lhe-ia uma maior produtividade.
Pronunciando-se no 1º. Encontro de Juízes do Trabalho do Ceará, o Ministro do
Tribunal Superior do Trabalho José Luciano de Castilho Pereira manifesta uma certa
desconfiança com relação às negociações trabalhistas que pretendem tomar o lugar das
normas legisladas pelo Parlamento brasileiro:
Enquanto isto, a Presidência da República, por intermédio do Ministério do
Trabalho, está encaminhando, nesta data, projeto de lei que fixa o entendimento
de que o negociado vale mais do que o legislado. Por tudo o que se disse, recebo
tal iniciativa com muita reserva. Não sei dos pormenores do projeto
governamental. Temo, contudo, que ele inicie a continuidade da redução dos
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direitos trabalhistas, sob o argumento, nem sempre dissimulado, de que os direitos
trabalhistas provocam desemprego.
Se é assim, não é difícil imaginar o que acontecerá nas negociações coletivas que
valerão mais do que a lei!4
Ora, o Ministro desconfia da capacidade dos trabalhadores associados em sindicatos
de negociarem os seus próprios interesses com os empregadores. Desconfia de que possam
saber o que é bom para eles próprios e acredita que o legislador, distante da relação jurídica
concreta, possa saber melhor que interessados diretos, o que é melhor para eles. E o que é
pior, o magistrado acredita que legisladores de um passado distante, os que redigiram a CLT
em 1942, todos já mortos ou afastados da atividade legiferante, pudessem saber o que é
melhor para os trabalhadores do século XXI. Ora, as convenções e acordos de trabalho,
livremente negociadas com uma mediação do Judiciário garantidora do equilíbrio das partes,
deveriam ser entendidas como um instrumento de democracia direta, afinal, com tais
instrumentos, os trabalhadores e empregadores fazem as suas próprias leis, as leis mais
apropriadas a seus interesses. Mas o Magistrado não confia na capacidade das partes de
entabularem uma norma jurídica interessante para ambas. Também não confia na
capacidade do lado economicamente mais fraco de defender seus próprios interesses, pois
ele acabará ludibriado pelos empregadores. São os legisladores abstratos ou os magistrados
imparciais os únicos portadores da ciência do que é o bom e do que é justo para estas
crianças irresponsáveis, os empregados e empregadores. Trata-se de uma odienta forma de
paternalismo estatal.
Os ilustres processualistas Ada Peregrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e
Antônio Carlos de Araújo Cintra, na obra seminal “Teoria Geral do Processo” afirmam, com
toda razão, que a conciliação é a forma que melhor atende ao escopo de pacificação social
do processo, pois ambas as partes saem relativamente satisfeitas. Os acordos e convenções
coletivas constituem uma fonte autônoma do Direito, oriunda das negociações das próprias
partes envolvidas e, portanto, mais afinado com os interesses das mesmas.
Entretanto, restritíssima é a margem de liberdade dos empregados e empregadores
de criarem eles próprios o direito que irá reger suas relações. Isto porque, como nos informa
4
Disponível em:
Acesso em 16/07/-7
http://www.tst.gov.br/ArtigosJuridicos/GMLCP/RUMOSDODIREITODOTRABALHO.pdf.
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Maurício Godinho Delgado, “são raros os exemplos de regras dispositivas no texto da CLT,
prevalecendo uma quase unanimidade de preceitos imperativos no corpo daquele sistema
legal.”5
O Ministro quer que se mantenha um núcleo de direitos inegociáveis, direitos dos
quais o trabalhador não tem a possibilidade de dispor, pois ainda “não está em condições de
debater de igual para igual com os empregadores todos os itens do contrato de trabalho.”
Ou seja, os trabalhadores não estão ainda suficientemente crescidinhos para definir seu
próprio destino. Não é possível vislumbrar aí o ranço do velho sindicalismo getulista atrelado
ao Estado no qual a autonomia dos sindicatos era zero e quem realmente decidia eram os
iluminados da burocracia trabalhista estatal? Evidente que o trabalhador braçal, sem estudo,
ou mesmo iletrado, não pode negociar de igual para igual com os empregadores, mas para
isto existem os líderes, os que dentre eles se sobressaem em termos de conhecimento e
capacidade de negociação.
As negociações e acordos coletivos de trabalho deveriam ser entendidos, repita-se,
como uma forma de democracia direta, eis que os próprios trabalhadores e empregadores
são chamados a formular a norma jurídica que governará a relação social de que participam.
O sociólogo Simon Schwartzman em seu clássico “As Bases do Autoritarismo”
estuda, segundo as categorias de Max Weber, as diferenças entre um sistema político
verdadeiramente representativo e o sistema de cooptação. O primeiro é característico das
democracias modernas do mundo anglo-saxão, por exemplo; o segundo é típico dos regimes
patrimonialistas da América Latina. No primeiro, os governantes realmente representam os
interesses dos setores da sociedade e os refletem nas disputas parlamentares. No segundo
tipo, os governantes não representam outros interesses senão os próprios e a relação que
têm com os governados é uma relação “de cima para baixo” em que os governantes definem
os direitos e a sociedade civil os aceita passivamente sem considerar se lhe convém ou não. A
sociedade civil não move os governantes, mas é movida por eles. Neste sistema “ a
participação política deixa de ser um direito e torna-se um benefício outorgado, em princípio
revogável.”6 Uma ampla bibliografia já provou que o tipo de estado brasileiro não é outro
5 DELGADO, Maurício G. Introdução ao Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: LTr, 3ª. ed., pp. 174
6 Schwartzman, Simon. Bases do Autoritarismo Brasileiro. Editora Campos: 1988, 3ª. ed.
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senão o tipo patrimonialista, em que vige o sistema de cooptação. Como exemplo podemos
citar as obras de Raimundo Faoro (“Os Donos do Poder”), José Osvaldo de Meira Penna (“O
Dinossauro”) e Ricardo Vélez Rodríguez (“Patrimonialismo e a Realidade LatinoAmericana”). Embora escrevendo com a fria pena do cientista político weberiano, isenta de
quaisquer julgamentos de valor, Schwartzman manifesta sua preferência obviamente pelo
sistema representativo ao chamá-lo, tal como Weber, de “moderno.”
Da mesma forma, todos aqueles que anelam uma sociedade civil ativa, autora direta
ou indireta das normas que a governam devem preferir o sistema de representação de facto
e não apenas de jure. Agora nos indaguemos: qual dois sistemas de direito trabalhista se
aproxima mais de um regime de fato representativo: aquele em que as leis gerais formadas
pelo processo legislativo ordinário predominam ou aquele que afirma a preponderância dos
acordos e convenções coletivas de trabalho, sistema este em que são setores da própria
sociedade civil que formulam as normas jurídicas que irão governar as suas relações sociais?
O sistema de preponderância da auto-composição das lides trabalhistas é o sistema próprio
de uma sociedade liberal, de uma sociedade de confiança. Nele vige a confiança na
capacidade da sociedade civil de solucionar pacifica e consensualmente seus próprios
problemas, sem a necessidade da solução heterônoma, coercitiva e dispendiosa do Estado.
Como resultado prático desta falta de liberdade de negociação, temos
engessamento do Direito do Trabalho em normas que não podem acompanhar a dinâmica
econômica da sociedade o que é, obviamente, um fator causador do desemprego e do baixo
crescimento econômico.
Tecnologia e informação
Através do decreto 5.820 de 29 de junho de 2006, a Presidência da República, após
longos anos de estudos e debates, finalmente definiu o sistema de televisão digital a ser
implantado no Brasil e autorizou a sua implantação. Embora a televisão digital ainda esteja
em processo de implantação no mundo inteiro, ela já existe nos Estados Unidos desde 1998 e
em 2001 já contava com 600 mil receptores recebendo a transmissão digital. No Japão o
processo se iniciou em 1999. Por que só agora o Brasil começa a engatinhar no sentido de
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implantar a TV digital? Não seria a própria necessidade legal e constitucional de
regulamentação pelo governo da tecnologia de televisão digital o motivo a demora? Não
bastaria que grupos de emissoras privadas em associação com os fabricantes de televisores
iniciassem a implantação da TV digital sem a interferência do governo, da forma que melhor
lhes aprouvesse, de acordo com as condições do mercado? O mercado brasileiro que já conta
com uma classe média robusta, ávida de novidades tecnológicas não aderiria rapidamente à
TV digital, tal como aderiu tão rapidamente aos celulares cada vez mais modernos? Se o
governo não tivesse que se meter nisso o processo já não teria se iniciado pela ação de
grupos empresariais nacionais e internacionais? Mas, antes disto, por que o governo tem de
se meter nesta questão? A resposta está na Constituição: compete à União explorar
diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os serviços de radiodifusão
de sons e de sons e imagens (art. 21, XII, “a”). A atividade de radiodifusão de imagens e sons
no Brasil é de competência do Estado, a iniciativa privada só pode tomar parte dela mediante
outorga e deve se submeter à regulação estatal.
A própria norma constitucional está imbuída de um claro sentimento de
desconfiança com relação a um meio de comunicação social. Não é livre a abertura de um
canal de rádio ou de televisão. Os pretendentes devem passar pelo crivo do Estado. Devem
apresentar as suas credenciais de boas intenções, afinal um meio tão poderoso de difusão de
informação não pode ficar disponível para os maliciosos, os manipuladores das massas. O
crivo da sociedade civil não é o bastante, a seleção do mercado consumidor não é confiável,
o povo não sabe escolher o que deve assistir na tevê. Tanto é assim que o legislador
constitucional definiu o que as emissoras devem veicular preferencialmente no art. 221:
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que
objetive sua divulgação;
III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais
estabelecidos em lei;
IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
É preciso salientar aqui que o sistema de concessões abre precedentes para a
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corrupção e o clientelismo. Afinal quem garantirá que os governantes não privilegiarão os
seus apaniguados, os seus financiadores de campanha, os seus correligionários ideológicos
nas concessões? Afinal vivemos no país do patrimonialismo, da confusão do público e do
privado, não é verdade? Não serviria o sistema também para a manutenção forçada de
monopólios?
A Constituição também demonstra um forte espírito de desconfiança com relação
ao estrangeiro. Só podem ser proprietários de empresas jornalísticas ou de radiodifusão
brasileiros ou empresas constituídas no Brasil segundo as leis brasileiras, mas neste caso,
devem ter 70% do capital votante, no mínimo, nas mãos de brasileiros natos ou naturalizados
há mais de 10 anos. De qualquer forma a responsabilidade editorial e as atividades de direção
e seleção de programação são privativas de brasileiros natos ou naturalizados há mais de 10
anos. Há a suspeita constitucional de que o empresário estrangeiro dirigirá sua atividade
jornalística contra os interesses nacionais. Há uma presunção de má-fé nacionalista na
constituição.
Há nisto tudo uma certa desconfiança contra o tecnológico. É preciso atentar para o
fato de que o decreto referido acima autoriza a implantação da TV digital no Brasil, mas o faz
com uma série de restrições. A mais óbvia é quanto à tecnologia empregada. Não há
liberdade de escolha, as empresas de rádiodifusão não poderão optar pela tecnologia
empregada segundo sua própria avaliação. Há, assim, um certo engessamento tecnológico.
O temor e a desconfiança ante a inovação tecnológica é uma das razões do nãodesenvolvimento.
Peyrefitte,
estuda
o
assunto
comparando
a
divergência
de
desenvolvimento entre França e Inglaterra. A primeira, refratária ao desenvolvimento
tecnológico, cercou-o de uma excessiva regulamentação nos tempos de Colbert, a segunda
deixou-o livre. A primeira adotava “regulação” minuciosa, a segunda uma regulamentação
genérica:
A terceira divergência concerne à organização: traduz-se na regulamentação
colbertista, diametralmente oposta à desregulamentação que rege a Grã-Bretanha
e seu Império – desregulamentação aliás relativa e progressiva, que pouco a pouco
dá lugar à regulamentação natural do mercado, evitando cuidadosamente o
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desregramento. 7
A regulação colbertista é abrangente e minuciosa, quer abranger todos os processos
de produção e controlá-los nos mínimos detalhes. Peyrefitte reconhece o talento de Colbert.
Sua regulação era, de fato, competente, mas engessava o desenvolvimento futuro das
tecnologias:
Mas essa enciclopédia de artes e ofícios, cem anos antes da Enciclopédia, e cento e
vinte anos antes do Conservatório Nacional de Artes e Ofícios, não era somente,
nem para começar, enciclopédia. Era antes de tudo uma regulamentação que
imobilizava as técnicas no ponto a que haviam chegado (...) Para citar apenas um
exemplo: será preciso esperar três quartos de século (1759) para ser autorizada na
França a fabricação de algodão estampado, até então “proibido por ser prejudicial
às manufaturas de seda e de lã.
José Osvaldo de Meira Penna postula que esta mentalidade regulatória excessiva é
proveniente da filosofia racionalista dos séculos XVII e XVIII, a qual gerou o “despotismo
esclarecido”. Este se esteia na crença no poder humano de controlar desde o cimo do poder
político centralizado todos os aspectos da vida social. 8 O “despotismo esclarecido” é
continuado no positivismo de Augusto Comte e na sua versão brasileira, castilhista, que
tanto influenciou as ditaduras militares brasileiras e o governo de Getúlio Vargas. Leia-se a
respeito a obra de Antônio Paim: “A Querela do Estatismo.” Mas a história tem demonstrado
que o centralismo regulador não tem mostrado maior eficiência que o mercado
relativamente desregulamentado na produção do desenvolvimento. O colbertismo, por
exemplo, pode ser apontado como uma das causas mesmas da estagnação francesa:
Peyrefitte nota que 'a inversão de sentido' no crescimento da França coincide com
o estabelecimento da centralização e do dirigismo. Colbert perseguiu uma quimera
comparável à dos Jesuítas no Paraguai ou das sociedades planificadas do século
XX: tornar próspero o reino ao transformar cada indivíduo em executante dócil das
decisões econômicas racionalmente alcançadas na cúpula. No que diz respeito à
docilidade, conseguiu o que queria. Mas não no plano da prosperidade. E
acrescenta: 'De uma nação forte, o Estado poderia haver tirado sua força: o Estado,
a si recolhendo toda a força, deixará débil a nação'... Ele resume com ironia o
resultado: 'Ontem, um rei se considerava o próprio Estado (L’Etat c’est moi), hoje é
o Estado que rei se considera.' O diagnóstico do ex-ministro incrimina o estatismo
7 Op. cit., pp.197
8 MEIRA PENNA, José Osvaldo. O Dinossauro. T. A. Queiroz Editor, 1988.
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intervencionista das teorias mercantilistas e absolutistas, alucinadas pela idéia de
que o despotismo dos decretos é capaz de resolver todos os problemas da nação.
Mas a França perde sua posição de vanguarda, primeiro para a Inglaterra, e depois
sucessivamente para os demais países da Europa ocidental e países ultramarinos
de língua inglesa que deram confiança à iniciativa privada. Colbert é uma espécie
de primeiro modelo do superburocrata. O Leviatã absolutista que Luís XVI incluía
este funcionário típico que trabalhava dezesseis horas por dia, que era tão frio,
inflexível e cruel que Madame de Sévigné o apelidara 'Le Nord', e que esfregava as
mãos de volúpia quando chegava ao escritório, as 5 e 30 da madrugada, e
encontrava a mesa apinhada de processos para despachar. De fato, tudo
despachava. Despachava também para as galeras os comerciantes que ousassem
importar do exterior, em concorrência com as manufaturas estatais tecidos de
algodão. E tudo regulamentava, disciplinava, obstruía, ordenava, coibia com as
suas famosas Ordonnances (...) A iniciativa privada era sempre suspeita. A
economia era desenhada geometricamente, à la française como os jardins, mas o
resultado final é que em todos os terrenos a França começa a ficar para trás já a
partir de 1.800.9
Não há a melhor dúvida de que Colbert é o protótipo da economia planificada dos
países totalitários do século XX. É também o protótipo da nossa “militoburocracia paranóica”
(expressão de Roberto Campos) que, com suas reservas de mercado e exigência de
aprovação estatal dos projetos de implantação tecnológica, atrasou enormemente o
desenvolvimento da informática no Brasil, como nos mostra Roberto de Oliveira Campos de
forma incontestável no segundo volume de seu livro de memórias “A Lanterna na Popa.”
Referências bibliográficas
CAMPOS, Roberto de Oliveira. A Lanterna na Popa, 2v. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, 2ª. v.
CARVALHO, Olavo. Doença Existencial e Fracasso Econômico-Social. Porto Alegre: IEE, 2005.
DELGADO, Maurício G. Introdução ao Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: LTr, 3ª.
MEIRA PENNA, José Osvaldo. O Dinossauro. T. A. Queiroz Editor, 1988.
PEYREFITTE, Alain. A Sociedade de Confiança: Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
MEIRA PENNA, José Osvaldo. O Dinossauro. T. A. Queiroz Editor, 1988.
9 Idem, pp. 228 e 229
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SCHWARTZMAN, Simon. Bases do Autoritarismo no Brasil. Rio de Janeiro e Brasília: Editora
Campus e Editora da Universidade de Brasília, 1988, 3ª. ed.
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OLIVEIRA, Vinícius de. "O DIREITO DA DESCONFIANÇA". Ibérica