A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Textos escolhidos e apresentados
por ZAGHLOUL MORSY
FICHA TÉCNICA
TÍTULO
A Tolerância
TÍTULO ORIGINAL
La Tolérance
SELECÇÃO E APRESENTAÇÃO DE TEXTOS
Zaghloul Morsy
1ª EDIÇÃO
UNESCO 1975
TRADUÇÃO DO FRANCÊS
Maria Luísa Ribeiro Ferreira
EDITOR
Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas - ACIME
R. Álvaro Coutinho, 14, 1150-025 Lisboa
Telefone: (00351) 218106100 Fax: (00351) 218106117
e.mail: [email protected]
DESIGN GRÁFICO
Cristina Cascais
(Ginger and Fred designers)
EXECUÇÃO GRÁFICA
António Coelho Dias
ISBN
989-8000-28-7
TIRAGEM
2.500 exemplares
Nº DO DEPÓSITO LEGAL
250099/6
Lisboa Novembro de 2006
ÍNDICE
05
REFERÊNCIAS
07
O HOMEM DA AMBIVALÊNCIA
07
10
15
16
20
22
22
24
26
28
29
35
36
41
45
57
59
59
61
68
75
A postulação espiritual
O postulado da violência
PROFETAS DESARMADOS: VARIAÇÕES SOBRE UMA MENSAGEM
Uma transcendência criadora
Os homens: semelhantes, iguais
Quatro mandamentos
O dever de amor
O amor e a justiça
O imperativo de justiça
Pregar, não violentar
A morte e os fins últimos
A MENSAGEM SONHADA
Cidade carnal, cidade de Deus, utopias
Disputas racionais: a salvação da “consciência errante”
Disputas confessionais: a oração de Abraão
VIGÁRIOS ARMADOS: A MENSAGEM SUBMETIDA AO REAL
Uma máquina infernal: a intolerância
Ásia: a voz indiana
Cauções e representações
Interlúdio
Lamentações
81
82
89
99
105
109
110
115
119
119
133
138
145
152
154
160
17 1
186
186
194
207
209
2 14
216
219
222
227
229
231
O cerne da questão: «Deus ou Mammon»?
Sob o olhar do Ocidente...
Sob o olhar dos Bárbaros
Fim ou começo?
Um drama suspenso
A VERDADE EM QUESTÃO
A traição da mensagem
A alternativa
O fundo do problema
Verdade e violência
Consciência e direito
O homem e o cidadão
Ásia: a via chinesa
A TOLERÂNCIA: CONCEITO RÍGIDO OU NOÇÃO DINÂMICA?
Éditos, decretos, aberturas...
As astúcias da tolerância formal
Minorias a tempo inteiro ou cidadãos sem direitos ?
Um acordo ambíguo
Concessões espirituais
A pedra de toque da censura
A recusa do gueto
O fim da tolerância clássica
Cláusula de espera
DA TOLERÂNCIA AO CONHECIMENTO
A mística e o desejo de salvação universal
O político e o combate pela felicidade aqui e agora
Homem antigo, mundo novo
Se o homem não decair
BIBLIOGRAFIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 5
REFERÊNCIAS
O tema e os termos do problema situam-se, todos eles, explícitos ou a germinar, nestes
cinco textos, embora aparentemente sem ligação: por um lado, a postulação de uma
harmonia universal, fonte de unidade – aqui simbolizada pela Sabedoria inventando
a música, pelo valor absoluto de toda a vida na responsabilidade essencial e recíproca
de cada homem e da comunidade humana, por fim a superioridade do amor sobre a
violência; face a ela e devido ao facto paradoxal do próprio homem, o escândalo da
diferença (supostamente maléfica) das convicções, dos “objectos” de culto, da cor da
pele... Entre ambos, uma mesma potência multiforme: o ouro, ou, se quisermos, a sua
pretensão ao poder, a todos os poderes.
A presente obra é o lugar do entrelaçamento e de uma tentativa de restituição desta
tragédia optimista.
1
Mas quando ela (Atena) salvou deste empreendimento perigoso o herói que lhe era
caro, a Deusa fabricou a flauta, o instrumento rico em todas as espécies de sons, para
imitar com ele o lamento sonoro que Euríalo proferia com os seus lábios febris; inventou-o, e, tendo-o inventado, fez dele um presente para os mortais, dando o seu nome
ao nomo de múltiplas cabeças, a esse vento glorioso que evoca as lutas que movem
os povos e que o bronze ligeiro deixa escoar, adaptado aos fiéis testemunhos dos
coreutas, os caniços que cresceram perto da cidade das Graças, na cerca da ninfa de
Céfiso. Se os homens obtêm alguma felicidade, nunca é sem trabalho. Hoje a divindade consegue alcançá-la; - mas o destino mantém-se inevitável; poderá vir um dia em
que, iludindo a nossa esperança, invertendo a nossa expectativa, obteremos tal coisa
– e far-nos-á ainda esperar por tudo o resto!”
Píndaro, 521-441 a.C., Grécia, Olímpicas, 12a
2
Eis porque prescrevemos aos filhos de Israel:
“Aquele que matou um homem
homem esse que nunca matou,
ou que não cometeu violência nesta terra,
6 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
é considerado como se tivesse morto todos os homens;
e aquele que salva um só homem
é considerado como se tivesse salvo todos os homens.”
Alcorão, Sura V, A mesa posta
3
Interrogamo-nos por vezes, sobretudo em presença do pecado: Deveremos recorrer
à força ou ao amor humilde? Usai apenas esse amor pois com ele podereis submeter
o mundo inteiro.
A humanidade cheia de amor é uma força temível, não havendo nenhuma outra que
se lhe assemelhe.
Dostoïevski, Rússia, Os irmãos Karamazov, 1880
4
(...)
Porque existe esse mal
que jaz no mais fundo de mim mesmo
deitado em água estagnada, surda e sossegada
quando o dia voraz surpreende o cheiro
deste sangue, do meu, tu dirás
que sempre no limiar tentou o seu galope amargo
mais justa perante Deus que as suas bocas exactas
a minha mentira (...)
Aimé Césaire, Martinica, Ferrements, 1960
5
O ouro é uma coisa maravilhosa ! Quem o possui é senhor de tudo aquilo que deseja.
Por meio do ouro podemos mesmo abrir às almas as portas do Paraíso.
Cristovão Colombo, Génova, Carta da Jamaica, 1503.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 7
O HOMEM DA AMBIVALÊNCIA
Para começar, um paradoxo, ou mesmo uma aporia: um homem sem rosto – da raça,
da cultura, da religião, do tempo e do lugar que quisermos – eleva um hino de graça
a um criador (deus ou princípio transcendente) na e através da criação e das criaturas;
dessa oração plural e una decorrem alguns valores universais fundamentais, muitas
vezes confundidos num só: a necessidade de paz, de justiça, de amor; ora, esse mesmo
homem, nesse mesmo tempo, ao descobrir o seu rosto, pensa abolir a razão por meio do
veneno, o amor justo por meio da cruz, a liberdade pelo ferro e pelo fogo.
A justiça, a liberdade e o amor verdadeiros serão portanto os ganhos dessa contradição
dramática.
A POSTULAÇÃO ESPIRITUAL
6
A confissão negativa
Papiro de Nu
O defunto dirige-se a Osiris:
Eis que trago no meu coração a Verdade e a Justiça,
Pois dele arranquei todo o Mal.
Não causei sofrimento aos homens.
Não usei de violência contra os meus familiares.
Não substitui a Justiça pela Injustiça.
(...)
Não cometi crimes.
Não fiz com que trabalhassem para mim em excesso.
(...)
Não maltratei os meus servos.
Não blasfemei contra os deuses.
Não privei o indigente da sua subsistência.
Não cometi actos amaldiçoados pelos deuses
Não permiti que um servo fosse maltratado pelo seu senhor.
Não provoquei sofrimento nos outros.
8 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
(...)
Não fiz chorar os homens meus semelhantes.
Não matei nem mandei matar.
O Livro dos Mortos, Egipto antigo
7
Ide todos, falai numa só voz, que os vossos espíritos possam ter os mesmos pensamentos, tal como os deuses antigos partilhavam a sua porção sacrificial em plena
concórdia! Que a concórdia marque as suas deliberações, as suas decisões, os seus
espíritos, os seus pensamentos! Pelo meu sortilégio asseguro a vossa deliberação harmoniosa; ofereço por vós uma oblação comum. Que as vossas intenções se harmonizem e que se harmonizem os vossos corações! Que os vossos espíritos se harmonizem
a fim de que entre vós haja uma harmonia perfeita!
Rigveda, X, Traduzido do sânscrito
8
Que a paz reine no mundo, que a cabaça se acomode ao pote. Que os animais se
entendam e que todas as palavras más sejam levadas para a selva, para a floresta
virgem.
Oração da Guiné
9
Votos dos antepassados Quíchua
Tu, Tzacol, Bitol, Criador, Modelador,
Olha para nós, escuta-nos (...)
Que a aurora chegue, que o dia venha!
Dá-nos muitos caminhos bons,
Caminhos bem planos,
Que os povos vivam em paz,
Que gozem de uma longa paz,
Dá-lhes prosperidade,
Dá-nos uma vida boa e uma existência útil!
Popol Vuh (Livro sagrado dos Quíchua), Guatemala
ENSAIO ANTOLÓGICO
Em nome de Deus:
o que faz Misericórdia,
o Misericordioso.
A TOLERÂNCIA 9
10
Louvor a Deus,
Senhor dos Mundos:
o que faz Misericórdia,
o Misericordioso,
o Rei do Dia do Juízo.
És tu a quem adoramos,
És tu
a quem imploramos socorro.
Dirige-nos pelo caminho recto:
o caminho daqueles que encheste de bens;
não pelo caminho dos que são alvo da tua cólera, nem pelo caminho dos perdidos
Alcorão, Sura I, A Fatiha
¯ .
Fiquemos em paz com o nosso povo
e com os povos que nos são estrangeiros,
Asvins, criou entre nós e os estrangeiros
Uma unidade de coração
11
Atharvaveda, (Hinos a Veda), 1200-1000 a. C.
12
Coro
Há muitas maravilhas neste mundo mas nenhuma é maior do que o homem.
Ele é o ser que sabe atravessar o mar cinzento, na hora em que sopram o vento sul e
as tempestades, e traça o seu caminho no meio dos abismos
abertos pelos agitados rios. Ele é o ser que atormenta a Deusa, entre todas augusta,
a Terra. (...).
10 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Aos pássaros aturdidos, encerra e aprisiona, tal como à caça nos campos e aos peixes
que povoam os mares, nas malhas das suas redes,
homem de espírito astucioso. Pelas suas artimanhas domina o animal selvagem que
corre pelos montes, e, quando vier a ocasião, subjugará tanto o cavalo de espessa
crina como o infatigável touro das montanhas.
A palavra, pensamento veloz como o vento, as aspirações de onde nascem as cidades,
tudo isso ele aprendeu consigo mesmo, tal como pôde, construindo abrigos,
afastando os traços do gelo ou da chuva, cruéis para todos os que apenas têm o céu
como tecto.
Armado contra todos, nada do que o futuro lhe oferece o pode desarmar. Só contra a
morte não tem encantamento que lhe permita escapar-lhe, embora já tenha conseguido imaginar mais de um remédio contra as mais pertinazes doenças.
Mas possuidor de um saber cujos recursos engenhosos ultrapassam toda a esperança, pode no entanto enveredar pelo caminho do mal, tanto quanto do bem.
Que dê então parte desse saber às leis da sua cidade e à justiça dos deuses, à qual
jurou fidelidade!
Então irá longe na sua cidade, mas será excluído dela no dia em que, por bravata, se
deixar contaminar pelo crime.
Que deixe então de ter lugar na minha casa e na dos meus amigos, se assim se comportar!
Sófocles, Grécia antiga, Antígona, 441 a. C
O POSTULADO DA VIOLÊNCIA
13
A acusação de Meleto
SÓCRATES: (...) Agora, é a esse homem honesto que é Meleto, a esse amigo dedicado
da cidade, como ele próprio se classifica, e aos meus recentes acusadores, que vou
procurar responder. Ora, como são distintos dos precedentes, tomemos, por sua vez,
o texto da sua queixa. Ei-la pouco mais ou menos: “Sócrates, diz ela, é culpado de
corromper os jovens, de não acreditar nos deuses em que a cidade acredita, substituindo-os por novas divindades.” Tal é a queixa. Examinemo-la ponto por ponto.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 11
(A defesa de Sócrates)
SÓCRATES: (...) Explica-nos, Meleto, de que modo pretendes que eu corrompo a juventude. Ou melhor, não resultará do texto da tua acusação que eu lhes ensino a não
acreditar nos deuses em que a cidade acredita, mas noutros, em novos deuses? É na
verdade assim, segundo o que dizes, que eu os corrompo?
– Com efeito, afirmo-o energicamente.
– Nesse caso, Meleto, em nome desses mesmos deuses, explica-nos mais claramente ainda o teu pensamento, a estes juizes e a mim próprio. Há uma coisa que não
compreendo bem: admites que ensine a existência de certos deuses – neste caso,
acreditando eu próprio em deuses, não sou de modo algum ateu, e a esse respeito
estou fora de causa – mas apenas pretendes que os meus deuses não são os da cidade, que são outros deuses e é disso que me acusas? Ou sustentas que não acredito
em nenhum deus e que ensino a não acreditarem?
– Sim, é isso que defendo: que não acreditas em nenhum deus!
– Que maravilhosa segurança, Meleto! Mas enfim, o que queres dizer? Que não reconheço mesmo a lua e o sol como deuses, como toda a gente?
– Não, juizes, ele não os reconhece como tal e afirma que o sol é uma pedra e que a
lua é uma terra...
– Enfim, por Zeus, é esse o teu pensamento, que eu não acredito em nenhum Deus?
– Em nenhum, por Zeus, em nenhum absolutamente.
– Que ousadia, Meleto. Parece-me que chegas a não acreditar em ti mesmo.O meu
pensamento, ó Atenienses, é que ele troça de nós descaradamente. Porque para
mim é claro que ele se contradiz sem motivo na sua queixa, a qual, em suma, consiste nisto: “Sócrates é culpado por não acreditar nos deuses, embora por outro lado
ele acredite nos deuses.” (...)
– Não me parece que seja justo implorar aos juizes, arrancar por pedidos, uma
absolvição que deveria ser obtida pela exposição dos factos e pela persuasão.
Não, o juiz não julga para fazer da justiça um favor mas para decidir aquilo que
é justo. Jurou, não que favoreceria capciosamente este ou aquele, mas sim julgar
segundo as leis. Por consequência, não devemos acostumar-vos ao perjúrio, mais
do que não deveis vós mesmos acostumar-vos; ofenderíamos os deuses, quer uns
quer outros.
– Deste modo, não exijais, ó Atenienses, que me comporte para convosco de uma
maneira que não me parece nem honrosa, nem justa, nem agradável aos deuses,
sobretudo, por Zeus, quando sou acusado de impiedade por Meleto, aqui presente. Pois, evidentemente, se vos persuadisse à força de rogos, se silenciasse
o vosso juramento, ensinar-vos-ia a acreditar que não há deuses; defender-me
desse modo seria acusar-me claramente a mim mesmo de não acreditar neles.
12 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Mas as coisas não são assim. Eu acredito, Atenienses, como nenhum dos meus
acusadores acredita, é por isso que remeto para vós e para a divindade o cuidado
de decidir o que será melhor para mim, tal como para vós (...)
Agora, vamos sair daqui, eu julgado por vós como digno de morte, eles [os meus
acusadores] julgados pela verdade, culpados de impostura e de injustiça. Pois bem,
fico-me com a minha avaliação, tal como eles ficam com a deles (...)
Quanto ao futuro, desejo fazer uma previsão, a vós que me condenastes (...)
Anuncio-vos pois, a vós que me fizestes morrer, que ireis suportar, logo que eu deixe
de viver, um castigo muito mais duro, por Zeus, do que aquele que me infligistes.
Ao condenar-me, pensastes libertar-vos da investigação exercida sobre a vossa
vida; ora, garanto-vos que se seguirá o contrário. Sim, tereis que vos haver com
outros inquisidores, mais numerosos, que eu reprimia, sem que disso duvidásseis.
Inquisidores tanto mais importunos quanto são mais jovens. E irritar-vos-ão mais.
Pois, se pensais que ao matar as pessoas impedireis que haja alguém que vos censure por viverdes mal, enganais-vos. Esta maneira de vos desembaraçardes dos censores, ouvi-me bem, não é nem eficaz nem honrosa. Há apenas uma coisa honrosa,
aliás muito fácil: consiste em não fechar a boca aos outros, mas em tornarmo-nos
verdadeiramente homens de bem. Eis o que eu tinha como previsão para aqueles
de vós que me condenaram.
(...) Mas eis a hora de nos irmos embora, eu para morrer, vós para viver. Da minha
sorte ou da vossa, qual é o melhor? Ninguém o sabe, a não ser a divindade.
Platão, 429-347 a. C., Grécia Antiga, Apologia de Sócrates
14
Jesus diante de Pilatos
(...) Então Pilatos regressou ao Pretório. Chamou Jesus e disse-lhe: “És tu o rei dos
Judeus?” Jesus respondeu: “ É por ti mesmo que o dizes ou foram outros que to
disseram de mim?” Pilatos respondeu: “Será que eu sou judeu? Os da tua nação e os
sumos sacerdotes é que te puseram nas minhas mãos. Que fizeste?” Jesus respondeu:
“O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, a minha gente
teria combatido para que eu não fosse entregue aos Judeus. Mas o meu reino não é
daqui.” - “Então tu és rei” disse-lhe Pilatos. – “Tu o dizes, sou rei”, respondeu Jesus, e
só nasci e só vim ao mundo para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da
verdade escuta a minha voz.”
Pilatos disse-lhe: “O que é a verdade?”
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 13
A crucificação
Levaram Jesus, o qual, levando a sua cruz saiu da cidade para um lugar chamado
Crânio, em hebraico Gólgota, onde o crucificaram e com ele dois outros: um de cada
lado e Jesus no meio.
Novo Testamento, A Paixão segundo S. João, XVIII,XIX
15
Cortez mandou erguer um estrado, o melhor que pôde, com panos, esteiras, bancos,
e preparar um repasto com os víveres de que dispunha para si mesmo. Sandoval e
Holguim chegaram com o prisioneiro (Cuauhtemoc, último imperdador azteca).
Cortez manifestou-lhe grande respeito, deu-lhe um abraço prazenteiro e demonstrou-lhe grande amizade, assim como aos capitães. Cuauhtemoc disse a Cortez:
“Senhor Malinche, fiz o impossível para defender a minha cidade e os meus súbditos. Não posso fazer mais nada. Eis-me diante de ti, prisioneiro. Toma este punhal
que trago à cintura e mata-me!” Chorava abundantes lágrimas. Todos os senhores
do séquito choravam também. Por meio de Dona Marina e Aguilar, Cortez respondeu delicadamente que tinha por ele a maior consideração pois tinha mantido e
defendido com valentia a sua cidade, pelo que merecia ser estimado e não censurado. Cortez teria preferido que, vendo-se vencidos, os mexicanos viessem por sua
iniciativa a aceitar a paz. Haveria menos mortos, menos ruínas. Mas isso pertencia
ao passado, não havendo remédio. Pedia-lhes então, ao rei e aos seus capitães, que
acalmassem as suas inquietações. Governaria o México e o país como no passado.
Cuauhtemoc e os seus capitães agradeceram-lhe.
(...)
Cuauhtemoc, grande cacique do México, e outros notáveis, tinham discutido e
tinham engendrado um plano segundo o qual deveríamos ser mortos de modo a
que eles voltassem de novo para o México. Regressados à sua cidade, reuniriam
todas as suas forças para atacar de novo os Espanhóis que aí se encontrassem.
Dois caciques mexicanos, chamados Tapia e Juan Velasquez revelaram esse plano
a Cortez. Logo que Cortez soube de tal coisa, procedeu a investigações, não só
junto desses dois caciques, mas junto de outros que faziam parte da conspiração
(...).Cuauhtemoc reconheceu que tudo era verdade, mas que a ideia não tinha partido dele, que não sabia se todos os caciques estavam de acordo; ignorava mesmo,
disse, se não era apenas um projecto que apenas tinha sido ventilado. O cacique
de Tacuba reconheceu que Cuauhtemoc e ele tinham dito que mais valia morrer
de uma vez do que agonizar todos os dias. Sem mais provas, Cortez ordenou que
enforcassem Cuauhtemoc e o seu primo Tacuba. Os irmãos franciscanos foram
14 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
encorajá-los e encomendá-los a Deus. No momento de ser enforcado Cuauhtemoc
disse: “Senhor Malinche, desde há muito sabia serem as tuas palavras mentirosas e
que acabarias por me matar! Porque é que não me matei quando entraste na minha
cidade? E porque me executas sem julgamento? Deus irá pedir-te contas!” (...)
A morte de Cuauhtemoc e do seu primo fizeram-me muito triste. Sabia que ambos
eram grandes senhores (...) Tais mortes foram injustas. Era isso o que pensávamos,
nós que tínhamos vivido esta aventura.
Bernal Diaz del Castillo, 1495-1582, A história verídica da conquista da Nova Espanha
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 15
PROFETAS DESARMADOS:
VARIAÇÕES SOBRE UMA
MENSAGEM
No começo, tudo parece claro no espírito dos homens: um mediador, Bodhisatta, solitário e sem armas, retira-se do seu povo para melhor lhe falar, no regresso. E aquilo que
diz são coisas simples: esse homem de todas as raças e culturas, de todas as línguas e
heranças, ensina um Iniciador transcendente, distribuidor de luz e de vida, apelando ao
amor, à verdadeira justiça, à unidade pelo diálogo entre os homens, certamente perecíveis mas neste mundo iguais e semelhantes, a despeito da diferença de acidentes, não
de natureza. Para todos, o essencial é que “se entendam”, aqui, entre homens de coração
e de razão. No termo do caminho da sua vida, o homem só é julgado pelo bem e pelo
mal realizados. Quanto às diferenças, o “criador” a elas atende e renuncia àqueles que,
em seu nome, buscavam glória, reprimindo-os.
O “criador”, assumindo assim o humano de toda a humanidade, não poderia, sem desmesura, ser monopolizado por qualquer homem ou por qualquer grupo, e muito menos
ser substituído por eles.
Se neste estádio, o conceito do “Outro” nada mais é do que ignorância, o “Outro” concreto fica, para ser questionado, com paciência e constância, nunca para ser posto em
questão: tal é a mensagem desses mediadores desarmados e sem bens.
16
Era uma vez um rei de Kasi, chamado Kalabu, que reinava em Benares. Nesse tempo,
nascia o Bodhisatta sob forma de uma criança chamada Koundaka-Koumara, numa
família rica de bramanes que possuía oitenta croras de tesouros (cada crora vale dez
milhões de rupias). Quando cresceu, o Bodhisatta aprendeu, em Takkasila,
¯ todas as
ciências e seguidamente fixou-se em casa dos seus pais.
Quando estes morreram, perante a quantidade de tesouros que herdou, KoundakaKoumara disse para si mesmo: “Os meus pais, que juntaram todas estas riquezas
desapareceram sem as levarem com eles. Agora pertencem-me e é a minha vez de
partir...” Então, distribuiu as suas riquezas por pessoas conhecidas pelas suas virtu-
16 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
des caritativas e dirigiu-se para as montanhas dos Himalaias onde viveu como um
asceta, alimentando-se de frutos selvagens [ segue 116, 201, 288]
Khantivadi-Jataka
UMA TRANSCENDÊNCIA CRIADORA
17
Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, abundância e fome. Transforma-se
como o fogo em que se misturam aromas. Cada um o nomeia como quer.
Heráclito de Éfeso, Grécia antiga, cerca de 540-480 a. C.
18
A primeira estância trata do Buda transcendente, cuja manifestação na terra é o BudaRei de Java. A segunda indica que os membros das comunidades não budistas dão
nomes diferentes ao mesmo Buda transcendente.
Amen. Glória a ti, Senhor. O servo (o sacerdote) canta incessantemente louvores ao
Senhor.
Que se esconde a ponto de anular a concentração mental. Que é a essência da matéria e do espírito, Civa-Buda (...)
Para aqueles que veneram Vishnu, Ele é “Aquele que impregna todo o Universo, a
Alma de tudo o que existe, Aquele que não pode ser qualificado.”
Para os filósofos do Yoga, Ele é Içvara; para os filósofos do Sangkhya, Ele é Kapila. Ele
é Kubera materializado, que é o Deus da riqueza, e Wrhaspati que é o Deus do saber;
Ele é Kâma atendendo ao Kâmasûtra (doutrina das relações sexuais).
Ele é Yama quando se trata de eliminar obstáculos. O fruto da sua acção é a felicidade
e a prosperidade dos homens.
¯
¯
Nagarakrtagama,
panegírico composto no reinado de Madjapahit, Java, 1365
19
Tu és Deus e todos os seres são Teus servos, tua propriedade; a Tua honra não é diminuída pelos servos dos outros, pois todos desejam chegar a Ti; mas são como cegos;
dirigem a sua rota para a face do Rei e, fora da rota, extraviam os seus passos. (...)
Mas os Teus servos são como aqueles que têm os olhos abertos, e que andam na via
recta, não se desviando para a esquerda nem para a direita, antes de terem chegado
ao pátio da casa do Rei.
Ibn Gabirol, Andaluzia, A coroa da realeza, cerca de 1050
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 17
20
Ele é Deus!
Só ele é Deus.
Aquele que conhece o que se esconde e o que é aparente.
Ele é o que usa de misericórdia,
o misericordioso.
Ele é Deus!
Não há nenhum outro Deus! (...)
Glória a Deus!
O Criador,
aquele que dá início e fim a todas as coisas,
aquele que modela.
Os Nomes mais belos pertencem-lhe.
O que existe no céu e na terra canta os seus louvores.
Ele é o Todo –Poderoso, o Sábio.
Alcorão, Sura LIX, A reunião
21
Entre todas as criaturas privadas de razão amava especialmente o sol e a lua, e dizia:
“De manhã, quando do sol se levanta, todo o homem deveria louvar a Deus que criou
o sol para nos ser útil; visto que, por ele, os nossos olhos são iluminados durante o
dia; e à tarde, quando a noite vem, todo o homem devia louvá-Lo pelo nosso irmão
fogo, visto que por ele os nossos olhos são iluminados durante a noite: porque somos
todos cegos, e o Senhor por meio destes nossos dois irmãos ilumina os nossos olhos;
e assim, especialmente por eles e por todas as outras criaturas que usamos quotidianamente, devemos louvar o Criador.”
S. Francisco de Assis, 1182-1226
Ó Viracocha, Senhor do Universo,
Quer sejas macho,
Quer sejas fêmea,
Senhor da reprodução,
Onde possas estar,
Senhor da adivinhação,
22
18 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Onde estás?
Podes estar em cima,
Podes estar em baixo,
Ou talvez em volta,
Com o teu esplendido trono e o teu ceptro!
DEH, escuta-me!
Do alto do céu,
Onde talvez estejas,
Do fundo do mar,
Onde talvez estejas,
Criador do mundo,
Fazedor de todos os homens,
Senhor de todos os senhores,
Meus olhos abandonam-me
Pelo desejo de te ver,
Apenas pelo desejo de te conhecer.
Pudesse eu admirar-te,
Pudesse eu conhecer-te, (...)
Pudesse eu compreender-te!
Volta sobre mim o teu olhar,
Porque tu me conheces.
Grande hino a Viracocha (deus da chuva entre os Incas), Peru
23
O teu Senhor em breve te concederá os seus dons
E ficarás satisfeito.
Porventura não te encontrou orfão
e te conseguiu um refúgio?
Encontrou-te perdido
e guiou-te.
Encontrou-te pobre
e enriqueceu-te.
Quanto ao orfão
não o maltrates.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 19
Quanto ao mendigo
não o expulses.
Quanto às benfeitorias do teu Senhor
Proclama-as.
Alcorão, Sura XCIII, A claridade do dia
24
Ele [Yahvé] guarda para sempre a verdade,
é justo para os oprimidos,
dá pão aos famintos,
Yahvé liberta os prisioneiros,
Yahvé dá vista aos cegos,
Yahvé ergue os que caíram,
Yahvé protege o estrangeiro.
Sustenta o orfão e a viúva.
Bíblia hebraica, Salmo 146
25
A santidade suprema é feita de amor, de bondade e de tolerância. O ódio, a vingança
e a dureza decorrem do esquecimento da palavra de Deus e do empalidecer do brilho
da sua santidade.
Rabbi Yizhak, Ha-Cohen Kook, Mussar Ha-Kodesh, 1938
26
Se Deus quisesse julgar sem piedade a raça humana, condená-la-ia. Porque nenhum
homem pode por si mesmo fazer todo o seu percurso sem cair, seja voluntariamente,
seja involuntariamente; também, para salvar a raça, embora permita quedas pontuais, mistura a misericórdia com a justiça, mesmo para com os indignos; e não é depois
de julgar que tem piedade, é depois de ter piedade que julga; porque nele a piedade
vem antes da justiça.
Fílon de Alexandria, 13 ? a. C. – 54? d. C.
27
A ti minha alma, a ti luz que desces
Não te afastes, não te afastes!
Ó meu amor, a ti visão esplendorosa, não te afastes,
20 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Não te afastes!
(...)Verdadeira Parsi e verdadeira Bramane
Cristã e no entanto muçulmana,
Tu, em quem acredito como na Justiça
Não te afastes, não te afastes.
Em todas as mesquitas, em todos os pagodes, em todas as igrejas,
Encontro o mesmo santuário;
O teu rosto é neles a minha única alegria;
Não te afastes, ó não te afastes!
Jalal
¯ al Din,
¯ al-Rumi,
¯ ¯ 1207-1273, Pérsia
28
Khmvum, ó Khmvum, tu és o Senhor
Ó Criador, Senhor de tudo,
Senhor da floresta, Senhor das coisas,
Senhor dos homens, ó Khmvum,
E nós, os pequenos, nós somos os súbditos.
Senhor dos homens, ó Khmvum,
Ordena, ó Senhor da vida e da morte
E nós obedeceremos.
Oração dos Pigmeus
OS HOMENS: SEMELHANTES, IGUAIS
29
O Mestre disse: “Os homens são todos semelhantes por natureza; são diferentes
pelos hábitos que contraem.”
Confúcio, 551? – 479? a.C.
30
Por que razão Deus formou um único homem, aquando da criação? Foi a pensar na
concórdia, para que nenhum homem possa dizer ao outro: sou de uma raça mais
nobre do que a tua.
Talmud Sanhedrin, IV
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 21
31
Aqueles que são de boas famílias, respeitamo-los e honramo-los; aqueles que são de
uma casa pobre, não os respeitamos nem honramos; no que nos comportamos uns
para com os outros como os Bárbaros. O facto é que, por natureza, somos todos e
em tudo de idêntico nascimento, Gregos e Bárbaros; e é permitido constatar que as
coisas que são necessárias de necessidade natural são comuns a todos os homens (...)
Nenhum de nós foi distinguido, na sua origem, como Bárbaro ou como Grego: todos
nós respiramos o ar pela boca e pelas narinas.
Antífon, séc. V a. C, Grécia Antiga
32
Para nós todas as cidades são a mesma, todos os povos são irmãos; o bem e o mal
não nos vêm dos outros.
Purananuru, séc. II a. C – séc. II d.C
Período Sangam, traduzido do Tamil
33
Os homens formavam uma só comunidade, depois
opuseram-se uns aos outros.
Se uma palavra do teu Senhor
não tivesse intervindo antes
teria sido tomada uma decisão
relativamente aos seus diferendos
Alcorão, Sura X, Jonas
34
Todos os homens são iguais entre si como os dentes do pente do tecelão; o branco e o
negro, o Árabe e o não Árabe não diferem, a não ser pelo seu grau de temor a Deus.
Hadith
. ¯ (Ditos do Profeta Muhammad)
.
22 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
QUATRO MANDAMENTOS
O dever de amor
35
Antígona: Hades não quer ver aplicar esses ritos.
Creonte: O bom não se põe ao nível do mau.
Antígona: Quem sabe se, na terra a verdadeira piedade reside nisso.
Creonte: O inimigo, mesmo morto, nunca é um amigo
Antígona: Sou daquelas que amam, não das que odeiam.
Sófocles, Grécia Antiga, Antígona, 441 a. C
36
- Mestre, qual é o maior mandamento da lei?
Jesus respondeu-lhe: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a
tua Alma e com todo o teu pensamento.”
É o primeiro e o maior de todos os mandamentos.
Eis o segundo que lhe é semelhante: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo.”
Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas.
Novo Testamento, S. Mateus, XXII
37
O Mestre disse: “O sábio ama todos os homens e não tem parcialidade por ninguém.
O homem comum é parcial e não ama todos os homens.”
Confúcio, 551? – 479? a.C., China, Conversações
38
A partir de hoje o meu coração pode tomar todas as formas,
Um prado para as gazelas, um claustro para os monges,
Um santuário para os ídolos, uma Caaba para os peregrinos,
As tábuas da Torah e o livro do Alcorão.
Pratico uma religião de Amor: seja qual for o ponto
Para onde se dirija a caravana do Amor
Aí estão a minha religião e a minha fé.
Mu y al-D n b. Arab , 1165-1240, Andaluzia,
Turjum n al-A w q
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 23
39
Amo todas as coisas. Não posso impedir-me de amar cada criatura, cada pessoa.
Com todo o meu ser aspiro à glória e à perfeição de toda a humanidade. O meu amor
pelo povo de Israel é mais intenso e mais profundo mas, em mim, o amor por toda
a criação é mais intenso e invade-me totalmente. Na verdade, não tenho qualquer
necessidade que me constranja a amar, pois o meu amor emana directamente das
profundezas sagradas do Ser divino.
Rabbi Yizhak, Ha -Cohen Kook, Arpheley Tohar, 1914
40
Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade sou como
o bronze que ressoa ou como o címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e que conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que tenha a plenitude
da fé, uma fé que me leve a transportar montanhas, se não tiver caridade, nada sou.
Ainda que distribua todos os meus bens em esmolas, ainda que entregue o meu corpo
às chamas, se não tiver caridade, de nada me serve.
A caridade é paciente; a caridade é dócil; não é invejosa; não se ufana, não se ensoberbece; nada faz que seja inconveniente, não procura o seu interesse, não se irrita,
não suspeita mal; não rejubila com a injustiça, mas alegra-se com a verdade. Tudo
desculpa, tudo espera, tudo suporta.
Novo Testamento, Primeira epístola de S. Paulo aos Coríntios, XIII
41
A caridade é a lei suprema, e quem pode separar o amor da caridade?
Shakespeare, 1564-1616, Inglaterra, Canseiras de Amor em Vão,
acto IV, cena III
42
Pensai com amor e simpatia em todos os seres, quaisquer que eles sejam, que alimentam um amor profundo pelo país da Beatitude e que pronunciam o nome de Buda;
pensai neles como se fossem vossos pais ou vossos filhos, embora vivam noutros
lugares, mesmo para além dos sistemas cósmicos.
Ajudai aqueles que têm necessidade de ajuda material neste mundo.
Esforçai-vos por reavivar a fé em todos aqueles nos quais vos apercebeis que há uma
semente de fé.
E considerai todos esses actos como serviços desempenhados para com Amita
Buda.
24 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
(...) Quando invocamos Buda, quando o chamamos pelo seu nome com a firme crença de que renasceremos no seu paraíso, podemos estar seguros de que seremos um
dia recolhidos por ele. Para isso, não há outro mistério que não seja pronunciar o seu
nome com fé.
A sua luz penetra nos mundos, em todas as direcções.
A sua graça não abandona aquele que o invoca.
Honen, séc. XII, Japão
43
A punição de um mal é um mal idêntico, mas aquele que perdoa e que se emenda
encontrará junto de Deus a sua recompensa.
Deus não ama os injustos.
Alcorão, Sura XLII, A deliberação
O amor e a justiça
44
O homem foi criado, ser único provido de uma alma na terra, o que nos mostra que
aquele que é causa da morte de um único ser, neste mundo, pode ser considerado
como tendo morto todos os homens, enquanto que aquele que salva um único ser
humano na terra pode ser considerado como se tivesse salvo toda a humanidade.
Maimónides, 1135-1204, Hilkhot Sanhedrin
45
Kung Tzeun perguntou se existia um preceito que incluísse todos os outros e que
tivéssemos de observar toda a vida. O Mestre respondeu: “Não será o preceito de
amar todos os homens como a nós mesmos? Não fazei aos outros o que não quereis
que vos façam a vós mesmos.”
Confúcio, 551? – 479? a.C., China, Conversações
46
Um outro pagão veio diante de Schammai e disse-lhe: “ Far-me-ei judeu; mas é preciso que me ensines toda a Lei, enquanto eu me apoiar num só pé”. Schammai mandouo embora batendo-lhe com a régua que tinha na mão.
O idólatra dirigiu-se depois a Hillel, com o mesmo desejo; e o mestre disse-lhe: “O que
não gostas que te façam, não o faças aos outros. Isto é toda a Lei, o resto não é mais
do que comentário: vai e aprende isto.”
Maimónides, 1135-1204, Schabbath
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 25
47
Portanto, tudo o que desejardes que os outros vos façam, fazei-o também a eles; eis
a Lei dos Profetas.
Novo Testamento, S. Mateus, VII
48
Só é crente aquele que quer para o seu irmão aquilo que quer para si mesmo.
adith (Ditos do Profeta Mu ammad)
49
É ele que respeita os direitos do orfão e da viúva e ama o estrangeiro a quem dá pão
e agasalho.
Amai o estrangeiro pois fostes estrangeiros no país do Egipto.
Bíblia hebraica, Deuteronómio, 10
50
Ó Deus, aceita este sacrifício, pois o homem branco veio a minha casa. Quando o
homem branco adoecer, faz com que nem ele nem a sua mulher fiquem muito doentes. O homem branco veio da sua pátria, do outro lado do mar, para a nossa terra; é
um homem bom e trata bem as pessoas que para ele trabalham. Se o homem branco
e a sua mulher adoecerem, que não fiquem muito doentes pois eu e o homem branco
unimo-nos para te fazer um sacrifício (...). Para onde quer que ele vá, não o deixes
ficar doente pois ele é bom e também extraordinariamente rico, e eu sou também
bom e rico; e eu e o homem branco vivemos em tão boas relações como se fossemos
filhos de uma mesma mãe (...). Faz com que eu não fique muito doente pois ensineilhe a rezar-te como se ele fosse um verdadeiro Mikikuyu.
Oração de um chefe do Quénia
51
E mais ainda, meus irmãos, mesmo que os ladrões de estrada vos cortassem em
bocados, membro a membro, com uma serra de cabo duplo, se o espírito de qualquer
um de vós se vingasse, esse não seria um dos meus discípulos. É assim que deveis
aprender a conduzir-vos (...).
O nosso coração mater-se-á firme, nenhuma palavra malévola escapará dos nossos
lábios e manter-nos-emos atentos à felicidade dos outros, desprovidos de rancor e
com um coração cheio de amor. (...) É assim, meus irmãos, que deveis conduzir-vos.
Majjhima Nikaya, séc. XI a. C, traduzido do Pali
26 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
52
Eis aqueles que receberão uma dupla recompensa,
porque foram constantes,
porque responderam ao mal com o bem,
porque deram em esmolas uma parte dos bens que lhes tínhamos concedido
Alcorão, Sura XXVIII, A narração
53
O Profeta diz a Oqba b.Amir: “Ó Oqba, indico-te o melhor comportamento das pessoas deste mundo e da eternidade: junta-te a quem se separou de ti, dá a quem te
privou, perdoa a quem te fez mal.”
adith (Ditos do Profeta Mu ammad)
54
Um homem apresentou-se diante de Omar b. Abdel Aziz e, queixando-se de que um
outro homem o tinha lesado, caluniou-o. Omar disse-lhe então: “É melhor para ti
teres encontrado Deus e a injustiça, tal como ela se te apresentou, do que tê-la suportado e dela te teres vingado.”
Ghaz l , 1058-1111, Pérsia
Revivificação das ciências da religião
55
No dia do Juízo, o Eterno, abençoado seja o Seu Santo Nome, chamará todas as nações
para que dêem conta de todas as violações do mandamento: “Amarás o teu próximo
como a ti mesmo”, das quais se tornaram culpadas nas relações que estabeleceram.
Judas o Piedoso, séc. XII
O imperativo de justiça
56
Abraão estava ainda diante de Yahvé. Aproximou-se dele e disse: “Será que vais suprimir o justo com o pecador? Talvez haja cinquenta justos nesta cidade. É verdade que
os vais suprimir e não perdoarás à cidade devido aos cinquenta justos que estão no
seu seio? Longe de ti fazeres tal coisa! Fazer morrer o justo com o pecador, de modo
que o justo seja tratado como pecador. Longe de ti! Será que o juíz de toda a terra
não faz justiça?”
Bíblia hebraica, Génesis, 18
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 27
57
Mas tu, Perseu, escuta a Justiça. Não deixes que a desmesura cresça em ti. A desmesura é um mal para os pobres: mesmo os grandes têm dificuldade em suportá-la, o
seu peso esmaga-os no dia em que deparam com o infortúnio. É preferível o caminho
que, indo por outro lado, conduz às obras de Justiça (...)
Quanto a ti, Perseu, guarda no teu espírito estes avisos; escuta a Justiça, esquece a
violência para sempre. Tal é a lei que Cronos prescreveu aos homens: que os peixes, os
animais ferozes e os pássaros se devorem, visto que entre eles não há Justiça: mas aos
homens Zeus fez dom da Justiça, que é de entre todos o melhor dos bens. Àquele que
conscientemente manifesta a sua opinião segundo a Justiça, Zeus, de amplo olhar,
confere prosperidade; mas aquele que, deliberadamente, rectifica declarações mentirosas com juramentos e, portanto, ferindo a Justiça, comete um crime inexpiável,
verá a sua posteridade decrescer no futuro, enquanto que a posteridade do homem
fiel ao seu juramento crescerá no futuro.
Hesíodo, séc. VIII a. C, Grécia antiga, Os Trabalhos e os Dias
58
Assim fala Yahvé Sabaot. Diz ele: “Praticai uma justiça verdadeira e que cada um use
de bondade e de compaixão para com os seus irmãos.
Não oprimais a viúva e o orfão, o estrangeiro e o pobre nem mediteis no vosso coração maus desígnios de uns para com os outros.”
Bíblia hebraica, Zacarias, 7
59
Fazer mal a um estrangeiro, é como fazer mal ao próprio Deus.
Talmud, Chagigah, 5 a
60
‘Al ben Ab T lib, abençoado seja ele por Deus, escreveu a M lik, conhecido pelo nome
de al- Achtar al Nakm : “Chamo a tua atenção sobre a necessidade de clemência sobre
os súbditos, de os amar e de ser benevolente para com eles. Não procedas para com
eles como o leão feroz, o carniceiro que se apropria da sua comida. Os súbditos são de
duas espécies, são quer os teus irmãos de religião, quer os teus semelhantes, susceptíveis de cometerem erros e expostos ao mal. Podem agir com premeditação ou por
erro. Perdoa-lhes e sê clemente, tu que aspiras ao perdão e à clemência de Deus.”
Califa Al b. Ab T lib, séc. VII
28 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Pregar, não violentar
61
Alguém disse: “Que devemos pensar daquele que paga o bem com o mal?” O Mestre
respondeu: “ O que pagarias pelo bem? Basta responder à injustiça com a justiça
pagar o bem com o bem.”
Confúcio, 551? – 479? a.C., China, Conversações
62
Talvez que Deus estabeleça amizade entre vós e aqueles de entre vós
que considerais como inimigos.
Deus é todo poderoso,
é aquele que perdoa,
é misericordioso (...)
Deus ama aqueles que são equânimes
Alcorão, Sura LX, A provação
Não há obrigação em religião!
63
Alcorão, Sura II, A vaca
64
Deveremos obrigar os Infiéis à fé?
Entre os Infiéis, alguns (...) como os Pagãos e os Judeus, nunca aderiram à fé. Esses de
modo algum deverão ser obrigados a acreditar: (...) acreditar, com efeito, provém da vontade. Contudo os Fiéis podem obrigá-los, se para tal tiverem poder, a que não impeçam a
fé, seja por blasfémias, seja por maus conselhos, seja por perseguições declaradas. É por
isso que os Fiéis de Cristo muitas vezes declaram guerra aos Infiéis; não para os obrigar
a acreditar (pois, mesmo se fossem vencedores e os tornassem cativos, deixariam à sua
liberdade a vontade de acreditar) mas apenas para os obrigar a não impedir a fé.
S. Tomás de Aquino, Séc. XIII, Suma Teológica
65
Há flores de todas as espécies que na terra crescem e são vizinhas. Entre elas não há
disputas a propósito das cores, do aroma e do gosto. Deixam que sobre elas livremente actuem o sol, a chuva, o vento, o calor e o frio. E cada uma cresce consoante a sua
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 29
essência e consoante as qualidades que lhe são próprias. Assim se passa com os filhos
de Deus. Há entre eles uma diversidade de dons e de conhecimentos, mas tudo provém de um único Espírito. Uns e outros, em conjunto, regozijam-se com os grandes
milagres de Deus e agradecem ao Altíssimo pela sua sabedoria. Por que haveriam de
entrar em lutas sobre Aquele no qual vivem, e pela natureza do qual são o que são?
Jacob Boehme, 1575-1624, Alemanha, De Regeneratione
66
Reflecti sobre as denominações confessionais, fazendo um esforço para as compreender, e considero-as como um princípio único com numerosas ramificações. Portanto
não peças a um homem que adopte uma determinada denominação confessional
pois tal coisa afastá-lo-ia do Princípio fundamental, e é o próprio Princípio que deve
vir procurá-lo, Aquele no qual se elucidam todas as grandezas e todas as significações; e então o homem compreenderá.
Al- osayn b. Mansour, al- all j, 858-922, Pérsia, Diw n
A MORTE E OS FINS ÚLTIMOS
67
Para falar com inteligência é preciso tirar partido do que é universal, tal como a
Cidade se apoia sobre a Lei, e ainda com mais energia. Porque todas as leis humanas
se alimentam da única lei do divino, por si mesma soberana, força suficiente e vitoriosa em todo o lado.
Heraclito de Éfeso, Grécia antiga, cerca de 540-480 a. C
68
O Deus supremo (Kesava) fica contente com aquele que está atento aos ensinamentos de todas as religiões, que adora todos os deuses, que é desprovido de malícia e
que sabe resistir à cólera.
Vishnudharmottara-Purana, 350-500 a. C., texto sânscrito
69
Se um pagão se ocupa com a Lei sagrada, tem tanto mérito como um grande
Sacerdote descendente de Aarão.
Talmud, Aboda-Zara
30 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
70
Se o teu Senhor tivesse querido
os habitantes da terra teriam acreditado.
Porventura és tu que obrigarás os homens a serem crentes,
quando não cabe a ninguém creditar sem a autorização de Deus?
Alcorão, Sura X, Jonas
71
A falta de Abraão
Conta-se que durante uma semana inteira nenhum hóspede se apresentou em
casa de Khal l [o amigo de Deus, um cognome dado pelos Muçulmanos a Abraão].
Esperando com impaciência a vinda de um indigente, o bem-aventurado Profeta
não se preocupava em tomar as suas refeições. Um dia, saiu para olhar o horizonte:
os seus olhos viram, no fundo do w d , um viajante isolado como um salgueiro no
meio da planície: a neve dos anos tinha-lhe embranquecido a cabeça: Abraão correu
radiante ao seu encontro e ofereceu-lhe hospitalidade.
- Estrangeiro, disse-lhe ele, tu que me és mais caro do que a luz do dia, consente em
partilhar comigo o pão e o sal.
- O viajante aceitou e entrou na morada de um anfitrião do qual conhecia a generosidade. Os servidores do Profeta afadigaram-se junto do humilde velho; puseram a
mesa e todos nela tomaram lugar; mas no momento de recitar o bismill h, só ele se
manteve silencioso. Abraão disse-lhe:
- Estrangeiro que viveste longos dias, não encontro em ti os sentimentos de piedade
que decoram a velhice.
Antes de tomar a tua refeição quotidiana, não deverias invocar Aquele que a dispensa?
O velho respondeu:
- Não saberia adoptar um rito que os sacerdotes adoradores do fogo não me ensinaram.
- O augusto Profeta compreendeu que o seu hóspede professava a odiosa crença dos
Magos; expulsou-o como se fosse um ímpio cuja presença sujasse a pureza da sua
morada.
Mas Serosch, o anjo do Altíssimo, apareceu-lhe e numa voz cheia ameaçadora disse-lhe:
- Khalil, durante um século dei vida e subsistência a este homem, e a ti bastou-te uma
hora para o amaldiçoar! Porque ele se prostra diante do fogo, tens o direito de lhe
recusar o socorro do teu braço?
Sa’ad , 1184?-1290, Pérsia, O Pomar
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 31
72
A salvação obtém-se não pela adesão a dogmas metafísicos, mas apenas pelo amor
de Deus, amor que se realiza na acção. Esta é uma verdade cardinal no Judaísmo.
Hasdai Crescas, 1340-1410, Barcelona, Or Adonai
73
Os politeístas dirão:
“Se Deus tivesse querido,
nada adoraríamos senão ele,
- nós e os nossos pais –
nada teríamos proibido
fora das suas prescrições.”
Os que viveram antes deles agiam deste modo.
O que cabe aos Profetas,
a não ser transmitir a mensagem profética com toda a clareza?
Alcorão, Sura XVI, As Abelhas
74
Vendo a multidão, subiu à montanha. Sentou-se e os seus discípulos vieram para ao
pé dele. Tomando a palavra, ensinava-os, dizendo:
Bem aventurados os pobres em espírito,
Porque deles é o Reino dos Céus.
Bem-aventurados os aflitos,
Porque serão consolados.
Bem-aventurados os mansos,
Porque receberão a terra como herança.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
Porque serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos,
Porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração,
Porque verão a Deus.
Bem-aventurados os pacificadores,
Porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os perseguidos pela justiça,
Porque deles é o reino dos Céus.
Novo Testamento, S. Mateus, V, As Bem-aventuranças
32 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
75
O Mestre disse: “A minha doutrina reduz-se a uma só coisa que engloba tudo.” Tseng
tseu respondeu: “Certamente”. Quando o Mestre se retirou os discípulos perguntaram o que é que ele tinha querido dizer. Tseng tseu respondeu: “Toda a sabedoria
do nosso Mestre consiste em aperfeiçoarmo-nos a nós mesmos e em amarmos os
outros como a nós mesmos.”
Confúcio, 551? – 479? a.C., China, Conversações
76
Aqueles que nada receberam
Do baptismo, será pecado degolá-los,
Como gado?
Sim, é um grande pecado, asseguro-o eu:
São criaturas de Deus,
Falando setenta e duas falas.
Wolfram von Eschenbach, séc. XIII, Willehalm, almão antigo
77
Mesmo que o Diabo tivesse estabelecido o seu domínio em todos os lados em que
o verdadeiro Deus não é adorado, tal não nos impediria de supor que podem existir
homens neste grande Continente que os Mapas para o Sul nos indicam, que vivem
regrada e virtuosamente a lei da Natureza. Imaginemos um deles, o qual, com rectidão moral, se orienta apenas pela luz da sua razão, como outrora fizeram os Filósofos
Gregos, e mesmo os da Cítia, reconhecendo um único Autor de todas as coisas. Quero
acreditar que, com o joelho em terra, e os braços cruzados em direcção ao Céu, ele
usa esta oração, com um arrependimento extremo quanto ao que possa ter feito de
mal:
“Meus Deus que conheceis o mais secreto da minha alma, imploro a vossa misericórdia
e suplico-vos que me conduzais ao fim para o qual me criastes. Se eu tivesse discernimento suficiente para eu próprio o alcançar por mim mesmo, nada há que não quisesse
fazer para aí chegar e para me tornar agradável a vossa divina Majestade, que venero
com a mais profunda humildade. Desculpai a minha ignorância e fazei-me conhecer as
vossas vontades santas, de modo a que eu as cumpra com toda a força que me destes,
preferindo morrer do que praticar alguma acção que vos possa desagradar.”
Se acontecer que imediatamente após este acto de contrição, capaz de apagar todo o
tipo de Idolatria e de crimes, este pobre Estrangeiro venha a morrer, seja por qualquer
causa interna de doença súbita, seja por um acidente inesperado vindo do exterior,
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 33
como a queda de um árvore ou de uma casa vizinha, porventura o julgaremos condenado? E poderemos pensar que a Deus não foi agradável um santo arrependimento?
F. de la Mothe Le Vayer, 1588-1672, França, Da Virtude dos Pagãos
78
Não encontrareis um Trimegisto, um Numa Pompílio, um Platão, um Sócrates, pela
salvação do qual não achareis um Padre da Igreja, um qualquer autor antigo e venerado, um defensor (...) e de uma certa maneira eles agem consoante aquela regra que
tantos Padres seguiram Faciente quod in se est. Porque Deus nunca recusa a graça ao
homem que faz tudo quanto pode segundo a sua natureza, e então, perguntam eles,
por que é que estes homens que agem assim não seriam salvos? Sei que Deus pode
ser tão misericordioso quanto esses Padres, sensíveis, no-lo representam; serei tão
caritativo quanto eles; e consequentemente, atendo-me humildemente a essa manifestação do seu Filho que me foi concedida, deixo a Deus essas vias impenetráveis de
acção sobre os outros, sem me interrogar mais sobre elas...
John Donne, 1573-1631, Inglaterra, Sermões
79
Lemos em Isaías: “Abri as portas para que a nação justa e fiel entre”; o profeta não diz:
para que os sacerdotes, os levitas ou os israelitas entrem, mas ordena que se abram
as portas à nação justa e fiel, mesmo que ela seja pagã. - Algures, lemos: “Aqui está a
porta do Eterno, os justos nela entrarão” (Salmo CVIII, 20); não se diz que : os sacerdotes, os levitas ou os israelitas entrarão, mas sim os justos, sem distinção de culto.
O Salmista diz ainda: “Justos, entoai um cântico em honra do Eterno” (Salmo XXIII,
I); não convida exclusivamente os israelitas a cantar a glória do Eterno, mas dirige-se
aos justos de todas as religiões. – “Eterno, sê favorável para com os bons” lemos finalmente no Salmo (CXXV, 4); o poeta inspirado não implora apenas a bondade divina
para com os sacerdotes e os israelitas, mas para com os homens virtuosos de todas
as nações. – De onde se segue que um pagão virtuoso tem tanto mérito quanto um
Sumo Sacerdote, descendente de Aarão.
Talmud, Sifra Shemot, XIII
80
Diante dos Deuses do Mundo Inferior
“A vós, divindades que tendes assento na vasta sala da Verdade-Justiça,
Saúdo-vos;
O vosso coração ignora a mentira e a iniquidade,
34 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Viveis da verdade e a justiça é o vosso alimento (...)
Deixai-me penetrar na vossa morada;
Porque não cometi nem fraude, nem pecado de nenhuma espécie.
Não levantei falso testemunho (...)
Porque me alimentei de verdade e de justiça.
O meu modo de agir foi o que está prescrito pelos bons costumes
E que é aprovado pelos Deuses.
Na verdade contentei os Deuses fazendo aquilo que eles amam.
Dei pão ao faminto e água ao que tinha sede,
Dei vestes ao que estava nu e um barco ao náufrago;
Aos Deuses ofereci sacrifícios, aos Espíritos santificados fiz libações
Livro dos Mortos, Egipto antigo
81
(...) A muitos povos de outrora será concedida graça (...)
Posso mesmo dizer que a maior parte dos Cristãos do Oriente do nosso tempo receberão a misericórdia, se Deus quiser.
Ghaz l , 1058-1111, Pérsia, Fay al al- afriqa
82
Aqueles que acreditam,
aqueles que praticam o judaísmo,
aqueles que são Cristãos ou Sabeanos,
aqueles que acreditam em Deus e no último Dia,
aqueles que fazem o bem:
Eis os que encontrarão recompensa
junto do seu Senhor.
Não mais sentirão medo,
não serão atormentados.
Alcorão, Sura II, A Vaca
83
Bem aventurados sereis se vos insultarem, se vos perseguirem e se disserem todo o
género de calúnias contra vós, por minha causa. Alegrai-vos e rejubilai pois grande
será a vossa recompensa nos Céus; foi deste modo que perseguiram os profetas que
vos antecederam.
Novo Testamento, S. Mateus, V
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 35
A MENSAGEM SONHADA
Ao texto claro inicial substituiram-se – adiemos por uns tempos os estragos do animal
no homem – glosas e interpelações. Tendo-se a mensagem fixado em formas de ser e
em condutas particulares, as religiões sentem ameaçada a integridade da sua consciência pela sua própria contiguidade. Daí, indubitavelmente, perante os horrores e os
contratempos da violência, esse esforço patético do homem medieval que, devido a
um sonho desesperadamente racional, acreditou poder exorcizar um mal real, de sinais
pouco conhecidos. O homem, reconhecemo-lo, é seguramente o mesmo; mas em que
consiste essa diferença que o nosso diálogo não reduz? Antes – e depois – de tantos
“juízos de Deus”, o que poderá ainda fazer a razão humana? Estamos de acordo sobre
uma visão do homem e do mundo; pois bem, mas se é mesmo assim, quem terá então
de alcançar a condição do “Outro”? Existem forças, mas, mais ainda, almas a recuperar.
Perante um real decepcionante, para melhor assegurarmos a vitória, com toda a boa fé
nos excedemos em doçura, em concessões, em utopias.
Falamos de uma mesma mensagem, que requer – contra a prática do real – a edificação, recorrendo apenas à inteligência, de uma cidade terrestre, na qual o homem nada
mais é do que permuta entre pessoas e povos de boa vontade e de espírito aberto. Aqui
tudo é amor, concórdia e liberdade.
Entre místicos, à mesa do sonho, tudo é harmonia racional, de um nascimento para
além túmulo.
84
Conversa com o chanceler von Müller
Se olharmos de relance as acções dos homens de há milhares de anos para cá,
reconhecemos algumas fórmulas gerais que desde sempre exerceram uma acção
maravilhosa quer sobre nações inteiras quer sobre indivíduos. E essas fórmulas que
incessantemente reaparecem, sempre as mesmas, sob mil diferentes variantes,
são o dom misterioso que uma potência superior nos concedeu ao dar-nos a vida.
Certamente que cada um traduz para seu uso essas fórmulas, na língua que lhe é
própria, adapta-as à situação individual em que se encontra e, assim, muitas vezes
acrescenta-lhe tantas alianças impuras que, por assim dizer, não mais reconhecemos
36 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
o seu significado primitivo. Mas, não obstante, este acaba por surgir de novo, tanto
num povo quanto noutro, e o sábio atento compõe para si, com a ajuda dessas fórmulas, como que uma espécie de Alfabeto do Espírito do Mundo.
Goethe, Alemanha, 1818
CIDADE CARNAL, CIDADE DE DEUS, UTOPIAS
Na esteira dos místicos, esqueçamos por momentos os estragos da ignorância; deixemos de lado um novo juízo de Deus, sempre possível entre os povos, e ilustremos a
mensagem do sonho acordado.
Em primeiro lugar o enquadramento. Tudo é insular: a ilha de ayy ben Yaqdh n, o
território da Utopia, a floresta dos três Sábios, a abadia de Thélème, até a “ilha em
revolta” do homem de cor. O mais “selvagem” dos seres descobre, apenas pelo exercício
da sua razão, simultaneamente o ser supremo, a diversidade humana, a democracia e
a necessária institucionalização e prática da tolerância. Enfim, o homem “inventa” a
mensagem outrora revelada e, nessa ilha suspensa, os valores originais são civilizados
no seu limite máximo.
Uma educação aristocrática, incarnando em pessoas escolhidas, condu-las a casamentos de eleição, numa livre comunhão com o Outro, que por seu lado se faz mediador da
sua própria divindade. Por uma ascensão natural, da cidade carnal à cidade de Deus, em
todos os tempos e em todos os lugares, todos os homens virtuosos são necessariamente
salvos enquanto que a humanidade, finalmente reconciliada, forja relhas de arado com
as espadas: sonho insular no qual homens de todas as crenças e cores partilhariam as
riquezas da terra, sonho em que nenhuma felicidade é possível se nele não presidirem
todos os deuses particulares.
Do nascimento ao para além da morte, é o purificar da mensagem original refeita pelo
sonho.
85
O rei, tendo assimilado as verdades mais profundas de todas as religiões, disse aos
adeptos delas: “Ide e realizai os vossos diferentes ritos e deveres consoante as vossas
religiões respectivas.”
Uddyotanas ri Kuvalayamala, 779, traduzido do prácrito
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 37
86
As religiões são como caminhos diferentes convergindo para um mesmo ponto. Que
interessa usarmos itinerários diferentes, desde que cheguemos ao mesmo objectivo.
Mah tma Gandhi, 1869-1948, Índia, Cartas a Ashram
87
Açal tinha ouvido falar da ilha na qual se dizia que ayy bem Yaqdh n nascera. Dela
conhecia a fertilidade, os recursos, o clima temperado e (pensava) que ao retirar-se
nela conseguiria a realização dos seus votos. Resolveu mudar-se para lá e aí passar
longe dos homens o resto da sua vida (...). Ora, Açal, devido ao seu gosto pela interpretação, aprendera outrora a maior parte das línguas e era perito nelas. Dirigiu então a
palavra a ayy bem Yaqdh n e pediu-lhe informações em todas as línguas que conhecia, esforçando-se por ser compreendido; debalde o fez: ayy bem Yaqdh n, em tudo
isto, admirava o que ouvia, sem perceber o seu alcance e sem ver algo que não fosse
benevolência e afabilidade. De modo que cada um considerava o outro com espanto
(...) Açal começou então a ensinar-lhe a língua. Começou por lhe mostrar os próprios
objectos pronunciando os seus nomes; repetia-os e convidava a que ele próprio os
pronunciasse. Este por sua vez pronunciava-os, mostrando-os. Deste modo conseguiu ensinar-lhe todos os nomes e, paulatinamente, chegou em muito pouco tempo
a pô-lo em estado de falar. Açal começou então a pedir-lhe informações sobre a sua
pessoa, sobre o lugar de onde tinha vindo nessa ilha. ayy bem Yaqdh n disse-lhe que
ignorava a sua origem, que não conhecia pai nem mãe, exceptuando a gazela que o
criara. Informou-o sobre tudo o que lhe dizia respeito e sobre os conhecimentos que
progressivamente adquirira até ao momento em que chegara ao grau de união (com
Deus)... Por seu lado, ayy bem Yaqdh n começou a interrogá-lo sobre a sua condição; e Açal falou-lhe da sua ilha, dos homens que nela habitavam, do modo como
viviam antes de terem recebido a religião e depois de a terem recebido. Expôs-lhe
todas as tradições da Lei religiosa relativamente ao mundo divino, ao paraíso, ao fogo
(do inferno), à ressurreição, à reunião do género humano chamado à vida, às contas
(que serão prestadas) à balança e à ponte. ayy bem Yaqdh n compreendeu tudo
isso e nada viu que se opusesse ao que tinha contemplado na sua estação sublime.
Reconheceu que o autor e o propagador dessas descrições falava verdade, era sincero
nas suas palavras e enviado do seu Senhor; teve fé nele, acreditou na sua veracidade,
prestou homenagem à sua missão.
Ibn ufayl, séc. XII, Maghreb; ayy bem Yaqdh n
38 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
88
Os Utopianos colocam entre as suas instituições mais antigas aquela que prescreve
não prejudicar ninguém devido à sua religião. Utopus, na altura da fundação do império, soubera que antes da sua chegada os indígenas estavam em guerra contínua por
causa da religião. Também percebera que essa situação do país tinha grandemente
facilitado a conquista do mesmo, porque as seitas dissidentes, em lugar de se reunirem em massa, combatiam isoladas e à parte. Logo que se tornou vitorioso e senhor,
apressou-se a decretar a liberdade de religião. Contudo não proibiu o proselitismo
que propaga a fé por meio do raciocínio, com doçura e modéstia, que, quando não
consegue persuadir, não procura destruir pela força bruta a religião contrária; que,
numa palavra, não utiliza a violência e a injúria. Mas a intolerância e o fanatismo
foram punidos com o exílio ou com a escravatura.
Tomás Moro, Inglaterra, Utopia, 1516
É loucura que cada um, para o seu caso
Faça valer a sua opinião pessoal.
Se Islão quer dizer: submetido a Deus,
Todos vivemos e morremos no Islão.
89
Goethe, Alemanha, O Livro das Máximas, 1819
90
Deixai que vos diga que, tanto eu como os meus companheiros, não fazemos diferença entre um homem e outro.
Não perguntamos a que raça ou a que religião um homem pertence. Basta-nos tratarse de um homem.
Theodor Herzl, 1860-1904, Hungria, Altneuland
91
Utopus, ao decretar a liberdade religiosa não tinha apenas em vista a manutenção da
paz que constantes combates e ódios implacáveis anteriormente tinham perturbado;
pensava ainda que o interesse da própria religião ordenava uma medida desse tipo.
Nunca ousou temerariamente instituir algo em matéria de fé, inseguro quanto ao
facto de Deus, por si mesmo, inspirar os homens com diferentes crenças, a fim de
experimentar, por assim dizer, essa multidão de cultos variados.
Quanto ao uso da violência e de ameaças para obrigar o outro a pensar como nós pensamos, afigurou-se-lhe tirânico e absurdo. Ele previa que se todas as religiões fossem
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 39
falsas exceptuando uma só, tempo viria em que, ajudada pela doçura e pela razão,
a verdade se manifestaria por si mesma, luminosa e triunfante sobre a noite do erro.
Pelo contrário, quando a controvérsia se manifesta no tumulto e com armas na mão,
como os homens piores são os mais obstinados, acontece que a religião melhor e
mais santa acaba por ser enterrada sob uma multidão de vãs superstições, tal como
uma casa velha sob silvas e mato. Eis porque Utopus deixou a todos liberdade de
consciência e de fé. (...) Embora os Utopianos não professem a mesma religião, no
entanto, todos os cultos desse país, na sua múltipla variedade, convergem por caminhos diferentes, para um mesmo fim que é a adoração da natureza divina. É por isso
que nos templos nada se vê nem se ouve que não convenha a todas as crenças em
comum.
Tomás Moro, Inglaterra, Utopia, 1516
92
Como penso que não conseguiríamos, sem temeridade, assegurar que Deus concedeu
a Sócrates a graça de o receber no seu Paraíso, penso que é ainda uma temeridade
maior condená-lo às penas eternas do Inferno, devido à boa opinião que dele tiveram
tantos santos Padres e tantos teólogos profundos. Pois dado que mostrámos que
segundo as suas doutrinas os pagãos virtuosos puderam salvar-se por uma graça
extraordinária do céu, a quem poderemos nós presumir que esta foi dada senão
àquele que toda a Antiguidade nomeou como o sábio Sócrates? (...)
Seríamos pois, na minha opinião, simultaneamente muito injustos e muito temerários, se não honrássemos a sua memória [ a de Confúcio] tal como a dos maiores
filósofos que já nomeámos e se desesperássemos da sua salvação, não o tendo feito
relativamente a Sócrates nem a Pitágoras que, provavelmente, não eram muito
mais virtuosos do que ele [Confúcio]. Visto que ele não reconheceu menos do que
estes a unidade de uma primeira causa, sumamente poderosa e boa, certamente
que também a ela consagrou todas as suas afeições. E no que respeita à caridade
para com o próximo, que constitui o segundo membro da Lei, as memórias do Padre
Ricius asseguram-nos que nada é mais expresso em toda a moral chinesa que vem
deste Filósofo, do que o preceito de não fazer aos outros o que não queremos que
nos façam a nós. É o que me obriga a pensar, sem que no entanto me determine, que
Deus pode ter usado de misericórdia para com ele [Confúcio], confiando-lhe essa
graça especial que nunca recusa àqueles que contribuem, por meios próprios, para a
obter, fazendo tudo quanto lhes é possível.
F. de la Mothe Le Vayer, 1588-1672, França, Da Virtude dos Pagãos
40 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
93
Havia um oficial, homem de bem, chamado Montrésor, que estava muito doente. O
seu pároco, pensando que ele iria morrer, aconselhou-o a fazer as pazes com Deus,
a fim de ser recebido no Paraíso. – Não me inquieto muito a esse respeito, disse
Montrésor, pois na noite passada tive uma visão que me tranquilizou totalmente.
– Que visão tivestes, perguntou o bom padre. – Estava, disse ele, à porta do Paraíso,
com uma multidão de pessoas que queriam entrar. E S. Pedro perguntava a cada
uma qual a sua religião. Um respondia: sou católico romano. – Pois bem, disse S.
Pedro, entrai e colocai-vos entre os Católicos. Outro disse que era da igreja anglicana. – Pois bem, disse S. Pedro, entrai e colocai-vos entre os Anglicanos. Outro disse
que era Quaker. Entrai, disse S. Pedro, e tomai lugar entre os Quakers. Finalmente
perguntou de que religião eu era. – Jacques Montrésor não tem religião. – É pena,
disse o Santo, não sei onde vos colocar, mas entrai na mesma, ireis colocar-vos onde
puderdes.
Benjamin Franklin, 1706-1790, Estados Unidos da América
94
Acontecerá no futuro
que o Monte do Templo de Yahvé
será construído no sopé das montanhas
e elevar-se-á mais alto do que as colinas.
Todas as nações a ele afluirão,
povos numerosos se lhe dirigirão e dirão:
“Vinde, subi à montanha de Yahvé,
vinde ao Templo do Deus de Jacob,
para que nos ensine as suas vias
e para que sigamos os seus caminhos.
Pois de Sião virá a Lei
e de Jerusalém o oráculo de Yahvé.”
Exercerá a sua autoridade sobre as nações
e será o árbitro de numerosos povos,
que com as suas espadas forjarão relhas de arado
e foices com as suas lanças.
As nações não mais umas contra as outras levantarão a espada
e ninguém mais se exercitará fazendo a guerra.
Bíblia hebraica, Isaías, 19
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 41
95
A ilha em revolta
Sonho
com um mundo onde o homem
não mais despreza o homem,
onde o amor reina sobre a terra,
onde a paz enfeita os seus caminhos.
Sonho com um mundo onde todos
se deixem conduzir pelos amados caminhos da liberdade,
onde a inveja não mais rói os corações,
onde a cupidez não mais ensombra os nossos dias.
Sonho com um mundo onde Brancos e Negros
seja qual for a raça
partilhem os benefícios da terra,
onde todo o homem seja livre,
onde a miséria envergonhada inclinará a cabeça,
e a alegria, como uma pedra preciosa,
realizará os votos da humanidade.
É este o mundo com que sonho.
Langston Hughes, 1902-1967, Estados Unidos da América
DISPUTAS RACIONAIS:
A SALVAÇÃO DA “CONSCIÊNCIA ERRANTE”
Aceitemos então essa ilha ideal onde, caminhando naturalmente, o homem primitivo
redescobre, apenas pela razão, a mensagem primitiva, interiorizando-a e submetendose-lhe livremente, no pleno reconhecimento da diversidade humana. Mas que fazer com
o homem “não eleito”, aquele que não teve a graça de procurar ou de encontrar uma
tal via?
Precisamente. Avancemos no sonho dos monoteístas. Na boca de cena aparecem “três
homens, vindos de três direcções”. Dois de entre eles, firmes cada um na sua verdade
mas cansados de guerrear, remetem para um “filósofo”, para que se pronuncie categoricamente, no final do debate, sobre qual dos dois deverá responsabilizar-se pela alma
do terceiro, um pagão.
Sob a égide de “Dona Inteligência” inicia-se então uma estranha disputa racional em
que o Gentio, recusando desde logo a regra do jogo, sai salvo, pondo de imediato em
42 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
evidência o “verdadeiro” conflito: o das duas verdades dos mestres sobre as quais a sua
se afirma como juiz, mais do que como parte, visto que, para o convencerem, a ele, e o
conquistarem, cabe-lhes primeiro reduzir as suas próprias divergências, sendo razoáveis,
sem desvios, limites ou ameaças. Virá o tempo em que a saída não será tão fácil.
96
Dormia quando me apareceram três homens, vindos de três direcções. Perguntei-lhes
no meu sonho que profissão tinham e qual o motivo da sua visita. Pertencemos, responderam eles, a religiões diferentes. Na verdade, os três veneramos um Deus único,
mas não temos nem uma mesma fé, nem uma mesma maneira prática de servir esse
Deus. Um de nós é Pagão. Os outros dois possuem Livros sagrados, um é Judeu, o
outro Cristão. Durante muito tempo confrontámos as nossas religiões e discutimos
sobre elas. Eis que agora te tomamos como árbitro.
O filósofo: É o meu próprio trabalho que está na origem de todo o debate; pois
não é efectivamente o fim supremo da filosofia procurar racionalmente a verdade,
ultrapassar as opiniões humanas e substituí-las, em todos os pontos, pelas regras da
razão?
Pedro Abelardo, 1079-1142, França
Diálogo entre um Filósofo, um Judeu e um Cristão
97
Por muito que os pagãos vos tenham prejudicado
Cabe-vos a vós deixar-lhes o fruto
Do que o próprio Deus perdoou
Com aqueles que Seu corpo mataram.
Se Deus vos fizer vencedores neste mundo
Usai de piedade nos vossos combates.
Wolfram von Eschenbach, séc. XIII, Willehalm, alemão antigo
98
Chamamos selvagens a esses povos porque os seus costumes diferem dos nossos que
acreditamos serem a perfeição em matéria de cortesia. Se examinarmos com imparcialidade os costumes das diferentes nações, talvez concluamos que, por grosseiro
que seja, não há um povo que não tenha alguns princípios de cortesia, e que não há
nenhum tão cortês que não conserve alguns restos de barbárie (...)
É verdade que a cortesia que os selvagens mostram na conversação é levada ao
excesso; porque ela não lhes permite mentir nem mesmo contradizer aquilo que
se diz na sua presença. Por este meio evitam as disputas, mas também dificilmente
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 43
podemos conhecer o seu modo de pensar e a impressão que neles causamos. Todos
os missionários que tentaram convertê-los ao cristianismo queixam-se desta extrema deferência como sendo um dos maiores obstáculos para o sucesso da sua missão.
Os selvagens, pacientemente, deixam que se lhes explique as verdades do cristianismo e demonstram sinais habituais de aprovação. Poderíeis pensar que ficaram
convencidos; de modo algum, é apenas pura civilidade.
Um missionário sueco, tendo reunido os chefes índios das margens de Susquehannah,
fez-lhes um sermão onde desenvolveu os principais factos históricos sobre os quais se
funda a nossa religião, tal como a queda dos nossos pais quando comeram a maçã, a
vinda de Cristo para reparar o mal, os seus milagres, os seus sofrimentos, etc. Quando
terminou, um orador índio levantou-se para lhe agradecer:
“O que acabámos de ouvir, disse ele, é muito bom. Na verdade é mau comermos maçãs;
vale mais a pena fazermos cidra com elas; estamo-vos infinitamente agradecidos por
terdes tido a bondade de vir do vosso país, tão longe, para nos ensinar o que as vossas
mães vos ensinaram. Em troca, vou-vos contar algo que herdámos dos nossos:
“ No começo do mundo, os nossos pais só se alimentavam da carne de animais e,
quando não tinham sorte com a caça, morriam de fome. Dois dos nossos jovens caçadores, tendo morto um veado, acenderam uma fogueira na floresta, para grelhar uma
parte. No momento em que estavam prestes a satisfazer o seu apetite, viram uma
mulher, jovem e bela, descer das nuvens e sentar-se naquele monte ali ao longe, no
meio das montanhas azuis. Então, os dois caçadores disseram um para o outro: “É um
espírito que talvez tenha cheirado o odor da nossa caça grelhada e que deseja comêla; temos que lha oferecer.” E efectivamente, apresentaram-lhe a língua do veado.
A jovem gostou da iguaria, e disse-lhes: “A vossa honestidade será recompensada.
Voltai daqui a treze luas, e haveis de encontrar algo que vos será muito útil, a vós e
aos vossos filhos, até à última geração.” Fizeram o que ela lhes disse, e com grande
espanto, encontraram plantas que não conheciam, e que desde essa época foram
constantemente cultivadas entre nós, revelando-se de grande utilidade. No sítio em
que a mão direita da jovem tinha tocado na terra, encontraram milho, no sítio onde
tocara a sua mão esquerda havia feijões, e naquele onde se sentara, tabaco.” O missionário, aborrecido com esta história ridícula, disse àquele que a contava:
“Anunciei-vos verdades sagradas, mas vós não me contais senão fábulas, ficções,
mentiras.” O Índio, chocado, respondeu-lhe:
“Irmão, parece que os vossos pais não vos fizeram justiça e negligenciaram a vossa
educação. Não vos ensinaram as primeiras regras de cortesia. Vistes que nós, que
conhecemos e praticamos essas regras, acreditámos em todas as vossas histórias.
Que razão tendes para recusar as nossas?
Benjamin Franklin, 1706-1790, Estados Unidos da América
44 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
99
Logo que perdemos a base moral deixamos de ser religiosos. A religião não deveria
perturbar e suplantar a moralidade. Por exemplo, um homem não pode viver na mentira, na crueldade, na luxúria e ao mesmo tempo pretender ter Deus em si.
Mah tma Gandhi, 1869-1948, Cartas a Ashram
100
Como podemos então imaginar que um pobre americano que há duzentos anos
nunca tinha ouvido falar da verdadeira religião, não possa de modo algum evitar
as penas eternas, embora tenha vivido moralmente bem, tal como os bons pagãos
de que falámos, os quais, deixando-se guiar pela luz natural da razão, adoravam
um único Deus criador de todas as coisas e viviam sem Idolatria. Pois se a natureza,
segundo os princípios da Física, nunca falha nas coisas necessárias, será que, na
Teologia, acreditamos que o Autor da natureza possa negar absolutamente a um
Gentio os meios de se salvar, ele que para tal faz tudo o que está na sua mão, e que
amando-o de todo o coração, sem o conhecer, nada faz aos outros que não seja o que
pensa ser bom que lhe façam a ele?
F. de la Mothe Le Vayer, 1588-1672, França, Da Virtude dos Pagãos
101
O Tártaro: Com todos esses ritos que diferem (...) segundo os lugares e os tempos,
não consigo compreender como realizar a união. E, no entanto, se não o conseguirmos, nunca mais a perseguição acaba. Porque a diversidade engendra a divisão, a
inimizade, o ódio e a guerra.
Paulo: É preciso mostrar que a salvação das almas não vem das obras mas da fé. Pois
Abraão, pai de todos os crentes, quer dizer, indistintamente dos Cristãos, dos Árabes e
dos Judeus, acreditou em Deus e a sua fé justificou-o. É a alma do Justo que herdará a
vida eterna. Admitindo-se isto, não nos perturbaremos com as variedades rituais pois
elas foram instituídas e recebidas como sinais sensíveis da verdade da fé. Ora os sinais
podem mudar mas não o objecto que eles representam.
O Tártaro: É justo que os mandamentos de Deus sejam observados: Mas os Judeus
dizem que os receberam de Moisés, os Árabes de Maomé, os Cristãos de Jesus e sem
dúvida que as outras nações também veneram os seus profetas e afirmam que receberam das mãos destes os preceitos divinos. Como chegar a acordo?
Paulo: Os mandamentos divinos são muito concisos e perfeitamente conhecidos por
todos, sendo comuns a todas as nações; digamos mesmo que a Luz que no-los revela
é inata à alma racional. Pois Deus fala em nós, exortando-nos a que O amemos, a Ele
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 45
de quem recebemos o ser, e a não fazer aos outros o que não quereríamos que nos
fizessem. O amor é a realização da lei divina e toda a lei conduz a ele.
Nicolau de Cusa, Alemanha, A Paz na Fé, 1454
102
Os nossos rabinos ensinaram-nos: “ Ao Gentio, tal como ao Judeu, ao homem tal
como à mulher, ao escravo tal como à serva, o Espírito de Deus concederá, consoante
os seus procedimentos.”
Midrash, Tananh Debey, cerca do séc. IX
DISPUTAS CONFESSIONAIS:
A ORAÇÃO DE ABRAÃO
O sonho insular prossegue e os três Sábios, tendo “perdido” o Gentio da América mas
conversando sempre com familiaridade, entraram agora numa floresta simbólica
para procurar a razão eminente das suas próprias variações em volta da unidade, a
fim de, em primeiro lugar, porem definitivamente termo às suas próprias divergências doxológicas.
Desta vez, o interpelado já não é o teólogo-filósofo da sequência anterior, mas o
próprio Deus, que é interpelado para que explique esta diversidade, da qual, sendo o
autor, só ele poderá dar razão. A partir de Um, a humanidade reconhecida multiplicou-se; mas fê-lo numa diversidade dolorosa, sob o “domínio dos reis” e respondendo
ao apelo dos profetas que, no entanto, nada mais fizeram senão transmitir a mensagem transcendente. Qual a razão das nossas divergências? Não sendo mediadoras,
serão, pela intensidade que têm, uma consequência da natureza dos homens ou do
poder dos reis, levando a uma tal cegueira e a uma tal violência? Ou serão também
consequência do enraizamento do hábito e da força da tradição?
Aqui, uma profusão de metáforas e de analogias obscurece um pouco este debate onírico. A razão procura razões mas as respostas visam o imaginário: a árvore tem apenas um
tronco mas tem múltiplos ramos e folhas; “a cor da água é a do seu recipiente” : todas
as religiões se equivalem pois participam de uma crença central, totalizadora. Devido a
esse indício, nenhuma delas, por consequência, nem por princípio nem por direito tem
fundamento para recusar a outra, ou para se contestar, visto que todas se referem a
uma mesma verdade primeira que as integra e que ao mesmo tempo as ultrapassa.
O sonho então amplifica-se no enraizamento das crenças, difunde-se nelas e depois
dilui-se no esquecimento do problema. Apenas fica, como uma aposta de doçura con-
46 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
tra o mistério, o partido resignado do humano, mas de uma razão que se obstina em
compreender. Deus está escondido e inacessível; alguns são chamados a uma busca
contínua, a maior parte não quer e apenas pretende viver sem grande esforço para o
conhecer. O místico tem que se retirar do mundo com a sua verdade e nenhum dos três
Sábios saberia reconhecer o anel autêntico. Tanto melhor; deixemos que a busca e o
diálogo dos Sábios prossigam e que cada um siga a sua via, a da natureza humana e a
da sua consciência pois, neste nível de interrogação, “ninguém saberia formular uma lei
que permitisse a distinção entre verdadeiro e falso”.
Contudo, há alguns pontos de convergência: a unidade da alma transcende a diversidade dos corpos; se a religião está para além de uma linguagem humana necessariamente
imperfeita, o desacordo está na forma, não na natureza; diz respeito aos ritos e não ao
reconhecimento do Deus único. Continuemos pois a procurar a unificação e, considerando “os nossos próprios erros”, se somos os únicos a ter razão, conformemo-nos, em
última instância, à opinião da multidão e actuemos como ela”. Num tal contexto e
seguindo tal raciocínio, a multidão remete para o statu quo.
Ao sair da floresta e no termo da “aventura”, mais do que a uma concórdia utópica, é
sobre a necessidade de prosseguir pacificamente o diálogo ecuménico, em Jerusalém,
que os três Sábios se separam.
Pontos de convergência mas, mais ainda, o voto final que, no intervalo, dá para sempre
tréguas à violência. Um voto de oração, a oração de Abraão, apóstolo do ecumenismo,
do perdão e da tolerância.
103
Um homem, consumido pelo zelo divino, pôs-se a implorar (...) ao Criador universal
que moderasse as perseguições que hoje se exercem sob pretexto da diversidade
religiosa. Aconteceu que depois de vários dias, talvez na sequência de uma longa
meditação, manifestou-se uma visão a esse homem zeloso, da qual ele concluiu que,
graças ao acordo de um pequeno número da sábios, escolhidos entre os dirigentes
das diversas religiões que partilham a superfície do globo, poder-se-ia facilmente
chegar a uma concordância universal e a uma perpétua paz religiosa em concordância e verdade.
Este homem foi arrebatado a um nível de intelecção que lhe permitiu assistir, entre
os mortos, ao exame desta questão por uma elite humana, sob a presidência do Todo
Poderoso...
Nicolau de Cusa, A Paz na Fé, 1454
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 47
104
Os homens formavam uma só comunidade.
Deus enviou os profetas
para lhes levar a boa nova
e para os advertir.
Fez assim descer o Livro com a Verdade
para julgar os homens
e ultrapassar os seus diferendos,
mas, devido à inveja que entre eles reinava,
só os que tinham recebido o Livro
discordaram dele
embora lhe tivessem chegado provas irrefutáveis.
Alcorão, Sutra II, A Vaca
105
O apego de cada um à sua seita torna os homens presunçosos e tão arrogantes que
qualquer um que pareça afastar-se da sua fé parece-lhes logo estrangeiro à misericórdia divina, e que, considerando todos os outros como condenados, reservam a
beatitude só para si.
Pedro Abelardo, 1079-1142, França
Diálogo entre um Filósofo, um Judeu e um Cristão
106
Cheio de compaixão pelos humanos e desejoso de lhes trazer a salvação ele [ ayy
ben Yaqdh n] engendrou um plano para se lhes dirigir, para lhes expor a verdade
de uma maneira clara e evidente. (...) Por seu lado, Açal, desejava que por seu intermédio, Deus orientasse alguns humanos seus conhecidos, dispostos a deixarem-se
guiar, e mais próximos do que outros da salvação. Encorajou-o portanto neste plano
(...)
Deus enviou-lhes um vento favorável que em pouco tempo levou o navio para a ilha
onde queriam ir. Nela desembarcaram os dois e entraram na cidade.
ayy ben Yaqdh n começou a instruí-los (à elite da cidade) e a revelar-lhes os segredos da sabedoria. Mas mal se elevou no sentido esotérico, mal começou a exprimir
verdades contrárias aos preconceitos que os imbuíam, logo estes se contristaram:
as suas almas manifestavam repugnância pelas doutrinas por ele trazidas e irritavam-se contra ele nos seus corações, embora por cortesia fizessem boa cara a um
estrangeiro, tendo em consideração o seu amigo Açal. ayy ben Yaqdh n durante
dias e noites usou de consideração para com eles, pondo-lhes a descoberto a ver-
48 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
dade, quer na intimidade quer em público. Nada conseguiu senão afastá-los cada
vez mais e atemorizá-los. Note-se que eles eram amigos do bem e desejosos de
verdade; mas na sequência da sua enfermidade natural, não perseguiam o bem pela
via requerida, não o percebiam do modo que era necessário e em vez de o examinar
pelo ângulo desejado, procuravam conhecê-lo à maneira de todos os homens. ayy
ben Yaqdh n desistiu de os corrigir e renunciou a toda a esperança de aceder aos
seus corações.
(...) Quando viu que os véus do castigo os rodeavam, que as trevas da separação
os envolviam, que todos, com poucas excepções, apenas captavam da sua religião
aquilo que dizia respeito a este mundo (...) “que o comércio e as transações os impediam de se lembrar do Deus Altíssimo” (Alcorão, XXIV, 37), compreendeu, com uma
total certeza, que falar-lhes da verdade pura era coisa vã; que conseguir impor um
nível mais elevado na sua conduta era algo de irrealizável; que para a maioria, todo
o proveito que pudesse tirar da Lei religiosa dizia respeito à existência presente e
consistia em gozar de uma vida fácil sem ser lesado por outrem na posse de coisas
que consideravam pertencer-lhes legitimamente (...)
(...) Dirigiu-se então para junto de Salam n [Rei da ilha] e dos seus companheiros,
apresentou-lhes desculpas pelos discursos feitos e pediu-lhes que o perdoassem.
(...) Os dois despediram-se, deixaram-nos e esperaram pacientemente uma ocasião
para regressar à ilha.
Ibn ufayl, séc. XII, Maghreb; ayy bem Yaqdh n
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Vem pois em seu socorro, Tu que és o único a podê-lo fazer. Pois é só a Ti que eles
veneram através de todos os objectos aparentes do culto, e é por causa de Ti, por
consequência, que nasce a guerra religiosa. (...)
(...) É pois a Ti que, através da diversidade dos ritos, eles parecem todos procurar
diversamente e através da diversidade dos nomes divinos, é a Ti que eles nomeiam.
(...) E se acontece ser impossível fazer desaparecer essa diferença de ritos, e mesmo
que essa diferença pareça desejável para aumentar a devoção, ligando-se cada religião, com mais vigilância, às suas cerimónias, como se elas agradassem mais à tua
Majestade – que, pelo menos, como és único, haja uma única religião, um único culto
de Latria. (...)
Nicolau de Cusa, Alemanha, A Paz na Fé, 1454
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 49
108
1o dia, 3a novela
Levado pela necessidade, Saladino, tentando encontrar um meio de obter esse serviço
[um empréstimo] ao Judeu, resolveu usar para com ele de uma violência que tivesse
aparência de razão. Tendo-o chamado e tendo-o recebido familiarmente, fê-lo sentar-se
perto e disse-lhe: “ Ó homem de bem, ouvi dizer a muita gente que és sábio e instruído
nas coisas de Deus. Por isso, gostaria que me dissesses qual das três religiões consideras
ser a verdadeira – a judia, a sarracena ou a cristã.” O judeu que efectivamente era um
homem sábio (...) disse:
“Meu Senhor, a questão que me levantas é bela, e para vos dizer o que sobre ela penso,
tenho de vos contar uma pequena história, que ireis compreender. Se não me engano,
lembro-mo de muitas vezes ter ouvido dizer que houve outrora um homem poderoso
e rico, o qual, entre outras jóias que possuía no seu tesouro, tinha um anel muito belo
e precioso. Querendo, devido ao seu valor e à sua beleza, homenageá-lo e doá-lo para
sempre aos seus descendentes, ordenou que aquele dos seus filhos no qual o anel fosse
encontrado como tendo sido dado pelo próprio pai, fosse reconhecido como seu herdeiro e fosse honrado e respeitado por todos os outros, enquanto chefe da família. Aquele
a quem o anel foi deixado, transmitiu esta ordem aos seus descendentes e fez como
o seu predecessor fizera. Em pouco tempo, o anel passou de mão em mão, por vários
donos e chegou assim a um homem que tinha três filhos, belos, virtuosos e muito obedientes ao pai; por isso ele amava os três igualmente. Os jovens conheciam a tradição
do anel e como cada um desejava ser mais homenageado do que os seus irmãos, cada
um, por si mesmo e como melhor sabia, pediu ao pai, que já estava velho, para ficar com
o anel quando ele morresse. Aquele homem honesto que amava igualmente os três
filhos, não conseguia escolher a quem deixar o anel. Tendo-o prometido a cada um em
particular, pensou satisfazer os três. Secretamente, mandou fazer a um hábil artífice,
dois outros anéis tão semelhantes ao primeiro que ele próprio, que os tinha visto fazer,
mal conseguia distinguir o verdadeiro. Quando morreu, deu secretamente um anel a
cada um dos filhos que, depois da morte do pai, querendo cada um deles ocupar a
sucessão e a dignidade deste e negando-as aos irmão, mostraram o seu anel aos olhos
de todos, como testemunho da sua pretensão. Os anéis foram considerados tão parecidos que não se conseguiu reconhecer o verdadeiro e que a questão de saber qual, de
entre eles, seria o legítimo herdeiro do pai, continuou, e ainda continua, pendente. E o
mesmo, meu Senhor, digo das três religiões dadas aos três povos por Deus Pai, religiões
sobre as quais me questionais. Cada um deles acredita ser o seu herdeiro e possuir a
lei verdadeira e os verdadeiros mandamentos; mas a questão de saber quem os possui,
continua ainda pendente, como a dos anéis.”
Boccacio, 1313-1375, Itália, Decameron
50 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
109
Abstenhamo-nos de toda a zanga e livremo-nos dos olhares irritados. Não tenhamos
ressentimento se os outros não pensarem como nós. Porque todos os homens têm
coração e cada coração tem as suas inclinações. O que é para nós um bem é um mal
para outrem. Não somos necessariamente sábios e os outros não são necessariamente tolos. Somos todos homens comuns. Como é que alguém poderia colocar princípios para distinguir o bem do mal? Porque todos somos, simultaneamente, sábios e
tolos, tal como um anel que não tem fim.
Constituição do príncipe imperial Sh toku, 604, Japão
110
Se é lícito que cada um siga a religião que quer, visto que há uma grande diversidade
de espíritos e de juízos, daqui resultará uma grande dissemelhança de opiniões e de
sentenças e não haverá ninguém que não possa contradizer-se e repugnar-se. E visto
que não há ninguém a quem não contradigamos, muitos terão dúvidas sobre aquilo
em que deverão acreditar e que deverão seguir. Quem tem dúvidas e escrúpulos de
consciência é estimulado por um desejo e por um apetite de procurar a verdade. E
quando muita gente se dedica a procurá-la, é estranho se não a encontrar. E quando
ela [a verdade] for encontrada e as opiniões confrontadas por uma conferência amável e graciosa, então a verdade virá ao de cimo, a mentira será vencida e desfeita.
Daqui se segue que o reino de Satanás não pode consistir em que cada um tenha a
franqueza e a liberdade de avançar com a sua opinião quanto ao facto da religião.
Jacobus Acontius, Itália, Satanae Stratagemata, 1565
111
A Alma é una mas os corpos que ela anima são numerosos. Não podemos reduzir o
número dos corpos, e no entanto reconhecemos a unidade da Alma. Tal como a árvore
tem um único tronco mas muitos ramos e folhas, assim só existe uma única religião
verdadeira e perfeita, que se torna múltipla ao passar pela mediação do homem. A
Religião única está para além do domínio da linguagem. Os homens imperfeitos só a
conseguem exprimir na linguagem de que dispõem, e as suas palavras são interpretadas por outros homens igualmente imperfeitos. Qual a interpretação que devemos
aceitar como verdadeira? Cada um tem razão do seu ponto de vista próprio, mas
não é impossível que todos errem. De onde a necessidade da tolerância, que não é
indiferença pela fé de cada um, mas um amor mais puro e mais inteligente a essa fé.
A tolerância dá-nos um poder de penetração espiritual que está longe do fanatismo,
tal como o polo norte do polo sul. O verdadeiro conhecimento da religião faz cair as
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 51
barreiras entre uma fé e outra. Ao cultivarmos em nós a tolerância para com outras
concepções, adquirimos uma compreensão mais verdadeira da nossa. É claro que a
tolerância não afecta a distinção entre o bem e o mal, entre o que é justo e o que é
falso. E aqui só quis falar das principais concepções religiosas do mundo. Todas assentam em bases comuns. Todas produziram grandes santos.
Mah tma Gandhi, 1869-1948, Índia, Cartas a Ashram
112
Ao louvar aquilo em que acredita, o crente louva a sua própria alma e é por causa
disso que condena outra crença que não a sua; se ele fosse justo não o faria; só aquele
que se fixa numa adoração particular ignora necessariamente a verdade intrínseca de
outras crenças, pela mesma razão que a sua crença em Deus implica uma negação de
outras formas de crença: Se ele conhecesse o sentido da palavra de Junayd: “a cor da
água é a cor do seu recipiente” admitiria a validade de todas as crenças e reconheceria
Deus em todas as formas e objectos de fé.
Mu y al-Din b. ‘Arabi, 1165-1240, Andaluzia, A Sabedoria dos Profetas
113
Pratiquei todas as religiões: Hinduísmo, Islão, Cristianismo, e segui também as vias
das diferentes seitas do hinduísmo (...) E achei que era um mesmo Deus, para o qual
todas se dirigem, por vias diferentes (...) Vejo que todos os homens lutam em nome
da religião: hindús, maometanos, brahmanes, vaishnavitas, etc. E não reflectem que
aquele a quem chamam Krishna é também chamado Çiva, que tem o nome de Energia
Primitiva, de Jesus ou de Alá ! Um único Rama que possui mil nomes (...) A substância
é Una mas tem nomes diferentes. E cada um procura a mesma substância; apenas
variam o clima, o temperamento e o nome (...) Que cada um siga o seu caminho! Se
sincera e ardentemente desejar conhecer Deus, que esteja em paz! Consegui-lo-á.
Ramakrishna, 1836-1886, Índia
114
Descobriu-se que as divergências [entre os Sábios das Nações] incidiam mais sobre os
ritos do que sobre os cultos do Deus único que desde a origem todos pressupuseram
e veneraram através de todas as formas de culto. É bem isto que resulta da confrontação de todos os textos sagrados.
(...) Conclui-se então, no céu, região racional, uma concordância religiosa tal como o
dissemos, e o Rei dos reis prescreveu que os Sábios voltassem para a sua terra para
ensinar às suas nações respectivas a unidade do verdadeiro culto, com a ajuda e assis-
52 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
tência dos espíritos administradores. Munidos de plenos poderes, foi-lhes ordenado
que se reunissem em Jerusalém, centro religioso comum, para receberem em nome
de todos a única fé e para fundarem sobre ela a paz perpétua, a fim de que, nessa paz,
o Criador de todas as coisas fosse louvado por todos os séculos. Amen!
Nicolau de Cusa, Alemanha, A Paz na Fé, 1454
115
Mais do que qualquer outro advogado de causas desesperadas, Abraão é um intercessor. Porque os outros Santos que curam o desespero cauterizam feridas passageiras,
enquanto que Abraão continua a ser invocado como pai por doze milhões de (...) judeus
(...) e por quatrocentos milhões de muçulmanos. (...) Os judeus nada mais possuem do
que uma esperança, e ela é abraâmica; os muçulmanos nada mais têm do que uma
fé, que é a de Abraão na Justiça de Deus (para além de todas as aparências humanas).
E estas duas manifestações seculares, pendem, imóveis como vulcões em actividade,
sobre o desenrolar das alegrias e das tristezas passageiras dos Incircuncisos, no dia
crepuscular dos ídolos. Só que, se procurarmos bem, disseminadas por toda a parte,
encontramos as cinzas ainda quentes de uma terrível erupção, mais uma vez abraâmica, a da Cidade maldita que se afastou de Deus por amor próprio, que concentrou
toda a fé e toda a esperança num pacto do homem com outro homem, como os forçados; um pacto que no entanto os uniu outrora com Abraão, e que, por duas vezes,
o forçou a rezar por eles, as mais desamparadas criaturas de Deus; um pacto de lealdade de forçados, que foi para Abraão um surpreendente ponto de partida para a sua
vocação ecuménica. (...) Entre as três preces solenes, antes da prece pelo árabe Ismael
e pelos muçulmanos, antes da prece por Isaac e pelas Doze Tribos decorrentes do seu
filho Jacob, a primeira que devemos retomar é a prece por Sodoma. (...)
A prece de Abraão é a que ele fez por Sodoma, na Filoxénia de Mambré, que é uma
teofania. Aí, “este homem de todos os começos” e de todos os acabamentos é apanhado entre as duas palavras substanciais da sua união a Deus: “Lékj-lékha” (“sai” de
Ur) e “Hinayini” (eis-me aqui), para ir a Moria. (...) A sua perfeita hospitalidade para
com aqueles três visitantes misteriosos (“tres vidit et Unum adoravit”), que vieram
recompensá-lo pela promessa de Isaac, induziu-os a tentá-lo: Será que Abraão, provido de descendência, vai continuar a zelar pelos habitantes de Sodoma, aliados do seu
sobrinho Lot, que ele já uma vez salvou, de armas na mão? Ou, dado que vai saber
que se portaram mal, ele irá desinteressar-se do pacto de fidelidade? (...) Abraão já
não consegue arrastar 318 combatentes para os salvar, é entre eles que se esforça por
descobrir, na presciência divina que o interroga, os seus salvadores; é então que forja
uma prece cada vez mais pura, capaz de suscitar em Sodoma cinquenta, ou quarenta
e cinco, ou quarenta, ou trinta, ou vinte, ou apenas dez justos, para que a cidade seja
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 53
salva. Deus aceita mas havia apenas três justos, (...) e quatro das cinco cidades de
Sodoma são incendiadas. Mas mesmo que o sacrifício de Abrão se tenha mantido
em suspenso, desde a remissão de Isaac até ao sacrifício do Calvário, mantém-se a
promessa dos Dez, e é preciso lembrá-la a Deus, em nome de Abraão. (...) Sodoma é
a cidade que se ama a si mesma, que recusa a visita dos Anjos, dos Hóspedes, dos
Estrangeiros, ou que deles quer abusar (...) Mas se na Cidade apenas houvesse dez
justos, ela seria salva. Esta prece de Abraão paira para sempre sobre as sociedades
de perdição, para nelas suscitar os dez justos, a fim de salvar as cidades, contra a sua
própria vontade. E temos que acreditar que ela os encontra, de tempos a tempos,
para que o fogo do céu poupe as cidades, tal como em Cafarnaum. (...)
Na sua segunda oração, em Bersabé, “poço do juramento” onde Deus lhe impôs o
expatriamento, a “hégira” do seu filho primogénito, Ismael, Abraão consente no exílio
deste no deserto, contanto que a sua descendência sobreviva nesse local, dotada por
Deus de uma perenidade privilegiada neste mundo, marcando esta raça, ismaelita,
árabe, com uma vocação: a espada, “o ferro de acerada potência” (Alcorão, 57,25),
que suspende a sua ameaça uma vez formado o Islão, sobre todos os idolatras. (...)
Reivindicação militante da pura transcendência, ressurgimento misterioso do culto
patriarcal anterior ao Decálogo mosaico e às Beatitudes. (...) Para o Islão, toda a paz
neste mundo, se não for fundada sobre o reconhecimento de Abraão, é bastarda.
(...) Porque o Islão, vindo depois de Moisés e de Jesus, com o Profeta Muhammad,
arauto negativo do Juízo de morte que atingirá todo o ser criado – constitui uma
resposta misteriosa da graça, à prece de Abraão por Ismael e pelos Árabes: “Também
atendi ao teu pedido” (a favor de Ismael). O Islão árabe não é uma reivindicação
desesperada de excluídos que será recusada até ao fim; a sua infiltração misteriosa na Terra Santa deixa-o entender. O Islão tem mesmo uma missão positiva, ao
censurar Israel por este se considerar privilegiado, a ponto de esperar um Messias
nascido da sua raça, de David, segundo uma paternidade carnal. Afirma que nasceu
desconhecido, de uma maternidade virginal predestinada, que é Jesus, filho de Maria,
e que voltará no fim dos tempos, assinalando o Juízo. Também censura aos Cristãos
o facto de não reconhecerem todos os signos da Tábua Santa, e de ainda não terem
realizado aquela Regra de perfeição monástica, rahbâniya, a qual, por si só, neles
forma o segundo nascimento de Jesus, antecipa neles, por essa vinda do Espírito de
Deus, a Ressurreição dos mortos, da qual Jesus é o sinal. Esta dupla reivindicação do
Islão, ao encontro dos Judeus e dos Cristãos que abusam dos seus privilégios como se
estes lhes pertencessem por direito próprio, esta intimação, incisiva como a espada
da transcendência divina, (...) é um sinal escatológico que deverá fazer retomar, com
um infinito respeito, a segunda oração de Abraão, a oração do poço de Bersabé.
Na sua terceira oração, Abraão está em Moria, tradicionalmente identificado com
54 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
o lugar do futuro templo de Salomão. É o local do sacrifício de Isaac. Abraão leva
ao extremo, custe o que custar, a fidelidade que jurou a Deus aquando do pacto da
circuncisão (...). Mas a sua adesão a Deus ultrapassa-o, pois o futuro genealógico que
tinha sacrificado, é-lhe devolvido; resta-lhe persuadir os seus descendentes que completem o sacrifício interrompido. Mas nem Isaac, que só se deixou amarrar por estar
possuído de um terror sagrado, nem Sara, a qual, na ignorância do “genocídio” aceite
por Abraão, não lhe encontrou desculpa, e ainda menos os descendentes de Isaac por
via de Jacob e das XII tribos, serão persuadidos - será preciso o abandono totalmente
inocente de uma Virgem Mãe sem esposo humano, para aceitar oferecer o seu filho
à morte. Resta que, pelo seu sacrifício, Abraão tornou a sua raça sacerdotal, destinou
os Israelitas a tornarem-se sacerdotes (...)
Abraão reza, em última análise, para que o pacto social que funda as cidades seja puro,
para que os beligerantes alcancem uma paz fraterna, para que o sacerdócio seja santo,
e essas três orações, em Mambré, em Bersabé, em Moria, são apenas uma, e a terceira
é o selo das outras duas. Surgiu uma filha de Abraão: a Cidade maldita tinha recusado
a hospitalidade aos Anjos Estrangeios, ELA acolheu o Espírito Santo, o Amor, ao qual
não se pergunta nem “porquê” nem “como”; a raça de Ismael optou por fazer a guerra em nome de uma transcendência inacessível na Sua paz. ELA recebeu dessa paz a
salvação. (...) ELA aceitou ser colocada sob suspeita, desposada, caluniada pela sua
vizinhança, (...) pela sua raça, que ELA amava infinitamente, visto que ELA expôs, para
a salvar, o voto secreto de um coração imaculado, o que é mais do que, para Abraão,
ter oferecido Isaac. Porque ELA ofereceu assim a Israel a própria raiz da justificação
de Deus perante a sua única criatura perfeita, num sacrifício espiritual inimaginado
pelos Anjos.
ELA é também a verdadeira Terra Santa, sendo essa “argila” virgem, predestinada,
sublimiori modo redempta, na qual são concebidos, com o seu Chefe, todos os eleitos. É pois ELA que, como uma linha de topo e não de partilha, (...) atrai os peregrinos que procuram justiça nos lugares mais elevados da Palestina, Judeus, Cristãos,
Muçulmanos, sem que, mesmo estes últimos, se apercebam (...)
É aí que é preciso ouvir (...) o apelo do nosso Pai comum, chamando todos os corações
que têm fome e sede de Justiça, para uma peregrinação à Cidade Santa.
Louis Massignon, França, As Três Preces de Abraão, 1949.
O inferno de Deus não carece
do esplendor do fogo. O Juízo
universal tocará as trombetas,
a terra tornará patentes as entranhas
115 bis
ENSAIO ANTOLÓGICO
e as nações surgirão do pó
para venerar a Boca irremediável;
mas os olhos não verão os nove círculos
da montanha inversa, nem as pradarias
pálidas de asfodelos perenes
onde a sombra do arqueiro persegue sem tréguas,
eternamente, a sombra da corça;
nem a loba de fogo que, nos últimos
estádios dos infernos dos Muçulmanos
precede Adão com o castigo;
nem os metais violentos, nem mesmo ainda
as trevas visíveis de Milton.
Nenhum labirinto detestável
de aço triplo, de ardente dor,
oprimirá, com adormecimento, os danados.
Também não há, no fim dos tempos,
guardado, algum jardim. Deus não carece,
para contentar o mérito dos seus,
nem de órbitas de luz, nem de séquitos
de tronos, não carece de poderosos, de querubins,
nem do espelho enganador da música;
nem da rosa com as suas profundezas,
nem de um só tigre de esplendor funesto,
nem tão pouco da queda amarela
do sol crepuscular no deserto;
nem da água antiga de natal sabor.
Não há jardim para a sua misericórdia;
à memória, à esperança, de um clarão.
No cristal de um sonho tive a visão,
do Céu e do Inferno tal qual serão:
do Juízo, quando soarem as Trompas
derradeiras e quando se esconder o astro milenar,
então cessarão, ó Tempo, tuas pirâmides efémeras:
as cores e traços do passado traçarão
nas trevas um Rosto distinto,
imóvel, fiel, inalterável
A TOLERÂNCIA 55
56 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
(talvez o do Amor, o teu...),
e a contemplação desse rosto
próximo, eterno, intacto, indelével,
será isso o Inferno, para os Malditos,
mas, aos olhos dos Eleitos: o Paraíso.
Jorge Luis Borges, Argentina, 1942
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 57
VIGÁRIOS ARMADOS:
A MENSAGEM SUBMETIDA
AO REAL
Aqui dissipa-se o sonho acordado e recomeça o sono pesado da razão.
A intolerância precede a sua oposição; nem uma nem outra são unívocas. Mas para
compreender o combate de uma, é preciso ver bem e ouvir, concretamente, a desmesura
e o delírio da outra. A sequência abre, como na primeira parte, com protestos espirituais
para depressa alcançar o paroxismo no fogo e no sangue, tanto dos homens como dos
povos, indistintamente.
Estamos perante a sequência da violência nua e da desrazão soberana.
***
Quatro textos preliminares voltam a recordar-nos o que já sabíamos desde os textos
da abertura da presente obra: o Boddhisata, desprezando o chicote, repete ao rei a sua
mensagem de paciência; entre os homens apenas é possível uma linguagem possível, a
do universal; sob a sua máscara, a intolerância declina a sua natureza: ela é simultaneamente religiosa e civil. Anónimo, o dinheiro está por toda a parte, corrupto e poderoso.
116
... Entretanto, a favorita do rei, com um movimento do corpo, acordou-o. E este, ao
acordar, não vendo as suas outras mulheres, perguntou-lhe: “Para onde foram essas
desgraçadas?”. “Senhor, respondeu a favorita, foram ouvir a lição de um certo asceta.” Louco de raiva, o rei pegou na espada e foi à procura delas, dizendo: “Eu próprio
irei dar uma lição a esse falso asceta.” Então, uma das favoritas, vendo chegar o rei
tomado por uma grande cólera, apoderou-se da espada que ele tinha na mão e procurou acalmá-lo. O rei aproximou-se de seguida do Boddhisata e perguntou-lhe: “Que
doutrina pregas tu, ó Monge?” “A doutrina da paciência, Majestade”, respondeu este.
“O que é a paciência? ” perguntou o rei. “Consiste em não nos irritarmos quando nos
enganam, nos batem ou nos injuriam.” Disse então o rei: “Irei pôr à prova as virtudes
da tua paciência” e mandou chamar o carrasco. Este, antes de cumprir o seu ofício,
58 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
muniu-se de um machado e de uma vara de espinhos, e, revestido de uma veste de
açafrão e de um cinto vermelho, saudou o rei, dizendo: “ Que deverei fazer para vos
servir, Senhor?” “Pega neste asceta enganador e vil e arrasta-o daqui para fora, deitao por terra, com a tua vara de espinhos, bate-lhe nas faces e dá-lhe 3000 chicotadas.”
O carrasco obedeceu-lhe e a pele do Boddhisata abriu-se até à carne e o sangue correu. O rei, dirigindo-se-lhe, repetiu a pergunta: “Que doutrina pregas tu, ó Monge?”
“A doutrina da paciência, Majestade”, respondeu este último. “Acreditais que a minha
paciência não tem mais espessura do que a minha pele, mas ela reside na profundeza
do meu coração, onde vós, Senhor, não a podeis atingir.” [Continua: 201, 288]
Khantivadi-Jataka
117
Devemos seguir aquilo que é comum, quer dizer, o universal. Porque o Verbo universal
é comum a todos. Ora, embora esse verbo seja comum a todos, a maioria vive como
se possuísse por si mesma um pensamento particular.
Heráclito de Éfeso, Grécia antiga, cerca de 540-480 a. C.
118
Pela palavra intolerância entende-se vulgarmente essa paixão feroz que leva a odiar e
a perseguir os que estão no erro. Mas para não confundirmos coisas muito diversas,
há que distinguir dois tipos de intolerância, a eclesiástica e a civil.
A intolerância eclesiástica, consiste em considerar como falsa qualquer religião diferente daquela que professamos, e em demonstrá-lo bem alto, sem que o terror ou o
respeito humano nos façam parar, com o risco de perder a própria vida (...)
A intolerância civil, consiste em cortar todo o comércio, e a perseguir, por todo o tipo
de meios violentos, aqueles que têm um modo de pensar, sobre Deus ou sobre o
culto, diferente do nosso.
Denis Diderot, França
Artigo “Intolerância” na Enciclopédia, 1765
119
Nunca entre os homens houve pior instituição do que o dinheiro. É o dinheiro que
destrói os Estados; é ele que faz expulsar os cidadãos das suas casas; é ele cujas lições
vão seduzindo os corações honestos fazendo-os abraçar a infâmia. Ensina-lhes todos
os crimes, ensina-lhes a impiedade que tudo ousa. Mas aquele que se vende e alcança
esse estádio, também um belo dia é castigado.
Sófocles, Grécia antiga, Antígona, 441 a. C.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 59
UMA MÁQUINA INFERNAL: A INTOLERÂNCIA
Ásia: a voz indiana
Dois textos directos, reflexos de uma sabedoria não exclusiva, a da Índia, recolhem o
conflito histórico de todas as diferenças e a sua pronta resolução. Uma conduta exemplar, e como que desligada, que, noutras paragens, exigirá séculos... Se é verdade que o
ouro caminha a par da violência, ele é apenas pó quando a recusa de toda a violência se
erige em valor absoluto e universal. Isto, longe do Mediterrâneo e da sua errância, num
espaço e num tempo que participam de um outro campo de significação humana. A voz
indiana entoará em salmos, incessantemente, o que o homem quereria esquecer.
Todos estes monges bhikshu1
Por amor ao dinheiro
Pregam uma doutrina herética;
Eles próprios compuseram esta Sutra2
Para enganar os povos deste mundo;
Para acederem à fama
Compuseram estes versículos...
Incessantemente nas assembleias
Com o propósito de nos destruir
Aos reis e aos ministros
Aos Brâmanes e aos homens do povo
Aos outros grupos de bhikshu
Falam de nós, caluniam-nos e dizem:
“São homens de ideias falsas
que pregam doutrinas heréticas.”
Mas por respeito a Buda
Suportamos estes malefícios,
Embora nos interpelem com zombarias
E digam: “Eh! vocês, ó Budas!”
1 Adeptos do budismo designado por Pequeno Carro
2 Máximas e versículos.
120
60 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Um tal desdém e uma tal arrogância
Suportamos com paciência.
Neste tempo corrompido do nefasto kalpa3
Carregados de medos e de ameaças
Os demónios apoderar-se-ão deles
E hão de nos amaldiçoar, enganar e insultar.
Mas enquanto respeitosos adoradores de Buda
Revestiremos a armadura do sofrimento duradoiro,
E pregaremos esta Sutra:
Suportaremos todos os males
Não amaremos o nosso corpo durante a vida
Mas apenas nos dedicaremos a seguir a Via
Suprema.
Saddharma Pundarika, Sutra, Texto Pali
121
Oito anos depois da sua coroação, o rei, amigo dos deuses, de olhar afável, conquistou
Kalinga. Cento e cinquenta mil pessoas foram deportadas, cem mil foram mortas;
muitas mais do que este número pereceram. Seguidamente, depois de Kalinga ter
sido tomada, tornam-se ardentes o exercício da Lei, o amor à Lei, o ensinamento da
Lei, no amigo dos deuses. O remorso apodera-se do amigo dos deuses, desde que
conquistou Kalinga. Com efeito, a conquista de um país independente representa
para as pessoas o assassínio, a morte ou o cativeiro; pensamento de que se ressente
fortemente o amigo dos deuses, que lhe pesa.
E isto pesa ainda mais ao amigo dos deuses: os habitantes, brâmanes, sâmanes ou de
outras comunidades, os burgueses que praticam a obediência para com os superiores, a obediência ao pai e à mãe, a obediência aos mestres, a cortesia perfeita relativamente a amigos, familiares, companheiros e parentes, relativamente a escravos e
a criados, bem como a firmeza na fé, todos são vítimas de violência, de assassínio ou
de separação dos que lhes são queridos. Mesmo os que tiveram a sorte de conservar
os seus afectos, se algo de mal acontece aos seus amigos, familiares, camaradas ou
pais, tal facto representa também para eles violenta provação. Esta participação de
todos os homens é um pensamento que pesa ao amigo dos deuses. (...)
E mesmo se lhe fizerem mal, o amigo dos deuses pensa que é preciso, tanto quanto
lhe for possível, ter paciência (...)
3 10 biliões de anos
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 61
Porque o amigo dos deuses quer que em todos os seres haja segurança, auto-domínio, equanimidade e doçura.
Ora a vitória que o amigo dos deuses considera como primeira é a vitória da Lei (...)
O benefício que daí se obtém é uma vitória universal. Ora a conquista dá sempre uma
sensação de alegria. Essa alegria foi obtida pela vitória da Lei. Mas tal alegria é ainda
pouco. É apenas aquilo que importa para o outro mundo, que o amigo dos deuses
considera ser um grande benefício.
Esse texto da Lei foi gravado para que os filhos e netos que eu possa vir a ter não pensem em novas vitórias. E que na sua própria vitória, prefiram a paciência e a aplicação
branda da força, e que apenas considerem como vitória a vitória da Lei, que vale para
este mundo e para o outro; e que toda a sua alegria seja a alegria da Lei: porque ela
vale para este mundo e para o outro.
O rei, amigo dos deuses, de olhar afável, honra todas as seitas, os sâmanes e laicos,
tanto pelas liberalidades como pelos variados saberes. Mas nem às liberalidades nem
às honras o amigo dos deuses atribuiu tanto valor quanto ao progresso no essencial
de todas as seitas. O progresso no essencial é de diferentes espécies, mas o seu fundo
é a contenção da linguagem, de modo a que nos abstenhamos de honrar a nossa
própria seita ou de denegrir as outras seitas, fora de propósito; e numa ou noutra
ocasião, que seja alegremente. É mesmo preciso prestar honras às outras seitas, em
certas ocasiões. Ao proceder deste modo, engrandecemos a nossa própria seita ao
mesmo tempo que servimos outras. Ao proceder diferentemente, prejudicamos a
nossa própria seita ao mesmo tempo que prestamos um mau serviço às outras.
(...) É a reunião que é boa, de modo que uns e outros escutam a Lei e a ela obedecem.
Isso, efectivamente, é o que quer o amigo dos deuses, para que todas as seitas sejam
instruídas e ensinem a bem agir. Por toda a parte os devotos devem dizer: o amigo
dos deuses não concede às liberalidades e às honras tanto valor quanto ao progresso
de todas as seitas no que têm de essencial.
Editos de Ashoka Rocher, sécs. XIII e XII a. C.
Traduzido do prácrito
Cauções e Representações
Antes dos monoteísmos e tanto quanto os textos retiveram na memória, os conquistadores apresentavam-se enquanto tal, e não como portadores da palavra verdadeira.
Em terra de bárbaros, mais do que assimilar, pretendem alargar e manter um império
económico, na indiferença às crenças. Assim “Júlio César, imperador, ditador pela segunda vez e soberano pontífice”, distribui, num movimento de política pouco dispendiosa,
62 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
prebendas e privilégios a uma família autóctone em terra invadida... O que conta para
Roma é Roma ser soberana do Império, das suas riquezas e dos seus homens. Aos olhos de
Roma, a mesma tolerância é consentida a todos as seitas - Judeus, Cristãos e outras – pois
nenhuma delas, por motivo de crença, põe o Império em perigo. A liberdade de consciência é tolerada, não por si mesma mas para assegurar a gestão do Império. Quando
germinarem “as dissenções intestinas e a revolta” será então o momento fugaz das representações, das hesitações, das cauções.
Se a relação de domínio económico e político, não for, por postulado, posta em causa,
fazem-se concessões, sob forma de “recompensa por bons e leais serviços”, numa solicitude calculada de senhor. Numa relação deste tipo não se pode exterminar, por razões
espirituais, aqueles que são explorados.
É verdade que nesta clareira não deixam de surgir indisfarçáveis queixas: as dos Judeus
mantidos em opróbio, mas manifestando constantemente a sua boa fé e a observância
exclusiva da Lei; as da seita cristã nascente e a de todas as outras, esquecidas pela história.
O Cristianismo triunfante saberá vingar-se desses séculos de sofrimento, segundo o espirito exacto da palavra de Diderot. Começa a idade do fanatismo moderno.
O fanatismo, feito de desprezo e de ódio, invariavelmente tem a sua origem na segurança de quem detém a verdade de um modo exclusivo.
122
Júlio César, imperador, ditador pela segunda vez e soberano pontífice: “Depois de
tomarmos conselho, ordenamos o que se segue: Como Hircão, filho de Alexandre,
Judeu de nação, sempre nos deu provas do seu afecto, tanto na paz como na guerra,
tal como nos testemunharam vários generais do nosso exército, queremos que ele e
os seus descendentes sejam para sempre príncipes e sumos sacerdotes dos Judeus,
exercendo tais funções segundo as leis e os costumes do seu país; e também que sejam
nossos aliados e do número dos nossos amigos; que gozem de todas as leis e privilégios que pertencem aos sumos sacredotes e que, se houver qualquer diferendo quanto
à disciplina que deve ser observada pelos da sua nação, que dele seja juiz; e que não
seja obrigado a aquartelar guerreiros no inverno nem a pagar tributos (...) Queremos
também que lhe enviem embaixadores para estabelecer amizade e aliança, e que coloquem no Capitólio e nos templos de Tiro, de Sidon e de Ascalon, tábuas de cobre onde
todas estas coisas sejam gravadas em caracteres romanos e gregos, e que este acto
seja comunicado aos magistrados de todas as cidades, a fim de que todos saibam que
consideramos os Judeus nossos amigos, e que queremos que recebam bem os seus
embaixadores; e o presente acto será enviado a todo o lado” (XIV, 17).
Flávio Josefo, 37-100 d. C., Jerusalém,
História Antiga dos Judeus
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 63
123
É de direito humano e de direito natural – humani juris et naturalis potestatis est
– que cada um possa adorar o que quiser; a religião de um indivíduo não prejudica
nem serve a ninguém. Não é da natureza da religião forçar a religião; esta deve ser
adoptada espontaneamente e não pela força visto que os sacrifícios só se pedem de
bom grado. É por isso que, se nos forçais a fazer sacrifícios, na verdade nada dareis
aos vossos deuses; estes não precisam de sacrifícios compulsivamente oferecidos.
Tertuliano, apologeta cristão, séc. II, Cartago
Ad Scapulam
124
Em política não há outro partido a tomar, com uma nova seita, senão matar sem piedade os chefes e os aderentes, homens, mulheres, crianças, sem qualquer excepção,
ou então tolerá-los quando a seita é numerosa. O primeiro partido é o de um monstro, o segundo de um sábio.
Voltaire, França
Comentário ao Livro dos Delitos e Penas, 1766
125
Nós, Constantino e Licínio, augustos, tendo-nos reunido em Milão para tratar de
assuntos respeitantes ao interesse e à segurança do Império, pensámos que entre os
assuntos que nos deveriam ocupar, nenhum seria mais útil aos nossos povos do que
regular primeiramente o modo como devem prestar culto à divindade. Resolvemos
conceder aos Cristãos e a todos os outros liberdade para praticar a religião que prefiram a fim de que a divindade que reina no céu seja favorável, tanto para connosco
como para com aqueles que vivem sob o nosso domínio. Pareceu-nos que seria um
sistema excelente e muito razoável, não recusar a nenhum dos nossos súbditos, fosse
ele Cristão ou pertencente a outro culto, o direito de seguir a religião que melhor lhe
conviesse. Deste modo, a divindade suprema que, cada um de nós, daqui por diante,
livremente honrará, poderá conceder-nos a sua protecção e benevolência habituais.
Convém portanto que Vossa Excelência4 saiba que suprimimos as restrições contidas
no edito anteriormente enviado, sobre os Cristãos [edito de 312] e que a partir deste
momento permitimos que observem a sua religião, sem que de modo algum sejam
inquietados ou molestados. Fizemos questão em dar-vo-lo a conhecer do modo mais
preciso, para que não ignoreis que damos aos Cristãos a mais completa e a mais
absoluta liberdade de praticarem o seu culto; e visto que a concedemos aos Cristãos,
4 Este escrito dirige-se aos governadores das províncias.
64 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Vossa Excelência compreenderá que os outros deverão possuir o mesmo direito. É
digno do século em que vivemos e convém à tranquilidade de que goza o Império que
todos os nossos súbditos tenham uma completa liberdade de possuir os deuses que
escolheram, e que nenhum culto seja privado das honras que lhe são devidas.
Edito de Milão, 313
126
Colocaste à frente das tuas preocupações e do teu amor para com os homens, a
organização das coisas da religião. (...) Se pelo teu edito, ó Imperador, não consegues fazer que te seja benévolo aquele que para tal não está inclinado, quão menos
conseguirás tornar piedosos e religiosos os que temem os decretos humanos, de
necessidade breve e fugaz, cujo terror se transforma pois, muitas vezes, o acaso dos
tempos o consegue arrancar e aniquilar. De onde se segue que somos loucamente
orientados para venerar, não a divindade mas a púrpura real, e ao mudar de religião
somos mais instáveis do que o mar. Antigamente, Terameno estava só, mas hoje
todos temos os pés calçados com dois sapatos; ontem evitávamos estar entre os dez,
mas hoje incluímo-nos entre os cinquenta; e todos estes homens respeitam de um
modo semelhante os altares, os simulacros, as vítimas, os ritos. Mas aquilo que não
quiseste, ó divino Imperador, e enquanto que no que respeita a todas as outras coisas
tu és e serás o senhor, perpetuamente, no que concerne ao culto divino, deste a cada
um a liberdade. Nisto tu segues o próprio Deus, que fez todos os homens favoráveis à
religião, mas permitiu à livre vontade de cada um o modo e a razão do seu culto pela
divindade. Ora quem usa da força e da violência suprime a faculdade concedida por
Deus. Daí se segue que as leis de Kéops e de Cambises apenas duraram o mesmo que
a curta vida dos seus autores; mas a sanção de Deus é imutável e eterna como a tua;
é livremente permitido ao espírito de cada um seguir a religião que lhe pareça melhor.
Uma tal lei não pode, nem por privação de alimento, nem pela força dos tormentos,
ser infringida. Certamente, se tal te agradar, constrangerás o corpo e matá-lo-ás.
Contudo, a alma em si mesma, com a sua lei do pensamento livre, voará sã e salva,
embora nenhuma palavra lhe tenha sido arrancada.
(...) Essa lei que te pertence, considero que não tem menos importância do que o pacto
concluído com os Partas. Por ele, é-nos dado não fazer a guerra com os Bárbaros; por
ela, podemos viver sem dissenções intestinas e sem tumultos. (...)
Permite que a balança seja justa e igual para todos; não te deixes inclinar para um
ou para outro lado.
(...) Aceita como certo que o autor e Rei do Universo se compraz numa variedade
semelhante. Ele gosta que os Sírios façam uso de certos ritos e que os Egípcios usem
outros. Esses Sírios não estão sujeitos às mesmas leis, mas a razão das suas institui-
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 65
ções autoriza duas partes. E porque ninguém sente, no fundo do coração, o mesmo
que o seu vizinho, se um aprovar uma coisa e o outro outra, por que deveremos fazer
violentamente aquilo que de modo algum se pode fazer?
Timístios, Grécia antiga
Discurso consular ao Imperador Joviano, 364 d.C
127
Uma coisa tem real valor: viver a sua vida na verdade e na justiça usando de tolerância
mesmo para com o falso e para com o injusto.
Marco Aurélio, Imperador de 161 a 180 d.C, Roma, Pensamentos
128
Aviso aos Príncipes soberanos
Do Santíssimo Império Romano:
Acrescentai a honra dos Cristãos (...)
E se os pagãos desconfiarem
Que seja garantida a vossa justiça.
Escutai o que vos diz
Uma humilde mulher destituída de espírito:
Poupai o que Deus criou.
O primeiro homem que Deus,
Com suas mãos formou
Era pagão.
E sabei que Elias e Enoch
São conhecidos como pagãos.
Pagão era também Noé
Que foi salvo na Arca.
Sim, pagão era também Job
E Deus não o excluiu.
Atendei a estes três reis,
Um dos quais tinha por nome Gaspar,
O outro Melchior e o outro Baltazar:
Podemos chamar-lhes pagãos
Mas não estão destinados ao inferno.
O próprio Deus, nas suas mãos,
Recebeu deles as primeiras honrarias,
Enquanto sua mãe o amamentava.
De onde não podemos acreditar
66 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Que todos os pagãos ao inferno vão parar.
Sabemos ser verdade:
Todas as mães, desde Eva,
Quando dão à luz seus filhos dão à luz carne pagã,
Que por vezes receberá o baptismo.
Toda a mulher, mesmo que baptizada,
Traz no seu seio um filho pagão:
Assim, tem grande necessidade
De baptizar o seu filho.
Os Judeus têm um meio singular
Que é o da carne retalhar.
Pagãos todos fomos outrora.
É dor para todo o espírito justo
Que um filho possa ser destinado
Por seu pai a ser condenado:
Há que ter pena deles
Ele que é sumamente misericordioso
Wolfram von Eschenbach, Sec. XIII, Willehalm, alemão antigo
129
Judeu: Na verdade, não se conhece nenhum povo, nem mesmo conseguimos imaginar um povo que, por Deus, tenha suportado as provações que não cessaremos de
suportar por Ele. (...) Consideram-nos merecedores de tanto desprezo e de tanto ódio
que todas as injustiças de que somos vítimas aparecem aos olhos dos nossos perseguidores como actos de justiça e de homenagem, prestados a Deus. (...) Os Pagãos
guardam a memória das opressões que outrora suportaram quando possuíamos as
suas terras e do modo como depois os arruinámos e como os oprimimos com perseguições quotidianas: assim, o destino que nos impõem, por duro que seja, aparecelhes como uma vingança justa. Quanto aos Cristãos, que pretendem que matámos o
seu Deus, a sua perseguição parece ainda ter uma justificação melhor. Vês junto de
que inimigos somos obrigados a prosseguir a nossa vida de exílio, e de que protectores devemos esperar apoio! Expostos continuamente aos golpes das piores inimizades, forçam-nos a adoptar a fé dos infiéis.
Pedro Abelardo, 1079-1142, França,
Diálogo entre um Filósofo, um Judeu e um Cristão
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 67
130
Os sábios e os profetas de Israel desejam ardentemente a vinda do Messias, não para
dominarem o mundo inteiro, nem para oprimirem os Gentios; não para que os povos
de todo o mundo os admirem nem para comerem, beberem e se regozijarem, mas a
fim de ficarem livres para se dedicarem à Tora e à sua sabedoria, sem serem esmagados por uma autoridade abusiva e tirânica.
Maimónides, Andaluzia, 1135-1204, Hilkhot Melakhim
131
Proposição 10: Aqueles que crucificaram Cristo sem o conhecer não pecaram e nada
que se faz por ignorância deve ser imputado como falta.
[Na sua Profissão de Fé, Abelardo irá retratar-se] : “Ao crucificar Cristo, asseguro que
aqueles que o crucificaram cometeram um pecado muito grave.”
Pedro Abelardo, 1079-1142, França,
Diálogo entre um Filósofo, um Judeu e um Cristão
132
[O Parsi de Rousseau fala assim com os seus juízes]
(...) Só Deus sabe a verdade. Se apesar de tudo isto nos enganamos no nosso culto,
é sempre pouco credível que sejamos condenados ao inferno, nós, que aqui na terra
apenas fazemos o bem, e que vós sejais os eleitos de Deus, vós que só fazeis o mal.
Quando estivéssemos no erro, deveríeis respeitá-lo, para proveito vosso. A nossa
piedade engorda-vos e a vossa consome-nos; nós reparamos o mal que vos faz uma
religião destrutiva. Acreditai-me, deixai-nos um culto que vos é útil: temei que um dia
adoptemos o vosso; seria o pior mal que vos poderia acontecer.
J.-J. Rousseau, Genebra, Carta a Cristovão de Beaumont, arcebispo de Paris, 1762
133
Sou Judeu. Será que um Judeu não tem olhos? Um Judeu não tem mãos, orgãos, proporções, sentidos, emoções, paixões? Não é alimentado com os mesmos alimentos,
ferido pelas mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios,
aquecido e resfriado por um mesmo verão, um mesmo inverno, tal como um Cristão?
Se nos picarem não sangramos? Se nos fizerem cócegas não rimos? Se nos envenenarem não morremos? Se nos prejudicarem não nos vingamos? Se nos assemelhamos
em tudo o resto, também nos assemelhamos nisto.
Shakespeare, Inglaterra, O Mercador de Veneza, acto II, cena I, 1597
68 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
134
A tolerância nunca é mais do que o sistema do perseguido, o sistema que ele abandona logo que se torna suficientemente forte para ser perseguidor.
Denis Diderot, 1713-1784, França, Memória para Catarina II
Interlúdio
O Islão pretende ser, tanto por essência como por prática, tolerante para com o diferente, para com o estrangeiro, e muito particularmente para com os monoteísmos que o
precederam: justiça, respeito pelas crenças mas também pelos bens numa relação neocesariana, quer dizer, puramente civil.
Disso fazem fé os textos sagrados, as mensagens, os tratados, os éditos, os testemunhos
de protegidos de todas as religiões, de historiadores, antigos e modernos...todos ilustrando a palavra do fundador e dos seus vigários, concedida aos “não crentes”. Mas, tal
como sob o domínio de Roma, houve conquistas e violências. Contudo, um critério aos
olhos do Islão, parece desempatar os dois pensamentos imperiais; é que, para ele, toda
a conversão forçada e não só nula como injusta.
Se, no plano político, tal facto constitui uma variante importante da relação cesariana na idade dos monoteísmos triunfantes (um império, um imposto, um contrato de
coexistência), a relação intra-comunitária é rigorosa para com os poetas, para com
os seus “devaneios” e, de uma maneira geral, para com o pensamento livre. É verdade
que já Platão na sua República reprovava os poetas e que Sócrates foi aniquilado sob o
Regime dos Trinta, em Atenas... O poder contestatário da palavra, sobretudo escrita e
partilhada, está apenas no começo do longo combate que irá travar pela liberdade do
seu exercício, quer dizer, de acção mediatizada.
Se depois de tantos autos da fé ainda se queimam livros, outros, mais numerosos se
escrevem e circulam, a despeito dos censores, um pela teologia, outro pela medicina,
outro pelas leis, outro pelas artes”.
Se um politeísta procura asilo juto de ti,
acolhe-o
para o deixar ouvir a Palavra de Deus,
fá-lo depois chegar a um lugar seguro,
pois são pessoas que não sabem.
Alcorão, Sura IX, A Imunidade
135
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 69
136
Mensagem aos Emigrantes, aos habitantes de Medina
[chamados Auxiliares do Profeta] e aos Judeus
Esta mensagem é de Mu ammad, o Profeta (enviado de Deus), aos crentes, aos
Muçulmanos de Qoraych, aos habitantes de Yathrib e àqueles que a ele se reuniram
e com os quais combateu.
São uma nação única entre as gentes.
Aqueles que, entre os Judeus, nos seguiram, têm a vitória e a igualdade. Não serão
oprimidos e ninguém combaterá contra eles.
Os Judeus viverão com os Crentes enquanto continuarem combatentes.
Os Judeus da tribo de ‘Awf fazem parte da nação dos Crentes. Os Judeus seguirão a
sua religião e os Muçulmanos seguirão a deles.
Os Judeus das tribos de al-Najj r, d’al- arth, de Sa’ da, de bani-Jachm, de bani als-Aws
(...) serão tratados como os Judeus da tr bu de ‘Awf.
Aconselham e serão aconselhados e serão tratados generosamente, sem iniquidade.
O homem não pode ser iníquo para com o seu aliado e a vitória é dada ao oprimido.
O próximo deve ser considerado como um dos seus. Não devemos causar-lhe nenhum
prejuízo.
Aqueles que deixam Medina e aqueles que nela ficam devem ficar tranquilos quanto
à sua segurança, excepto aqueles que cometem injustiças ou crimes.
Mu ammad, Profeta do Islão, 570-632
137
Segundo al- usayn que o recebeu de Ya ya ibn dam: Copiei esta declaração do
Profeta à população de Najr n de um escrito que diz tê-la recebido de al- asan ibn
ali .
Eis os termos:
“Em nome de Alá, o clemente e o misericordioso.
O que irão ler é o que o mensageiro de Alá, Mu ammad, escreveu à população de
Najr n quando podia dispor de todos os seus frutos, do seu ouro, da sua prata e de
todos os seus bens domésticos, dos seus escravos, mas que os cedeu benevolamente
contra a entrega do valor de um auqiyat; mil vestidos a serem entregues no mês de
Rajab, todos os anos, e mil outros aquando da festa do Safar. Pelos vestidos cujo valor
ultrapassasse um auqiyat ou que custassem mais barato, a diferença de preço (para
mais e para menos) seria tomada em consideração. Para mais, o custo dos transportes (cavalos, camelos) ou de diferentes objectos fornecidos em lugar dos vestidos de
cerimónia seriam também tomados em consideração. A população de Najr n terá o
70 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
encargo de suportar o alojamento e a alimentação dos mensageiros durante um mês,
pelo menos, mas nunca mais de um mês. Terá também a obrigação de lhe emprestar
trinta cotas de malha, trinta jumentos e trinta camelos, para a eventualidade de uma
guerra de rebelião no Yémen. Os cavalos e os camelos emprestados aos mensageiros
ficam garantidos por estes e serão devolvidos aos seus proprietários.
A população de Najr n e os seus alidados5 terão direito à protecção de Alá e de
Mu ammad seu Profeta, mensageiro de Alá, que zela pela segurança da sua pessoa,
da sua religião, das suas terras e dos seus bens, dos ausentes e dos presentes, dos
camelos, dos mensageiros e das imagens6. A situação que era anteriormente a deles
não será mudada, nem nenhum dos seus ofícios religiosos ou objectos de culto será
tocado. Não será feita qualquer tentativa de desviar um bispo do seu ofício de bispo,
um monge do seu ofício de monge, ou o sacristão de uma igreja do seu serviço à
igreja e isto qualquer que seja a importância do serviço assegurado.
Não serão considerados responsáveis por qualquer erro nem por qualquer sangue
derramado antes da conquista do seu território pelo Islão. A população de Najran não
será obrigada ao serviço militar nem constrangida a pagar tributo. Nenhum exército
espezinhará as suas terras.
Se alguma petição recebida parecer justa, o caso será examinado com equidade, sem
dar à população de Najr n vantagem sobre a parte adversa nem à parte adversa
vantagem sobre a população de Najr n. Mas não serei responsável pela protecção
daqueles que até aqui receberam interesses usurários. Contudo, nenhum de entre
eles será considerado responsável pelos erros dos outros.
E à maneira de garantia do que está inscrito neste documento, a população de Najran
beneficiará da protecção de Alá e de Mu ammad o seu Profeta, durante o tempo em
que respeitar os seus compromissos, pagando a sua dívida, ficando estabelecido que
nada lhe será pedido que seja injusto. Nada lhe será pedio a mais do que o que deve.
Feito tendo como testemunhas ab Sufy n ben Harb, Ghait n ben ‘Amr, M lik ben
‘Auf de banu Na r, al-Akra’ben abis al-Hanzali e al-Mughirah. Escrito por Abdallah
ben ab Bakr.
Tratado de paz entre Mu ammad e os Cristãos de Najr n,
Citado por Baladh r , séc. IX.
5
Os Judeus
6 As cruzes e os quadros estão nas igrejas.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 71
138
Os Árabes, a quem Deus tinha dado nesse tempo o domínio domundo, ei-los entre
nós, como bem o sabeis; no entanto eles não atacam a fé cristã; bem pelo contrário,
protegem a nossa religião, prestam homenagem aos nossos padres e aos nossos santos e concedem subsídios às igrejas e aos mosteiros.
Ish ‘Yabh III, patriarca nestoriano, séc. VII,
Carta ao Primaz da Pérsia
139
D’al-Husayn ben-Aswad que o recebeu de al- assan: O Profeta escreveu ao povo do
Yémen: Aquele que repete a nossa oração, que volta a cara para a qiblah, como nós
fazemos, que come os animais que abatemos, esse é Muçulmano e goza da protecção
de Alá e do seu Profeta. Mas aquele que se recusa a proceder dessa maneira deverá
pagar um imposto.
Mu ammad, Profeta do Islão, citado por Balad ur , em Fut
140
al-Buld n, séc. IX
Escrevi este edito em forma de ordem para o meu povo, e para todos aqueles que se
encontram na Cristandade, a Este e a Oeste, perto ou longe, novos e velhos, conhecidos e desconhecidos. Aquele que não se conforma com o édito e não segue as minhas
ordens age contra a vontade de Deus e merece ser amaldiçoado, seja ele quem for,
sultão ou simplesmente Muçulmano. Quando um padre ou um eremita se retira para
uma montanha ou para uma gruta, ou se mantém na planície, no deserto, na cidade,
na aldeia ou na igreja, coloco-me em pessoa por detrás dele com o meu exército e os
meus súbditos e defendo-o contra qualquer inimigo. Abster-me-ei de lhes provocar
qualquer dano.. É proibido expulsar um bispo do seu bispado, um padre da sua igreja,
um eremita do seu eremitério. Nenhum objecto poderá ser desviado de uma igreja em
favor da construção de uma mesquita ou de habitações para Muçulmanos. Quando
uma Cristã tem relações com um Muçulmano, este deve tratá-la bem e permitir que
reze na sua igreja, sem levantar obstáculo entre ela e a sua religião. Se alguém agir
contrariamente, será considerado inimigo de Deus e do seu Profeta. Os Muçulmanos
devem conformar-se a estas ordens até ao fim do mundo.
Mu ammad, Profeta do Islão, Edito de 2 de Mu arram,
Ano II da Hégira
72 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
141
O Profeta aos Muçulmanos que violam o estatuto dos Dhimmis 7 : Elevar-me-ei contra
todo aquele que viole um acordo de Dhimmi ou que imponha ao seu próximo uma
carga que ultrapasse as suas forças. No dia do último juízo, serei eu mesmo o acusador de todo aquele que [entre os Muçulmanos] tiver feito mal a um Dhimmi ou que o
tiver taxado para além do que ele devia.
Mu ammad, Profeta do Islão, citado por Baladh ri, em Fut
al-Buld n, séc. IX
142
Na verdade: ultimamente, no tempo do nosso Imperador, aquando do Concílio de
Basileia, um cavaleiro cristão debatia-se com o contestável dos turcos, e o cavaleiro
dizia ao contestável: “Senhor que sois um homem sábio, é preciso que vos baptizeis e que vos torneis cristão. A nossa doutrina é pura e em todos os seus pontos
tão bem deduzida que ninguém nela pode descobrir algo de mau.” O contestável
respondeu: “Sei bem que o que dizes ao alegar a Escritura é verdade. Que Cristo
vos redimiu pela sua morte e vos libertou para a vida eterna, sei-o pelas vossas
Escrituras. Mas também vejo que não tendes nenhum desejo delas e que não viveis
segundo Ele. Vós havei-Lo renegado: um tira ao outro a sua honra e o seu bem; um
designa o outro como sendo sua propriedade. Não foi isso que quis o vosso Deus e
Senhor. Presentemente ides atravessar o mar, marchar sobre nós e combater-nos, e
pensais que estais a fazer uma viagem piedosa. Se puderdes assomar-nos, pensais
que ireis alcançar a vida eterna. Assim enganais-vos a vós mesmos. Se ficásseis nas
vossas terras, e combatêsseis os falsos Cristãos e os levásseis para o recto caminho,
isso sim seria uma viagem piedosa!” Vede o que temos de ouvir da boca de um
infiel! E acrescentou ainda: “ Se vos convertêsseis e observásseis a vossa lei, imediatamente nos ganharíeis; o mundo inteiro vos acompanharia e haveria apenas um
pastor e um rebanho.”
Reforma do Imperador Sigismundo, Alemanha, 1439
143
É certo que naqueles primeiros tempos em que a nossa religião começou a ganhar
autoridade sobre as leis, o zelo armou muitos contra toda a espécie de livros pagãos,
pelo que as pessoas letradas sofreram uma enorme perda. Considero que esta desordem trouxe mais prejuízo às letras do que todos os fogos dos bárbaros.
Montaigne, França, Ensaios, 1588
7 Adeptos de outras religiões reveladas vivendo em território sob dominação muçulmana.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 73
144
[O poeta imitador será expulso do nosso Estado]
Parece então que, se um homem, hábil em captar todas as formas e em tudo imitar,
se apresentasse no nosso Estado para se exibir em público e recitar os seus poemas,
prestar-lhe-íamos homenagem como a um ser sagrado, maravilhoso, arrebatador;
mas dir-lhe-íamos que não há homens como ele no nosso Estado e que não poderá
haver; e enviá-lo-íamos para outro Estado, depois de lhe termos derramado perfumes na cabeça e de o termos coroado de fitas.
Platão, 429-347 a.C., Grécia antiga, República
145
Quanto aos poetas:
São seguidos por aqueles que se perdem.
Será que não os vês?
Vagueiam pelos vales;
dizem aquilo que não fazem
com excepção daqueles que acreditam,
que realizam boas obras,
que muitas vezes evocam o nome de Deus
e se defendem
quando são injustamente atacados.
Alcorão, Sutra XXVI, O Poetas
146
[Em 1486, Berchthold, arcebispo de Mogúncia, emitiu um edito:] Tenho em alta estima
a tipografia, afirmava ele em substância, “que teve o seu berço na ilustre cidade de
Mogúncia. Assim, é conveniente que zelemos, com cioso cuidado sobre a sua honra
e, para impedir que uma arte tão maravilhosa seja comprometida, na sequência dos
abusos que com ela se poderiam fazer, ordeno que nenhuma tradução de livros escritos em latim, em grego ou em qualquer outra língua, sobre qualquer matéria, seja
dada à tipografia antes de ter sido examinado por um dos professores e doutores
da universidade de Mogúncia, por mim designados: um para a teologia; outro para a
medicina; outro para as leis, outro para as artes. Nenhum exemplar impresso poderá
ser publicado se não for revestido da autorização dos ditos doutores ou professores.
Berchthold, arcebispo de Mogúncia, Alemanha,
Edito de 1486.
74 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
147
Considerando ser muito proveitoso e honroso que livros de outros países fossem
importados nos seus reinos, para aí servir à instrução dos homens, os Reis de gloriosa memória quiseram e ordenaram que sobre a venda dos livros não fosse aplicada
nenhuma taxa; e porque, desde há algum tempo há comerciantes, tanto nativos dos
nossos reinos como estrangeiros, que todos os dias importam excelentes livros, o
que parece aproveitar a todos e ilustrar os nossos reinos, mandamos e ordenamos,
em consequência, que para além da dita franquia, não seja de ora em diante exigido
nem percebido qualquer direito de alfândega, qualquer dízimo, qualquer portagem,
nem qualquer outro direito – seja pelos nossos oficiais das alfândegas, pelos que
aplicam dízimos e portagens, ou por qualquer outro representante das cidades, burgos e aldeias da nossa coroa real, assim como das senhorias, ordens e cidades livres
– sobre os livros importados no nosso reino por via de mar ou de terra; mandamos e
ordenamos que os ditos livros sejam livres e francos de todos os direitos de alfândega,
taxas e dízimos acima mencionados, e que ninguém os exija ou prescreva sob pena de
incorrer nas sanções às quais se expõem aqueles que exigem e prescrevem impostos
que é proibido levantar; e ordenamos expressamente aos nossos controladores financeiros que transcrevam a presente lei nos nossos livros, assim como nos cadernos que
fixam as condições que consolidam os ditos direitos de alfândega, dízimos e taxas.
Cortes [Parlamento] de Toledo, 1480
148
Em nome de Deus, clemente e misericordioso.
Eis o que o servidor de Deus, ‘Umar, Comendador dos crentes, oferece pela segurança
da população de Ilya, [Jerusalém]: ele coloca-se como garante da segurança das suas
vidas, dos seus bens, das suas igrejas e das suas cruzes. Essa segurança estende-se
aos doentes, aos inocentes e a todos os membros da comunidade. As suas igrejas não
serão ocupadas, nem destruídas, nem amputadas de qualquer um dos seus edifícios
ou de qualquer parcela de terreno onde estejam situadas. Não se deverá atacar a sua
cruz nem os seus bens. Não serão perturbados por causa da sua religião e nenhum
mal será feito aos membros da comunidade. Nenhum Judeu virá morar com eles em
Ilya. Os habitantes de Ilya, como os das outras cidades, pagarão tributo. Deverão
expulsar os Rum e os salteadores. Aos Rum, a tranquilidade é assegurada, no que
respeita à sua vida e aos seus bens, tal como aos que ficarem e pagarem tributo. Aos
que desejarem seguir os Rum e levar os seus bens e as suas cruzes, é-lhes garantida
a segurança até que estejam fora de alcance. Aqueles que têm mortos [na cidade] e
que desejem ficar devem pagar tributo mas aqueles que desejem seguir os Rum ou
que desejem regressar, juntando-se às suas famílias, ficam dispensados do imposto
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 75
até às colheitas. Os que pagarem imposto, nos termos deste compromisso tomado
segundo os ensinamentos de Deus, terão direito à protecção do Profeta, dos Califas e
dos crentes. As testemunhas deste compromisso são Kh lid ben al-Wal d, ‘Amrou ben
al-‘Ass, ‘Abd al Ra man ben ‘Awf e Mo’awya bem Abi-Soufiane.
Um compromisso semelhante foi tomado pelo mesmo califa ‘Umar, relativamente à
população de Lydda e de toda a Palestina.
‘Umar bem al-Kha b, 581-644, segundo califa do Islão
Compromisso tomado depois da conquista de Jerusalém
149
[Recomendação do ‘Umar ben al-Kha
b (581-644) ao seu sucessor:]
Recomendo-te os Cristãos e os Judeus (que estão sob a tua protecção); combate por
eles e não os taxes para além das suas capacidades. Finalmente recomendo-te que
não permitas, nem a ti nem a qualquer outro, que oprimam esses não Muçulmanos.
Citado por al-Dj
i , 780?-869, Al-Bay n wal-Taby n
150
Os povos à sombra dos quais nós, povo de Israel, estamos exilados e entre os quais
estamos dispersos acreditam verdadeiramente na criação ex nihilo, no Êxodo, nas leis
fundamentais da religião, e todos os seus esforços e todo o seu pensamento vai para
o Criador do céu e da terra tal como escreveram os nossos Profetas (...) Sendo assim,
como não nos é proibido salvá-los, temos, pelo contrário, a obrigação de rezar (...) pela
prosperidade e pelo sucesso do seu reino e dos seus ministros em todos os territórios
sobre os quais se exerce a sua soberania. E, na verdade, como disse Maimónides, de
acordo com o Rabi Joshua, os crentes das nações gentias, têm, eles também, a sua
parte no mundo que há de vir.
Rabi Moses Rivkes, Rússia, Be’er Ha-Golah, 1661-1667
Lamentações
Neste espaço aberto e depois destas cauções, há lugar para a persuasão que renunciou ao
exercício formal da disputa racional. Mas se efectivamente o tom é de “humilde advertência”,
inicia-se já, como pano de fundo, um processo de força. A força – e isto mostra-se no seu
próprio exercício – não convence, produz mártires. Mais ainda, ela desfigura a mensagem da
qual pensa fazer-se instrumento. Conquista solitária, a verdade comunica-se; não se dita.
76 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Ora muitas vezes, aquilo que tomamos por verdade não é mais do que preconceito
ignorante, sempre pronto a degenerar em paixão. É pelo menos este o sentido das
lamentações dos vencidos que, noutros tempos, tinham mostrado menos rigor. No
campo dos vencedores, se algum filósofo se deixa aplacar, outros pensadores endurecem e o teólogo faz-se surdo. Para Santo Agostinho, por exemplo, “os sofrimentos” “dos
adversários da verdade” “não têm mérito”. Os “adversários da verdade” são os outros:
vencidos de todos os horizontes, minoritários, espíritos um pouco mais livres. Fora de
nós, todos os que não são pagãos são heréticos, uns e outros sujeitos mais tarde ou mais
cedo à justiça de uma força multiforme.
Desses espíritos considerados fortes, um exemplo patético, Soror Juana Inês de la Cruz:
“não convém à santa ignorância estudar assim; ela vai perder-se e desaparecer ao subir
tão alto pelo próprio efeito da sua penetração e da sua finura”.
Desta interdição, dirá Figaro, em voz alta, as verdadeiras determinações.
151
Muito humilde advertência aos inquisidores de Espanha e de Portugal
Uma judia de dezoito anos, queimada em Lisboa no último auto da fé, deu ocasião
a esta pequena obra; e penso que é a mais inútil que jamais se escreveu. Quando se
trata de provar coisas tão claras, estamos seguros de que não convencemos.
O autor declara que, embora Judeu, respeita a religião cristã e que a ama suficientemente
para retirar aos príncipes que não sejam cristãos um pretexto plausível para a perseguir.
“Queixai-vos, disse ele aos inquisidores, de que o Imperador do Japão manda queimar
em fogo lento todos os Cristãos que existem nos seus Estados; mas ele respondervos-á: Nós tratamo-vos, a vós que não acreditais como nós, como vós mesmos tratais
aqueles que não acreditam como vós, só podeis queixar-vos da vossa fraqueza, que
vos impede de nos exterminar e que faz com que nós vos exterminemos.
“Mas tendes que confessar que sois mais cruel do que este imperador. Mandais-nos
matar, nós que só acreditamos no que acreditais, porque não acreditamos em tudo o
que acreditais. Seguimos uma religião que vós próprios sabeis ter sido outrora amada
por Deus: nós pensamos que Deus ainda a ama, e vós pensais que ele já não o faz; e
porque julgais deste modo, passais a ferro e a fogo aqueles que estão nesse erro, tão
perdoável, de acreditar que Deus ainda ama aquilo que amou.
“Se sois cruéis para connosco, sois ainda mais cruéis para com os nossos filhos; fazeis
com que os queimem porque seguem as inspirações que lhes foram dadas por aqueles
que a lei natural e as leis de todos os povos lhes ensinaram a respeitar como deuses.
(...)
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 77
“Quando quereis que regressemos a vós, objectamo-vos uma origem da qual vos glorificais de descender. Respondeis-nos que a vossa religião é nova, mas que é divina;
e apresentais como provas ela ter crescido com a perseguição dos pagãos e com o
sangue dos vossos mártires; mas hoje assumis o papel dos Dioclecianos, e fazeis com
que nós assumamos o vosso.
“Suplicamo-vos, não pelo Deus poderoso que servimos, vós e nós, mas por Cristo, que
vós nos dizeis ter tomado a condição humana para vos propor exemplos que possais
seguir; suplicamo-vos que procedais connosco como ele próprio procederia se estivesse ainda neste mundo. Quereis que sejamos Cristãos e vós não quereis sê-lo.
“Mas se não quereis ser Cristãos, sede pelo menos homens: tratai-nos como faríeis se,
possuindo apenas os fracos laivos de justiça que a natureza nos dá, não tivésseis uma
religião para vos conduzir, e uma revelação para vos esclarecer.
“Se o Céu vos amou bastante, de modo a vos fazer ver a verdade, fez-vos uma enorme
graça; mas será próprio dos filhos que receberam uma herança do pai, odiar aqueles
que não a receberam?
“Que se tendes essa verdade, não a escondais do modo como nos propondes. O carácter da verdade é o seu triunfo sobre os corações e os espíritos, e não a impotência que
declarais quando quereis que ela seja recebida por meio de suplícios.
“Se fordes razoáveis, não deveis mandar-nos matar porque nós não queremos enganar-vos. Se o vosso Cristo é o filho de Deus, esperamos que ele nos recompense por
não termos querido profanar os seus mistérios; e acreditamos que o Deus que servimos, vós e nós, não nos punirá por termos sofrido a morte por uma religião que ele
outrora nos deu, porque nós acreditamos que ele ainda não a deu.”
Montesquieu, França, Do Espírito das Leis, 1748
152
Encontramos demasiadas vezes homens de ferro que parafraseiam e profanam o
termo misericórdia; têm a generosidade de prezar os humanos que distam de dois mil
anos ou de dois mil lugares: o seu coração abre-se em favor dos Hilotas e dos Negros,
enquanto que o desgraçado que encontram mal recebe um olhar de piedade. E eis à
vossa porta os descendentes desse povo antigo, irmãos desolados, à vista dos quais
não podemos impedir que o nosso coração se dilacere, que desde há quinze séculos
não vêm brilhar a felicidade sobre as suas cabeças; à sua volta nada mais encontram
senão ultrajes e tormentos, e nas suas almas dores e nos seus olhos lágrimas (...)
Enquanto forem escravos dos vossos preconceitos e vítimas do vosso ódio, não deveis
louvar a vossa sensibilidade.
Henri Grégoire, Ensaio sobre a Regeneração Física, Moral e Política dos Judeus, 1789
78 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
153
[Em 1610, os últimos espanhóis muçulmanos são expulsos de Espanha. Um deles,
“Abdelkrim ben Aly Perez”, fala assim:]
Porventura os nossos vitoriosos antepassados alguma vez tentaram extirpar o cristianismo de Espanha quando tinham poder para o fazer? Não autorizaram os vossos
avós a praticar os seus ritos com toda a liberdade, mesmo quando estavam agrilhoados com cadeias? Não é uma ordem expressa do nosso Profeta que toda a nação
conquistada pela espada muçulmana seja autorizada, contra o pagamento de um
tributo anual razoável, a prosseguir as práticas da sua confissão, seja ela qual for,
ou a aderir a qualquer crença livremente escolhida? Se houve casos de conversões
forçadas, são tão pouco numerosos que nem merecem ser mencionados, e são obra
de homens que não temiam nem a Deus nem ao Profeta e que, agindo deste modo,
traíram as sagradas prescrições do Islão que todo aquele que for digno do nome de
muçulmano não poderá violar sem se tornar culpado de sacrilégio. Que exemplos tendes vós na vossa história de um cristão, um gentio ou um judeu molestado devido às
suas crenças e isto em toda a extensão dos territórios sob domínio muçulmano desde
o aparecimento do Grande Profeta neste mundo até aos dias de hoje?
Nunca encontraríeis entre nós um tribunal oficial, sedento de sangue, chamado a
julgar os problemas da fé, que pudesse assemelhar-se ao vosso execrável tribunal da
Inquisição. É verdade que os nossos braços estão sempre abertos para acolher todos
os que se dispõem a aderir à nossa religião; mas o nosso Livro sagrado [Alcorão] proíbe-nos de exercer tirania sobre as consciências. Os nossos prosélitos recebem todos
os encorajamentos imagináveis e uma vez que professem a unidade de Deus e a missão do seu Profeta, tornam-se dos nossos, sem qualquer reserva; tomam as nossas
filhas por mulheres e são empregados em postos de confiança e de honra e são bem
retribuídos. Limitamo-nos a obrigá-los a adoptar os nossos costumes, a apresentar
exteriormente a aparência de verdadeiros crentes e nunca nos permitimos intervir
nas suas consciências desde que não profanem abertamente a nossa religião nem
dela digam mal; se fizerem isso, na verdade castigamo-los como merecem; porque se
converteram livremente sem a tal terem sido constrangidos.
Maomé Rabadan, Citado por J.Morgan em 1723-1725
154
Os que negam a existência de uma potência divina de nenhum modo devem ser
tolerados. A palavra, o contrato, o juramento de um ateu não podem constituir
algo de estável e de sagrado, e no entanto formam os elos de todas as sociedades
humanas; a ponto de, se suprimirmos a própria crença em Deus, tudo se dissolve.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 79
De resto, ninguém pode reivindicar, em nome da religião, o privilégio da tolerância
se eliminar completamente a religião, professando o ateísmo.
John Locke, Inglaterra, Carta sobre a Tolerância, 1690
155
Não te deixes comover pelos suplícios e pelos castigos infligidos aos malfeitores,
aos sacrílegos, aos inimigos da paz, aos adversários da verdade. Efectivamente não
é pela verdade que morrem esses sectários; eles morrem para impedir que anunciemos a verdade, que preguemos a verdade, que nos liguemos à verdade. Para impedir
que amemos a unidade, que abracemos a caridade e que consigamos possuir a eternidade. Como é horrível a sua causa! Também o seu sofrimento não tem mérito.
Santo Agostinho, 354-430, Cartago, Sermões
156
Mas tudo isto só se aplica àquele que continua a reclamar-se do nome de Israel. Pois
todo aquele que continua a reclamar-se do nome de Israel deixando de respeitar as
suas obrigações, profana a religião [judia] e incorre numa punição severa pois tornase um herético, tal como um homem sem religião.
Mas aquele que abandonou completamente o judaísmo e se tornou adepto de outra
religião, é considerado por nós como um adepto dessa religião, a respeito de tudo,
excepto no que concerne às leis do casamento. Assim ordenaram os meus mestres,
eles também.
Rabbi Me’iri (nome provençal, Don Vidal Solomon), 1249-1306,
Beit-Ha-Behira
157
(...) Ler e ler ainda mais, estudar, estudar ainda mais, sem outro mestre que não os
próprios livros. Sabemos como é duro estudar nesses caracteres sem alma, sem o
recurso a uma voz viva e à explicação de um mestre: pois bem, suportava com prazer todo esse sacrifício, por amor às letras. (...) No entanto, procurava elevá-lo tanto
quanto podia e dirigi-lo para o seu serviço [Deus], porque o fim a que aspirava era o
estudo da teologia; parecia-me coisa indigna o não saber, sendo católica, tudo aquilo
que, nesta vida, se pode captar dos divinos mistérios pelos meios naturais; e que,
vivendo no convento e não no século, o estado eclesiástico me impunha o dever de
me dedicar às letras (...)
(...) Não se imagina (...) quanto os meus pobres estudos tiveram que navegar contra a
corrente, ou melhor, como naufragaram (...) Até aqui apenas se tratava de contratem-
80 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
pos, que o acaso fez nascer, e que apenas o são indirectamente, mas houve outros,
positivos, que, directamente, tenderam a impedir e a proibir os meus exercícios.
Quem não acreditaria, vendo-me tão geralmente aplaudida, que naveguei de vento
em popa sobre um mar de azeite, levada por aclamações gerais? Deus no entanto
sabe que não foi de todo assim. Porque entre as flores dessas mesmas aclamações,
elevaram-se, como outras tantas serpentes, tantas rivalidades e perseguições, que
não saberia contá-las; os que mais mal me fizeram, os que mais me afectaram, não
são no entanto os que me perseguiram com o seu ódio declarado e com a sua malevolência, mas antes aqueles que, ao mesmo tempo que me amavam e me desejavam
bem (...) me mortificavam e atormentavam mais do que os outros, com os seus: “não
convém à santa ignorância estudar assim; ela vai perder-se e desaparecer ao elevarses tão alto pelo próprio efeito da sua penetração e da sua finura”.
(...) A única coisa que desejei foi estudar para ser menos ignorante (...) Onde está
então o meu pecado? Se o meu pecado está na Carta atenagórica, terá esta porventura feito algo mais do que simplesmente relatar o meu sentimento, com toda
a reverência que devo à nossa Santa Madre Igreja? Mas se Esta, com a Sua Muito
Santa autoridade, não mo proíbe, por que será que outros mo proíbem? (...) Se tivesse
pensado que devia ser publicada, não a teria deixado num estado tão descuidado.
Se, como pretende o Censor, é herética, por que não a denuncia? Desse modo seria
vingado (...) Se ela é bárbara (e ele tem razão em o pensar) que ria, mesmo com um
riso forçado; não lhe peço que me aplauda; era livre de ter um sentimento diferente
de Vieira e qualquer um também é livre de se afastar da minha opinião.
Sóror Juana Inès de la Cruz, 1651-1695, México
Carta autobiográfica
158
Como gostaria de agarrar um desses Poderosos de quatro dias, tão ligeiros sobre os
males que ordenam, quando uma desgraça fez fermentar o seu orgulho! Dir-lhe-ia (...)
que as estupidezes que se imprimem só importam aos lugares onde se lhes impede o
curso; que sem a liberdade de censurar não há elogios agradáveis; e que só os homens
pequenos temem os escritos pequenos. Farto de alimentar um obscuro pensionista,
põem-me um dia na rua; e como preciso de jantar, dado que já não estou na prisão,
aparo a minha pena e pergunto a cada um o que se passa: dizem-me que, durante a
minha retirada económica, estabeleceu-se em Madrid um sistema de liberdade sobre
a venda das produções, que se estende mesmo às da imprensa; e desde que nos meus
escritos não fale nem de autoridade, nem de culto, nem de política, nem de moral,
nem de gente altamente colocada, nem de corpos a crédito, nem da Ópera, nem
de outros espectáculos, nem de ninguém que se interesse por algo, posso imprimir
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 81
tudo livremente, sob a inspecção de dois ou três Censores. Para aproveitar esta doce
liberdade, anuncio um escrito periódico, e crendo não entrar em concorrência com
nenhum outro chamo-lhe Jornal inútil. Céus! Vejo que se elevam contra mim mil
pobre diabos; suprimem-me; e fico outra vez sem emprego!
Beaumarchais, França, O Casamento de Fígaro,
acto V, cena III, 1784
159
Um homem nascido francês e cristão fica fortemente embaraçado se quer escrever
dado que os grandes temas lhe estão interditos.
La Bruyère, Os Carateres, 1688-1696
O herético é aquele que prepara o fogo
Não aquele que será queimado
160
Shakespeare, Inglaterra, Conto de Inverno, acto III, cena II, 1611
161
A verdade não se apaga (nem tão pouco a mentira)
As Paredes Falam, Sorbonne, Paris, Maio 1968
162
Esses defensores tão ardentes da verdade, esses adversários do erro, os que sofrem de
um modo impaciente o cisma, todos eles quase nunca exprimem o zelo que os excita
e os inflama em favor do seu Deus, excepto quando têm com eles um magistrado civil
que lhes concede os seus favores. Logo que obtiveram o apoio do magistrado e que se
tornaram mais fortes, imediatamente a paz e a caridade cristã são violadas.
John Locke, Inglaterra, Carta sobre a Tolerância, 1690
O cerne da questão: « Deus ou Mammon »?
É preciso anular a ambiguidade. Em poucas linhas frias e cortantes, Maquiavel coloca a alternativa e imediatamente esclarece um certo modo de ser histórico. Todo o
empreendimento humano, para resultar, apenas pode escolher entre duas vias: a oração ou a força. A oração conduz ao revés; muitas vezes a força leva ao sucesso.
Depois de balbuciações milenares, esse texto dissipa todas as incertezas. Tudo são
82 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
questões humanas e as questões humanas visam o poder temporal. Em tal matéria,
só os argumentos materiais são determinantes. Mas então, o que procuramos pela
força, Deus ou o poder? Esclarecido este ponto, as forças podem jogar e medir-se sem
máscara.
O texto que vamos ler mostra antecipadamente o fim de todo o humanismo devoto.
163
Se quisermos compreender bem este ponto, temos de considerar se aqueles que
procuram coisas novas podem algo por si mesmos, ou se dependem de outrem;
quer dizer, se para conseguirem realizar os seus empreendimentos, contam com as
orações ou com a força. No primeiro caso acabam sempre mal e nada conseguem realizar; mas quando só dependem de si mesmos e podem usar a força, então raramente
há malogro. Daqui resulta que todos os profetas bem armados foram vencedores e
que os desarmados ficaram desnorteados.
Nicolau Maquiavel, Itália, O Príncipe, 1513
Sob o olhar do Ocidente ...
Desde então tudo se esclarece: o drama que vive a humanidade é um conflito de poderes temporais, totalmente inscrito entre a boa e a má consciência.
No coração desta sequência produz-se uma cristalização de interesses e de valores. É
um certo Ocidente cristão, desde então dividido, que é aqui, simultaneamente, sujeito
e objecto da sua história.
Uma única questão perante este desencadear de violência, de paralogismos, de sofismas, de desprezo: quem é bárbaro, o humanista autêntico que protesta em nome do
humano e do universal, seja ele branco ou as mais das vezes de cor, ou o arrebatado,
dito civilizado, a favor de quem, depois de cada conquista, um Deus particular – provisoriamente o mais forte – reconhecerá os que são seus?
Isto é o quadro vivo daquilo que foi executado, esperado, pensado pelo empreendimento colonial, também designado por cruzada ou por boa palavra, tendo em surdina o
nome múltiplo dos vencidos. A verdadeira razão - bem como o humano – evidentemente que estão quer ausentes quer a mais. O acordo nunca sem faz sem mal-entendidos
ou duplicidade quando implica o extermínio do fraco. Aqui e ali, procura-se interceder,
reflectir, compreender: os humilhados sem razão e alguns prelados, alguns filósofos,
ainda fieis à pureza da mensagem ou ao simples dever de humanidade; todos são varridos pelo sopro da violência com o qual o Ocidente conquistador destrói o outro, ao
mesmo tempo que se destrói a si mesmo.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 83
Perguntar-se-á: “Foi assim que Cristo dispôs?” Os deuses calam-se sempre que os
homens são tomados pela febre de poder e da sede de oiro. Os “mea culpa”, por piedosos que sejam, legalizam sempre um facto consumado.
164
O nosso mundo acaba de encontrar um outro ( e quem nos responde se é o último
dos seus irmãos, visto que os demónios, as sibilas e nós, ignorámos este até agora)
não menos grande, cheio e membrudo do que ele...
Montaigne, França, Ensaios, 1588
165
Não sejais zelosos, não apresenteis argumentos para convencer os povos a mudar
os seus ritos, os seus hábitos e os seus costumes, a menos que estes sejam evidentemente contrários à religião e à moral. É absurdo transportar para os Chineses a
França, a Espanha, a Itália ou qualquer outro país da Europa. Não queirais impor nas
suas terras os nossos países, mas sim a fé (...) Está, por assim dizer, inscrito na natureza dos homens, amar, colocar acima de tudo neste mundo as tradições do seu país
e esse próprio país. Assim, não há causa mais poderosa de afastamento e de ódio
do que levar mudanças aos costumes próprios de uma nação (...) Que acontecerá
se, tendo-os revogado, procurais substituí-los por costumes do vosso país, trazidos
de fora? Portanto, não coloqueis nunca em paralelo os usos desses povos com os da
Europa. Pelo contrário, empenhai-vos em vos habituardes a eles.
Instruções para uso dos vigários apostólicos de partida para os reinos chineses de Tonquim e de Cambodja.
166
A todos os fiéis cristãos que lerem as presentes, endereçamos a nossa saudação e a
nossa benção apostólica.
É reconhecido que, quando determinou aos pregadores a tarefa de pregar a fé, a
Verdade mesma, que não pode enganar-se nem enganar, disse: Ide e ensinai todas
as nações. Disse todas sem nenhuma distinção, pois todas estão aptas a receber o
ensinamento da fé. Vendo isto, o inimigo invejoso do género humano, que se opõe
sempre às acções dos homens para as fazer malograr, imaginou um meio até agora
desconhecido de impedir que a palavra de Deus fosse pregada às nações para a salvação delas: acicatou alguns dos seus sequazes, movidos pelo desejo de saciar a sua
cupidez, a oprimir como bestas brutas, sujeitas ao seu poder, os Índios ocidentais
e meridionais assim como outros povos cuja existência nos foi dado recentemente
conhecer, sob pretexto de que ignoravam a fé católica. Em consequência, nós que
84 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
exercemos sobre a terra, bem que de tal não sejamos dignos, as funções de vigário
de Nosso Senhor e que não poupamos esforços para trazer ao redil as ovelhas do seu
rebanho, confiadas à nossa guarda, que se encontram fora desse redil, constatando
que esses mesmos Índios, na sua qualidade de verdadeiros homens, não só estão
aptos a aceder à fé cristã, mas ainda, tal como foi trazido ao nosso conhecimento,
se precipitam sobre essa fé, e querendo trazer-lhes os remédios apropriados – em
virtude da nossa autoridade apostólica, não obstante as nossas cartas precedentes e
todas as disposições contrárias, decretamos e proclamamos o que se segue:
Os citados Índios e todos os outros povos cuja existência será levada ulteriormente
ao conhecimento dos Cristãos, mesmo que estejam fora da fé, não estão e não devem
estar privados de liberdade e da posse dos seus bens; pelo contrário, podem livremente e licitamente usar e gozar de tal liberdade e posse e não devem ser reduzidos
à servidão; tudo o que possa afastar-se deste princípio será considerado nulo e não
existente, e será conveniente incitar esses Índios, tal como os outros povos, a aderir à
dita fé cristã, pregando-lhes a palavra de Deus e dando-lhes o exemplo de uma vida
virtuosa.
Feito em Roma, ano MDXXXVII, IV dia antes das noas de Junho, ano III do nosso pontificado.
Bula do Papa Paulo III, 1537
167
Arenga dos embaixadores de Pizarro ao Inca
Fernando Pizarro, vendo o povo aquietado, ordenou a Fernando de Soto que falasse,
de modo a que não se perdesse mais tempo. Disse-lhe que se despedisse rapidamente
da sua embaixada, pois era melhor regressar e dormir com os seus e não se fiar em
infiéis, os quais, embora lhes tivessem dado alguns presentes, teriam talvez como
objectivo ganhar a sua confiança para os apanhar desprevenidos. Fernando de Soto
levantou-se então, e depois de ter saudado à maneira espanhola, quer dizer, descobrindo-se com uma grande reverência, sentou-se de novo para pronunciar o que se
segue:
“ Sereníssimo Inca! Sabei que no mundo há dois príncipes mais poderosos que todos
os outros. Um é o supremo Pontífice que ocupa o lugar de Deus; este administra e
governa todos aqueles que observam a lei divina e ensina a palavra divina. O outro é
o Imperador dos Romanos, Carlos Quinto, Rei de Espanha. Estes dois monarcas, vendo
a cegueira dos naturais deste país, pela qual, desprezando o verdadeiro Deus, criador
do céu e da terra, adoram as suas criaturas e o mesmo Demónio que os perde, enviaram o nosso governador e capitão geral D. Francisco Pizarro e os seus companheiros,
para além de vários padres, ministros de Deus, que devem ensinar a Vossa Alteza e a
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 85
todos os vossos vassalos esta divina verdade e a sua lei santa, coisa pela qual vieram
a este país. Tendo experimentado, durante o caminho, a liberalidade da vossa mão
real, entraram ontem em Cassamarca e enviam-nos hoje a Vossa Alteza para que
lancemos a primeira base da concórdia, da aliança e da paz perpétua, que deve existir
entre nós, e para que, ao receber-nos sob a sua protecção, Vossa Alteza permita que
lhe façamos ouvir a Lei divina e que todos os seus a aprendam e recebam, pois tanto a
Vossa Alteza como a todos eles, ela ocasionará a maior honra, vantagem e proveito.”
Garcilaso de la Vega (dito o Inca)
1539?-1617, Peru
168
E agora, iremos
Destruir
O nosso modo antigo de viver?
O dos Chichinicas,
Dos Toltecas,
Dos Acolhuas,
Dos Tepanecas?
Sabemos
Quem dispensa a vida;
Quem perpetua a espécie;
Quem permite a procriação;
Quem torna possível o crescimento;
Conhecemos a forma das invocações,
Sabemos como se deve rezar.
Escutai-nos, Senhores,
Nada fazei
Ao nosso povo
Que sobre ele chame a maldição,
Que possa provocar a sua perda (...)
Com calma e bondade
Considerai, Senhores,
O que pode ser melhor.
Não podemos viver tranquilos,
E no entanto certamente que não somos crentes;
Aquilo que pregais não é para nós a verdade,
Mesmo que isto vos ofenda.
Vós sois
86 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Ó Senhores, os que dirigem,
os que mantêm, os que se dão
Ao mundo inteiro.
Não basta que tenhamos perdido tudo,
Que o nosso modo de vida nos tenha sido tirado,
Que tenha sido destruído?
Se ficarmos neste lugar
Podemos ser feitos prisioneiros.
Fazei de nós
O que vos aprouver.
É tudo o que respondemos,
Tudo o que replicamos
À vossa escolha,
Às vossas palavras,
A vós que sois os nossos senhores!
Resposta dos sábios Aztecas aos doze missionários
1524, México
169
(...) Desde o começo da descoberta das Índias que uma grande cegueira se apoderou
do entendimento dos membros do Conselho Real sobre este assunto. Pois o que há
de mais absurdo do que considerar como culpados de recusar a fé pessoas que até
então pensavam estar sós no mundo, que de modo algum sabiam o que era a fé, ou
o que poderiam ser os Cristãos (senão homens malvados, cruéis, que os roubavam e
matavam) quando nenhum deles conhecia a nossa língua tal como nós desconhecíamos a deles? E o que querem dizer os membros do Conselho quando pretendem que
esses Índios tinham sido solicitados por várias vezes a tornar-se Cristãos e a entrar
na comunhão dos fiéis? Mesmo que conhecessem um pouco a nossa língua, como
dizer-lhes algo muito simples como por exemplo dois e dois são quatro? E mesmo que
fossem capazes de compreender o sentido destas somas, seriam obrigados a alcançálo imediatamente sem raciocínio, sem reflexão nem deliberação? E seriam passíveis
de punição pelo simples facto de não aderirem imediatamente à fé cristã?
É deste modo que devemos propor a fé a pessoas que nunca dela ouviram falar? E
mesmo se os solicitamos mil vezes e eles se recusam a recebê-la, teremos nós direito
de lhes infligir punições? Porventura foi assim que Cristo determinou, ele que é o
doador da fé? Porventura alguma nação no mundo pode ser obrigada a dar crédito a
quem a invade, de armas na mão, matando os que até então viviam em segurança e
dos quais nunca tinham recebido qualquer ofensa, tal como logo de início fizeram os
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 87
Espanhóis? (...) Será crime que esta gente procure defender-se contra os Espanhóis,
dos quais recebiam tantos malefícios, quando mesmo os animais selvagens têm o
direito de defender a vida? Não será manifestamente falso pretender que eles se
defendiam para não receber os ensinamentos da fé, quando nem mesmo sabiam do
que se tratava?
Bartolomeu de Las Casas, 1474-1566, Espanha
170
Resposta do Inca Atahualpa aos embaixadores de Pizarro
(...) Digo isto, homem de Deus, porque não consigo deixar de compreender que as
vossas palavras signifiquem algo diferente daquilo que o vosso arauto me disse, o
próprio objecto da embaixada o requer; e dado que se trata de paz, de amizade, de
fraternidade perpétua e de estreita aliança, tal como mo exprimiram os outros mensageiros que vieram ao meu encontro, tudo o que me disse este índio tem um som
muito contrário; pois, segundo ele, tu ameaças-nos de guerra, de morte por ferro e
fogo, e declara que vais expulsar e destruir os Incas e a sua raça e que eu, de bom
ou de mau grado, devo renunciar ao meu trono para me fazer vassalo e tributário de
outro. De duas coisas uma, ou o vosso príncipe e todos vós sois tiranos que andais a
semear a destruição pelo mundo, usurpando os tronos, matando e roubando aqueles
que nunca vos injuriaram e que nada vos devem, ou sois ministros do Deus a que nós
chamamos Pacha Camac, que vos escolheu para nos castigar e nos destruir. Se assim
é, os meus vassalos e eu oferecemo-nos para morrer e para tudo o que desejardes
de nós; não que tenhamos medo das vossas armas e das vossas ameaças, mas para
cumprir o que o meu pai Huaina Camac nos ordenou à hora da morte: servir e honrar
uma raça barbuda como vós, que viria depois do seu falecimento; tinha ouvido dizer,
anos antes, que erravam nas fronteiras do seu Império. E disse-nos que deviam ser
homens de melhor lei e melhores costumes, mais sábios e mais valorosos do que nós.
É por esta razão que, no cumprimento do testamento de meu pai, vos chamámos
“viracochas”, para significar que sois mensageiros do grande Deus Viracocha, a cuja
vontade e justa indignação as armas e o poder são irresistíveis. Mas esse Deus também conhece a piedade e a misericórdia. Portanto, deveis agir como mensageiros e
ministros divinos, e não permitir que continuem os assassínios, pilhagens e crueldades tal como aconteceu em Tumpiz e noutros lados.
Para além disto, o vosso arauto disse-me que vós me propusestes conhecer cinco
Seres notáveis. O primeiro é o Deus três e um, que foi quatro, ao qual chamais criador do universo; acontece que é o mesmo ao qual nós chamamos Pacha Camac e
Viracocha. O segundo é aquele que dizeis ser pai de todos os homens, no qual todos
88 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
eles acumularam os seus pecados. Ao terceiro chamais Jesus Cristo, que foi o único
entre todos a não lançar os pecados sobre esse primeiro homem, mas mataram-no.
Ao quarto chamais papa. O quinto é Carlos, que sem levar os outros em conta , vós
chamais todo poderoso, monarca do universo e superior a todos. Pois bem, se esse
Carlos é príncipe e senhor de todo o mundo que necessidade tinha que o papa lhe
outorgasse uma nova concessão e doação, para me guerrear e usurpar o meu trono?
Se ele tinha necessidade disso, era porque o papa estava acima dele e era realmente
o mais poderoso e o príncipe do universo. Também me espanta que digais ser eu
obrigado a pagar tributo a Carlos, e não aos outros, pois não me dais qualquer razão
para esse tributo e eu de modo algum me sinto obrigado a subscrevê-lo. Porque, se
por direito me fosse necessário pagar tributo e servir, parece-me que tributo e serviço seriam devidos a esse Deus do qual dizes que nos criou a todos, e a esse primeiro
homem que foi pai de todos os homens, e a esse Jesus Cristo que nunca cometeu
pecado; finalmente, ao papa, que pode dar e conceder a outrem o meu trono e a
minha pessoa. Mas se dizes que nada devo a esses, ainda menos devo a Carlos que
nunca foi Senhor destas regiões, e nunca as viu. E se, além desta concessão, tem
algum direito sobre mim, seria justo e razoável que o expusésseis antes de me ameaçar com guerra, fogo, sangue e morte, para que eu possa obedecer à vontade do papa,
pois não sou tão tacanho de entendimento que não saiba obedecer a quem pode
comandar por razão, justiça e direito.
Para além disso, desejo saber, desse ser excelente Jesus Cristo, que nunca acumulou
os seus pecados e do qual dizes que morreu, se morreu de doença ou pela mão dos
seus inimigos; se foi colocado entre os deuses antes da sua morte ou depois dela.
Também desejo saber se considerais santos esses cinco de que me falastes pois honrai-los grandemente; se é assim, tendes mais deuses do que nós; nós só adoramos
Pacha Camac, Deus supremo, e o Sol, seu subordinado, e a Lua, sua irmã e sua esposa.
Por tudo isto, regozijar-me-ia extremamente se me fizésseis ouvir estas coisas por
um melhor intérprete, a fim de que delas tome consciência e que obedeça à vossa
vontade.
Garcilaso de la Vega (dito o Inca)
1539?-1617, Peru
171
De tudo isto concluo que a consciência de um Pagão o obriga a honrar os seus falsos
deuses; sob pena de, se deles disser mal, se roubar os seus templos, etc., cair na blasfémia e no sacrilégio; não menos do que um Cristão, que diz mal de Deus e rouba as
Igrejas.
Pierre Bayle, 1647-1706, França
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 89
172
Esta nação traz no seu rosto uma maldição temporal e é herdeira de Cam (...) Não
vos espanteis, pobres Negros, de terdes nascido para a servidão e de a vossa descendência ser escrava até ao dia do Juízo; é para punir a ingratidão do vosso pai, é para
ensinar a piedade a todas as Nações.
Maurice de Sait-Michel, França
Viagem das Ilhas Camercanas, 1653.
173
Homens, parem e escutem as minhas recomendações. Aprendem-nas de mim. Não
enganem, não exorbitem o vosso poder, não torturem, não matem crianças, nem
velhos nem mulheres, não decepem as palmeiras nem as queimem, não arranquem
árvores de fruta, não degolem cabritos, vacas ou camelos a não ser para comer.
Encontrareis pessoas dedicadas à fé nos conventos; deixem-nas cumprir aquilo a que
se consagraram.
Califa Ab Bakr, 570?-634?
Recomendações aos exércitos de ‘A ama
Sob o olhar dos Bárbaros
174
Coramos quando nos lembramos dos motivos vergonhosos ou frívolos pelos quais
os príncipes cristãos levam os povos a pegar em armas. Um deles provou ou simulou um direito caduco, como se fosse muito importante que tal ou tal príncipe
governasse o Estado, contanto que os interesses públicos fossem bem administrados. Outro tomou como pretexto um ponto omisso num tratado de cem capítulos.
Este teve um ressentimento contra um outro, a respeito de uma noiva recusada ou
raptada, ou de qualquer gracejo demasiado livre; e o cúmulo da infâmia é que há
príncipes que, sentindo fraquejar a autoridade na sequência de uma paz demasiado
longa ou da união dos seus súbditos, entendem-se em segredo, de modo diabólico,
com os outros príncipes, os quais, quando encontram um pretexto, provocam a
guerra, a fim de tudo dividir pela discórdia daqueles que viviam estreitamente unidos e de espoliar o povo infeliz, graças a essa autoridade desenfreada que provoca
a guerra.
Erasmo de Roterdão, Querela pacis undique gentium ejectae profligataeque, 1515
90 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
175
Hurra! Em nome do povo havemos de nos exterminar uns aos outros até ao último.
Karel Capek, 1890-1938, Escritor checo
176
Aprendei cidades livres, aprendei com o nosso infortúnio, a doravante vos governardes de outra maneira, e não vos deixeis mais confundir, como nós fizemos, pelo
agrado e pelos encantamento dos pregadores, corrompidos pelo dinheiro e pela
esperança que lhes dão os príncipes, que apenas aspiram a comprometer-vos e a
tornar-vos fracos e maleáveis de modo a poderem desfrutar-vos e aos vossos bens
e à vossa liberdade, como lhes aprouver! Porque aquilo que vos dão a entender da
religião é apenas uma máscara com a qual distraem os simples, tal como as raposas
com a sua longa cauda distraem as pegas, para as agarrar e comer à vontade. Será
que alguma vez vistes gente que aspire à dominação tirânica do povo e que não
tenha usurpado algum título especioso do bem público ou da religião? E, no entanto, quando se tratou de fazer acordos, o seu interesse particular esteve sempre à
frente deixando para trás o bem do povo, como algo que não interessasse; ou então,
quando vitoriosos, o seu fim foi sempre subjugar e dominar o povo que os ajudou
a realizar os seus desejos.
Sátira Menipa (panfleto político dirigido contra a Liga)
1594, França
177
Enquanto que os ourives de Montezuma desfaziam as jóias e as colocavam em montes – havia três montes – desapareceu um bom terço do ouro, escondido e dissimulado, tanto por Cortez como pelos seus capitães ou não se sabe por quem. Depois de
muitas discussões pesou-se o que restava, avaliado em seiscentos mil pesos, não se
incluindo discos nem jóias. Vou dizer como tudo se repartiu. Primeiro, reservou-se o
quinto real. Depois Cortez pediu que se reservasse um outro quinto para ele, tal como
tinha sido estabelecido quando o nomeámos capitão general. Depois disto, disse que
devíamos tirar do todo uma determinada parte, em compensação das despesas que
ele tinha tido em Cuba, com a armada. Depois uma outra parte para as despesas que
Diego Velasquez tinha feito com a compra dos navios naufragados. E depois ainda
a parte dos procuradores que tinham partido para Castela. E depois para os setenta
homens que tinham ficado em Vila Rica. E pelo cavalo que lhes tinha morrido, e pela
égua de Juan Sedena, morta em Tlascala. E pelo Padre da Graça e pelo clérigo Juan
Diaz e para os capitães e para aqueles que tinham cavalos e que mereciam uma parte
dupla. E para os escopeteiros e para os albardeiros e outros parasitas. Tanto e tão bem
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 91
que pouco restava para distribuir. Era tão pouco que muitos soldados não aceitaram
receber o que lhes competia. O que fez com que Cortez ficasse com tudo.
Bernal Diaz del Castillo, 1495-1582,
A História Verídica da Conquista da Nova Espanha
178
É um grande escândalo e um malefício grave feito à nossa santa religião vermos,
nestas novas cristandades, bispos, religiosos e clérigos que enriquecem enquanto
que os novos convertidos vivem numa extrema pobreza, inacreditável, e que um
grande número de entre eles morre todos os dias miseravelmente devido à opressão,
à fome, ao frio, ao trabalho excessivo. Por este motivo, suplico humildemente a Vossa
Santidade, que declare que os ministros de Deus são obrigados, pela lei natural e divina, a restituir todo o ouro, a prata e as pedras preciosas que vieram para a sua posse,
visto que os tiraram a homens que sofriam de extrema necessidade e que continuam
a viver miseravelmente – homens para com os quais são obrigados, pela lei divina e
natural, a despojar-se, se tal for necessário, dos seus bens próprios.
Bartolomeu de Las Casas, 1474-1566, Carta a S.S Pio V
179
Dois dos mais poderosos monarcas deste mundo, reis de tantos reis, sendo o último
daqueles que perseguiram, o do Peru, tendo este sido conquistados numa batalha e
tendo sido pedido por ele um resgate tão excessivo que ultrapassa toda a crença, tendo
o resgate sido fielmente pago, e depois de ele ter dado pela sua conversação sinal de
uma coragem franca, liberal e constante, bem como de um entendimento recto e bem
constituído, os vencedores, depois de recolherem um milhão e trezentos e vinte e cinco
mil centenas de pesos em ouro, para além da prata e de outras coisas não menos valiosas, de tal modo que os seus cavalos só eram ferrados a ouro maciço, desejaram ver
ainda, a preço de uma qualquer deslealdade, qual poderia ser o resto dos tesouros deste
rei e gozar livremente do que ele tinha guardado. Deduziram-lhe uma falsa acusação e
uma falsa prova, dizendo que tinha a intenção de sublevar as províncias para se libertar.
Pelo que, por julgamento dos próprios que lhe tinham levantado essa traição, condenaram-no a ser enforcado publicamente, tendo-o resgatado do tormento de ser queimado vivo, pelo baptismo que lhe ministraram na própria altura do suplício. Acidente
horrível e inédito, que ele no entanto suportou sem se desmentir, nem de postura nem
de palavra, e com uma atitude e uma gravidade verdadeiramente reais. E depois, para
aplacar os povos espantados e transidos com tão estranha coisa, disfarçou-se a sua
morte com um grande luto e ordenaram-se sumptuosas cerimónias fúnebres.
Montaigne, França, Ensaios, 1598
92 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
180
Guerra civil: Contentai-vos em atirar sobre eles! O lado dos canhões é o lado legal!
Karel apek, 1890-1936, Escritor checo
181
Os negros de Angola são geralmente mais estimados do que os dos outros países.
Confesso que a condição dos escravos é extremamente dura, e que é muito penoso
para esses desgraçados verem-se vendidos, muitas vezes pelos pais e pelos seus
senhores, a estrangeiros que os transportam para onde melhor entendem, e que
os deixam em países onde se servem deles como bestas de carga: mas todas estas
desgraças são para eles ocasião de uma felicidade inestimável, visto que na sua
escravidão gozam da liberdade de filhos de Deus. Na ilha da Martinica, um jovem
negro dizia-nos uma vez sobre este assunto “que preferia o cativeiro à liberdade que
poderia ter no seu país, pois se continuasse livre, seria escravo de Satanás, enquanto
que sendo escravo dos franceses tinha sido feito filho de Deus”. Não são todos tão
espirituais nem tão clarividentes.
Pierre Pelleprat, França,
Relação das Missões dos Padres da Companhia de Jesus, 1655
182
Da escravatura dos negros
Se tivesse que defender o direito que temos de tornar escravos os negros, eis o que
diria:
Os povos da Europa, tendo exterminado os da América, tiveram que escravizar os da
África, para deles se servirem para desbravar muitas terras.
O açucar seria demasiado caro, se não fizéssemos trabalhar por escravos a planta que
o produz.
Aqueles que o fazem são negros, dos pés à cabeça, de nariz tão esborrachado que é
quase impossível lastimá-los.
Não podemos conceber que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma,
sobretudo se for uma alma boa, num corpo tão negro.
É tão natural pensarmos que a cor constitui a essência da humanidade, que mesmo
os povos da Ásia que fazem eunucos, privam sempre os negros da relação que têm
connosco, de uma maneira acintosa.
Podemos julgar a cor da pele pela cor dos cabelos. Entre os Egípcios - os melhores
filósofos do mundo - os cabelos eram tão importantes que eles mandavam matar
todos os homens ruivos que lhes caíam nas mãos.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 93
Uma prova de que os negros não têm senso comum, é que dão mais importância a
um colar de vidro do que a um de ouro, ouro esse que, em nações onde há polícia é
de tão grande importância.
É impossível supormos que tais pessoas sejam homens; porque, se os supuséssemos
homens, começaríamos a acreditar que nós próprios não somos cristãos.
Há espíritos tacanhos que exageram demasiado a injustiça que fazemos aos africanos. Porque, se ela fosse tão grande como dizem, não teria já ocorrido à mente dos
príncipes da Europa, que entre si fazem tantas convenções inúteis, fazer uma convenção geral a favor da misericórdia e da piedade?
Montesquieu, França, Do Espírito das Leis, 1748
183
Ambos os partidos combatentes lêem a mesma Bíblia e rezam ao mesmo Deus e cada
um invoca contra o outro o auxílio dEste. Pode parecer estranho que um homem peça
a ajuda de um Deus justo para ganhar o pão graças ao suor do rosto de outro homem,
mas não julguemos, com medo de ser julgados.
A oração dos dois partidos não podia ser atendida simultaneamente e não foi atendida a oração de nenhum deles. O Altíssimo tinha o seu desígnio. Desgraçado do mundo
devido aos seus pecados, pois pode ser necessário que os escândalos aconteçam, mas
desgraçado daquele que é culpado deles (...)
Esperamos firmemente que este terrível flagelo da guerra cesse em breve; imploremo-lo com fervor: contudo, se Deus quisesse que ele continuasse a exercer sevícias
até que fossem consumidas todas as riquezas acumuladas pelos escravos em duzentos e cinquenta anos de fadigas sem recompensa e até que cada gota de sangue
derramado sob o chicote fosse compensada por uma outra derramada pela espada,
segundo o que foi escrito há três mil anos, deveríamos ainda dizer que os juízos de
Deus são inteiramente verdadeiros e justos
Abraham Lincoln, 1809-1865,
Presidente dos Estados Unidos da América, Discurso
184
Octavo remedio
O oitavo remédio que proponho é que Vossa Majestade ordene, por uma Lei e por
uma Constituição invioláveis, que todos os Índios das Índias sejam incorporados na
Coroa real e nunca possam ser “alienados ou dados em comenda”.
Qual é o insensato que (...) imagina uma invenção tão hipócrita, tão condenável e
tão nefasta: dissimular sob uma bela aparência essa tirania imperiosa e cruel que é a
94 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
cobiça do ouro e, a fim de satisfazer os que por ela estão possuídos, lhes dá o direito
de ensinar a fé (eles que por sua própria conta não a conhecem!); lhes entrega inocentes para esse efeito, aos quais suga o sangue e todas as riquezas? Não é o mesmo
que confiar a lobos esfaimados o cuidado das ovelhas?
(...) Na verdade, venderam-lhes a fé a um preço exorbitante, quando deviam dá-la,
visto que Cristo nos ordenou que déssemos gratuitamente aquilo que recebemos
gratuitamente.
É espantoso que aqueles que recebem deste modo “em comenda” estes Índios, sejam
suficientemente cegos para não ver que ao mesmo tempo lhes é imposta a obrigação
terrível de ensinar a esses Índios a doutrina cristã, o que são totalmente incapazes de
fazer, pois têm como única preocupação tornar-se ricos.
Este processo é pois totalmente hipócrita, e Deus que tudo vê não pode ser enganado e sabe que ele [o processo] a nada mais conduz que não seja dar os Índios como
escravos aos Cristãos.
(...) Quem poderá aprovar que assim se condene à morte um mundo inteiro, sem que
da sua parte haja qualquer falta, sem que tal mundo possa fazer ouvir a sua voz ou
defender-se?
(...) Seria agir contra o preceito expresso de Cristo, com grande prejuízo para a fé, e
seria levar uma destruição total à maior parte do género humano.
Bartolomeu de Las Casas, 1474-1566, Espanha
185
Numa outra altura, mandaram queimar de uma só vez, num mesmo fogo, quatrocentos e sessenta homens, estando todos eles vivos, quatrocentos do povo miúdo,
sessenta de entre os principais senhores de uma província, simples prisioneiros de
guerra. Estas narrativas vêm-nos dos próprios, pois não só o confessam como se
vangloriam e fazem pregações. Será para dar testemunho da sua justiça? Ou por zelo
quanto à sua religião? Certamente que são vias muito diversas e inimigas de um fim
tão santo. Se se propusessem estender a nossa fé, teriam considerado que não é pela
posse de terras que ela se amplifica, mas pela posse de homens, e ter-se-iam contentado com as mortandades que a necessidade da guerra acarreta, sem nelas misturar,
indiferentemente, uma carnificina universal, como sobre animais selvagens, tanto
quanto o ferro e o fogo puderam atingir, tendo apenas conservado para os seus intuitos, aqueles dos quais quiseram fazer miseráveis escravos para o trabalho e o serviço
das suas minas.
Montaigne, França, Ensaios, 1588.
ENSAIO ANTOLÓGICO
186
A TOLERÂNCIA 95
De acordo com as disposições relativas à liberdade dos Índios: queremos e ordenamos que nenhum “adelantado”, governador, capitão ou alcaide, nem nenhuma outra
pessoa, qualquer que seja o seu estado, a sua posição, o seu ofício ou a sua qualidade
em tempo de paz como em tempo de guerra, mesmo que essa guerra seja justa e
tenha sido ordenada por Nós ou por qualquer um a quem conferimos esse poder,
ouse colocar em cativeiro os Índios originários das nossas Índias, ilhas e terra firme
do mar Oceânico, descobertas ou por descobrir, ou reduzi-los à escravidão – mesmo
que sejam nativos de ilhas ou de terras às quais Nós, ou qualquer um a quem tenhamos conferido ou conferiremos esse poder, ou declarámos que fosse permitido
fazer justamente a guerra – ou matá-los, ou fazê-los prisioneiros ou colocá-los em
cativeiro, excepto nos casos e nos países em que tal fosse permitido e previsto pelas
leis que figuram no presente Título, porque Nós revogamos e suspendemos todas as
autorizações e declarações anteriores que não sejam reproduzidas nas leis presentes,
e todas aquelas que poderiam ter sido feitas por outros que não Nós e sem menção
expressa da presente lei, por tudo o que respeita à colocação em cativeiro e em escravidão dos Índios numa guerra, mesmo que essa guerra seja justa e que eles a tenham
provocado ou a provoquem, e ao resgate daqueles que outro Índios tenham feito
prisioneiros no decurso de guerras que fazem entre si. Igualmente decidimos que em
tempo de guerra como em tempo de paz, ninguém poderá apanhar, capturar, obrigar
a trabalhar, vender ou trocar um Índio a título de escravo, nem considerá-lo como tal
sob pretexto de que o fez cativo numa guerra justa, ou que o comprou, resgatou ou
adquiriu por troca ou câmbio, ou sob qualquer outro pretexto ou por qualquer outra
razão, mesmo que esse Índio faça parte daqueles que os próprios indígenas consideraram, consideram ou poderiam considerar entre eles como escravos; no caso de
se descobrir que uma pessoa colocou um Índio em cativeiro ou em escravidão, essa
pessoa seria condenada à confiscação de todos os seus bens, que seriam adscritos ao
nosso Tesouro, e o Índio seria seguidamente devolvido e restituído às suas próprias
terras e ao seu país, e ao pleno gozo da sua liberdade natural, a custas da pessoa que
assim o tivesse colocado em cativeiro ou escravidão. E ordenamos aos nossos juizes
que façam prova de uma particular diligência nas suas investigações e que castiguem
os culpados com o maior rigor, de acordo com a presente lei, sob pena de serem despojados dos seus cargos e de terem de pagar cem mil marevedis ao nosso Tesouro, se
infringirem a lei ou se negligenciarem a sua aplicação.
Decretos do Imperador Carlos V,
Promulgados entre 1526 e 1548, Espanha.
96 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
187
[Um capitão católico faz o seu exame de consciência:]
Eis, companheiros meus, que ireis ler a minha vida, o fim das guerras onde desde
há cinquenta e cinco anos me encontro em comando ao serviço dos nossos reis (...)
É um contentamento maravilhoso quando penso nisto e quando me lembro como
consegui, de degrau em degrau, tendo escapado a tantos perigos, gozar, em minha
casa, do pouco repouso que me resta neste mundo, de modo a ter descanso para
pedir perdão a Deus pelas ofensas que cometi. Porque se a sua misericórdia não for
grande, há perigo para os que usam armas, e mesmo para os que comandam, pois a
necessidade da guerra força-nos, a despeito de nós mesmos, a cometer mil males, e
a não dar mais importância à vida de um homem do que à de um frango; e depois
as lamentações do povo, que tem de comer apesar de não haver comida; as viúvas
e órfãos que todos os dias fazemos, rogam-nos todas as maldições de que dispõem;
e à força de rezar a Deus e de implorar a ajuda dos santos, há algo que nos fica em
mente; mas certamente que os reis ainda sofrem mais do que nós, pois são eles que
nos obrigam (...) e não há mal de que não sejam causa, pois visto que querem fazer
guerra, é preciso que pelo menos paguem àqueles que vão morrer por eles, a fim de
que não façam tanto mal. (...)
Portanto eu, muito feliz, que agora tenho descanso para pensar nos pecados que
cometi, ou antes, que a guerra me fez cometer, pois por minha natureza não era dado
a proceder mal, e fui sobretudo sempre inimigo do vício, da corrupção e da obscenidade, inimigo capital da traição e da deslealdade. Sei bem que a cólera me levou a
fazer e dizer muitas coisas das quais digo mea culpa; mas não é tempo de as reparar
(...) Tinha a mão tão pronta quanto a palavra. Teria querido, se tivesse podido, nunca
usar espada à cintura, mas a minha natureza era outra. Assim tomei como divisa :
Deo duce, ferro comite ( Deus como guia e a minha espada como companhia). Uma
coisa posso dizer com verdade: que nunca um lugar-tenente do rei teve mais piedade
da ruína do seu povo do que eu tive, em qualquer lado em que tenha estado. Mas é
impossível atacar sem fazer mal, caso contrário o rei não teria os seus cofres cheios
para pagar as armas; e ainda haveria muito a fazer. Não sei se depois de mim se fará
melhor, mas não penso que assim seja.
Blaise de Monluc, 1502-1577, França, Comentários
188
Ó céu! Ó mar! Ó Deus, pai comum
Dos Judeus e dos Cristãos, dos Turcos e de cada um:
Que pela tua pública bondade tanto alimentas
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 97
Os do pólo Antártico como os do Ártico:
Que dás razão, e vida, e movimento,
Sem excepção de ninguém, a todos igualmente:
E fazes cair do alto céu sobre os humanos
Benfeitorias e penas como melhor te apraz;
Senhor todo poderoso que sempre foste
Cheio de bondade para com todas as nações,
De que te serve teres nas alturas o tiro do trovão
Se não queimas a terra com um estilhaço de ferro?
Estás sentado num trono sem nada fazer?
Não podemos duvidar que não saibas
Aquilo que contra ti tuas criaturas engendram,
E no entanto Senhor, tu vês tudo isto e tudo isto suportas!
(...)
Se eu não possuísse alguma fé
Que Deus pela graça do seu espírito me inculcou
Ao ver como a Cristandade é objecto de riso,
Teria vergonha de ter sido baptizado,
Arrepender-me-ia de ter sido cristão
E como os primeiros homens, tornar-me-ia pagão.
Ronsard, França, Advertência ao Povo de França, 1562-1563.
189
Artigo “Guerra”
O maravilhoso neste empreendimento infernal é que cada chefe dos assassinos
manda abençoar as suas bandeiras e invoca Deus solenemente antes de ir exterminar
o seu próximo. Se um chefe teve a felicidade de mandar degolar apenas dois ou três
mil homens, não agradece a Deus; mas quando há cerca de dez mil exterminados
pelo ferro e pelo fogo, e quando, para cúmulo da graça, alguma cidade foi totalmente
destruída, então canta-se por toda parte uma longa canção, composta numa língua
desconhecida por todos os que combateram, e para mais, recheada de barbarismos.
A mesma canção serve para os casamentos e para os nascimentos, tal como para os
assassinatos; o que é imperdoável, sobretudo numa nação que é reconhecida pelas
suas novas canções.
Voltaire, França, Dicionário Filosófico, 1764
98 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
190
Somente pela loucura dos tempos, somente pela loucura dos padres, entrou em nós
a tristeza, entrou em nós o “Cristianismo”. Sim, os “Três Cristãos” vieram com o Deus
verdadeiro; então começou para nós o tempo da miséria, o tempo da “esmola”, fonte
dos nossos ódios secretos, o tempo do combate com armas de fogo, o tempo das
rixas, o tempo das espoliações, o tempo da escravatura por dívidas, o tempo da morte
por dívidas, o tempo das lutas perpétuas, o tempo de sofrimento (....)
Foi um tempo contado, aquele em que podiam contemplar a grade das estrelas; nele
eram vigiados pelos deuses, que os olhavam da sua prisão de estrelas; então tudo era
bom, e foram abatidos.
Neles havia sabedoria. Não conheciam o pecado. Não tinham devoções santas. Viviam
de boa saúde. Não conheciam doenças, não sofriam dos membros, não conheciam
febres, não conheciam a varíola, não conheciam fluxões, não conheciam dores de
entranhas, não conheciam o depauperamento. Nessa altura estavam bem de saúde.
Tal não aconteceu com a chegada dos Brancos. Ensinaram-lhes o medo e vieram
murchar-lhes as flores. Para que a flor deles vivesse, danificaram e espezinharam a
flor dos outros (...)
Não tinham grandes conhecimentos, nem uma língua sagrada, nem um Saber divino,
esses representantes dos deuses que aqui chegaram! Castrar o sol! Eis o que fizeram
os estrangeiros. E aqui, perdidos neste povo, ficaram os filhos dos seus filhos, que
suportaram a amargura (...)
Escravas são as palavras, escravas são as árvores, escravas as pedras, escravos os
homens, quando vierem!
Chilam Balam de Chumayel (Livro Sagrado dos Maias), séc. XVI, América Central
191
(Los Conquistadores)
Chegam às ilhas (1493)
Os carniceiros desolaram as ilhas.
Guanahani foi a primeira
nesta história de mártires.
Os filhos de argila viram quebrar-se
o seu sorriso.
Moída de pancada foi sua frágil estatura de gamo.
Morreram sem compreender o que se passava.
Foram atados e feridos,
foram queimados e incendiados,
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 99
foram mordidos e enterrados.
Quando o tempo fez um passo de valsa
Dansando entre as palmeiras,
o salão verde esvaziou-se.
Nada mais restava do que ossos
dispostos em forma de cruz,
para glória de Deus,
para glória dos homens (...)
Pablo Neruda, Cântico Geral, 1959
Fim ou começo?
A intolerância, cuja lógica toma como adquirido o postulado da verdade exclusiva
confundida com a força, deve ir – e vai – até ao fim, que não pode deixar de ser a condenação à morte do Outro, contestatário e/ou protestante. O processo é apenas forma,
a sentença vem primeiro. Foi o caso de Sócrates, de Jesus, de Cuauhtemoc; é-o de novo
com Michel Servet, al- all j, Galileu.
A “ordem” compõe-se de um pensamento, de uma fé e de uma ciência, oficiais, intimamente solidários e complementares: contestar um é pôr em questão os outros. A resposta é o exílio, a prisão ou a fogueira, muitas vezes um e depois os outros, sem alternativa
possível. O que se consome é o silêncio, a morte espiritual.
Por detrás destas violências, uma mesma ilusão: pensa-se que ao amarrar e ao matar os
homens, as ideias que eles encarnam poderão calar-se ou morrer com eles. Mas o que se
pensa ser um fim é sempre o verdadeiro começo.
192
Contra Michel Servet de Villeneuve no Reino de Aragão, em Espanha
O qual foi primeiramente acusado de ter, há cerca de vinte e três ou vinte e quatro
anos, mandado imprimir um livro em Hagenau, na Alemanha, contra a santa e indivisa Trindade, contendo várias e grandes blasfémias contra esta, grandemente escandaloso para as Igrejas da Alemanha: o qual livro ele espontaneamente confessou ter
mandado imprimir, não obstante as advertências e correcções que foram feitas às
suas falsas opiniões pelos doutores evangélicos da Alemanha.
Item, e o dito livro foi reprovado como estando cheio de heresias pelos doutores dessas igrejas da Alemanha, e o dito Servet tornou-se fugitivo na Alemanha, por causa
desse livro.
100 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Item, e não obstante isto, o dito Servet perseverou nos seus erros, infectando vários.
Item, e não contente disto, para melhor divulgar e expandir o seu veneno e a sua heresia, fez imprimir há pouco tempo um outro livro, às escondidas, em Viena, cheio de
heresias horríveis e de execráveis blasfémias contra a Santíssima Trindade, contra o
Filho de Deus, contra o baptismo das crianças e contra outras várias santas passagens
e outros vários fundamentos da religião cristã.
Item e confessou espontaneamente que nesse livro chama trinitários e ateus àqueles
que acreditam na Trindade.
Item e que chama à Trindade diabo e monstro de três cabeças.
Item e contra o verdadeiro fundamento da religião cristã e blasfemando detestavelmente contra o filho de Deus, disse que Jesus Cristo não era filho de Deus desde toda
a eternidade, mas apenas desde a sua encarnação.
Item e para além do livro acima, atacando por cartas a nossa fé e afadigando-se a
infectá-la com o seu veneno, confessou voluntariamente e reconheceu ter escrito
uma carta a um dos ministros desta cidade, na qual, entre outras várias horríveis
e enormes blasfémias contra a nossa Santa Religião Evangélica, diz que o nosso
Evangelho não tem fé nem Deus e que em vez de Deus temos um Cérbero de três
cabeças.
Item e confessou ainda voluntariamente que acima do dito lugar de Viena, por causa
desse abominável livro e opiniões, foi feito prisioneiro, tendo-se libertado e escapado
perfidamente dessa prisão.
Item, e não obstante tudo isso, estando detido na prisão desta cidade, não deixa de
persistir maliciosamente nesses ditos malvados e nesses detestáveis erros, procurando defendê-los com injúrias e calúnias contra todos os verdadeiros Cristãos e os
fiéis da pura e imaculada Religião cristã, chamando-lhes trinitários, ateus e bruxos,
não obstante as advertências que lhe foram feitas já há muito tempo na Alemanha,
como dissemos, e desprezando as repreensões, detenções e correcções que lhe foram
feitas, tanto noutros sítios como aqui. Como está contido mais amplamente ao longo
do seu processo.
[Sentença de morte:]
Por estas e outras justas causas que nos perturbam, desejando purgar a igreja de Deus
de uma tal infecção e dela cortar este membro apodrecido; tendo-nos bem aconselhado com os nossos cidadãos e tendo invocado o nome de Deus para fazermos um
juízo recto (...) tendo Deus e as suas santas escrituras diante dos olhos, dizendo em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, por esta nossa definitiva sentença, que aqui
damos por escrito: “A ti, Michel Servet, condenamos a ser amarrado e levado ao lugar
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 101
de Champel, e aí ser atado a um pelorinho e queimado vivo com o livro escrito por tua
mão, e impresso, até que o teu corpo seja reduzido a cinzas: e assim acabarás os teus
dias para dar exemplo a outros que quisessem cometer tais actos”.
[Farel, Ministro evangélico, acompanhou Servet ao suplício:]
A caminho da fogueira, quando alguns irmãos o pressionavam a confessar voluntariamente a sua falta e a repudiar os seus erros, respondeu que sofria injustamente
e pediu a Deus que perdoasse aos seus acusadores. Disse-lhe então: “ Estás a tentar
justificar-te depois de teres pecado tão horrivelmente? Se continuares não dou mais
nenhum passo contigo e abandono-te ao juízo de Deus. A minha intenção era acompanhar-te e pedir a todos que rezassem por ti, na esperança que edificarias o povo.
Não queria deixar-te antes que desses o último suspiro!” Então, ele deixou de pronunciar palavras desse género. Pediu perdão pelos seus erros, pelas suas ignorâncias
e pelos seus pecados, mas nunca fez uma verdadeira confissão. Rezou várias vezes
connosco quando o exortámos, e pediu várias vezes aos que ali estavam e o olhavam,
que rezassem por ele. Mas não conseguimos que reconhecesse abertamente os seus
erros, e que confessasse que Cristo é o Filho eterno de Deus.
[Segundo R.H. Bainton, citando uma fonte anónima:]
Servet foi conduzido a uma pilha de madeira ainda verde. Uma coroa de palha e de
folhas, salpicada de enxofre foi colocada sobre a sua cabeça, e o corpo foi atado a um
poste com uma corrente de ferro. Tinha o livro atado a um braço. Uma corda sólida
enrolada cinco ou seis vezes à volta do pescoço, e ele pediu que não a torcessem mais.
Quando o carrasco lhe levou a tocha junto ao rosto, deu um tal grito que todo o povo
ficou horrorizado. Como o fogo estava brando, alguém deitou lenha na fogueira. Com
um gemido terrível, gritou: “Ó Jesus, filho de Deus eterno, tem piedade de mim!” Ao
fim de meia hora morreu.
Veredicto contra Michel Servet, 1553.
193
[Relato de Ibn Zanj , escrivão adjunto, testemunha ocular]
Quando se deu a conhecer a al- all j a leitura da sentença, ele exclamou: “O meu
dorso está protegido, o meu sangue não pode ser derramado sem pecado! Não tendes o direito de usar contra mim uma exegese que a tal vos autorize! A minha profissão de fé é o Islão e não o madhab, é a Sonnah (...) Há livros meus sobre a Sonnah,
102 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
que encontrareis nos livreiros! Deus! Que Deus proteja o meu sangue!” E não cessava
de repetir esta frase, enquanto se redigiam as peças e se ultimava o que era necessário. Depois foi aberta a sessão e al- all j foi levado de novo para a prisão, de onde
o tinham feito sair. (...)
[Relato do seu filho amd:]
E quando veio a noite em que ele devia ser, desde a aurora, tirado da prisão, pôs-se de
pé, rezou a oração ritual, fazendo duas prostrações. Depois, tendo terminado a oração, não cessou de repetir: “Engano, engano...” até a maior parte da noite ter passado.
Então, depois de se ter calado durante muito tempo, exclamou: “ Verdade, verdade!”
e voltou a pôr-se de pé, cingiu o véu à cabeça, e envolveu-se no casaco, estendeu as
mãos, com a face em direcção à Caaba, e depois, entrando em êxtase, conversou com
Deus (...)
Depois recitou:
“Grito-te: luto! Pelas almas cuja testemunha [o próprio al- all j] desaparece – no
além do “até quando”; eis que vem a Testemunha do Eterno!
“Grito-te: luto! Pelos corações há tanto tempo frustrados – das nuvens da revelação
divina, onde a sabedoria se amontoa em oceanos!
“Grito-te: luto! Pela linguagem da Verdade; desde há muito morreu e a sua memória
foi aniquilada na imaginação dos homens!
“Grito-te: luto! Pela Eloquência (inspirada, que me foi dada) diante da qual cedem
todas as palavras dos oradores, toda a sua dialéctica e penetração.
“Grito-te: luto! Pelas advertências dadas pelas inteligências! De todas elas, nada mais
resta para visitar senão ruínas [nos livros].
“Grito-te: luto! Sim, pela Tua Verdade [ó meu Deus], pelas virtudes do povo daqueles
cujo engaste foi montado para que obedecessem.
“Porque todos já passaram, o deserto está vazio; não há traço deles, nem poço escavado, nem sinais colocados. Passaram como Ad, desaparecidos como os habitantes
do Irão!
“E na sequência deles, a multidão que deixaram, divaga tacteando – mais cega do que
os animais, mais cega do que um rebanho.”
Depois calou-se. Então, o seu servo Ibr h m ben F tik disse-lhe:
“Lega-me qualquer coisa, uma última palavra, ó Mestre!”
E ele respondeu-lhe: “O teu eu! Se não o dominares, ele dominar-te-á!”
Quando veio a manhã, fizeram-no sair da prisão; e vi-o, em pleno êxtase de júbilo,
dançando sob as correntes e recitando:
“O que me convoca, para não parecer lesar-me,
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 103
Fez-me beber da taça que Ele mesmo bebeu;
Nisto, trata-me como um anfitrião trata um conviva.
E quando as taças passaram de mão em mão,
Mandou trazer o couro do suplício e o gládio.”
Assim acontece a quem bebe o Vinho – com o Leão, em pleno Verão.
Processo de al- all j (mártir místico do Islão, executado em Bagdade, a 26 de Março de 922).
Citado por L. Massignon
194
No dia seguinte, quarta feira 22 de Junho de 1633, pela manhã, Galileu foi conduzido à
sala grande do convento dominicano de Santa Maria sopra Minerva, situado no centro de Roma, onde habitualmente tinham lugar este género de cerimónias. Revestido
com a camisa branca da penitência, ajoelhou-se perante os seus juizes reunidos,
enquanto lhe faziam a leitura da sentença:
“(...) Dizemos, pronunciamos, sentenciamos e declaramos que tu, Galileu, pelas razões
deduzidas do teu processo e que acima confessaste, te tornaste veementemente suspeito de heresia para com este Santo Ofício, tendo sustentado aquela falsa doutrina
contrária à Sagrada e Divina Escritura, que o Sol é o centro do mundo e que não se
move de Oriente a Ocidente, e que a Terra se move e não é o centro do Mundo, e que
se pode sustentar e defender como sendo provável uma opinião depois dela ter sido
declarada por definição contrária à Sagrada Escritura; e consequentemente incorreste em todas as censuras e penas impostas e promulgadas pelos Sagrados Cânones e
pelas outras constituições gerais e particulares, contra tais delinquentes.
“Ficamos contentes por te desligarmos destas, com a condição de que a partir de
agora, com um coração sincero e uma fé não fingida, abjures, amaldiçoes e detestes
diante de nós os ditos erros e heresias, e todo e qualquer erro e heresia contrários à
Igreja Apostólica e Católica, da maneira e da forma por Nós prescrita.
“ E no entanto, a fim de que a tua grande falta, o erro pernicioso e a transgressão
que fizeste não fiquem totalmente sem castigo, a fim de que, no futuro, sejas mais
contido e sirvas de exemplo aos outros para que eles se abstenham de semelhantes
delitos, ordenamos que, por um edito público o livro dos Diálogos de Galileo Galilei
seja proibido.
“Condenamos-te à prisão formal deste Santo Ofício, ao Nosso arbítrio, e por penitência salutar exortamos-te a que digas, durante três anos, uma vez por semana, os sete
Salmos da penitência. Reservando-nos a faculdade de moderar, mudar ou suspender,
na totalidade ou em parte, as ditas penas e penitências.”
(...)
Depois da leitura da sentença, apresentaram a Galileu a fórmula da abjuração.
104 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
[Fórmula da abjuração:]
“Eu, Galileo Galilei, filho do falecido Vicenzo Galilei de Florença, com a idade de
setenta anos, comparecendo em pessoa perante este Tribunal, e ajoelhado diante
de vós, Eminentíssimos e Reverendíssimos Cardeais, Grandes Inquisidores em toda a
Cristandade contra a perversidade herética, com os olhos nos Santíssimos Evangelhos
que toco com as minhas próprias mãos.
“Juro que sempre acreditei, que presentemente acredito, e que, com a graça de Deus,
continuarei de futuro a acreditar, em tudo o que a Santa Igreja católica, apostólica
e romana, defende como verdadeiro, tudo o que prega e ensina. “Mas depois de o
Santo Ofício me notificar com a ordem de não mais acreditar na opinião falsa de que
o Sol é o centro do mundo e está imóvel e que a Terra não é o centro do mundo e
que se move, e de não manter, defender nem ensinar, seja oralmente seja por escrito,
essa falsa doutrina; depois de ter sido notificado que a dita doutrina era contrária à
Sagrada Escritura; porque escrevi e fiz imprimir um livro no qual exponho essa doutrina condenada, apresentando em seu favor uma argumentação convincente, sem
apresentar nenhuma solução definitiva; fui por esse facto, veementemente suspeito
de heresia; quer dizer, de ter mantido e acreditado que o Sol está no centro do mundo
e está imóvel e que a Terra não está no centro do mundo e que se move.
“Pelo que, querendo apagar do espírito de vossas Eminências e de todo o Cristão
fiel esta veemente suspeita, justamente concebida contra mim, abjuro e amaldiçoo
com um coração sincero e uma fé não simulada, os ditos erros e heresias, e em geral
todos outros erros, heresias e empreendimentos contrários à Santa Igreja; juro que
de futuro nada direi nem afirmarei, de voz ou por escrito, que permita terem de mim
semelhantes suspeitas e se me acontecesse encontrar um herege ou um presumível
herege, denunciá-lo-ia a este Santo Ofício, ao Inquisidor ou ao funcionário comum do
meu local de residência.”
Processo de Galileu, Roma, 1633,
Documentos recolhidos por Giorgio de Santillana
195
Repito-te, [disse o Grande Inquisidor ao Prisioneiro, Cristo] amanhã, a um sinal meu,
verás esse rebanho dócil levar carvões ardentes à fogueira onde subirás, por teres
vindo entravar a nossa obra. Pois se alguém, mais do que todos, mereceu a fogueira,
foste tu. Amanhã vou-te queimar. Dixit (...)
- Como é que acaba o teu poema, continuou ele [Aliocha], de olhos baixos. É tudo?
- Não, eis como gostaria de o terminar. “O Inquisidor cala-se, espera por um momento a resposta do Prisioneiro. O silêncio pesa-lhe. O prisioneiro ouviu-o sempre,
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 105
fixando-o com o seu olhar calmo e penetrante, visivelmente decidido a não lhe
responder: O velho estremece, os lábios movem-se; vai até à porta, abre-a e diz:
“Vai-te embora e não voltes mais.... nunca mais!” E deixa-o partir para as trevas da
cidade. O Prisioneiro vai-se embora.”
- E o velho?
- O beijo queima-lhe o coração, mas persiste na sua ideia.
Dostoïevski, Rússia, Os Irmãos Karamazov, 1880.
UM DRAMA SUSPENSO
De modo que a oração final que se segue é uma mera confissão da impotência da razão,
armadilhada entre termos impossíveis, aqueles que a ideologia armada impõe.
Mas uma estranha hipótese – invertendo os protagonistas e as suas teses – põe a nu
o absurdo da intolerância, da verdade exclusiva fundada na força soberana e activa,
deixando entrever um desabar da problemática. Esse desabar, é a abertura da História,
que se liberta da sua própria violência para legitimar “a grande frase humana sempre
em vias de criação.”
196
Meu Deus, tu que és o Altíssimo Senhor do céu, no fundo
do firmamento.
Inclina-te devagar sobre este mundo aviltado
Onde os combates dementes derrotam a paz, onde os sabres
que se entrechocam
ecoam Marte. Toda a vida perece.
Pai abençoa-nos,
pois o nosso povo aspira à calma consoladora,
corre o sangue dos bravos e aflige-nos a morte.
Janus Pannonius, Bispo de Pécs, Hungria
1434-1472
197
Meus ouvidos estão mortificados.
Minha alma está doente com o relato
das injustiças e das malfeitorias que, todos os dias
enchem o mundo. Não há um clarão de ternura
no endurecido coração do homem. O elo natural de fraternidade
106 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
humana, qual liga de metal sob chama,
desfez-se. O homem censura ao seu próximo
a diferente cor da pele e, tendo autoridade
para fazer prevalecer a injustiça de tão apreciável causa,
determina-a de uma vez por todas como sua presa legítima.
Países separados por um estreito canal
odeiam-se mutuamente. Uma cadeia de colinas
basta para transformar em inimigos povos que
tal como gotas de água gémeas, fariam apenas um só.
Assim o homem se torna inimigo de seu irmão
e quer destruí-lo.
E, suprema desonra, mácula imunda da humana natureza,
pior do que tudo isso e quão mais deplorável,
agrilhoa-o, obriga-o a trabalhar e rouba-lhe o suor
com castigos tais que a Caridade, de coração em sangue,
chora quando os vê infligir a um animal.
William Cowper, 1731-1800, A Tarefa
198
Já não é aos homens que me dirijo; é a ti, Deus de todos os seres, de todos os mundos e de todos os tempos: se é permitido a fracas criaturas, perdidas na imensidão e
imperceptíveis no restante universo, ousarem perguntar-te algo, a ti que tudo deste,
a ti cujos decretos são imutáveis enquanto eternos, digna-te olhar com piedade os
erros decorrentes da nossa natureza; que esses erros não nos provoquem calamidades. Não nos deste um coração para nos odiarmos, e mãos para nos degolarmos;
faz com que mutuamente nos ajudemos a suportar o fardo de uma vida penosa e
passageira; que as pequenas diferenças entre o vestuário que cobre os nossos corpos
débeis, entre todas as nossas insuficientes linguagens, entre todos os nossos ridículos costumes, entre todas as nossas leis imperfeitas, entre todas as nossas opiniões
insensatas, entre todas os nossos estados, a nossos olhos tão desproporcionados e
tão iguais diante de ti; que todas essas pequenas nuances que distinguem os átomos
chamados homens, não sejam sinais de ódio e de perseguição; que aqueles que acendem velas em pleno dia, para te celebrar, suportem os que se contentam com a luz
do teu sol; que aqueles que cobrem os seus vestidos com um pano branco para dizer
que temos de te amar, não detestem os que dizem o mesmo sob um manto de lã
negra; que seja igual adorar-te numa algaraviada constituída por uma língua antiga
ou numa algaraviada mais recente; que aqueles cujo hábito é tingido de vermelho ou
de violeta, que dominam uma pequena parcela de um pequeno monte de lama deste
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 107
mundo, e que possuem alguns fragmentos arredondados de certo metal, gozem sem
orgulho daquilo que chamam grandeza e riqueza, e que os outros os olhem sem inveja; pois tu sabes que não há nessas vaidades nada que as torne invejáveis nem de que
nos possamos orgulhar.
Pudessem todos os homens lembrar-se que são irmãos! Que se horrorizem com a tirania exercida sobre as almas, tal como abominam a ladroagem que destrói pela força o
fruto do trabalho e da indústria pacífica! Se os flagelos da guerra são inevitáveis, não
nos odiemos, não nos despedacemos uns aos outros no seio da paz, e empreguemos
o instante da nossa existência a abençoar de um mesmo modo, em mil línguas diversas, desde o Sião à Califórnia, a tua bondade, que nos deu este instante.
Voltaire, França, Tratado sobre a Tolerância, 1763
199
Os homens que apenas consultam o seu bom senso, e que não seguem as discussões
relativas às colónias, talvez duvidem que se tivesse podido rebaixar os Negros ao nível
dos animais, e pôr em causa a sua capacidade intelectual e moral.
No entanto, essa doutrina, tão absurda quanto abominável, é insinuada ou professada numa multidão de escritos (...) Franceses, Ingleses, Holandeses, o que seria de vós
se tivésseis sido colocados nas mesmas circunstâncias? (...) Se os Negros, partindo
as espadas (queira Deus que nunca o façam) viessem às costas europeias, arrancar
os Brancos de ambos os sexos às suas famílias, agrilhoá-los, conduzi-los para África,
marcá-los com ferro em brasa; se esses Brancos, roubados, vendidos e comprados
pelo crime, colocados sob vigilância de administradores implacáveis, fossem incessantemente forçados, à chicotada, a trabalhar, num clima funesto à sua saúde, onde
ao fim do dia não tivessem outra consolação senão a de terem dado mais um passo
em direcção ao túmulo, outra perspectiva senão sofrer e morrer nas angústias do
desespero; se, entregues à miséria e à ignomínia fossem excluídos de todas as vantagens da sociedade; se fossem declarados incapazes de qualquer acção jurídica, e
se o seu testemunho não fosse admitido, mesmo contra a classe negra; se, como os
escravos de Batavia, esses Brancos, escravos por sua vez, não tivessem autorização
de andar calçados; se, expulsos dos passeios, ficassem reduzidos a confundir-se com
os animais, no meio das ruas; se as pessoas se ajustassem para conjuntamente os
chicotear e para untar com sal e pimenta os seus dorsos ensanguentados, de modo
a impedir a gangrena; se ao matá-los ficássem quites por uma soma módica (...) se
pusessem a prémio as cabeças daqueles que, por meio da fuga, se tivessem subtraído
à escravatura; se contra os fugitivos se açulassem matilhas de cães especialmente
criados para a carnificina; se, blasfemando a divindade, os Negros pretendessem, por
ordem dos seus Marabus, fazer intervir o céu para pregar aos Brancos a obediência
108 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
passiva e a resignação; se panfletários cúpidos e pagos desacreditassem a liberdade dizendo que não ser mais do que abstracção (...) ; se escrevessem que sobre os
Brancos revoltados e rebeldes se exercessem justas represálias, e que de resto os
escravos brancos são felizes, mais felizes do que os aldeãos em África; numa palavra,
se todos os prestígios da astúcia e da calúnia, toda a energia da força, todos os furores
da avareza, todas as invenções da ferocidade fossem dirigidas contra vós por uma
aliança de seres com rosto humano, aos olhos dos quais a justiça não conta, porque
o dinheiro é tudo; que gritos de horror soariam nos nossos países! Para os exprimir,
pediríamos novos epítetos à nossa língua; uma multidão de escritores fatigar-se-ia
em lamentações eloquentes, desde que, no entanto, não havendo nada a temer, houvesse, para eles, qualquer coisa a ganhar.
Europeus, considerai o inverso desta hipótese e vede o que vós sois.
Henri Grégoire, França, Da Literatura dos Negros, 1808.
200
“Não temas”, disse a História, tirando um dia a sua máscara de violência – e com a
mão erguida fez o gesto conciliador da Divindade asiática no ponto mais alto da sua
dança destruidora. “Não temas nem duvides – pois a dúvida é estéril e o temor servil.
Escuta antes o batimento rítmico que a minha mão erguida imprime, inovadora, à
grande frase humana sempre em vias de criação. Não é verdade que a vida possa
renunciar a si mesma. Não há ser vivo que proceda do nada ou que se enamore do
nada. Mas também nada mantém a sua forma e medida, sob o incessante fluxo do
Ser. A tragédia não está na própria metamorfose. O verdadeiro drama do século está
na distância que deixamos crescer entre o homem temporal e o intemporal. Irá o
homem, esclarecido num domínio, obscurecer-se noutro? E a sua maturação forçada,
numa comunidade sem comunhão, não será apenas uma falsa maturidade?...”
Saint – John Perse, França, 1961
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 109
A VERDADE EM QUESTÃO
Enquanto que o rei, enredado na vertigem da sua lógica, continua a questionar o inflexível Bodhisatta – e através dele a humanidade fortalecida pela certeza do coração
– homens cada vez mais numerosos, põem em questão a “verdade” dos violentos.
Depois da idade da ordália, do juízo de Deus, da disputa onírica e da razão sentimental,
eis o tempo da razão raciocinante, da razão na história; o que é, no fim de contas, esta
verdade tantas vezes invocada, que parte tem de universalidade e que legitimidade
poderemos reconhecer a uma ordem fundada sobre os valores do mais forte?
201
... De novo o carrasco pergunta: “Senhor, qual é o vosso desejo?” O rei respondeu:
“Cortai ambas as mãos a esse falso asceta.” O carrasco pegou no machado e colocando a vítima no interior do círculo fatal, cortou-lhe as duas mãos. Então o rei disse:
“Cortai-lhe os pés” e os pés tiveram a mesma sorte. O sangue jorrava das extremidades das mãos e dos pés do Bodhisatta, tal como um líquido a sair de um pote rachado.
De novo o rei lhe perguntou qual era a sua doutrina; “A da paciência, Majestade”,
respondeu o monge. “Imaginais, Senhor, que a minha paciência está alojada nas
extremidades das minhas mãos e dos meus pés. Ela está noutro lado, profundamente
encerrada em mim.” O rei disse: “Cortai-lhe o nariz e as orelhas”. O carrasco assim
fez. O corpo inteiro do monge ficou banhado num charco de sangue. Uma vez mais o
rei lhe perguntou qual era a sua doutrina. E o asceta respondeu: “Imaginais, Senhor,
que a minha paciência está alojada na extremidade do meu nariz e nos lóbulos das
minhas orelhas: a minha paciência encontra-se no mais fundo do meu coração.” O rei
disse então: “Morre então, falso monge, e então exaltarás a tua paciência”. Ao dizer
tais palavras pisou, com todo o seu peso, o corpo do Bodhisatta, no lugar do coração,
e foi-se embora. [a seguir: 288]
Khantivadi – Jataka
202
A liberdade não é um bem que possamos possuir. É um bem que nos impediram de
adquirir com a ajuda de leis, de regras, de preconceitos, de ignorância, etc.
As paredes falam, Sorbonne, Paris, Maio 1968
110 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TRAIÇÃO DA MENSAGEM
Pois bem. Vieram mensageiros prescrever pacificamente a caridade, a fraternidade, a
piedade, a justiça, o direito. Herdeiros, que fizestes desses valores? Eis de um lado os
mandamentos e do outro a vossa prática: “o direito manifesto foi escarnecido”; o apóstolo desde logo reprovou a vossa justiça; a vossa fraternidade não passa de constrangimento, de perseguição e de violência; a piedade reduz-se a gestos e a caridade não é
mais do que ódio e inveja.
Olhai-vos, abandonai por um instante a vossa boa consciência, não conseguireis reconhecer-vos. Fundada em valores de tal modo pervertidos, a vossa lei, não mantendo o
mínimo reflexo da mensagem inicial, tornou-se mera escravatura.
Uma sociedade fundada em tais contra valores não é mais do que uma selva e é preciso
ser-se cego ou ter má fé para defender o contrário, de tal modo a violência, ou mais
precisamente a insensatez, não têm qualquer justificação. De onde se segue que a intolerância ou é absurda ou é interessada.
É sobre este ponto que desde logo se irá cristalizar o debate, o debate da razão, da laicização dos valores religiosos, e, se for possível, da sua universalização. Aqui começa, no
Ocidente, uma nova aventura da consciência e a aprendizagem da liberdade. Ensinar
os homens a “raciocinar sobre a religião, é tirar o punhal à intolerância, é devolver à
humanidade todos os seus direitos”. Para isso, um único caminho: “regressar a princípios gerais e comuns a todos os homens”.
203
Não é quando me dizeis “Senhor, Senhor” que entrareis no Reino dos Céus, mas
quando fizerdes a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão nesse dia:
“Senhor, Senhor, não foi em teu Nome que profetizámos? Em teu Nome que expulsámos demónios? Em teu Nome que fizemos milagres?” Então, dir-lhes-ei face a face:
“Nunca vos conheci; afastai-vos de mim, vós que cometeis a iniquidade”.
Novo Testamento, S. Mateus, VII
204
Os que são respeitosos da verdade
estão satisfeitos e são bons para com os outros.
Não se comprazem no mal, mas fazem o bem.
É assim que vivem a lei moral de Deus.
Guru Nanak, 1469-1538, Traduzido do Punjabe
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 111
205
A piedade não consiste em virar a cara
para o Oriente ou para o Ocidente.
O homem bom é o que acredita em Deus,
no dia derradeiro, nos anjos,
no Livro e nos profetas;
aquele que, por amor a Deus, dá os seus bens
ao próximo, aos órfãos, aos pobres,
aos viajantes, aos mendigos
e para que se resgatem cativos.
Aquele que cumpre a oração;
Aquele que dá esmola.
Aqueles que cumprem os seus compromissos.
Aqueles que são pacientes na adversidade, na infelicidade
e no momento de perigo:
eis os que são justos!
Eis os que temem a Deus!
Alcorão, Sura II, A Vaca
206
A Religião, é a justiça para todos.
O que seria de uma religião em que o direito manifesto [fosse escarnecido?]
O homem incapaz de arrastar a sua alma para o Bem,
Arrasta atrás dele todos os soldados do mundo!
Louva o Senhor, reza, dá setenta vezes
e não apenas uma, a volta à Caaba.
Não é por isso mais religioso!
Ignora a religião, aquele que, perante os seus desejos,
Não é capaz de se dominar.
O Bem não é o jejum no qual nos consumimos,
Não é a oração nem o burel sobre o corpo,
Mas é afugentar o Mal e arrancar do seu corpo
Tanto o ódio como a inveja.
Enquanto que animais selvagens e rebanhos temam [ser despedaçados],
O leão não passará por um asceta.
Adorai Deus e não a sua criatura.
A lei escraviza enquanto a razão liberta!
Ab -al-‘Al al Ma ‘arr , 070-1058, Síria
112 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
207
Cristo não excomungou nenhuma nação, nenhum país, nenhum homem: não autorizou que nenhum dos seus ministros dissesse a um homem: “Tu não és perdoado
pelos teus pecados”; não permitiu que nenhuma consciência ferida ou atormentada,
a si mesma dissesse: “Não sou perdoada”.
John Donne, 1573-1631, Inglaterra, Sermões
208
Eis, caro irmão, o que os Cristão fracos e perseguidos diziam aos idólatras que os
empurravam ao pé dos seus altares:
“É ímpio expor a religião às imputações odiosas de tirania, de dureza, de injustiça,
de insociabilidade, mesmo com o desígnio de para ela trazer os que dela se tenham
infelizmente afastado. O espírito só pode concordar com o que lhe parece verdadeiro;
o coração só pode amar o que lhe parece bom. A obrigação fará do homem um hipócrita, se for fraco, um mártir se for corajoso. Fraco ou corajoso, sentirá a injustiça da
perseguição e indignar-se-á com ela.
A instrução, a persuasão e a oração, eis os únicos meios de estender a religião.
Todo o meio que excita o ódio, a indignação e o desprezo é ímpio.
Todo o meio que desperta as paixões e que preza as visões interessadas, é ímpio.
Todo o meio que afrouxa as ligações naturais e afasta os pais dos filhos, os irmãos e
as irmãs das irmãs, é ímpio.
Todo o meio que tenda a sublevar os homens, a armar as nações e a molhar a terra
de sangue, é ímpio.
É ímpio querer impor leis à consciência, regra universal das acções. Há que a esclarecer e não constranger.
Os que se enganam de boa fé devem ser lamentados, nunca punidos.
Não devemos atormentar nem os homens de boa fé, nem os homens de má fé; mas
abandoná-los ao juízo de Deus. (...)
Deixai de ser violentos, ou então deixai de censurar a violência aos Pagãos e aos
Muçulmanos.
Será o espírito de Deus que vos inspira quando odiais o vosso irmão e quando pregais
a violência à vossa irmã?
Cristo disse: O meu reino não é deste mundo; e vós, seu discípulo, quereis tiranizar
este mundo.
Ele disse: Sou doce e humilde de coração: Sois vós doce e humilde de coração?
Ele disse: Bem aventurados os bondosos, os pacíficos e os misericordiosos! Será que em
consciência mereceis esta benção? Sois bondoso, pacífico e misericordioso?
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 113
Ele disse: Sou o cordeiro que foi levado ao açougue sem se queixar. E vós estais pronto
a pegar no cutelo do açougueiro e a degolar aquele por quem o sangue do cordeiro foi
derramado. Ele disse: Se vos perseguirem, fugi. E vós expulsais aqueles que vos deixam
dizer, e que nada mais pedem do que serem apascentados, junto de vós.
Ele disse: Queríeis que fizesse cair o fogo do céu sobre os vossos inimigos. Não sabeis
que espírito vos anima.”
Denis Diderot, França, Carta ao Abade Diderot, 1760.
209
Aquele que deve manejar a espada do céu deve ser tão são quanto severo; encontrar
em si um modelo e permanecer em graça quando a virtude vem a falhar, pesando os
seus pecados na mesma balança que os pecados dos outros. Envergonhe-se aquele
que, com crueldade, manda matar por erros aos quais ele é também propenso.
Shakespeare, Inglaterra, Medida por Medida, acto III, cena II, 1650
210
Testemunhos contra a intolerância
É uma impiedade, tirar, em matéria de religião, a liberdade aos homens, impedir que
eles escolham uma divindade: nenhum homem, nenhum Deus, quereria um serviço
forçado (Tertuliano, Apologética, cap. XXIV).
A religião forçada deixa de ser religião: é preciso persuadir e não constranger, a religião não se ordena (Lactâncio, Divinarum institutionum, Livro III).
É uma heresia execrável pretender atrair pela força, por pancadas, por detenções,
aqueles que não pudemos convencer pela razão (Santo Atanásio, Livro I (...)
Concedei a todos os homens a tolerância civil (Fénelon, Arcebispo de Cambrai, ao
Duque de Borgonha).
(...)
Poderíamos fazer um livro enorme, todo ele composto por passagens semelhantes.
As nossas histórias, os nossos discursos, os nossos sermões, as nossas obras de moral,
os nossos catecismos, todos respiram, todos hoje ensinam este dever sagrado que é
a indulgência. Por que inconsequência havíamos de desmentir na prática uma teoria
que todos os dias anunciamos? Quando as nossas acções desmentem a nossa moral,
é porque acreditamos que temos qualquer vantagem em fazer o contrário do que
ensinamos; mas, certamente, não há qualquer vantagem em perseguirmos aqueles
que não têm a nossa opinião, e em fazermo-nos odiar por tal. Portanto, mais uma vez
há absurdo na intolerância.
Voltaire, França, Tratado sobre a Tolerância, 1763
114 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
211
Na verdade, aquilo por que reconhecemos a religião cristã, não é tanto ela procurar a
verdade mas sim ensinar a caridade, a paz, a doçura, a humanidade, a benevolência,
a paciência. É por essas virtudes que ela quer que aqueles que a professam possam
vencer os seus inimigos e não serem vencidos por eles. Embora defendendo a verdade
das coisas divinas, não exige que os que a proclamam e a protegem, rompam com os
elos que os ligam à comunidade enquanto homens e enquanto cidadãos, mas que
antes reforcem esses elos, que consolidem a caridade para com todos os homens e
que respeitem os direitos da paz.
Deste modo, seria vergonhoso para a religião cristã se, para a proclamar e defender,
se tivesse recorrido à violência, à morte, ao castigo.
Johannes Crellius, Polónia, Da Tolerância na Religião ou da Liberdade de Consciência, 1637
212
A caridade não é assassina. O amor ao próximo não nos leva a massacrá-lo. Assim, o
zelo dos homens não é a causa das perseguições; são o amor próprio e o orgulho que
as causam. Quanto menos um culto é razoável, quanto mais se procura estabelecê-lo
pela força. Aquele que professa uma doutrina insensata não consegue suportar que
ousemos vê-la tal qual ela é: a razão torna-se então o maior dos crimes; a qualquer
preço que seja, é preciso retirá-la aos outros, pois temos vergonha de, aos olhos deles,
termos falta dela. Assim a intolerância e a inconsequência têm a mesma origem. É
preciso incessantemente intimidar, assustar os homens. Se os entregamos por um
momento à sua razão, estamos perdidos.
De tudo isto se segue que é uma grande benfeitoria que fazemos aos povos, neste
delírio, ensinar-lhes a raciocinar sobre a Religião, pois é aproximá-los dos deveres do
homem, é tirar o punhal à intolerância, é restituir à humanidade todos os seus direitos. (...) É preciso remontar a princípios gerais e comuns a todos os homens.
J.-J. Rousseau, Genebra, Carta a Christophe de Beaumont, 1762
213
Pois não o podemos esquecer : embora o Cristianismo seja num determinado sentido
a mais tolerante das religiões – na medida em que, como a maior parte das religiões,
abomina o recurso à força física – num outro sentido ele é de todas as religiões a mais
intolerante, na medida em que todo o verdadeiro Cristão não conhece limites à sua
vontade para forçar (a conversão dos) outros, pelo seu próprio sofrimento, sofrendo
a sua crueldade e a sua perseguição.
Sren Kirkegaard, 1813-1855, Dinamarca
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 115
214
Por que me matais? - Pois bem, não ficais vós do outro lado da água? Meu amigo, se
ficais deste lado, serei um assassino, e seria injusto matar-vos desta maneira, mas
como ficais do outro lado, sou um valente, e tudo é justo.
(...)
Caricata justiça que tem como fronteira um rio! Verdade aquém dos Pirinéus, erro
para além deles.
Pascal, 1623-1662, França, Pensamentos
A ALTERNATIVA
Sendo tão claramente pervertida a mensagem, entre um Deus percepcionado por todos
e a força erigida em argumento, face ao Outro, finalmente circunscrito na sua diferença,
a razão de uns oscila entre a vertigem e as tentações de indiferença.
Na alternativa assim definida, destacam-se proposições mais ousadas: “destruir os
dogmas que dividem os homens e restabelecer a verdade que os reúne” sob a conduta
dos filósofos, mas filósofos reis; uma paz separada das consciências com uma confiança
comum numa natureza deificada. É simultaneamente o declínio do humanismo clássico
e a emergência do seu sucedâneo, o liberalismo, onde o “deixai fazer” deve, unicamente
pela prossecução do interesse individual, expulsar o conflito moral tendo no entanto
como condição que a ordem social, a ordem estabelecida, não seja posta em causa.
Mas tratar-se-á verdadeiramente de abertura? Será que o essencial não está noutro
lado?
Todos esses deslizes nada mais são do que “falsas saídas” na medida em que opõem,
por um esforço de razão especulativa e desviada, soluções formais e parciais a reivindicações globais e concretas. A umas e a outras apenas falta um projecto social, um
cimento que as integre e a todas reuna visto que, para viver, toda a sociedade clerical
deverá operar uma dupla mutação: no interior, relativamente aos particularismos que
a constituem; no exterior na aceitação convivial daquilo que ela não é: em resumo,
definir-se e por isso, redefinir a liberdade de todos.
215
Que deverei então fazer, ó crentes? Não me conheço a mim mesmo: Não sou nem
Cristão, nem Judeu, nem seguidor do Mazdeísmo, nem Muçulmano, nem do Oriente
nem do Ocidente, nem do mar nem da terra, nem dos céus em rotação, nem das
minas da natureza (...) O meu lugar é não ter lugar, o meu signo é não o mostrar. Não
possuindo nem alma nem corpo, pertenço ao Espírito supremo. Banindo a dualidade,
116 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
apenas vi um universo. Ele! Procuro-o e conheço-o, percebo-o e chamo-o. Ele! É o alfa
e o ómega. Ele! O evidente e o invisível. Não conheço outro que não seja Ele, gritando:
“Ele, Ele que é!” O vinho do amor embriaga-me e esqueço este mundo e o outro. O
êxtase e o deslumbramento é tudo o que desejo.
Jal l al-D n al-R m , Pérsia, 1207-1273
Diz:
Vós, os incrédulos!
Não adoro o que adorais;
Não adorais o que eu adoro.
Eu não adoro o que adorais;
Vós não adorais o que eu adoro.
A vós a vossa Religião;
A mim, a minha Religião.
216
Alcorão, Sura CIX, Os Incrédulos
217
Que um seja livre de adorar Deus e o outro Júpiter; que um possa erguer as mãos
suplicantes para o céu e o outro para o altar da Boa Fé; que a um seja permitido contar as nuvens quando reza (se é que acreditais que ele o faz) e a outro os painéis dos
templos; que um possa oferecer a Deus a sua própria alma e o outro a vida de um
bode! Tende cautela, não seja um crime de irreligião tirar aos homens a liberdade da
religião e proibir-lhes a escolha da divindade, quer dizer, não permitir que eu honre
quem quero honrar, para me forçar a honrar aquele que eu não quero adorar! Não há
ninguém, nem mesmo um homem, que queira homenagens forçadas.
Tertuliano, apologeta cristão, séc. II, Cartago, Apologética
Não perguntes por que porta
entraste na cidade de Deus,
mas mantém-te no lugar tranquilo
no qual finalmente encontraste lugar
Goethe, Alemanha, Livro das Sentenças, 1819
218
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 117
219
Considero que é meu dever compreender bem os outros. Se agem segundo a vontade
de Deus, imiscuir-me nas suas acções seria em si mesmo repreensível; no caso contrário são vítimas da ignorância e merecem a minha piedade.
Akbar o Grande, 1542-1605, Imperador Mongol da Índia
220
Os homens baniram a divindade que estava junto deles; relegaram-na para um santuário; as paredes de um templo limitam a sua visão; para além delas deixou de existir. Insensatos que sois: destruí essas muralhas que apertam as vossas ideias; ampliai
Deus, vede-o em todo o lado onde ele esteja e não digais que não existe.
Denis Diderot, França, Pensamentos Filosóficos, 1746
221
O único meio para devolver a paz aos homens é destruir todos os dogmas que os
dividem e restabelecer a verdade que os reúne; é isso efectivamente a paz perpétua.
Esta paz não é uma quimera; subsiste em todas as pessoas honestas, desde a China
ao Quebeque.
Voltaire, França, A Paz Perpétua, 1765
222
Os homens aproximaram-se uns dos outros por visões afectivas do mundo (Gesinnungen),
separadas por opções intelectuais (Meinungen) (...) As amizades de juventude fundamentam-se nas primeiras, das dissensões da idade madura são responsáveis as
últimas. Se nos tivéssemos apercebido disto mais cedo, no momento em que se
desenvolve este modo de pensar, teríamos talhado uma atitude liberal para com os
outros, mesmo para com aqueles que contradiziam esses modos pessoais de pensar,
ter-nos-íamos tornado mais conciliadores e ter-nos-íamos empenhado em aproximar
de novo, ao nível das visões afectivas do mundo, o que as opções intelectuais tinham
separado (...) as coisas celestes e terrestres abrangem um império tão vasto que os
orgãos de todos os seres reunidos mal as podem abraçar.
Goethe, Alemanha, Carta a Jacobi, 1813
223
Enquanto os cultos humanos continuarem a desonrar-se no espírito dos homens
pelas suas extravagâncias e pelos seus crimes, a religião natural coroar-se-á de um
novo brilho, e irá talvez finalmente fixar os olhares de todos os homens, trazendo-os
118 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
a seus pés; então apenas formarão uma única sociedade (...) apenas escutarão a voz
da natureza e começarão finalmente a ser simples e virtuosos. Ó mortais! O que fizestes para vos tornardes tão infelizes? Como vos lamento e como vos amo!
Denis Diderot, França, Da Suficiência da Religião Natural, 1747
224
Moral do ateu
Não inquiramos sobre os motivos que podem determinar um homem a abraçar
um sistema; examinemos esse sistema, asseguremo-nos se ele é verdadeiro, e, se o
achamos fundamentado sobre a verdade, nunca o poderemos considerar perigoso. É
sempre a mentira que prejudica os homens; se o erro é visivelmente a única fonte dos
seus males, a razão é o verdadeiro remédio deles. Não nos informemos mais sobre a
conduta do homem que nos apresenta um sistema; as suas ideias, como já se disse,
podem ser muito sãs, embora as suas acções sejam dignas de censura.
Paul Henri d’ Holbach, França, O Sistema da Natureza, 1770
225
Ignoro se esse Ser justo não punirá um dia toda a tirania que se exerceu em seu nome;
estou certo de que, pelo menos, não a partilhará e não recusará a felicidade eterna
a nenhum incrédulo virtuoso e de boa fé. Poderei, sem ofender a sua bondade, e
mesmo a sua justiça, duvidar que um coração recto não redima um erro involuntário,
e que costumes irrepreensíveis não valham, a seus olhos, mais do que mil cultos bizarros prescritos pelos homens e rejeitados pela razão? Direi mais: se pudesse comprar
as minhas obras à custa da minha fé, e compensar, pela virtude, a minha suposta
incredulidade, não hesitaria um instante, e preferiria poder dizer a Deus: “ Fiz, sem
pensar em ti, o bem que te é agradável, e o meu coração seguia a tua vontade sem a
conhecer” do que dizer, como será preciso fazê-lo, um dia: “Ai de mim! Amei-te e não
cessei de te ofender; conheci-te e nada fiz para te agradar.”
J.-J. Rousseau, Genebra, Carta a Voltaire, 1756
226
Da tolerância universal
Não precisamos de muita arte nem de uma eloquência rebuscada para provar que
os Cristãos se devem tolerar uns aos outros. Vou mais longe: digo-vos que é preciso
olhar todos os homens como irmãos. O quê! O Turco é meu irmão? O Chinês é meu
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 119
irmão? O Judeu? O Siamês? Sim, sem dúvida; não somos nós todos filhos do mesmo
Pai e criaturas do mesmo Deus?
Mas esses povos desprezam-nos; mas dizem que somos idólatras! Pois bem, dir-lhesei que não têm razão.
(...) Falarei agora aos Cristãos e ousarei dizer:
(...) :
Ó sequazes de um Deus clemente! Se tivésseis um coração cruel; se ao adorardes
aquele cuja lei apenas consiste nestas palavras: “Amai a Deus e ao vosso próximo”,
tivésseis sobrecarregado esta lei pura e santa com sofismas e disputas incompreensíveis; se tivésseis incendiado a discórdia, umas vezes por um termo novo, outras por
uma única letra do alfabeto; se tivésseis unido penas eternas à omissão de algumas
palavras, de algumas cerimónias que outros povos não pudessem conhecer; dir-vos-ia
derramando lágrimas sobre o género humano: “Transportai-vos comigo para o dia em
que todos os homens serão julgados, e em que Deus compensará cada um segundo
as suas obras.
Vejo todos os mortos do século passado e do nosso comparecerem na sua presença. Estais seguros de que o nosso Criador e o nosso Pai dirá ao sábio e virtuoso
Confúcio, ao legislador Sólon, a Pitágoras, a Zaleucus, a Sócrates, a Platão, aos divinos
Antoninos, ao bom Trajano, a Tito, delícias do género humano, a Epicteto, a tantos
outros homens, modelos dos homens: “ Ide, monstros, ide suportar castigos infinitos
em intensidade e em duração; que o vosso suplício seja eterno como eu sou! E vós,
meus amados Jean Châtel, Ravaillac, Damião, Cartouche, etc., que morrestes segundo
as fórmulas prescritas, partilhai para sempre à minha direita o meu império e a minha
felicidade?” Recuais de horror com estas palavras, e depois delas me terem fugido,
nada mais tenho a dizer-vos.
Voltaire, França, Tratado sobre a Tolerância, 1763
O FUNDO DO PROBLEMA
Verdade e violência
Acabemos, em primeiro lugar, com aquela “verdade” que pretende apoiar-se sobre a
mensagem inicial para perseguir aqueles que ela considera “heréticos”: não encontramos traços de um tal desregramento moral que não repouse as mais das vezes sobre
uma solicitação, senão mesmo sobre um desvio. Noutros tempos, só excomungavam o
contestatário depois de o terem ouvido, não sobre um determinado glosador mas sobre
o espírito literal da mensagem. Hoje, a força fabrica os seus culpados e tudo é pretexto
120 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
para anátema, heresia, processo, fogueira e outros “processos”. Uma verdade que assim
se defende não é verdade.
Segundo esta lógica, o primeiro herético não será então o próprio fundador da Religião,
de toda a religião, de toda a nova ideologia? De onde se seguiria que uma heresia que
triunfa é uma verdade, provisória, e portanto revogável por uma outra heresia, de
modo que, para esses heréticos, é preferível morrer de morte violenta do que adjurar
ou deixar-se “resgatar”.
Assim, sob pena de cair no absurdo que é a própria essência da força colocada ao serviço
da ideologia, há apenas uma via: a liberdade religiosa, logo que, para além dos indivíduos, a nação, o “descanso público” e o espírito verdadeiro da religião se encontrem
ameaçados. No seio de uma mesma comunidade, não pode haver predominância de
um culto sobre outro, de uns dogmas sobre outros, de uma “consciência” reinante: toda
a consciência é em si mesma soberana e inalienável. Portanto, a cada um a verdade da
sua consciência, mas não a dos seus interesses; contra a força da convicção, a força nua
nada pode, pois a força nada mais é do que a razão daquele que perde. É aqui e apenas
aqui que é preciso procurar o caminho para a paz, de outro modo impossível.
Mais ainda, a intolerância e não a tolerância é a causa das desordens. Outros exemplos
de sociedades mostram com evidência que a diversidade de seitas e de religiões, numa
mesma sociedade, longe de prejudicarem a paz e a união nacional foram, pelo contrário, elementos poderosos de unificação e de expansão. O pluralismo em matéria de fé
é o meio mais seguro de pôr em causa a relação de domínio. Seria ainda preciso que o
Príncipe estivesse além dos partidos e vigiasse para que várias religiões se “suportassem”
mutuamente, como o fazem as “diferentes espécies de artesãos.”
Para além da fé, convidamos aqui a um apelo a uma democracia não confessional,
profundamente individualista, é verdade, mas onde cessamos de nos matar uns aos
outros ou mesmo de discutir sobre a verdadeira religião das religiões. Para isso é então
necessário passarmos “das verdades reais às verdades de razão”. Porque para lá das
opiniões dos cidadãos, é o Estado e a paz do Estado que estão em jogo, que estão em
competição. É então o Soberano que é interpelado e não esta ou aquela seita da nação.
Para nos convencermos disto basta consultar os arquivos conhecidos da História ... mas
o livro semeia de tal modo a discórdia...
Na realidade, o problema não é o da pluralidade de opiniões, mesmo religiosas, mas da
organização do Estado. Bater-se, morrer pela liberdade de consciência, torna-se assim
um combate de retaguarda, de tal modo o real está em atraso relativamente a uma
história que constantemente avança. O problema manter-se-á durante muito tempo
submerso em questões historicamente marginais: em muitos aspectos, efectivamente,
o apego a uma ou a outra convicção ou transcendência, é uma questão de opinião, em
todo o caso de não-racionalidade. Mas neste mundo, os homens pressentem que são
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 121
feitos para coexistir, para criar em conjunto. Sendo o apóstolo racionalmente colocado
fora de causa, entre a “lei” do mais forte, as “verdades” exclusivas e o compromisso, não
há outra escolha possível que não seja o compromisso, pelo menos enquanto nos quisermos manter no plano do sentimento. Sobre o plano, real, da coexistência, há ainda
muito a dizer e a redizer. A força não mais se aceita como prova de verdade visto que,
teoricamente, é provisória, portanto reversível; as relações humanas só podem regularse por leis humanas, sem caridade nem paralogismos, mas de homem para homem,
irmãos em natureza, por tais razões, essencialmente deste mundo comum, opostos.
No termo desta sequência há no entanto uma vitória: ninguém mais pode, sem ser
criminoso, mesmo em nome da sua “verdade” – sozinho ou colectivamente – espoliar,
dominar, tiranizar, matar, sem ter de responder perante leis (ou perante o direito) que
são o consenso de interesses laicizados. Portanto, entre homens.
Mas de facto, retrospectivamente, será que se tratava de fazer partilhar a “verdade”
ou de impor, com todas as nuances da autoridade, a razão suprema dos seus próprios
interesses?
227
Não podemos, quando se trata de uma coisa tão importante como mandar matar um
homem, deturpar deste modo a lei e expô-la segundo a nossa fantasia (...) visto que
Deus não ordenou nem no Antigo nem no Novo Testamento que se mandasse matar
heréticos e nós não devemos alterar nem acrescentar a sua lei e os seus mandamentos, e que por causa disto ele punirá aqueles que fizerem o que ele não ordenou ; e
que não os devemos mandar matar, e que o magistrado terá sempre uma desculpa
justa para não os mandar matar, dizendo: “Senhor, tu não o ordenaste.” E pelo contrário, se os manda matar, pode ser chamado por Deus, que por direito lhe diz: “Eu
não o ordenei”. Por este facto, se os Príncipes fossem prudentes, quando os teólogos
os incitam a mandar matar os heréticos, deveriam dizer-lhes: “ Mostrai-nos uma lei
divina que expressamente o ordene” e então nenhum teólogo do mundo saberia o
que dizer. Quando Deus ensina a tarefa de ser rei, ordena que ele tenha a cópia da lei
num livro, e que a retenha e leia em cada dia da sua vida, sem dela se desviar nem
para a esquerda nem para a direita.
Sebastião Castellion
Conselho à França Desolada, 1562
228
Reparai, Bassanio,
Que o diabo para os seus fins pode citar a Escritura.
A alma malvada empregando o santo testemunho
122 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
É tal como o celerado, de sorriso na face,
Uma bela maçã de coração apodrecido...
Que bela aparência nos mostra a mentira!
(...)
Em religião
Será erro maldito que uma fronte severa
Não abençoe nem autorize um texto,
Escondendo tal enormidade sob um belo ornamento?
Shakespeare, Inglaterra, O Mercador de Veneza, acto I, cena III, e acto III, cena II, 1597
229
Ao Reverendíssimo Pai em Cristo, Alberto, Cardeal Arcebispo, saudações de Erasmo
de Roterdão, Teólogo
(...)
Outrora o herético era ouvido com atenção. Se satisfazia, era absolvido, se se obstinava depois de ter sido convencido de heresia, a pena suprema para ele era a exclusão
da comunhão eclesiástica. Agora, o crime de heresia mudou de carácter; por qualquer razão fútil, vem sempre à boca: “É heresia! É heresia!” Outrora considerava-se
herético aquele que se afastava do Evangelho, dos artigos da fé ou daquilo que tinha
uma autoridade semelhante. Agora, se alguém se afasta mesmo que seja pouco, de
S. Tomás, é um herético, ou mesmo se alguém manifesta o seu desacordo com a
teoria falsa de algum sofista da Escola, de fresca data, é um herético. Tudo o que não
agrada, tudo o que não se compreende, é heresia. Saber grego é heresia. Falar uma
linguagem mais elaborada é heresia (...) Confesso que é uma acusação grave, a de
viciar a fé, mas no entanto não devemos fazer de tudo uma questão de fé.
Erasmo de Roterdão, Carta a Alberto de Brandenburgo, 1519.
230
O “culpado em si”
“Tu és J.K.”, disse o abade. – “Sim”, disse K., pensando com que franqueza ele outrora
pronunciava o seu nome. Pelo contrário, desde há algum tempo, tal constituía um
verdadeiro suplício; e agora toda a gente sabia esse nome. Como era bom que só nos
conhecessem quando nos tivéssemos apresentado! “És acusado”, disse o abade numa
voz extremamente baixa. “Sim”, disse K., “já me preveniram”. – “Então, és mesmo
aquele que procuro”, disse o abade. “Sou o capelão da prisão” “Ah! Está bem” disse
K. – “Fiz-te vir aqui” disse o abade, “para te falar”. – “Não sabia”, disse K. “Vim para
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 123
mostrar a catedral a um italiano.” “Deixa o acessório”, disse o abade. “O que tens na
mão? É um livro de orações?” – “Não, é um álbum sobre as curiosidades da cidade”
– “Deixa-o”, disse o abade. K. Atirou-o tão violentamente que ele se desfez com
estrondo, e rebolou no chão.
“Sabes que o teu processo vai mal?” perguntou o abade. – “Está-me bem a parecer
que sim”, disse K. “Esforcei-me muito mas até agora sem resultado; a bem dizer a
minha petição ainda não terminou.” – Como pensas que isto irá acabar?, perguntou
o abade. “Dantes pensava que o meu processo acabaria bem, mas agora, por vezes,
começo a ter dúvidas. Não sei como irá acabar. Por acaso tu sabes?” – “Não”, disse o
abade, mas temo que acabe mal. É provável que o teu processo não saia da alçada
de um pequeno tribunal. De momento, pelo menos, considera-se a tua culpa como
provada”. – “Mas eu não sou culpado”, disse K., “é um erro. De resto, como é que um
homem pode ser culpado? Aqui somos todos homens, tanto um como outro.” – “É
justo”, respondeu o abade, “mas é assim que os culpados falam.”
Franz Kafka, 1833-1924, Checoslováquia, O Processo
231
O Rei [Filipe II de Espanha] está errado se acredita que o povo deste país vai tolerar
indefinidamente os éditos sangrentos contra os heréticos. Embora eu seja totalmente dedicado à religião católica romana, não posso aprovar que os monarcas se
arroguem um direito de controlo sobre a consciência dos seus súbditos e os privem
de liberdade religiosa.
Guilherme de Nassau, dito O Taciturno, Holanda,
Discurso pronunciado no Conselho de Estado, 1564
232
Se para defender as suas opiniões eles não recorrem nem às armas nem à força, considerando isso indigno, e se não procuram impô-las por atractivos materiais, certamente que nunca a verdade será esmagada pela força nem derrubada pela astúcia. Porque
é assim que a verdade é, por sua própria natureza: como as asas da águia, recolhe
todas as penas ligeiras das opiniões, e nunca nos deixará, a menos que a nossa escravidão e a nossa corrupção consigam inspirar-lhe repugnância. E se, numa atmosfera
serena de livre expressão de opiniões contraditórias e de esforços assíduos em despertar em nós um amor verdadeiro, não devemos temer nem umas nem outros, por
que razão defenderemos deste modo as nossas opiniões contra as ideias deles?
Samuel Przypkowski, Polónia,
Dissertação sobre a Paz e a Concórdia na Igreja, 1628
124 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
233
Frederico: Muitas vezes me espantei que, entre uma tão grande diversidade de seitas,
de tal modo que Epifânio e Tertuliano contaram cento e vinte e Temístio mais de
trezentas, a paz e a união pudessem conservar-se entre os povos, visto que no nosso
tempo duas crenças diversas entre os Cristãos causaram tantas e tão rudes guerras
civis e tanta desolação nas cidades.
Cúrcio: Não há nada mais perigoso do que ver, numa República, o povo dividido em
duas facções apenas, seja por se tratar de leis ou de precedências, seja devido ao facto
da religião; mas se houver diversas facções não há que temer uma guerra civil, porque
umas são como vozes que parecem interceder pelas outras para estabelecer a paz e
a harmonia entre os cidadãos.
Torralbo: Esta razão é muito apropriadamente procurada nos acordes da música,
sendo a razão natural demasiado relevada, a saber por que é que naturalmente uma
coisa é apenas contrária a outra e que muitas coisas diferentes não podem ser contrárias a uma, naturalmente.
Otávio: Considero que é por essa razão que Turcos e Persas aceitam, entre eles, todo
o tipo de religiões e no entanto vemos uma maravilhosa concórdia quer entre o povo
quer entre os viajantes, embora de diferentes religiões.
Frederico: Por mim, considero que não há nada mais desejável num grande reino ou
numa grande cidade do que acontecer que todos tenham uma mesma religião. E o
que Arato fez de mais notável foi acostumar os Aqueus que compunham cerca de trezentas cidades a viver sob as mesmas leis, a mesma religião, as mesmas cerimónias,
os mesmos pesos e as mesmas medidas, de modo que aí nada mais se podia desejar
senão que todas as cidades ficassem encerradas nessas mesmas muralhas, e é, quanto a mim, o fundamento sólido da amizade demonstrada por Cícero em seguir um
mesmo sentimento, tanto para as coisas divinas como para as humanas.
Otávio: Acreditais, Frederico, que os Aqueus se puderam conservar numa mesma religião, eles que contavam trinta mil divindades, visto que nunca os sacrifícios de Baco
puderam harmonizar-se com os de Eleusis?
Coronio: Certamente que é preferível desejar e pedir a Deus do que esperar que haja
no mundo uma só religião e uma mesma crença, desde que seja (mesmo que fosse)
a verdadeira!
Salomão: Não digamos que é a religião, quando não dissermos (enquanto não acharmos) que é a verdadeira.
Senónio: Dado que os chefes das religiões e os pontífices tiveram em cada uma delas
tantos debates uns contra os outros que não é possível dizer qual é a religião verdadeira, não será melhor receber, nos grandes estados, como vemos entre os Turcos e os
Persas, todo o género de religiões, do que excluir uma delas? Pois se procurarmos por
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 125
que é que os Gregos, os Latinos e os Bárbaros não tiveram outrora diferendos no que
respeita à religião, não encontraremos, na minha opinião, outra razão que não seja
a de que todos estavam igualmente esclarecidos e tinham um mesmo sentimento
sobre todas as religiões.
Jean Bodin, França, Colloquium Heptaplomeres, 1593
234
Há alguns séculos, no Oriente, vivia um homem que possuía um anel de um valor
inestimável, presente de uma mão muito amada. A pedra era uma opala onde cintilavam mil cores belas, e tinha o poder secreto de tornar agradável a Deus e aos homens
quem a usasse animado de tal convicção. Não era de espantar que o Oriental a mantivesse constantemente no dedo e tomasse a decisão de a conservar eternamente
na família. E foi o que fez. Legou o anel ao mais amado dos seus filhos e estabeleceu
que este, por sua vez, o legaria àquele dos seus filhos que lhe fosse mais querido, e
que, para sempre, o mais querido, sem consideração de nascença, apenas pela virtude
do anel, se tornaria o chefe, o primeiro da casa. Deste modo, de pai para filho, este
anel chegou às mãos de um pai de três filhos, sendo que os três lhe eram igualmente
obedientes, de modo que ele não podia impedir-se de amar os três com um mesmo
amor. Só em alguns momentos, umas vezes um, outras vezes outro, outras ainda
um terceiro - (...) quando cada um deles estava sozinho com ele e os outros dois não
partilhavam as efusões do seu coração (...) – lhe parecia ser mais digno do anel. Teve
então a piedosa fraqueza de o prometer a cada um deles. As coisas correram assim,
enquanto correram... Mas a morte aproxima-se e o pai fica embaraçado. Tem pena
de contristar deste modo dois dos seus filhos, que se fiaram na sua palavra. Que há
de fazer? Vai secretamente a um artesão, ao qual encomenda secretamente dois
outros anéis, segundo o modelo do seu, ordenando que não poupasse nem esforços
nem dinheiro para os fazer, em todos os aspectos, semelhantes ao dele. O artista
conseguiu fazê-lo. Quando leva os anéis ao pai, este é incapaz de distinguir o seu, o
anel modelo. Feliz e contente convoca os filhos, cada um à parte, dá a cada um a sua
benção, ... e o anel.... e morre.
Mal o pai morre, cada um dos filhos se apresenta com o seu anel, e cada um quer ser o
chefe da sua casa. Há investigações, disputas, acusações. Tempo perdido; impossível
provar qual é o verdadeiro anel... Os filhos litigaram entre si e cada um jurou ao juiz
que tinha recebido directamente o anel da mão do pai... e de pleno direito! depois
de ter obtido dele, desde há muito, a promessa de um dia vir a gozar do privilégio do
anel.... o que era verdade!
O pai, afirmavam todos eles, não podia ter-lhes mentido; mais do que deixar planar a
suspeita sobre um tão bom pai, necessariamente preferiam acusar de dolo os irmãos,
126 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
embora lhes atribuíssem as melhores intenções. Era preciso, acrescentavam, descobrir os traidores e vingarem-se.
O juiz disse: “Se não me fizerdes vir aqui, sem tardar, o vosso pai, não darei razão nem
a um nem a outro. Pensais que estou aqui para resolver enigmas? Ou estais à espera
que o verdadeiro anel comece a falar? ... Mas esperem lá! Ouvi dizer que o verdadeiro
anel possui a virtude mágica de atrair o amor, de se tornar agradável a Deus e aos
homens. É isto que vai decidir! Porque os anéis falsos seriam incapazes de tal coisa!
E então, qual de entre dois é que ele mais ama? Então, dizei! Ficais calados? Os anéis
só resultam relativamente ao passado? Não irradiam para fora? Aquilo que cada um
mais ama é simplesmente a sua própria pessoa? Então sois todos os três enganadores
enganados! Os vossos anéis são os três falsos. Teremos que admitir que o verdadeiro
anel se perdeu. Para esconder, para compensar tal perda, o pai mandou fazer três em
vez de um. E como consequência, continuou o juiz, se não quereis seguir o conselho
que vos dou em vez de veredicto .... ide-vos embora! ... No entanto, o meu conselho é
o seguinte: tomai a situação tal como ela é. Se cada um recebeu de seu pai o seu anel,
então que cada um, com toda a segurança, considere o seu anel como o verdadeiro ...
Talvez que o vosso pai não tenha querido tolerar mais tempo em sua casa a tirania de
um só anel? E é certo que vos amou igualmente aos três, visto que se recusou a oprimir dois para favorecer apenas um... Vamos então ! Que cada um de vós, zelosamente, imite o seu amor incorruptível e livre de todo o preconceito! Que cada um de vós se
esforçe o mais possível em manifestar no seu anel o poder da pedra. Que ele reforce
esse poder pela doçura, pela tolerância cordial, pelas benfeitorias, pela submissão
profunda a Deus! E quando, de seguida, as virtudes das pedras se manifestarem nos
filhos dos vossos filhos, convocar-vos-ei, daí a mil vezes mil anos, perante este tribunal. Então, um mais sábio do que eu estará aqui a presidir e pronunciar-se-á.
Lessing, Alemanha, Nathan, o Sábio, 1779
235
Há homens que vivem como fardos para a terra; mas um bom Livro é o sangue vital
de um espírito superior, o precioso tesouro embalsamado e expressamente guardado
em função de uma vida que ultrapasse a vida.
É verdade que nenhum tempo pode ressuscitar uma vida, o que talvez não seja uma
grande perda; de igual modo, no curso dos tempos raramente se recupera uma verdade recusada e depois perdida: a esta carência corresponde a ruína de todas as Nações.
Sejamos pois circunspectos, reflictamos na perseguição desencadeada por nós
contra as obras vivas dos homens da cidade, nesta destruição de uma vida humana,
amadurecida e depois conservada e acumulada nos Livros; porque vemos bem que
assim nos podemos tornar culpados de uma espécie de homicídio, por vezes mesmo
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 127
de martírio – e isto estende-se à impressão, podemos dizer, de massacre: crime que
não se limita ao aniquilamento de uma vida vegetativa, mas que atinge a quinta
essência de uma vida espiritual, o sopro de vida da própria razão: é ser assassino da
imortalidade, e não apenas assassino.
John Milton, Inglaterra, Aeropagitica, 1644
236
Diz-se que não há peste mais perigosa num estado do que a multiplicidade das religiões, porque tal facto cria dissensões entre vizinhos e vizinhos, pais e filhos, maridos
e mulheres, príncipe e súbditos. Respondo que, pelo contrário, é uma prova forte a
favor da tolerância, pois se a multiplicidade de religiões prejudica um Estado é apenas
porque uns não querem tolerar outros mas sim absorvê-los por via de perseguição.
Hinc prima mali labes, aí está a origem do mal. Se cada um possuísse a tolerância que
defendo, haveria a mesma concórdia num Estado dividido em dez religiões que existe
numa cidade onde as diferentes espécies de artesãos se inter-ajudam mutuamente.
Nada mais poderia haver do que uma emulação honesta entre quem mais se fizesse
assinalar pela piedade, pelas boas obras, e pela ciência. Cada uma [das religiões] se
esforçaria por provar que é mais amiga de Deus, testemunhando um maior apego à
prática das boas obras; esforçar-se-iam mesmo por ter mais afeição pela pátria se o
soberano as protegesse a todas, e pela sua equidade as mantivesse em equilíbrio. Ora
é manifesto que uma tão bela emulação seria causa de uma infinidade de bens, e por
consequência a tolerância é a coisa do mundo mais capaz de nos trazer o século de
ouro e de realizar um concerto e uma harmonia de vários instrumentos de diferentes
tons e notas, pelo menos tão agradável quanto a uniformidade de uma só voz. O
que impedirá este belo concerto formado por vozes de tons tão diferentes umas das
outras? É que uma das duas religiões quer exercer uma tirania cruel sobre os espíritos
e quer forçar as outras a que lhe sacrifiquem a sua consciência. Os reis fomentam
essa injusta parcialidade, e entregam o braço secular aos desejos furiosos e tumultuosos de uma população de monges e de clérigos. Numa palavra, a desordem não vem
da tolerância, mas da não- tolerância.
É o que respondo ao lugar comum, tão rebatido pelos ignorantes, que a mudança de
religião arrasta consigo a mudança de governo e que deste modo é necessário que
cuidadosamente se impeça a inovação. Não procurarei ver se tal aconteceu tantas
vezes quanto dizem. Contento-me, sem me informar demasiado sobre o facto, em
dizer, supondo que é tal como no-lo apresentam, que apenas resulta da não-tolerância.
Porque se a nova seita estivesse imbuída dos princípios que eu defendo, não violentaria
aqueles que quisessem reter a doutrina antiga; contentar-se-ia com a apresentação das
suas razões, instruindo-os caridosamente. Se, de igual modo, a antiga religião estivesse
128 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
imbuída das mesmas máximas, não violentaria a nova, contentando-se em combatê-la
por meio de razões doces e caritativas. Assim o soberano manteria sempre a sua autoridade sã e salva, cada particular cultivaria em paz o seu campo e a sua vinha, rezaria
a Deus à sua maneira e deixaria que os outros Lhe rezassem e O servissem à maneira
deles, de modo que veríamos a realização da predição do profeta, na concórdia de tantos sentimentos, diametralmente opostos: O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo
abrigar-se-á com o cabrito, o novilho e o leãozinho e outro gado que engordamos ficarão
juntos e um menino os conduzirá (Isaías, XI, 6). E fica claro para todo o homem que sobre
tal medite, que todas as desordens que acompanham as inovações das religiões decorrem de nos opormos aos inovadores com ferro e fogo, e de lhes recusarmos liberdade de
consciência, ou então, de a nova seita cheia de um inconsiderado zelo, querer destruir
pela força a religião que já encontrara estabelecida. É pois a tolerância que pouparia ao
mundo todos estes males, e é o espírito de perseguição que os traz ao mundo.
Pierre Bayle, França, Comentário Filosófico, 1686
237
Suponhamos que um príncipe quer obrigar os seus súbditos a adquirir riquezas ou
a fortalecer o corpo; estará prescrito numa lei que só os médicos de Roma deverão
ser consultados e que cada um deverá viver conforme as receitas deles? Será que
nenhum medicamento e nenhuma comida devem ser tomados, a menos que não
tenham sido preparados no Vaticano ou que não tenham saído de uma oficina genovesa? Ou então, a fim de que todos os súbditos vivam na abundância e deliciados,
será que todos são obrigados por lei a fazer comércio ou música? E cada um deverá
tornar-se hoteleiro e carpinteiro, sob o pretexto de que alguns conseguiram nestas
profissões responder com êxito às necessidades familiares ou aumentar a riqueza?
Mas, dir-me-eis, há mil maneiras de enriquecer; há um único caminho que conduz
à salvação. Isto é afirmado, particularmente por aqueles que gostariam de obrigar
alguns a seguir um caminho e outros a seguir outro; porque, se houvesse vários caminhos, não mais encontraríamos pretextos para a imposição.
John Locke, Inglaterra, Carta sobre a Tolerância, 1690
238
Cada pequena seita ou religião traz em si, indubitavelmente, um grão de verdade que
a torna apta a servir o grande desígnio da fertilização do mundo – mas enquanto que
os sábios de cada seita ou religião se considerarem filhos queridos do divino Pai que
os gratifica com favores que recusa ao resto da humanidade, a plenitude da ideia de
Deus não será atingida por nenhuma delas.
Lessing, Alemanha, 1729-1781, A Educação do Género Humano
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 129
239
Para que a fidelidade e não a complacência seja julgada digna de estima, para que o
poder do soberano não sofra qualquer diminuição e não faça concessões aos sediciosos, há que permitir necessariamente aos homens a liberdade de juízo e governá-los
de um tal modo que, professando abertamente opiniões diversas e opostas, eles
vivam no entanto em concórdia. E não podemos duvidar que esta regra de governo
não seja a melhor, pois é a que mais está de acordo com a natureza humana.
Espinosa, Holanda, Tratado Teológico-Político, 1670
240
Como é (portanto) impossível à maior parte dos homens - senão a todos – admitir que
haja opiniões diversas sem uma prova certa e indubitável da verdade de cada uma
delas, seria bom, na minha opinião, que todos os homens se aplicassem em preservar
a paz e as relações mútuas de humanidade e de amizade, mau grado a diversidade de
opiniões. Faríamos bem se tivéssemos comiseração por toda a nossa ignorância e se
nos esforçássemos, por todos os meios brandos e honestos de informação, por não
tratar os outros obrigatoriamente como maus, obstinados e perversos, quando estes
não querem renunciar às suas próprias opiniões para adoptar as nossas.
John Locke, Inglaterra, Pensamentos sobre a Educação, 1693
241
Pensamos que é preferível que não haja qualquer disposição a exigir a uniformidade
em matéria de religião, a não ser a de uma perfeita liberdade de pensamento (...) Se
todos aqueles que se disputam sobre este tema não chegam a entender-se sobre uma
opinião, pelo menos todos terão a possibilidade de se impregnar do princípio divino
da caridade universal para com aqueles que não pensam como eles.
Jospeh Priestley, 1733-1804, Grã-Bretanha, Panfletos sobre os Dissidentes
242
Um homem não converte outro homem: é Deus que nos converte a todos. Ele endurece
aquele que lhe apraz; é misericordioso para aquele com quem usa de misericórdia.
Paul Pellisson, França, Reflexões sobre os Diferendos da Religião com as Provas da Tradição Eclesiástica, 1686.
243
Que cada um se arranje como puder com o seu pecado; no céu está Deus, que não é
negligente em punir o mal nem em recompensar o bem, e não convém que homens
honestos sejam carrascos de outros homens.
Cervantes, Espanha, D. Quixote, 1615
130 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
244
Qualquer bem que desejardes a outro, qualquer coisa que fizerdes em ordem à sua
salvação, não podereis forçá-lo a salvar-se; no fim, deve ser entregue a si mesmo e à
sua própria consciência.
John Locke, Inglaterra, Carta sobre a Tolerância, 1690
245
Da loucura
O Senhor P’ang de Ts’in tinha um filho que desde muito jovem era muito inteligente. Quando se tornou adulto enlouqueceu: Se ouvia uma canção pensava ouvir um
queixume. Se via algo branco, pensava ver preto. Para ele o perfume era um odor
nauseabundo; um sabor doce parecia-lhe amargo; quando procedia mal pensava ser
justo, Céu e Terra, pontos cardeais, água e fogo, frio e calor, tudo estava invertido no
seu juízo.
O Senhor Yang disse ao pai [do jovem doente].: “O homem superior de Lou conhece
muitos métodos. Talvez ele consiga curar (este mal). Por que não solicitá-lo (sobre
este assunto)?” O que levou o pai a ir ter com Lou.
Quando passou por Tch’en, encontrou Lao Tan e contou-lhe o estado do seu filho. Este
disse-lhe: “Como sabes que o teu filho tem o espírito perturbado? Hoje em dia todos
se enganam nos problemas do justo e do injusto, do bem e do mal. Muitos padecem
de males semelhantes e portanto não nos apercebemos deles. E ainda mais: quando
o espírito de um único homem anda perdido, a família não fica por isso perturbada.
Quando uma família ou quando uma comunidade têm o espírito perturbado, o país
inteiro não fica por isso perturbado. Quando o mundo inteiro está perturbado, quem
poderá ainda perturbá-lo? Suponhamos que todos os homens do mundo sentem
como o teu filho; então o doido és tu. Quem é que pode estabelecer (o ser) incondicional daquilo que é triste, alegre (ou musical) colorido, bem cheiroso, gostoso, razoável
ou desrazoável?
E de resto, não é seguro que aquilo que te digo não seja insensato. Que dizer então
do homem superior de Lou, o primeiro dos insensatos? Como é que ele poderá curar
a loucura dos outros? Será melhor que poupes as despesas da viagem e que voltes o
mais depressa possível para tua casa.
Lie-Tseu, escola taoista, sécs. IV e III a.C.
China, O Verdadeiro Clássico do Perfeito Vazio
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 131
246
[Bayle imagina uma entrevista entre um ministro pagão e os primitivos Cristãos]
Senhor, perdoai-nos por favor, se vos dizemos que a nossa santa doutrina foi mascarada pelos nossos inimigos. É apenas por acidente e com o maior desagrado do mundo
que chegaríamos à violência. Procuraríamos, em primeiro lugar, persuadir das nossas
verdades pela instrução. Servir-nos-íamos dos caminhos mais doces e mais meigos;
mas se tivéssemos a infelicidade de encontrar espíritos maliciosos e obstinados que
se endurecessem contra as luzes da verdade que faríamos brilhar, então, contra a
nossa vontade mas por uma mordacidade caritativa, obrigá-los-íamos pela força a
fazer aquilo que não tinham feito voluntariamente, e teríamos mesmo a caridade de
não exigir deles que confessassem terem assinado pela força: seria um monumento
de vergonha para eles, e para os seus filhos, e para nós também. Obrigá-los-íamos
a assinar que fazem tudo aquilo voluntariamente. Quanto ao resto, Senhor, não se
segue, que, por termos o direito de obrigar, vós também o tenhais. Nós falamos em
prol da verdade: e devido a isso, é-nos permitido violentar as pessoas. Mas as falsas
Religiões não possuem esse privilégio: o que elas fazem é uma crueldade bárbara, o
que nós fazemos é uma acção divina, totalmente cheia de zelo e de caridade.
Pierre Bayle, 1647-1707, França
247
[Hémon a Creonte :]
Vai, não deixes que reine na tua alma a ideia de que a verdade é o que dizes, e nada
mais. As pessoas que imaginam só elas terem razão e possuirem ideias ou palavras
desconhecidas dos outros, essas pessoas, abre-as: nelas só encontrarás vazio. Para
um homem, mesmo para um sábio, instruir-se sem cessar nada tem de vergonhoso.
E também não é vergonhoso deixar de se obstinar.
Sófocles, Grécia antiga, Antígona, 441 a. C
248
Das três formas de acção ou de valor que a virtude da força engloba : atacar, defender-se e tolerar, é o facto de tolerar que, na opinião dos melhores juízos, mais propriamente pertence a essa virtude, porque se trata puramente de um acto do espírito;
ora é nisso que consiste a essência de todas as virtudes, e não no corpo, nem nas
suas qualidades (...) Tolerar é uma força (...) Se não pudermos obter o que desejamos,
recorramos à tolerância (...) Vivamos e deixemos viver.
Antonio Lopez de Vega, Portugal, Paradoxos Racionais, 1655
132 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
249
Ser severo será uma necessidade dos legisladores? É uma questão debatida, antiga e
muito contestável, visto que nações poderosas floresceram sob leis muito brandas;
mas nunca se pôs em dúvida que a tolerância fosse um dever para os particulares.
É ela que torna a virtude amável, que reconduz as almas obstinadas, que consola o
ressentimento e a cólera, que, nas cidades e nas famílias mantém a união e a paz e
dá maior encanto à vida civil. Porventura nos perdoaríamos uns aos outros, não digo
costumes diferentes, mas mesmo máximas opostas, se não soubéssemos tolerar
aquilo que nos fere? E quem pode ser suficientemente impudente para acreditar que
não tem necessidade da indulgência que recusa aos outros?
Vauvenargues, França, Reflexões e Máximas, 1746
250
Está na ordem da bondade, disse o Imperador, querer que o homem se esclareça e que
a verdade triunfe. Triunfará, disse Belisário, mas as vossas armas não são as dela. Não
vedes que ao dardes à verdade o dom do gládio, também o dais ao erro? Que para a
exercer bastará ter a autoridade à mão? E que a perseguição mudará de estandartes
e de vítimas ao sabor da opinião do mais forte? Deste modo Anastásio perseguiu
aqueles que Justiniano protegeu e os filhos daqueles que então eram degolados,
degolam por sua vez a posteridade dos seus perseguidores. Eis dois Príncipes que
pensaram agradar a Deus mandando massacrar os homens; pois bem, qual dos dois
está seguro que o sangue que fez derramar é agradável ao Eterno? Nos espaços imensos do erro a verdade é apenas um ponto. Quem é que alcançou esse ponto único?
Cada um pretende tê-lo feito; mas com que provas? E será que a própria evidência
lhe dá o direito de exigir, de ferro na mão, que um outro dela seja persuadido? A persuasão vem do céu ou dos homens, Se vem do céu, tem por si mesma um ascendente
vitorioso; se vem dos homens, apenas tem os direitos da razão sobre a razão. Cada
homem responde pela sua alma. É portanto ele, e só ele, que terá de decidir pela sua
escolha, da qual dependerá para sempre a sua perda ou a sua salvação. Quereis obrigar-me a pensar como vós? E se vos enganardes, vede o que me custa. Vós mesmos,
cujo erro poderia ser inocente, estareis inocentes de me terdes induzido em erro? Ai
de mim! Em que pensa um mortal quando impõe como lei a sua crença? Mil outros,
com igual boa fé, foram seduzidos e enganados. Mas mesmo que fosse infalível, seria
meu dever supô-lo enquanto tal? Se ele acredita, porque Deus o esclareceu, que lhe
peça para eu ser esclarecido. Mas se acredita, pela fé dos homens, que garantia há
para ele e para mim? O único ponto em que todos os partidos estão de acordo, é que
nenhum deles compreende nada sobre o que ousam decidir; e vós quereis fazer um
crime por duvidarmos acerca do que eles decidem! Deixai descer a fé do céu, ela ferá
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 133
prosélitos; mas com éditos, só faremos rebeldes e patifes. As pessoas honestas serão
mártires, os cobardes serão hipócritas, os fanáticos de todos os partidos serão tigres
assanhados.
J.-F. Marmontel, França, Belisário, 1765
Consciência e direito
Há que avançar na crítica. Tendo a “razão” pela força mostrado ser vã, é a vez da razão
provar a sua força “em assuntos onde a demonstração não tem lugar”.
Há que, em todas as formas de governo com pretensões à totalidade, separar o temporal do espiritual antes de fazer o mesmo no que se refere ao religioso e ao cultural.
Ninguém tem o direito de forçar quem quer que seja a ir para o Paraíso se esse alguém
servir bem o Estado. Transferi este axioma para o nível da consciência civil e imediatamente tereis a liberdade de consciência e a igualdade, pelo menos formal, dos direitos
civis.
Numa análise destas é o Estado que é acusado e não o “herético”: será considerado
“violento” todo o Governo que “pretender dominar as almas”, prescrevendo “a cada um
o que ele deverá admitir como verdadeiro ou rejeitar como falso”. A consciência terá
que resistir a tal, excepto “os cobiçosos, os lisonjeadores, e todos os outros para quem a
suprema salvação consiste em contemplar escudos num cofre e em encher demasiado a
barriga.” De tal modo, que as leis que pretendem são menos feitas “para conter os maus
do que para irritar os mais honestos, e que, consequentemente, não podem ser mantidas sem grande perigo para o Estado”. Neste caso, desobedecer a tais leis é um dever e,
se a intolerância se manifesta ainda, só podemos responder-lhe “com a intolerância”.
De outro modo, é preciso manter o poder civil longe da religião, reconhecer a todos e a
cada um a liberdade de consciência e exigir, aceitando todas as diferenças, que todos
tenham os mesmos deveres e as mesmas obrigações, restituindo a cada um o mesmo
direito segundo a mesma justiça. A prosperidade e a paz civil têm, paradoxalmente,
este preço.
251
Confesso que as histórias estão cheias de guerras de religião. Mas há que ter cuidado:
não foi a multiplicidade das religiões que produziu tais guerras, foi o espírito de intolerância que animava aquela [religião] que se considerava dominante; foi esse espírito de proselitismo (...) foi, numa palavra, esse espírito de vertigem, cujos progressos
só podem ser olhados como um eclipse total da razão humana.
Porque, enfim, mesmo que não houvesse desumanidade em afligir a consciência dos
134 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
outros; mesmo que daí não resultassem aqueles maus efeitos que germinaram aos
milhares; era preciso ser-se louco para se ter tal temeridade. Aquele que me quer
fazer mudar de religião certamente que só o faz porque não mudaria a sua, mesmo
que o forçassem: ele pensa que é estranho eu não fazer uma coisa que ele próprio não
faria pelo império do Mundo. De Paris, 26 da lua de Gemmadi I, 1715
Montesquieu, França,
Cartas Persas, 1721
252
Mas, tal como vós, estou indignado porque a fé de cada um não goza da mais perfeita liberdade, e porque o homem ousa controlar o interior das consciências onde
não deveria penetrar, como se dependesse de nós crer ou não crer em assuntos onde
a demonstração não tem lugar, e por alguma vez se ter podido subordinar a razão
à autoridade. Será que os reis deste mundo inspeccionam o outro [mundo] e têm
o direito de atormentar os seus súbditos, cá em baixo, para os forçar a entrar no
Paraíso? Não, todo o governo humano se limita por natureza aos direitos civis, mau
grado o que possa ter dito o sofista Hobbes; quando um homem serve bem o Estado,
não tem que dar contas a ninguém do modo como serve Deus.
J.-J. Rousseau, Génova, Carta a Voltaire, 1756
253
Se fosse tão fácil mandar nas almas como nas línguas, não haveria nenhum soberano que não reinasse com segurança e não haveria governos violentos, pois cada
um viveria segundo o temperamento dos detentores do poder, e só julgaria sobre
o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, o justo e o iníquo, segundo os seus decretos.
Mas (...) não pode ser assim. Não pode acontecer que a alma de um homem pertença inteiramente a outro, nem ele pode ser obrigado a abandonar o seu direito
natural ou a sua faculdade de fazer um uso livre da razão ou de julgar sobre todas
as coisas. Por consequência, é considerado violento o governo que pretende dominar sobre as almas, e uma majestade soberana parece agir injustamente contra os
seus súbditos e usurpar os seus direitos quando quer prescrever a cada um o que
deverá admitir como verdadeiro ou rejeitar como falso, e também quais as opiniões
que devem encher a sua alma de devoção para com Deus; porque essas coisas são
do direito próprio de cada um, um direito de que ninguém, mesmo que o quisesse,
se poderia despojar.
Espinosa, Holanda, Tratado Teológico-Político, 1670
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 135
254
Mesmo que a opinião do magistrado seja a mais importante e mesmo que a via que
ele ordena que eu siga seja a verdadeira via evangélica, se disso não estiver persuadido
no fundo do meu coração, tal não constituirá para mim uma via de salvação. Nenhum
caminho em que eu avance contra a minha consciência alguma vez me conduzirá à
morada dos bem aventurados. Posso enriquecer numa profissão que detesto, posso
curar-me graças a medicamentos nos quais não tenho confiança mas não posso ser
salvo por uma religião na qual não confio, por meio de um culto que detesto.
O incrédulo pode aparentar um exterior honesto mas para agradar a Deus há que ter
fé e sinceridade interior. (...) Por muito que se duvide em matéria de religião, há pelo
menos uma certeza: uma religião que eu não acredito ser a verdadeira, não poderá
ser para mim nem verdadeira nem útil.
John Locke, Inglaterra, Carta sobre a Tolerância, 1690
255
Os homens são feitos de tal modo que nada para eles é pior do que verem as opiniões que crêem verdadeiras serem consideradas como criminosas, e do que ser
acusado de malfeitoria o que move as suas almas para a piedade relativamente a
Deus e relativamente aos homens; daí acontecer que acabam por detestar as leis,
por tudo ousar contra os magistrados, por julgar que não é vergonhoso mas louvável empreender sedições por uma tal causa e tentar qualquer actuação, mesmo
violenta. Visto que tal é a natureza humana, é evidente que as leis que dizem
respeito às opiniões ameaçam não os criminosos mas sim os homens de carácter
independente, que elas são feitas menos para conter os maus do que para irritar
os mais honestos, e que, consequentemente, não podem ser mantidas sem grande
perigo para o Estado.
Espinosa, Holanda, Tratado Teológico-Político, 1570
256
Quando o zelo, mal compreendido, pelas coisas divinas, levou alguns senadores a
aconselhar o rei Estevão a que, seguindo o exemplo de outros povos onde o sangue
corria a jorros, entre irmãos, por divergências de opiniões religiosas, adoptasse meios
rigorosos para conduzir todos a uma só e mesma opinião, ele respondeu: “Enquanto
rei, reino sobre o povo mas não sobre os espíritos.”
Felix Bentkowski, Polónia
História da Literatura Polaca, 1814
136 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
257
Se ninguém pode renunciar à liberdade de julgar e de opinar como quer, e se cada um
é senhor dos seus próprios pensamentos por um direito superior da Natureza, nunca
se poderá tentar num Estado, sem que a tentativa tenha o mais infeliz dos resultados,
fazer com que os homens de opiniões diversas e opostas, só falem segundo as determinações do soberano; com efeito, mesmo os mais hábeis, para não falar da multidão, não sabem calar-se. É um defeito comum aos homens o de confiar aos outros
os seus desígnios, mesmo quando o silêncio é exigido; portanto será muito violento
o governo que nega ao indivíduo a liberdade de dizer e de ensinar aquilo que pensa;
pelo contrário, é moderado o governo que concede esta liberdade ao indivíduo.
Espinosa, Holanda, Tratado Teológico-Político, 1570
258
Qualquer juízo de uma pessoa privada relativamente a uma lei editada em matéria
política para o bem público, não dispensa as obrigações que esta lei impõe. Mas se,
na verdade, a lei incide sobre coisas que não se inscrevem no limite da autoridade do
magistrado (por exemplo, a obrigação, para o povo ou para uma fracção do povo, de
aderir a uma religião que lhe seja estranha e de se juntar ao culto e às cerimónias de
uma outra igreja), nestes casos os homens não são obrigados a obedecer a esta lei,
contra a sua consciência. Porque a sociedade política só foi instituída para assegurar
a cada homem a fruição das coisas deste mundo. O cuidado da alma de cada homem
e o das coisas do céu – que não fazem parte do bem comum nem a ele podem ser
subordinadas – pertence inteiramente a cada homem.
John Locke, Inglaterra, Carta sobre a Tolerância, 1690
259
Concluo legitimamente de todos estes princípios que a primeira e mais indispensável de todas as nossas obrigações, é a de não agirmos contra a inspiração da nossa
consciência; e que toda a acção que é feita contra as luzes da consciência, é essencialmente má; de modo que, como a lei de amar a Deus nunca pode ser dispensada,
pois o ódio a Deus é um acto essencialmente mau, assim a lei de não chocar as luzes
da consciência é [feita] de tal modo que Deus não a pode dispensar: dado que seria
realmente permitir-nos que O desprezássemos ou que O odiássemos; acto criminoso
intrinsece e por sua natureza. Portanto, há uma lei eterna e imutável, que obriga o
homem, sob pena do maior pecado mortal que possa cometer, a nada fazer contra os
ditames da consciência ou que possa merecer o seu desprezo.
Pierre Bayle, França, Comentário Filosófico, 1686
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 137
260
A intolerância, ao colocar a força do lado da fé, colocou a coragem do lado da dúvida;
o furor dos crentes exaltou a vacuidade dos incrédulos e o homem chegou, deste
modo, a considerar meritório um sistema que naturalmente deveria ter considerado
como uma infelicidade. A perseguição provoca a resistência. A autoridade, ao ameaçar uma opinião, qualquer que ela seja, excita para a manifestação desta opinião
todos os espíritos que possuem algum valor. Há no homem um princípio de revolta
contra todo o constrangimento intelectual. Esse princípio pode ir até à fúria; pode
ser causa de muitos crimes, mas prende-se com tudo o que há de nobre no fundo da
nossa alma.
Benjamin Constant, Suiça-França, Princípios de Política, 1818
261
Através de um longo processo de secularização (...) o fanatismo da descrença mantém-se ainda sob a influência das suas origens bíblicas. Na nossa civilização ocidental, pudemos encontrar muitas vezes nas ideologias profanas essa característica de
absolutismo, esse ódio a toda a opinião diferente, essa convicção agressiva, essa
inquisição sobre o pensamento do outro, que lhes vem sempre da pretensão que
defendem de só elas representarem a Verdade. Nada mais resta à fé filosófica do que
admitir a evidência, por dolorosa que seja: perante aquele que interrompe o diálogo,
que só admite a razão em certas condições, a melhor boa vontade fica impotente
para manter a comunicação.
Neste caso, não posso compreender que se possa ficar neutro. Compreendê-lo-ia se
pudéssemos considerar a intolerância como um fenómeno inofensivo, uma estranha
anomalia (...)
À intolerância – e só a ela – não podemos responder a não ser pela intolerância; é por
isso que nos devemos opor ao exclusivismo quando vemos alguém procurar divulgar
a sua fé, não a oferecendo ao juízo dos outros, mas procurando impô-la por leis, pelo
constrangimento.
Karl Jaspers, Alemanha, A Fé Filosófica, 1954
262
Uma religião que tem por devisa: fora dos meus dogmas não há salvação, torna-se
facilmente violenta e feroz pelo mínimo contacto com o poder material. O gládio do
poder civil embriaga-se, segundo a expressão dos profetas; tal gládio torna-se cego
e furioso nas suas mãos. Nenhuma lei consegue regular o seu uso; esse uso torna-se
abuso na primeira oportunidade, porque é abuso no seu princípio; e o único meio de
138 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
impedir que a religião não se magoe e não magoe a humanidade com essa espada
perigosa, é não a deixar um só momento entre as suas mãos.
Alexandre Vinet, Suissa,
Ensaio sobre a Manifestação das Convicções Religiosas, 1842
263
Uzbeck a Mirza, em Ispahan
Se há que raciocinar sem prevenção, não sei Mirza, se não será bom que num Estado
haja várias religiões.
Notamos que aqueles que vivem nas religiões toleradas se tornam geralmente mais
úteis à pátria do que os que vivem na religião dominante; porque, afastados das
honras, não podendo distinguir-se a não ser pela sua opulência e pela sua riqueza,
são levados a adquiri-las pelo trabalho e a aceitar os empregos mais penosos da
sociedade.
De resto, como todas as religiões contêm preceitos úteis à sociedade, é bom que
sejam observadas com zelo. Ora o que haverá mais capaz de animar o zelo senão a
sua multiplicidade?
São rivais que nada perdoam. A inveja desce até aos particulares: cada um se mantém
à defesa, temendo fazer coisas que desonrem o seu partido e o exponham ao desdém
e às censuras sem perdão do partido contrário.
Assim, sempre se notou que uma seita nova introduzida num Estado era o meio mais
seguro para corrigir todos os abusos de uma antiga [seita].
Pode dizer-se que não é do interesse do Príncipe ter de suportar várias religiões no
seu Estado: mesmo que todas as seitas do mundos nele se reunissem, isso não lhe
traria qualquer prejuízo, porque não há nenhuma que não prescreva a obediência e
não pregue a submissão.
Montesquieu, França, Cartas Persas, 1721
O homem e o cidadão
A essa diferença reconhecida e aceite, é preciso agora conceder direitos. Efectivamente,
não basta enveredar pela não violência para regular os conflitos reais, não basta
colocar entre parênteses aquilo que separa para que o Estado justo nasça; há que reconhecer ao outro, não só as mesmas obrigações mas também os mesmos direitos que
reconhecemos a nós mesmos, visto que, de ora em diante, se há sentimentos religiosos,
há apenas uma religião civil. A tolerância não passará de um engano se reconhecer o
homem abstracto mas não o cidadão vivo.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 139
O que é válido no seio de uma religião clerical dividida, é igualmente verdadeiro à escala
de todas as comunidades humanas e para todas as diferenças humanas. Se reconhecemos plenos e iguais direitos ao herético de ontem, temos também de os reconhecer aos
idólatras, aos pagãos ... Aquilo que chamamos os vícios do Outro, na realidade, apenas
designa a defesa de interesses usurpados, que nos repugna partilhar.
A intolerância civil e a intolerância religiosa são inseparáveis, e é por essa razão que há
que pôr termo a uma e a outra por um “contrato social”, sem mais nos demorarmos na
“ longa e enfadonha disputa sobre toda a controvérsia que divide as religiões”.
Neste momento decisivo do combate pela tolerância, quatro textos capitais: o Equitis
Polini de Szlichtyng, o Voltaire do Dicionário Filosófico, Locke e a sua Carta sobre a
Tolerância e, finalmente, o Rousseau do Contrato Social. A exemplo de tantos outros,
deixemo-los germinar, sem esquecer que, se Atenas tem o sufrágio de todos os historiadores, outros povos existem, com uma outra linguagem no fraseado da História.
264
Por consequência, se quisermos que a desumanidade dê lugar à humanidade, devemos procurar incessantemente os meios de atingir esse objectivo. Esses meios são
em número de três: Em primeiro lugar, os homens devem cessar de confiar demasiado
nos sentidos, e, atendendo à comum fragilidade humana, devem reconhecer que é
indigno sobrecarregarem-se mutuamente de ódio por razões fúteis; deverão, de um
modo geral, perdoar-se as lutas, danos e ofensas do passado. Chamaremos a isso
apagar o passado. Em segundo lugar ninguém deverá impor os seus princípios (filosóficos, teológicos ou políticos) a quem quer que seja; pelo contrário, cada um deverá
permitir a todos os outros que façam valer as suas opiniões e que gozem em paz
aquilo que lhes pertence. Chamaremos a isso a tolerância mútua. Em terceiro lugar,
todos os homens deverão tentar, num esforço comum, perceber o que é preferível
fazer, e para o conseguir, devem conjugar as suas reflexões, as suas aspirações e as
suas acções. É aquilo a que chamaremos conciliação.
João Amos Comenius, escritor checo, 1592-1670,
De Rerum Humanarum Emendatione Consolatio Catolica
265
É sinal muito certo de baixeza de espírito falar mal e com parcialidade do seu adversário, ou dos inimigos do seu príncipe ou dos adeptos de uma seita particular ou dos
estrangeiros, sejam eles Judeus, Mouros, Gentios ou Cristãos, porque (...) o bem e o
mal estão em todo o lado. Basta escutar o mal que os homens dizem sobre os países
onde viajaram, pois, se condenam totalmente os países estrangeiros e louvam totalmente o seu, tais homens são ou parciais, ou desatentos, ou mal considerados, ou
140 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
tolos, ou insensatos; um tal estado de espírito não permite provar discernimento nem
actuar com sabedoria em qualquer domínio que seja (...) Todos os homens de bem,
sejam eles Judeus, Mouros, Gentios, Cristãos ou de qualquer outra seita, são de uma
mesma terra, de uma mesma casa, de um mesmo sangue.
Furio Ceriol, Espanha, Conselho e Conselheiros do Príncipe, 1556
266
Não sou daqueles que são fanatizados pelo seu país ou ainda por uma nação particular; sou pelo serviço ao género humano, na sua totalidade; porque considero o Céu
como Pátria e todos os homens de boa vontade como cidadãos desse Céu; e prefiro
realizar muitas acções boas entre os Russos do que poucas entre os Alemães e outros
Europeus (...) Porque a minha inclinação e o meu gosto vão para o bem geral.
Leibniz, Alemanha, Carta a Pedro I, 16 de Janeiro 1716
267
Ser herético não é um delito político mas sim eclesiástico e, portanto, sujeito às penas
da Igreja e não às punições civis. Porque Igreja e Estado são bem distintos um do
outro e não saberiam ser confundidos sem engendrar perturbações em todas as coisas; os flagelos atrozes, as guerras, os exemplos tristes de Igrejas e de Estados simultaneamente derrubados são testemunho disso. A Igreja só recebe no seu seio aqueles
que se conformam com os preceitos de piedade prescritos por Cristo; só aqueles que
não se afastarem do modelo serão defendidos e protegidos; o Estado aceita e dá
assistência a homens de todas as espécies de religiões: mesmo os idólatras, mesmo
os pagãos, mesmo os heréticos, mesmo os apóstatas; também os Estados se tornam
florescentes pela população numerosa e pela concórdia entre os cidadãos, para os
quais “não há diferença entre um Romano e um Rútulo”. Conquanto que todos vivam
em paz e na fidelidade ao Estado, o qual, no meio de tantas desigualdades, a todos
concede a sua ajuda de um modo equitativo.
Jonas Szlichtyng, Polónia, Equitis Poloni, Apologia pro veritate accusata, 1654
268
Artigo “Tolerância”
A discórdia é o grande mal do género humano e a tolerância é o seu único remédio.
Ninguém deixa de concordar com esta verdade, seja quando medita a sangue frio no
seu gabinete seja quando examina pacificamente a verdade com os seus amigos. Por
que razão os mesmos homens que admitem em privado a indulgência, a beneficência
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 141
e a justiça, se erguem em público com furor contra estas virtudes? Porquê? É porque o
seu deus é o interesse, é porque sacrificam tudo a esse monstro que adoram.
Voltaire, França, Dicionário Filosófico, 1764
269
O que poderia a filosofia dizer da religião ou de si própria, que fosse pior ou mais
frívolo do que aquilo que desde há tanto tempo os vossos bramidos jornalísticos lhe
imputaram? Só tem de repetir aquilo que pregastes que ela era, no decurso de mil e
mil controvérsias, capuchinhos não filosóficos que sois, e terá dito o pior.
A filosofia fala de assuntos religiosos e filosóficos de um modo diferente daquele que
falais. Vós falais sem terdes estudado, ela fala depois de ter estudado; vós dirigi-vos
à paixão, ela dirige-se à inteligência; vós injuriais, ela ensina; vós prometeis o céu e
a terra, ela nada mais promete que a verdade; vós exigis que ela tenha fé na vossa
fé, ela não exige que acreditem nos seus resultados; exige o exame pela dúvida; vós
apavorais, ela acalma.
Karl Marx, Editorial do “Kölnische Zeitung”, 1842
270
Suprimi a injusta distribuição dos direitos, mudai as leis, suprimi a pena de tortura,
e tudo voltará a ser seguro e confiante; aqueles que têm uma religião diferente da
do magistrado tanto mais considerarão que devem contribuir para a paz do Estado
quanto mais descobrirem que a sua condição é melhor do que em qualquer outro
lado: todas as igrejas particulares, entre si discordantes, serão como guardiãs da paz
pública, vigiarão com severidade os seus costumes recíprocos, para que nenhuma
revolta se desencadeie, e para que nenhuma forma de governo seja alterada; os seus
membros podem esperar mais e melhor do que aquilo que já têm, quer dizer, uma
sorte igual à dos outros cidadãos sob uma autoridade soberana, justa e moderada.
Pois se a igreja à qual pertence o soberano é o suporte mais firme do governo civil, e
isto pela única razão (...) de que o magistrado lhe é propício e as leis lhe são favoráveis,
como será mais seguro o Estado e como serão mais numerosos os guardas quando os
bons cidadãos, pertencentes a qualquer igreja, gozarem da mesma benevolência do
soberano, da mesma equidade das leis, sem qualquer distinção de religião. A severidade das leis só seria temida pelos criminosos e por aqueles que atacassem a paz civil.
(...)
É por isso que a paz, a equidade e a amizade devem ser sempre cultivadas sem privilégio e num espírito de igualdade, entre as diversas igrejas, tal como entre simples
particulares.
142 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Para tornar as coisas mais claras com um exemplo, suponhamos que há em
Constantinopla duas igrejas, a dos Remontrantes e a dos Anti-Remontrantes. Dir-se-á
que uma delas tem o direito de punir os membros da igreja dissidente (dissidente porque difere, de facto, nos dogmas ou nos ritos), de os despojar da sua liberdade ou dos
seus bens, o que vemos fazer noutros lados, e de os punir com o exílio ou com a pena
capital? (...) Se uma dessas igrejas tem verdadeiramente o poder de perseguir a outra,
perguntarei então: qual das duas e com que direito? Responder-me-ão certamente: a
ortodoxa, que agirá contra aquela que se engana, quer dizer, contra a herética. É usar
palavras especiosas para nada dizer. Qualquer igreja é ortodoxa para si mesma, estando, para as outras, no erro ou na heresia; cada uma acredita ser verdadeiro aquilo em
que acredita e condena como erro aquilo que dela difere. É por isso que, quando se
trata da verdade dos dogmas ou da rectidão do culto, a disputa é igual num ou noutro
lado e nenhuma sentença pode ser dada por um juiz, seja em Constantinopla, seja em
toda a terra. A decisão sobre uma tal questão apenas pertence ao juiz supremo de
todos os homens, e só a ele pertence castigar os que estão no erro.
John Locke, Inglaterra, Carta sobre a Tolerância, 1690.
271
A verdadeira tolerância é muitas vezes penosa: permitir que se exprimam e se expandam ideias que nos parecem perniciosas; ver o adversário prosseguir no seu caminho
sem encontrar obstáculos, é difícil e desencorajante. A indiferença não passa de falsa
tolerância e é característica de épocas destituídas quer de uma filosofia clara de vida
quer de bases sólidas na sua tradição moral.
Sir Richard Winn Livingstone, Reino Unido,
A Tolerância na Teoria e na Prática, 1954
272
A liberdade de consciência é um direito natural; e aquele que a quiser obter deve
concedê-la ao seu próximo.
Oliver Cromwell, Inglaterra,
Discurso ao Parlamento, 1654
273
Discurso pronunciado aquando da segunda leitura de uma lei sobre a melhoria
de condições legais dos dissidentes protestantes.
Defenderei constantemente os direitos da consciência, enquanto tal, e não nos seus
aspectos particulares, contra os princípios gerais. Um pode ter razão, o outro pode
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 143
enganar-se; mas se tenho mais força do que o meu irmão, empregá-la-ei para o ajudar
e não para o oprimir na sua fraqueza; se tenho mais luz, ela servir-me-á para o guiar
e não para o encandear.
Edmund Burke, Grã-Bretanha, 1773
274
Sim, é verdade que queremos que a manifestação das convicções religiosas seja protegida, mas protegida como um direito de todos, e, consequentemente, sem distinção
de crenças. Não queremos que uma crença particular seja protegida, nem, em geral,
que [sejam protegidos] aqueles que acreditam nalguma coisa, excluindo-se aqueles
que em nada acreditam. Não queremos que se proteja, pela mesma razão que não
queremos que se persiga. Pois do direito de proteger decorre irresistivelmente o
direito de perseguir. Tentamos limitar esse direito; queremos que pare precisamente
no ponto em que a protecção acaba; proibimos-lhe que vá mais longe; mas o limite é
arbitrário, e, em boa lógica, é impossível conceber como poderíamos negar à sociedade o direito de perseguir, depois de lhe termos reconhecido o de proteger.
Alexandre Vinet, Suissa,
Ensaio sobre a Manifestação das Convicções Religiosas, 1842
275
A livre comunicação das ideias é essencial à vida em sociedade. O homem que mente
ou que engana, trai a sociedade; aquele que lhe recusa os seus talentos e as verdades
que lhe são necessárias, é um membro inútil; aquele que levanta obstáculos à comunicação das ideias é um inimigo público, um violador ímpio da ordem social, um tirano
que se opõe à felicidade dos humanos. (...)
A tolerância universal, a liberdade de escrever e de pensar, são os remédios infalíveis
que um soberano esclarecido pode trazer aos preconceitos do seu povo (...) Apenas a
liberdade de pensar, de falar e de escrever poderá esclarecer as nações, curá-las dos
seus preconceitos, fazer desaparecer os seus abusos, reformar os seus costumes,
aperfeiçoar os seus governos, assegurar os poderes, fazer florescer as ciências, levar
os homens à virtude.
Pierre Henri d’Holbach, 1723-1789, França, Ensaio sobre os Preconceitos
276
Mas (...) voltemos ao direito e fixemos os princípios sobre este ponto importante.
O direito que o pacto social dá ao Soberano sobre os seus súbditos, não ultrapassa,
como já disse, os limites da utilidade pública. Os súbditos não têm que dar conta ao
144 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Soberano das suas opiniões, a não ser na medida em que essas opiniões importem
para a comunidade. Ora, importa bastante ao Estado que cada cidadão tenha uma
Religião que o faça amar os seus deveres; mas os dogmas dessa Religião não interessam nem ao Estado nem aos seus membros, a não ser que esses dogmas se relacionem com a moral e com os deveres que aquele que a professa é suposto cumprir para
com os outros. Mais ainda, cada um pode ter as opiniões que quiser sem que caiba ao
Soberano ter de conhecê-las; pois como ele não tem competência no outro mundo,
não lhe diz respeito a sorte que os seus súbditos possam ter numa vida futura, contanto que sejam bons cidadãos nesta (...)
Os dogmas da religião civil devem ser simples, pouco numerosos, enunciados com
precisão, sem explicações nem comentários. A existência da Divindade poderosa,
inteligente, benfeitora, previdente e providente, a vida futura, a felicidade dos justos,
o castigo dos maus, a santidade do Contrato social e das Leis: eis dogmas positivos.
Quanto aos dogmas negativos, limito-os a um só, a intolerância: ela insere-se nos
cultos que excluímos.
Aqueles que distinguem a intolerância civil e a intolerância teológica, na minha opinião, enganam-se. Estas duas intolerâncias são inseparáveis. É impossível viver em
paz com pessoas que consideramos condenadas; amá-las seria odiar Deus, que as
castiga; é absolutamente necessário que as convertamos ou que as atormentemos.
Em todo o lado em que a intolerância religiosa é admitida, é impossível que não tenha
um qualquer efeito civil; e logo que o tem, o Soberano deixa de ser Soberano, mesmo
temporalmente: a partir daí os verdadeiros senhores são os Padres, os reis nada mais
são do que os seus oficiais.
Agora que já não há e que não pode haver uma Religião nacional exclusiva, devemos tolerar todas aquelas que toleram as outras, enquanto os seus dogmas nada têm de contrário
aos deveres do Cidadão. Mas quem ousar dizer fora da Igreja não há salvação, deve ser
expulso do Estado; a menos que o Estado seja a Igreja e que o Príncipe seja o Pontífice.
J.-J. Rousseau, Génova, Do Contrato social, 1762
277
(...) Agora parece que este título – califa do Profeta de Deus – rodeado de todas as considerações de que falámos, tal como daquelas que calámos, constituiu uma das causa
do erro no qual caiu o comum dos Muçulmanos, ao imaginar que o califado era uma
função religiosa, e que aquele que estava investido de poder sobre os Muçulmanos,
ocupava entre eles o lugar que pertencia ao Profeta de Deus (...)
Tudo isto provocou a extinção das faculdades de investigação e de especulação intelectual nos Muçulmanos, que foram atingidos de paralisia em matéria de filosofia
política e em tudo o que dizia respeito ao califado e aos califas.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 145
Na realidade, a religião islâmica está inocente deste abuso da noção de califado, tal
como os Muçulmanos a entendem, com a sua aura de ambição, de temor, de esplendor e de força. O califado não depende de modo algum dos projectos divinos, tal
como de resto a justiça e as outras funções de governo e os postos do Estado. Tratase de projectos políticos específicos, que a religião não tem de conhecer, que ela não
reconheceu, nem negou, nem prescreveu, nem proibiu, deixando-nos recorrer aos
juízos da razão, às esperanças das nações e às regras da política.
‘Al ‘Abd al-R zeq, Egipto,
O Islão e os Princípios do Governo, 1925
278
Entrámos nesta longa e muito difícil questão dos direitos da consciência, para retirar
os perseguidores do entricheiramento em que se colocam quando se lhes pergunta
se achariam bem que os outros os perseguissem. Respondem que seria muito mal
feito, dado que ensinam a verdade; mas que precisamente por isso lhes deverá ser
permitido constranger e vexar os Heréticos. Foi preciso procurar os fundamentos
mais profundos da falsidade dessa resposta (...) A conclusão que deles tiramos é
que, se fosse verdadeiro que Deus tivesse ordenado aos Seguidores da verdade que
perseguissem os Seguidores da mentira, estes, ao ouvir tal ordem, não só seriam
obrigados a perseguir os Seguidores da verdade, como fariam muito mal se não os
perseguissem, e seriam desculpados perante Deus desde que a ignorância em que se
encontravam não fosse fingida e maliciosa.
Isto mostra manifestamente que a doutrina dos perseguidores (...) abre a porta a mil
combustões furiosas, nas quais o partido da verdade teria muito que sofrer; e isto,
sem poder legitimamente queixar-se.
Pierre Bayle, 1647-1706, França
ÁSIA: A VIA CHINESA
Em jeito de conclusão, e também ultrapassando esta sequência da razão combatente,
apresentamos um grupo elíptico de textos através dos quais o universal autêntico bloqueia todos os particularismos. Uma das suas qualidades - e não é a menor – consiste
em dar relevo às duas principais linhas de força que este livro tenta destacar: por um
lado a pretensão insustentável de argumentar a partir de uma visão do homem cuja
universalidade não é evidente para todos, procurando impô-la aos outros, e se for preciso, pela força; por outro lado a necessidade de diálogo com todos aqueles que sentimos
diferentes de nós (outras civilizações, outras crenças, minorias ...) numa linguagem laica
146 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
e unívoca, à procura de uma compreensão mútua e de uma coexistência que exclua
todo o proselitismo.
No seio de uma comunidade nacional, tal como entre comunidades estrangeiras, o
essencial é compreender estas diferenças e aceitá-las como tal, sem mais delas fazer
obstáculos determinantes para uma política de coexistência solidária.
Aparentemente indiferente à exigência política de coexistência e aos conflitos entre
crenças, o hino indiano continua a cantar um Deus múltiplo e uno, fora da acção do
tempo. A ordem perfeita, a ordem musical, reaparece, mais uma vez, como postulação
última do humano.
279
Nunca as inimizades são apaziguadas pela inimizade, antes são apaziguadas pela
não-inimizade. Esta é a lei eterna.
Dhammapada (axiomas budistas), traduzido do Pali
280
Disputas sobre as cerimónias chinesas
[Maigrot], bispo francês da China, não só declarou que os ritos observados pelos mortos
eram supersticiosos e idólatras, como também declarou que os letrados eram ateus: era
este o sentimento de todos os rigoristas de França. Estes mesmos homens que tanto
protestaram contra Bayle, que tanto o censuraram por ter dito que uma sociedade de
ateus podia subsistir, que tanto escreveram que um tal estabelecimento era impossível,
sustentavam friamente que tal estabelecimento florescia na China, no mais sábio dos
governos. Os Jesuítas tiveram então de combater os missionários, seus confrades, mais
do que os mandarins e do que o povo. Apresentaram-se em Roma [dizendo] que parecia
incompatível que os chineses fossem ao mesmo tempo ateus e idólatras. Censurava-se
os letrados por apenas admitirem a matéria: nesse caso, era difícil que invocassem as
almas dos seus pais e a de Confúcio. Uma dessas censuras parece destruir a outra, a
menos que se pretenda que na China se aceite o contraditório, o que muitas vezes acontece entre nós; mas era preciso estar bem a par da sua língua e dos seus costumes para
desenredar esse contraditório. O processo do Império da China demorou muito tempo
no tribunal de Roma; contudo, os Jesuítas foram atacados por muitos lados.
Um dos seus sábios missionários, o Padre Lecomte, tinha escrito nas suas Memórias da
China que “este povo conservou durante dois mil anos o conhecimento do verdadeiro
Deus; que ofereceu sacrifícios ao Criador no mais antigo templo do universo; que a
China praticou as mais puras lições de moral enquanto que a Europa estava no erro e
na corrupção”.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 147
(...)
O Imperador Kang-hi recebeu primeiro o patriarca de Turnon com muita bondade.
Mas podemos imaginar qual foi a sua surpresa quando os intérpretes desse legado
lhe comunicaram que os Cristãos que pregavam a sua religião no Império não estavam de acordo entre si, e que esse legado vinha para acabar com uma contenda sobre
a qual a corte de Pequim nunca tinha ouvido falar. O legado disse-lhe que todos os
missionários, exceptuando os Jesuítas, condenavam os costumes antigos do império
e que suspeitavam mesmo que sua Majestade chinesa e os letrados fossem ateus que
apenas admitiam um céu material. Acrescentou que havia um sábio, bispo de Cunon,
que explicaria tudo isto se Sua Majestade se dignasse ouvi-lo. A surpresa do monarca
redobrou quando lhe disseram que havia bispos no seu Império. Mas a do leitor não
será menor, vendo que esse príncipe indulgente levou a sua bondade ao ponto de
permitir que o bispo de Cunon lhe viesse falar contra a religião, contra os usos do país
e contra ele próprio. O bispo de Cunon foi admitido à audiência. Sabia muito pouco
chinês. O Imperador pediu-lhe primeiro a explicação de quatro caracteres pintados
a ouro, por cima do seu trono. Maigrot só conseguiu ler dois; mas defendeu que as
palavras king-tien que o próprio Imperador escrevera nas tabuínhas, não significavam adorai o Senhor do Céu. O Imperador teve a paciência de lhe explicar, por meio
de intérpretes, que era esse precisamente o significado de tais palavras. Dignou-se
entrar num longo exame. Justificou as homenagens que se prestavam aos mortos. O
bispo foi inflexível. Podemos crer que os Jesuítas têm mais crédito na corte do que ele.
O Imperador, que por lei o podia mandar matar, contentou-se em bani-lo. Ordenou
que todos os Europeus que quisessem ficar no seio do Império deveriam, doravante
receber cartas credenciais e fazer um exame.
Quanto ao legado de Turnon, teve ordem para sair da capital. Logo que foi para
Nanquim, ordenou um mandamento que condenava em absoluto os ritos da China
relativamente aos mortos, e que proibia o uso da palavra que o Imperador usara para
significar o Deus do céu.
Voltaire, França, O Século de Luis XIV, 1751
281
[O Imperador Yong-tcheng aos missionários jesuítas:]
Dizeis que a vossa lei é uma lei de verdade; eu acredito; se pensasse que era falsa,
quem me impediria de destruir as vossas igrejas e de vos expulsar? As leis falsas são
aquelas que, sob pretexto de conduzirem à virtude, sopram revolta no espírito (...)
Mas o que diríeis se eu enviasse uma grupo de bonzos e de lamas ao vosso país, para
aí pregarem a lei deles? Como é que os receberíeis? Quereis que todos os chineses
148 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
se tornem Cristãos; a vossa lei pede-o, sei-o bem; mas nesse caso, o que aconteceria
aos súbditos dos vossos reis? Aqueles que fazeis Cristãos só vos reconhecem a vós;
em tempos perturbados não escutariam outra voz senão a vossa. Sei bem que actualmente nada há a temer, mas quando os navios vierem aos milhares, em grande
número, então poderia haver um desastre.
Yong-tcheng, 1677-1736, China,
Terceiro Imperador da dinastia manchú Ts’ing
282
[A bula Ex illa die do papa Clemente XI, ordenando que os Cristãos não mais prestassem
honras tradicionais a Confúcio e aos antepassados, chegou ao Imperador K’ang-hi que
anota:]
Tendo lido esta bula, permito-me perguntar como é que esses missionários incultos
são capazes de tratar o elevado pensamento chinês? (...) Reconheço agora que a bula
do papa não traz nada de novo e que a religião cristã não é melhor do que a idolatria
e as religiões inferiores dos budistas e dos taoistas. É um contra-senso absoluto, inaudito. De ora em diante proíbo os missionários de propagarem a sua religião na China,
a fim de evitar perturbações.
K’ang-hi, 1662-1722, China,
Segundo Imperador da dinastia manchú Ts’ing
283
[O Imperador K’ieng-long, por um édito de 10 de Dezembro de 1785, liberta todos os
missionários europeus que tinha mandado prender por se terem introduzido clandestinamente na China:]
Apenas os condenaram a prisão perpétua, porque se reconheceu que esses criminosos não tinham tido outras intenções que não fosse pregar a religião, e que não eram
culpados de outros crimes (...) Embora, segundo as leis, tivessem merecido penas de
criminosos, no entanto, eu, o Imperador, tendo compaixão da sua ignorância, quis
reprimi-los pela prisão.
Agora, vendo todos esses criminosos que reconhecemos serem estrangeiros e ignorarem a nossas leis, sujeitos à sentença de uma prisão perpétua, sinto-me tocado
de compaixão. É por isso que, concedendo uma nova graça a Jean de Sassari e aos
outros criminosos, seus confrades, em número de doze, ordeno que sejam postos em
liberdade. Se alguns deles quiserem ficar em Pequim, permito que os conduzam imediatamente às igrejas e que aí exerçam tranquilamente as suas funções. Se quiserem
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 149
regressar à Europa, é preciso dar conhecimento ao tribunal que designará um mandarim para os conduzir a Cantão. Quero conceder esta graça que está acima das leis,
para manifestar a minha clemência para com os estrangeiros dos países longínquos.
Édito do Imperador K’ieng-long, China, 1785
284
Alguns Europeus, atraídos pelo desejo de aproveitar as sábias instituições dos nossos soberanos, empreenderam uma travessia de várias vezes dez mil estádios, para
chegar aqui. Corrigiram e aperfeiçoaram as regras de calcular o tempo. Em tempo de
guerra fabricaram canhões e outras armas. Deputados junto dos Russos, mostraram
uma sincera dedicação e conseguiram fazer um tratado de paz.
Os seus trabalhos e os seus operários são muito numerosos. Nas províncias em que
residem, não fazem mal a ninguém, não causam perturbação em lado nenhum. Não
seduzem a multidão com falsas doutrinas, sob nenhum pretexto suscitam negócios.
Nos pagodes dos lamas e dos outros bonzos de Buda, dos sacerdotes taoistas, é permitido queimar perfumes e realizar outras cerimónias. Não sendo os Europeus culpados de nenhuma infracção às leis, não parece justo proibir a sua religião.
Convém deixar subsistir, como antigamente, todas as igrejas dos Cristãos, deixar
livres, como de costume, todas as pessoas que aí vão levar perfumes ou outras oferendas; não as devemos impedir. Quando tiver aparecido o decreto será bom enviá-lo
a todos os governadores da província.
Aprovado por K’ang-hi, no Vo dia da II Lua do XXXIo ano de K’ang-hi
Édito do Imperador K’ang-hi, China, 1692
285
Os grandes ministros da casa real de Ts’in disseram todos ao rei de Ts’in: “Os homens (dos
países) dos senhores feudais que vêm servir Ts’in1, a maior parte deles nada mais faz do
que espiar em Ts’in em proveito dos seus senhores. Pedimos que os estrangeiros sejam
imediatamente expulsos.” Li Sseu, segundo a deliberação, devia também estar entre os
expulsos. Então Sseu apresentou ao rei um memorando dizendo: “Ouvi que os funcionários opinavam pela expulsão dos estrangeiros. Considero que seria um erro (...)”
Actualmente, Vossa Majestade manda vir o jade do monte Kuen, possui tesouros
de Suei e Ho, usa pérolas brilhantes como a lua, cinge-se com uma espada T’aingo,
monta cavalos Sien-li, implanta estandartes (ornados de imagens) de fénix esverdeadas, coloca tambores de pele de crocodilo sobrenatural. Entre todos esses tesouros
não há um só que Ts’in produza. Por que é que Vossa Majestade os ama?
1 Nesta época e de um modo geral durante todo o tempo do feudalismo, muitas vezes os homens de talento deixavam
as suas terras para servir um príncipe estrangeiro e por vezes mesmo vários.
150 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
“Actualmente, na escolha das pessoas, as coisas não se passam deste modo. Não se
pergunta se estes homens convêm ou não, não se discute se têm ou não têm razão, os
que não são de Ts’in são expulsos, os que são estrangeiros são exilados. Se assim for,
então o que apreciais são as cores, a música, as pérolas e o jade, e o que negligenciais
é o povo. Não se trata de uma doutrina com a qual tenhamos os pés no interior dos
mares e pela qual se governam os senhores feudais.
(...)
“Agora repelimos o povo para aumentar os países inimigos, mandamos embora os
hóspedes estrangeiros para servir os senhores feudais, fazemos com que os letrados
do império recuem e não ousem dirigir-se para oeste, que parem sem entrar em Ts’in.
É o que se chama fornecer armas aos salteadores e dar provisões aos ladrões.
“Ora, entre as coisas, há muitas que sem provirem de Ts’in podem ser consideradas preciosas, e são numerosos os letrados não provenientes de Ts’in que lhe querem ser fiéis.
Se actualmente se exilam estrangeiros para aumentar os países inimigos, se se diminui
o povo para aumentar os adversários, então ter-nos-emos despovoado a nós mesmos no
interior e no exterior teremos implantado ressentimento nos senhores feudais. (...)”
O rei Ts’in suprimiu então o decreto de expulsão contra os estrangeiros e restituiu a
Li Sseu os seus cargos.
Ts’in, China, Memorando ao rei Che-houang
lamentando a expulsão dos estrangeiros, 273 a. C.
286
K’i-yin e os seus colegas, tendo-Nos, anteriormente, dirigido uma petição na qual
pediam que aqueles que professam a religião cristã com uma intenção virtuosa fossem isentos de culpabilidade, pudessem construir locais de culto, neles se reunissem,
[pudessem] venerar a cruz e as imagens, recitar orações e fazer prédicas, sem deparar
em tudo isso com o mínimo obstáculo, demos o Nosso consentimento imperial a
estes diversos pontos, em toda a extensão do Império.
Efectivamente, a religião do Senhor do Céu, tendo por objectivo essencial impelir os
homens para a virtude, não tem nada de comum com seitas ilícitas, quaisquer que
elas sejam. Deste modo, acordámos, no tempo, que fosse isenta de toda a proibição, e
devemos fazer em seu favor, todas as concessões que agora são solicitadas. A saber:
Que todas as igrejas cristãs que foram construídas no reinado de K’ang-hi, nas diferentes
províncias do Império, e que ainda existem, tendo o seu destino primitivo sido provado,
sejam restituídas aos Cristãos das localidades respectivas em que elas se encontram,
exceptuando no entanto as que foram convertidas em pagodes e em casas particulares.
E se acontecer, nas diferentes províncias, que depois da recepção deste édito, as
autoridades locais exercerem perseguição contra aqueles que professam em verdade
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 151
a religião cristã sem cometerem nenhum crime, deve-se infligir a essas autoridades o
castigo merecido pela sua conduta repreensível.
Mas aqueles que se cobrem com a máscara da religião para fazer o mal, os que convocam os habitantes dos distritos longínquos para formar assembleias subversivas,
como também os malfeitores, membros de outras religiões que, usurpando falsamente o nome de Cristãos, dele se servem tendo como objectivo a desordem, todas
essas pessoas, culpadas de acções perversas, e, por isso mesmo, infractoras das leis,
deverão ser colocadas entre os criminosos e punidas segundo as leis do Império.
É também preciso acrescentar que de modo algum é permitido que os estrangeiros
penetrem no interior do país para aí pregar a religião, porque as reservas feitas a esse
respeito devem permanecer claramente estabelecidas.
Levai isto ao conhecimento de quem de direito.
Respeitai isto.
XXVo Dia da Primeira Lua do XXVIo ano de Tao-kuang.
Édito sagrado do Imperador Tao-kuang, 20 de Fevereiro 1846, China
287
Queria ainda falar-vos um pouco de tolerância. Talvez me compreendais melhor
se vos contar algumas das experiências que tive. Em Phoenix 2 fazíamos as nossas
orações quotidianas como em Sabarmati3 , e tanto Muçulmanos como Cristãos ali
iam, tal como os Hindus. O falecido Sheth Rustomji4 e os seus filhos, também lá iam.
Rustomji Sheth gostava muito do cântico gujarati Mane valun “caro, duas vezes caro
me é o nome de R ma.” Se a memória não me engana, um dia em que Maganlal ou
Kashi dirigiam este cântico que todos cantávamos, Rustomji Sheth exclamou alegremente: “ Colocai o nome de Ormudz5 em lugar de Rama!” Imediatamente se acedeu
ao seu desejo. A partir desse dia, quando Sheth estava presente, e por vezes mesmo
quando não estava, substituía-se o nome de R ma pelo de Ormudz (...)
Joseph Royeppen6 vinha muitas vezes a Phoenix. Era um Cristão e o seu cântico
favorito era Vaishnava jana (aquele que socorre o seu próximo na provação é um
vaishnava, um servidor do senhor). Gostava muito de música, e um dia que cantava
aquele cântico, substituiu a palavra vaishnava por cristão. Os outros imediatamente
aceitaram esta nova versão e eu vi que o coração de Joseph ficou cheio de alegria.
Mah tma Gandhi, 1869-1948, Índia, Cartas a Ashram
2 Comunidade fundada por Gandhi em África do Sul em 1904.
3 A aldeia onde se encontrava o Saty grah shram, ao qual estas cartas são dirigidas. É perto de Ahmedabab.
4 Comerciante Parsi que vivia em África do Sul e aí se tornou um fervoroso admirador de Gandhi. Teve um papel activo
no movimento Satyagraha em África do Sul.
5 Ormudz é o nome que os Parsis dão ao princípio divino.
6 Cristão de Madrasta que se encontrava em África do Sul com Gandhi.
152 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA:
CONCEITO RÍGIDO
OU NOÇÃO DINÂMICA?
O mito hindu fecha-se, como uma frase da história humana apelando para outras. A
vitória solitária do Bodhisatta, e não o seu martírio ou mesmo a sua morte, fica selada, à mercê da intervenção de um deus ex machina, força justiceira simultaneamente
transcendente e imanente.
O que deveremos reter, no limiar desta última sequência? Uma certeza conquistada
na luta e no sofrimento: o triunfo da consciência dos homens é tanto mais esmagador
quanto mais procurámos contestar o seu primado e a sua determinação. No limite, é no
ponto mais alto de uma agressão suportada que ela [a certeza] releva, mede e ganha o
desafio da violência e da opressão.
Eis-nos no ponto de viragem dialéctica da relação tolerância-intolerância - o objectivo
deste livro. Vimos oporem-se e depois defrontarem-se força e consciência, força e razão
pura: a força, de ora em diante, vai ter de se mediatizar e a razão vai fazer-se força dialéctica rumo a uma edificação original – no concreto e não mais no sonho justo – de um
mundo de homens – mas de todos os homens – onde o próprio conceito de tolerância
não é mais que anacronismo.
Neste momento oscilante, onde tantas falsas contradições, anteriormente consideradas maiores, são reduzidas, há dois textos que nos guiam, voluntariamente provocadores, na pena de escritores de outros tempos cuja consonância com os fantasmas
deste final de século constitui certamente mais do que uma espantosa coincidência:
o dito espirituoso de Nestroy que ironiza sobre a legitimidade da relação PuntillaMatti (senhor-servo; maioria-minoria; colonizador-colonizado; rico-pobre...) e o discurso acusatório de um Shakespeare, processando – contra Cristovão Colombo que se
maravilhava – o ouro, (o lucro, a acumulação, a exploração) como valor erigido em
transcendência pelos homens.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 153
288
... Quando ele partiu, o Comandante supremo limpou o sangue das feridas de
Bodhisatta, ligou os coutos dos pés e das mãos, colocou-lhe pensos nas orelhas e
no nariz e depois de o ter instalado com precaução numa banqueta, fez-lhe uma
reverência e disse-lhe: “Eminentíssimo Senhor, aquele que merece a vossa cólera por
ter assim pecado contra vós, é apenas o rei e mais ninguém.” Tendo pronunciado tais
palavras, declamou, de seguida, a seguinte estrofe:
“Dirige a tua cólera, ó alma heróica, contra aquele
que te cortou o nariz e as orelhas
e te amputou os pés e as mãos.
Mas rogo-te que poupes este teu país.”
Por sua vez, o Bodhisatta tomou a palavra e salmodiou a segunda estrofe:
“ Que viva por muito tempo o rei cuja mão cruel
assim mutilou o meu corpo.
As almas puras como a minha
não guardam rancor por tal procedimento.”
E precisamente quando o rei deixava o jardim e desaparecia da vista do Bodhisatta, a
terra, cuja espessura era de duzentas e quarenta léguas rasgou-se em duas partes, tal
como um vestido feito de tecido forte e sólido, e uma chama erguendo-se do Avicci
envolveu o rei, como o teria feito uma túnica escarlate. O rei foi assim sugado para o
fundo da terra mesmo diante do portal do jardim e transportado para o vasto inferno
de Avicci. E o Bodhisatta entregou a sua alma nesse mesmo dia.
Khantivadi-Jataka
289
Meu Amigo
É na verdade totalmente injusto que só os amos sejam supostos dar referências sobre
os criados; se todos temos iguais direitos, também os próprios criados deveriam julgar os amos. Certamente que muita gente ficaria embaraçada se fossem tornados
públicos os juízos sobre eles emitidos pelos seus criados.
Johann Nestroy, 1801-1862, Áustria
290
O que é isto? Ouro? Ouro amarelo, brilhante e precioso?
Não, ó deuses, não sou um fabricante de falsas preces!
Raízes, ó céus puros! Muito disto tornará
154 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Branco o preto, novo o velho, valente o cobarde.
Porquê tudo isto, ó deuses? O que é isto, ó deuses?
Isto desviará do vosso lado os vossos sacerdotes e os vossos servos
E arrancará o travesseiro sob as cabeças de homens válidos.
Este escravo amarelo
Tecerá e desfará religiões; abençoará o maldito;
Santificará a lepra branca; aos ladrões dará lugares
(...)
E dar-lhes-á títulos, genuflexão e aprovação
No próprio banco dos senadores.
Eis com que casar de novo a viúva gasta;
E a ela, que repugnaria aos ulcerados do hospital,
Isto perfuma dando-lhe o bálsamo
De um novo Abril.
Vem poeira amaldiçoada,
Prostituta comum da humanidade,
Tu que semeias a ira entre a escória das nações,
Far-te-ei agir
Conforme a tua verdadeira natureza.
Shakespeare, Inglaterra, Timon de Atenas,
Acto IV, cena III, 1607
ÉDITOS, DECRETOS, ABERTURAS
Tomemos em primeiro lugar nota da promessa que o mais forte mostrou intenção de
outorgar mas que na realidade milhares de homens arrancaram, pelos seus mortos, à
humilhação e à opressão, pela acção enérgica da vontade; a liberdade de consciência,
primeiro e, num segundo tempo, a igualdade formal dos direitos.
Pelos presentes Éditos, Cartas, Decretos e outras Declarações, há uma certa prática da
força que vai abrandando, renunciando explicitamente à pretensão de possuir, de ditar
e de impor uma verdade, muitas vezes de interesses. De ora em diante, essencialmente
nas relações intra-comunitárias, estende-se à minoria religiosa inimiga “a tolerância
civil;” mais precisamente, é admitida “aos burgueses de todas as cidades” para uma
maior “vantagem, particularmente do comércio”, obviamente.
Algures, na Europa, faz-se o mesmo, aqui e ali, para algumas minorias étnicas. São apenas concessões, concedidas enquanto tal, e, a este título, revogáveis.
Tais concessões inovadoras, durante muito tempo pareceram de um grande alcance
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 155
histórico. Foram pelo menos, sinais de abertura e matrizes de reivindicações futuras,
dado que o acento parece ter sido irremediavelmente deslocado do espiritual para o
temporal.
291
Henrique, pela graça de Deus, rei de França e de Navarra, a todos os presentes e
futuros, salvé (...)
Agora que apraz a Deus começar a fazer-nos gozar de um certo repouso, consideramos
que não o podemos empregar de melhor modo que não seja em ocupar-nos com o
que pode dizer respeito à glória do Seu Santo Nome e serviço, e a prover para que Ele
possa ser adorado e solicitado por todos os nossos súbditos, e que se não Lhe agradou permitir, por enquanto, sob uma mesma forma de religião, que pelo menos seja
com uma mesma intenção e com uma tal regra, que por tal não haja perturbação ou
tumulto entre eles, e que nós e que este reino possamos sempre merecer e conservar
o título glorioso de Cristianíssimo que por tantos méritos e há tanto tempo foi adquirido; e pelo mesmo meio, suprimir a causa do mal e da perturbação que pode ocorrer
devido ao facto da religião, que é sempre o mais escorregadio e penetrante de todos.
Por esta ocasião, tendo reconhecido esta ocorrência como de grande importância e
digna de mui boa consideração, depois de termos retomado o caderno de queixas
dos nossos súbditos católicos, tendo também permitido aos nossos súbditos da dita
Religião pretendida Reformada que se juntassem por deputados para elaborar os
deles e colocar em conjunto todas as suas pretendidas queixas, e sobre esse assunto,
conferir com eles, por diversas vezes, e rever os éditos anteriores, pensámos ser necessário agora dar, acerca disto, aos ditos súbditos, uma lei geral, clara, nítida e absoluta,
pela qual sejam regidos todos os diferendos que anteriormente surgiram entre eles,
e que doravante ainda possam surgir, e que uns e outros tenham possibilidade de se
contentar, consoante o conseguir a qualidade do tempo. Não tendo, no que nos diz
respeito, entrado nesta deliberação por outra razão que não o zelo que temos no serviço de Deus, e para que ele se possa realizar e se possa cumprir de ora em diante por
todos os nossos súbditos, e estabelecer entre eles uma boa e perdurável paz. Sobre o
que imploramos e esperamos da Sua divina bondade a mesma protecção e favor que
Ele sempre visivelmente concedeu a este reino, desde que este nasceu, e durante os
longos anos que já atingiu, e que Ele conceda a graça aos ditos súbditos para que compreendam bem que na observação deste nosso decreto consiste (depois daquilo que
é o seu dever para com Deus e para com todos) o principal fundamento da sua união,
concórdia, tranquilidade e repouso, e o restabelecimento de todo este Estado no seu
primitivo esplendor, opulência e força. Tal como, da nossa parte, prometemos fazê-lo
rigorosamente cumprir, sem deixar que haja qualquer contratempo.
156 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Por estas razões, tendo com o conselho dos príncipes do nosso sangue, dos outros
príncipes e oficiais da coroa, e outras grandes e notáveis personagens do nosso conselho de Estado aqui presentes junto de nós, bem e diligentemente pesado e considerado todo este caso, por meio deste édito perpétuo e irrevogável, dissemos, declarámos
e ordenámos, dizemos, declaramos e ordenamos:
I Primeiro, que a memória de todas as coisas passadas numa parte e noutra desde
o começo do mês de Março de 1585 até à nossa coroação, e durante as outras perturbações precedentes, e na ocasião destas, ficará apagada e apaziguada, como se
não tivesse acontecido. E não será possível nem permitido aos nossos procuradores
gerais, nem a quaisquer outras personagens, públicas ou privadas, em qualquer
tempo ou ocasião que seja, delas fazerem menção, processo ou perseguição em
quaisquer tribunais ou jurisdições.
II Proibimos todos os nossos súbditos, de qualquer estado ou qualidade que sejam,
que renovem essa memória, que se ataquem, ressintam, injuriem ou provoquem uns
aos outros com censuras sobre o que se passou, e que, por quaisquer causas ou pretextos discutam, contestem, briguem, se insultem ou se ofendam com feitos ou com
palavras; mas que se contenham e vivam pacificamente uns com os outros, como
irmãos, amigos e co-cidadãos, sob pena de os desobedientes serem punidos como
infractores da paz e perturbadores do descanso público.
III Ordenamos que a Religião Católica, Apostólica e Romana seja retomada e restabelecida em todos os lugares deste nosso reino e nos países de nossa obediência, onde
o exercício desta foi interdito, sendo pacifica e livremente exercida, sem nenhuma
perturbação ou impedimento...
(...)
VI E para não deixar qualquer ocasião de perturbações e diferendos entre os nossos
súbditos, permitimos que aqueles da dita Religião pretendida Reformada vivam e
morem em todas as cidades e lugares deste nosso reino e países de nossa obediência,
sem que sejam inquiridos, vexados, molestados nem obrigados a fazer quaisquer coisas contra a sua consciência devido à religião, nem que por razão desta sejam feitas
buscas às casas ou lugares onde queiram habitar, comportando-se, no restante, tal
como está contido no presente édito.
(...)
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 157
XVIII De igual modo proibimos todos os nossos súbditos, de qualquer qualidade ou
condição que sejam, que arrastem por força ou indução, contra a vontade dos seus
pais, as crianças da dita Religião, para as fazer baptizar e confirmar na Igreja Católica
Apostólica e Romana; como também as mesmas interdições são feitas aos da dita
Religião pretendida Reformada, todos eles sob pena de serem punidos exemplarmente.
(...)
XXII Ordenamos que não seja feita diferença ou distinção, no que respeita à dita
Religião, em receber alunos para que sejam instruídos nas Universidades, colégios e
escolas, e os doentes nos hospitais, albergues e esmolares públicos.
(...)
XXVII A fim de reunir do melhor modo possível as vontades dos nossos súbditos,
como é nossa intenção, e impedir, de futuro, todas as queixas, declaramos todos
aqueles que professam ou irão professar a dita Religião pretendida Reformada,
capazes de desempenhar e exercer todos os estados, dignidades, ofícios e cargos
públicos quaisquer que sejam, reais, senhoriais ou das cidades do nosso reino, país,
terras e senhorias da nossa obediência, não obstante todos os juramentos contrários
a tal, e de serem indiferentemente admitidos e recebidos nestes; contentar-se-ão os
nossos Tribunais de parlamento e outros juízes em informar-se e inquirir sobre a vida,
costumes, religião e honesta conversação daqueles que são ou virão a ser providos
de ofícios, tanto numa religião quanto noutra, sem deles tomar outro juramento que
não seja o de bem e fielmente servir o rei no exercício dos seus cargos e cumprir os
éditos, como tem sido observado em todos os tempos.
(...)
LXXIV Os da dita Religião não poderão depois disto ser sobrecarregados e oprimidos
com quaisquer encargos ordinários ou extraordinários mais do que os católicos, e
segundo a proporção dos seus bens e faculdades.
(...)
Outorgado em Nantes no mês de Abril, do ano da graça de mil quinhentos e noventa e oito,
nono ano do nosso reinado
HENRIQUE
Édito de Navarra, 1598, França
158 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
292
É natural, nas vilas maiores e nas cidades que são residência de príncipes e capitais,
onde existe um grande ajuntamento de povo, e não só de autóctones mas também
de estrangeiros, e que são todos aceites e protegidos, que todas as nacionalidades, e,
por consequência, os estrangeiros, segundo o seu rito, tenham diferentes casas para
fazer a sua oração a Deus, tal como aqui, na cidade de Bucareste onde, para além dos
Católicos, os Arménios e os Judeus, que são tributários do Império todo poderoso e
que têm igrejas para as suas orações, encontraram domicílio. Alguns do rito saxão,
que tendo dirigido um pedido à Nossa Majestade para lhes dar licença de construir
uma igreja na cidade de Bucareste (...) portanto, segundo o seu pedido, por estrangeiros que sejam, não os desconheci, nem deixei que fossem completamente ignorados
por inadvertência e para que saibam que não são perseguidos, mas que possam praticar a sua crença dando-lhes conselho reconfortante, que muitos vieram para morar
aqui, a Nossa Majestade apiedou-se da sua sorte e permitiu-lhes que construíssem
uma igreja no lugar que compraram.
(segue-se a assinatura do Príncipe e o testemunho dos boiardos)
Carta dita Aos Saxões, concedida por Alexandre Ypsilanti,
Príncipe de Valáquia, 1777.
293
Embora o Imperador esteja na firme intenção de proteger e de sustentar invariavelmente a nossa santa religião católica, S.M. julgou no entanto ser caridoso da sua
parte estender às pessoas compreendidas sob a denominação de Protestantes, os
efeitos da tolerância civil que, sem examinar a crença, só considera no homem a sua
qualidade de cidadão, e acrescentar novas facilidades a esta tolerância em todos os
reinos, províncias e terras da sua obediência.
(...)
Os Protestantes seriam doravante admitidos na burguesia de todas as cidades, assim
como nos corpos dos ofícios; e finalmente nos graus académicos das artes, do direito
e da medicina na universidade de Lovaina, nas mesmas circunstâncias que os súbditos de S. M., aos quais os magistrados, assim como as diferentes faculdades da universidade, são autorizados a conceder, para cada caso, as dispensas necessárias.
(...)
Finalmente, o Imperador reserva-se o direito de admitir, por via de dispensa, à posse
de empregos civis, aqueles dos seus súbditos Protestantes aos quais se tenha reconhecido uma conduta cristã e moral, assim como capacidade, aptidão e qualidades
requeridas para preencher tais funções.
Cartas patentes sobre a tolerância de José II da Áustria, 1781
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 159
294
A menos que o seu tom seja ultrajante, a crítica não deve ser proscrita, quer se dirija
ao Soberano quer ao mais humilde súbdito, e isto sem se considerar se o autor se
identifica ou não se identifica; mas não deve sobretudo ser proibida se o autor responde pelo seu nome sobre a verdade das asserções. Aquele que ama a verdade não
pode deixar de se regozijar com a crítica. Se for falsa, cai por si mesma; se for justa,
só podemos dela tirar proveito.
Decreto sobre a Imprensa de José II da Áustria
295
Ouso esperar que os mais esclarecidos e os mais piedosos entre os Rabinos e os
Anciãos da minha nação quererão despojar-se desse perigoso privilégio, renunciar a
todos os abusos da disciplina sinagogal e religiosa, e mostrar aos seus correligionários
o mesmo amor e a mesma tolerância que tantas vezes reclamaram para si mesmos,
por parte do Estado. Ai meus irmãos, até agora sentistes demasiadamente sobre os
vossos ombros pesar o jugo da intolerância: talvez vos parecesse encontrar uma certa
compensação no poder que vos foi deixado, de impordes vós mesmos um jugo pesado aos vossos subordinados. A vingança procura um pasto, e quando não o encontra
noutro lado, devora a sua própria carne. Talvez também vos tenhais deixado seduzir
pelo mau exemplo. Até agora, na sua louca ilusão, todos os povos da terra acreditaram que a religião só se conserva pela força, que só pela perseguição se expandem
as lições de beatitude, que só pelo ódio se propaga a verdadeira ideia de Deus, que é
uma ideia de amor. Agradecei ao Deus dos vossos pais, que é a própria clemência e o
próprio amor, porque esta loucura hoje parece condenada a desaparecer. As nações
começam a suportar-se e a entender-se; elas já nos mostram mudanças, simpatias
que, com a ajuda dAquele que conduz os corações humanos, poderão crescer até se
tornarem num amor verdadeiramente fraterno. Ó meus irmãos, segui o exemplo do
amor, como tínheis seguido o exemplo do ódio. Imitai no bem as nações que tínheis
imitado no mal. Desejais que vos suportem, que vos poupem, que vos tolerem; suportai-vos, poupai-vos e tolerai-vos uns aos outros. Amai, amai e sereis amados.
Moses Mendelssohn, 1729-1786, Alemanha
296
Ser humano é ter consciência da solidariedade espiritual de todos os homens e do
seu destino comum, é a exigência em nós de amar o homem na sua totalidade, de
reconhecer, de respeitar a qualidade humana dos nossos semelhantes, no trabalho e
no enquadramento da sua vida social, de os ajudar, quer eles estejam isolados ou em
160 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
grupo. A dimensão humana, a dignidade e a integridade do indivíduo só sobressaem
plenamente quando são vistas na perspectiva de relações sociais diversificadas cuja
maior parte é de ordem económica e política.
Ernst Karl Winter, Áustria,
Artigo no “Wiener politische Bläter”, 1934
AS ASTÚCIAS DA TOLERÂNCIA FORMAL
Tendo sido suspensa a violência nua, qual vai ser a nova linguagem da força e que rosto
apresentará a intolerância convertida – de certo modo pela força – à tolerância?
Os Éditos, Decretos e Declarações acima citados deixavam claramente entrever, não
sem reticências, a necessidade de um Estado igualitário, no qual, sendo finalmente nós
próprios, aqueles que são minoritários são primeiro que tudo obrigados a submeter-se
a um sistema jurídico feito sem eles e gerindo interesses, entre os quais, os seus. Estes,
embora tenham sido formalmente reconhecidos, não podem concretamente deixar de
ser marginais. Na Europa, será preciso uma revolução para substituir o direito feudal
por um código civil e a Pax ecclesiae pela paz burguesa.
Nesta sequência penúltima de toda uma era histórica, e por um jogo cerrado de proposições, contra-proposições, reservas e nuances, é para esta mutação iminente que os
protagonistas se preparam, discutindo a nova ordem a instituir, incluíndo-se o estatuto
da tolerância religiosa e das suas relações concretas ou teóricas – com a autoridade
no seu sentido clássico. Discutem-se assim “as liberdades” e os direitos gerais, entre os
quais, como é óbvio, o direito de propriedade. “Vencida no que respeita ao princípio, a
intolerância discute a sua aplicação.”
Pensava-se obter uma reforma e aconteceu uma revolução, instalando finalmente o
homem no homem e dando origem a uma nova problemática, onde o dado “liberdade
de consciência” ou “liberdade de religião” não mais é determinante nem mesmo apenas
pertinente.
Contra o exclusivismo de facto e o abuso das glosas, remetemo-nos – ou afirmamos
fazê-lo – como hipótese de mudança, para um certo tipo de sociedade, sociedade de
“paz” cuja finalidade proclamada será a defesa do indivíduo contra o que um consenso
de interesses variados considerava “injusto”, “anárquico” ou “violento”.
De ora em diante, o conceito de Estado é inseparável da Ideia de Direito formal, mesmo
que as partes em conflito não gozem dos mesmos direitos concretos. São formas cujos
conteúdos reais, por sua vez, a História tem a obrigação de esclarecer e de investir num
sentido universal.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 161
297
A autoridade age mal, mesmo quando quer submeter à sua jurisdição os princípios
da tolerância; porque ela impõe à tolerância formas positivas e fixas que são contrárias à sua natureza. A tolerância nada mais é do que a liberdade de todos os cultos
presentes e futuros. O imperador José II quis estabelecer a tolerância, e, liberal nas
suas perspectivas, começou por mandar fazer um vasto catálogo de todas as opiniões
religiosas professadas pelos seus súbditos. Não sei quantas foram registadas para
serem admitidas ao benefício da sua protecção. O que é que aconteceu? Um culto que
tínhamos esquecido apareceu de repente e José II, príncipe tolerante, disse que este
tinha chegado demasiado tarde. Os deístas da Boémia foram perseguidos, devido a
uma data, e o monarca filósofo tornou-se simultaneamente hostil contra o Brabante
que reclamava o domínio exclusivo do catolicismo, e contra os infelizes Boémios que
pediam liberdade de opinião.
Benjamin Constant, Suiça-França, Da Religião considerada na sua Origem,
nas suas Formas e no seu Desenvolvimento, 1826
298
Falam-nos incessantemente de um culto dominante. – Dominante! Meus Senhores,
não entendo essa palavra e preciso que ma definam. Será um culto opressor o que
querem dizer? Mas banistes essa palavra, e os homens que asseguraram o direito à
liberdade não reivindicam o direito à opressão. Será que o que querem dizer é o culto
do príncipe? Mas o príncipe não tem o direito de dominar as consciências nem de
regular as opiniões. Será o culto do maior número? Mas o culto é uma opinião; tal
ou tal culto é o resultado de tal ou tal opinião. Ora as opiniões não se formam pelo
resultado de sufrágios; o nosso pensamento pertence-nos, é independente, não o
podemos comprometer .
Por fim, uma opinião da maioria não tem o direito de dominar. É uma palavra tirânica
que deve ser banida da nossa legislação. Porque se a aceitais num caso, tereis de a
aceitar em todos: tendes portanto um culto dominante, uma filosofia dominante,
sistemas dominantes.
Nada deve dominar, a não ser a justiça: só o direito de cada um é dominante: tudo o
resto lhe é submetido: Ora é um direito evidente e já consagrado por vós, o de fazerdes tudo o que não prejudica os outros.
Mirabeau, França, Discurso à Assembleia, sessão de 23 ede Agosto de 1789
162 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
299
Os nossos direitos cívicos são independentes das nossas leis religiosas, tal como as
nossas opiniões sobre física e geometria. Negar a um cidadão a confiança pública
incriminando-o de incapacidade em desempenhar um posto bem remunerado e de
confiança sob o pretexto de que não professa tal ou tal crença religiosa – ou que não
renuncia a ela – é privá-lo injustamente dos privilégios e vantagens aos quais tem um
direito natural, à semelhança dos seus outros co-cidadãos.
Thomas Jefferson, Presidente dos Estados Unidos da América,
O Estatuto de Virginia sobre Liberdade Religiosa, 1786
300
Liberdade de religião, liberdade de imprensa, liberdade da pessoa sob a protecção do
habeas corpus, justiça ministrada por jurados escolhidos com imparcialidade. Estes
princípios guiaram a ilustre constelação que nos precedeu e os nossos próprios passos, neste tempo de revolução e de reformas (...) Devem constituir o credo da nossa
fé política, a própria matéria da nossa instrução cívica, a pedra de toque que nos
permitirá pôr à prova os serviços daqueles em quem temos confiança. E se deles nos
afastamos em momentos de erro ou de incerteza, apressemo-nos a voltar atrás e a
seguir o único caminho que leva à paz, à liberdade e à segurança.
Thomas Jefferson, Presidente dos Estados Unidos da América,
Primeiro Discurso Inaugural, 4 de Março, 1801
301
Até onde vai o dever da tolerância?
1. Nenhuma igreja é obrigada pelo dever de tolerância a manter no seu seio aqueles
que infringem obstinadamente as suas leis.
2. Não temos o direito de pôr em causa quem quer que seja no trabalho que desempenha, sob pretexto de que pertence a uma igreja diferente.
Thomas Jefferson, Presidente dos Estados Unidos da América,
Notas sobre a Religião
302
Das virtudes sociais; da justiça
D. O que é a sociedade?
R. É qualquer reunião de homens vivendo em conjunto sob as cláusulas de um contrato expresso ou tácito, que tem por objectivo a sua comum conservação.
D. As virtudes sociais são numerosas?
R. Sim: podemos contar tantas quantas as espécies existentes de acções úteis à
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 163
sociedade; mas todas se reduzem a um único principio.
D. Qual é esse princípio fundamental?
R. É a justiça, e ela sozinha compreende todas as virtudes da sociedade.
D. Por que dizeis que a justiça é a virtude fundamental e quase única da sociedade?
R. Porque só ela engloba a prática de todas as acções que lhe são úteis, e porque
todas as outras virtudes, sob o nome de caridade e de humanidade, de probidade,
de amor à pátria, de sinceridade, de generosidade, de simplicidade de costumes e de
modéstia, nada mais são do que formas variadas e aplicações diversas deste axioma:
Não faças a outrem aquilo que não queres que te façam, que é a definição da justiça.
D. Como é que a lei natural prescreve a justiça?
R. Por três atributos físicos, inerentes à organização do homem.
D. Quais são esses atributos?
R. São a igualdade, a liberdade, a propriedade.
D. Como é que a igualdade é um atributo físico do homem?
R. Porque todos os homens, tendo igualmente olhos, mãos, boca, orelhas e a necessidade de deles se servirem para viver, têm, por este facto, um direito igual à vida e ao
uso dos elementos que a mantêm; são todos iguais perante Deus.
Constantin Volney, França, A Lei Natural, 1793
303
A intolerância civil é tão perigosa como a intolerância religiosa e é mais absurda e
sobretudo mais injusta do que a intolerância religiosa. É tão perigosa porque tem os
mesmos resultados sob um outro pretexto; é mais absurda porque não é motivada
pela convicção; é mais injusta porque o mal que causa não é para ela um dever mas
um cálculo.
A intolerância civil toma mil formas e refugia-se de posto em posto para se esquivar
ao raciocínio. Vencida no que respeita ao princípio, discute sobre a sua aplicação.
Vimos homens perseguidos há quase trinta séculos, dizerem ao governo que os libertava da sua longa proscrição, que, se é necessário que haja num Estado várias religiões positivas, não é menos [necessário] impedir que as seitas toleradas produzam, ao
subdividir-se, novas seitas. Mas não será cada seita tolerada uma subdivisão de uma
seita antiga? A que título contestaria às gerações futuras os direitos que reclamou
contra as gerações passadas?
Pretendeu-se que nenhuma das Igrejas reconhecidas pudesse mudar os seus dogmas
sem o consentimento da autoridade. Mas se por acaso estes dogmas viessem a ser
rejeitados pela maioria da comunidade religiosa, será que a autoridade poderia obrigar esta a professá-los? Ora, em matéria de opinião, os direitos da maioria e os da
minoria são os mesmos.
164 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Concebemos a intolerância quando ela impõe a todos uma mesma profissão de fé;
pelo menos é consequente. Acredita que mantém os homens no santuário da verdade; mas quando duas opiniões são permitidas, como uma das duas é necessariamente
falsa, autorizar o governo a forçar os indivíduos de uma e de outra a manterem-se
ligados à opinião da sua seita ou forçar as seitas a nunca mudarem de opinião, é
autorizá-lo formalmente a dar assistência ao erro (...)
A completa e inteira liberdade de todos os cultos é tão favorável à religião quanto
conforme à justiça.
Se a religião sempre tivesse sido totalmente livre, penso que sempre teria sido objecto de respeito e de amor. De modo algum se conceberia o fanatismo bizarro que torna
a religião em si mesma num objecto de ódio ou de má vontade.
Benjamin Constant, Suiça – França, Princípios de Política, 1818
304
Não venho pregar a tolerância. A mais ilimitada liberdade de religião é a meus olhos
um direito tão sagrado que a palavra tolerância que o deveria exprimir, parece de
certo modo ela próprio tirânica, visto que a existência da autoridade que tem o poder
de tolerar, atenta contra a liberdade de pensar por aquilo que ela própria tolera, e que
assim poderia não tolerar.
Mirabeau, França, Discurso à Assembleia,
Sessão de 22 de Agosto de 1789
305
Os princípios da condição civil
Deste modo, a condição civil, considerada simplesmente como condição jurídica, está
fundamentada nos seguintes princípios:
1. A liberdade de cada membro da sociedade, enquanto homem.
2. A igualdade deste com todos os outros, enquanto súbdito.
3. A independência de todo o membro de uma comunidade como cidadão.
Estes princípios são menos as leis dadas pelo Estado já instituído do que aquelas
segundo as quais a instituição do Estado é possível, de acordo com os puros princípios
racionais do direito humano externo e geral.
Kant, Alemanha, Über den Gemeinspruch: das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für di Praxis, 1793
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 165
306
Naturalmente, um Estado sem religião não quer dizer que os cidadãos não tenham
religião. Apenas significa que o Estado, guardião da liberdade de consciência, não
professa qualquer culto e não confere qualquer situação privilegiada ao clero.
Enrique José Varona, 1849-1933, Cuba
307
Para que o Estado enquanto realidade moral do Espírito, consciente de si, comece a
existir, deve necessariamente diferenciar-se da forma da autoridade e da crença. Ora,
essa diferenciação só se produz se o domínio religioso alcançar uma separação interior. Só então o Estado atinge a universalidade do pensamento, que é o seu princípio
formal, realizando-o para além das Igrejas particulares. Para reconhecermos isto,
devemos saber não apenas o que é a universalidade em si, mas também o que é a sua
existência. O cisma das Igrejas está longe de ser ou de ter sido uma infelicidade para o
Estado, é, pelo contrário, por ele que pôde tornar-se no que era o seu destino: a razão
e a moralidade conscientes de si mesmas. E é também a maior felicidade que pode
acontecer à Igreja e ao pensamento para a sua liberdade e para a sua racionalidade
próprias.
Hegel, Alemanha,
Princípios da Filosofia do Direito, 1821
308
Quase no momento em que Copérnico fez a sua grande descoberta do verdadeiro sistema solar, descobriu-se a lei de gravitação do Estado. Encontrou-se o seu centro de
gravidade nele próprio, e os diferentes governos europeus fizeram um primeiro ensaio
de aplicação, necessariamente superficial, dessa descoberta, no sistema do equilíbrio
político. De igual modo, Maquiavel e Campanella em primeiro lugar, Espinosa, Hobbes
e Hugo Grócio de seguida, finalmente Rousseau, Fichte e Hegel, começaram a olhar o
Estado com olhos humanos e a dele deduzir leis da razão e da experiência, e não leis
da teologia, tal como Copérnico não se formalizou com o facto de Josué ter parado
o sol em Gedeão e a lua no vale de Ajalon. A filosofia moderna não fez mais do que
prosseguir na tarefa começada por Heraclito e Aristóteles. Não atacareis portanto a
filosofia moderna mas a filosofia, sempre nova, da razão (...)
Mas se antigamente os filósofos que ensinavam o direito público construíram o seu
conceito de Estado partindo do instinto de ambição ou do instinto social, se, por
vezes, o deduziram mesmo da razão, mas da razão da sociedade, em compensação, a
concepção filosófica moderna, mais profunda e mais rica do que a antiga, deduziu-o
da ideia de universalidade. Ela considera o Estado como o grande organismo onde
166 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
as liberdades jurídica, moral e política deverão encontrar a sua realização e onde o
cidadão individual, ao obedecer às leis do Estado, apenas obedece às leis naturais da
sua própria razão, da razão humana.
Karl Marx, editorial do “Kölnische Zeitung”, 1842
309
Preâmbulo
Os representantes do Povo Francês, constituídos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo pelos Direitos do Homem
são as únicas causas da infelicidade pública e da corrupção dos governos, resolveram expor numa declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados
do homem, a fim de que esta Declaração, constantemente presente em todos os
membros do corpo social, lhes lembre incessantemente os seus direitos e deveres;
a fim de que os actos do Poder legislativo e os do Poder executivo, a cada instante
comparados com a finalidade de qualquer instituição política, sejam mais respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas doravante sobre princípios
simples e incontestáveis, se orientem sempre para a manutenção da Constituição e
para a felicidade de todos.
Consequentemente, a Assembleia Nacional reconhece e declara, na presença e sob os
auspícios do Ser supremo, os seguintes Direitos do Homem e do Cidadão:
Artigo primeiro
Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos; as distinções sociais só
podem ser fundadas sobre a utilidade comum.
II
O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem; esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a
resistência à opressão.
III
O princípio de toda a soberania reside essencialmente na nação; nenhum corpo,
nenhum indivíduo, podem exercer autoridade que não emane expressamente deles.
Sessão de quinta feira 20 de Agosto 1789
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 167
IV
A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique o outro; assim,
o exercício dos direitos naturais de todo o homem só tem como limite aqueles que
assegurem aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos; tais
limites só podem ser determinados pela lei.
V
A lei só tem direito de proibir as acções nocivas à sociedade. Tudo o que não é proibido
pela lei não pode ser impedido e ninguém pode ser obrigado a fazer o que ela não
ordena.
VI
A lei é expressão da vontade geral; todos os cidadãos têm o direito de concorrer
pessoalmente ou por meio dos seus representantes para a sua formação; deve ser a
mesma para todos, quer proteja quer castigue. Sendo todos os cidadãos iguais a seus
olhos todos eles são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, consoante a sua capacidade e sem outras distinções que não sejam as
das suas virtudes e as dos seus talentos.
Sessão de sexta feira, 21 de Agosto
VII
Nenhum homem pode ser acusado, preso ou detido a não ser em casos determinados
pela lei e segundo as formas que ela prescreveu. Aqueles que solicitam, expedem,
executam ou fazem executar ordens arbitrárias, devem ser punidos, mas todo o
cidadão interpelado ou apanhado em falta em virtude da lei deve obedecer imediatamente; torna-se culpado se resistir.
VIII
A lei só pode estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode
ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao
delito e legalmente aplicada.
IX
Sendo todo o homem presumido inocente até ser declarado culpado, se for julgado
indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário para se assegurar da sua pessoa
deve ser severamente punido por lei.
Sessão de sábado, 22 de Agosto
168 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
X
Ninguém deve ser perturbado pelas suas opiniões, mesmo religiosas, contanto que a
manifestação destas não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.
Sessão de domingo, 23 de Agosto
XI
A comunicação livre dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos
do homem. Portanto, todo o cidadão pode falar, escrever, imprimir livremente, sob a
condição de responder pelo abuso dessa liberdade, nos casos determinados pela lei.
XII
A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública: essa
força é portanto instituída para a vantagem de todos, e não para a utilidade particular daqueles aos quais está confiada.
XIII
Para a manutenção das forças públicas, para as despesas da administração, é indispensável uma contribuição comum; ela deve ser igualmente repartida por todos os
cidadãos na razão das suas faculdades.
Sessão de segunda feira, 23 de Agosto
XIV
Os cidadãos têm o direito de constatar por si mesmos ou pelos seus representantes
a necessidade de uma contribuição pública, de nela consentir livremente, de seguir o
seu emprego e de determinar a sua quota, repartição, cobrança e duração.
XV
A Sociedade tem o direito de pedir contas da sua administração a todo o agente público.
XVI
Toda a Sociedade na qual a garantia dos direitos não for assegurada, nem a separação
dos poderes determinada, não tem constituição.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 169
XVII
Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado,
a não ser quando a necessidade pública, legalmente constatada, devidamente o exija,
e na condição de uma compensação justa e prévia.
Sessão de quarta feira, 26 de Agosto
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão decretada pela Assembleia Nacional nas sessões das
manhãs de 20,21,22,23,24 e 26 de Agosto de 1789. Assinada pelo Rei, a 5 de Outubro de 1789, França
310
Devemos partir da ideia de que somos todos iguais, que em lado nenhum há grupos
ou indivíduos de valor superior, face a outros que seriam sub-homens. Por consequência, nem a minha religião, nem a cor da minha pele, nem as minhas riquezas, nem
a minha cultura, nem o meu sistema político, social ou económico me autorizam a
forçar os outros a que se pareçam comigo. Por outro lado, o caminho da unificação
dos espíritos e dos corações não pode ser a renúncia de si mesmo: cada um deve,
diante do outro, ser profundamente ele próprio, viver de acordo com o que já tinha
descoberto.
Dominique Pire, Bélgica, Viver ou Morrer Juntos, 1969
311
Devemos ainda utilizar cada parcela da nossa energia para fazer com que o nosso
país saia do pântano da injustiça racial. Mas para isso não é necessário renunciar ao
nosso privilégio de amar que é também um dever nosso.
(...) Certamente alguns dirão que uma tal atitude é destituída de sentido prático;
que na vida é preciso combater, olho por olho, dente por dente, se quisermos sobreviver (...)
A isso apenas responderei que a humanidade obedece desde há muito tempo a esse
“soi disant” senso prático e que ele a conduziu, inexoravelmente, à confusão e mesmo
ao caos. A corrente do nosso tempo transporta os destroços daqueles que, sozinhos
ou em grupo, se abandonaram ao ódio e à violência.
Martin Luther King, 1929-1968, Estados Unidos da América, Para Onde Vamos?
312
Sem ódio contra ninguém mas com benevolência para com todos, apoiando-nos firmemente sobre o direito que Deus nos deu de compreender o que é justo, esforcemo-nos por prosseguir a tarefa que nos foi atribuída de limpar as feridas da nação,
de cuidar daqueles que sofreram os rigores do combate, das viúvas e dos órfãos,
170 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
por fazer tudo o que possa apressar a vinda de uma paz justa e duradoura na nossa
terra e nas outras nações.
Abraham Lincoln, Presidente dos Estados Unidos da América,
Segundo Discurso Inaugural, 4 de Março de 1865
313
(...) Os operários da Europa, têm a firme convicção de que se a guerra da Independência
americana inaugurou a era do domínio da burguesia, a guerra americana contra a
escravatura inaugurará a do domínio da classe operária. Vêm o presságio dessa época
vindoura no facto de que é Abraão Lincoln, filho corajoso e enérgico da classe operária, que tem a missão de conduzir o seu país através de combates sem precedente
para a libertação de uma raça e a transformação de um regime social.
Escrito por Marx, entre 22 e 29 de Novembro de 1864
Publicado no no 169 do jornal “The Beetive Newspaper”, 7 de Janeiro de 1865
Karl Marx, 1818-1883, Carta a Abraham Lincoln
314
E pensemos que tendo libertado o nosso país da intolerância religiosa sob cujo domínio a humanidade tanto tempo sangrou e sofreu, nada progredimos se deixarmos
subsistir uma intolerância política igualmente despótica e iníqua, fonte de perseguições cruéis e sanguinárias.
Thomas Jefferson, Presidente dos Estados Unidos da América,
Primeiro Discurso Inaugural, 4 de Março de 1801
315
É preciso que cada um tenha plena liberdade não só para abraçar a religião que
deseja, mas também para propagar qualquer religião e para mudar de religião. Não
deve ser permitido a um funcionário investigar sobre a religião de quem quer que
seja; sendo esta uma matéria de consciência, ninguém nela se deve imiscuir. Não
deve haver religião “dominante” nem Igreja “dominante”. Todas as crenças religiosas
e todas as Igrejas devem ser iguais perante a lei. Os ministros dos diferentes cultos
podem ser sustentados pelos fiéis, mas o Estado não deverá manter, com os fundos
públicos, nenhum culto, nem pagar aos servidores das diferentes confissões, quer se
trate de ortodoxos, de antigos crentes, de sectários ou de outros. Eis pelo que lutam
os sociais democratas.
V.I. Lenine, Aos Camponeses Pobres, 1903
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 171
MINORIAS A TEMPO INTEIRO OU CIDADÃOS SEM DIREITOS ?
Os homens nascem livres e iguais, a escravatura é abolida, a liberdade religiosa é proclamada, e é promulgada a liberdade de pensar, de escrever e de comunicar. Trata-se
agora de viver concretamente tais “liberdades”, como uma libertação, mas sobretudo
na prática, pois uma liberdade privada dos meios de se exercer não é mais do que um
logro.
Ora o escravo agora libertado deve ajudar “a fazer com que o trigo cresça” ou então
conhecerá os rigores do homem dos valores dominantes, quer dizer, aquele que de facto
é detentor de riquezas. As metrópoles longínquas podem fazer leis à sua maneira, o
colono, esse quer manter-se rei: o conquistador em nome da fé converte-se em negreiro
ou em plantador à margem das leis.
Haverá então duas acepções, duas práticas da mesma lei? Será a liberdade universal
excepto em terra de cor? Mais ainda, qual é o fundamento de uma liberdade que considera sua obrigação enriquecer uma minoria pelo trabalho do maior número? Será
que basta reconhecer-se como uma nação multi-confessional, ou mesmo multi-racial,
feita de indivíduos dotados de razão para realizar a verdadeira igualdade na verdadeira
justiça? Estas interrogações em torno das minorias “nacionais” actualizam o problema
de sempre, da democracia real.
Temos que novamente nos render à evidência: a intolerância, ontem com dominância
religiosa, hoje com dominância racial, é apenas o reflexo de interesses económicos e
políticos, sendo o conceito de “raça” apenas uma “medíocre democratização mercantil
da ideia de nobreza.”
Para além das advertências, das defesas, dos “apelos à razão” do neo-esclavagismo
camuflado, a razão militante tem por obrigação interpelar e, se necessário, contestar o
Estado, fiel nesse ponto à sua natureza de rigor e de universalidade.
Intransigente, é verdade, mas não mais numa relação de continuidade aparentemente
neutra, mas sim realmente dialéctica: para tal basta libertar o próprio conceito de
democracia, uma democracia que, por essência, não saberia reconhecer “a desigualdade
institucionalizada”: “o direito das minorias não pode manter-se eternamente o direito
dos vencidos”.
316
Se Quashee não nos ajudar a fazer com que o trigo cresça, voltará de novo a ser
escravo (...) e será obrigado a trabalhar sob a ameaça do chicote, dado que nenhum
dos outros métodos se mostrou eficaz. Agora não mais sois escravos; também eu
não desejo ver-vos de novo escravos se tal puder ser evitado. Mas é certo que deveis
ser servos daqueles que nasceram mais sábios do que vós, que nasceram como vos-
172 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
sos amos e dos quais, meus amigos Negros, dependeis, vós, servos dos Brancos, os
quais nenhum mortal põe em dúvida não serem mais sábios do que vós.
Thomas Carlyle, Reino-Unido, 1853
317
Reflexões sobre a escravatura dos negros
Meus amigos:
Embora não seja da mesma cor que vós, sempre vos olhei como meus irmãos. A natureza formou-vos para terdes o mesmo espírito, a mesma razão, as mesmas virtudes
que os Brancos. Só falo aqui dos da Europa; quanto aos Brancos das colónias, não vos
faço a injúria de os comparar convosco; sei quantas vezes a vossa fidelidade, a vossa
probidade e a vossa coragem, fizeram corar os vossos amos. Se fossemos procurar um
homem nas Ilhas da América, não seria certamente entre as pessoas de tez branca
que o encontraríamos.
O vosso sufrágio não leva a obter lugares nas colónias, a vossa protecção não leva
à obtenção de pensões; não tendes com que pagar aos advogados; portanto não
espanta que os vossos amos encontrem mais gente que se desonra ao defender a
sua causa do que vós encontrais [gente] que se sinta honrada em defender a vossa.
Há mesmo países onde aqueles que gostariam de escrever a vosso favor não teriam
liberdade para o fazer. Todos os que enriqueceram nas Ilhas à custa do vosso trabalho
e do vosso sofrimento, têm, quando regressam, o direito de vos insultar em libelos
caluniosos; mas não é permitido responder-lhes. Tal é a ideia que os vossos amos
têm da bondade do seu direito; tal é a consciência que têm da sua humanidade para
convosco. Mas essa injustiça foi para mim mais uma razão para tomar, num país livre,
a defesa da liberdade dos homens. Sei que nunca vireis a conhecer esta obra e que a
gratificação de ser por vós abençoado me será recusada. Mas terei satisfeito o meu
coração dilacerado pelo espectáculo dos vossos males, agitado pela insolência absurda dos sofismas dos vossos tiranos. Não usarei a eloquência mas a razão; falarei, não
dos interesses do comércio mas das leis da justiça. Os vossos tiranos censuram-me
por apenas dizer coisas comuns e por apenas ter ideias quiméricas; efectivamente,
nada é mais comum do que as máximas da humanidade e da justiça; nada é mais
quimérico do que propor aos homens que a sua conduta se torne conforme a elas.
Condorcet, 1743-1794, França,
Epístola Dedicatória aos Escravos Negros
318
Recebemos dos outros tanto quanto lhes damos e é em função da atitude de cada
um de nós para com os seus semelhantes que somos influenciados por eles. Aquele
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 173
que despreza só vê o que é desprezível. Aquele que nada espera também nada recebe. Quando tomamos atitudes, modos de falar e convenções nas relações humanas,
pelo próprio homem, este mantém-se fechado, inacessível. Nada é mais superficial
e ao mesmo tempo mais desumano do que o ódio humano (embora por momentos
o desprezo dos homens pareça quase inelutável). Nada é mais vil e mais abjecto, do
que exigir aos homens que se conformem com o nosso próprio ideal duvidoso, do
que avaliá-los e medi-los aos palmos, esquecendo as nossas próprias insuficiências,
os nossos próprios defeitos. A razão nos homens é paciente e acusa-se a si mesma
quando quer desesperar.
Karl Jaspers, República Federal da Alemanha,
A Bomba Atómica e o Futuro do Homem, 1958
319
O racismo é uma alienação completa que não preconiza apenas a separação dos corpos mas também a das inteligências e das almas. É inevitável que acabe por cometer
um homicídio físico ou espiritual para com o grupo excluído.
Martin Luther King, 1929-1968,
Estados Unidos da América, Para Onde Vamos?
320
Quanto mais uma minoria é reduzida, quanto mais a harmonização se arrisca a ser
substituída pelo cilindro compressor. E mais profundamente essa minoria é diferente
da maioria pois corre o risco de não ser respeitada. Tal é muitas vezes a realidade, a
feroz realidade entre grupos e indivíduos.
Dominique Pire, Bélgica, Viver ou Morrer Juntos, 1969
321
Que consideremos a revolta como um dever, surpreenderá muitos e escandalizará
talvez alguns. Os jovens devem ser indóceis, duros, fortes e tenazes (...) Aliás, como
é que o ingente trabalho que consiste em forjar a personalidade se poderá realizar
sem luta, sem arbitrariedade, sem revolta? (...) Creio que os espíritos conservadores
são necessários, mas na condição de que haja um contrapeso de espíritos revoltados
e inovadores (...)
Espírito destrutivo e espírito construtivo, espírito de progresso e espírito conservador: um e outro são necessários para que o mundo progrida. E, para além das
razões directamente políticas, há esta obscura mas inviolável razão da idade, que
impõe a indocilidade ao organismo em vias de formação e a moderação àquele que
alcançou a maturidade. Assim, o jovem conservador, é sempre, por causa disto, um
174 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
ser anacrónico, tal como o é, do ponto de vista cronológico, o velho revoltado. Com
a diferença de que o anacronismo é um defeito nos jovens e, quase sempre, uma
virtude nos velhos.
Gregorio Marañon, Espanha, Ensaios Liberais, 1946
322
Todos se manterão penetrados por este princípio sagrado: a vontade da maioria,
embora seja chamada a prevalecer em todas as circunstâncias, deve, para ser legítima, ser razoável; a minoria possui direitos legais, realmente protegidos por lei, e
violá-los seria fazer trabalho de opressor.
Thomas Jefferson, Presidente dos Estados Unidos da América,
Primeiro Discurso Inaugural, 4 de Março, 1801
323
A sociedade das nações e as minorias
O problema das minorias interessa a toda a Sociedade das Nações sem distinção. A
solicitude para com as minorias é geral e tão sincera de um lado como do outro. Se
essa solicitude é para uns de ordem sentimental, é para os Estados e para as minorias,
de ordem política.
(...)
Um Estado que não se esforçasse por assegurar o máximo de bem estar às suas
minorias, um Estado que não compreendesse que é na lealdade de todos os seus
cidadãos para com ele e não na aniquilação da individualidade cultural e religiosa de
alguns dos seus súbditos que reside o seu interesse primordial, um Estado que não
se apercebesse que deve ser o melhor defensor dos interesses bem compreendidos
das suas minorias, não só violaria a lei da humanidade que deve guiar toda a comunidade civilizada : violaria a lei da conservação da sua própria existência.
(...)
As obrigações dos Estados para com as minorias devem ser universais sob forma
de direito e sob forma de moral. O direito positivo perpetuamente regional é uma
concepção inadmissível. O direito das minorias não pode manter-se eternamente o
direito dos vencidos e dos recém chegados.
Nicolas Titulesco, 1882-1941, Roménia
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 175
324
Carta à Conferência Nacional dos Cristãos e dos Judeus de Washington, D.C.
Pertence-nos a todos encorajar o espírito de tolerância não só no seio do governo mas
também entre os diversos grupos da comunidade nacional. A tolerância não significa
que sejamos pouco ligados às nossas próprias crenças. Condena a repressão e a perseguição daqueles que têm outras.
John F. Kennedy,
Presidente dos Estados Unidos da América,
10 de Outubro de 1960
325
A liberdade é uma libertação, um processo especificamente histórico através da teoria e da prática e, como tal, contém a sua parte de verdade e de mentira, sem razão,
com razão e umas vezes sem e outras com.
A incerteza que predomina nesse trabalho de distinção não retira a objectividade
histórica mas precisa da liberdade de pensamento e de expressão como condições
prévias à descoberta do caminho da liberdade, precisa de tolerância. Contudo, essa
tolerância não pode ser imparcial e sem discernimento, tanto em palavras como
em acções. No que respeita ao conteúdo da expressão, não pode proteger-nos das
palavras mentirosas e das más acções que se revelam contradizer e impedir as possibilidades de libertação. Essa tolerância sem discernimento encontra justificação em
debates inofensivos, na conversação, nas discussões académicas; ela é indispensável
ao empreendimento científico e à religião privada. Mas a sociedade não tem o direito
de renunciar a exercer a sua faculdade de discernimento quando a pacificação da própria existência, da liberdade e da felicidade estão em jogo; de ora em diante, certas
coisas não podem ser ditas, certas ideias não podem ser expressas, certas políticas
não podem ser propostas, certas condutas não podem ser permitidas sem que se faça
da tolerância um instrumento que perpetue a servidão.
Herbert Marcuse, Estados Unidos da América,
Crítica à Tolerância Pura
326
Defesa de John Brown
(...)
O único governo que reconheço – pouco importa o pequeno número daqueles que o
chefiam, ou a fraqueza do seu exército – é o poder que estabelece a justiça num país,
nunca aquele que instaura a injustiça. O que pensar de um governo que tem por ini-
176 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
migos todos os homens justos e corajosos do país colocados entre ele e aqueles que
ele oprime? Um governo que se classifica como cristão e que todos os dias crucifica
um milhão de Cristos?
Henry David Thoreau, Estados Unidos da América,
Desobediência Civil, 1849
327
Profissão de fé de um deputado de uma nação livre
I
A liberdade é um direito que todo o homem recebe por natureza, e do qual a sociedade não pode livremente privar nenhum indivíduo perpetuamente, se este não tiver
sido acusado de um crime contra o qual tiver sido pronunciada uma pena.
II
Todo o atentado feito a um dos direitos naturais dos homens é um crime, que o interesse pecuniário daqueles que o cometeram não pode desculpar.
III
A propriedade deve ser sagrada e a sociedade não tem o direito de se apropriar arbitrariamente da propriedade de nenhum indivíduo.
IV
Um homem não pode ser propriedade de outro homem e, por consequência, o despotismo asiático é contrário à razão e à justiça.
V
Todos os cidadãos devem ser igualmente submetidos às leis e protegidos por elas.
VI
Todo o homem é obrigado a conformar a sua conduta à justiça, mesmo contra o
seu interesse, e seria infame vender a liberdade de outros homens por uma soma de
dinheiro.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 177
Profissão de fé de um plantador
I
A liberdade não é um direito que os homens tenham por natureza; e a sociedade pode
livremente reduzir os homens à escravatura, desde que isso traga proveito a alguns
dos seus membros.
II
O interesse pecuniário, se for minimamente considerável, pode legitimar todos os
atentados feitos aos direitos dos homens, os tratamentos bárbaros e mesmo os
homicídios.
III
A sociedade tem o direito de forçar uma classe de homens a trabalhar para proveito
de uma outra classe.
IV
Um homem pode ser propriedade de outro homem e, por consequência, o despotismo asiático não é contrário nem à razão, nem à justiça.
V
A lei pode tolerar a uma classe de cidadãos violências e crimes e castigar com severidade outra classe.
VI
Só somos obrigados a ser justos na medida em que a justiça está de acordo com o
nossos interesse, e é totalmente permitido sacrificar a liberdade dos outros homens
à nossa fortuna.
Basta comparar as duas profissões de fé para nos pronunciarmos sobre a admissão
dos deputados das colónias.
Condorcet, 1743-1794, França, Sobre a Admissão dos Deputados dos Plantadores de S. Domingos
à Assembleia Nacional
178 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
328
A história da Tunísia, desde há 1300 anos, é uma das raras histórias que nunca registou lutas religiosas. No entanto a Tunísia era o país onde conviviam mais religiões. No
seio de uma mesma religião, diferentes cismas e ritos viviam, lado a lado, em plena
harmonia. As lutas intestinas registadas foram apenas lutas dinásticas e de tomada
de poder.
Os Judeus, refugiados nos confins do sudoeste tunisino devido às perseguições das
dominações anti-islâmicas, ganharam de novo confiança com o espírito de tolerância trazido pelos Árabes e regressaram às regiões férteis do Norte. Receberam uma
organização autónoma em tudo o que respeitasse ao seu estatuto pessoal e, do
ponto de vista político e social, as liberdades, os direitos e as obrigações dos tunisinos
muçulmanos. Tiveram acesso às funções públicas da sua competência. Foi assim que
os cargos financeiros, os postos de chefe de protocolo, de intérprete, de médico, de
secretário íntimo do príncipe, lhes foram as mais das vezes confiadas.
Esta situação, eminentemente favorável ao desenvolvimento da sociedade não
muçulmana, provocou a emigração para Tunes de numerosas comunidades judias perseguidas pelo fanatismo europeu: contingentes consideráveis expulsos de Espanha,
de Portugal, de Itália, etc.
Em 1697, Rondam Bey edificou em Tunes uma igreja com os dinheiros do Estado e
a mão de obra tunisina, a fim de permitir aos Cristãos vindos da Europa - factores
interessantes da prosperidade económica - que exercessem o seu culto com toda a
comodidade (...)
Missionários do papa foram autorizados a residir em território tunisino e edificaramse igrejas um pouco por todo o lado, nas cidades.
Criaram-se escolas cristãs congregacionistas em Tunes, Susa, Sfax, Bizerta, Beja, La
Goulette. Em 1880 podiam-se contar vinte estabelecimentos de ensino congregacionista entre os quais um secundário, três escolas israelitas e um colégio tunisino que
ensinava línguas europeias.
De acordo com os direitos das gentes, o Pacto fundamental de 1857 e a Constituição
de 1861 reconheceram aos estrangeiros as mesmas garantias e os mesmos direitos
civis que aos tunisinos.
‘Abd al ‘Aziz al-Tha ‘ lib , Tunísia,
A Tunísia Mártir, as suas Reivindicações, 1920
329
Uma sociedade e um sistema de governo democráticos, embora constituam um dos
ideais mais elevados do homem, são dos mais difíceis de atingir. Numa democracia,
é demasiado fácil para a maioria esquecer os direitos da minoria e, para um governo
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 179
longínquo e poderoso, ignorar as reivindicações desta última. De igual modo é muito
mais fácil, quando os acidentes surgem, reprimi-los em nome da lei e da ordem. Não
esqueçamos que uma democracia é julgada pela história sobre o modo como a maioria tratou a minoria.
(...)
Por isso penso que nunca deveríamos reagir a pedidos de práticas conformes à justiça,
avançando com exemplos de injustiça. Se um direito é contestado ou recusado numa
província, tal não constitui uma razão válida para recusar esse mesmo direito noutra.
Argumentos deste género são contudo avançados e isto conduz a um círculo vicioso
no interior do qual nenhum progresso é possível para as liberdades humanas.
Pierre Elliot Trudeau, nascido em 1921, Canadá, Discurso, 1968
330
O princípio fundamental da democracia é a tolerância. Não podemos permitir nenhuma inquisição, legal ou ilegalmente mandatada, nem adoptar um critério de religião
para a concessão de lugares.
Calvin Coolidge, Presidente dos Estados Unidos da América,
Segundo Discurso Inaugural, 4 de Março de 1925
331
O uso da palavra “raça” é sempre sintomático da atitude social de um indivíduo. E o
sucesso das concepções antropológicas populares serve de termómetro político de
uma sociedade. É raro que um povo que reage, em crise, não faça apelo a essa noção
para justificar as suas tendências. Nunca uma sociedade onde circula a noção de raça
é uma sociedade democrática.
(...) Se a família é medíocre, pelo menos que a origem seja nobre. Antigamente, um
conflito de orgulhos ocorria no seio da sociedade, a partir das diferenças de castas,
de brasões, de árvores genealógicas. Desde que os aristocratas caíram, a burguesia
inventou a raça, medíocre democratização mercantil da ideia de nobreza (...) E, tal
como antigamente os casamentos desiguais manchavam a pureza do nome, hoje, a
raça deve preservar-nos de todo o contacto impuro.
Mihai Ralea, Roménia, Artigo em “Stânga”, 1933
332
Uma democracia só é viável se aqueles que gozam de liberdades cívicas reconhecerem aos outros a possibilidade de gozarem dos mesmos direitos. É preciso que eles
aceitem o direito que os outros têm de pensar diferentemente e de praticar outras
180 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
escolhas que não as deles. Nas sociedades tradicionais, todos os membros partilhavam as mesmas crenças religiosas, praticavam os mesmos ritos e tinham as mesmas
concepções do universo. A solidariedade tão elogiada das sociedades tradicionais
tinha como fundamento o conformismo. Mas é antiquado esperar que, nas actuais
circunstâncias, a solidariedade nascerá do conformismo. Nos Estados modernos, os
cidadãos são católicos, protestantes, muçulmanos ou animistas. E mais, podem ter
opiniões diferentes não só no que respeita à religião, mas também na ciência ou na
filosofia, na política ou sobre todas as ideologias ou questões. Bem entendido, todos
podem, no entanto, estar de acordo sobre a validade do ideal democrático e servi-lo
com lealdade. Onde as possibilidades de comunicação e de acesso a ideologias diferentes se abrem aos cidadãos, as opiniões e crenças diversas encontram uma oportunidade para se exprimir. Por consequência, a tolerância é indispensável ao sucesso da
democracia. Podemos mesmo dizer que ela constitui uma das suas mais importantes
características.
(...)
Também há outras razões que fazem com que a tolerância seja essencial à democracia. As sociedades democráticas reconhecem que todos os homens se podem
enganar. Ninguém é omnisciente, ninguém tem o monopólio da verdade, ninguém
incarna nem exprime a vontade de um povo inteiro. Os homens no poder podem
gozar do favor popular num determinado momento da história, mas tal não significa
que não se possam enganar, quer na sequência de um malentendido, quer devido a
uma falta de informação, de uma falsa apreciação da realidade; pode ainda acontecer que cedam à corrupção ou que sejam indiferentes aos efeitos dos seus actos
sobre os outros. Segundo a frase muitas vezes citada de Lord Acton “o poder tende
a corromper e o poder absoluto tende a corromper absolutamente”. Uma sociedade
democrática prevê métodos e instituições próprios para preservar a liberdade, tal
como jornais, associações voluntárias, partidos políticos, bem como um Parlamento
que a todo o momento pode criticar aqueles que governam o onde se podem expressar as opiniões daqueles que são governados. Tudo isto, para funcionar bem, exige
tolerância.
Kofi A. Busia, A África à Procura de Democracia, 1967
333
A tolerância universal só é possível se nenhum inimigo – real ou suposto – exigir,
como sendo de interesse nacional, a educação e o treino das pessoas na violência
militar e na destruição.
Enquanto estas condições não forem realizadas, a tolerância será de certo modo
“hipotecada”: porque se encontra determinada e definida pela desigualdade institu-
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 181
cionalizada (totalmente compatível com a igualdade constitucional), quer dizer, por
uma estrutura de classe da sociedade. Numa tal sociedade, a tolerância fica, de facto,
limitada por duas coisas: primeiro pela violência legal e pela repressão (polícia, forças
armadas, toda a espécie de guardas) e, segundo, pela posição privilegiada sustentada
pelos interesses dominantes e pelas suas “conexões”.
Estes limites implícitos da tolerância são mais importantes do que os limites formais
e judiciários, definidos pelos tribunais, pelo costume e pelo governo, tais como, por
exemplo, “perigo imediato e evidente”, ameaça à segurança nacional, heresia. No
interior de uma tal estrutura social, a tolerância pode ser proclamada e praticada com
toda a segurança. E é de duas espécies:
1. a tolerância passiva relativamente a atitudes ou ideias “estabelecidas” e profundamente arreigadas, mesmo que seja absolutamente evidente que elas têm um efeito
prejudicial sobre o homem e a natureza;
2. a tolerância activa, oficialmente concedida à direita e à esquerda, aos partidários
da agressão como aos partidários da paz, ao partido do ódio como ao partido da
humanidade. Chamo a essa tolerância, livre de toda a tomada de posição, uma tolerância “abstracta” ou “pura”, tanto mais que ela impede qualquer ligação a um partido; por isso, de facto, ela salvaguarda a máquina de discriminação já existente.
Herbert Marcuse, Estados Unidos da América,
Crítica da Tolerância Pura
334
Seria aborrecido se Cristo
Voltasse, e fosse preto.
Há tantas igrejas
Onde não poderia rezar
Nos Estados Unidos
Em que o acesso dos Negros
Por santos que sejam, é proibido.
Em que se celebra
Não a religião
Mas a raça.
Experimentai dizê-lo
E pode ser que sejais
Crucificados.
É proibido publicar
Langston Huhges, 1902-1967, Estados Unidos da América
182 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
335
Discurso pronunciado na Universidade Americana, Washington
A paz do mundo tal como a paz da comunidade não exige que cada homem ame o seu
próximo – apenas exige que os homens vivam em conjunto numa tolerância mútua e
que aceitem submeter os seus diferendos a um regulamento justo e pacífico.
John F. Kennedy, presidente dos Estados Unidos da América,
10 de Junho de 1963
336
Não basta dizer: “Gostamos dos Negros, temos muitos amigos Negros.” É preciso exigir que lhes seja feita justiça. O amor que não paga a sua dívida de justiça não merece
o seu nome (...) No melhor sentido do termo, amar é fazer aplicar a justiça.
Martin Luther King, 1929-1968, Estados Unidos da América,
Para Onde Vamos?
337
Tenho de dar a conhecer claramente a minha posição. E ela é simples: não sou partidário de nenhuma forma de racismo. Não acredito em nenhuma forma de racismo.
Não acredito em nenhuma forma de discriminação ou de segregação. Creio no Islão.
Sou muçulmano e penso que não há mal nisso , que não há nada de mau na religião islâmica. Apenas nos ensina a acreditar em Alá, o nosso Deus. Sem dúvida que
aqueles de entre vós que são Cristãos acreditam no mesmo Deus pois penso que
acreditam no Deus criador do Universo. É nesse Deus que acreditamos, no Criador
do Universo – a única diferença está em que lhe chamais Deus enquanto que nós lhe
chamamos Alá. Os Judeus chamam-lhe Jahvé. Se compreendesseis o hebreu, certamente que também lhe chamaríeis Jahvé. Se compreendesseis o árabe, certamente
que também lhe chamaríeis Alá. Mas visto que o vosso amigo homem branco vos
despojou da vossa língua, no tempo da escravatura, a única língua que sabeis falar é
a dele. Conheceis tão bem a língua do vosso amigo que quando ele vos põe a corda
ao pescoço, invocais Deus enquanto que ele invoca Deus. E perguntais por que razão
aquele que invocais nunca vos responde.
Malcom X, 1925-1965, Estados Unidos da América,
Malcom X fala
338
A distinção de Robespierre entre terror revolucionário e terror despótico, tal como a
glorificação moral do primeiro, constitui uma aberração unanimemente condenada,
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 183
embora o terror branco se revelasse mais mortífero do que o outro. Uma apreciação
comparativa que atende ao número das vítimas equivale a uma aproximação quantitativa, que apenas revela as atrocidades cometidas pelo homem no decurso da
História quando ele erige a violência em necessidade! Mas se considerarmos o papel
histórico da violência, há verdadeiramente uma diferença entre a violência revolucionária e reaccionária, entre a violência praticada pelos oprimidos e pelos opressores. Aos olhos da ética ambas são desumanas e más. Mas desde quando a História
obedece a regras morais? E se para aplicar critérios morais à História escolhermos o
momento preciso em que os oprimidos se revoltam contra os carrascos, os despossuídos contra os possuidores, servimos a causa da violência real, enfraquecendo os
protestos que ela levanta.
Herbert Marcuse, Estados Unidos da América,
Crítica à Tolerância Pura
339
Esta nação foi criada por homens de várias nações e de diversas origens. Foi criada
segundo o princípio de que todos os homens nascem iguais e que os direitos de todos
os homens são lesados quando os direitos de um só homem são ameaçados. Deveria
ser possível para todo o Americano gozar do privilégio de ser Americano, sem consideração da sua raça ou cor. Em resumo, cada Americano tem o direito de ser tratado
como deseja ser tratado, como desejamos que os nossos próprios filhos sejam tratados. Mas não é este o caso. Uma criança negra nascida hoje na América, qualquer
que seja o sector da nação em que nasceu, tem cerca de metade das chances que tem
uma criança branca, nascida no mesmo local e no mesmo dia, de conseguir fazer a
escolaridade completa ; tem três vezes menos chances de aceder ao nível profissional,
duas vezes mais de ficar sem emprego (...) a sua esperança de vida é sete vezes mais
curta e a sua perspectiva de a ultrapassar é menos de metade.
Não se trata de um problema particular de uma qualquer fracção da nação. Os homens
de coração e de boa vontade deveriam ser capazes de se unir para além de todos os
partidos e de todas as políticas (...) Trata-se de um problema da ordem moral, tão velho
como as Escrituras e tão claro como a Constituição americana. Se um Americano, porque
a sua pele é escura, não pode aceder a uma vida livre e feliz tal como todos desejamos,
qual de nós desejaria mudar a cor da sua pele? qual de nós tomaria o seu lugar? Qual de
nós se acomodaria aos conselhos de paciência e se acomodaria a esta espera? Passou
um século desde que o Presidente Lincoln libertou os escravos e no entanto, os seus
descendentes, os seus netos, ainda não são inteiramente livres. Ainda não estão libertos
da opressão social e económica e esta nação, a despeito das suas afirmações e das suas
esperanças, não será plenamente livre enquanto os seus cidadãos não o forem.
184 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Pregamos a liberdade ao mundo inteiro, fazemo-lo sinceramente e somos ciosos das
nossas liberdades, aqui, na nossa terra. Devemos dizer ao mundo – e, o que é mais
importante, a nós mesmos – que o nosso país é a terra dos homens livres excepto
para os Negros, que não temos nem classes nem sistemas de castas, não temos
guetos, não temos raça superior, excepto no que respeita aos Negros? Chegou a hora
de esta nação cumprir os seus compromissos. (...) Estamos perante uma crise moral
enquanto país e enquanto povo. Não basta imputar a responsabilidade aos outros,
dizer “isto é um problema que apenas concerne uma fracção do país” e lamentar este
estado de coisas. É um facto que se aproximam grandes mudanças, e que a nossa
tarefa e o nosso dever consistem em fazer de modo que essa revolução, que essas
mudanças, se dêem em paz e de modo construtivo para todos nós.
John F. Kennedy, Presidente dos Estados Unidos da América,
Interpelação ao Povo Americano
(discurso pronunciado na Casa Branca), 11 de Junho de 1963
340
Não só os Brancos do Sul não me conheceram, mas, facto ainda mais importante,
o modo como tinha vivido no Sul não me tinha permitido conhecer a mim mesmo.
Abafada, comprimida pelas condições de existência no Sul, a minha vida não tinha
sido o que deveria. Tinha-me resignado ao que as pessoas à minha volta, a minha
família, em conformidade com as leis editadas pelos Brancos que as dominavam,
tinham exigido de mim, tinha sido o personagem que os Brancos me tinham atribuído. Nunca tinha podido ser realmente eu próprio, e aprendi pouco a pouco que o Sul
só conseguia reconhecer uma parte do homem, só podia admitir um fragmento da
sua personalidade, e que rejeitava o resto, o mais profundo e o melhor do coração e
do espírito – por ignorância cega e por ódio.
Deixei o Sul para me lançar no desconhecido, ao encontro de situações novas que talvez me arrancassem outras reacções. E se conseguisse encontrar uma vida diferente,
então talvez pudesse, lenta e gradualmente, aprender quem era e o que poderia ser.
Deixei o Sul não para esquecer o Sul mas para um dia o compreender, saber o que me
tinham feito os seus rigores, a mim e a todos os seus filhos. Fugi para que se apagasse
essa insensibilidade consecutiva a anos de vida defensiva e para poder sentir (muito
mais tarde e longe de lá) as cicatrizes dolorosas deixadas pela minha vida no Sul.
E no entanto, no mais profundo de mim mesmo, sabia que nunca poderia deixar
realmente o Sul, que os meus sentimentos já tinham sido moldados pelo Sul, pois por
muito Negro que fosse, a cultura do Sul tinha-se paulatinamente infiltrado na minha
personalidade e na minha consciência. Assim, ao partir, levava comigo uma parcela do
Sul para a transplantar num solo estrangeiro, a fim de ver se ela podia crescer de um
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 185
modo diferente, se podia beber uma água fresca e nova, curvar-se ao sopro de ventos
estrangeiros, reagir ao calor de novos sóis, e talvez florir... E se esse milagre se realizasse, saberia então que há ainda esperança nesse pântano de desespero e de violência
que é o Sul, saberia que a luz pode nascer mesmo nas mais negras trevas. Saberia que
também o Sul poderia vencer o seu medo, o seu ódio, a sua cobardia, a sua herança de
crimes e de sangue, o seu fardo de angústia e de crueldade desenfreada.
Em atitude de alerta, ostentando cicatrizes visíveis e invisíveis, dirigi-me para Norte,
imbuído da noção brumosa que a vida podia ser vivida com dignidade, que não se
deve violar a personalidade dos outros, que os homens devem poder defrontar outros
homens sem medo nem vergonha e que com sorte – na existência terrestre – talvez
possam encontrar uma espécie de compensação para as lutas e sofrimentos que
experimentam cá em baixo, sob as estrelas.
Richard Wright, Estados Unidos da América, Black Boy, 1945
341
Seremos emigrantes?
Sempre achei falso este nome que nos davam:
Emigrantes.
Quer dizer que emigrámos. Mas
nós não emigrámos voluntariamente.
Não escolhemos outro país.
Também não emigrámos
num país para aí ficar, se possível para sempre.
Não, nós fugimos. Escorraçados, banidos, eis o que somos.
O país que nos recebeu
não deve ser um lar, mas um exílio.
Nele estamos, impacientes, muito próximos da fronteira,
esperando a hora do regresso, observando a mínima
mudança
do outro lado da fronteira, interrogando febrilmente
aquele que vem de novo,
nada esquecendo, nada cedendo, nada perdoando do que se
passou.
Ah! O silêncio da hora não nos engana!
Chegam-nos aqui os gritos que sobem dos seus
campos.
Somos quase nós próprios como o rumor
das suas culpas,
186 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
que transpõem as fronteiras.
Cada um de nós,
caminhando na multidão com os sapatos esburacados,
testemunha a vergonha que hoje cobre a nossa terra.
Mas nenhum de nós
aqui ficará. A última palavra
ainda não foi proferida.
Bertolt Brecht, 1898-1956, República Democrática Alemã
UM ACORDO AMBÍGUO
Concessões espirituais
As contradições maiores foram aparentemente ultrapassadas, outras emergiram desta
própria resolução, outras, implícitas, não foram ainda actualizadas.
Estamos agora num momento de síntese parcial deste livro, aquele em que, sob a pressão
da história, há uma certa representação do homem e do mundo que lentamente se desfaz, para se recompor, no seu próprio movimento, segundo uma nova ordem de valores.
Acaba-se uma estrutura, a da preeminência, mundana e espiritual, de tal ou tal grupo
socio-económico-cultural. Recolhido o imperialismo espiritual, é preciso viver juntos
nesta terra e elaborar as leis de coexistência que o real imediato exige. Entre uma violência ineficaz e uma indiferença impossível, só há escolha para um diálogo franco e
pacífico ao qual chamaremos, à falta de melhor, “tolerância” e que, pelo menos, exclui
em princípio qualquer hierarquia entre “verdades” particulares. De repente, o antigo
valor do proselitismo é posto à distância, indefinidamente diferido: entre homens de
crenças opostas ou diferentes, a própria fé faz-se “deliberadamente” relativa, na exigência de uma dignidade mais elevada de si mesmo, do Outro e de todos os Outros.
A diferença entre o sonho medieval e a paz táctica da idade da separação das Igrejas e
dos Estados, é que, pelos efeitos da consciência política, o mundo já não está no modus
vivendi nem nas perseguições vigiadas, tendo entrado numa contiguidade incómoda,
em busca de uma unidade concreta. Encerrou-se a idade teológica e o Estado relativo
sucede aos deuses absolutos.
342
O que vos proponho como ideal de paz não consiste de modo algum em que cada um
seja neutro, não tome partido, não escolha, não tenha convicções ou não as mostre.
O caminho também não é aquilo a que chamam sincretismo, segundo o qual se pensa
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 187
resolver as diferenças misturando todos os credos. Penso, pelo contrário, numa paz
que se realiza nas nossas diferenças e chamo ao seu caminho Diálogo Fraterno. Este
situa-se exactamente entre a supressão daquele que difere de mim e a submissão
total a ele.
Dominique Pire, Bélgica, Viver ou Morrer Juntos, 1969
343
Não gosto da palavra tolerância mas não encontro uma melhor. A tolerância pode
implicar a suposição, aliás completamente gratuita, que a fé do outro é inferior à
nossa, enquanto que a ahimsa nos ensina a conservar, para com a fé religiosa dos
outros, o mesmo respeito que temos pela nossa, da qual reconhecemos assim a
imperfeição. Esta admissão será fácil para aquele que procura a Verdade, para aquele
que obedece à lei do Amor. Se tivéssemos chegado à visão plena da Verdade, não mais
seríamos pesquisadores, seríamos um só com Deus, porque a Verdade é Deus. Mas
porque ainda estamos à procura, prosseguimos a nossa pesquisa e estamos conscientes da nossa imperfeição. Ora, se nós mesmos somos imperfeitos, a religião, tal
como a concebemos, também deve ser imperfeita. Não realizámos a religião na sua
perfeição, tal como não realizámos Deus. Visto que a religião, tal como a concebemos,
é imperfeita, ela é sempre susceptível de evolução e de re-interpretação. O progresso
em direcção à Verdade e a Deus só é possível devido a essa evolução. E se todas as
concepções religiosas pensadas pelos homens são imperfeitas, não se pode falar de
superioridade ou de inferioridade de uma relativamente a outra. Todas as Crenças
constituem a revelação da Verdade, mas todas são imperfeitas e falíveis. O respeito
que experimentamos por outras Crenças não deve impedir-nos de ver os seus defeitos. Devemos também estar infinitamente conscientes dos defeitos da nossa própria
crença, e no entanto não a abandonar por essa razão, mas tentar ultrapassar os seus
defeitos. Se considerarmos sem parcialidade todas as religiões, não só não hesitaremos em juntar à nossa todas as características desejáveis das outras, mas ainda
consideraremos que isto é um dever para nós.
Mah tma Ghandi, 1869-1948, Ìndia, Cartas a Ashram
344
É justiça distinguir sempre entre o erro e aqueles que o cometem, mesmo que se trate
de homens cujas ideias falsas ou cuja insuficiência de noções concernem a religião ou
a moral. O homem extraviado no erro mantém-se sempre um ser humano e conserva
a sua dignidade de pessoa, a qual devemos ter sempre em conta. Também nunca o ser
humano perde o poder de se libertar do erro e de abrir um caminho para a verdade. E
188 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
para o ajudar, nunca lhe falta o socorro providencial de Deus. É pois possível que um
tal homem, hoje privado da claridade da fé ou desencaminhado pelo erro, se encontre
amanhã, graças à luz divina, capaz de aderir à verdade. Se devido a realizações temporais os crentes entram em relação com homens que concepções erradas impedem de
crer ou de ter uma fé completa, estes contactos podem ser ocasião ou estímulo para
um movimento que leve tais homens à verdade.
João XXIII, Papa, Encíclica “Pacem in terris”, 1963
345
– Irmão em Deus, que vieste ao limiar da nossa zaouïa, célula de Amor e de Caridade,
não entres em disputa com o adepto de Moisés nem com o de Jesus pois Deus testemunhou a favor das suas profecias. – E os outros? – Deixa-os entrar e saúda-os
fraternalmente para honrar neles o que herdaram de Adão (...) Há em cada descendente de Adão uma parcela do espírito de Deus. Como ousaríamos desprezar um
vaso que contém um tal conteúdo?
(...)
O arco íris deve a sua beleza aos tons variados das suas cores. De igual modo olhamos
as vozes dos diversos crentes que se elevam de todos os pontos da terra, como uma
sinfonia de louvores dirigidos a Deus que não poderia deixar de ser Único.
(...)
– Será lícito falar com os estrangeiros sobre a sua religião?
– Por que não? É preciso falar com eles se conseguires manter-te educado e cortês.
Terias tudo a ganhar se conhecesses as diferentes formas de religião (...) Não devemos crer que a religião de cada um é a única que possui a verdadeira fé (...) A religião, aquela que Jesus quer e que Maomé não detesta, é aquela que, como o ar puro
e livre, está em contacto permanente com o sol da Verdade e da Justiça no Amor do
Bem e da Caridade para todos.
(...)
Quando a adoração ilumina a alma de um homem, qualquer que seja a sua raça, esta
[a alma] ganha o brilho do “diamante” místico. Não há que atender nem à sua cor
nem o seu nascimento.
Salif Tall Tierno-Bokar, 1884-1948, Senegal,
Citado por Th. Monod
346
O facto de aceitarmos a doutrina da igualdade das religiões não faz desaparecer a
distinção entre religião e irreligião. Não é nossa intenção encorajar a tolerância para
com a irreligião. É verdade que se pode defender que, em certas condições, não mais
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 189
é possível ser imparcial, porque cabe a cada um decidir por si o que é religião e o que
é irreligião. Se obedecermos à lei do Amor, não sentiremos qualquer ódio pelo nosso
irmão não religioso. Pelo contrário, amá-lo-emos e, por consequência, ou o levaremos
a ver o seu erro, ou ele nos fará compreender o nosso, ou cada um tolerará a opinião
diferente do outro. Se o outro não observa a lei do Amor, pode manter-se violento
para connosco, mas se temos por ele um amor verdadeiro, o nosso amor acabará por
triunfar sobre a sua animosidade. Todos os obstáculos que estão no nosso caminho
se dissiparão contanto que observemos a regra de ouro, que não sejamos impacientes
para com aqueles que acreditamos estarem no erro, e que estejamos prontos, em
caso de necessidade, a sofrer pessoalmente.
Mah tma Ghandi, 1869-1948, Ìndia, Cartas a Ashram
347
Toda a religião vem de Deus, há apenas uma única religião, a mesma para os homens
que nos precederam e para aqueles que virão depois de nós; só difere pela sua forma
exterior e a sua aparências; o seu espírito e a verdade proclamada pela boca dos profetas de todos os tempos, não muda. Essa verdade diz aos homens que acreditem em
Deus, que o adorem sinceramente e sem segundas intenções, que mutuamente se
exortem a fazer o bem e a evitar o mal, tanto quanto está em seu poder.
Al-Cheikh Mu ammad ‘Abduh, Egipto,
Al-Isl m wa-al-Na r niya (Islão e Cristianismo), 1901
348
A melhor atitude actual para a defesa da verdade santa, mais desarmada do que
nunca, é não nos servirmos dela como de uma matraca mas sim aceitarmos ser
matraqueados por Ela, sermos espancados por Ela, tal como pensam contra nós os
nossos irmãos, no seu insensato desespero. Porque nós não queremos que eles se
tornem piores, mas que vivam connosco na paz, que um dia há de voltar. E, enquanto
esperamos, queremos morrer anátemas para estes irmãos que estão perdidos ou que
crêem estar perdidos.
Louis Massignon, França, Carta aos Amigos de Gandhi, 1961
349
Toda a religião tem a sua origem numa revelação. Nenhuma religião detém a verdade absoluta, nenhuma é um pedaço de céu transplantado para a terra. Cada
religião representa uma verdade do homem. Isto significa que a religião exprime
a relação de uma dada comunidade humana com o Absoluto. Cada religião é uma
190 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
morada para a alma humana sequiosa de Deus, uma morada provida de janelas
e sem porta; só tenho que abrir uma janela para que a luz de Deus nela penetre.
Mas se faço um buraco na parede e me evado, não só fico sem habitação como me
rodeia uma luz gelada que não é a luz do Deus vivo. Cada religião é uma terra de
exílio onde o homem é lançado e na qual é, mais do que em qualquer outro lado,
separado das outras comunidades humanas pela forma da sua relação com Deus. E
só seremos libertados deste exílio e só teremos acesso ao mundo de Deus, comum
a todos, depois da redenção do mundo. Mas as religiões que sabem que todas elas
estão associadas numa espera comum, podem comunicar entre si, de um lugar
de exílio a outro, de morada em morada, através das janelas abertas. Mais ainda:
podem reunir os seus esforços para tentar encontrar o que pode ser feito pelo
homem para se aproximar do tempo da redenção. É concebível uma acção comum
de todas as religiões embora cada uma delas só possa agir no interior da sua própria morada. Mas tal só será possível na medida em que cada religião recupere a
sua origem, quer dizer, a revelação que está na sua origem e na qual ela procede à
crítica de tudo aquilo que a afastou do processo histórico do seu desenvolvimento.
As religiões históricas têm tendência a tornar-se fins em si mesmas e a substituirse, por assim dizer, a Deus, de modo que, na verdade, não há nada mais capaz de
obscurecer a face de Deus do que uma religião. As religiões devem estar atentas
à vontade de Deus. Cada uma deve aceitar o facto de ser apenas uma das formas
sob a qual a elaboração humana da mensagem de Deus se exprimiu, de não ter o
monopólio do divino; cada uma deve renunciar à pretensão de ser a morada única
de Deus na terra e deve aceitar ser a morada de homens animados por uma mesma
imagem de Deus, uma casa aberta para o exterior. Cada uma deve abandonar a sua
atitude exclusiva – sem fundamento verdadeiro – e adoptar um comportamento
mais próximo da verdade. E ainda há que fazer algo mais: as religiões devem unir os
seus esforços para decifrar a vontade de Deus, devem esforçar-se, na perspectiva da
revelação, por ultrapassar os problemas comuns que lhes levantam as contradições
entre a vontade de Deus e a realidade do mundo. Ficam então unidas não só numa
espera comum de redenção, mas também nas tarefas quotidianas de um mundo
que ainda não foi salvo.
Martin Buber, 1878-1965, Israel
350
O facto de o socialismo e a religião serem duas coisas diferentes não implica no
entanto que o socialismo seja anti-religioso. Numa sociedade socialista, os membros da comunidade deveriam ser livres para acreditar em Deus e para praticar a
religião que desejassem. Uma tal sociedade deveria esforçar-se por não promulgar
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 191
decisões de natureza a ofender os sentimentos religiosos de qualquer um dos seus
membros, por fraco que seja o grupo a que ele pertence.
(...)
Esta necessidade de tolerância religiosa resulta da própria natureza do socialismo.
Porque as crenças religiosas de um homem têm muita importância na sua vida pessoal e o fim do socialismo é servir o homem. O socialismo não quer apenas servir uma
entidade abstracta denominada “povo”. Esforça-se para que beneficiem das benfeitorias da sociedade o maior número possível dos indivíduos que a compõem. É portanto
o carácter essencialmente privado das crenças religiosas que faz com que o socialismo deva conceder às opções religiosas toda a latitude de expressão – na medida do
possível – o que implica a necessidade que o socialismo tem de ser laico.
Julius K. Nyerere, nascido em 1922, República Unida da Tanzânia,
Liberdade e Unidade, 1964
351
Mas é pela sua consciência que o homem percebe e reconhece as imposições da lei
divina; é a ela que deve seguir fielmente em todas as suas actividades, para alcançar
o seu fim que é Deus. Não deve ser obrigado a agir contra a sua consciência. Mas
também não deve ser impedido de agir segundo a sua consciência, sobretudo em
matéria religiosa. Efectivamente, pelas suas próprias características, o exercício da
religião consiste primeiro que tudo em actos interiores voluntários e livres pelos quais
o homem se consagra directamente a Deus: tais actos não podem ser impostos nem
proibidos por nenhum poder puramente humano. Mas a própria natureza social do
homem exige que ele exprima exteriormente esses actos internos de religião e que
em matéria de religião estabeleça intercâmbio com os outros e que professe a sua
religião de um modo comunitário.
Por consequência ofende-se a pessoa humana e a própria ordem estabelecida por
Deus relativamente aos humanos quando se recusa ao homem o livre exercício da
religião no plano da sociedade, desde que a ordem justa seja salvaguardada.
Para mais, por natureza, os actos religiosos pelos quais, em privado ou em público,
o homem se consagra a Deus em virtude de uma decisão pessoal, transcendem a
ordem terrestre e temporal das coisas. O poder civil, cuja finalidade própria é satisfazer o bem comum temporal, deve certamente reconhecer e favorecer a vida religiosa
dos cidadãos mas há que dizer que ultrapassa os seus limites quando se arroga o
direito de dirigir ou de impedir actos religiosos.
Concílio Vaticano II, Declaração “Dignitatis humanae” sobre a liberdade religiosa, 1965
192 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
352
Enquanto não respeitarmos a honra dos crentes não cristãos, dos quais, como dizem
os missionários, realizamos mecanicamente a “conversão”, traímos Deus e não
encontramos a verdade para nós mesmos.
A “conversão” não é um certificado de trânsito que colamos à consciência dos outros,
é um aprofundamento do que há de melhor na sua actual lealdade religiosa que a
nossa catálise pode neles determinar, no decurso do trabalho comum; contanto que a
nossa máscara de substitutos nos transforme realmente num deles, pela compaixão,
pela transferência do sofrimento e, acrescentemos com ousadia, pela esperança. Mas
devemos formam servi acceptus, fazer com que encontrem em si mesmos a libertação, vendo neles o rosto de Cristo ultrajado e redentor, que nos levou a amá-los e a
abandonar, se for preciso, os nossos por eles. É por isso que (...) a refeição de hospitalidade partilhada entre companheiros de trabalho, na honra, prefigura a extensão
da última Ceia a toda a humanidade, onde um fora de lei, condenado em nosso lugar,
nos estendeu o pão e o vinho da Hospitalidade divina.
Louis Massignon, França, Palavra Dada, 1962
353
O Concílio do Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa.
Esta liberdade consiste em que todos os homens devem ser subtraídos a qualquer
constrangimento por parte tanto dos indivíduos como dos grupos sociais ou de qualquer poder humano, de modo que em matéria religiosa ninguém seja forçado a agir
contra a sua consciência nem impedido de agir, dentro dos justos limites, segundo
a sua consciência, quer em privado quer em público, sozinho ou associado a outros.
Declara, ainda mais, que o direito à liberdade religiosa tem o seu fundamento na própria dignidade da pessoa humana tal como a fizeram conhecer a palavra de Deus e a
própria razão. Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa na ordem jurídica
da sociedade deve ser reconhecido de tal maneira que constitua um direito civil.
Em virtude da sua dignidade, todos os homens, porque são pessoas, quer dizer, dotados de razão e de vontade livre, e por consequência, providos de responsabilidade
pessoal, são pressionados, pela sua própria natureza, e levados, por obrigação moral,
a procurar a verdade, em primeiro lugar aquela que diz respeito à religião. É suposto
também que adiram à verdade desde que a conheçam e que regulem as suas vidas
segundo as exigência dessa verdade. Ora, os homens só podem satisfazer esta obrigação, de uma maneira conforme à sua própria natureza, se gozarem, para além da
liberdade psicológica, de imunidade relativamente a qualquer constrangimento exterior. Não é pois sobre uma disposição subjectiva da pessoa, mas sobre a sua própria
natureza, que se funda o direito à liberdade religiosa. É por isso que o direito a essa
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 193
imunidade persiste mesmo naqueles que não satisfazem a obrigação de procurar a
verdade e de a ela aderir; o seu exercício não pode ser impedido, desde que se mantenha salvaguardada uma ordem pública justa.
Concílio Vaticano II, Declaração “Dignitatis humanae” sobre a liberdade religiosa, 1965
354
[Alocução pronunciada na colocação da primeira pedra da Universidade para a Paz]
É aqui que se encontra a verdadeira fecundidade de um esforço. Queremos (...) levar
tão longe quanto possível o diálogo entre os homens, levá-lo até ao respeito integral do outro enquanto tal, em tudo o que o constitui como outro. É por isso que a
palavra “tolerância” nos parece insuficiente. Não toleramos um irmão. Estimamo-lo,
apreciamo-lo e depois amamo-lo. Queremos estimar e amar aqueles que são “outros”,
respeitando totalmente aquilo que os faz “outros”.
O nosso amigo, o saudoso Emmanuel Mounier, escreveu: “... Creio que o dever do
homem espiritual é lutar contra todas as sociedades fechadas, sobretudo e principalmente contra aquelas que tendem a formar-se em torno de um pretexto religioso. A
missão dos homens espirituais nos tempos modernos parece-me ser a de uma total
presença, extra muros, num mundo em edificação e perseguição. Não quero um
gueto confessional católico tal como não quero um gueto confessional judeu. Para
mais, quando pensamos na delimitação do homem em fronteiras espirituais, há que
ler: aceitação das delimitações racistas. E aí, a menor concessão é mortal.
Dominique Pire, Bélgica, Viver ou Morrer Juntos, 1969
355
[Extracto dos Catorze Pontos do presidente Wilson]
Um princípio evidente domina todo o programa que esbocei. É o princípio que assegura a justiça a todos os povos e a todas as nacionalidades, que proclama o seu direito
a viver no mesmo pé de igualdade, em liberdade e em segurança, ao lado das outras
nações, sejam elas fortes ou fracas. Se esse princípio não se tornar um fundamento,
o edifício da justiça internacional desmoronar-se-á completamente.
Thomas Woodrow Wilson, Presidente dos Estados Unidos da América, Discurso ao Congresso,
8 de Janeiro de 1918
194 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
A pedra de toque da censura
O fundamento desta hipótese de civilização pós-teológica, é que a liberdade de qualquer sociedade não é mais do que a soma das liberdades dos indivíduos que a compõem. Para terminar, submetamos este novo rosto, à contraprova de duas expressões
entre outras significativas: a comunicação e a comunhão universais; em termos claros,
a censura e o racismo.
Ao longo da presente obra houve vozes que aqui e ali falaram do destino diferente
das palavras ou dos escritos perturbadores, desde o poema ao manifesto do pensador.
A secção que se segue tentará sintetizar o conflito da boa e da má consciências, do
poder e dos seus contestatários. Nela se constatará essencialmente que o que para a
intolerância religiosa era genericamente heresia, é igualmente inadmissível sob a sua
nova denominação de “imoralidade” e que, se na idade teológica havia que destruir o
herético, na idade liberal, em nome das leis, das circunstâncias ou da livre concorrência,
podemos reduzir todo o contestatário ao silêncio.
Deste sucedâneo de uma intolerância de dominante religiosa, o conflito da razão de
Estado e da exigência de tudo comunicar livremente é apenas excepcional, na medida
em que, o fundo é sempre de essência política, embora com alguns desvios de acentuação. Noutros tempos, ficávamos no postulado: fora da minha verdade não há salvação; agora, todo o pensamento que pretenda usar o seu direito de comunicar deve
previamente submeter-se ao crivo de uma dupla censura, a ordem estabelecida e a sua
própria: “cinzento sobre cinzento”, dizia Marx “é a única cor da liberdade que a lei me
autoriza a usar”.
Ora, tendo-se a verdade laicizado e procurando universalizar-se, tais premissas são
absurdas, mais não fora pela razão de que “ninguém acredita em nada do que afirma
uma autoridade que não permite que lhe respondam”. E ainda é preciso que a liberdade
de crítica não seja um meio, mas um fim. Mais grave ainda: todo o partidário da censura institucional se encontra fatalmente, numa ou noutra ocasião, na ratoeira desta
evidência brusca: “Tínheis partido dos abusos da liberdade, [eis-vos] sob os pés de um
déspota.”
***
No começo, e se acreditarmos no poder moderno, “a imprensa é um arsenal que não
interessa colocar ao alcance de todos... trata-se de um estado que interessa à política”.
Daí o recurso à censura, dissimulada ou oficial. Para exprimir a sua opinião, Germaine
de Staël em vão “interditou-se qualquer reflexão sobre o estado político”, enquanto que
Lukács se verá constrangido a encher os seus trabalhos filosóficos de citações de Estaline
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 195
e de só exprimir a sua “opinião dissidente” com “todas as precauções” que ainda eram
permitidas pela “fraca margem de respiração”. No limite e sob um regime autoritário,
uma ideia não é mais do que “ o traço de união entre duas citações” de pensadores do
momento.
A censura e o auto da fé modernos não recorrem a argumentos diferentes dos da
Inquisição medieval, esta em nome de um Deus exclusivo, estes sob a cobertura da
“omnisciência do poder absoluto”. Entre os dois a repressão não mudou nem de natureza nem de meios, apenas se tornou itinerante, como a sombra da nova liberdade.
Antigamente, a liberdade de consciência era excluída, agora, é a liberdade de juízo e de
expressão, que se pretende controlar. Como reacção, a natureza da resposta não muda:
se a repressão da consciência é vã e absurda , a da expressão – de igual natureza – não
o é menos. E recomeça o ciclo da luta contra o sono, da banditização da razão, com
tudo o que isto implica de violências, de abusos, de exílios e de humilhações de homens
por outros homens. Eis-nos de novo –quase excluída a fogueira - numa nova barbárie.
A Soror Juana de la Cruz responde Madame de Staël; a Sócrates, all j e Servet respondem Lukács, D.H. Lawrence, Joyce; e a Galileu, Einstein ou Oppenheimer.
De um ponto de vista liberal, “para recolher os bens inestimáveis que a liberdade de
imprensa assegura, é preciso submeter-se aos males inevitáveis que ela faz nascer.
Querer obter uns, escapando aos outros, é entregar-se a uma dessas ilusões onde vulgarmente se embalam as nações doentes... (que) procuram os meios de fazer co-existir,
simultaneamente, no mesmo solo, opiniões inimigas e princípios contrários”. De um
ponto de vista revolucionário, Lenine dirá: “não acreditamos em absolutos, rimo-nos
da democracia pura... De momento, a burguesia de todo o mundo é mais forte do que
nós, muitas vezes mais forte. Dar-lhe como excedente uma arma como a liberdade de
organização política (= a liberdade de imprensa, porque a imprensa é o centro e a base
da organização política) é facilitar a tarefa ao inimigo, é ajudar o inimigo de classe. Não
queremos suicidar-nos e assim não o faremos.”
Duas posições contraditórias fazem com que “nos nossos dias, a ideia de liberdade
intelectual seja atacada por dois lados. De um lado estão os seus inimigos teóricos, os
apologistas do totalitarismo; do outro, os seus inimigos imediatos e práticos, o monopólio e a burocracia.”
Nas abertas desta luta , só as paredes se fazem por vezes ouvir, bem como a alusão.
Se toda a reflexão livre é um pretexto contra a segurança nacional, se os pensadores, os
artistas e os criadores têm direito à livre expressão mas não têm meios concretos para
preservar o seu exercício, se um qualquer regime apenas permite que as criaturas escolham a perseguição ou a ortodoxia, e se se mantém um lugar para o censor político ou
moral entre o artista e a lei, o acordo tão dificilmente concluído no termo de séculos de
luta da liberdade contra a força é na realidade um acordo ambíguo.
196 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
356
A imprensa é um arsenal que não interessa colocar ao alcance de todos. A imprensa
não é um comércio; não basta uma patente para nela se trabalhar; trata-se de um
estado que interessa à política; e daí a política dever ser o seu juíz.
Napoleão I, França, Dezembro 1809
357
Em 1810 dei o manuscrito desta obra sobre a Alemanha ao livreiro que tinha imprimido Corinne. Como nele manifestava as mesmas opiniões e mantinha o mesmo silêncio
sobre o governo actual dos Franceses que mantivera nos meus escritos precedentes,
alimentei a esperança de que me seria permitido publicá-lo: no entanto, poucos dias
depois do envio do manuscrito, apareceu um decreto sobre a liberdade de imprensa,
de natureza muito singular; nele se dizia “Que nenhuma obra poderia ser impressa
sem ter sido examinada pelos censores.” –Seja.- Estávamos acostumados em França
sob o antigo regime a submeter-nos à censura; o espírito público caminhava então no
sentido da liberdade, e levava a que uma dificuldade desse tipo fosse pouco temível;
mas um pequeno artigo no fim do regulamento dizia: “Quando os censores tiverem
examinado uma obra e permitido a sua publicação, os livreiros serão efectivamente
autorizados a imprimi-la, mas o ministro da polícia terá então o direito de a suprimir
por completo, se o entender conveniente”, o que quer dizer que tais ou tais formas
seriam adoptadas até que se considerasse conveniente não mais as seguir: não era
necessária uma lei para decretar a ausência das leis, mais valia mantermo-nos no
simples facto do poder absoluto (...)
No momento em que destruíam o meu livro em Paris, recebi no campo a ordem de entregar a cópia sobre a qual o tinham impresso, e de deixar França em vinte e quatro horas.
Exceptuando os condenados, não conheço mais ninguém a quem baste vinte e quatro
horas para organizar uma viajem; escrevi pois ao ministro da polícia, que precisava de oito
dias para mandar vir dinheiro e a minha viatura. Eis a carta que ele me respondeu.
Polícia Geral
Gabinete do Ministro
Minha Senhora
Paris, 3 de Outubro de 1810
Recebi a carta que fizestes a honra de me escrever. O Senhor vosso filho deve ter-vos
comunicado que eu não via inconveniente em que atrasásseis a vossa partida em sete
ou oito dias: desejo que eles sejam suficientes para as diligências que tereis de fazer,
pois não posso conceder-vos mais.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 197
Não deveis procurar a causa da ordem que vos signifiquei no silêncio que mantiveste
relativamente ao Imperador na vossa última obra; seria um erro pois ele não podia
nela encontrar um lugar que fosse digno; mas o vosso exílio é uma consequência
natural do percurso que constantemente tendes seguido desde há alguns anos.
Pareceu-me que o ar deste país não vos convinha e não estamos ainda reduzidos a
procurar modelos nos povos que admirais.
A vossa última obra não é francesa; fui eu que fiz parar a impressão. Lamento a perda
que vai provocar ao livreiro, mas não me é possível deixá-la aparecer.
(...)
O vosso muito humilde e muito obediente servidor
DUQUE DE ROVIGO
P.S. Tenho razões, Senhora, para vos indicar os portos de Lorient, La Rochelle, Bordéus
e Rochefort como sendo os únicos portos onde podereis embarcar; convido-vos a darme conhecimento daquele que escolherdes
Germaine de Staël, França, De l’ Allemagne, 1810
358
O Ministro da Polícia Geral ordena ao senhor Pâques, Inspector geral do seu ministério, que mande retirar os selos colocados em execução da nossa ordem do dia 24
do último mês, em casa do senhor Mame, tipógrafo, nas chapas e imprensas que
serviram para imprimir a obra da mulher Staël, tendo por título “Da Alemanha”; que
mande quebrar as chapas, transporte todas as folhas desta obra sobre as quais os
selos foram colocados e que recolha todos os volumes desta obra que ainda existam
nas mãos do senhor Mame, ou aqueles de que ele já tenha disposto.
Carta do Ministro da Polícia relativa à obra “De l’ Allemagne”, de Mme de Staël, França
359
Para uma imprensa livre
Não será o primeiro dever daquele que procura a verdade, avançar a direito sobre ela
sem à olhar esquerda ou à direita?
Não será esquecer a verdade enunciá-la da forma como foi prescrita? A verdade é tão
pouco modesta quanto a luz; e contra quem deveria ela sê-lo? Contra ela mesma?
Verum index sui et falsi. Portanto, contra a falsidade?
Se a modéstia é a característica da procura, ela é ainda mais a marca do medo da verdade
198 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
do que do medo da contra-verdade. Age como um travão, a cada passo que dou. Ordena
àquele que procura que trema diante do resultado, é um impedimento para a verdade.
Mais ainda: a verdade é universal, não me pertence, pertence a todos, possui-me e eu
não a possuo. A minha propriedade é a forma; esta é a minha individualidade espiritual. Le style c’est l’homme.
Pois bem! A lei permite-me que escreva, mas exige que escreva num estilo que não é o
meu! Posso mostrar o rosto do meu espírito, mas devo em primeiro lugar impor-lhe as
dobras prescritas! Qual o homem de honra que não enrubesceria com esta exigência e
não preferiria esconder o rosto sob a toga? A toga pode pelo menos dissimular uma cabeça de Júpiter. As dobras prescritas, nada mais são do que: bonne mine a mauvais jeu.
Admirais a exaltante diversidade, a inesgotável riqueza da natureza. Não exigis que
a rosa tenha o perfume da violeta, e quereis que o que existe de mais rico, o espírito,
exista apenas de uma única maneira? Tenho humor mas a lei ordena-me que escreva
com gravidade. Sou ousado mas a lei ordena-me que seja modesto. Cinzento sobre
cinzento - a única cor da liberdade que a lei me autoriza a usar. Cada gota de orvalho,
quando o sol nela se mira, brilha com um número infinito de cores, mas o sol do espírito, quaisquer que sejam os indivíduos e as cores nos quais se reflecte, deve produzir
apenas uma cor, a cor oficial! A essência do espírito, é sempre a própria verdade, e
que fazeis vós dessa essência? A modéstia. Só o indigente é modesto, diz Goethe, e
é isso que quereis fazer do espírito? (...) A modéstia geral do espírito é a razão – essa
liberalidade universal que, em cada natureza, respeita o seu carácter essencial.
Karl Marx, Notas sobre a Regulamentação da Censura Prussiana, 1842
360
Quando nos ocupamos da questão da censura, tudo depende do uso correcto da palavra
imoralidade, e de uma prudente discriminação entre os poderes de um magistrado ou de
um juiz para aplicar o código, e os de um censor, que age conforme lhe apetece. (...)
O censor nunca é intencionalmente protector da imoralidade. Visa sempre a protecção da moralidade. Ora, a moralidade tem um valor imenso para a Sociedade. Ela
impõe uma conduta convencional à grande massa de pessoas que são incapazes de
um juízo ético original e que ficariam completamente perdidas se não houvesse, no
interior dos limites imaginados pelos legisladores, filósofos e poetas para os guiarem.
Mas a moralidade não depende da censura para a sua protecção. Já está poderosamente fortificada pela magistratura e por todo o corpo da lei. A blasfémia, a indecência, a difamação, a traição, a sedição, a obscenidade, a profanação e todos os outros
males que uma censura supostamente impede, são puníveis pelo magistrado civil,
com toda a severidade de violentos preconceitos. A moralidade tem, para a proteger,
todos os meios que os legisladores podem imaginar em plena acção, mas tem tam-
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 199
bém esse peso formidável que é a opinião pública reforçada pelo ostracismo social,
mais poderoso do que todos os estatutos.
(...) É a imoralidade e não a moralidade que tem necessidade de protecção, e é a moralidade e não a imoralidade que tem necessidade de restrição. Efectivamente, a moralidade, com todo o peso da inércia e da superstição, pesa sobre o dorso do pioneiro, e
toda a malevolência da vulgaridade e dos prejuízos que o ameaçam é responsável por
inúmeras perseguições e por inúmeros mártires.
George Bernard Shaw, 1856-1950, escritor irlandês, O Verdadeiro Blanco Posnet
361
Os governos não sabem o mal que fazem ao reservar-se o privilégio exclusivo de falar
e de escrever sobre os seus próprios actos: não acreditamos em nada do que afirma
uma autoridade que não permite que se lhe responda; acreditamos em tudo o que se
afirma contra uma autoridade que não tolera qualquer exame.
Benjamin Constant, 1767-1830, Suiça – França,
Da liberdade das brochuras, dos panfletos e dos jornais
362
A liberdade é a essência do homem, a tal ponto que mesmo os seus adversários a
realizam, embora dela combatam a realidade; querem apropriar-se, como se fosse o
adorno mais precioso, daquilo que rejeitaram como adorno da natureza humana.
Ninguém combate a liberdade; combate quanto muito a liberdade dos outros. Toda
a espécie de liberdade existiu sempre, só que umas vezes como privilégio particular,
outras como direito geral.
(...) Não se trata de saber se a liberdade de imprensa deve existir, visto que ela existe
sempre. Trata-se de saber se a liberdade de imprensa é privilégio de alguns indivíduos
ou se é privilégio do espírito humano. Trata-se de saber se aquilo que é um prejuízo
para uns pode ser um direito para outros (...)
A verdadeira censura imanente à liberdade de imprensa, é a crítica; ela é o tribunal
que a liberdade de imprensa a si mesma se dá.
A própria censura reconhece que não é um fim em si mesma, que em si nada tem de
bom, que é, por consequência, fundada sobre o princípio: o fim justifica os meios.
Mas um fim que tem necessidade de meios injustos, não é um fim justo (...)
(...) A primeira liberdade da imprensa, é não ser um ofício. O escritor que a rebaixa até
dela fazer um meio material merece ser punido dessa servidão interior pela servidão
exterior, ou seja, a censura: a sua punição, é precisamente a existência da censura.
Karl Marx, Debates sobre a Liberdade da Imprensa,
“Rheinische Zeitung, 1842
200 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
363
Se alguém me mostrasse, entre a independência completa e a total subordinação do
pensamento, uma posição intermédia onde pudesse situar-me, talvez que nela me
instalasse, mas quem descobrirá essa posição intermédia? Vós partis da licença da
imprensa e marchais para a ordem: e o que fazeis? Submeteis primeiro os escritores
aos jurados; mas os jurados ilibam, e o que era apenas a opinião de um homem isolado torna-se a opinião do país. Portanto vós fizestes demais e de menos; ainda há
que caminhar. Entregais os autores a magistrados permanentes: mas os juizes são
obrigados a ouvir antes de condenar; o que tivemos medo de confessar no livro, é proclamado sem piedade no discurso de defesa; o que se teria dito de um modo obscuro
num escrito é assim repetido em mil outros. A expressão é a forma exterior, e, se me
é dado exprimir deste modo, é o corpo do pensamento, mas não é o próprio pensamento. Os vossos tribunais prendem o corpo, mas a alma escapa-lhes e desliza subtilmente das suas mãos. Portanto fizestes muito e muito pouco; é preciso continuar
a caminhar. Por fim abandonais os escritores aos censores; muito bem! Estamo-nos
a aproximar. Mas a tribuna pública não é livre? Ainda não fizestes nada; engano-me,
fizestes com que o mal crescesse. Por acaso consideraríeis o pensamento como uma
dessas potências materiais que crescem pelo número dos seus agentes? Contaríeis os
escritores como soldados de um exército? Ao contrário de todas as potências materiais, o poder do pensamento aumenta muitas vezes pelo pequeno número daqueles
que o exprimem. A palavra de um homem poderoso, que penetra sozinha no meio das
paixões de uma assembleia muda, tem mais poder do que os gritos confusos de mil
oradores; e por pouco que se possa falar livremente num único lugar público, é como
se falássemos publicamente em cada aldeia. É-vos pois preciso destruir a liberdade de
falar, bem como a de escrever; desta vez, estais em bom porto: cada um se cala. Mas
onde chegastes? Tínheis partido dos abusos da liberdade; e volto a encontrar-vos sob
os pés de um déspota.
Alexis de Tocqueville, França,
Da Democracia na América, 1835
364
Via-me constrangido a tornar possível a publicação dos meus trabalhos enchendo-os
de citações de Estaline, a exprimir a minha opinião dissidente com todas as precauções necessárias, tantas quanto mo permitia a margem de respiração que nos era
dada de tempos a tempos, nessa época (...)
Lembro-me bem, por exemplo, do caso de um filósofo que foi repreendido porque
tratava das determinações da dialéctica segundo os “Cadernos Filosóficos” de Lenine.
Fizeram-lhe notar que Estaline, no quarto capítulo da sua “História do Partido”, tinha
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 201
enumerado menos distinções sobre a dialéctica e tinha fixado definitivamente o seu
número e natureza. Portanto, era preciso simplesmente, para cada problema tratado,
encontrar a citação apropriada de Estaline (...)
- O que é uma ideia? perguntou um camarada alemão.
- Uma ideia é um traço de união entre duas citações.
György Lukács, 1885-1971, Hungria
365
Devo mais uma vez evidenciar que a censura não é o bom método. Quaisquer que
sejam as suas pretensões morais e religiosas, traduz-se sempre na prática por evidenciar a necessidade de um responsável que tenha as qualidades de um deus e
pela atribuição de um salário de chefe de estação de segunda classe, e depois um
bónus por cada peça lida, concedido a um qualquer mortal falível que representará
a Omnisciência (...) Toda a pessoa suficientemente louca ou suficientemente miserável para aceitar um tal emprego não tardará a descobrir que, excepto para os casos
mais evidentes, é impossível formular um juízo. Estabelecerá portanto uma lista de
palavras correntes a não utilizar e de assuntos a não mencionar (em geral, a religião
e o sexo) e, embora tenha reduzido assim o seu trabalho ao âmbito de um simples
empregado de escritório, reduzi-lo-á, de um mesmo golpe, ao absurdo. Verifiquei
num exemplar de uma minha peça, caído nas mãos da Acção católica, que a palavra
“paraíso” e a alusão a um “halo” estavam cortados, aparentemente por terem sido
julgados profanos. A palavra Deus estava cortada, S. Dinis eliminada, frases inteiras
que continham as palavras “religião”, “arcebispo”, “pecado mortal”, “santo”, “infernal”,
“ofício sagrado” e outras semelhantes, estavam cortadas, sem que se tivesse atendido ao sentido, só porque figuravam na lista. Mesmo a palavra “bebé” fora proibida,
provavelmente por ser pouco digna. Estes absurdos não representam a sabedoria da
Igreja católica, mas o desespero de um empregadito que tenta reduzir essa sabedoria
à dimensão de uma rotina burocrática.
George Bernard Shaw, escritor irlandês,
Carta ao “New York Times”, 1936
366
Em resumo, ninguém está legalmente à mercê do capricho do magistrado, ou dos
seus preconceitos, da sua ignorância, da sua superstição, da sua timidez, da sua
ambição ou da sua convicção pessoal. Mas o ganha pão, a reputação, a inspiração e
a missão do autor dramático estão à mercê pessoal do censor. Um e outro não estão,
como o criminoso e o juiz, na presença de uma lei que os ligue igualmente, é uma lei
que não foi feita nem por um nem por outro, mas pela sabedoria colectiva, reflecti-
202 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
da, da comunidade (...) E quando nos lembramos, por um lado que, na ocorrência, o
escravo é o homem cuja profissão é a de Ésquilo e de Eurípedes, de Shakespeare e de
Goethe, de Tolstoï e de Ibsen, e que por outro, o senhor é o detentor de uma função
partidária, que, pela natureza das suas obrigações, exclui praticamente a possibilidade da sua aceitação por parte de um homem de Estado sério ou de um grande
advogado, constataremos que os autores dramáticos são justificados nas censuras
que fazem aos artesãos do dito Acto. (...) Num caso tão extremo de irreflexão, não
é surpreendente que também não se tenham preocupado em estudar a diferença
que há entre um censor e um magistrado. E aperceber-nos-emos que quase todos
aqueles que hoje defendem a censura de um modo desinteressado, supõem que não
há diferença constitucional entre o censor e qualquer outro funcionário cujo dever é
reprimir o crime e a desordem.
George Bernard Shaw, 1856-1950, escritor irlandês, O Verdadeiro Blanco Posnet
367
Métodos modernos de inquisição
O problema perante o qual se encontram os intelectuais deste país é muito sério.
Os políticos reaccionários conseguiram despertar no público, sob pretexto de um
perigo exterior, uma desconfiança relativamente a todos os esforços intelectuais.
Fortalecidos com este sucesso, estão agora a suprimir a liberdade de ensino e a
expulsar dos seus postos aqueles que não se vergam, quer dizer, estão a fazer com
que morram de fome.
O que deve fazer a minoria dos intelectuais contra este mal? Falando francamente,
não vejo senão a via revolucionária da recusa em colaborar, no sentido de Gandhi.
Todo o intelectual que for citado perante um comité deverá recusar responder, ou
seja, deverá estar disposto a ir para a prisão e a arruinar-se economicamente, numa
palavra, a sacrificar os seus interesses pessoais aos interesses culturais do seu país.
Mas essa recusa não devia basear-se no subterfúgio conhecido da auto-incriminação
possível, mas sim no facto de que é indigno de um cidadão de reputação sem mácula,
submeter-se a uma tal inquisição, que é uma infracção à Constituição. Se houver bastantes pessoas dispostas a trilhar este caminho penoso, o sucesso fica assegurado.
Caso contrário, os intelectuais deste país não merecem melhor do que a escravatura
que lhes está reservada.
Albert Einstein, 1879-1955, Estados Unidos da América
Como Vejo o Mundo
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 203
368
A América é talvez neste momento o país do mundo que encerra no seu seio menos
germes de revolução. Contudo, na América, a imprensa tem os mesmos gostos destrutivos que em França, e a mesma violência, sem as mesmas causas de cólera. Na
América, como em França, ela é aquele poder extraordinário, tão estranhamento
misturado com bens e com males, que sem ela a liberdade não conseguiria viver e que
com ela a ordem mal consegue manter-se.
É preciso dizer que a imprensa tem muito menos poder nos Estados Unidos do que entre
nós. Nada portanto é mais raro nesse país do que vermos uma acção judiciária contra ela.
A razão é simples: os americanos admitem, entre eles, o dogma da soberania do povo, e
dele fizeram uma aplicação sincera. Não tiveram a ideia de fundar, com elementos que
todos os dias mudam, constituições cuja duração fosse eterna. Atacar as leis existentes
não é pois criminoso contanto que não se queira fugir delas pela violência. (...)
Em matéria de imprensa não há realmente meio termo entre a servidão e a licença.
Para recolher os bens inestimáveis que a liberdade de imprensa assegura, é preciso
saber submeter-se aos males inevitáveis que ela faz nascer. Querer obter uns escapando aos outros, é entregar-se a uma dessas ilusões com que se embalam comummente as nações doentes, enquanto que, cansadas de lutar e esgotadas por esforços,
procuram os meios de fazer coexistir simultaneamente, sobre o mesmo solo, opiniões
inimigas e princípios contrários.
Alexis de Toqueville, França,
Da Democracia na América, 1835
369
Na nossa época tudo conspira para transformar o escritor, e cada artista criador, num
pequeno funcionário que aborda temas que recebe de cima e que nunca diz o que pensa
ser toda a verdade. Mas quando ele procura lutar contra esse destino que lhe impõem,
não é socorrido por aqueles que deveriam ser os seus aliados: quer dizer que não existe
uma opinião pública poderosa para lhe assegurar que ele tem razão em protestar.
George Orwell, Reino Unido, Onde Morre a Literatura? 1946
370
[Bertolt Brecht, entrevistado por C. Bourdet e E. Sello]
(...) Do ponto de vista da própria sociedade, um escritor ou um dramaturgo que não
tenham opiniões pessoais, não tem qualquer valor. Para que seja úteis é preciso que
tragam qualquer coisa de novo. O homem de teatro não tem de procurar lições junto
do Estado. O Estado, pelo contrário, pode aprender com o dramaturgo: com efeito,
204 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
há sempre problemas que a sociedade não consegue resolver: é nesse domínio que
trabalha o escritor; a sua imaginação pode ajudar a realizar essas tarefas; pode também descobrir tarefas novas. Em todo o caso, não deve ser nem um espelho, nem um
porta-voz. Pode, naturalmente, fazer-se porta-voz de uma opinião oficial. Mas só se a
aprovar e se isso lhe parecer útil.
Sello: Mas, conhecendo esses pontos de vista, o governo da Alemanha de Leste deixalhe uma liberdade completa?
Brecht: Total. Em contrapartida de uma ajuda material considerável, não estou submetido a nenhum controlo.
Bourdet: O governo não intervém de todo para lhe pedir, por exemplo, que modifique
as suas peças?
Brecht: Sim, mas como toda a gente.
(...)
Brecht: Discutimos constantemente as nossas peças com os espectadores. Se soubessem todas as críticas e todas as sugestões de modificações que recebemos, por exemplo, de milhares de operários! Quando são justas atendemos a elas. Com o governo
passa-se o mesmo. Assim, discuti três horas e meia com vários ministros, incluindo o
Presidente do Conselho, a respeito da ópera de Dessau, “Lucullus”. Havia nove pontos
em questão; sobre sete pontos tinha razão e mantive o meu ponto de vista; sobre
dois eles tinham razão e modifiquei-os.
Bourdet: Eram pontos políticos?
Brecht: De todo.
Sello: Em resumo, eles transformaram-se em críticos dramáticos?
Brecht, rindo: Foi um pouco isso. Pois bem, censuraram-me vivamente por ter cedido
nesses dois pontos, quando eles tinham toda a razão e quando faço modificações
muito frequentes e muito mais importantes sob a influência do público.
Bertolt Brecht, 1898-1956, República Democrática Alemã
371
Camarada Miasnikov,
(...) O meu trabalho é outro: devo apreciar as vossas cartas enquanto documentos
literários e políticos.
São documentos interessantes!
Considero que o artigo intitulado: “Questões nevrálgicas” revela de um modo particularmente evidente o vosso erro fundamental. E penso dever fazer tudo para
procurar convencer-vos (...)
... “Liberdade de imprensa desde os monárquicos aos anarquistas”. Muito bem! Mas
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 205
perdoai-me, todos os marxistas e todos os operários que reflectiram nos nossos
quatro anos de experiência revolucionária dirão: examinemos de que liberdade de
imprensa se trata? Para quê? Para que classe?
Não acreditamos nos “absolutos”. Rimo-nos da “democracia pura”.
A palavra de ordem de “liberdade”, de “liberdade de imprensa”, adquiriu um alcance
universal desde o fim da idade média até ao século XIX. Porquê? Porque emanava da
burguesia progressista, em luta contra os padres, os reis, os feudais e os proprietários
de terras. (...)
A liberdade de imprensa aumentará a força da burguesia mundial. É um facto. A
“liberdade de imprensa” não servirá para depurar o Partido comunista da Rússia das
suas fraquezas, calamidades, doenças (há uma quantidade de doenças, é incontestável), porque a burguesia mundial não o quer; a liberdade de imprensa tornar-se-á
uma arma entre as mãos dessa burguesia mundial. Ela não morreu. Vive sempre. Está
perto de nós e espreita-nos.
Carta de Lenine a Miasnikov, 1921
372
[Numa reunião pela liberdade de opinião]
Reunimo-nos hoje aqui para defender a liberdade de opinião garantida pela
Constituição dos Estados Unidos, e também pela defesa da liberdade de ensino. Com
o mesmo testemunho, queremos atrair a atenção dos trabalhadores intelectuais
sobre o grande perigo que actualmente ameaça estas liberdades (...)
É desnecessário insistir sobre o tópico de que a liberdade de ensino e de opinião, nos
livros e na imprensa, é o fundamento do desenvolvimento são e natural de qualquer
povo. As lições da história –especialmente os seus últimos capítulos – são por demais
claras sobre este ponto. Cada um tem a obrigação de se munir de toda a energia
que tiver para a preservação e o crescimento dessas liberdades e de exercer toda a
influência que lhe for possível para colocar a opinião pública de sobreaviso quanto a
este perigo.
Albert Einstein, 1879-1955, Estados Unidos da América
373
[Discurso aos escritores e aos artistas a 8 de Março de 1963]
Damos a nossa adesão às posições de classe em arte, e opomo-nos energicamente
à coexistência pacífica das ideologias socialista e burguesa. A arte releva do domí-
206 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
nio da ideologia. Aqueles que acreditam que o realismo socialista e as tendências
formalistas abstraccionistas podem viver pacificamente na arte soviética, deslizam
inevitavelmente para as posições de coexistência pacífica em matéria de ideologia,
posições que nos são estranhas.
Nikita S. Khrouchtchev, 1894-1971, URSS,
Citado em “Le Monde”, Paris, 1971
374
Proibido proibir. A liberdade começa por uma interdição: a de prejudicar a liberdade
de outrem.
As paredes falam, Sorbonne
Paris, Maio, 1968
375
Dona Anastácia
Censura (Anastácia), ilustre instrumento liberticida francês, nascido em Paris no
reinado de Luis XIII. É filha natural de Serafina Inquisição e hoje em dia inclui na
sua numerosa família alguns outros personagens igualmente conhecidos: Ernesto
Comunicado, Zoé Bemquerer, o Visconde Butor de Santo-Arbítrio e Ágata Estampilha,
seus primos, tia e cunhados (...)
O Papa Alexandre VI, que foi um dos seus primeiros pais, deixou um pequeno manuscrito intitulado : “Guia do perfeito censor”, com a ajuda do qual Anastácia pôde fazer
a sua educação. Eis alguns extractos deste interessante trabalho:
1o a censura é a arte de descobrir, nas obras literárias ou dramáticas, intenções malévolas;
2o O ideal é nelas descobrir intenções, mesmo quando o escritor não as teve;
3o Um censor capaz deve, à primeira vista, desenterrar na palavra “oficleido” uma
injúria à moral pública;
4o A devisa do censor é “cortemos, cortemos, ainda ficará sempre muito”;
5o O censor deve estar persuadido que cada palavra de uma obra contém uma
alusão pérfida. Quando conseguir descobrir a alusão cortará a frase. Quando não a
descobrir, cortá-la-á na mesma, visto que as alusões mais dissimuladas são as mais
perigosas.”
Louis Andre Gill, em “L’Éclipse”,
1874, França
ENSAIO ANTOLÓGICO
Proibição de não afixar.
A TOLERÂNCIA 207
376
As paredes falam, Sorbonne
Paris, Maio, 1968
A recusa do gueto
Acordo ambíguo que se fez sobretudo no desprezo pelas maiorias colonizadas ou pelas
minorias raciais que, regulando apenas os conflitos entre Brancos, as excluíam da
“herança da terra”.
Segundo o código, escrito ou não por nações que se diziam civilizadas, não podia ser de
outra maneira: os “subterceiros do Ocidente” não podiam ter voz. Ora, talvez mais legitimamente do que os outros, esses homens fazem-se ouvir; “a submissão feita de cólera
e de amargura”, infalivelmente, rebenta em revolta, tornando caduca a paz separada, e
ilusória a liberdade que pensa acasalar-se bem com o racismo.
377
Quando os nossos pés finalmente tocaram a areia, rastejei até à praia, e, felicíssimo,
fiquei muito tempo a repousar, de barriga para baixo. Por fim, voltei-me de costas
para olhar as estrelas; brilhavam tanto e tão longe (...)
Ao contemplá-las, recolhi-me procurando o sentido desta vida, confrontando-o com
a existência que tinha levado na África do Sul, durante quase vinte e um anos. Desde
o meu nascimento, todos os dias, um após outro, fora dominado por estas três palavras, muitas vezes invisíveis mas omnipresentes: Reservado aos Europeus.
Devido a estas três palavras nascera na sujidade e na miséria dos pardieiros, nelas
passara a minha infância e quase toda a minha juventude; devido a estas três palavras, muitas gerações viveram, sucessivamente, nessa mesma sujidade, nessa mesma
miséria de pardieiros. O raquitismo marcara o meu corpo e eu era apenas um entre
milhões. Tive de ganhar dinheiro antes de poder frequentar a escola, e tantas outras
crianças, negras ou mulatas, nunca lá estiveram. A instrução gratuita e obrigatória
era “reservada aos Europeus”, tudo o que havia de bom e de belo na terra era “reservado aos Europeus”. O mundo de hoje pertencia-lhes todo.
Nos nossos contactos com eles, os Brancos tinham-me claramente mostrado que eram
senhores todo poderosos, que o universo e as suas riquezas eram o seu feudo, que só a
eles pertenciam. A maior parte deles só me falara a linguagem da força física, a linguagem da brutalidade; como eram mais fortes tive de me submeter (...) Mas a submissão
do mais fraco reveste-se por vezes de uma forma subtil: um homem pode submeter-se
hoje para melhor resistir amanhã. Foi nesse estado de espírito que me submeti aos
208 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Brancos. E porque nunca fui livre de mostrar os meus sentimentos reais, nem de me
exprimir sinceramente, a minha submissão fora feita de cólera e de amargura.
Havia na África do Sul, quase dez milhões de outros indivíduos, também eles submetidos na cólera e na amargura. Um dia os Brancos terão de contar com essa gente!
Um dia, os seus filhos e filhas encontrar-se-ão face a face com a ira deste povo que
durante tanto tempo foi oprimido e provocado. Dois milhões de Brancos não reinarão
sempre como senhores omnipotentes sobre dez milhões de pessoas de cor. E talvez
que eles tenham que vir a suportar essa mesma prova de força que nos impuseram
nas suas relações connosco.
Para mim, pessoalmente, a vida em Africa do Sul tinha acabado (...) Perante a realidade,
mesmo as boas intenções dos amigos que tinha entre os Brancos tornavam-se suspeitas: impunha-se-me escolher entre deixar a África do Sul ou perder-me para sempre.
Não tinha necessidade de amigos nem de boas intenções, mas sim de ser eu próprio e
de realizar a minha condição de homem; era uma necessidade desesperada (...)
Talvez que a vida tivesse um sentido que ultrapassasse a raça e a cor? Se assim fosse,
jamais seria na África do Sul que eu o iria descobrir.
Peter Abraham, nascido em 1919, em África do Sul, Tell freedom
(Não sou um homem livre)
378
A Rebelde
Será que me querem domar como à fêmea de um javali e à sua cria?
extirpar-me como uma raiz sem consequência?
Vencido,
África, América, Europa, oculta sob as folhas
tenho loucura que me basta;
seguro, ao abrigo dos corações e das fúrias
a chave das perturbações
e destruindo tudo
o enxofre meu irmão, o enxofre é o meu sangue
e espalhará nas mais orgulhosas cidades
os seus eflúvios perfumados
os carismas da sua graça
inútil será contradizer-me
nada oiço
apenas as catástrofes que sobem na rendição das cidades.
Aimé Césaire, Martinica, As Armas Miraculosas, 1946
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 209
O FIM DA TOLERÂNCIA CLÁSSICA
O que pode doravante designar a “tolerância” tal como foi modelada até aqui? Um
conceito singularmente limitado numa realidade em constante ampliação e renovação. O modo como a palavra é usada denuncia um falso equilíbrio, uma preocupação
de statu quo, mais do que um convite ao assentimento solidário do homem com o
homem. O que no fundo designa é uma quarentena, umas vezes difícil, as mais das
vezes resignada.
Enquanto o mundo se amplia sob o impulso das correntes da civilização industrial e dos
meios modernos de comunicação, enquanto todas as fronteiras se tornam irrisórias, o
racismo, mesmo disfarçado de “pitoresco”, não se desenraíza do espírito e do coração
dos homens: “ver o vizinho, com efeito, não é ainda conhecê-lo” e é bem verdade que
“ainda só nos conhecemos por actos de comércio, de guerra, de política temporal ou
espiritual, relações às quais são essenciais a noção de adversário e o desprezo pelo
adversário”.
Outra contradição, outra ilusão: queremos assimilar as outras culturas a “valores aos
quais se atribui uma perfeição indiscutível” mas, ao mesmo tempo, não acreditamos
que essas mesmas culturas sejam “capazes de atingir o objectivo que lhes propomos”
ou impomos. Assim formulada, a relação reenvia muito exactamente para o reverso da
tolerância clássica.
Perante este jogo irrisório de “anomalias” e modificando o propósito de Diderot, poderíamos dizer: Insensatos que sois; aboli tais pretensões que estreitam o vosso campo
perceptivo, ampliai o homem, “vede-o em todo o lado onde ele está e não dizei que não
está”, reconhecei-o como “presença viva e carnal”, portador de particularidades criadoras mas ao mesmo tempo de universalidade, quer ele acredite num Deus particular ou
numa mudança consubstancial ao homem.
“Há que escutar o trigo que cresce (...), acordar todas as vocações de viver juntos que
a história guarda em reserva”. E sem dúvida que para tal é necessário “ uma confrontação dinâmica, um fluxo que se move do Eu para o Tu”, mas é sobretudo necessário
tomar consciência da evidência que “o contexto político da tolerância se modificou (...)
De activa, a tolerância tornou-se passiva; deixai que as autoridades actuem em nosso
lugar: é o povo que tolera o governo o qual, por seu turno, tolera a oposição nos limites
fixados pelas autoridades.”
Em resumo, a tolerância esclerozou-se: parcelar e específica, rigidificou-se em conceito;
liberal, comprometeu-se muitas vezes ao serviço de interesses económicos minoritários
negando o princípio de toda a igualdade verdadeira; revolucionária, mantém-se ainda
sob o benefício do inventário da História.
Numa frase lapidar, um escritor crente deste século, Paul Claudel, assegurava: “ a tole-
210 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
rância? Há casas para isso!” Poderíamos acrescentar sem risco: uma certa tolerância?
Há cemitérios para isso, os dicionários ou talvez as antologias.
Algo diferente se passa no plano da longa e dolorosa modulação histórica onde se
impõe uma nova mutação, totalitária em cada instante, a do conceito fechado em
visão do infinito.
379
Da liberdade espiritual na nossa época
Durante a minha vida nunca pude suportar a palavra “tolerância”, tolerar os outros,
suportá-los mesmo, é primeiro que tudo jactância e depois este termo tem uma
nuance de fraqueza, tem qualquer coisa de mole.
Theodor Heuss, República Federal da Alemanha,
Discurso, 1959
380
O racismo é uma das manifestações mais perturbadoras que se produz no mundo.
No momento em que a nossa civilização industrial penetra em todos os cantos da
terra, arrancando os homens de todas as cores às suas mais antigas tradições, invoca-se uma doutrina de carácter falsamente científico para recusar a esses mesmos
homens, privados da sua herança cultural, uma participação plena nas vantagens
da civilização que lhes é imposta. Existe portanto, no seio da nossa civilização, uma
contradição fatal: por um lado, ela deseja ou exige a assimilação das outras culturas a
valores aos quais atribui uma perfeição indiscutível e, por outro, não admite que dois
terços da humanidade sejam capazes de atingir o objectivo que lhes propõe.
Alfred Métreaux, Estados Unidos da América,
Artigo em “ Correio da Unesco” 1950
381
Mas tudo leva as populações do globo a um estado de dependência recíproca tão
estreito e a comunicações tão rápidas que não poderão, dentro de algum tempo,
desconhecer-se. As suas relações deixarão de se restringir a simples manobras interesseiras. Haverá lugar para algo diferente dos actos de exploração, de penetração,
de coerção e de concorrência.
Paul Valéry, França, Olhares sobre o Mundo Actual, 1931
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 211
382
Colonialismo e neo-colonialismo
Na origem do pitoresco estão a guerra e a recusa de compreender o inimigo; de facto,
as nossas luzes sobre a Ásia vieram-nos primeiro de missionários irritados e de soldados. Mais tarde chegaram os viajantes – comerciantes e turistas – que são militares
“arrefecidos”: a pilhagem chama-se “shopping” e as violações praticam-se onerosamente em lojas especializadas. Mas a atitude de princípio não mudou; matam-se
menos os indígenas mas desprezam-se em bloco, o que é a forma civilizada do massacre; aprecia-se o prazer aristocrático de contar as separações. “Eu corto o cabelo
e ele entrança-o; sirvo-me de um garfo e ele usa pauzinhos; escrevo com uma pena
de ganso e ele traça os caracteres com um pincel; tenho ideias rectas e as dele são
curvas: já reparaste que ele tem horror ao movimento rectilíneo e só fica feliz quando
tudo é oblíquo”. A isto se chama o jogo das anomalias: se encontrardes mais uma, se
descobrirdes uma nova razão para não compreender, dar-vos-ão, no vosso país, um
prémio de sensibilidade. Aqueles que deste modo recompõem os seus semelhantes
como um mosaico de diferenças irredutíveis, não nos deverão espantar se, de seguida, perguntarem como é que se pode ser chinês.
Em criança, fui vítima do pitoresco: tudo se fez tudo para tornar os Chineses intimidantes (...)
Depois veio Michaux, o primeiro a mostrar os Chineses sem alma nem carapaça, a
China sem lótus nem Loti.
Um quarto de século mais tarde, o álbum de Cartier-Bresson completou a desmitificação.
Há fotógrafos que levam à guerra porque fazem literatura. Procuram um Chinês que
tenha um ar mais chinês do que os outros; acabam por encontrá-lo. Fazem com que
assuma uma atitude tipicamente chinesa e rodeiam-no de chinesices. O que é que
fixaram na película? Um Chinês? não: a Ideia chinesa.
As fotografias de Cartier-Bressont nunca falam por falar. Não são ideias, dão-nos
ideias. Sem que o façam expressamente. Os seus Chineses desconcertam: a maior
parte deles não têm um ar suficientemente chinês. O homem espirituoso e o turista
interrogam-se como se hão de reconhecer neles. Depois de ter folheado o álbum a
minha interrogação é outra: como faríamos para os confundir, para os classificar a
todos numa mesma rubrica. A Ideia chinesa afasta-se e empalidece; não é mais do
que uma interpelação cómoda. Ficam os homens que, enquanto homens se assemelham. Presenças vivas e carnais que ainda não receberam as suas interpelações
controladas.
Jean-Paul Sartre, França. Situações V, 1964
212 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
383
Num mundo em que as distâncias entre países são quase nulas, tais problemas não
podem ser ignorados. “Toda a vida é encontro” disse um filósofo contemporâneo.
Mau grado as barreiras ideológicas erigidas com determinação perversa pelo homem
do nosso tempo, vivemos efectivamente um período de “encontros”. A televisão, a
fotografia e os satélites de comunicação constituem talvez os símbolos actuais deste
facto. Mas ver o nosso vizinho – e hoje em dia todos somos vizinhos – não é conhecêlo. Tal como o cérebro interpreta as mensagens do nervo óptico, também nos devemos equipar para interpretar as mensagens provenientes de outros povos.
Disse-se do racismo que é um estado de espírito patológico, uma forma de irracionalismo, uma espécie de epidemia. Estes termos subentendem que existe um estado de
saúde a que podemos aceder e que pode ser mantido num mundo em que coexistem
nações diversas. Cabe-nos usar todos os recursos de que dispomos e todas as técnicas
que dominamos para enriquecer a nossa vida, em prol de um esforço sincero e lúcido
de compreensão e de apreciação do outro, tendendo para a realização do encontro
entre povos.
Digamos ainda que os horrores dos campos de concentração nazis deveriam convencer-nos da urgência que todos deveremos ter em adquirir hábitos de compreensão e
de tolerância.
Robert Gardiner, Estados Unidos da América,
A World of Peoples, B.B.C., Londres, 1966
384
Convém considerar o conjunto da humanidade como um único organismo, e um povo
como um dos seus membros. Uma dor que afecta a ponta de um dedo faz sofrer o
organismo inteiro. Se um determinado ponto do mundo se encontra a braços com
um mal, não devemos dizer: “O que tenho a ver com isso?” Devemo-nos interessar
por esse mal tal como faríamos se ele se manifestasse entre nós. Por muito longínquo
que possa ser o teatro de um incidente, nunca devemos esquecer este princípio.
Kemal Atatürk, 1881-1938, Turquia
385
A necessidade de preservar a diversidade de culturas num mundo ameaçado pela
monotonia e pela uniformidade não escapou certamente às instituições internacionais. Elas também compreendem que para atingir tal objectivo não basta acarinhar as
tradições locais e conceder um prazo aos tempos passados. É o facto da diversidade
que deve ser salvo e não o conteúdo histórico que cada época lhe deu e que nenhuma
saberia perpetuar para além de si mesma. Há que escutar o trigo que cresce, encorajar
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 213
as potencialidades secretas, acordar todas as vocações de viver juntos que a história
guarda em reserva; também é preciso estarmos prontos para encarar sem surpresa,
sem repugnância e sem revolta o que estas novas formas sociais de expressão não
poderão deixar de oferecer de inusitado. A tolerância não é uma posição contemplativa que dispensa indulgências ao que foi e ao que é. É uma atitude dinâmica, que
consiste em prever, em compreender e em promover o que quer ser. A diversidade
das culturas humanas está por detrás de nós, à nossa volta e diante de nós. A única
exigência que podemos ter para com ela (criadora para cada indivíduo dos deveres
correspondentes) é que se realize segundo diferentes formas, sendo cada uma delas
um contributo para a maior generosidade das outras.
Claude Lévi-Strauss, França, Raça e História, 1952
386
Eu e Tu
A verdadeira comunidade, a que está em devir (até agora só conhecemos esta) é
quando uma pluralidade de pessoas deixaram de estar umas atrás das outras; e se
elas se dirigem conjuntamente para um mesmo fim, não deixam no entanto de experimentar um movimento de encontro mútuo, uma confrontação dinâmica, um fluxo
que se move do Eu para o Tu. A comunidade reside onde a comunidade se constrói.
A colectividade funda-se sobre o enfraquecimento organizado das qualidades que
constituem a pessoa; uma comunidade sobre a sua intensificação e sobre a sua confirmação na reciprocidade. O zelo que o nosso tempo dedica à colectividade constitui
uma fuga da pessoa perante a provação da comunidade e a sagração da comunidade,
uma fuga perante o diálogo vital ao coração do mundo, que exige o compromisso de
si mesmo.
Martin Buber, 1878-1965, Israel, A Vida em Diálogo
387
A tolerância sempre foi necessária à felicidade e à prosperidade da raça humana. Hoje
ela é necessária à sua sobrevivência.
Sir Richard Winn Livingstone, Reino Unido,
Tolerância na Teoria e na Prática, 1954
388
O contexto político da tolerância modificou-se: constitucionalmente, o benefício da
tolerância deixou de ser atribuído à oposição; em compensação a tolerância tornou-
214 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
se obrigatória para com a política estabelecida. De activa, tornou-se passiva; deixai
que as autoridades actuem em nosso lugar! É o povo que tolera o governo; este, por
seu turno, tolera a oposição nos limites fixados pelas autoridades.
A tolerância relativamente àquilo que é radicalmente mau é algo de bom visto que
assegura a coesão de toda a sociedade no caminho para a riqueza e para a superabundância. Tolera-se a “cretinização” sistemática, simultaneamente das crianças e
dos adultos, pela publicidade e pela propaganda, tolera-se uma maneira agressiva de
conduzir que serve de libertação aos desejos destrutivos, toleram-se o recrutamento
e o treino de tropas especiais, sem contar com a tolerância benevolente e impotente
para com toda a espécie de fraudes comerciais, o desperdício e o envelhecimento
programado dos produtos de consumo: tudo isto não constitui um entorse nem um
desvio ao sistema, mas a sua própria essência, que é cultivar a tolerância como um
meio de perpetuar a luta pela vida e de suprimir toda a liberdade de escolha.
Herbert Marcuse, Estados Unidos da América,
Crítica da Tolerância Pura
CLÁUSULA DE ESPERA
Na acção e no intervalo, é ao poeta que cabe ser simultaneamente “a má consciência do
seu tempo” e suscitar, sem mais sonhos nem utopias, uma época “nova e alegre”, onde,
“ numa simples visão, o homem conheça o homem”.
389
Cabe ao o poeta indiviso atestar entre nós a dupla vocação do homem. Erguer, em
face do espírito, um espelho mais sensível às suas chances espirituais. Evocar, mesmo
no século, uma condição humana mais digna do homem original. Finalmente, associar, com mais ousadia, a alma colectiva à circulação da energia espiritual no mundo
(...). Face à energia nuclear, será que a lâmpada de argila do poeta bastará aos seus
objectivos? – Sim se da argila o homem se lembrar.
Saint-John Perse, França, Amargos, 1957
390
Maïakovski começa
Ah, que seja uma nova
época alegre
de um trigo humano
ENSAIO ANTOLÓGICO
saciado, sem cardos, sem ortigas,
sem ervas,
desbravado,
trabalhado pela enxada.
Que não haja nela
condições
ou lugares
para os criados melosos,
os enganadores, os beatos,
nem para a palavra que bajula,
nem para a fuga poltrona.
Que numa simples visão
o homem conheça o homem.
Nicolas Asseev, URSS, 1940
A TOLERÂNCIA 215
216 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
DA TOLERÂNCIA
AO CONHECIMENTO
“Porco! Macaco Selvagem! Bruxo!...” Outros percursores, de Sócrates aos nossos dias,
tiveram de aguentar insultos deste género, nestes termos e não sob forma civilizada,
a única que por vezes nos chega. É que a idade do Bodhisatta já passou e, doravante,
a História substitui o mito. Um Lumumba, aqui símbolo político, morre ou renasce no
momento em que, como na tragédia grega, o povo realiza os funerais do semi-deus
asiático. Doravante, tudo é assumido – o temporal e o espiritual – pelo político, e a
História, por momentos, começa a assemelhar-se a esse “pesadelo” do qual um personagem do Ulisses de Joyce “tenta acordar”, no qual se defrontam “a invenção do passado
e os inventores do futuro.”
391
Luzes. Num campo de treino no Katanga. Um mercenário; diante dele um manequim
representando um negro sobre o qual irá desenhar. Enquanto espera, limpa a arma e
vai cantarolando.
O MERCENÁRIO, cantando:
A norte e a sul,
no deserto, sob os trópicos,
mato ou selva ou pântano dos deltas,
chuva, febre ou moscas,
pele que o sol queimou,
novel cavaleiro,
sente o coração a inchar,
pelo direito e pela liberdade!
Coloca-se em posição de tiro diante do manequim.
Porco! Macaco! Selvagem! Bruxo! Ingrato! Violador de freiras! Pan! Pan! Pan!
Atira.
Oh! Esta raça satânica tem a vida dura! Olhem bem para eles com os seus grandes
olhos brancos e beiçolas vermelhas!
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 217
Pan! Pan! Pan! Toma lá esta!
Atira.
Eu vi-os! Mortos, continuavam a avançar sobre nós!
Era preciso matá-los de novo, dez vezes! Diz-se que os feiticeiros deles lhes prometem
transformar as nossas balas em água! Pan! Pan! Pan!
Atira e o manequim cai.
Duvido que esta se tenha transformado em água!
Ri.
Mas eu estou alagado! Safa! Que calor! Calor e sede! Maldito país!
Enxuga o rosto e bebe um copo; cantarola.
Há os que se opõem
Aos pais,
Que se endividam, que inutilmente
fazem de parvos,
Que, um belo dia
Se fartam das amantes,
E fogem muito tristes
Para o Congo!
O escuro intala-se.
Quando a luz regressa, o mercenário branco tem ainda na mão o seu revólver fumegante, mas por terra, o manequim foi substituído por dois cadáveres, Okito e M’Polo.
Entram M’siri e um mercenário, empurrando Lumumba. Bruscamente, M’siri precipitase sobre Lumumba, e bate-lhe no rosto.
(...)
M’SIRI: Viste como os camaradas cuspiram as balas? Agora é entre nós dois !
O mercenário tenta intervir.
M’SIRI arrancando-lhe a baioneta...
Não! Tenho um ajuste de contas a fazer pessoalmente com este senhor.
Dirigindo-se a Lumumba:
Agora é entre nós dois! Então é verdade o que contam, que tu pensas que és invulnerável!
Apoia-lhe a arma sobre o peito.
Responde quando te falam!
LUMUMBA: É mesmo M’siri! Já esperava esta confrontação! Ela era necessária!
Somos duas forças! As duas forças! Tu és a invenção do passado e eu sou um inventor
do futuro!
M’SIRI: Parece que no Kasaï vocês têm poderosos sortilégios. Zunzi pelado ou outra
coisa qualquer; é o momento de os pôr à prova.
218 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
LUMUMBA: M’siri, efectivamente eu encarno uma ideia invulnerável! Invencível como
a esperança de um povo, como o fogo de mato em mato, como o pólen de vento em
vento, como a raiz no húmus cego.
M’SIRI: E isto, e isto! Não sentes? Inexorável! não sentes através do húmus do teu
coiro, que isto se enterra no teu coração?
LUMUMBA: Tem cautela, há no meu peito um caroço duro, um sílex contra o qual a
tua lâmina se quebrará! É a honra da África!
M’SIRI, escarnecendo:
A África! A África marimba-se para ti! A África nada pode por ti! Sentes-me, homem,
a beber o teu sangue e a comer o teu coração!
LUMUMBA: Toda a noite ouvi chorar, rir, gemer e ralhar... era a hiena!
M’SIRI: Está a fazer-te forte! Mas não acreditas no que dizes! Não estás a ver a morte
que te olha nos olhos! Estás a viver a morte, e não a sentes!
LUMUMBA: Morro a minha vida e isso basta-me.
M’SIRI: Toma lá!
Enterra a lâmina.
Então profeta, o que é que vês?
LUMUMBA:
Serei campo, serei pastagem,
Estarei com o pescador Wagenia,
Estarei com o boieiro do Kivu.
Estarei sobre o monte, estarei na ravina.
M’SIRI: Acabemos com isto.
Carrega na lâmina.
LUMUMBA:
Oh! Esta África rosada! Olho e vejo camaradas, vejo a árvore flamejante, vejo pigmeus, vejo uma enxada, a afadigarem-se sobre o tronco precário, mas a cabeça cresce, chama o céu que soçobra, rudimento da espuma de uma aurora.
M’SIRI: Porco!
Lumumba cai.
Para o mercenário:
Cão, acaba com ele.
Barulho de um tiro. O mercenário dá o golpe de misericórdia a Lumumba.
Aimé Césaire, Martinica, Uma Estação no Congo,
Acto III, cenas V e VI, 1967.
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 219
A MÍSTICA E O DESEJO DE SALVAÇÃO UNIVERSAL
Se na história humana o resultado de certos combates pode parecer incerto, em compensação há vitórias definitivas: a da liberdade religiosa é uma delas. Ultrapassando
impedimentos maiores e ódios ainda há pouco tempo considerados inexpugnáveis,
os chefes espirituais de todas as transcendências, depois de se despojarem das suas
pretensões mundanas, procuram uma nova linguagem, ou tentam talvez reinventar,
universalizando-a, a mensagem universal.
Paulo VI, na tribuna das Nações Unidas, lembra que “o sangue de milhões de homens,
sofrimentos inauditos e inumeráveis, massacres inúteis e terríveis ruínas, sancionam
o pacto que vos une num juramento que deverá mudar a história futura do mundo:
nunca mais a guerra, nunca mais a guerra! É a paz, a paz que deve guiar o destino
dos povos e de toda a humanidade!...Devemo-nos habituar a pensar o homem de
uma nova maneira, e também de uma maneira nova a vida em comum dos homens,
finalmente, de uma maneira nova os caminhos da história e os detalhes do mundo...”
Será isto diferente do apelo feito por Goethe a “uma piedade universal; dar aos nossos
sentimentos de probidade e de humanidade uma extensão mais lata e ... não só relacioná-los com os nossos próximos mas com todo o género humano?” ‘Abduh, Gandhi,
Buber, horizontes tão diferentes e uma mesma linguagem – a de uma “frente única”
– no nosso século de errância e de aço.
Uma ordem mais elevada, a do “apaixonado pelo meio divino”, maravilhado com a
evidência de que “a única eternidade humana capaz de abraçar dignamente o Divino é
a de todos os braços humanos abertos em conjunto”, não saberia, sem trair o Deus vivo,
pretender excluir tal ou tal homem da salvação eterna.
392
E aqui a Nossa mensagem atinge o seu auge. Primeiro negativamente: é a palavra
que esperais de Nós e que Nós não podemos pronunciar sem estarmos conscientes
da sua gravidade e da sua solenidade; nunca uns contra os outros, nunca, nunca mais!
Não terá sido sobretudo com essa finalidade que nasceu a Organização das Nações
Unidas: contra a guerra e pela paz? Escutai as palavras lúcidas de uma grande figura
desaparecida, John Kennedy, que proclamava, há quatro anos: “A humanidade deverá
pôr fim à guerra, ou então a guerra porá fim à humanidade.” Não são precisos grandes discursos para proclamar a finalidade suprema da vossa Instituição. Basta lembrar
que o sangue de milhões de homens, que sofrimentos inauditos e inumeráveis, que
massacres inúteis e terríveis ruínas, sancionam o pacto que vos une num juramento
que deverá mudar a história futura do mundo: nunca mais a guerra, nunca mais a
guerra! É a paz, a paz que deve guiar o destino dos povos e de toda a humanidade!
220 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
(...)
Falar de humanidade e de generosidade, é fazer eco de um outro princípio constitutivo das Nações Unidas, a sua vertente positiva: aqui não se trabalha apenas para
esconjurar os conflitos entre os Estados; trabalhamos para tornar os Estados capazes
de trabalhar uns para os outros. Vós não vos contentais em facilitar a coexistência
entre as nações; dais em frente um passo muito maior, digno do Nosso elogio e do
Nosso apoio; organizais a colaboração fraterna dos Povos. Aqui instaura-se um sistema de solidariedade que faz com que fins elevados, na ordem da civilização, recebam
o apoio unânime e ordenado de toda a família dos Povos, para o bem de todos e de
cada um. O que há de mais belo na Organização das Nações Unidas é o seu rosto mais
humano e mais autêntico; é o ideal com que sonha a humanidade na sua peregrinação através dos tempos; é a esperança maior do mundo. Ousaremos dizer: é o reflexo
do desígnio de Deus – desígnio transcendente e cheio de amor – para o progresso da
sociedade humana sobre a terra.
(...)
Uma palavra ainda, meus Senhores, uma última palavra: este edifício que construis
não repousa sobre bases puramente materiais e terrestres, pois então seria um edifício construído sobre areia; repousa, antes de mais, sobre as nossas consciências. Sim,
chegou o momento da “conversão”, da transformação pessoal, da renovação interior.
Devemo-nos habituar a pensar o homem de uma nova maneira; e também de uma
nova maneira a vida comum dos homens; por fim, de uma nova maneira os caminhos
da história e os destinos do mundo, segundo a palavra de S. Paulo: “revestir o homem
novo criado segundo Deus na justiça e na santidade da verdade” (Efésios, 4,23). Eis
chegada a hora em que se impõe uma paragem, um momento de recolhimento, de
reflexão, quase de oração: repensar a nossa origem comum, a nossa história, o nosso
comum destino.
Paulo VI, Papa, Mensagem de Paz na Assembleia Geral das Nações Unidas, 1965
393
A doutrina do Saty graha
O meu sentimento é que as nações não podem ser realmente uma só e que as suas
actividades não saberiam conduzir a humanidade inteira ao bem comum, a menos
que reconhecêssemos expressamente a lei familiar (do amor) nas coisas nacionais e
internacionais, noutras palavras, na ordem política. As nações só podem ser civilizadas na medida em que obedecem a essa lei.
Mah tma Gandhi, 1869-1948, Índia
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 221
394
Para mim a Bíblia, o Evangelho e o Corão são três livros concordantes, três predicações inteiramente unidas entre si; as pessoas religiosas estudam-nos aos três e veneram-nos igualmente; assim se completa o ensino divino, e a sua verdadeira religião
brilha através de todas as religiões.
Estando as três grandes religiões animadas por um mesmo espírito, a hostilidade
entre os seus adeptos não pode durar muito tempo. Prevejo um dia próximo no qual
luzirá, entre os homens, o conhecimento perfeito e no qual se dissiparão as trevas da
ignorância; então as duas grandes religiões, o Cristianismo e o Islão, apreciar-se-ão
mutuamente e estenderão a mão uma à outra.
Al-Cheikh Mu ammad ‘Abduh, Egipto,
Al-Isl m wa-l-Na r niya (Islão e Cristianismo), 1901
395
O apaixonado pelo meio divino não pode suportar à sua volta a obscuridade, a moleza, o vazio, naquilo que deveria estar totalmente cheio e vibrante de Deus. Sentese transido com a ideia dos inumeráveis espíritos a ele ligados na unidade de um
mesmo Mundo, à volta dos quais ainda não foi ateado com suficiente força o fogo da
Presença divina. Podia ter acreditado, há algum tempo, que, para tocar em Deus na
medida dos seus desejos, lhe bastava estender a mão, a sua mão. Apercebe-se agora
que o único amplexo humano capaz de abraçar dignamente o Divino é o de todos os
braços humanos, abertos conjuntamente para chamar e acolher o Fogo. O único sujeito definitivamente capaz de Transfiguração mística é o grupo de todos os homens,
formando apenas um corpo e uma alma, na caridade.
Pierre Theillard de Chardin, 1881-1955, França,
O Meio Divino, Ensaio de Vida Interior
396
Como no Ocidente a palavra Deus, no seu sentido usual, designa uma Pessoa, os
homens cuja atenção, fé e amor incidem exclusivamente sobre o aspecto impessoal
de Deus, podem crer-se e dizer-se ateus, embora o amor sobrenatural habite nas suas
almas. Estes homens serão certamente salvos.
Reconhecem-se pela sua atitude relativamente às coisas do mundo. Todos os que
possuem num estado puro o amor do próximo e a aceitação da ordem do mundo,
inclusive da infelicidade, todos estes, mesmo que vivam e morram aparentemente
ateus, serão certamente salvos.
Aqueles que possuem de um modo perfeito estas duas virtudes, mesmo que vivam e
morram ateus, são santos.
Simone Weil, 1909-1943, França, Carta a um Religioso
222 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
397
Para os que amam de um amor verdadeiro o Deus-Verdade, os habitantes do mundo
inteiro são como verdadeiros irmãos.
O meu pecado? Ei-lo: Disse que os setenta e dois povos diferentes constituem, todos
eles, uma só verdade.
Quem cheira [o perfume] do amor não tem mais necessidade de religião, nem de
nação. Quem considera como nada o seu ser, poderá distinguir entre religiões e seitas?
Encontrei aquele que procurava, manifesto na alma do homem. Incessantemente
aspirando a libertar-se, a evadir-se do corpo no qual está fechado.
Foi ele que atou o talismã; é ele que fala todas as línguas; ele que o céu e a terra não
podem conter, e veio alojar-se na alma do homem.
É ele que manda construir casas de caridade para os pobres, vilas e palácios; ele que
se afadiga diante do forno de um banho público, com uma máscara no rosto.
Yunus, as tuas palavras têm um sentido profundo para os que sabem decifrá-las;
durarão depois de ti: virão tempos em que ainda as dirão.
Yunus Emre, Poeta popular do séc. XIII, Turquia
398
Aceito todas as religiões que existiram no passado e uno-me a todas para adorar
Deus. Adoro Deus em cada uma delas, quaisquer que sejam as formas dessa adoração. Irei à mesquita dos Maometanos; penetrarei na Igreja de Cristo e ajoelhar-me-ei
diante do Crucifixo; entrarei num templo consagrado a Buda e procurarei refúgio
junto de Buda e da sua lei. Irei à floresta e juntar-me-ei aos Hindus que aí meditam,
esforçando-se por perceber a Luz que ilumina o coração de cada um de nós. Não só
farei todas estas coisas, mas o meu coração manter-se-á aberto para o futuro (...)
Assumimos tudo o que existiu no passado, gozamos da luz do presente e abrimos
todas as janelas do nosso coração para acolher o que o futuro nos trará. Prestamos
homenagem a todos os profetas do passado, aos grandes homens deste tempo e a
todos os que surgirão no futuro.
Swami Vivekananda, 1863-1902, Índia
O POLÍTICO E O COMBATE PELA FELICIDADE AQUI E AGORA
Simultaneamente, para o apaixonado do meio humano, a mensagem hipostasiada
inverteu as suas fontes que deverão ficar aquém: ela fala de história e não de teologia,
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 223
de relações humanas e não de ontologia.
“A extinção dos ódios de raça”, prévia a toda a igualdade e a toda a justiça, não se cumpriu. Ora, é forçoso ver “que este sentimento é partilhado ... pelos povos que nas competições dos quatro últimos séculos entre potências ocidentais, talharam para si a parte
do leão – pelo menos por agora – na herança da Terra.” Não há saída enquanto não se
tiver reconhecido a todo o particularismo “uma natureza humana universal”, enquanto
o pensamento não se tiver imposto, como imperativo categórico, não se tiver interrogado sobre “o que é verdadeiro para todos os homens e não sobre o que é verdadeiro
para alguns indivíduos ”. Tais verdades são, com toda a evidência, de essência política.
Políticas são a miséria e as desigualdades sociais; políticos o racismo, o colonialismo e
os seus sucedâneos: como é que a revolta e as revoluções que procuram pôr termo a
umas e a outros, não o seriam também? A liberdade, a igualdade, a justiça, em resumo,
a felicidade, “aqui, agora e em primeiro lugar” não são um destino, nem um dom, nem
um sonho; conquistam-se por todos os dominados sobre todos os dominadores: invariavelmente, a história já feita ou a história que se faz, compõe um rosto com os traços
destes e não daqueles. Quanto à tolerância – este ensaio de tragédia optimista tentou
mostrá-lo – é, como tudo o resto, contraditória porque empobrecida e desviada, mas
definitivamente aberta por ser móvel e libertadora, à medida do conflito criador entre
“por um lado a estrutura económica e política e por outro lado a teoria e a prática.”
Modificar, por pouco que seja – e a modificação é inelutável – tal contradição, será o
papel da nova tolerância que deverá procurar sempre mais igualdade e mais justiça,
por um esforço inédito de reconhecimento e de solidariedade real em que o deus Ouro
deverá ser, como os ídolos antigos, destruído. Só então a fraternidade humana não mais
terá de se cobrir com a máscara da tolerância.
399
A extinção dos ódios de raça entre Muçulmanos é uma das realizações morais mais
consideráveis do Islão; no mundo contemporâneo, a necessidade de propagação
dessa virtude muçulmana faz-se sentir de um modo gritante; e embora a história
pareça mostrar que, no seu conjunto, o preconceito da raça tenha constituído excepção, mais do que regra, nas constantes trocas da espécie humana , uma das fatalidades da situação presente é que este sentimento é partilhado – e com força – pelos
povos que nas competições dos quatro últimos séculos entre potências ocidentais,
talharam para si a parte do leão – pelo menos por agora – na herança da Terra.
Arnold J. Toynbee, 1889-1975, Reino Unido,
A Civilização Posta à Prova
224 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
400
Não haverá uma natureza humana universal, tal como há uma natureza universal das
plantas e dos astros? A filosofia interroga-se sobre o que é verdadeiro, não sobre o
que é válido; interroga-se sobre o que é verdadeiro para todos os homens, não sobre o
que é verdadeiro para alguns indivíduos; as suas verdades metafísicas não conhecem
as fronteiras da geografia política; as suas verdades políticas sabem demasiado bem
onde começam “as fronteiras” e não confundem o horizonte ilusório de uma concepção particular do mundo e do povo com o verdadeiro horizonte do espírito humano.
Karl Marx, editorial de “Kölnische Zeitung”, 1842
401
O comunismo do “Observador Renano”
(...) Lê-se ainda:
Também pedimos no “Pater Noster”: “Não nos deixeis cair em tentação.” E aquilo que
pedimos para nós, devemos nós mesmos aplicar ao próximo. Ora, estamos certos de
que as nossas condições sociais são uma tentação para o homem e que o excesso de
miséria incita ao crime.
Karl Marx, Artigo surgido na gazeta alemã de Bruxelas, 1847
402
É com uma amarga ironia que observamos como o desenvolvimento do racismo
se efectuou paralelamente ao do ideal democrático, quando foi preciso recorrer ao
prestígio recentemente adquirido da ciência para sossegar as consciências de cada
vez que, de modo demasiado gritante, se violava ou se recusava o reconhecimento
dos direitos de uma porção da humanidade
(...)
Não há raças de senhores face a raças de escravos: a escravatura não nasceu com
os homens, só apareceu em sociedades suficientemente desenvolvidas do ponto de
vista técnico para poderem manter escravos e deles tirar vantagens para a produção
(...)
O preconceito racial nada tem de hereditário e também não é espontâneo; é um “preconceito”, quer dizer um juízo de valor que não é fundamentado objectivamente nem é
de origem cultural : longe de ser dado nas coisas ou de ser inerente à natureza humana,
faz parte desses mitos que procedem muito mais de uma propaganda interessada do
que de uma tradição imemorial. Visto que está essencialmente ligado a antagonismos
que assentam sobre a estrutura económica das sociedades modernas, é na medida em
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 225
que os povos transformam essa estrutura que o veremos desaparecer, como outros
preconceitos que não são causa mas sintomas de injustiça social. Deste modo, graças à
cooperação de todos os grupos humanos, quaisquer que eles sejam, sobre um plano de
igualdade, abrir-se-ão para a civilização perspectivas insuspeitáveis.
Michel Leiris, França, Cinco Estudos de Etnologia, 1969
403
Ó luz amigável,
ó fonte fresca de luz
aqueles que não inventaram nem a pólvora nem a bússola
aqueles que nunca souberam dominar o vapor nem a electricidade
aqueles que não exploraram nem os mares nem o céu
mas sem os quais a terra não seria terra
corcova mais benéfica do que a terra
deserta,
mais terra,
silo onde se conserva e amadurece o que a terra tem de mais terra
a minha negritude não é uma pedra, a sua surdez lança-se
contra o calor do dia
a minha negritude não é uma capa de água morta sobre os olhos
mortos da terra
a minha negritude não é torre nem catedral
mergulha na carne vermelha do solo
mergulha na carne ardente do céu
rompe o cansaço opaco da sua recta paciência
(...)
e eis no final desta manhã a minha prece viril
que eu não oiça nem os risos nem os gritos, olhos fixos sobre
a cidade que profetiza, bela
(...)
Fazei-me rebelde a toda a vaidade, mas dócil ao seu génio
[“esse povo único”]
como o punho prolongando o braço!
Fazei-me comissário do seu sangue,
depositário do seu ressentimento
fazei de mim um homem de iniciação
fazei de mim um homem de recolhimento
mas fazei também de mim um homem de sementeira
226 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
(...)
Mas ao fazê-lo, coração meu, preservai-me de todo o ódio
não façais de mim esse homem de ódio por quem
só tenho ódio
por me isolar nesta raça única.
Conheceis no entanto o meu amor tirânico
sabeis que não é por ódio às outras raças
que exijo ser cavador desta raça única
que aquilo que quero
é para a fome universal
para a sede universal
notificá-la finalmente como livre
para produzir da sua intimidade fechada
a suculência dos frutos.
Aimé Césaire, Martinica,
Caderno de Retorno ao País Natal, 1947
404
O homem não é nem o bom selvagem de Rousseau, nem o perverso da igreja e de La
Rochefoucauld. É violento quando o oprimem, é doce quando é livre.
As Paredes Falam, Sorbonne,
Paris, Maio 1968
405
Creio na existência de um “direito natural” de resistência para as minorias oprimidas
e esmagadas, segundo o qual elas poderiam recorrer a meios extra-legais desde
que os meios legais tivessem mostrado a sua ineficácia. A lei e a ordem mantêm-se
sempre e em toda a parte lei e ordem feitas para proteger a hierarquia estabelecida;
é pois um absurdo invocar a autoridade absoluta das leis e da ordem, contra aqueles
que as suportam e as combatem, não para obter vantagens pessoais ou para satisfazer uma vingança pessoal, mas sim porque querem viver como homens. Não há outro
juiz para a sua conduta que não sejam as autoridades constituídas, a polícia e a sua
própria consciência. Quando recorrem à violência, não pensemos que desencadeiam
uma nova série de violências, mas sim que tentam quebrar aquela que existe. Serão
punidos e sabem-no. Visto que querem correr esse risco, ninguém, e sobretudo os
educadores e os intelectuais, tem o direito de pregar a não-violência.
Herbert Marcuse, Estados Unidos da América
Crítica da Tolerância Pura
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 227
406
O socialismo
(...) Oh! O trabalho da história não acabou,
É um rochedo empurrado para as alturas pelos nossos braços.
Se cedermos esmagará o nosso peito,
Se repousarmos, triturará a nossa cabeça.
(...) Oh! O trabalho da história não acabou.
Este globo ainda não foi temperado pelo fogo do Espírito.
C.K.Norwid, Polónia, 1861
HOMEM ANTIGO, MUNDO NOVO
Nova utopia ou aproximação de um salto qualitativo, oscilante, numa nova idade do
humano? “Sinais que anunciam algo diferente que está em movimento”: “a frivolidade
e o enfado que invadem o que ainda subsiste, o pressentimento vago de um desconhecido”. Mais concretamente, a falência, o processo planetário e a condenação que há de vir,
da violência estrutural de uma idade que nunca mais acaba de morrer. Talvez só então
o homem, rendido ao homem, não mais fique atrasado, aos olhos da História, sobre o
seu próprio destino, aos olhos de Deus, sobre a sua própria salvação.
“Crianças lindas que saístes de nós, as nossas dores fizeram-vos. Este século é uma
mulher, dá à luz...” Para elas “já canta uma mais alta aventura”, “por entre as ruínas
santas e a pulverização dos velhos formigueiros.”
407
Contudo, não é difícil ver que o nosso tempo é um tempo de gestação e de transição
para um novo período; o espírito cortou com o mundo do seu estar-aí e da representação que durou até agora; está no ponto de enterrar este mundo no passado, e está a
braços com o trabalho da sua própria transformação. Na verdade, o espírito nunca está
em estado de repouso, é sempre arrastado num movimento indefinidamente progressivo; só que o que aqui se passa é semelhante ao caso das crianças; após uma longa
e silenciosa nutrição, a primeira respiração, num salto qualitativo, interrompe bruscamente a continuidade do crescimento apenas quantitativo , e é então que a criança
nasce; assim, o espírito que se forma amadurece lenta e silenciosamente até que a sua
nova figura desintegre, fragmento por fragmento, o edifício do seu mundo anterior; o
abalo deste mundo apenas é indicado por sintomas esporádicos; a frivolidade e o enfado que invadem o que ainda subsiste, o pressentimento vago de um desconhecido, são
228 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
os sinais que anunciam algo diferente que está em movimento Este pulverizar contínuo
que não alterava a fisionomia do todo é bruscamente interrompido pelo erguer do sol
que, como um relâmpago, desenha de uma só vez a forma do novo mundo.
Hegel, Alemanha,
Fenomenologia do Espírito, 1807
408
Ó séculos, eis o meu século, solitário e disforme, o acusado. O meu cliente esventra-se com as suas próprias mãos; o que tomais por linfa branca, é sangue: não há
glóbulos vermelhos, o acusado morre de fome. Mas vou dizer-vos o segredo desta
perfuração múltipla: o século teria sido bom se o homem não tivesse sido espiado
pelo seu inimigo cruel, imemorial, pela espécie carniceira que jurara a sua perda, pelo
animal sem pelos e maligno, pelo homem. Um e um são um, eis o nosso mistério. O
animal escondia-se, subitamente surpreendíamos o seu olhar, nos olhos íntimos dos
que nos são próximos; então batíamos-lhe: legítima defesa preventiva. Surpreendi
o animal, bati-lhe, um homem caiu, nos seus olhos moribundos vi o animal sempre
vivo, eu. Um e um são um: que mal entendido! De quem e de quê este gosto rançoso
e insípido na minha garganta? Do homem? Do animal? De mim mesmo? É o gosto
do século. Séculos felizes que ignorais os nossos ódios, como podereis compreender
o poder atroz dos nossos amores mortais. O amor, o ódio, um e um... Absolvei-nos! O
meu cliente foi o primeiro a conhecer a vergonha: sabe que está nu. Crianças lindas
que saístes de nós, as nossas dores fizeram-vos. Este século é uma mulher, dá à luz.
Condenaríeis a vossa mãe? Sim? Respondei! (Uma pausa). O trigésimo já não responde. Talvez já não haja mais séculos depois do nosso. Talvez uma bomba apague as
luzes. Tudo morrerá: os olhos, os juizes, o tempo. Noite. Ó tribunal da noite, tu que
foste, que serás, que és, eu fui! Eu fui!
Jean-Paul Sartre, Os Sequestrados de Altona,
Acto V, cena III, 1960
409
“... Idade avançada, eis-nos aqui – e aos nossos passos de homens que se dirigem para
a saída. Basta de armazenar, é tempo de arejar e de honrar a nossa eira.
“Para amanhã as tempestades ratoneiras, e o trabalho do relâmpago [...] O caduceu
desce do céu para marcar a terra com o seu número. Funda-se a aliança.
“Ah! Que se erga também uma elite, árvores grandes sobre a terra, como tribo de
almas grandes que nos mantenham nos seus conselhos [...] E que desça a severidade
da noite, confessando a sua doçura, sobre os caminhos de pedra escaldante aclarados
com lavanda. [...]
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 229
“Então haverá frémitos, no caule mais alto ungido de âmbar, na folha mais alta, meia
solta no seu dedal de marfim.
“E os nossos actos afastam-se em pomares de clarões [...]
“Outros que edifiquem, entre o xisto e a lava. Outros que ergam os mármores da
cidade.
“Já para nós canta uma aventura mais alta. Caminho traçado com nova mão, e fogos
colocados de cimo em cimo.
(...)
“A oferenda, ó noite, onde a levaremos? E o louvor, e a altivez?
[...] Erguemos com os nossos braços, com a palma das nossas mãos, como ninhada de
asas nascentes, esse coração entenebrecido do homem que foi ávido, que foi ardente,
com tanto amor irrelevante [...]
“Escuta, ó noite, nos prados desertos, sob as arcadas solitárias, por entre as ruínas
santas e a pulverização dos velhos formigueiros, o passo soberano da alma desprovida de toca,
“Como nas lajes de bronze onde uma fera rondasse.
“ Idade avançada, eis-nos aqui. Tirai as medidas ao coração do homem.”
Saint-John Perse, França, Crónica. 1960
SE O HOMEM NÃO DECAIR
Iniciado sob o signo da invenção musical, este “livro de boa fé” termina e abre-se de
novo em postulação de harmonia.
Para além dos conceitos acoplados: cólera-amor, inimigo-amigo, incumprimento-dever,
diferente-semelhante, traição-perdão, cuja realidade viva aqui tentámos ilustrar, sem os
civilizar, é essa melodia ainda desconhecida mas que cada um confusamente percebe
que pertence aos homens, finalmente dignos do humano, formular, e que, sem dúvida
irá moldar, sobre as ruínas de um mundo que foi, a forma de um mundo novo, melhor
e justo.
410
Sarastro
Nestas salas sagradas
desconhece-se a cólera
e o amor re-orientará para o dever
o homem que caiu.
230 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Então, com a mão na mão de um amigo
ele irá feliz, para um mundo melhor.
Nestas paredes sagradas,
onde o homem ama o seu próximo,
nenhum traidor se esconde,
porque perdoamos aos nossos inimigos.
Aquele que não ouve este ensinamento
não merece ser homem.
(Saem)
Wolfgang Amadeus Mozart, Áustria, A Flauta Encantada,
Libreto de Emmanuel Shikaneder, segundo um conto oriental
Acto III, quadro VII, cena XIII, 1791
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 231
BIBLIOGRAFIA
O Secretariado da Unesco esforçou-se por obter uma autorização explícita para
reproduzir aqueles extractos da presente antologia que ainda não tinham entrado no
domínio público e, graças à amabilidade de todos, obteve-a na quase totalidade dos
casos. Pedimos desculpa por eventuais omissões e pelo facto de não termos considerado
dever renunciar a certos excertos de obras cujos editores ou autores não conseguimos
contactar.
‘ABD AL-R ZEQ, ‘Al (1888-1966, Egipto). Al-Isl m wa u ul al- ukm [O Islão e os princípios do governo] (1925). Citado e traduzido por A. ‘Abdel-Malek em: Anthologie de
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‘ABDUH, Muhammad, Cheikh ( 1849-1905, Egipto). Al-Isl m wa-l-Nasr niya (1901). Em
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M. ‘ bd al-Razeq, Paris, Paul Geuthner, 1925.
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Em: Oeuvres choisies, p. 213,217,222; p. 133. Trad. M. de Gandillac, Paris, Aubier, 1945.
ABRAHAMS, Peter (nascido em 1919 na África do Sul). Tell freedom. Trad. M. Klopper
e D. Shaw-Mantoux: Je ne suis pas un homme libre, p. 303-305, Tournai, Casterman,
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Paris, Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
206
232 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
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AGOSTINHO, santo (bispo de Hipona, Cartago, 354-430). Sermões. Citado por R. Joly
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155
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ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 233
BAYLE, Pierre (1647-1706, França). Commentaire Philosophique sur les paroles de
Jésus-Christ, t. II, p. 361, Paris, 1686.
236
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259
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78 e 77, Liège, juil.-sept, 1954.
171, 246, 278
BEAUMARCHAIS, Pierre Augustin Caron de (1732-1799, França). Le mariage de Figaro
(1784), acto V, cena III, p. 345-347, Paris, Gallimard, 1957 (Col. Bibliothèque de la
Pléiade.)
158
BENTKOVSKI, Felix (1781-1852), Histoire de la litérature polonaise, t.I, p. 90, VarsóviaVilno, 1814.
256
BERCHTOLD, arcebispo de Mogúncia (séc. XV, Alemanha), Ordenança de 1486, citado
por L.-G. Robinet em La censure, p. 17, Paris, Hachette, 1965.
146
Bíblia hebraica. A Bíblia, p. 795, 188, 24-25, 1268 e 1008. Paris, Éditions du Cerf, 1956:
Salmos, 146
24
Deuteronómio, 10, 18-19
49
Génesis 18, 22-25
56
Zacarias 7, 9-10
58
Isaías 19, 24-25
94
BOCAGGE, Giovanni BOCCACIO, dito (1313-1375, Itália), Decameron, p. 52-54, trad.
Francisque Reynard, Paris, Le Club Français du Livre, 1953.
108
BODIN, Jean (1530-1596, França), Colloquium heptaplomeres (1593), p. 33-38, trad. do
latim R. Chauviré, Paris, Sirey, 1914.
233
BOEHME, Jacob (1575-1624, Alemanha), De Regeneratione, VII, 7, citado por J. Lecler em
Histoire de la tolérance au siècle de la Réforme, t.I, p. 199, Paris, Aubier, 1955.
65
BOKAR, Salif Tall TIERNO - (1884-1940, Mali e Senegal), citado por Th. Monod em “Un
homme de Dieu: Tierno Bokar”, Présence Africaine nos 8-9, p. 156, Paris, 1950.
345
BORGES, Jorge Luis (1899-1986, Argentina), citado e traduzido por V. Monteil em
Anthologie bilingue de la poésie hispanique contemporaine, Espagne-Amérique, p. 359361, Paris, Librairie C. Klincksieck, 1959.
115 bis
234 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
BRECHT, Bertolt (1898-1956, República democrática alemã). Citado por L. Goblot em
Apologie de la censure, p. 151-152, Rodez, Supervie, 1959.
370
– Citado por R.Wintzen em Bertolt Brecht, p. 175-176, Paris, Seghers, 1967.
341
BUBER, Martin (1878-1965, Israel), Fragments on revelation, em Believing in humanism, p. 115-116, New York, Simon and Schuster, 1967, trad. francesa E. Treves.
349
– Ich und Du – Zwiesprache (1923), trad. J. Loewenson-Lavi, em La vie en dialogue, Je
et Tu, p. 139, Paris, Aubier, 1959.
386
BULA Veritas ipsa do Papa Paulo III (quarto dia antes das noas de Junho 1537). Em
Annales minorum seu trium ordinum (1516-1540), XVI, 3a ed. Florença, 1933. Já reproduzido em Le droit d’être un homme, Paris, Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
166
BURKE, Edmund (1729-1797, Grã Bretanha). Speech on the second reading of a bill
for the relief of Protestants dissenters (1773). [Discurso pronunciado aquando da
segunda leitura de uma lei sobre o melhoramento da condição legal dos dissidentes
protestantes], em Works of Edmund Burke, p. 40, Londres, Rivingstons Ltd, 1813, trad.
francesa E. Treves.
273
BUSIA, Kofi A. (nascido em 1913, Ghana), Africa in search of democracy, p. 97-98,
London, Routledge and Kegan Paul and New York, Praeger, 1967, trad. francesa E.
Treves.
332
APEK, Karel (escritor checo, 1890-1938), Aforismos.
175, 180
CARLYLE, Thomas (1795-1881, Reino Unido da Grã Bretanha e da Irlanda do Norte).
S’addressant aux Noirs (1853), trad. francesa E. Treves.
316
CARLOS V, Ver DECRETO(S)
CARTA dita dos Saxões (4 de Julho 1777) outorgada por Alexandre Ypsilanti, príncipe
da Valáquia (1774-1782). Citada por V. A. Ureche em Istoria Românilor, t. I, p. 56-57,
Bucareste, C. Göbl, 1891.
292
CARTA(S)
do Ministro da Polícia (França) relativa à obra De l’ Allemagne de Mme de Staël, citada
por L. Goblot em Apologie de la censure, p. 55, Rodez, Supervie, 1959.
358
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 235
Patentes sobre a tolerância (Outubro de 1781) de José II da Áustria (1741-1790,
Imperador), citadas por Eugene Hubert em De Charles Quint à Joseph II, Études sur la
condition des Protestants de Belgique, p. 110-113, Bruxelles, H. N. Lebègue, 1882.
293
CASTELLION, Sébastien (1515-1563, França), Conseil à la France désolée (1562), F.
Walkhoff (ed.), Genève, Droz, 1967.
227
CERIOL, Furio (séc. XVI, Espanha), Consejo y consejeros del principe, p. 322, Antuérpia,
Biblioteca de Autores Españoles, 1556.
265
CERVANTES, Miguel de (1547-1616, Espanha), Don Quijote de La Mancha (1605-1616), p.
187, Barcelona, Iberia, 1949.
243
CÉSAIRE, Aimé (nascido em 1913, Martinica), Cahier d’un retour au pays natal, p. 75-77,
Paris, Présence Africaine, 1956 (1a ed. 1947).
403
– Et les chiens se taisaient, em Les armes miraculeuses, p. 184-185, Paris, Gallimard,
1946.
378
– Ferrements, p. 26, Paris, Éditions du Seuil, 1960.
4
– Une saison au Congo, acto III, cenas V e VI, p. 107-111, Paris, Éditions du Suil, 1967. 391
CHILAN BALAM DE CHUMAYEL (fixado no século XVI, América Central), Livro sagrado
dos Mayas, trad. espanhola A. Mediz Bolio em Libro del Chilam Balam de Chumayel,
2a ed., p. 16-17, 25-26 e 158, México, Universidad Nacional, 1952. Já reproduzido em Le
droit d’ être un homme, Paris, Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
190
COLOMBO, Cristovão (1450/51 – 1506, nascido em Génova), Carta da Jamaica (1503),
citada por Karl Marx em Le capital, p. 673-674, Paris, Gallimard, 1963 (Col. Bibliothèque
de la Pléiade.)
5
COMENIUS, Jan Amos (1592-1670, escritor checo), De rerum humanorum emendatione
consultatio catholica, Halae, Typis et impensis orphanotrophii, 1702,
Cf. J. A. Comenius, Pages choisies, Paris, Unesco, 1957. Já reproduzido em Le droit d’ être
un homme, Paris, Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
264
CONCÍLIO ecuménico do Vaticano II (1965), Declaração “Dignitatis humanae” sobre
a liberdade religiosa, em La Documentation Catholique, t. LXIII, p. 260 e segs., Paris,
Bonne Presse, 6 de Fevereiro, 1966.
351
– Op. cit., p. 99-100; 16 de Janeiro 1966.
353
236 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
CONDORCET, Marie Jean Antoine de Carita, Marquês de (1743-1794, França), Réflexions
sur l’ esclavage des nègres. Épître dédicatoire aux nègres esclaves.
317
– Sur l’ admission des députés des planteurs de Saint-Domingue dans l’ Assemblée
Nationale.
327
Em La Révolution française et l’abolition de l’ esclavage, t. VI, p. I-IV e texto 8, Paris,
Edhis, 1968.
CONFÚCIO 8551 ?- 479 ? a.C., China), Entretiens de Confucius et de ses disciples, trad.
S. Couvreur, em Les quatre livres de la sagesse chinoise, p. 206, 99, 196-197, 190 e 114,
Paris, Club des Libraires de France, 1956.
19, 37, 45, 61, 75
CONSTANT DE REBECQUE, Benjamin (1767-1830, Suiça – França), Principes de politique
applicables à tous les gouvernements représentatifs et particulièrement à la constitution actuelle de la France, p. 1815 e 1216, Paris, A. Eymery, 1818
260,303
– De la religion considérée dans sa source, ses formes et son développement, p. 139,
Paris, A. Leroux et C. Chantpie, 1826.
297
– De la liberté des brochures, des pamphlets et des journaux, citado por L. G. Robinet
em La censure, p. 218, Paris, Hachette, 1965.
361
CONSTITUIÇÃO em dezassete artigos do príncipe imperial Sh toku (604, Japão), em
William Théodore de Bary (ed.), Sources of Japanese tradition, vol. I, p. 47-51, New York
and London, Columbia University Press, 1958. Já reproduzido em Le droit d’être un
homme, Paris. Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
109
COOLIDGE, Calvin (1872-1933, presidente dos Estados Unidos da América), Segundo
discurso inaugural, 4 de março 1925, trad. francesa de E. Treves.
330
Corão, p. 1312, 687, 758-759, 249, 602, 482, 689, 51, 262, 237, 13, 40, 224, 450-451, 32 e 770,
tradução de Denise Masson, Paris, Gallimard, 1967 (Col. Bibliothèque de la Pléiade) :
Sura V, V.32, A mesa posta
2
Sura I, V. 1-7, A Fathia
10
Sura LIX, V.22-24, O ajuntamento
20
Sura XCIII, V. 1-11, A claridade do dia
23
Sura X, V.19, Jonas
33
Sura XLII, V.40, A deliberação
43
Sura XXVIII, V. 54-55, O relato
52
Sura LX, V. 7-9, A provação
62
ENSAIO ANTOLÓGICO
Sura II, V.256, A vaca
Sura X, V.99-100, Jonas
Sura XVI, V.35, As abelhas
Sura II, V.62, A vaca
Sura II, V. 213, A vaca
Sura IX, V.6, A imunidade
Sura XXVI, V.224-228, Os poetas
Sura II, V.177, A vaca
Sura CIX, V. 1-6, Os incrédulos
A TOLERÂNCIA 237
63
70
73
82
104
135
145
205
216
CORTES [Parlamento] de Toledo (1480), em Cortes de los antiguos reinos de León y
Castilla, p. 179, Madrid. Academia de la Historia, 1882.
147
COWPER, William (1731-1800, Grã Bretanha), The task [A tarefa], trad. francesa E.
Treves.
197
CRELLIUS, Johannes (1590-1633, Polónia), Vindiciae pro religionis libertate [De la tolérance dans la religion ou de la liberté de conscience] (1637), p. 27, Varsóvia, Éditions
scientifiques d’État, 1957.
211
CRESCAS, Hasdai ben Abraham (ou ben Judah) (1340-1410, Barcelona), Or Adonai [A
luz do Senhor], citado por J.H. Hertz, trad. do inglês por A. Staraselski em Un livre de
pensées juives, p. 15, Cairo, R. Schindler, 1945.
72
CROMWELL, Oliver (1599-1658, Inglaterra), Speech to Parliament [Discurso ao
Parlamento], 12 de Setembro de 1654, em Letters and speeches, ed. comentada
por Thomas Carlyle, p. 439, New York, Merril and Baker, 1900, trad. francesa de E.
Treves.
272
CRUZ, Soror Juana Inés de la (1651-1695, México), Lettre autobiographique, trad. De
Yvette Billod, em La Licorne, III, p. 50, Paris, Outono, 1948.
157
CUSA, Ver NICOLAU DE CUSA
DECLARAÇÃO dos direitos do homem e do cidadão (5 de Outubro de 1789, França). Já
reproduzido em Le droit d’être un homme, Paris. Unesco/Laffont e Lausanne, Payot,
1968.
309
238 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
DECRETO(S)
De Carlos V, rei de Espanha e imperador germânico (1500-1558), promulgados entre
1526 e 1548, Cf. Recopilación de leyes de los Reinos de las Indias, livro 6, título 2, lei I.
(Original 1680.) Madrid, Boix, 1841. Já reproduzido em Le droit d’être un homme, Paris.
Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
186
Sobre a imprensa, de José II da Áustria (1741-1790), citado por F. Fetjö em Un Habsbourg
révolutionnaire, Jospeh II, p. 206, Paris, Plon, 1953.
294
Dhammapada (axiomas budistas), tradução do pali por S. Radhakrishnan, em The
Dhammapada, V.I, 5, London, Oxford University Press, 1958, trad. francesa de E.
Treves.
279
DIAZ DEL CASTILLO, Bernal (1495-1582, Espanha), trad. de Dominique Aubier, em
L’ histoire véridique de la conquête de la Nouvelle Espagne, p. 160-161 e 178 ; 106, Paris,
Les Libraires Associés, 1959.
15, 177
DIDEROT, Denis (1713-1784, França), artigo “Intolérance” em Encyclopédie ou
Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, t. VIII, p. 843, Paris, 1765.
118
– De la suffisance de la religion naturelle (1747), t.1, 272-273, Paris, Garnier, 1875.
223
– Lettre à l’ abbé Diderot (1760), em Correspondance, t. III, p. 283-288, Paris, Éditions de
Minuit, 1954.
208
– Mémoire pour Catherine, II, p. 108, Paris, Garnier, 1966.
134
– Pensées philosophiques (1746) em Œuvres philosophiques, p. 25-26, Paris, Garnier,
1964.
220
DJ HIZ, Ab ‘Uthm n ‘Amr b. Ba r al- (780 ?-869, Iraque), Recommandations du
Calife ‘Omar b. al-K a b à son successeur, em Al-Bayan wal-Tab n, t. II, p. 46, S.I.,
Éd. Sandoubi, 1956.
149
Ver também ‘ UMAR BEN AL-KHA
B
DONNE, JOHN (1573-1631, Inglaterra), Sermons, trad. francesa E. Treves.
78, 195
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 239
DOSTOÏEVSKI, Fiodor Mikhaïlovitch (1821-1881, Rússia), Les frères Karamazov (1880),
Livro V, cap. III, p. 134 ; Le Grand Inquisiteur, p. 284-285, trad. H. Mongault, L.
Désormonts, B. de Schloezer e S. Luneau, Paris, Gallimard, 1952 (Col. Bibliothèque de
la Pléiade.)
3, 195
EDITO(S)
de Ashoka (séc. III a.C., Índia, prácrito): Rocher XII e XIII, trad. J. Bloch, em Les inscriptions d’ Asoka, p. 121-133, Paris, Les belles lettres, 1950.
121
do imperador K’ien-long (1709-1799, quarto imperador da dinastia manchú Ts’ing,
China), 10 de Novembro 1785, citado por Louis Wei Tsing-Sing em La politique missionaire de la France en Chine, p. 52, Paris, Nouvelles Éditions Latines, 1960.
283
de Milão, 313, citado por J. Lecler em Histoire de la tolérance au siècle de la Réforme, t.
I, p. 71-72, Paris, Aubier, 1955.
125
de Nantes, outorgado por Henrique IV, França, a 13 de Abril de 1598, em Elie Benoist,
Histoire de l’ Édit de Nantes, t. I, 62-84, Delft, Adrien Berman, 1963-1965.
291
de tolerância do imperador K’ang-hi (1692), citado por Luis Wei Tsing-Sing em La politique missionaire de la France en Chine, p. 562, Paris, Nouvelles Éditions Latines, 1960.
284
Ver também K’ANG-HI.
de Muharram 2. Ver MU AMMAD.
Sagrado do Imperador Tao-kouang, 20 de Fevereiro de 1846, citado por Luis Wei TsingSing em La politique missionaire de la France en Chine, p. 564-565, Paris, Nouvelles
Éditions Latines, 1960.
286
EINSTEIN, Albert (1979-1955, Estados Unidos da América), Comment je vois le monde,
p. 26, trad. do alemão de M. Solovine, Paris, Flammarion, 1958.
367
– Conceptions scientifiques, morales et sociales, p. 216-217, trad. do alemão de M.
Solovine, Paris, Flammarion, 1958.
372
240 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
EMRE, Yunus (séc. XIII, poeta popular turco) em A. Gölpinarli, Yunus Emre ve Tasavvuf
(Yunus Emre e o misticismo), Istanbul, Remzi, 1961. Já reproduzido em Le droit d’être
un homme, Paris, Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
397
Enciclopédia, Ver DIDEROT.
ERASMO D., de Roterdão (1469-1536), Carta a Alberto de Brandeburgo, 15 de Outubro
de 1519, em Opus epistolarum, t. IV, p. 106, S.I., Allen Ed., s.d.
229
– Querela pacis undique gentium ejectae profligataeque [Plainte de la paix persécutée](1515), citado em E. Constantinescu-Bagdat, La « Querela pacis » d’ Érasme, p.
165, Paris, 1924. Já reproduzido em Le droit d’être un homme, Paris, Unesco/Laffont e
Lausanne, Payot, 1968.
174
ESCHENBACH, W. von (1170-1220 ?, Alemanha), Willehalm (cerca de 1212), p. 306, vers.
18-19 e 25-30; p. 307, vers. 30; p. 309, vers. 1-5 ; p. 450, vers. 15-20 ; em K. Lachmann,
Wolfram von Eschenbach, 6a ed., Berlin und Leipzig, Walter de Gruyter und Co., 1926;
reed. Berlim, 1962. Já reproduzido em Le droit d’être un homme, Paris, Unesco/Laffont
e Lausanne, Payot, 1968.
128, 97, 76
Evangelhos. Ver Novo Testamento
FILON DE ALEXANDRIA (13 ? a.C. a 54), Que Dieu est immuable, cit. Por E. Fleg em
Anthologie juive, p. 125, Paris, Flammarion, 1951.
26
FLAVIUS JOSEFO (37-100, Jerusalém), Histoire Ancienne des Juifs, citado por E. Fleg,
em Anthologie juive, p. 88-89, Paris, Flammarion, 1951.
122
FRANCISCO DE ASSIS, São (1182-1226, Itália), Comment Saint François recommandait
le soleil et le feu par-dessus les autres créatures, citado por S. Lemaître em Textes
mystiques d’Orient et d’Occident, t. II, p. 162-163, Paris, Plon, 1955.
21
FRANKLIN, BENJAMIN (1706-1790, Estados Unidos da América, Conto
- Remarques sur la politesse des sauvages de l’ Amérique septentrionale,
em Bagatelles from Passy, p. 1 e 8-10, New York, E. Eakins Press, 1967.
GALILEI, Galileo. Veja PROCESSO.
93
98
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 241
GANDHI, Mahatma (1869-1948, Índia), La doctrine du « Satyagra », em La Revue du
Monde Musulman, vol. XLIV-XLV, p. 57, Paris, avril-juin, 1921.
393
– Lettres à l’ Ashram, p. 104, 103-104, 54-55, 56-58, 53-54 e 58-59, traduzido do inglês
por J. Herbert, Paris, Albin Michel, 1937.
86, 99, 111, 287, 343, 346
GARCILASO DE LA VEJA, dito o Inca (1539? – 1617, Peru), Arenga dos Embaixadores de
Pizarro ao Inca.
167
– Resposta do Inca Atahualpa aos enviados de Pizzaro.
170
Trad. do espanhol de Yvette Billod em La Licorne, p. 141-142 e 145-147, Paris, Primavera,
1947.
GARDINER, Robert (Estados Unidos da América), “A world of peoples”, emissão na
British Broadcasting Corporation, Londres, 1966. Trad. francesa de E. Treves.
383
GH ZAL , Ab H mid Mu ammad b. Mu ammad al-T s al Ch fi’i al- (1058-1111,
Pérsia), Fay al al-T friqa, p. 75, Cairo, 1901.
81
– Ihya’ ‘ul m al-D n (Revificação das ciências da religião), Cairo, Tipografia al-Cha’b, X,
1670.
54
– Ver também MU AMMAD, Mensagem aos emigrados.
GILL, Louis André Gosset de Guines (1840-1885, França), M’ame Anastasie em l’ Éclipse,
p. 111, Paris, 1 de Julho 1847.
375
GOETHE, Johann-Wolfgang (1749-1832, Alemanha), Conversation avec le chancelier
von Müller (1818), citado por H. Lichtenberger em Goethe, t. II, p. 256, Paris, Didier,
1939.
84
– Hikmet nameh, Le livre des maximes
89
– Lettre à Jacobi (1813)
222
– Tefkir Nameh, Le livre des sentences
218
Trad. do alemão por H. Lichtenberger em Divan occidental-oriental, p. 163, 220 e 123,
Paris, Aubier, 1940.
Grande Hino a Viracocha (Deus da Chuva entre os Incas, Peru, citado por A. di Nola em
Le livre d’or de la prière, p. 75-76, Paris, Marabout, s.d.
22
GRÉGOIRE, Henri (1750-1831, França), De la littérature des Nègres, p. 275-279, Paris,
Maradon, 1808. 199
– Essai sur la régénération physique, morale et politique des Juifs, Privilège de Metz 20
janvier 1789, extractos do cap. XIX.
152
242 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
GUILHERME dito o Taciturno, conde de Nassau, príncipe de Orange (1533-1584,
Holanda), Discurso pronunciado no Conselho de Estado a 1 de Janeiro de 1564.
231
Hadith (Ditos do profeta Maomé)
34,48,53
ALL J, Al- osayn b. Mansour al – (858-922, Pérsia), Diwan, p. 97, tradução do árabe
de L. Massignon, Paris, Éditions des Cahiers du sud, 1955.
66
Ver também PROCESSO
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich (1770-1831, Alemanha) La phenomenologie de l’ Esprit
(1807), t. I, p. 12, trad. do alemão de J. Hyppolite, Paris, Aubier, 1939.
407
– Principes de la philosophie du droit (1821), p. 209, trad. do alemão de A. Kaan, Paris,
Gallimard, 1940.
307
HERACLITO de Éfeso (cerca de 540-480 a. C., Grécia antiga), Fragmentos, trad. do
grego antigo de Y. Battistini em Trois présocratiques, p. 40, 47 e 29, Paris, Gallimard,
1968.
17, 67, 117
HERZL, Theodor (1860-1904, Hungria), Altneuland, trad. ingl. Em Old-New Land, p.
66, New York, Block Publishing Company and Herzl Press, 1960, trad. francesa de E.
Treves.
90
HESÍODO (séc. VIII a. C., Grécia antiga), Les travaux et les jours, vers. 202-217 e 274-286,
trad. do grego antigo de P. Mazon, Paris, Les belles lettres, 1928, Já reproduzido em Le
droit d’être un homme, Paris. Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
57
HEUSS, Theodor (1884-1963, República Federal da Alemanha), A liberdade espiritual na
nossa época (discurso, 1959) em Die grossen Reden der Staatsmann, p. 323, Tübingen,
Rainer Wunderlich Verlag, 1965.
379
HOLBACH, Paul Henri DIETRICH, barão de (1723-1789, França), Essai sur les préjugés.
275
– Le système de la nature (1770).
224
Em Georgette e B. Cazès, Holbach portatif, p. 180-181 e 177-179, Paris, J. J. Pauvert,
1967.
HONEN (séc. XII, Japão), citado por Solange Lemaître em Textes mystiques d’ Orient et
d’ Occident, t. I, p. 193-194, Paris, Plon, 1955.
42
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 243
HUGHES, Langston J. (1902-1967, Estados Unidos da América), L’ île en révolte.
95
– Défense de publier.
334
Em F. Dodat, Langston Hughes, p. 161 e 147, Paris, Seghers, 1964 (Col. Poètes d’
aujourd’hui).
IBN ‘ARAB , Ab Bakr Mu ammad b. ‘Ali Mu y al-D n (1165-1240, Andalusia), La sagesse des prophètes, p. 205-206, trad. do árabe, anotada, por T. Burckhardt, Paris, Albin
112
Michel, 1955.
– Turjum n al-A w q [L’ interprète des ardents désirs], p. 43-44, Beirute, Dar Sadir,
1961.
38
IBN GABIROL, Salomão ben Judah (ou Ab Ayy b Sulayman ben Ya y ben Ghabir l;
Avicebron para os escolásticos cristãos) (morreu entre 1058 e 1070, Andaluzia), La
couronne de royauté, em J. H. Hertz, Un livre de pensées juives, p. 15, Cairo, R. Schindler,
1945.
19
IBN UFAYL, Ab Bakr Muhammad b. ‘Abd-al-M lik (Abubacer para os escolásticos
cristãos) (morreu em 1185, Magreb). Les trois itinéraires, em Hayy ben Yaqdhan (Le
vivant fils du vigilant), p. 104 e segs. ; p. 11 e segs., trad. do árabe de L. Gauthier, Argel,
1900.
87, 106
INSTRUÇÃO de la Sacra Congregatio de Propaganda Fide (Santa Sé) para uso dos vigários apostólicos de partida para os reinos chineses de Tonkim e de Cambodja (1659).
Já reproduzido em Le droit d’être un homme, Paris. Unesco/Laffont e Lausanne, Payot,
1968.
165
JASPERS, Karl (1883-1969), República Federal da Alemanha), La bombe atomique et l’
avenir de l’ homme, p. 483, trad. R. Soupault, Paris, Plon, 1958.
318
– La foi philosophique, p. 126-127, trad. J. Hersch e H. Naef, Paris, Plon, 1954.
261
JEFFERSON, Thomas (1743-1826, presidente dos Estados Unidos da América). Notes on
religion.
301
– The Virginia statute of religious freedom (1786)
299
Citados em P. Belmont, Political equality : religious toleration from Roger Williams to
Jefferson, p. 135-136 e 133, New York and London, G.P. Putnam’s Sons, 1927.
Primeiro discurso inaugural (4 de Março de 1801). Já reproduzido em Le droit d’être un
homme, Paris, Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968. Trad. francesa de E. Treves.
314, 322, 300
244 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
JOÃO XXIII, papa (1881-1963), Encíclica « Pacem in terris » (11 de Abril de 1963). Citado
em Documentation Catholique, t. LX, col. 541, Paris, Bonne Presse, 21 de Abril 1963.
344
JOSÉ II da Áustria. Ver DECRETO(S) E CARTA(S).
JUDAH, o Piedoso (morreu em 1217). Le livre des saints. Citado por J. H. Hertz em Un
livre de pensées juives, p. 37, Cairo, R. Schindler, 1945.
55
KAFKA, Franz (1883-1924, Checoslováquia), O processo, p. 341-343, traduzido do alemão
por A. Vialatte, Paris, Gallimard, 1957.
230
K’ANG-HI (1662-1722, segundo imperador da dinastia manchú Tsing, China). Citado
por Luis Wei Tring-Sing em La politique missionaire de la France en Chine, p. 33-34,
Paris, Nouvelles Éditions latines, 1966.
282
KANT, EMMANUEL ( 1724-1804, Alemanha), Über den Gemeinspruch : das mag in
der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis (1793), tradução L. Guillermit,
Emmanuel Kant. Sur l’expression courante : il se peut que ce soit juste en théorie mais
en pratique cela ne vaut rien, p. 30 e seg., Paris, Vrin, 1967. Já reproduzido em Le droit
d’être un homme, Paris, Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
305
KENNEDY, John Fitzgerald (1917-1963, presidente dos Estados Unidos da América)
Address to the American people (discurso pronunciado na Casa Branca) a 11 de Junho
de 1963, trad. francesa de E. Treves.
339
– Commencement address. Discurso pronunciado à American University, Washington,
D.C., a 10 de Junho de 1963.
335
– Carta à Conferência Nacional dos Cristãos e dos Judeus, Washington, D.C., 10 de
Outubro de 1960, trad. francesa de E. Treves.
324
Khantivadi-Jataka (Stories of the Budha’s former births) [Os nascimentos] (Escola de
Buda, fixação séc. I a.C., Índia, Ceilão, pali), trad. inglesa H.T.Francis e R.A. Neil, vol. III,
livro IV, no 313, p. 26-28, Cambridge, 1897. Trad. francesa E. Treves.
16, 116, 201, 288
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 245
KROUCHTCHEV, Nikita Sergheïevitch (1894-1971) Discurso aos escritores e aos artistas
(8 de Março de 19639, citado em Le Monde, 14 Setembro de 1971, Paris.
373
K’IEN-LONG, imperador. Ver EDITO(S)
KIERKEGAARD, Sren A. (1813-1855, Dinamarca). O exemplo no 6, Copenhague, 1854,
trad. francesa de E. Treves.
213
KING, Martin Luther (1929-1968, Estados Unidos da América). Where do we go from
here, chaos or community ? (1967), trad. O. Pidou, Où allons-nous ?, p. 160, 87 e 109,
Paris, Payot, 1968.
311,319,336
KOOK, Avraham Yizhak Ha-Cohen, rabi (morreu em 1935, Jerusalém), Arpheley Tohar
(Puras Nuvens), p. 22, Jerusalém, 1914, trad. francesa E. Treves.
39
– Mussar Ha-Kodesh (Moral sagrada), p. 317, trad. francesa de E. Treves.
25
LA BRUYÈRE, Jean de (1645-1696, França), Les caractères (1688-1696).
159
LA MOTHE LE VAYER, François de (1588-1672, França), De la vertu des païens, 2a ed., p.
53-55 ; 74 depois 239 ; 51-52, Paris, F. Targa, 1642.
77, 92,100
LAS CASAS, Bartolomeu de (1474-1566, dominicano, prelado espanhol)
169
– Carta a S.S. Pio V.
178
– Octavio remedio.
184
Citados e traduzidos por Marianne Mahn-Lot em Barthélémy de las Casas: l’Évangile
de la force, p. 144-145, 208 e 148-150, Paris, Éditions du Cerf, 1964.
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm (1646-1717, Alemanha), Carta a Pedro I (16 de Janeiro de
1716), citado por The. Ruyssen em Les sources doctrinales de l’ internacionalisme, Paris,
Presses Universitaires de France, 1958. Já reproduzido em Le droit d’être un homme,
Paris, Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
266
LEIRIS, Michel (nascido em 1901, França), Cinq études d’ethnologie, p. 76 e segs., Paris,
Gonthier, 1969.
402
246 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
LENINE, Vladimir Ilitch Oulianov, dito (1870-1924, Rússia), Aux paysans pauvres (1903),
citado em Lénine : socialisme et religion, p. 27-28, Paris, Éditions sociales, 1949.
402
– Lettre au camarade Miasnikov (5 de Agosto de 1921), [Oeuvres], t. 32, pp. 536-538,
Paris, Moscou, Éditions sociales, 1962.
371
Les murs ont la parole, Mai 1968. Citações recolhidas por J. Besançon, p. 85,21,42,137 e
149, Paris, Tchou, 1968.
161, 202, 374, 376, 404
LESSING, Gotthold Ephraïm (1729-1781, Alemanha), Nathan le Sage (1779), p. 155-163,
trad. R. Pitrou, Paris, Aubier, 1954.
234
– The education of the human race. Trad. inglesa em K. Moore, The spirit of tolerance,
p. 34-35, London, Victor Gollanz, Ldt, 1964, trad. francesa de E. Treves.
238
LÉVI-STRAUSS, Claude (nascido em 1908, França), Race et histoire (1952), p. 84-85,
Paris, Gonthier, 1969.
385
LIE-TSEU (IV-III sécs. A.C., China, escola taoista), Le vrai classique du vide parfait, p. 8081, trad. do chinês por B. Grynpas, Paris, Gallimard, 1961.
245
– Mémoire au roi Che-houng blâmant l’ expulsion des étrangers, citado por G.
Margouliès em Le Kou-wen chinois, p. 44, Paris, Paul Geuthner, 1926.
285
LINCOLN, Abraham (1809-1865, presidente dos Estados Unidos da América), Discurso.
Citado por Luigi Luzzari em Liberté de conscience et liberté de science, p. 30-31, Paris, V.
Giard et E. Brière, 1910.
183
– Segundo discurso inaugural, 4 de março de 1865, trad. Francesa de E. Treves.
312
LIVINSGSTONE, Sir Richard Winn (1880-1960), Reino Unido da Grã Bretanha e da
Irlanda do Norte), Tolerance in theory and in practice (Robert Waley Cohen Memorial
Lecture), London, 1954.
271, 387
Livro dos Mortos (Egipto antigo), trad. G. Kolpatchy, p. 208-209 e 213-214, Paris,
Éditions des Champs-Élysées, 1954.
6, 80
LOCKE, John (1632-1704, Inglaterra), A letter concerning toleration [Carta sobre a
Tolerância], em The second treatise of civil government (1960), p. 153-154, Oxford, Basil
Blackwell and Mott, Ltd, 1946, trad. francesa E. Treves.
258
– Lettre sur la tolérance, p. 83 ; 29 ; 37-39 ; 47 ; 45-47 ; 89 e 27-29, traduzido do latim por
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 247
R. Polin, Paris, Presses Universitaires de France, 1965.
154,162,237,244,254,270
– On education [De l’ éducation], 1963, trad. francesa E. Treves.
240
LOPEZ DE VEGA, Antonio (1586- ?, Portugal), Paradojas racionales escritas en forma de
un diálogo entre un cortesano y un filósofo (1655), com uma introdução de Buceta, p.
91-92 e 96, Madrid, Hernando, 1935.
248
LUKÁCS, György (1885-1971, Hungria), citado por L. Goblot em Apologie de la censure,
p. 173-174, Rodez, Supervie, 1959, (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.)
364
MAQUIAVEL, Nicolau (1469-1527, Itália), Il Principe (1513), Le Prince, p. 305, trad. J.
Gohory, Paris, Gallimard, 1952. (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.)
163
MAOMÉ ou MAHOME. Ver MU AMAD.
MAIMÓNIDES, Rabbi M sa ben Maymun (ou Ab ‘Imran M sa ben ‘Abd Allah) (11351204, Andaluzia e Egipto), Hilkhot Sanhedrin.
44
– Schabbath
46
– Hilkhot Melakhim
130
Citados em Mishney Torah, versículos 12.3, 30a e 12.4, trad. do inglês de E. Treves.
Majjhima Nikaya (Escola de Buda, fixação séc. I a.C., pali), trad. do inglês de F.L.
Woodward em Some sayings from the Buddha, 1.128-129, p. 97-98, London, Oxford
University Press, 1957. Trad. francesa de E. Treves
51
MALCOM X (1925-1965, Estados Unidos da América), Malkom speaks, citado por
Stockley Carmichael em Le pouvoir noir, p. 189-192, trad. do inglês por G. Carle, Paris,
Maspéro, 1968.
337
MARAÑON, Gregorio (1888-1960, Espanha), Ensayos liberales, p. 78, 82 e 91, Buenos
Aires, Espasa Calpe, 1946.
321
MARCO AURÉLIO (121-180, Imperador, Roma), Pensées, cf. Trad. E. Bréhier, Les stoicïens,
Paris, Gallimard, 1964 (Coll. Bibliothèque de la Pléiade.)
127
248 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
MARCUSE, Herbert (1898-1979), Estados Unidos da América), A tolerância repressiva,
em Critique of pure tolerance, trad. do inglês por L. Roskopf e L. Weibel em Critique de
la tolérance pure, p. 19-20, 16-17, 35,14-15 e 47-48, Paris, John Didier, 1969.
325,333, 338, 388, 405
MARMONTEL, Jean-François (1723-1799, França), Bélisaire (1765), cap. XV, p. 244-248,
Paris, Merlin, 1767.
250
MARX, Karl (1818-1883, Alemanha), Debatten über Pressenfreiheit und Publikation der
landständischen Verhandlungen) (Debates sobre a liberdade da imprensa), Die rheinische Zeitung (1842).
362
– Editorial no 179, Die kölnische Zeitung (Julho 1842).
308
Citados por Maximilien Rubel em Pages de Karl Marx, t. I, Sociologie critique, p. 63-65;
p. 145-147, Paris, Payot, 1970, (Coll. Petite Bibliothèque Payot.)
– Editoriais, Die kölnische Zeitung nos 179 (Julho 1842) e no 425 bis
269, 400
– Le communisme de l’Observateur rhénan, artigo surgido na [Gazette allemande de
Bruxelles], no 73 (Setembro. 1847)
401
Citados em : Karl Marx/Friedrich Engels, Sur la religion, textes choisis, traduits e annotés par G. Badia, P. Bange e E. Bottigelli, p. 33 ; p. 25 ; p. 82-83, Paris, Éditions sociales,
1968.
– Lettre à Abraham Lincoln, em Marx e Engels, Oeuvres choisies, t. II, p. 17-18, Moscou,
Éditions du Progrès, 1970.
313
– Remarques sur la réglementation de la censure prussienne (1842), citado por
Maximilien Rubel em Pages de Karl Marx, t.I, Sociologie critique, p. 62-63, Paris, Payot,
1970, (Coll. Petite Bibliothèque Payot.)
MASSIGNON, Louis (1883-1962, França), Lettre aux amis de Gandhi (24 Setembro
1961), citado por Camille Drevet em Massignon et Gandhi, la contagion de la vérité, p.
169-170, Paris, Éditions du Cerf, 1967.
348
– Les trois prières d’ Abraham, père de tous les croyants, Dieu vivant (1949), em Parole
donnée, p. 260 e segs., p. 295, introdução de V. Monteil, Paris, Julliard, 1962. 115, 352
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 249
MAURILE DE SAINT MICHEL, pai (séc. XVII, França, Voyage des Isles Camercanes, en
l’Amérique, qui font partie des Indes Occidentales, et une relation diversifiée de plusieurs pensées précises et d’ agréables remarques tant de toute l’ Amérique que des
autres pays, p. 85, 91, Paris, Jean de la Caille, 1653.
172
ME’IRI, Menahem ben Solomon, rabbi (nome provençal, Don Vidal Solomon) (12491306), Beit Ha-Behira [glosas ao Tractate Horayot], citado por J. Katz em Exclusiveness
and tolerance, Studies in Jewish-Gentile relations in medical and modern times, p. 124,
London, Oxford University Press, 1961, trad. francesa E. Treves.
156
MENDELSSOHN, Moses (1729-1786, Alemanha), Oeuvres, cit. por E. Fleg em Anthologie
juive, p. 281, Paris, Flammarion, 1951.
295
MÉTRAUX, Alfred (1902-1963, Estados Unidos da América), Sur le racisme, em Courrier
de l’ Unesco, vol. III, no 6-7, Paris, 1950.
380
Midrash, Tanah Debey, Eliahu Rabba (cerca do séc. IX), trad. do inglês de E. Treves. 102
MILTON, John (1608-1764, Inglaterra), Areopagitica (1644), trad. O. Lutaud: Aeropagitica,
pour la liberté de la presse sans autorisation ni censure, p. 143, Paris, Aubier-Flammarion,
1969.
235
MIRABEAU, Honoré Gabriel Riqueti, conde de (1794-1791, França), por Jacques Hérissay
em Les grands orateurs républicains: Mirabeau, p. 89 e 92, Monaco, Hemera, 19491950.
304, 298
MOHAMMED. Ver MU AMMAD.
MONTAIGNE, Michel Eyquem de (1533-1592, França), De la liberté de conscience, Essais
(1580-1588), II, 19, Des coches, Essais, III, 6, em Oeuvres Complètes, p. 276 ; 367 ; 360 e
369.
143,164, 179, 185
MONTESQUIEU, Charles Secondat, barão de (1689-1755, França), De l’ esprit des lois
(1748).
151, 182
– Lettres persanes (1721)
251,263
Em Oeuvres Complètes, p. 708-709 e 620 ; p. 108 e 107, Paris, Éditions du Seuil, 1964.
250 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
MONLUC, Blaise de (1502-1577, França), Les commentaires, t. III, p. 499, Paris, Editions
de Ruble, chez V. J. Renouard, 1864-1867.
187
MORE, Thomas (1478-1535, Inglaterra), Utopia (1516), trad. V. Stouvenel, revista por
M.B. Tisserand : L’ Utopie. Discours du très excellent homme Raphael Hythloday sur la
meilleure constitution d’ une république, p. 181 e segs., Paris, Éditions sociales, 1966.
88, 91
MORGAN, Joseph, (séc. XVIII, Inglaterra), Mahometism fully explained by Mahomet
Rabadan, written in Spanish and Arabic in the year MDCIII, t. II, p. 297-298 e 345.
manuscrito original traduzido em inglês por J. Morgan, Londres (1723-1725).
153
MOZART, Wolfgang Amadeus (1756-1791), Áustria), Die Zauberflöte ( La flûte enchantée), 1791, 2a parte, acto III, quadro 7, cena 13. Opera sobre um libreto de Emmanuel
Shikaneder segundo um conto oriental.
410
MU AMMAD (570-623, Profeta do Islão), Edito do 2 muharram, ano II da Hégira (1 de
Agosto de 623). Citado por Haïdar Bammate em Visage de l’ Islam, p. 39, Lausanne,
Payot, 1958.
140
– Mensagem aos emigrantes, aos habitantes de Medina (chamados os auxiliares do
Profeta) e aos Judeus. Citado por Ghaz l em Fiqh al-S ra. Em Documents Politiques,
p. 15 e 16.
136
– Citado por Baladh ri em Fut h al-Buld n (séc. IX), trad. do árabe para inglês por P. K.
Hitti em The origins of the Islam state, t. I, p. 106 e 162, New York, Columbia University
Press, 1916.
139,141
– Ver também ad th e TRATADO.
Nagarakrtagama (1365, Java, Indonésia), H. Kern (ed.), Leiden, Koninklijk Instituut vor
Tall-, Land- en Volkenkunde ; Haia, Nijhoff, 1906-1914. Já reproduzido em Le droit d’être
un homme, Paris, Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
18
NANAK, o Guru (1469-1538). Sayings of Guru Nanak, trad. de punjabe para inglês de G.
Singh em English version of the Guru Granth Sahib, vol. II, p. 460, Delhi, Gur Das Kapur,
1962, trad. francesa E. Treves.
204
NAPOLEÃO I (1769-1821, França), citado por L. Goblot em Apologie de la censure, p. 49,
Rodez, Supervie, 1959.
356
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 251
NERUDA, Pablo (1904-1973, Chile). Canto general (1950), trad. do espanhol pelo autor.
Citado por V. Monteil em Anthologie bilingue de la poésie hispanique contemporaine,
Espagne-Amérique, p. 339, Paris, Librairie C. Klincksieck, 1959.
191
NESTROY, Johann (1801-1862, Áustria). Mein Fruend [Meu amigo], em Ausgewählte
Werke, p. 745, Viena, Globus Verlag, 1959.
289
NICOLAU DE CUSA (1401-1464, Alemanha), La paix dans la foi (1454), trad. do latim de
M. De Gandillac, em Oeuvres Choisies de Nicolas de Cues, p. 443-447, 415, 417-418 e 499,
Paris, Aubier, 1942.
101, 103, 107, 114
NORWID, Cyprian Kamil (1821-1883, Polónia), Le socialisme (1861), trad. francesa Y.
Bonnefoy, em Anthologie de la poésie polonaise, Paris, Éditions du Seuil, 1965. Já reproduzido em Le droit d’être un homme, Paris, Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
406
Novo Testamento, Paris, Éditions du Cerf, 1956 :
Evangelho de S. João, XVIII, 33-38 ; XIX, 17-18 e 29-30.
14
Evangelho de S. Mateus, XXII, 36-40 ; VII, 12 ; V, 1-10, As Bem Aventuranças ; V, 11-12 ;
VII, 21-23.
36, 47, 74, 83, 203
Primeira epístola de S. Paulo aos Coríntios, XIII, 1-7.
40
NYERERE, Julius K. (nascido em 1922, República Unida da Tanzânia), Extracto do «
Guide to the one-party state commission. Freedom and unity », p. 262-264, Dar-esSalam, Oxford University Press, 1964, trad. francesa de E. Treves.
350
OMAR. Ver ‘UMAR.
ORAÇÕE(S)
de um chefe do Kenya
50
da Guiné
8
dos Pigmeus
28
Citadas por A. Di Nola em Le livre d’ or de la prière, p. 56, 34 e 13-14, Paris, Marabout,
s.d.
ORWELL, George (pseudónimo de Eric Arthur Blair) (1903-1950, Reino Unido da Grã
Bretanha e da Irlanda do Norte). Onde morre a literatura (1946). Trad. Ph. Thody em
Essais choisis, p. 202-203, Paris, Gallimard, 1960.
369
252 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
PANNONIUS, Janus (Bispo de Pécs, Hungria), trad. francesa M. Manoll, citado em
M. Kovács, Humana Hungarica, poètes et écrivains hongrois au service de l’ homme,
Budapeste, 1969.
196
PASCAL, Blaise (1623-1662, França), Pensées, em Oeuvres, t. XIII, p. 214-216, Paris,
Hachette, 1925.
214
PAULO III, Papa. Ver BULA
PAULO VI, Papa (18971978, Itália). Mensagem de paz dirigida à Assembleia Geral das
Nações Unidas (4 de Outubro de 1965), Em Jamais plus la guerre, New York, Éditions
des Nations Unies, 1965.
392
PELLEPRAT, Padre Pierre (Séc. XVII, jesuíta, França), Relation des missions des Pères de
la Compagnie de Jésus (1655), p. 55-56, Paris, S. e G. Cramoisy, 1955.
181
PÉLISSON, Paul (1624-1693), França). Réflexions sur les différends de la religion avec
les preuves de la tradition ecclésiastique par diverses traductions des Saints Pères
sur chaque point contesté (1686), citado por R. Joly em, Pierre Bayle et la tolérance,
Marche Romane, t. IV, p. 72, Liège, juil-sept, 1954.
242
PÍNDARO (521-441, Grécia antiga), Olympiques, XII, p. 169-170, trad. do grego antigo
por A. Puech, Paris, Les belles lettres, 1931.
1
PIRE, Dominique George (1910-1969, Bélgica), Vivre ou mourir ensemble, p. 187-188 e
59, Bruxelles, Presses académiques européennes, 1969.
310, 320, 342
– Alocução pronunciada na colocação da primeira pedra da Universidade da paz, op.
cit., p. 222.
354
PLATÃO (428-347 a.C., Grécia antiga), Apologie de Socrate, em Oeuvres, t. I, p. 149 e
segs., trad. do grego antigo por M. Croisset, Paris, Les belles lettres, 1926.
13
– La république, em Oeuvres complètes, t. V, p. 110, trad. do grego antigo por E.
Chambry, Paris, Les belles lettres, 1970.
144
Popol Vuh, livro sagrado dos Quichua de Guatemala, Bibliothèque nationale, Paris, fol.
35 r, Já reproduzido em Le droit d’être un homme, Paris, Unesco/Laffont e Lausanne,
Payot, 1968.
9
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 253
PRIESTLEY, Joseph (1733-1804, Grã Bretanha), Tracts relating to the Dissenters [Panfletos
sobre os Dissidentes], trad. francesa E. Treves.
241
PROCESSO
de Galileu (1564-1642, físico e astrónomo italiano, nascido em Pisa). Documentos recolhidos por Giorgio de Santillana, trad. do inglês por A. Salem, revista por J. J. Salomon,
em Le procès de Galilée, p. 378-387, Paris, Club du meilleur livre, 1955.
194
de ll j, em L. Massignon, La Passion d’al- osayn b. Mansour al- allaj, martyr mysthique de l’Islam, t. I, p. 281-283, 5-8 e 293, Paris, Paul Geuthner, 1922.
193
PRZYPKOWSKI, Samuel (séc.XII, Polónia), Dissertatio de pace et concordia ecclesiae
[Dissertation sur la paix et l’ entente dans l’ Église] (1628) em Cogitationes sacrae ad
initium Evangeli Mattei.
232
Purananuru (séc. II, a.C. – II d.C., época sangam, Índia) estrofe 192, U.V. Swaminathan
Aiyar (ed.), Madrasta, 1935, trad. do inglês de E. Treves.
32
RALEA, Mihai (1896-1964, Roménia), artigo publicado em Stânga, no 16, Bucareste, 26
de Fevereiro de 1933.
331
RAMAKRISHNA (1836-1886, Índia), citado por Solange Lemaître em Textes mystiques
d’Orient et d’ Occident, t. I, p. 107-108, Paris, Plon, 1955.
113
REFORMA do Imperador Sigismundo (1439, Alemanha), Monumenta Germaniae
historica, Staatsschriften des Späteren Mittelalters, t. VI, p. 86.6-88.9. H.Koller (ed.),
Stuttgart, A. Hiersemann, 1964. Já reproduzido em Le droit d’être un homme, Paris.
Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
142
RESPOSTAS dos sábios aztecas aos doze missionários (1524, México). [O livro dos
colóquios], Biblioteca Vaticana. Já reproduzido em Le droit d’être un homme, Paris,
Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
168
Rigveda (2200-1880 a.C., Índia, sânscrito védico, versículo X, 191.2-4. Já reproduzido em
Le droit d’être un homme, Paris, Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
7
254 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
RIVKES (ou Ribkes, ou Rbkas) Moses ben Zebi Naphtali Hirsch Sofer, rabi (séc. XVII,
Rússia), Be’er Ha-Golah (glosas a Shulhan ‘Arukh-Hosnen Mishpat, 425, 5), (1661-1667),
citado por Jacob Katz em: Exclusiveness and tolerance, Studies in jewish-Gentile relations in medical and modern times, Scripta Judaica III, p. 165, London, Oxford University
Press, 1961, trad. francesa E. Treves.
150
RONSARD, Pierre de (1524-1585, França), Remontrance au peuple de France (1562-1563),
em H. Longnon, Ronsard, choix de poèmes, p. 148-149, Lyon, IAC, 1942.
188
ROUSSEAU, Jean-Jacques (1712-1778, Genebra), Du contrat social (1762).
276
– Carta a Christophe de Beaumont, arcebispo de Paris (1762).
132, 212
Em Oeuvres complètes, t. III, p. 467-469 ; t. IV, p. 971 e 982, Paris, Gallimard, 1969. (Col.
Bibliothèque de la Pléiade.)
– Carta a Voltaire (1756) em Correspondance complète, t. IV, p. 48-49, Genebra, Les
Délices, 1967.
225, 252
R M , Jal l al- D n al- (1207-1273, Pérsia), citado por H. Massé em Anthologie persane,
p. 196-197, Paris, Payot, 1950.
215
– The Divan of Jel l al-D n, citado por W. Hastie em The festival of spring, p. 3, trad. do
persa para o inglês de Ruckert, Glasgow, 1903, trad. francesa. E. Treves.
27
SA’ADI (1184 ?-1290 ?, Pérsia), Le verger, p. 101-103, trad, do persa A.C. Barbier de
Meynard, Paris, E. Leroux, 1880.
71
Saddharma Pundarika Sutra [Le lotus de la bonne foi] (texte pali), citado por Phra
Khantipalo em Tolerance, a study from Buddhist sources, p. 106, London, Rider and Co.,
1964.
120
SAINT-JOHN PERSE, Alexis Léger, dito (1887-1957, França), Poésie (1961) ; Amers, p. 247248, Paris, Gallimard, 1970, (1a ed. 1957.)
200, 389
– Crónica (1960), em Vents, p. 140-148, Paris, Gallimard, 1968.
409
SARTRE, Jean-Paul (1905-1980, França) em Situations V, p. 7-9, Paris, Gallimard, 1964.
382
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 255
– Les séquestrés d’Altona, acto V, cena III, p. 222-223, Paris, Gallimard, 1960.
408
Satire Ménippée (1594, França), Panfleto político dirigido contra a Liga, no tempo de
Henrique IV e cujos autores são Pierre Pithou, Nicolas Rapin, Florent Chrestien e os
poetas Jean Passerat e Gilles Durand, Paris, Classiques Larousse, p. 64, 1941.
176
SHAKESPEARE, William (1564-1616, Inglaterra), Conto de Inverno (1611), acto III, cena
II, trad. Y. Bonnefoy, em Oeuvres complètes, t. XI, p. 585, Paris, Club français du livre,
1964.
160
– O mercador de Veneza (1597), acto III, cena I ; acto I, cena III e acto III, cena II, trad. J.
Grosjean em ob. cit., t.IV (1963), p. 683 ; p. 625 e 693.
133, 228
– Medida por medida (1605), acto III, cena II, trad. J. Houbart e J.L. Richard, op. cit. t.
VIII, p. 693-695.
209
– Canseiras de amor em vão, acto IV, cena III, trad. J. Supervielle, ob. cit., t. III , (1962), p.
353, 1962.
41
– A vida de Thimon de Atenas (1607), acto IV, cena III, trad. R. Maguire e B. Noël, ob. cit.,
t. X (1959), p. 461-463.
290
SHAW, George Bernard (1856-1950, escritor irlandês), Carta ao New York Times (14 de
Setembro de 1936), trad. francesa de E. Treves.
365
– Le vrai Blanco Posnet, prefácio, p. 28-30 e 38-39, trad. A. E .H.Hamon, Paris, AubierMontaigne, 1941.
360, 367
SH TOKU, príncipe. Ver CONSTITUIÇÃO
SÓFOCLES (495 ?-406 a.C., Grécia antiga), Antígona (441 a.C.), trad. do grego antigo P.
Mazon, em Tragédies, p. 98-99, 105, 96-97 e 113, Paris, Le livre de poche, 1964.
12, 35, 119, 247
SPINOZA, Baruch (1632-1677, Holanda), Tratado Teológico-Político (1670), tradução do
latim de Ch. Appuhn, em Oeuvres, t. III, p. 333-334, 327-328, 332-333 e 328-329, Paris,
Garnier-Flammarion, 1965.
239, 253, 255, 257
STAËL, Germaine Necker, baronesa de (1766-1817, França), De l’ Allemagne (1810), p. 1-7,
Paris, Hachette, 1958.
357
256 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
SZLICHTYNG, Jonas (pseudónimo : Eques Polonus) (séc.XVII, Polónia), Equitis Poloni
apologia pro veritate accusata [Apologia da verdade acusada, de Eques Polonus], p. 99
e 107-108, Amsterdão, 1654.
267
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363, 368
ENSAIO ANTOLÓGICO
A TOLERÂNCIA 257
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Ver também DJ I
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Lizaso, El pensamiento vivo de Varona, p. 58, Buenos Aires, Losada, 1949. Já reproduzido
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VAUVENARGUES, Luc de Clapiers, marquês de (1715-1747, França), Réflexions (1746) em
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Michel Servet, hérétique et martyre, p. 126-129, Genebra, Droz, 1953.
192
VINET, Alexandre (1797-1847, Suiça), Essai sur la manifestation des convictions religieuses, parte II, cap. I, p. 197, 195, Paris, Paulin, 1842.
262, 274
258 A TOLERÂNCIA
ENSAIO ANTOLÓGICO
Vishnudharmottara-Purana (350-500 a.C., texto sânscrito), versículo I, 58, 7-8, trad.
francesa E. Treves
398
VOLNEY, Constantin François de Chasseboeuf, conde de (1757-1820, França), La loi
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un homme, Paris, Unesco/Laffont e Lausanne, Payot, 1968.
302
VOLTAIRE, François Marie Arouet, dito (1694-1778, França), Commentaire sur le Livre
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124
– Artigos « Guerre » e « Tolérance » em Dictionnaire philosophique (1764).
189,268
– Traité sur la tolérance (1763).
198, 210
– Já reproduzido em Le droit d’être un homme, Paris, Unesco/Laffont e Lausanne,
Payot, 1968.
226
– De la paix peerpétuelle (1765).
221
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280
Citados em: Oeuvres Complètes, t. XXV, p. 545 ; t.XIX, p. 320 e t. XX, p. 522 ; t. XXV, p.
107-108, 88-90 e 104-107 ; t. XXVIII, p. 128 ; t. XV, p. 78 e 80.
WEIL, Simone (1909-1943, França), Lettre à un religieux, p. 37, Paris, Gallimard, 1951.
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WILSON, Thomas Woodrow (1856-1924, presidente dos Estados Unidos da América).
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Já reproduzido em Le droit d’être un homme, Paris, Unesco/Laffont e Lausanne, Payot,
1968.
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WINTER, Ernst Karl (1895-1959, Áustria), citado em Wiener politische Blätter, no1, 1934,
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296
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Duhamel e A. R. Picard, Jeunesse noire, p. 263-264, Paris, Gallimard, 1947.
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138
YOUNG-TCHENG (1677-1736, terceiro imperador da dinastia manchú Ts’ing, China),
citado por Louis Wei Tsing-Sing em La politique missionaire de la France en Chine, p.
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281
YPSILANTI, Alexandre. Ver CARTA
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