Revista
da Escola Nacional da Magistratura
Associação dos Magistrados Brasileiros
Ano 7- nº 6 - Novembro de 2012
Patrocínio:
Diretoria da ENM
Diretor-Presidente: Roberto Portugal Bacellar
Coordenadores:
Desembargador Eduardo Gusmão Alves de Brito Neto
Desembargador Doorgal Borges de Andrada
Desembargador Carlos Eduardo Moreira Silva
Desembargadora Marilsen Andrade Addário
Desembargador Osório de Araújo Ramos Filho
Desembargador José Geraldo da Fonseca
Juíza Graça Marina Vieira da Silva
Juiz João Baptista Costa Saraiva
Juiz José Luiz Leal Vieira
Juiz Luiz Guilherme Marques
Juiz Osni Claro de oliveira Júnior
Juiz Andre Gomma Azevedo
Juiz Artur Cortez Bonifácio
Juiz José Roberto Barroso
Juíza Marlúcia Ferraz Moulin
Juíza Jurema Gomes
Secretário-Geral: Vera Lúcia Feijó
Endereço da ENM
www.enm.org.br
SCN - Quadra 02 - Bloco D
Torre B - Sala 1302
Centro Empresarial Liberty Mall
Brasília - DF CEP 70712-903
Tel: +55 (61)2103-9002
FICHA TÉCNICA
Escola Nacional da Magistratura
Roberto Portugal Bacellar Diretor-Presidente
Marcelo Piragibe Vice Diretor-Presidente
Vera Lúcia Feijó Secretária-Geral
Juiz Evandro Portugal Tesoureiro
Juíza Patrícia Cerqueira de Oliveira Diretora-Adjunta da Justiça Estadual
Juiz Federal Raul Mariano Jr. Diretor-Adjunto da Justiça Federal
Juiz do Trabalho Roberto Fragale Diretor-Adjunto da Justiça do Trabalho
Juiz Luiz Márcio Victor Alves Pereira Diretor-Adjunto da Justiça Eleitoral
Juiz Militar Alexandre Augusto Quintas Diretor-Adjunto da Justiça Militar
Editora JC Ltda.
Avenida Rio Branco, 14, 18º andar – Centro, Rio de Janeiro – RJ
www.editorajc.com.br
Revista da Escola Nacional da Magistratura - Ano VII, ed. nº 6
-- Brasília: Escola Nacional da Magistratura, [2012].
Semestral
ISSN: 1809-5739
1. Direito - Periódicos. 2. Escola Nacional da Magistratura Artigos. I. Brasil. Associação dos Magistrados Brasileiros.
SUMÁRIO
1. Apresentação
6
2. A verdadeira igualdade na distribuição de processos
Aluizio Pereira dos Santos
12
3. Administração do Poder Judiciário: alteração da forma de escolha
dos cargos diretivos dos tribunais
Carlos Eduardo Richinitti
15
4. Administração Judiciária – Seleção e formação de juízes – Propostas
de alterações na Resolução no 75 do Conselho Nacional de Justiça
Ricardo Pippi Schmidt
20
5. Alterar o art. 103-B da Constituição Federal, quanto à composição e
às atribuições do Conselho Nacional de Justiça
Diógenes Vicente
26
6. Aposentadorias e pensões do Poder Judiciário: integralidade e
paridade
Maria Isabel Pereira da Costa
29
7. Assessorias de imprensa às unidades judiciárias
José Luiz Leal Vieira
32
8. Barcos da justiça: cidadania efetiva na região amazônica
José Barroso Filho
35
Câmaras de conciliação – uma proposta contra a morosidade
9. do Poder Judiciário
Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz
39
10. Centros integrados de cidadania
José Barroso Filho
42
11. Concretização do direito humano de acesso à Justiça: imperativo
ético do Estado Democrático de Direito
Marcelo Maliizia Cabral
46
12. Criação de Comissão dos Direitos Humanos nos tribunais, como
auxiliar nas políticas ligadas ao combate à tortura
João Ricardo dos Santos Costa
52
SUMÁRIO
13. Criação de conselhos comunitários nos juizados especiais
Maria Gilmaíse de Oliveira Mendes
Maria das Graças Almeida de Quental
54
14. Da imprestabilidade da taxa de congestionamento para a aferição
de litigiosidade, produtividade e eficiência de varas criminais
Anastácio Lima de Menezes Filho
59
15. Democratização do Judiciário – Participação dos magistrados nos
órgãos de gestão – Organização judiciária – Fixação de prazo para
exercer cargos nos órgãos jurisdicionais e diretivos dos tribunais
com base no critério da antiguidade, a fim de permitir a alternância
no desempenho daquelas funções
Jorge Luiz Lopes do Canto
63
17. Efetividade do acesso à justiça: criação obrigatória de juizados da
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher nas Comarcas de
terceira/última entrância
Higyna Josita Simões de Almeida Bezerra
66
18. Formação dos juízes da Justiça Militar para atuação democrática
Fernando A. N. Galvão da Rocha
70
19. Garantia do direito de sufrágio aos presos provisórios
Fernando A. N. Galvão da Rocha
75
20. Gestão de ações de massa
João Ricardo dos Santos Costa
78
21. Gestão do Poder Judiciário – Juiz administrador – Proposta de
aperfeiçoamento da “inteligência de negócios” dos tribunais, a fim
de ampliar os relatórios e os dados estatísticos aos magistrados
para a gestão da sua prestação jurisdicional
Ney Wiedemann Neto
80
22. Medidas a serem adotadas pela AMB junto às instituições de
ensino jurídico do país visando a mudança da tradicional cultura
da litigiosidade (adversarial) para a consensual
Vanderlei Deolindo
83
23. Nas soluções autocompositivas o juiz não está limitado nem deve
ficar adstrito ao pedido e à contestação (lide processual)
Roberto Portugal Bacellar
86
6
Revista ENM
SUMÁRIO
24. Nos modelos consensuais autocompositivos (conciliação, mediação)
não há produção de provas. A consignação de propostas é inadequada em modelos autocompositivos
Roberto Portugal Bacellar
90
25. O princípio da separação dos poderes e o regime previdenciário dos
magistrados
Cláudio Luís Martinewski
92
26. Papel das escolas na formação do magistrado: curso obrigatório
de gestão jurisdicional como via de transformação do juiz-juiz
em juiz-gestor
Higyna Josita Simões de Almeida Bezerra
99
27. Participação de todos os magistrados nas eleições para os cargos
administrativos dos tribunais
Thiago Melosi Sória
102
28. Planejamento estratégico do poder judiciário – descentralização administrativa e gerencial – processo eletrônico
Jorge Luiz Lopes do Canto
104
29. Planejamento estratégico e orçamento participativo: a fundamental
contribuição dos magistrados
José Barroso Filho
108
30. Planejamento estratégico em comarca
Vanderlei Deolindo
112
31. Procedimentos judiciários – Modernização e racionalização dos
procedimentos judiciários
Jorge Luiz Lopes do Canto
114
32. Prorrogação da competência da Vara do Tribunal do Júri
Aluízio Pereira dos Santos
117
34. Unificação de entrâncias na magistratura estadual
Giordane de Souza Dourado
122
35. A pressa da justiça morosa
Roberto Portugal Bacellar
126
36. Da hierarquia à democracia: a difícil aproximação entre o
discurso e a realidade judiciária
Guilherme Newton Dumont Pinto
137
Revista ENM
7
SUMÁRIO
37. Democratização dos tribunais: Eu quero votar para Presidente
(e outras coisas mais)!
Roberto da Silva Fragale Filho
159
38. Educação para formação de juízes-gestores: um novo
paradigma para um Judiciário em crise
Hygina Josita Simões de Almeida Bezerra
175
39. O Poder Judiciário e a coesão social
Antígona Contemporânea
188
40. A Aprendizagem como ferramenta estratégia na administração
judiciária
Roberto Portugal Bacellar
208
41 A melhor reforma da Justiça do Trabalho:
a formação do Juiz
Amauri Mascaro Nascimento
228
42. As duas demoras da justiça
José Ernesto Lima Gonçalves
247
43. Autonomia finaceira dos tribunais e gestão orçamentária
eficiente – Exigência constitucional
Luiz Felipe Siegert Schuch
258
44. Democracia e Poder Judiciário: propostas para uma nova Justiça
Brasileira.
Fernando Cesar Baptista de Mattos
300
45. Gestão Estratégica no Judiciário: aspectos conceituais e
lições aprendidas
Newton Meyer Fleury
315
46. Judiciário do novo tempo
Cesar Augusto Mimoso Ruiz Abreu
334
47. O Judiciário que queremos...
Reflexões sobre o planejamento estratégico do Poder Judiciário
Luciano Athayde Chaves
48.
Planejando o Judiciário em cima e embaixo
Sônia Maria Amaral Fernandes Ribeiro
8
356
375
Revista ENM
SUMÁRIO
49. Poder Judiciário: uma nova construção institucional
Maria Tereza Aina Sadek
392
50. Proposta orçamentária do poder judiciário
Luis Felipe Salomão
412
51. A função de controle como fundamento do Estado democrático de
direito
Lucas Rocha Furtado
424
52. A responsabilidade do Juiz na condução racional do processo
José Renato Nalini
442
53. Democratizar o Acesso à Justiça: uma Contribuição Baseada em
Políticas Públicas
Rogerio Favreto
Marcelo Sgarbossa
470
54. O crime de lavagem de dinheiro e o cenário político, social e
econômico que envolve a especialização de Varas CriminaisJ
orge Luiz Lopes do Canto
495
55. O princípio da oralidade como componente racional de gestão
democrática do processo penal
Leonardo Augusto Marinho Marques
506
56. As sociedades de economia mista – Aspectos relevantes
Nelson Sá Gomes Ramalho
521
Revista ENM
9
Apresentação
A Revista da Escola Nacional da Magistratura chega ao sexto volume.
Cabe-nos, honrosamente, na qualidade de Presidente da Associação dos
Magistrados Brasileiros – AMB e Diretor-Presidente da Escola Nacional da
Magistratura – ENM, gestão 2011/2013, apresentá-la aos leitores.
Primeiramente, destacamos que a publicação deste volume cumpre o
compromisso assumido em nossa posse. A Revista da Escola Nacional da
Magistratura há alguns anos deixou de ser publicada, embora já se constituísse
em tradicional veículo de divulgação de qualificada doutrina. Portanto, a
retomada de sua veiculação volta a fornecer aos Magistrados mais uma fonte
de consulta e aprimoramento profissional, cultural e humanístico.
Este volume contém, além de artigos diversos, as teses e monografias
apresentadas por Magistrados participantes do XX Congresso Nacional da
Magistratura (São Paulo, 2011), conforme compromisso que foi assumido
pela Comissão Organizadora daquele Congresso. Compromisso esse agora
cumprido pela atual gestão da AMB.
Esclarece-se que referidos textos não foram atualizados e estão sendo
publicados na forma como foram apresentados pelos seus autores e aprovados.
Antecipamos já termos iniciado o trabalho para seleção do material que
irá compor o próximo volume que projetamos publicar no início do próximo
10
Revista ENM
ano, contendo artigos já enviados por Magistrados e, ainda, outros que ainda
venham a ser apresentados à Comissão de Edição desta Escola. Contamos
com a colaboração do colega para escrever seus artigos e encaminhar para a
nossa Escola Nacional da Magistratura.
Desejamos que a publicação desta Revista renove e fortaleça o vínculo
dos Magistrados com a Escola Nacional da Magistratura, reunindo aqui a
produção cultural da Magistratura nacional, de reconhecida e incontestável
qualidade.
Por fim, agradecemos o apoio fundamental da Petrobras S.A que tornou
possível a retomada desta publicação.
Boa Leitura!
HENRIQUE NELSON CALANDRA
Desembargador
Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB
ROBERTO PORTUGAL BACELLAR
Juiz de Direito
Diretor-Presidente da Escola Nacional da Magistratura - ENM
Revista ENM
11
TESE
A verdadeira igualdade na
distribuição de processos
Aluizio Pereira dos Santos
Juiz de Direito na 2a Vara do Júri e membro da Associação dos Magistrados
do Estado de Mato Grosso do Sul (Amansul)
1. Introdução
Há muitos anos trabalho em varas do Tribunal do Júri e tenho percebido
uma questão peculiar que merece reflexão, que é a mudança nos critérios de
distribuição de processos afetos às referidas varas.
Isto porque a aludida distribuição é feita por unidade de processo e tem como
escopo a igualdade de trabalho entre os magistrados da mesma competência,
todavia, da forma como está normatizada, não atinge a finalidade do instituto
jurídico, merecendo, portanto, revisão e adoção de outro critério mais justo.
2. Fundamentação
Como todos sabem, é grande o número de homicídios e tentativas de
homicídios nas capitais e grandes centros do País, razão pela qual esses crimes
são julgados por varas especializadas.
Os processos nem sempre são de apenas um réu, pelo contrário, vários são
de três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove ou mais réus.
Por outro lado, tomando como exemplo o estado do Mato Grosso do Sul,
veremos que as Normas da Corregedoria-Geral da Justiça (NCGJ) prescrevem:
Art. 329, Na primeira instância, os feitos serão obrigatoriamente
levados ao registro de distribuição. Havendo mais de um ofício, a
distribuição será alternada e determinará a competência.
Art. 330, A distribuição tem por finalidade precípua a igualdade do
serviço forense e o registro cronológico, metódico e ordenado de
todos os feitos. (grifamos)
12
Revista ENM
Assim, a distribuição é por unidade de processo e alternada, não sendo,
portanto, pelo número de acusados.
Todavia, no curso dos mesmos, a regra é o desmembramento dos
processos motivado pelas seguintes razões:
• alguns réus estão presos, outros com liberdade provisória ou foragidos;
• existência de cartas precatórias para oitiva de testemunhas;
• conveniência da instrução criminal, art. 80 do Código de Processo Penal
(CPP);
• conflito de defesas;
• ordem legal de preferência nos julgamentos, art. 469 do mesmo Código,
(primeiro os executores, depois os mandantes, participantes, etc.);
• artifícios jurídicos ou fatos costumeiramente manejados pelos advogados
para que seus clientes não vão a julgamento com outros na mesma sessão, etc.
Em tais casos, tomando como exemplo um processo de 6 (seis) réus, em regra,
transformar-se-á em até 6 (seis) processos, 6 (seis) instruções, 6 (seis) sentenças,
etc., e, com certeza absoluta, em 6 (seis) extenuantes ou exaustivos júris.
Enfim, jamais continuará como sendo o único processo vindo da
distribuição.
Registre-se que, embora a distribuição por unidade de processo (um
para cada Vara) aparente ser a mais acertada nos termos dos arts. 329 e 330
supracitados, inegável que nos crimes de homicídio a regra é a ocorrência dos
desmembramentos pelos motivos acima elencados, havendo assim, evidente
desequilíbrio na distribuição, a qual passa a depender da boa ou má sorte de
cada Juiz, só vencida com criatividade, planejamento e muito esforço pessoal, se
estendendo naturalmente aos promotores, defensores públicos, servidores, etc.
E isto, boa ou má sorte, é loteria, não sendo portanto critério justo de
distribuição, tampouco refletindo no verdadeiro espírito do princípio da
igualdade de trabalho.
Obtempera-se, por oportuno, que foi feito um pedido dessa natureza à
Corregedoria-Geral de Justiça do Mato Grosso do Sul, o qual está em análise
quanto à possibilidade de efetivação no Sistema Eletrônico de Distribuição (SAJ)
tendo contado com a subscrição dos três promotores e quatro defensores públicos
que oficiam nas varas supracitadas, mesmo porque não prejudica ninguém.
Dessa forma, o correto seria fazer a distribuição por número de acusados.
Por oportuno, o mesmo critério também pode ser adotado nas demais
varas criminais residuais.
Revista ENM
13
3. Conclusão e proposição
Assim, sugere-se que a AMB proponha junto aos tribunais a alteração nas
normas da Corregedoria-Geral da Justiça no sentido de alterar o normativo
que disciplina a DISTRIBUIÇÃO para que os processos de crimes,
principalmente dolosos contra a vida, sejam distribuídos às respectivas varas,
de igual competência, de acordo com o número de acusados constantes da
denúncia.
14
Revista ENM
Carlos Eduardo Richinitti
Centro de Pesquisa Judiciário, Justiça e Sociedade da Escola Superior
da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris)
Resumo
O Judiciário nacional, assim como todo o setor público nos tempos modernos,
se vê a frente do grande desafio da eficiência, pois cada vez mais nos defrontamos
com o crescimento desenfreado das demandas judiciais, sem que este seja
acompanhado do necessário aporte orçamentário, o que exige daqueles que se
apresentam para gerenciar o Poder uma série de requisitos de ordem pessoal e
até mesmo a legitimação por parte dos administrados. Não há mais espaço para
escolhas por exceção ou que atendam única e exclusivamente a projetos pessoais.
É necessária, pois, a revisão do sistema de eleição dos cargos diretivos dos tribunais
com a dilação do mandato, a permanência da vedação de reeleição, a habilitação
aos cargos por chapas fechadas e a ampliação do colégio eleitoral.
1. Fundamentação
Atualmente, a escolha dos dirigentes dos tribunais está regrada no art.
102 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), que data do ano de
1979. De lá para cá muita coisa mudou, sendo que a Constituição Federal de
1988 consolidou a tão almejada autonomia financeira do Poder Judiciário,
Revista ENM
15
TESE
Administração do Poder
Judiciário: alteração da
forma de escolha
dos cargos diretivos
dos tribunais
de forma que a partir de então, ao contrário do que ocorria anteriormente,
quem está a frente da administração desse Poder não se limita a atos de mera
representação. Ao contrário, quem ascende a esses cargos diretivos enfrenta
diariamente grandes desafios, administrando orçamentos que passam, não
raramente, da casa do bilhão de reais, liderando milhares de magistrados e
servidores.
A partir dessa realidade, o regramento estabelecido pela legislação hoje
vigente mostra-se absolutamente defasado, pois está adequado a uma situação
que não mais existe, na medida em que prioriza a antiguidade em detrimento
das condições pessoais daqueles que se habilitam ao cargo. Liderança, estudo e
preparo para as questões administrativas, requisitos de suma importância para
o desafio de gerenciar um Poder de Estado, sucumbem a projetos, às vezes
exclusivamente pessoais, daqueles que se apresentam pelo requisito único do
tempo de atividade.
Essa situação, além de absolutamente inadequada sob qualquer ótica que
se examine pelo enfoque das administrações modernas, ainda gera distorções,
pois, como já se viu em passado recente, alguns dirigentes sequer conseguem
terminar seus mandatos, sendo expungidos antes do fim, atingidos que são
pela aposentadoria compulsória.
Nesse sentido, de todo interessante que se amplie o leque de escolha dos
novos dirigentes, sem, contudo, desconsiderar-se por completo uma necessária
e saudável antiguidade no Tribunal, não só pelo aspecto da experiência, mas
também pela própria legitimação dos novos dirigentes, o que não se alcança
caso seja possível a qualquer Desembargador, mesmo que recém-promovido,
concorrer aos cargos diretivos.
Assim, conveniente seria a possibilidade de habilitar-se às eleições aos
cargos de direção a metade dos magistrados que compõem o Tribunal Pleno
de cada Estado, descontados os impedidos.
Outra situação que impõe alteração é que seja estabelecida na lei a
obrigação de que aqueles que se habilitam ao pleito o façam por chapas
fechadas, com registro prévio, e não pela sistemática hoje existente, onde é
possível que cada Desembargador se apresente, no dia da votação, de forma
individual, concorrendo cargo a cargo, o que gera inaceitável distorção de
que as pessoas escolhidas podem não ter qualquer afinidade de pensamento
ou compromisso entre si, gerando, com isso, sérias desavenças com inegáveis
prejuízos à instituição.
16
Revista ENM
Como referido anteriormente, habilitar-se a um cargo diretivo não pode
ser um projeto único e exclusivamente pessoal, impondo-se que os candidatos
tenham propostas comuns e afinidades de pensamento.
Também importante que aqueles que se habilitam tenham projetos de
gestão prévios e que estes sejam apresentados aos eleitores dentro de um prazo
mínimo de modo a permitir que se conheçam as propostas dos candidatos,
ficando registradas de forma a balizar e direcionar a administração, inclusive
no que diz respeito à cobrança daquilo que foi projetado.
Impõe-se, ainda, alteração do prazo dos mandatos, hoje estabelecidos em 2
anos – o que é muito pouco, pois a experiência tem mostrado que o primeiro
ano sofre o natural prejuízo da necessária adaptação à função e do conhecimento da máquina administrativa, sendo que o segundo e último ano mostrase insuficiente para implementação do projetado –, até porque, sabidamente,
os últimos meses têm o foco direcionado, com inegáveis prejuízos, ao novo
processo eleitoral que naturalmente começa.
A sugestão é no sentido de que o mandato seja aumentado para três anos,
mantida vedação à reeleição, o que permite um melhor planejamento e uma melhor
execução do proposto, bem como a natural renovação dos quadros diretivos.
De outra forma, questão extremamente controversa é a que diz respeito ao
colégio eleitoral, no sentido da conveniência ou não de ser mantido o quadro
atual, onde a escolha é feita apenas pelos desembargadores, ou se deve ser
estendido o direito a todos os magistrados que integram a instituição, incluindo-se o direito ao voto também aos juízes de Direito.
Não se desconhecem todas as ponderáveis restrições em relação à ampliação
do quadro de eleitores, principalmente no que diz respeito aos efeitos danosos
de uma politização da instituição e até de uma divisão, pois não há como se
desconsiderar que a desproporção numérica entre as instâncias, sendo aqueles
que integram o primeiro grau em número maior, poderá gerar distorções com
atenção e compromisso maior em relação a esta instância.
Não obstante tudo isso, tenho que o melhor encaminhamento, ainda, é o
da amplitude do colégio eleitoral, abrindo-se a possibilidade de que todos os
magistrados possam exercer o direito de escolher seus dirigentes. Tal medida,
além de mais democrática, dará maior legitimidade aos escolhidos, além de
estabelecer programas vinculados e atentos às realidades das duas instâncias.
Contudo, entendo que esse modo de eleição deverá preservar a figura do
Corregedor-Geral da escolha pelos juízes de primeira instância, diante das
Revista ENM
17
funções por ele exercidas junto ao 1o grau, isto é, do poder, da responsabilidade
e do ônus de fiscalizar e de coordenar as atividades dos juízes, sugerindo-se,
assim, que este seja indicado pelo Presidente eleito, submetida a sua indicação
à deliberação e aprovação do Tribunal Pleno.
No mais, a indesejável politização ou divisões advindas de campanhas
por votos, a meu ver, resta em muito atenuada pela impossibilidade de
reeleição, quando então aqueles que se habilitam estarão vinculados apenas
a propostas prévias, sem a preocupação de uma atuação com vista a um
segundo mandato, afora que a sempre oxigenadora democratização é algo
a ser amadurecido, devendo a instituição estar preparada para os naturais e
saudáveis embates políticos.
Por fim, a relevância das alterações ora propostas, na medida em que atentam
a uma necessidade urgente de adequação do Poder Judiciário à realidade hoje
posta, em especial no que diz respeito à sua modernização administrativa e busca
da eficiência, não podem, respeitando entendimento diverso, ser postergadas
para a edição da nova Lei Orgânica da Magistratura, que se arrasta há anos.
2. Conclusão e proposição
Do exposto, sugere-se que tais modificações sejam introduzidas com a
alteração da lei hoje vigente1, propondo-se a seguinte redação para o art. 102
da atual Loman:
Art. 102. Os Tribunais, pela maioria dos Desembargadores e Juízes
de Direito, por votação secreta, elegerão dentre a metade mais
antiga dos Desembargadores que integram o pleno, descontados os
impedidos, em número correspondente aos dos cargos de direção,
os titulares destes, exceto o de Corregedor-Geral, a ser indicado
pelo Presidente eleito, submetida essa indicação à deliberação e
aprovação do Tribunal Pleno.
Parágrafo Primeiro – A habilitação para os cargos diretivos deverá
ser feita por chapas fechadas, com registro prévio e apresentação
1
Art. 102 Os Tribunais, pela maioria dos seus membros efetivos, por votação secreta, elegerão dentre seus
Juízes mais antigos, em número correspondente ao dos cargos de direção, os titulares destes, com mandato
por dois anos, proibida a reeleição. Quem tiver exercido quaisquer cargos de direção por quatro anos, ou
o de Presidente, não figurará mais entre os elegíveis, até que se esgotem todos os nomes, na ordem de
antiguidade. É obrigatória a aceitação do cargo, salvo recusa manifestada e aceita antes da eleição.
Parágrafo único – O disposto neste artigo não se aplica ao Juiz eleito, para completar período de mandato
inferior a um ano.
18
Revista ENM
de planos de gestão, devendo cada Tribunal regulamentar, em seu
regimento interno, os respectivos pleitos.
Parágrafo Segundo – Na falta de interessados a concorrer aos cargos
diretivos, ficarão obrigados à aceitação destes os Desembargadores
mais antigos, descontados os impedidos.
Parágrafo Terceiro – Quem tiver exercido quaisquer dos cargos de
direção elegíveis, por mais de 6 anos, fica impedido de concorrer a
estes cargos novamente, não se aplicando esta vedação ao magistrado
eleito para completar mandato inferior a 18 meses.
Revista ENM
19
TESE
Administração Judiciária
– Seleção e formação
de juízes – Propostas de
alterações na Resolução
no 75 do Conselho
Nacional de Justiça
Ricardo Pippi Schmidt
Juiz de Direito no Rio Grande do Sul e integrante do Centro de Pesquisa Judiciário,
Justiça e Sociedade da Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio
Grande do Sul (Ajuris)
Resumo
O estágio atual da sociedade da informação está a exigir mudanças no
concurso para a magistratura, com estímulo à seleção dos candidatos mais
aptos e não os de maior capacidade de memorização, com incentivo à
formação integral dos novos juízes e valorização da participação das escolas
de magistratura nesse processo. Também há que se preservar de espaços
de autonomia dos tribunais estaduais para que possam adequar as regras
instituídas nacionalmente às peculiaridades regionais. Nesse sentido são as
propostas que seguem, objetivando alterar a Resolução no 75 do Conselho
Nacional da Justiça (CNJ), de 12 de maio de 2009, que dispõe sobre os
concursos públicos para o ingresso na carreira da magistratura em todos os
ramos do Poder Judiciário nacional, com: 1. Alteração da primeira fase do
concurso, para permitir consulta ao texto legal e aos enunciados de súmulas
dos tribunais superiores na prova objetiva, afastando o atual critério que
privilegia a memorização da lei e o pensamento acrítico; 2. Equiparação do
20
Revista ENM
Juiz Leigo ao Conciliador, para reconhecimento da sua atuação como atividade
jurídica para os fins previstos no inciso I do art. 93 da Constituição Federal; 3.
Incentivo à formação integral dos novos juízes, tornando obrigatório o curso
de preparação na fase final do concurso; 4. Valorização da participação das
escolas de magistratura no processo de formação dos novos juízes e preservação
da autonomia dos tribunais.
Justificativa prévia às propostas: O concurso público ainda é o melhor
modo de selecionar os candidatos tecnicamente mais qualificados para funções
que exigem alto grau de profissionalismo. Ao mesmo tempo em que assegura
o controle público, garante, em tese, o acesso dos melhores, ou, no mínimo,
a exclusão dos piores. A tradição de ingresso na magistratura por concurso
público no Brasil, à semelhança dos modelos europeus, garante qualidade
técnica e corresponde a um procedimento republicano e democrático de
seleção dos mais idôneos e capazes, a partir de critérios objetivos, conferindolhes maior independência em face dos demais poderes, ao menos no que
tange ao primeiro grau de jurisdição. Todavia, há que se reconhecer que tal
modelo, por si só, não assegura atuação dos juízes como agentes de poder e
de transformação social. Condições institucionais adversas – potencializadas
pela verticalização e pela concentração da autoridade nas cúpulas – têm
transformado, com frequência, a magistratura em corpo de funcionários
públicos onde prevalecem comportamentos ritualistas e apegados às velhas
práticas, por vezes relegando os conteúdos e objetivos da função1. Tal situação
se agrava diante da “incapacidade do Estado em regular, pela via formal da
lei, as multifacetadas relações sociais e termina por colocar nas mãos do juiz o
encargo de fazer a adaptação da ordem jurídica ao mundo real”, como destaca
com lucidez Ruy Rosado de Aguiar Junior2.
Neste contexto, aumenta a responsabilidade dos juízes na tarefa de construir
um sistema que mais se aproxime das expectativas da sociedade, para o que
devem ser não só preparados, mas também corretamente selecionados dentre
aqueles que “tenham condições de compreender a complexidade da sua ação,
1
Ver, a propósito, ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O Poder Judiciário, Crises, Acertos e Desacertos. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1995.
2
AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. A função jurisdicional no mundo contemporâneo e o papel das escolas
judiciais. Artigo baseado em palestra proferida na Escola Superior da Magistratura da Ajuris por ocasião da
solenidade comemorativa dos seus 25 anos, em Porto Alegre, no dia 17 nov. 2005.
Revista ENM
21
de perceber que o direito tem suas raízes submersas em valores históricos, de
olhar para a causa das causas que lhe são submetidas, de se preocupar com
as circunstâncias preexistentes que determinaram o surgimento do litígio, de
apreender as razões que amparam as pretensões das partes, de viver a realidade
presente e de refletir sobre as consequências concretas de seu julgamento”3,
conforme o mesmo autor.
Daí a necessidade de aferir, nesse processo de seleção, não só o preparo
intelectual e técnico-jurídico dos candidatos a juiz, mas também se está ele
em condições de agir com o indispensável equilíbrio, com a sensibilidade,
independência, responsabilidade e com o comprometimento quando exigido
na tarefa de julgador, pacificador de conflitos e também agente de poder.
A mudança do concurso para a magistratura, com estímulo à seleção dos
candidatos mais aptos, não os de maior capacidade de memorização, com
incentivo à formação integral dos novos juízes e valorização da participação
das escolas de magistratura nesse processo, mostra-se impositiva, assim como
impositiva é a preservação de espaços de autonomia dos tribunais estaduais
para que possam adequar as regras instituídas nacionalmente às peculiaridades
regionais. Nesse sentido são as propostas que seguem, objetivando alterar a
Resolução no 75 do Conselho Nacional da Justiça, de 12 de maio de 2009, que
dispõe sobre os concursos públicos para o ingresso na carreira da magistratura
em todos os ramos do Poder Judiciário nacional.
1a Proposta
Ao vedar a consulta à legislação durante a prova objetiva, a Resolução 75
do CNJ perdeu grande oportunidade de inovar, afastando-se de um modelo
ultrapassado que segue impondo aos candidatos inócua memorização do
texto legal na primeira prova do concurso, exigência totalmente dissociada
do contexto da sociedade da informação, que permite a todos, em segundos,
acesso a todo o tipo de conhecimento. Ora, hoje qualquer juiz, em qualquer
lugar deste país, do Oiapoque ao Chuí, tem acesso à Internet e aos bancos
de dados do Congresso Nacional e dos tribunais, onde pode em instantes
consultar a legislação recém-aprovada, as súmulas e jurisprudência mais
atualizada. Pergunta-se, então: quem de nós ainda memoriza a lei? Qual o
objetivo de impedir que os candidatos possam ter acesso ao menos ao texto
3
AGUIAR JUNIOR, op. Cit.
22
Revista ENM
da lei ao realizar a prova objetiva? Não estaremos aqui apenas reproduzindo
práticas do passado, sem refletir sobre a sua adequação aos novos tempos? A
primeira proposta diz, pois, com a mudança no regramento do concurso
para a magistratura, com estímulo à seleção dos mais aptos, que não são
necessariamente os de maior capacidade de memorização, o que exige a
alteração do art. 34, II, da Resolução 75 do CNJ, de modo a permitir que,
na prova objetiva, possam optar os tribunais em permitir aos candidatos
ter acesso aos textos de lei não comentados.
2a Proposta
A Resolução 75 do CNJ considera o exercício da função de conciliador
junto aos juizados especiais, por período mínimo de 16 (dezesseis) horas
mensais, durante um ano, atividade jurídica para fins de contagem do prazo
mínimo de 3 anos exigido no inciso I do art. 93 da CF. Não contemplou,
todavia, o exercício da função de Juiz Leigo, de relevante atuação no sistema
dos juizados especiais de vários estados da Federação, como é o caso do RS.
Considerando que função de Juiz Leigo envolve prática de atos de instrução
processual e decisões, ainda que sob supervisão e homologação dos juízes
togados, é evidente a exigência de maior grau de conhecimento jurídico,
experiência e responsabilidade comparativamente com o conciliador.
Propõe-se, pois, a alteração do inciso IV do art. 59 da Resolução 75
do CNJ, para permitir que os tribunais estaduais considerem também a
atuação do Juiz Leigo como atividade jurídica, para fins de contagem do
prazo de que trata o inciso I do art. 93 da Constituição Federal.
3a Proposta
Ainda no que tange ao processo de seleção, mas já focando também na
necessária preparação dos novos juízes para o exercício da sua difícil e complexa
tarefa, há que se tornar obrigatório o estágio prático de quatro meses na fase
final do certame, nos termos das Resoluções nos 1/2007 e 2/2009 e Instrução
Normativa no 1/2008, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento
de Magistrados (Enfam), já adotada pelo Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul (TJRS) por meio da Resolução no 743/2008 do Conselho
da Magistratura, por tratar-se de medida que pode viabilizar uma seleção
mais adequada às especificidades da carreira da magistratura, aperfeiçoando
o sistema de concurso até então vigente. Essa fase final do concurso pode,
Revista ENM
23
realmente, converter-se em momento de preparação e também de aferição
acerca da formação integral do candidato e de seu comprometimento com
a função jurisdicional que irá desempenhar. Até porque, a legitimidade do
Judiciário não pode ser analisada, abstratamente, apenas na perspectiva da
estrutura do modelo adotado, mas também no modo concreto como opera
o sistema judicial. A forma de seleção e formação dos novos juízes, nesse
contexto, assume enorme importância. A terceira proposta, portanto,
é de alteração da Resolução 75 do CNJ, tornando impositivo o Curso
de Formação para Ingresso na Carreira da Magistratura como etapa
obrigatória do Concurso.
4a Proposta
Por fim, injustificável a alteração levada a efeito pelo CNJ, suprimindo
o período de participação dos candidatos em cursos de preparação
ministrados pelas escolas de magistratura dos estados, desde que
integralmente concluídos com aprovação, como atividade jurídica para
fins de contagem do tempo mínimo de exercício da atividade exigido no
art. 93, I, da CF. De fato, não se justifica a exclusão do período de estudos
nas escolas de magistratura do conceito de atividade jurídica, à vista da
excelência da formação voltada para a preparação específica à função
judicante desenvolvida por escolas como a do Rio Grande do Sul, com
uma tradição de ensino reconhecida nacionalmente, e que há mais de três
décadas forma gerações de magistrados, por meio de atividades não só
teóricas como práticas. Não se concebe que os candidatos ao concurso
não possam optar pela formação específica à carreira da magistratura,
proporcionada pelos cursos desenvolvidos pelas respectivas escolas,
para fins de cômputo do período respectivo como atividade jurídica.
Evidente que a aprovação nesses cursos exige muito mais, em termos de
preparação dos operadores, do que a singela comprovação da “prática
anual de, no mínimo, cinco (5) atos privativos de advogados, judiciais e/
ou extrajudiciais” prevista na citada Resolução do CNJ como suficiente
à comprovação da atividade jurídica. Ademais, não se pode perder de
vista a importância da aculturação e socialização proporcionada pelas
escolas judiciais, permitindo que os novos juízes bem compreendam a
importância da função judicante e compartilhem, desde cedo, dos objetivos
institucionais do Poder Judiciário. A quarta proposta, portanto, envolve
24
Revista ENM
a necessária alteração do art. 59 da Resolução 75 do CNJ, para que os
tribunais possam considerar o período de participação dos candidatos
em cursos de preparação ministrados pelas escolas de magistratura,
desde que integralmente concluídos com aprovação, como atividade
jurídica para fins de contagem do tempo mínimo de exercício desta
atividade exigido no art. 93, I, da CF.
Revista ENM
25
TESE
Alterar o art. 103-B da
Constituição Federal,
quanto à composição e às
atribuições do Conselho
Nacional de JustiçA
Diógenes Vicente
Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
O art. 103-B da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de dezenove
membros com mais de trinta e cinco anos e menos de sessenta e
seis anos de idade, com mandato de dois anos, admitida uma
recondução, sendo:
............
IV – três desembargadores de Tribunal de Justiça, indicados pelo
Supremo Tribunal Federal; V – três juízes estaduais, indicados pelo Supremo Tribunal Federal;
..............
§ 4o ...........
III – receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos
do Poder Judiciário, inclusive contra os seus serviços auxiliares,
serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que
atuem por delegação do poder público ou oficializados, em caso de
comprovada omissão e sem prejuízo da competência disciplinar e
correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em
26
Revista ENM
curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria
com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e
aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa;
.....
§ 8° - Ao CNJ é vedado conhecer de matéria jurisdicional.
Art. 2° Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua
publicação.
1. Justificativa
A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados funciona
junto ao Superior Tribunal de Justiça nos termos do artigo 105, parágrafo único,
inciso I, da Constituiição da República, cabendo-lhe, dentre outras funções,
regulamentar os cursos oficiais para o ingresso e promoção na carreira. Conta
com representantes das associações de classe conforme a Resolução nº 3, de
30 de novembro de 2006, da Presidência do Superior Tribunal de Justiça (um
indicado pela AMB e outro indicado pela AJUFE). Não conta, porém, com
os representantes das próprias escolas cujas atividades regula. A participação
destes representantes é relevante à realidade vivenciada pelas escolas e para
as suas reivindicações. A proposição é de que se gestione para a alteração da
Resolução nº 3, com vistas a que representantes das Escolas sejam eleitos entre
os Diretores das Escolas em exercício, assim prestigiando-as e prestigiando a
nossa Escola da AJURIS, trazendo maior legitimidade à ENFAM.
a) Pela atual composição do Conselho Nacional de Justiça, estabelecida
pela Emenda Constitucional n° 45/2004, são 15 os seus membros, dos quais,
em igualdade de representação com todos os demais integrantes, há um
Desembargador de Tribunal de Justiça e um juiz estadual. Este número não reflete a proporcionalidade que deveria existir, em
decorrência da organização da Justiça Brasileira. Para se ter uma idéia do
exposto, segundo dados do próprio CNJ1, há 10.396 juízes estaduais, 1.346
juízes federais e 2.892 juízes do trabalho. Na composição atual não é respeitada
a proporcionalidade, pois há um número idêntico de representantes das justiças.
Acresce dizer que a justiça dos estados tem o maior volume de demanda,
com enorme sobrecarga de trabalho.
1
Informações do “Justiça em números”, 4ª edição. Fonte: www.cnj.gov.br
Revista ENM
27
b) É necessário vincular-se a reclamação de que trata o § 4o, inciso III, à
comprovada omissão do Tribunal de origem. Viola o princípio federativo o conhecimento de reclamação pelo Conselho
Nacional de Justiça, sem prévia submissão da matéria aos órgãos correicionais
e disciplinares dos Tribunais Competentes. A condenável prática do acesso “per saltum” ao CNJ implica o
enfraquecimento do Judiciário. Constitui frontal infringência à autonomia
dos Tribunais e estimula o oferecimento de denúncias infundadas. Cumpre lembrar que já foi apregoado, pelo Ministro Cesar Asfor Rocha,
atual Presidente do STJ, em palestra no TJRS, quando no exercício da
Corregedoria Nacional da Justiça e na Presidência do CNJ, que o CNJ não
tomava providências em relação aos magistrados, salvo demonstrada a omissão
dos órgãos correicionais locais. Todavia, não há regra que imponha essa rotina,
podendo, portanto, vir a ser alterada essa prática do CNJ. Daí a necessidade
de emendar a CF.
c) O acréscimo do § 8o impõe que se resguarde a jurisdição e os recursos
próprios e inerentes às decisões judiciais, possibilitando a liberdade, a autonomia
e a independência do magistrado no seu mister de prestar jurisdição, evitando-se
indevidas, ilegais e inconstitucionais ingerências, em especial do CNJ.
28
Revista ENM
Maria Isabel Pereira da Costa
Diretora do Departamento Extraordinário de Previdência dos Magistrados e
Pensionistas da Associação dos Juízes do Rio Grande Do Sul (Ajuris)
Resumo
As aposentadorias e pensões da magistratura devem ser integrais e em
paridade com os vencimentos dos magistrados em atividade para manter as
garantias e prerrogativas constitucionais do Poder Judiciário, o equilíbrio
profissional, social, familiar e pessoal do Juiz e os princípios do Estado
Democrático de Direito.
1. Fundamentação
As prerrogativas da magistratura servem à sociedade estruturada sob a
égide do Estado Democrático de Direito e não à pessoa do magistrado.
As garantias da inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de
vencimentos e proventos se destinam à estabilidade necessária ao exercício da
judicatura para garantir a liberdade e independência funcional do julgador
diante dos conflitos sociais que lhe são apresentados.
As garantias da magistratura não podem ser temporárias, isto é, persistirem
apenas durante o período em que o Juiz esteja em atividade efetiva da jurisdição,
por isso o Poder Constituinte estabeleceu a garantia da vitaliciedade. A razão da
existência desta garantia, vitaliciedade, é o fato de ser necessária a estabilidade
permanente do julgador, pois a sua segurança, para ser plena, limitada apenas
pelos princípios constitucionais, não pode ser apenas pelo período em que está
em atividade.
Revista ENM
29
TESE
Aposentadorias e pensões
do Poder Judiciário:
integralidade e paridade
Fosse assim, as pressões de quem tem seus interesses contrariados
poderiam ser exercidas após a aposentadoria e intimidariam o Juiz, em
função da insegurança a que estaria exposto a tempo certo ou por uma
questão de tempo.
Por sua vez, a garantia da irredutibilidade dos vencimentos e proventos
também foi estabelecida pelo Poder Constituinte em face da insegurança a
qual estaria sujeito o Juiz e a sua família do ponto de vista da subsistência
digna, inclusive na inatividade.
A função jurisdicional exige do Magistrado exclusividade, não permitindo
durante a judicatura o exercício de qualquer outra atividade, a não ser a
atuação como professor em ensino superior em um único cargo e com horário
limitado. Assim, não existe nenhuma possibilidade de o Magistrado buscar
outra forma de subsistência para a sua velhice ou para a sua família na sua
ausência. Em razão disso, se não for mantida a integralidade e paridade para
os proventos e pensões não haverá garantia para a magistratura.
Em assim sendo, descaracterizado fica o Estado Democrático de Direito,
pois o Poder Judiciário ficará sujeito, no seu mister constitucional, a sofrer
pressões dos demais poderes, dificultando sobremaneira o controle da
legalidade dos atos políticos do próprio Estado que causem lesões individuais
e/ou coletivas. Mas também as pressões podem vir de outras instituições, não
apenas dos demais poderes. Podem vir de pessoas jurídicas e/ou físicas das
mais diferentes formas, em face de contrariedade a qualquer de seus interesses
no exercício da jurisdição.
De outra parte, em sendo o Magistrado um ser humano, depende da
existência de pilares de sustentação psíquica, entre os quais destacamos
a sobrevivência, a preservação da espécie, a dignidade e a força de
autodeterminação.
Todos esses pilares estão de alguma forma apoiados na estabilidade
econômica.
Desse modo, é de suma importância para o desenvolvimento psicológico
sadio da pessoa a manutenção do equilíbrio na sua sustentação psicoemocional
para não acarretar prejuízos no seu comportamento profissional, social,
familiar e pessoal.
O perfil de pessoa exigido e estimulado para a carreira da magistratura
é o de uma pessoa organizada e segura. O exercício da judicatura requer
estabilidade emocional, sobriedade e honestidade, dentre outros.
30
Revista ENM
Como não é possível, nem desejado, o enriquecimento durante o exercício
da função jurisdicional, o único meio de manter a dignidade do Magistrado e
de sua família é uma aposentadoria e um pensionamento com o mesmo ganho
e a mesma dignidade, equiparados aos rendimentos de quem se mantém em
atividade.
O Estado Democrático de Direito exige uma magistratura digna, respeitada
e forte. Sem esse pilar a democracia desmorona, dando lugar à instalação do
Estado de força, não de Direito.
2. Conclusão ou proposição
As aposentadorias dos magistrados devem ter proventos integrais e paritários
com os vencimentos dos magistrados em atividade, devendo ser concedidas,
revisadas e pagas pelos respectivos tribunais, assegurando-se a paridade das
pensões, mediante o ressarcimento dos valores pela Previdência Social e,
observado no que couber, o disposto no art. 40 da Constituição Federal.
Revista ENM
31
TESE
Assessorias de imprensa às
unidades judiciárias
José Luiz Leal Vieira
Centro de Pesquisa Judiciário, Justiça e Sociedade da Escola Superior da Magistratura da
Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris)
Resumo
O Judiciário é desconhecido pela sociedade e, consequentemente, ostenta
uma imagem negativa de um modo geral. Por isso, há a necessidade de um
estreitamento na relação do Judiciário com a comunidade objetivando corrigir
essas mazelas. Uma assessoria de imprensa qualificada constitui um valioso
instrumento de aproximação do Judiciário junto à sociedade. Em face das
dificuldades orçamentárias sempre presentes nas diversas esferas do Judiciário
brasileiro, a inviabilizar a contratação de profissionais, a tese proposta é a
de que os tribunais estabeleçam convênios com faculdades de jornalismo e
relações públicas, permitindo a contratação de estagiários desses cursos que,
com o acompanhamento de um professor responsável, exerçam a atividade de
assessoria de imprensa de todas as unidades judiciárias.
1. Fundamentação
O Poder Judiciário brasileiro, diante da sua responsabilidade pela pacificação
dos conflitos sociais e a garantia dos direitos, exerce uma relevante função no
Estado de Direito e, à medida em que se caracteriza como o verdadeiro guardião da
Constituição da República e de todo o ordenamento jurídico brasileiro, fundamental
se entremostra que a sociedade o conheça. No entanto, a realidade é outra.
O Judiciário não é conhecido pela sociedade que, inclusive, considera
como seus integrantes de outras instituições. Com efeito, considerando o
desconhecimento que grassa acerca da função do Judiciário, da sua estrutura
funcional e material, da demanda existente e das diversas ações dos magistra-
32
Revista ENM
dos, o resultado natural é a existência de uma imagem negativa a seu respeito.
Como bem assinala José Renato Nalini:
O Judiciário não tem sabido dialogar com os demais poderes do
Estado, nem com a sociedade, nem com a mídia. Resulta disso a
aura de incompreensão com que se vê ornado neste início de século.
O fenômeno não é brasileiro. Mas é trágico no Brasil, país de iníqua
distribuição de renda, onde não se tem conseguido resgatar a dívida
social para com milhões de excluídos. (NALINI, José Renato. A
rebelião da toga. Campinas: Millenium, 2006, p. 141)
Recentemente, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) realizou
uma pesquisa que confirmou o que intuitivamente sempre se soube: a população
brasileira não conhece o Judiciário. Por meio da pesquisa denominada
“Barômetro de Confiança nas Instituições Brasileiras” concluiu-se que:
Apenas 8% dos entrevistados afirmam conhecer bem o
funcionamento do Poder Judiciário. Um contingente maior, 45%,
“conhece mais ou menos”, e outros 46% “conhecem só de ouvir
falar” ou “não conhecem”. O conhecimento cresce no estrato com
instrução universitária, chegando a 26% que “conhecem bem”.
(http://www.amb.com.br/portal/docs/pesquisa/barometro.pdf )
A sua imagem também não é das melhores, porquanto essa mesma pesquisa
colheu como média da nota atribuída ao Judiciário pelos entrevistados a de
6,1, ficando atrás das Forças Armadas, Igreja, Polícia Federal, Imprensa e do
Ministério Público.
Nesse contexto, surge a necessidade de aproximação do Judiciário da
comunidade, visando a torná-lo conhecido e sua imagem melhorada.
Uma competente assessoria de imprensa tem o condão de viabilizar esse
estreitamento, transformando a linguagem jurídica em uma linguagem
popular, otimizando a relação Judiciário e Imprensa, mostrando a carga de
trabalho existente, e as diversas ações desenvolvidas pelos juízes, as quais não
são conhecidas pela população.
É certo que a maioria dos tribunais brasileiros possui suas respectivas
assessorias de imprensa. Todavia, essas assessorias pouco conseguem fazer
em relação às unidades judiciárias, levando em conta o seu elevado número.
Portanto, surge a necessidade de cada unidade judiciária possuir sua respectiva
Revista ENM
33
assessoria de imprensa, potencializando a imagem do Judiciário em todos os
rincões do Brasil.
Por outro lado, não menos certo que os tribunais enfrentam dificuldades
orçamentárias e carências de servidores a obstaculizar a contratação de
profissionais para todas as unidades judiciárias ou, no mínimo, para a maior
parte delas.
Daí que surge a possibilidade de esse serviço ser realizado por estagiários
dos cursos de Jornalismo e Relações Públicas, supervisionados por professores.
Atualmente, somente estagiários do curso do Direito são contratados, e a
experiência demonstra que essa mão de obra viabiliza ótimo retorno para o
Judiciário.
2. Proposta
Sugerir que os tribunais brasileiros ofereçam a possibilidade de criação
de convênios de estágios remunerados com as faculdades de Jornalismo e
Relações Públicas, viabilizando a estruturação de assessorias de imprensa em
todas as unidades judiciárias brasileiras, visando a aproximação do Judiciário
da comunidade para que ele seja conhecido e sua imagem melhorada.
34
Revista ENM
José Barroso Filho
Justiça Militar da União (Amajun)
Resumo
A falta de acesso à Justiça é inconciliável com o princípio da dignidade
humana, sendo um severo limitador quanto ao exercício da igualdade e da
liberdade. Dadas as imensas distâncias e dificuldades de transporte, não é
possível esperar que o cidadão que mora nos distritos (muitas vezes distantes
dois ou três dias da sede da comarca) vá até o Fórum demandar os serviços de
justiça. Um habitante da floresta por vezes trabalha 30, 40 anos e quando não
tem mais forças para erguer uma enxada, infelizmente, vai passar necessidades
pois não pode pleitear um benefício previdenciário; vez que sequer tem o
registro de nascimento. O Estado precisa promover o encontro deste caboclo
com a efetiva cidadania e o Projeto Barcos da Justiça se propõe a ser mais um
instrumento nesta empreitada.
1. Introdução
Apesar dos avanços evidentes nos campos educacional e das comunicações,
uma parcela significativa da população amazonense permanece à margem,
desprovida das garantias sociais e do acesso à justiça, principalmente nas
regiões mais isoladas, no interior da floresta, nos rios e lagos longínquos,
perdidos na imensidão da geografia amazônica.
Necessário levar esperança e cidadania ao caboclo amazônico – sofrido,
desconfiado de tanto ser explorado, valente e disposto a alcançar a sua parcela
Revista ENM
35
TESE
Barcos da justiça:
cidadania efetiva
na região amazônica
de “felicidade”, nas exatas palavras do escritor ÁLVARO MAIA, no seu
romance “Beiradão”, há mais de meio século:
(...) Fala-se ainda desta gente que vive sem esmorecer e cresce sem
gemer. Certos atos, aparentemente desusados, têm a desculpa do
ambiente. Aqui não há polícia, não há remédios, não há professores,
não há médicos.
Neste diapasão surge o projeto Barcos da Justiça
2. Fundamentação
O projeto Barcos da Justiça visa o acesso dos cidadãos residentes nas
comunidades isoladas à justiça e possibilitar o gozo dos benefícios decorrentes
da inclusão social.
Os rios são as estradas na Amazônia, assim, o acesso aos ribeirinhos será
através de barcos, os Barcos da Justiça. Estes veículos de cidadania poderão
ser compartilhados pela Justiça Estadual, pela Justiça Federal, pela Justiça do
Trabalho e pela Justiça Eleitoral.
Basicamente, o projeto objetiva oferecer aos habitantes das comunidades
serviços judiciários em geral, especialmente:
• registro civil tardio;
• guarda consensual;
• acordo alimentício;
• casamentos;
• pedidos na área previdenciária; e
• procedimentos de jurisdição voluntária.
Serão organizadas caravanas utilizando os Barcos da Justiça e percorrerão
os rios da Amazônia, observado o regime das águas.
Tomemos o exemplo do Estado do Amazonas. Excetuando Manaus, há
61 municípios no interior do Amazonas que serão abrangidos pelo projeto.
O custo por município está orçado em 20 mil reais. Destes, a Petrobras
comprometeu-se a doar 40 mil litros de combustível por mês, situação que
reduz os custos para 8 mil reais por município.
Cada viagem dura cerca de um mês e abrangerá vários municípios.
Os gastos remanescentes dizem respeito à alimentação e material de expediente.
Assim, o orçamento do projeto é de 500 mil reais por ano, no tocante aos
municípios do Estado do Amazonas.
36
Revista ENM
Os recursos serão repassados diretamente aos municípios envolvidos, pois
será muito mais barato efetuar as compras na região do que centralizar tudo
em Manaus e depois transportar para os locais de atendimento.
O Governo Federal lançou em agosto de 2007, o Programa Nacional de
Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). O programa integra projetos de
segurança com ações sociais.
Conforme o Ministro Tarso Genro (Ministro da Justiça):
As ações do PRONASCI visam à valorização dos profissionais da área
da segurança, à ressocialização de pessoas com penas restritivas de
liberdade, à promoção do acesso de jovens e adolescentes às políticas
sociais do governo, à promoção do acesso à Justiça em territórios de
descoesão social e à intensificação das medidas de enfrentamento ao
crime organizado e à corrupção policial.
É justamente nesse novo conceito multidisciplinar que vislumbramos a
oportunidade de perenizar o projeto da Justiça Itinerante, os Barcos da Justiça.
O Tribunal de Justiça manteria o projeto em funcionamento com o apoio
da Petrobras (doação do combustível – cerca de 60 a 70% dos custos) e o
Ministério da Justiça repassaria os recursos (cerca de 8 mil reais por município)
diretamente aos municípios.
Valiosa a exortação do Ministro César Asfor Rocha (Superior Tribunal de
Justiça):
Nosso maior sonho é ter um Judiciário brasileiro que possa distribuir
justiça não como uma iguaria de festa, mas como o pão nosso de cada dia.
Ante as dificuldades logísticas vivenciadas, é necessário o estabelecimento
de parcerias de modo a cidadãos que moram no interior da Amazônia.
Nas palavras do Ministro Ubiratan Aguiar (Tribunal de Contas da União):
Serei ferrenho defensor da construção de pontes institucionais. Solitários,
somos todos pequenos e impotentes. Solidários, multiplicamos nossas
ações e adquirimos condições de exponencializar resultados.
Sejamos todos artífices destas “pontes institucionais”.
Esta tese é uma homenagem a magistrados como Luiz Cláudio Cabral
Chaves (AM) e Sueli Pini (AP) dentre tantos outros que dedicam as suas
vidas à efetivação da cidadania pelos rios e florestas da região amazônica.
Revista ENM
37
3. Proposições
3.1. A falta de acesso à Justiça é inconciliável com o princípio da dignidade
humana, sendo um severo limitador quanto ao exercício da igualdade e da
liberdade.
3.2. Na região amazônica, dadas as imensas distâncias e dificuldades de
transporte, o Estado precisa promover o encontro deste caboclo com a efetiva
cidadania e o Projeto Barcos da Justiça se propõe a ser mais um instrumento
nesta empreitada.
38
Revista ENM
Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz
Associação dos Magistrados de Rondônia – Ameron
A jurisdição é produto do fortalecimento e aperfeiçoamento do Estado de
Direito, fruto da sociedade organizada, marco de transposição da justiça privada
para a justiça pública. Trata-se de um dos meios de controle social, em que o Estado
exerce uma função pacificadora, solucionando os conflitos interindividuais. Todavia,
o Estado possui o monopólio da jurisdição, mas não o monopólio da justiça.
Nos últimos anos, tem-se dado espaço a outros meios eficazes de pacificação
social, que a doutrina considera como alternativos ou diversos da tradicional
jurisdição estatal. Não se trata de uma inovação, mas de um retorno às origens.
Vale lembrar que antes da afirmação do Estado com o exercício da função
jurisdicional a sociedade já se valia de outros meios anteriores para resolução dos
conflitos. Podemos assim citar a autocomposição, a arbitragem e a mediação,
como pré-existentes à organização estatal.
A necessidade de retorno à utilização destes meios, considerados
característicos das sociedades primitivas, ganhou força com as debilidades,
as dificuldades, a morosidade, os excessos de formalismo, a insatisfação e as
inoperâncias encontradas na jurisdição estatal.
Na atualidade, as questões jurídicas se deparam com processos de constante
discussão, muitas vezes demorados devido aos inúmeros recursos previstos na
lei processual. Por conta disso, a sociedade reclama por soluções mais rápidas e
efetivas de seus problemas e a atividade jurisdicional típica não mais se solidariza
Revista ENM
39
TESE
Câmaras de conciliação
– uma proposta contra
a morosidade do Poder
Judiciário
a estes anseios sociais. Neste contexto, destaca-se uma forte tendência na busca
de resoluções alternativas para as demandas jurídicas, já que o Poder Judiciário
encontra-se impossibilitado de solucionar, em curto espaço de tempo, todos
os problemas que lhe são apresentados. Daí a necessidade da valorização da
conciliação como forma de prevenção de conflito.
É nesse contexto que a conciliação judicial se revela como importante papel
na esfera da prevenção de conflitos. Trata-se de um procedimento que visa a
solução jurídica diante da satisfação de todas as partes, por meio de uma proposta
entabulada por elas mesmas, contando com a participação de um conciliador
que intermediará a efetivação deste processo.
Partindo dessa realidade, a proposta a ser apresentada neste trabalho está
pautada na necessidade de se aprimorar e aperfeiçoar o mecanismo da conciliação
judicial já abraçado pela legislação pátria, como meio de prevenção do conflito
e da própria jurisdição em sua atividade ampla e complexa, proporcionando um
maior êxito na resolução da lide sociológica.
Para consecução deste fim, acreditamos que a conciliação no processo civil da
Justiça Comum, se bem conduzida, pode alcançar resultados ainda não atingidos
pela falta de estruturação do mecanismo e adoção de suas técnicas no processo
judicial. Aposta-se no aperfeiçoamento da técnica conciliatória mediante sua
aplicação em momento processual adequado e através de profissional tecnicamente
qualificado para o desempenho da atividade em sua essência.
Propõe-se, portanto, a criação de câmaras de conciliação auxiliares às varas
cíveis da Justiça Estadual, com vistas à realização concentrada da atividade
conciliatória no processo judicial. Trata-se, sumariamente, de um departamento
concentrado de conciliação, com vistas ao auxílio do magistrado na prática
conciliatória nos processos judiciais.
Destaca-se que a finalidade precípua da adoção dessa proposta é proporcionar,
através dos fundamentos legais já existentes (CPC, art. 125, IV), a melhor
utilização da conciliação no âmbito da Justiça Comum, proporcionando
agilidade e efetividade na prestação jurisdicional, prevenção do conflito e da
jurisdição no desenvolvimento amplo de sua atividade, buscando a resolução da
lide sociológica, por vezes não alcançada com a sentença.
De acordo com a legislação pátria, poderá ser objeto da prática conciliatória,
concentrada através das câmaras de conciliação, toda demanda judicial que envolva
direitos patrimoniais privados (art. 841 do Código Civil) e assim permitam às
partes dispor de seus direitos da forma que lhe convier em busca do acordo.
40
Revista ENM
A criação de câmaras de conciliação como meio de prevenção de conflitos
e de desenvolvimento do processo em sua amplitude permitirá ao Judiciário a
experimentação de inúmeras vantagens no exercício da jurisdição: resolução da
lide sociológica; desafogamento das varas e dos tribunais; celeridade da prestação
jurisdicional; redução dos custos processuais; prevenção dos conflitos; redução
do tempo da pauta de audiência do juiz; ampliação do tempo para o magistrado
despachar e sentenciar ações mais complexas e/ou de direitos indisponíveis;
diminuição das tarefas nos cartórios das varas; redução do tempo médio de
tramitação dos processos; redução do tempo médio do magistrado para prolação
de sentenças e designação de audiências.
Tais vantagens são alcançadas considerando que inquestionavelmente a
conciliação atinge com maior êxito a resolução da lide sociológica, ou seja, o
conflito em todas as suas proporções e amplitude, permitindo a continuidade
das relações entre os envolvidos e prevenindo novos conflitos. Uma atividade
conciliatória bem aplicada, com tempo e profissionais (conciliadores)
capacitados, dará abertura a um maior número de resolução de processos por
autocomposição, o que permitirá o desafogamento do Judiciário, reduzindo o
número de lides que são levadas a efeito até o julgamento final, por sentença.
A conciliação pode prevenir não só o exercício de uma atividade jurisdicional
ampla para a solução de um litígio, mas evitar que outros surjam em virtude
do mesmo fato, em razão da insatisfação dos envolvidos ou do próprio
descumprimento da decisão judicial proferida. A ampliação da efetividade
da atividade conciliatória nas lides judiciárias permitirá, não só a deflação
processual, mas também maior agilidade e rapidez aos processos em geral.
Conclui-se, pois, que paralelamente ao exercício da atividade jurisdicional
típica, cumpre ao Poder Judiciário também atuar de forma preventiva, mediante
a utilização de mecanismos que rechacem as lides em seu nascedouro. Num
país onde se discute a “crise do Poder Judiciário” calcada na morosidade na
tramitação dos processos, em especial na Justiça Estadual Comum, e na
dessintonia do direito com a realidade social, à vista da sobrecarga de serviços
pelos juízes, vislumbra-se na análise da atividade preventiva do Poder Judiciário
um meio de evitar o abarrotamento de processos nos Tribunais.
Proposição
Diante da necessidade de se proporcionar maior brevidade na prestação
jurisdicional propõe-se a criação de câmaras de conciliação nas comarcas da
Justiça Estadual.
Revista ENM
41
TESE
Centros integrados
de cidadania
José Barroso Filho
Justiça Militar da União (Amajum)
Resumo
Na busca do “nosso ambiente” de desenvolvimento, igualmente ilícita é a
ação lesiva ao meio ambiente, como a inação, quando possível a exploração
ambiental sustentável. Considera-se o impacto ambiental negativo da falta de
desenvolvimento, que resulta na manutenção do nível de miséria, desemprego,
desnutrição, claras violações aos direitos fundamentais. Neste diapasão, a
falta de acesso à Justiça é inconciliável com o princípio da dignidade humana,
sendo um severo limitador quanto ao exercício da igualdade e da liberdade.
Os centros integrados de cidadania congregam uma sinergia de ações de modo
a implementar condições de uma cidadania efetiva e “desenvolver” o direito
fundamental à esperança.
1. Introdução
De logo, convido a compartilharmos a inquietação com o diálogo abaixo:
Em um município pobre da nossa região amazônica, quando
acompanhava, como observador, a operação Timbó III – exercício
combinado entre a Marinha, o Exército e a Aeronáutica – tive a
oportunidade de conversar com uma garota de 16 anos de idade.
Primeiro perguntei sobre os estudos, ela respondeu: não ia muito bem.
Apesar de estar na 2a série do 2o grau, ela não sabia escrever direito...
Perguntei sobre o trabalho: ela disse que na região não havia trabalho...
No início da tarde, quase todos os jovens ficavam olhando o horizonte...
“um olhar perdido”. Perguntei sobre namoro – na tentativa de aliviar
o clima – ela falou que os meninos de 12, 13 anos já se envolviam
42
Revista ENM
com drogas ou bebida e não era essa a vida que ela queria... Por fim,
perguntei: O que você espera da vida? Tristonha, respondeu: NADA!
Faz lembrar a expressão de EDUARDO GALEANO: “Te convence de que
servidão é um destino e a impotência, a tua natureza: te convence de que não se
pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser”. Associo a imagem desta menina a
de um pequeno bonsai, em cuja semente há o potencial de uma árvore frondosa,
porém, pelas limitações ambientais, permanece contida em um diminuto vaso.
“É preciso educar para a esperança” (ZILDA ARNS), e esta tarefa é
necessariamente multidisciplinar.
2. Fundamentação
De tiros-de-guerra a centros integrados de cidadania
2.1. Formação cívica
O objetivo dos tiros-de-guerra (TG) é formar reservistas de 2a categoria aptos
ao desempenho de tarefas no contexto da Defesa Territorial e Defesa Civil. O
TG é um bom exemplo de como é possível conciliar a prestação do serviço
militar obrigatório com as atividades civis dos jovens convocados. Os alunos dos
TG participam de várias ações comunitárias. A ideia é que em cada município
seja instalado um Tiro-de-Guerra, de modo que, nessa ação conjunta entre o EB
e o respectivo município, a juventude possa receber noções básicas de civismo
de modo a habilitá-lo a ser um cidadão prestante.
2.2. Acesso à Saúde (Médico e Dentista)
Vale ressaltar, em cada TG da região amazônica, em regiões carentes,
existe um médico e um dentista, ambos prestando serviço militar obrigatório.
Estes militares atenderão os participantes do TG, mas também poderão atender as
comunidades da região. Infelizmente, o número de TG na Amazônia é reduzido,
apesar das vantagens evidentes, mormente no tocante à área de saúde, pois os
médicos e dentistas não se fixam nos municípios do interior e com o TG sempre
haverá uma assistência médica para a população. Pois bem, cabe ao Município
fornecer e manter o local onde será instalado o TG, porém, nossos municípios, em
sua grande maioria, não têm condições de fazê-lo. Como solução, eu proponho a
confecção de convênios de cooperação entre a União, o Estado, os municípios e
o Comando Militar da Amazônia para que o Estado possa assumir as despesas da
Revista ENM
43
parte física do Centro Integrado de Cidadania, pois todo o restante, material e
pessoal, será de responsabilidade do Exército brasileiro.
2.3. Inclusão digital
Nestes centros integrados de cidadania poderiam ser instalados infocentros
visando promover a inclusão digital. Os infocentros são centros públicos de
acesso à informática, ou seja, locais de livre acesso onde a população pode
utilizar os computadores para fazer trabalhos, conhecer diversos softwares,
navegar e pesquisar na internet. Tudo com a utilização do Sistema GESAC
(Governo Eletrônico). O objetivo é possibilitar ao cidadão, especialmente o de
baixa renda, o livre acesso às tecnologias de informação e comunicação.
2.4. Acesso à Educação
Nos rincões da nossa Amazônia, nas localidades mais afastadas, por vezes,
sequer existe escola ou professores. Surge, pois, a necessidade de utilizarmos novas
tecnologias para que a educação cumpra a sua missão emancipatória, no sentir de
PAULO FREIRE. Nas comunidades mais afastadas, mormente naquelas próximas
aos pelotões especiais de fronteira, a docência é exercida pelos militares, por suas
esposas e por professores destacados pela Secretaria Estadual de Educação. As
dificuldades são inúmeras: falta de unidade metodológica, deficiência de material
didático, inexistência de merenda escolar e de bibliotecas. O Ensino à Distância
(EAD) pode ser uma grande opção para que cheguemos de forma efetiva às
comunidades mais longínquas. Trago como sugestão, o sistema EAD do Colégio
Militar de Manaus (CMM), dada a sua excelência, praticidade e baixo custo. O
projeto de EAD do CMM tem por objetivo oferecer uma educação de qualidade
a jovens de todo o País e também aos filhos e dependentes de militares que sofrem
as consequências educacionais advindas de constantes movimentações. O apoio
local ao aluno é prestado por um orientador, uma pessoa devidamente escolhida na
comunidade. A proposta é ampliar o campo de abrangência do projeto para atender
as populações civis que vivem próximas às unidades militares e aos infocentros. A
iniciativa pode ser aperfeiçoada com a implementação de telessalas nas quais seria
transmitido o material didático fornecido pela Fundação Roberto Marinho.
2.5. Telemedicina
Na região Amazônica, marcada pelas grandes extensões territoriais, pela
dificuldade de fixação de profissionais e pela estrutura deficiente, a utilização da
44
Revista ENM
telemedicina pode ser um fator contribuinte para a melhoria da qualidade de vida
do nosso povo. A ferramenta é aplicável a todos os campos médicos, incluindo
cirurgia. Dessa forma, obtém-se um ganho de eficiência nos diagnósticos, bem
como, há um incremento na eficiência e qualidade dos serviços.
2.6. Apoio técnico à agricultura
Aplicar os conhecimentos dos concludentes das escolas agrotécnicas federais
da região amazônica como sargentos técnicos temporários junto a organizações
militares. Esta ação estimulará o desenvolvimento tecnológico, a capacitação de
pessoal, o aprimoramento logístico e a produção regional de gêneros alimentícios
visando o autossustento das OM’s e das comunidades nativas/indígenas.
2.7. Acesso à Justiça
Nos centros integrados de didadania poderá ser instalado um posto de
atendimento remoto da Justiça. Relembrando que em cada organização militar
na Amazônia poderá ser instalado um Centro Integrado de Cidadania (CIC),
situação que demonstra a grande capilaridade e abrangência da proposta. Pois
bem, em cada CIC um militar poderá ser destacado para a orientação e recepção de
documentos e da petição inicial para futuramente os interessados comparecerem à
audiência perante um Juiz. As Forças Armadas fornecerão o transporte da equipe
judiciária (juiz, representante do Ministério Público, defensor e servidores) para
a realização destas audiências. Por certo, com a provável concessão de benefícios
previdenciários, a renda média da localidade iria aumentar significativamente, o
que seria um claro fator de desenvolvimento regional.
As grandes distâncias na Amazônia ocasionam um grande problema quanto ao
cumprimento de cartas precatórias. Desde que não haja condições materiais para o
cumprimento da diligência deprecada pelo oficial de justiça, o Juiz deprecado pode
nomear um militar como oficial de justiça “ad hoc” e remeter a precatória para o
CIC. Há de se observar o limite territorial das operações em cada Unidade Militar.
3. Conclusão e proposição
Os centros integrados de cidadania buscam a efetivação da cidadania ante
as dificuldades logísticas vivenciadas na região amazônica que desafiam à adoção
de ações que, literalmente, aproximem o cidadão do Poder Público, de modo
a desenvolver uma relação de pertinência do cidadão com o Estado brasileiro.
Falamos do direito fundamental à ESPERANÇA de um futuro melhor.
Revista ENM
45
TESE
Concretização do
direito humano de acesso
à Justiça: imperativo ético
do Estado Democrático
de Direito
Marcelo Maliizia Cabral
Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – Centro de Pesquisas Justiça e Sociedade,
órgão da Escola Superior da Magistratura do RS
Resumo
Concretização do direito humano de acesso à justiça. Com a consagração
do princípio da igualdade material, o tema passou a ser investigado sob o
prisma da possibilidade concreta de as populações terem acesso à justiça.
Em decorrência de sua caracterização como direito social, defende-se a
necessidade do desenvolvimento de políticas públicas e de ações afirmativas de
parte do Estado e da sociedade à garantia do acesso material da humanidade
a mecanismos de pacificação social. Apregoa-se, então, a valorização das
ferramentas consensuais de resolução de conflitos, com a utilização dos
recursos humanos e materiais existentes nas comunidades, reservando-se a
jurisdição formal como instrumento subsidiário e complementar à realização
da justiça.
1. Fundamentação
O direito humano de acesso à justiça constitui-se em tema da mais alta
relevância na atualidade, seja em razão da sua extensão, seja em decorrência
da necessidade de sua afirmação. Garantir-se concretude a esse direito
46
Revista ENM
implica, por princípio, ofertar-se informação precisa à humanidade quanto
aos direitos que titulariza, os quais, em regra, são desconhecidos por dezenas
de milhões de brasileiros. Um grande esforço de informação e de educação
há de produzir seres humanos conscientes da verdadeira dimensão que a
Carta Política outorgou aos povos que ocupam o território nacional.
Ao lado da consciência das promessas de garantia de direitos humanos
insculpidas pela República Federativa do Brasil em sua norma maior, ao povo
deve chegar, igualmente, informação sobre a magnitude das violações a esses
direitos, impostas diariamente à humanidade. Somente o conhecimento
coletivo e integral da amplitude dos direitos conferidos à população, da
necessidade de sua concretização imediata e do descomprometimento do
poder público e da sociedade para com esses compromissos éticos, pode
construir lastro firme e dar vida ao direito humano de acesso à justiça. Em
outras palavras, sem que a comunidade se aproprie do rol de direitos que a
ordem jurídica lhe confere e do sistemático desrespeito a essas ordenações,
não haverá percepção das injustiças que lhe são impostas cotidianamente.
Da mesma forma, sem essas experiências, a população não experimentará a
necessidade incessante da busca por justiça e não reclamará a concretização
desse direito, pressuposto do alcance de todos os outros. Então, somente
com educação e informação formar-se-á uma cidadania consciente,
questionadora, organizada, articulada, protagonista da luta pela asseguração
de seus direitos. Esse, exatamente, constitui o primeiro elemento do direito
humano de acesso à justiça. Somente uma cidadania informada do conteúdo
e da extensão de seus direitos promoverá a mobilização social necessária à
realização das políticas públicas e das ações afirmativas imprescindíveis à
realização do direito humano de acesso à justiça.
Importante registrar-se que essa política de informação e de disseminação do
conhecimento dos direitos humanos há de ser direcionada, preferencialmente,
às comunidades que registram hipossuficiência social, porquanto a igualdade
material somente será alcançada com o estabelecimento de ações estratégicas
à sua redução. O conceito de direito humano de acesso à justiça carece, da
mesma forma, de revisão. Com efeito, o que se verifica, na atualidade, é uma
garantia de acesso à justiça eminentemente formal. O sistema de distribuição
de justiça está aberto a todas as pessoas. Todavia, somente aquelas que dispõem
de condições sociais, econômicas e culturais mínimas, dele se utiliza. E essa
realidade se instala como decorrência de diversos fatores que limitam o acesso
Revista ENM
47
da população à justiça, tais como a desinformação sobre o conteúdo dos direitos
humanos e dos mecanismos de resolução de conflitos existentes; o elevado valor
das custas processuais; a insuficiência dos serviços ofertados pelas defensorias
públicas; a impossibilidade econômica e social de se suportar a longa tramitação
dos processos até a realização do direito; a distância física, social e cultural das
comunidades com os locais de prestação de justiça e com as pessoas que neles
trabalham; a falta de compreensão das formalidades e da linguagem próprias do
sistema de justiça formal, assim como de sua morosidade, dentre outros. A revisão
conceitual necessária é justamente aquela capaz de reduzir esses obstáculos em
número e intensidade, o que reclama o desenvolvimento de políticas públicas e
de ações afirmativas.
Nesse sentido, há de se caminhar na busca da democratização, da
desburocratização, da informalização, da celeridade e da consensualização
do acesso à justiça. Somente se alcançará a tão sonhada igualdade material
dos usuários dos serviços de pacificação social com a real universalização dos
mecanismos de resolução de conflitos, quando os serviços de distribuição
de justiça estiverem próximos da população, nos bairros, nos centros
comunitários, assim como nos grupos sociais mais distantes e periféricos.
Além de se integrar aos contextos territorial, social e cultural, os mecanismos
de pacificação social hão de estabelecer comunicação adequada com seus
usuários. Hão de existir, assim, locais para a informação e para a distribuição
de justiça nos centros comunitários e nas escolas, em parceria com os
serviços já existentes nas comunidades em situação de hipossuficiência
social. O atendimento há de ser descomplicado, a linguagem acessível, o que
se mostra possível com a integração, a articulação e a utilização preferencial
dos recursos humanos existentes nas próprias comunidades. Valorizam-se,
dessa forma, os recursos comunitários, seu protagonismo e reconhece-se
seu potencial organizacional, passível, inclusive, de proceder à pacificação
dos conflitos existentes, com geração de justiça e paz. Do mesmo modo,
os mecanismos tradicionais de resolução de conflitos formais, lentos e
dispendiosos, hão de ceder lugar a ferramentas informais, rápidas, gratuitas,
que privilegiem o consenso, o diálogo, o entendimento. Para que se alcance
esse objetivo, necessária se faz a ruptura de paradigmas culturais, dentre
os quais aquele que traduz a justiça como algo alcançável somente após
um longo tempo de batalha, com a observância e a reverência a fórmulas
e formalidades. Esse novo modelo de justiça participativa, informativa,
48
Revista ENM
consensual, próxima, acessível, somente será alcançado com a integração
e com o estabelecimento de parcerias entre o poder público e a sociedade.
A valorização de ferramentas pouco utilizadas e algumas vezes até mesmo
desvalorizadas, como a informação, a orientação, a conciliação, a mediação,
a arbitragem, dentre outras, há de ser procedida pelos agentes do sistema
de justiça e pela sociedade. A justiça há de ser pensada como instrumento
de concórdia, de consenso, de restabelecimento de relações, de reajuste
de regras de convivência, de diálogo, valores sempre buscados com
informalidade, rapidez e eficiência. A jurisdição formal, instrumento a que
se resume o acesso à justiça hodiernamente, há de constituir instrumento
complementar, utilizado somente após o insucesso daquelas ferramentas, ou
quando não recomendada sua utilização. Óbices legais à garantia do acesso
materialmente igualitário e à redução da morosidade do sistema formal
de prestação de justiça também haverão de ser transpostos. Enfim, com a
ruptura de paradigmas, utilização de ferramentas modernas, valorização da
participação comunitária, desenvolvimento de políticas públicas e ações
afirmativas de ampliação do acesso à justiça, será possível materializar-se
o acesso universal a um sistema de resolução de conflitos seguro, rápido
e eficaz, com produção de justiça e paz. O desafio, agora, prende-se à
concretização do direito humano de acesso à justiça, transformando-se em
realidade a promessa de justiça para todos.
2. Proposições
Fomento à organização popular. Desenvolvimento de políticas públicas
e ações afirmativas para a superação dos óbices à concretização do acesso
à justiça. Valorização e criação de novos mecanismos de tutela coletiva de
direitos. Desenvolvimento de ações informativas sobre direitos humanos e
cidadania, a cargo do poder público e da sociedade. Valorização dos meios
não adversariais de resolução de conflitos: mediação e conciliação, a cargo
do poder público e da sociedade. Valorização dos recursos comunitários
para a realização de ações de informação e pacificação social – realização de
justiça. Fortalecimento dos serviços de assistência jurídica comunitários e
estatais. Fortalecimento dos juizados especiais: ampliação da competência,
descentralização. Desburocratização, redução e/ou supressão dos custos e da
morosidade no acesso ao Poder Judiciário. Alterações legislativas necessárias à
implementação das propostas.
Revista ENM
49
Referências bibliográficas
ALVIM, J. E. Carreira. Alternativas para uma maior eficácia na prestação jurisdicional. Revista da Escola
Superior da Magistratura do Distrito Federal, n. 2. Brasília: 1996
ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES DO RIO GRANDE DO SUL. Ato Público: Democratização Já! Dia
Nacional de Mobilização. Porto Alegre: 2002
BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. Rio de Janeiro: Simões, 1947
BERIZONCE, Roberto O. Algunos Obstáculos al Acesso a la Justicia. Revista dos Tribunais, São Paulo, v.
68, out./dez 1992
BEZERRA, Paulo Cesar Santos. Acesso à justiça: um problema ético-social no plano da realização do direito.
Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus,
1992
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Irresponsáveis? Traduzido por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989
CAPPELETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Traduzido por Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988
CAPPELLETTI, Mauro. Traduzido por Tupinambá Pinto de Azevedo. Conferência proferida no Plenário
da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul n.
35, Porto Alegre: Nova Fase, 1995
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça. Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Rio de
Janeiro: Editora Forense, 2000
CASTRO, J.L. Cascajo, Luño. Antonio-Enrique Pérez, CID, B. Castro, TORRES, C. Gómes. Los derechos
humanos: significación, estatuto jurídico y sistema. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1979
DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e Constituinte. São Paulo: Saraiva, 1986
FALCÃO, Joaquim. “Acesso à justiça: diagnóstico e tratamento”. In Justiça – promessa e realidade: o acesso à
justiça em países ibero-americanos. Organização Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução
Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996
FARIA, Anderson Peixoto de. “O acesso à justiça e as ações afirmativas”. In QUEIROZ, Raphael Augusto
Sofiati de (Org.). Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002
FARIA, José Eduardo (Org.). Direito e Justiça: A Função Social do Judiciário. São Paulo: Editora Ática S.A.,
1989
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva,
1997
GOHN, Maria da Glória. Movimentos e lutas sociais na história do Brasil. São Paulo: Loyola, 1995
GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual: de acordo com a Constituição de 1988.
São Paulo: Forense Universitária, 1990
JACOBI, Pedro. Movimentos Sociais e Políticas Públicas. São Paulo: Cortez, 1993
Justiça – promessa e realidade: o acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização Associação dos
Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1996
LEAL, Rogério Gesta. Direitos Humanos no Brasil: desafios à democracia. Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 1997
LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado, 2006
LIMA, João Batista de Souza. As mais antigas normas de direito. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983
MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Assistência Jurídica, Assistência Judiciária e Justiça Gratuita. Rio de
Janeiro: Editora Forense, 2003
MORAES, Humberto Peña de. “Democratização do acesso à justiça. Assistência Judiciária e Defensoria
Pública”. In Justiça – promessa e realidade: o acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização
Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1996
MORAES, Humberto Peña de; SILVA, José Fontenelle Teixeira da. Assistência Judiciária: sua gênese, sua
história e função protetiva do Estado. 2. ed., Rio de Janeiro: Liber Juris, 1984
MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais. 6. ed., São Paulo: Editora Atlas S.A., 2005
NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. 2. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000
______. Novas perspectivas no acesso à Justiça. Revista CEJ, Brasília, v. 1, n. 3, 1997
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000
50
Revista ENM
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3. ed., São Paulo: Editora
Max Limonad, 1997
QUEIROZ, Raphael Augusto Sofiati de (Org.). Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002
SADEK, Maria Tereza (Org.). Acesso à Justiça. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001
SANTOS, Boaventura de Sousa. “O acesso à justiça”. In Justiça – promessa e realidade: o acesso à justiça
em países ibero-americanos. Organização Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola
Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996
______. Introdução à sociologia da administração da justiça. In FARIA, José Eduardo (Org.). Direito e
Justiça: A Função Social do Judiciário. São Paulo: Editora Ática S.A., 1989
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 6. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990
SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas Direções
na Governança da Justiça e da Segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006
SOARES, Fábio Costa. Acesso do hipossuficiente à justiça. A Defensoria Pública e a tutela dos interesses coletivos
latu sensu dos necessitados. In QUEIROZ, Raphael Augusto Sofiati de (Org.). Acesso à Justiça. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002
SOLCI, Silvia Maria. Os Direitos do homem na sociedade atual. Disponível em: <http://www.ssrevista.uel.
br/c_v2n1_direitos.htm>. Acesso em: 17.9.2007
TOBEÑA, José Castan . Los derechos del hombre. Madrid: Réus, 1976
TORRES, Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2005
WATANABE, Kazuo [et al.] (Coord.). Juizado Especial de Pequenas Causas. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1985
ZANON, Artemio. Da Assistência Jurídica Integral e Gratuita. São Paulo: Saraiva, 1990
Revista ENM
51
TESE
Criação de Comissão dos
Direitos Humanos nos
tribunais, como auxiliar
nas políticas ligadas ao
combate à tortura
João Ricardo dos Santos Costa
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
1. Ementa
Criação, em todos os tribunais do País, de comissão que centralize informes
obtidos na atividade jurisdicional sobre denúncias de tortura ou outras
violações contra os Direitos Humanos perpetradas por agentes públicos.
Mecanismo que atende aos compromissos internacionais assumidos pelo
Brasil nos tratados e convenções de Direitos Humanos.
2. Justificativa
A situação dos Direitos Humanos na América Latina está na pauta dos
debates internacionais e o Brasil vem sendo citado em todos os informes
internacionais que diagnosticam tais violações. As instituições democráticas
são sempre alvo de críticas pela sua ineficiência em coibir e reprimir as violações
e por sua inefetividade em garantir os Direitos Humanos. Existem muitas
políticas desenvolvidas pelos vários órgãos do Estado voltadas à promoção dos
Direitos Humanos e outras vêm sendo discutidas, em fase de implementação.
O Poder Judiciário tem um papel fundamental nesta luta, daí a necessidade
da criação de instrumentos direcionados a garantir os Direitos Humanos
52
Revista ENM
capacitando o Judiciário para contribuir com ações obstativas às violações.
Muitas das denúncias de tortura que chegam aos organismos internacionais
decorrem de fatos promovidos por agentes públicos, principalmente em
relação à atuação das polícias.
O Judiciário, através da jurisdição criminal, recebe informações de
violações perpetradas pelas polícias, em que as denúncias de tortura praticada
por agentes policiais se repetem num macabro cotidiano de transgressões.
Não há, nos tribunais, uma política específica para diagnosticar e contribuir
com a repressão à tortura. A prática desse ilícito geralmente atinge pessoas
vitimadas pela exclusão social e desprovidas de acesso aos serviços públicos
essenciais, dentre os quais está inserido o acesso à justiça. Como é um ilícito de
severa gravidade que caracteriza-se pela repetição de práticas, com identidade
de agentes violadores e modus operandi, a criação de um mecanismo que
centralize informações sobre tais ações é fundamental para sua repressão.
Revista ENM
53
TESE
Criação de conselhos
comunitários nos
juizados especiais
Maria Gilmaíse de Oliveira Mendes
Maria das Graças Almeida de Quental
Tribunal de Justiça do Estado do Ceará
Resumo
A democracia cumpre seu papel primordial quando proporciona a
todos, indiferentemente de sua condição, o exercício pleno da cidadania.
A implantação do Conselho Comunitário de Apoio ao Juizado Especial e à
Promotoria de Parangaba, em Fortaleza-CE, com o objetivo de promover a
interação entre a comunidade jurisdicionada e os órgãos estatais, mormente
aqueles diretamente envolvidos na prestação de serviços à comunidade,
proporciona a cidadania ativa, surgindo como uma experiência fecunda, de
vez que a comunidade atua de forma participativa na Administração Pública.
Palavras-chave: Conselho Comunitário. Juizado. Serviços à Comunidade.
Cidadania Ativa.
1. Descrição e fundamentação do projeto
Desde janeiro de 2001, por iniciativa do Promotor de Justiça e da Juíza
de Direito da 17a Unidade dos juizados especiais, funciona o Conselho
Comunitário de Apoio ao Juizado e ao Ministério Público, formado pelas
lideranças do bairro de Parangaba. Dentre as principais conquistas, pode-se
salientar a melhoria dos serviços públicos. O Juiz de Direito desempenha um
papel revolucionário no contexto atual, onde somente poucos usufruem de
todos os privilégios. Fácil é prolatar uma sentença em sintonia com os supostos
ditames legais; bem mais difícil é aplicar a verdadeira justiça social num país
54
Revista ENM
com tantas desigualdades. Há necessidade de examinar os atos sem esquecer a
realidade de seus agentes, sopesando os direitos humanos e sociais. Com essa
finalidade, esses profissionais do Direito implementaram um novo modelo,
adotando procedimentos de interação com os moradores da localidade, na
tentativa de melhor efetivar os direitos fundamentais do cidadão, implantando
o Conselho Consultivo de Parangaba com o objetivo de assessorá-los na luta
por políticas públicas para o desenvolvimento estrutural e sócio-cultural da
comunidade. O Conselho de Parangaba visa o enfrentamento de questões
ligadas aos seguintes eixos: meio ambiente, criança e adolescente, saúde,
idoso e segurança pública. É um importante espaço democrático de lutas e
conquistas, colaborando com o fortalecimento da cidadania e da dignidade dos
habitantes daquele bairro. Dessa forma, o Conselho realiza um trabalho em
parceria com a comunidade, com reuniões mensais, alavancando a confiança
da população e gerenciando a justiça com transparência e democracia em prol
do bem comum, na construção de um mundo mais ético, mais humano e
mais justo, no dizer de Cappelletti.
O Conselho é a voz da comunidade, procurando envolver todas as
associações do bairro na formação de parcerias com universidades, secretarias
do Estado e do Município. Enquanto o Juizado se prende a competências
na forma da Lei 9.099/95, o Conselho, com reconhecida eficácia, soluciona
litígios com rapidez, satisfazendo plenamente a coletividade pela concretização
dos direitos fundamentais na verdadeira consonância com a ordem jurídica,
sem a necessidade da formalização de um processo judicial.
A comunidade participa de fóruns de debates com as mais diversas classes
sociais, apresentando suas opiniões, sentindo-se uma força viva no complexo
jogo do poder público, que passa a embasar suas decisões ouvindo a experiência
e a sabedoria popular. É a justiça com apoio do povo, tornando-se mais forte
e efetiva, exigindo o cumprimento dos compromissos daqueles que assumiram
o cargo que ocupam respeitando os direitos básicos do cidadão. Trata-se de um
novo perfil de justiça: democrática e participativa. Os resultados são visíveis
e reconhecidos pela sociedade. É o exercício quotidiano da verdadeira justiça
cidadã. O Conselho está sempre atento às reclamações da comunidade. Todo o
trabalho é centrado na cidadania e, dentre os resultados obtidos, salientam-se:
• Colocação de sinais de trânsito em locais de grande fluxo;
• Construção de um prédio digno para funcionamento da delegacia do 5o
Distrito Policial;
Revista ENM
55
• Construção do prédio da 7a Companhia da Polícia Militar;
• Retorno do posto do INSS à Parangaba;
• Apoio e atenção às crianças moradoras de rua;
• Fiscalização dos postos de saúde;
• Permanência da farmácia central de medicamentos do SUS;
• Limpeza das margens da Lagoa da Parangaba, a segunda maior de Fortaleza;
• Melhor direcionamento do Hospital Frotinha, com a destinação correta
do lixo hospitalar;
• Tombamento e restauração, esta em vias de concretização, do edifício da
estação ferroviária da Parangaba, construído em 1873, um dos mais antigos
prédios do bairro;
• Controle da poluição sonora, mediante a utilização correta do sistema
acústico nos clubes e na via pública, evitando os abusos anteriormente
cometidos e os problemas de saúde deles decorrentes;
• Nomeação de Defensor Público para atuação permanente no Juizado.
O trabalho é desenvolvido com foco nos problemas sociais, em busca de
soluções direcionadas às pessoas que enfrentam dificuldades na luta por seus
direitos, na certeza da valorização do ser humano e da garantia da sua dignidade,
erigida à condição de fundamento axiológico da ordem constitucional (art.
1o, III, da Constituição Federal).
De tudo, observa-se que com o compromisso de fazer o bem comum
e alcançar a finalidade social da lei (art. 5o, Lei de Introdução ao Código
Civil), mantém-se a transparência dos atos, o respeito, a credibilidade e a
responsabilidade, delineando um modelo de conduta pública, o que se revela
paradigmático por partir precipuamente de autoridades, nas quais todos devem
depositar sua confiança, a base de toda solidariedade social. O Conselho aufere
resultados concretos como paradigma de uma justiça revolucionária, exigindo
profissionais desprendidos, pois exige atos de verdadeira doação e coragem,
com desafios diuturnos.
2. Conclusão e proposição
Após quase uma década de atuação, o trabalho do Conselho já se faz sentir
além de suas fronteiras, tendo incentivado a apresentação de um projeto de
lei na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará para que todos os juizados
passem a ter seu próprio Conselho. Aprovado este projeto de lei, todos os
juizados especiais passarão a possuir seus conselhos de apoio; o Conselho
56
Revista ENM
também motivou a criação do Conselho de Caucaia e da 13a Unidade dos
juizados especiais do bairro de Monte Castelo.
Com a semeadura na 17a Unidade dos juizados especiais cíveis e criminais,
colheu-se a experiência expressiva da participação do cidadão através de seus
líderes, numa interação harmoniosa com as autoridades. Além dos proveitosos
resultados obtidos, a proposta maior é a criação de conselhos comunitários em
cada Juizado Especial do País, atendendo às formalidades legais e contribuindo
de forma efetiva para o despertar da cidadania do povo brasileiro.
Para tanto, propõe-se, a apresentação de projeto de lei que venha a
complementar a atual Lei 9.099/95, prevendo a criação dos conselhos
comunitários e sua estruturação, inclusive a mediação comunitária, nos
moldes do Projeto de Lei no 5.869, de 1998, de autoria da deputada Zulaiê
Cobra, atualmente em tramitação no Congresso Nacional.
Referências bibliográficas
APEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna. Trad. Brenno Dischiger. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 9. ed. ampl. e
atual. São Paulo: Malheiros, 2009
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a
construção do novo modelo. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2009
__________. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional
transformadora. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004
BEZERRA, Paulo César Santos. Acesso à justiça: um problema ético-social no plano da realização do direito.
Rio de Janeiro: Renovar, 2001
BRASIL. Relato de uma experiência: Programa Justiça Comunitária do Distrito Federal. Ministério da
Justiça – Secretaria de Reforma do Judiciário, Brasília, 2008
BREITMANN, Stella Galbinski. Mediação familiar: do conflito ao acordo. Curitiba: Juruá, 2001
___________. Mediação familiar: uma intervenção em busca da paz. Porto Alegre: Criação Humana,
2001, LTr, 1994
CABRAL, Marcelo Malizia. Concretização do direito humano de acesso à Justiça: imperativo ético
do Estado Democrático de Direito. In: Coleção administração judiciária: coletânea de trabalhos de
conclusão do curso apresentados ao Programa de Capacitação em Poder Judiciário – FGV Direito
Rio, 2009. v. V
CAPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988
__________. Juízes irresponsáveis? Porto Alegre: Fabris, 1989
__________. Juízes legisladores? Porto Alegre: Fabris, 1993
CÁRDENAS, Eduardo José. La mediación em conflictos familiares. Buenos Aires: Lúmen/Humanitas, 1999
COLAIÁCOVO, Cinthia Alexandra; COLAIÁCOVO, Juan Luís. Negociação, mediação e arbitragem:
teoria e prática. Tradução Adilson Rodrigues Pires. Rio de Janeiro: Forense, 1999
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006
COSTA, Regenaldo da. Ética e filosofia do direito. Rio de Janeiro, São Paulo – Fortaleza: ABC, 2006
DALLARI, Dalmo. O poder dos juízes. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007
FARIA, José Eduardo. Justiça e conflito: os juízes em face dos novos movimentos sociais. 2. ed. rev. e ampl.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992
FIORELLI, José Osmir et alli. Mediação e solução de conflitos: teoria e prática. São Paulo: Atlas, 2009
Revista ENM
57
GARCEZ, José Maria Rossani. Negociação, ADRs, mediação, conciliação e arbitragem. 2. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Lúmen Juris, 2003
GRUNSPUN, Haim. Mediação familiar: o mediador e a separação de casais com filhos. São Paulo:LTr,
2000.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade Trad. Flávio Beno Siebeneichler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 2 v.
HAYNES, John M.; MORODIN, Marilene. Fundamentos da mediação familiar. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1996.
MENDES, Maria Gilmaíse de Oliveira. Direito à Intimidade e Interceptações Telefônicas. Belo Horizonte:
Mandamentos, 1999
MISSAGIA, Claudemir. Audiência preliminar: indicativos de um itinerário para uma jurisdição cível justa
e efetiva. Revista AJURIS, n. 78, p. 94-123, jun. 2000
MOORE, Christopher W. El proceso de mediación - Métodos prácticos para La resolución de conflictos.
Buenos Aires: Ediciones Granica, 1995
__________. O processo de mediação: estratégias práticas para a redução de conflitos. Tradução Magda
França Lopes. 2. ed. Porto Alegre Artmed, 1998
MORAIS, José Luís Bolzan de. Mediação e arbitragem: alternativas à jursidição. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1999
MORRONE, Aldo. La mediación familiar durante el divorcio. Revista de Psicologia de Quebec, v. 8, n. 1,
1987
MÜLLER, Frederich. Vinte Anos da Constituição: reconstruções, perspectivas e desafios. Themis: revista
da ESMEC. Edição Especial Comemorativa dos 20 anos da criação da ESMEC, 20 anos da Constituição
Federal (1988) e 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Fortaleza, 2008
NUNES, Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2007
OLIVEIRA, Ângela (Coord.). Mediação: métodos de resolução de controvérsias. São Paulo: LTr, 1999
RABEL, E. The conflict of laws: a comparative study. Ann Habor, MI: University Michicgan Law School,
1958
RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Acesso à justiça no direito processual. São Paulo: Acadêmica, 1994
SALES, Lília Maia de Morais. Estudos sobre mediação e arbitragem. Fortaleza-Rio de Janeiro: ABC, 2003
__________. Estudos sobre a efetivação do direito na atualidade: a cidadania em debate. Fortaleza:
Universidade de Fortaleza, 2005
__________. Mediação de conflitos: família, escola e comunidade. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007.
__________. Mediare: um guia prático para mediadores. 2. ed. rev., atual. e ampl. Fortaleza: Universidade
de Fortaleza, 2004.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A participação popular na administração da justiça nos países democráticos.
In: SINDICATO DOS MAGISTRADOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE PORTUGAL. A
participação popular na administração da justiça. Lisboa: Livros Horizonte, 1982. p. 83-98
__________. Justiça Popular, dualidade de poderes e estratégia socialista. In: FARIA, José Eduardo (Org.).
Direito e justiça: a fincão social do judiciário. São Paulo: Ática, 1989. p. 185-205
__________. O acesso ao direito e à justiça: um direito fundamental em questão. Coimbra: Observatório
Permanente da Justiça Portuguesa, ago. 2002
SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia. Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2008
SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direitos sociais: fundamentos, judicialização e
direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Os Direitos Fundamentais como condições para a cooperação na
deliberação democrática. Revista da AJURIS (Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul), ano XXXV, n.
10, jul. 2008.
WARAT, Luiz Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001.
WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008
58
Revista ENM
Anastácio Lima de Menezes Filho
Associação dos Magistrados do Acre
1. Introdução
Em 20 de abril de 2006 o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução
n 15, que “dispõe sobre a regulamentação do Sistema de Estatísticas do Poder
Judiciário” e dá outras providências. Trata-se de louvável esforço na busca de
indicadores para a Justiça como um todo, implantando-se parâmetros para a
aferição das várias mazelas e dos bons exemplos que permeiam o Judiciário.
Tais indicadores, por óbvio, não existem destituídos de uma finalidade. Ao
contrário, é com base nesses dados estatísticos que o planejamento estratégico
deve ser elaborado, muito embora não se desconheça que a coleta desses
mesmos dados já seja produto do planejamento. A Taxa de Congestionamento,
aliás, consubstancia-se em “Indicador Estatístico Geral Fundamental da
Litigiosidade” do Poder Judiciário, consoante Resolução CNJ no 76/2009,
art. 14, inc. II, letra b.
Pretende-se mostrar neste pequeno trabalho que a Taxa de
Congestionamento, implantada pelo art. 14, inc. IV e art. 18 da Resolução
CNJ no 15/06 é completamente imprestável para a aferição da produtividade
ou improdutividade de uma Vara Criminal. Aliás, para este tipo de Vara podeo
Revista ENM
59
TESE
Da imprestabilidade da taxa
de congestionamento para
a aferição de litigiosidade,
produtividade e eficiência
de varas criminais
se mesmo dizer que a Taxa de Congestionamento é dado estéril, sem qualquer
relevância e, pior, pode prestar desserviços ao Judiciário.
2. Fundamentação
De acordo com o que dispõe o item 2, anexo III, c/c art. 18 da Resolução
CNJ no 15/06, a Taxa de Congestionamento no primeiro grau de jurisdição é
calculada pela seguinte fórmula:
Sent1­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­º____
TC1o = 1 –­
o
CN1 + Cpj1o
Onde:
TC1o: Taxa de Congestionamento
Sent1o: Número de Sentenças no 1o Grau. Todas as sentenças proferidas
no 1o grau no período-base (ano ou semestre).
CN 1º: Casos Novos de 1o Grau. Todos os processos que ingressaram ou
foram protocolizados na Justiça Estadual de 1o Grau no período-base (ano
ou semestre), excluídas as cartas precatórias, de ordem e rogatórias recebidas,
recursos internos, execuções de sentença e as execuções fiscais sobrestadas e
suspensas, os precatórios judiciais e RPV’s (Requisições de Pequeno Valor), e
outros procedimentos passíveis de solução por despacho de mero expediente.
Cpj1o: Casos Pendentes de Julgamento no 1o Grau. Saldo residual de
processos não sentenciados na Justiça Estadual de 1o Grau no final do período
anterior ao período-base (ano ou semestre), excluídas as cartas precatórias, de
ordem e rogatórias recebidas, as execuções de sentença, os precatórios judiciais
e RPV’s (Requisições de Pequeno Valor), e outros procedimentos passíveis de
solução por despacho de mero expediente.
Por outro lado, a Resolução CNJ no 76/09, por meio de seus anexos,
instituiu duas modalidades de Taxas de Congestionamento: 1 – Taxa de
Congestionamento da Fase de Conhecimento e 2 – Taxa de Congestionamento
da Fase de Execução.
Ocorre que, na varas criminais, vários fatores influenciam negativamente os
indicadores da Taxa de Congestionamento, podendo passar a impressão de que
a unidade jurisdicional encontra-se caótica devido aos elevados números obtidos.
Isso é assim porque no cálculo da referida taxa não se leva em consideração,
por exemplo, os processos suspensos com base no art. 366 do Código de
Processo Penal (réu citado por edital). Nestes casos, os processos ficarão
60
Revista ENM
adormecidos nas prateleiras das escrivaninhas por longos anos, sem qualquer
movimentação processual, não podendo o juiz sentenciá-los. E, pior ainda,
com prescrição suspensa. No cálculo da TC, tais processos serão computados
como “casos pendentes de julgamento”, provocando impacto negativo e
indicando falsamente piora nos índices de eficiência e produtividade.
O problema também se repete nas varas criminais de pequenas comarcas, com
competência para o processamento de execuções penais. Isso porque o processo
de execução penal deve durar, geralmente, o tempo da pena imposta. Se o réu
for condenado a 20 anos de reclusão, por mais ágil que seja o juízo, por mais
diligente que seja o magistrado, o processo de execução penal tramitará na Vara
enquanto a pena não for extinta. Da mesma forma que no exemplo anterior, fixará
computado como “processo pendente de julgamento”, indicando pioras na taxa.
Outro grave vetor são os processos cujos réus foram beneficiados com as
medidas do art. 89 da Lei 9.099/95 (suspensão condicional do processo).
Nessas hipóteses o processo ficará suspenso por dois a quatro anos sem
qualquer possibilidade de sentença.
Em resumo, os processos de execução penal e os suspensos com base no art.
366 do CPP e art. 89 da Lei 9.099/95 são contabilizados, no cálculo da Taxa
de Congestionamento, como “casos pendentes de julgamento”, mas não são
passíveis de sentenciamento ou de qualquer outra medida tendente a retirá-los
do “estoque processual” que tramita na unidade jurisdicional avaliada. Como
tais ações correspondem à significativa percentagem dos chamados “casos
pendentes de julgamento”, chega-se à inevitável conclusão de que a Taxa de
Congestionamento obtida, quando calculada em varas criminais, não espelhará
a real situação de eficiência e produtividade da unidade jurisdicional. Em outros
termos, a Taxa de Congestionamento, ao menos da maneira como proposta
pelo CNJ nas Resoluções nos 15/06 e 76/09, é dado estatístico imprestável para
a aferição da eficiência e produtividade de uma Vara Criminal.
É bem verdade que o art. 18 da Resolução CNJ no 15/06 manda excluir
dos processos em estoque as “execuções de sentença”, dando margem à
interpretação no sentido de se excluírem os processos de execução criminal dos
índices que compõem a TC, muito embora a expressão, segundo nos parece,
refira-se unicamente às execuções de sentenças cíveis1. Isso pode ser facilmente
comprovado com a leitura dos anexos à Resolução CNJ no 76/09, que ao
1
Observe-se que a Resolução CNJ no 15/06 é anterior à Lei 11.232/05, que alterou o Código de Processo
Civil e pretendeu eliminar o processo autônomo de execução de sentença nos feitos cíveis.
Revista ENM
61
instituir a Taxa de Congestionamento na Fase de Execução não faz qualquer
tipo de referência aos processos de execução criminal. Já a primeira Resolução
também mandou excluir as “execuções fiscais sobrestadas e suspensas”, fazendo
revelar que os processos suspensos e sobrestados, embora criminais, também
devam merecer idêntico tratamento. Mas a exceção não constou dos anexos
da Resolução CNJ no 76/09.
Ao que parece, a Taxa de Congestionamento foi criada unicamente para
feitos cíveis.
Assim, para que a Taxa de Congestionamento sirva aos seus propósitos, não
podem ser contabilizados, quando se tratar de varas criminais, os processos de
execução penal e os suspensos com base no art. 366 do CPP e no art. 89 da
Lei 9.099/95.
3. Conclusão e proposição
Da forma como as Resoluções CNJ nos 15/06 e 76/09 orientam o cálculo,
a Taxa de Congestionamento é dado estatístico imprestável para a aferição da
litigiosidade, produtividade e eficiência de uma Vara Criminal.
Para que a Taxa de Congestionamento sirva aos seus fins, propõe-se que
não sejam contabilizados em seus cálculos – quando se tratar de varas criminais
–, os processos de execução penal e os suspensos com base no art. 366 do CPP
e art. 89 da Lei 9.099/95.
62
Revista ENM
Jorge Luiz Lopes do Canto
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
Representante do TJRS no Comitê Gestor da Autoridade Certificadora do
Estado do Rio Grande do Sul – RS
1. Resumo
Adoção do sistema de rodízio, à semelhança do instituído na Justiça
Eleitoral, para ocupar os cargos nos órgãos jurisdicionais e diretivos dos
tribunais, a fim de que a participação no órgão especial, no conselho da
magistratura e nas presidências de câmaras ou de turmas, dentre outros
grupos, decorra da alternância na antiguidade.
O sistema proposto prevê a alternância na antiguidade para ocupar os cargos
na presidência das unidades jurisdicionais e na metade do órgão especial dos
tribunais, cujas vagas são preenchidas de acordo com o tempo de exercício da
jurisdição na Corte.
Fixação do tempo de exercício na condição de mais antigo na Corte, o qual
poderia variar de dois a quatro anos, nesta última hipótese caso fosse renovada
a indicação do titular do cargo pelo órgão especial para mais um biênio.
Instituição da alternância na metade do órgão especial ocupada pela
antiguidade, bem como no exercício da presidência das unidades jurisdicional,
a fim de democratizar o Poder Judiciário, permitindo uma maior participação
de magistrados nos órgãos diretivos e jurisdicionais.
Revista ENM
63
TESE
Democratização do
Judiciário – Participação
dos magistrados nos
órgãos de gestão
2. Justificativa
A adoção de prazo para ocupar cargo diretivo no Tribunal visa democratizar
o Poder Judiciário e concitar a todos que contribuam com a sua experiência
nesta função, bem como evitar a sobrecarga de serviço aos colegas mais
antigos que ocupam estes órgãos, liberando estes para a atividade fim, ou
seja, jurisdicionar, onde a experiência se revela indispensável.
A alternância no poder serve para oxigenar as cortes com novas ideias e
visões sobre a problemática jurisdicional, indicando novos vieses e diretrizes
administrativas para os tribunais. A experiência não deve ser desprezada,
mas não pode ser petrificada como única vertente na gestão judicial.
Ademais, a adoção desse sistema permitiria aos magistrados que
recusassem a participação nos órgãos diretivos, a fim de dedicarem mais
tempo à jurisdição, atividade fim que deve ser cada vez mais valorizada,
pois a sociedade espera uma Justiça cada vez mais transparente, produtiva
e eficaz na solução dos litígios, a fim de restabelecer a paz social e atingir
o bem comum.
Adoção do sistema de rodízio, à semelhança da Justiça Eleitoral, para
ocupar os cargos nos órgãos jurisdicionais e diretivos dos tribunais, a fim
de que a participação no órgão especial, no conselho da magistratura e nas
presidências de câmaras ou de turmas, dentre outros grupos, decorra da
alternância na antiguidade.
O sistema proposto prevê a alternância na antiguidade para exercer os
cargos na presidência das unidades jurisdicionais e na metade do órgão
especial dos tribunais, cujas vagas são preenchidas de acordo com o tempo
de exercício da jurisdição na Corte.
Fixação do tempo de exercício na condição de mais antigo na Corte, o
qual poderia variar de dois a quatro anos, nesta última hipótese caso fosse
renovada a indicação do titular do cargo pelo órgão especial para mais um
biênio.
Instituição da alternância na metade do órgão especial ocupada pela
antiguidade, bem como no exercício da presidência das unidades jurisdicionais
dos tribunais, a fim de democratizar o Poder Judiciário, permitindo uma maior
participação de magistrados nos órgãos diretivos e jurisdicionais.
O sistema de rodízio no exercício de funções administrativa e judiciais
auxilia no aprendizado dos membros mais modernos dos tribunais,
limitando no tempo a investidura naqueles cargos, o que vem ao encontro
64
Revista ENM
do Estado Democrático de Direito, pois não se admite na atualidade o
exercício vitalício de cargos político-institucionais.
3. Proposta
Instituir a alternância para exercer cargos nos órgãos jurisdicionais e
diretivos dos tribunais com base no critério da antiguidade, estabelecendo
prazo para exercer a titularidade naquelas funções.
Revista ENM
65
TESE
Efetividade do acesso
à justiça: criação
obrigatória de juizados
da Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher
Higyna Josita Simões de Almeida Bezerra
Associação dos Magistrados da Paraíba (AMPB)
Pertinência à área temática de Procedimentos Judiciários (área IV)
Resumo
A tese em epígrafe propõe a criação de juizados da Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher em todos os municípios brasileiros que sejam sede de
terceira/última entrância, com vistas: a) à facilitação do acesso das vítimas à justiça;
b) ao surgimento de novas oportunidades de promoção/remoção de magistrados;
e, c) à especialização da função do juiz que passará a lidar somente com matérias
pertinentes à Lei Maria da Penha. Pugna-se, ainda, pela criação nesses juizados,
e nos já existentes, de um sistema de educação dos agressores voltado para nãoreincidência, como forma de evitar o retorno do mesmo caso à Justiça.
1. Introdução
O acesso à Justiça deve ser encarado, na contemporaneidade, como um dos
mais importantes direitos humanos, na medida em que é através desse acesso
que o indivíduo pode cobrar do Estado outros direitos dos quais é titular.
Não se pode olvidar, portanto, que a facilitação do acesso à Justiça é
66
Revista ENM
paradigma viabilizador da afirmação dos direitos humanos e corolário da
cidadania, mormente no que se refere ao acesso das pessoas consideradas
socialmente vulneráveis, que requerem maior proteção do Estado. Nesse
contexto, insere-se a mulher vítima de violência doméstica, cuja condição de
hipossuficiência no cenário social, legou-lhes a Lei no 11.340/2006, conhecida
como Lei Maria da Penha.
A Lei no 11.340/06, criada no âmbito nacional, tem o objetivo de coibir
e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher e veio atender
aos ditames estabelecidos no § 8o do art. 226 da Constituição Federal; na
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a
Mulher; na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher e, em outros tratados internacionais ratificados
pela República Federativa do Brasil.
Para que, entretanto, o estatuto protetivo em epígrafe alcance todo
o potencial para o qual foi criado, faz-se necessário que o Poder Judiciário
contribua para que esse acesso seja viabilizado na prática, através da implantação
dos juizados da Violência Doméstica Contra a Mulher. Tais juizados precisam
ser criados aos menos nos municípios que sejam sede de comarcas de terceira/
última entrância, pelas mesmas razões que qualificaram essas comarcas a
estarem inseridas na referida entrância.
2. Fundamentação
A Lei Maria da Penha em seu art. 14 dispõe que “os Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com
competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal
e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das
causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”.
Defendemos, entretanto, que o fato do legislador ter colocado o verbo
“poder” ao invés de “dever” não pode servir de empecilho para que os tribunais
de justiça do País criem os referidos juizados. O argumento da existência
de baixo número de processos em trâmite tratando de causas de violência
doméstica, não pode ser usado como escusa para a não criação dos referidos
juizados (pelo menos) nos municípios-sede de Comarcas de 3a/última
entrância. Isso por que: a) a inexistência do JVDFM1 pode ser (justamente) a
1
Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Revista ENM
67
causa motivadora da baixa demanda de processos, já que (ela própria) dificulta
o acesso à Justiça; b) as pesquisas têm demonstrado que nos locais onde houve
a criação do JVDFM o número de denúncias/processos envolvendo mulheres
vítimas de violência doméstica aumentou.
Por outra vertente, o fato de os processos continuarem sendo julgados
por varas criminais comuns dificulta o acesso à Justiça, em um tempo onde
esse acesso tem sido priorizado. Dois fatores corroboram esta assertiva: I) o
tratamento de processos sobre violência doméstica requer um juiz preparado
para lidar com essas questões, mormente por causa da peculiaridade de ter que
julgar causas cíveis e criminais relacionadas à Lei 11.340/2006; e, II) a vara
que tratar da violência doméstica contra a mulher deve está amparada com
uma equipe multidisciplinar, de modo que os processos não podem continuar
sendo julgados em varas criminais comuns.
Ademais, a criação de JVDFM2 será fator de melhoria nas condições de
trabalho dos magistrados. Primeiro, por que haverá criação de novas varas e
surgimento de oportunidades para remoção/promoção na carreira. Segundo,
por que haverá especialização da função do juiz, que se limitará a lidar com um
só sistema de regras – o da Lei no 11.340/2006 – ao invés de estar trabalhando
com o rito ordinário e o da Lei Maria da Penha ao mesmo tempo.
O próprio CNJ já reconheceu a necessidade da criação desses Juizados3,
quando editou a Recomendação no 09 que “recomenda aos Tribunais de Justiça
a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e
a adoção de outras medidas, previstas na Lei 11.340, de 9.8.2006, tendentes
à implementação das políticas públicas, que visem a garantir os direitos
humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares”.
Propomos, ainda, que mesmo que a vítima renuncie ao direito de
representação, o juiz deve fazer uma política de educação voltada para o “nunca
mais”, ou seja, vincular o agressor a durante certo lapso de tempo participar de
programa educacional desenvolvido pelo Judiciário, com vistas a que o agressor
mude o paradigma, forme consciência no sentido de não reincidir na agressão.
3. Conclusão e proposição
Nesse diapasão, conclui-se que a efetividade no acesso à Justiça passa pela
criação obrigatória de Juizados da Violência Doméstica e Familiar contra a
2
3
Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
No Brasil, apenas os Tribunais de Justiça da Paraíba e de Tocantins ainda não criaram nenhum JVDFM.
68
Revista ENM
Mulher nos municípios que abrigam comarcas de terceira/última entrância.
Nesse diapasão, propõe-se:
a) que sejam criadas pelos Tribunais de Justiça juizados da Violência
Doméstica contra a Mulher nos municípios que forem comarcas de terceira/
última entrância, como forma de facilitação do acesso à justiça; novas
oportunidades de promoção/remoção de magistrados e, especialização da
função dos juízes;
b) que os magistrados dos juizados da Violência Doméstica e Familiar
adotem sistema de educação voltada para conscientização da não reincidência,
para evitar que novos casos envolvendo as mesmas partes retornem aos átrios
do Poder Judiciário.
Revista ENM
69
TESE
Formação dos juízes
da Justiça Militar para
atuação democrática
Fernando A. N. Galvão da Rocha
Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis-MG)
1. Resumo
As escolas judiciais devem capacitar os juízes da Justiça Militar para uma atuação
democrática e independente em relação aos interesses do Poder Executivo. Sua
missão não é auxiliar as instituições militares na tarefa de preservar os princípios
organizacionais da hierarquia e da disciplina nas corporações militares.
2. Introdução
A Justiça Militar brasileira tem suas origens no sistema judiciário português
e é a mais antiga do Brasil, tendo sido criada pelo príncipe regente D. João
que instituiu o Conselho Supremo Militar e de Justiça em 1o de abril de 1808.
Nosso primeiro Tribunal teve sua denominação posteriormente alterada para
alcançar a atual denominação de Superior Tribunal Militar.
Ao tempo da instituição de nossa Justiça Militar, a Coroa Portuguesa
precisava preservar a unidade e obediência das tropas que garantiam a
dominação sobre a colônia e a defendessem dos ataques de possíveis inimigos
externos. A racionalidade que orientava a atuação dos militares e também de
seus juízes considerava as formas de intervenção do Estado frente aos seus
possíveis inimigos. Esta racionalidade da guerra inspirou e continua a inspirar
a interpretação da Justiça Militar por todo o mundo, de modo a vinculá-la
apenas às necessidades e conveniências das Forças Armadas que integram o
Poder Executivo. Nesse sentido, tornou-se clássica a afirmação de Clemenceau,
70
Revista ENM
primeiro ministro que comandou o exército francês durante a primeira grande
guerra, no sentido de que “como há uma sociedade civil fundada sobre a
liberdade, há uma sociedade militar fundada sobre a obediência, e o juiz da
liberdade não pode ser o mesmo da obediência”.1 Este pensamento, muito
próprio às necessidades da guerra, lamentavelmente, costuma ser muito
lembrado para orientar a conduta de juízes que hoje atuam em contextos
muito diversos daquele para o qual foi concebido.
É importante lembrar que na Constituição Republicana de 1891 o Tribunal
Militar brasileiro foi previsto como órgão do Poder Executivo, sendo que a
Justiça Militar somente passou a integrar o Poder Judiciário com a Constituição
de 1934. Com base no artigo 84 dessa Constituição foi possível a criação da
Justiça Militar estadual. Neste momento, não havia qualquer distinção entre
as funções institucionais das milícias federais e estaduais. O art. 167 da Carta
Magna de 1934 limitava-se a dispor que “as polícias militares são consideradas
reservas do Exército, e gozarão das mesmas vantagens a este atribuídas, quando
mobilizadas ou a serviço da União”. Nenhuma palavra sobre qual seja a missão
das instituições militares estaduais ou da Justiça Militar estadual.
Ao tempo do regime militar, a Justiça Militar da União recebeu competência
para o processo e julgamento dos crimes praticados contra a segurança nacional.
Essa atuação fez com que a sociedade brasileira vinculasse a Justiça Especializada
ao período de exceção. Pode-se ver no sítio do Superior Tribunal Militar a
preocupação que ainda hoje existe de afirmar que o tribunal militar não é um
tribunal de exceção (http://www.stm.gov.br/historia/papel_da_justica.php).
Hoje vivenciamos novos tempos. Tempos de iluminação, de liberdade
e de responsabilidade social. Superamos aqueles dias de trevas, mas ainda
precisamos reconstruir a identidade da Justiça Militar, sobretudo a estadual,
com base na premissa democrática. A recente experiência autoritária
induz a sociedade a visualizar na Justiça Militar um efetivo divórcio entre
a racionalidade militar e os princípios de justiça, vinculando a prática do
direito militar às razões instrumentais de um Estado opressor. A perspectiva é
evidentemente equivocada. Na ordem constitucional brasileira, a intervenção
militar é manifestação do poder público que deve se conciliar com o Estado
Democrático de Direito.
1
ROTH, Ronaldo João. Primeiros comentários sobre a reforma constitucional da Justiça Militar estadual
e seus efeitos, e a reforma que depende agora dos operadores do direito, Revista dos Tribunais, São Paulo, a.
95, v. 853, p. 442-483, nov. 2006, p. 446
Revista ENM
71
Por outro lado, muitos operadores do Direito Militar racionalizam de
maneira equivocada as questões da Justiça Militar, por se basearem na premissa
de que esta se presta a assegurar observância aos princípios administrativos da
hierarquia e da disciplina. Nos Conselhos de Justiça, militares sem qualquer
formação para o exercício da jurisdição são juízes do fato e do direito que lhe é
aplicável. A origem da instituição no Poder Executivo e a formação militar da
maioria de seus juízes têm produzido a errônea compreensão de que a Justiça
Militar presta-se a garantir os interesses administrativos das instituições militares.
Nesse contexto, pode-se constatar a ausência da intervenção qualificada das
escolas judiciais na formação dos juízes da Justiça Militar. No Brasil existem
87 escolas judiciais, sendo 26 destas especializadas na matéria trabalhista e 25
na matéria eleitoral. Atuando especificamente na formação de juízes militares
não há escola judicial. (http://www.enm.org.br/?secao=escolas_brasil&top=3)
3. Fundamentação
A Constituição da República estabelece que os princípios da hierarquia e da
disciplina são pilares organizacionais das instituições militares, que constituem
apenas meios para a realização de seus fins institucionais. Constituem fins das
instituições militares da União, conforme o art. 142 da CF, a defesa da pátria,
a garantia dos poderes constitucionais e a garantia da lei e da ordem. Por outro
lado, os fins das instituições militares estaduais, nos termos do art. 144 da CF,
são a preservação da ordem pública, da incolumidade e do patrimônio das
pessoas, no contexto do direito fundamental à segurança pública.
As instituições militares estaduais estão inseridas no sistema de defesa
social que foi concebido para a proteção de todo e qualquer cidadão, não
havendo lugar para inimigos. O militar estadual deve ser considerado e
tratado como cidadão, da mesma forma que se deve considerar e tratar o
civil que eventualmente venha a infringir as regras estabelecidas para a boa
convivência social. Por isso, a Justiça Militar estadual deve enfrentar o desafio
de desvincular-se da racionalidade da guerra para aprimorar cada vez mais a
sua constitucional vocação democrática.
Cabe observar que nem mesmo para as instituições militares a hierarquia
e a disciplina constituem fins. Constituem apenas meios organizacionais
peculiares que se prestam a conferir maior eficiência aos serviços públicos
prestados pelas corporações militares para o atendimento de suas missões
institucionais. Não podem os juízes da Justiça Militar, portanto, transformar
72
Revista ENM
os princípios organizacionais das instituições militares (meios) em sua missão
institucional (fins). A confusão possui importantes repercussões práticas:
dependência do Poder Judiciário em relação aos interesses das corporações
militares e parcialidade que sempre acolhe as razões do superior hierárquico.
Ao Poder Judiciário cabe a garantia dos direitos fundamentais do cidadão,
que estão expressos na Constituição e nas leis. Pensar que o Poder Judiciário,
pelos órgãos da Justiça Militar, trabalha unicamente para preservar a hierarquia
e a disciplina da tropa é transformar seus juízes em corregedores militares.
No exercício da competência criminal, especificamente nos casos de
condenação pela prática de crimes impropriamente militares, a Justiça
Militar tem a missão de viabilizar a intervenção punitiva estatal, garantindo
a observância dos direitos fundamentais do condenado. Espera-se que a
imposição de pena criminal pela prática de um crime militar, da mesma forma
que nos casos de crimes comuns, possa desestimular a ocorrência de novos
crimes. Mas, não é missão institucional da Justiça Militar aplicar medidas
disciplinares aos militares.
Nos casos em que a Justiça Militar julga pedidos de perda do posto e
patente de oficiais, ou da graduação das praças, a jurisdição não se presta a
intimidar a tropa para observar os princípios da hierarquia e da disciplina. O
exame de mérito a ser enfrentado pelo Poder Judiciário diz respeito à qualidade
dos serviços prestados pelas instituições militares, excluindo da corporação o
militar que apresenta conduta incompatível com a natureza do serviço público
a ser prestado.
Por isso, é necessário consolidar a identidade democrática da Justiça
Militar, definindo claramente a sua missão constitucional. Para tanto, as
escolas judiciais devem capacitar os juízes da Justiça Militar para o exercício
democrático da jurisdição, considerando os seus variados contextos de
aplicação (União e Estados).
4. Conclusão e proposição
Do exposto, pretende-se chegar à conclusão de que, enquanto não houver
escolas judiciais militares, as escolas judiciais federais e estaduais devem
oferecer capacitação para os juízes da Justiça Militar, enfatizando que:
no âmbito de sua competência especializada, a Justiça Militar possui a
missão institucional de resolver os conflitos de interesse que lhe são levados
pelas partes com base na Constituição e nas leis, garantindo os direitos
Revista ENM
73
fundamentais do cidadão, como todos os demais ramos do Poder Judiciário;
sua atuação deve ser absolutamente independente em relação aos
interesses administrativos das corporações militares, pois a independência do
Judiciário Militar é uma garantia de todo e qualquer cidadão; não constitui
missão institucional da Justiça Militar garantir a observância dos princípios
administrativos da hierarquia e da disciplina militares; no Código Penal
Militar apenas alguns crimes tutelam a hierarquia e a disciplina militar, de
modo que não se pode reduzir sua finalidade protetiva a estes bens.
Bibliografia
ROTH, Ronaldo João. Primeiros comentários sobre a reforma constitucional da Justiça Militar estadual e
seus efeitos, e a reforma que depende agora dos operadores do direito. Revista dos Tribunais, São Paulo, a.
95, v. 853, p. 442-483, nov. 2006.
74
Revista ENM
Fernando A. N. Galvão da Rocha
Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis – MG)
Resumo
O Poder Judiciário deve tomar as providências administrativas possíveis
para garantir o exercício pelo preso provisório de seu direito de voto.
1. Introdução
Segundo dados consolidados do Ministério da Justiça, em dezembro de
2007 havia 235.037 (duzentos e trinta e cinco mil e trinta e sete) condenados
cumprindo pena privativa de liberdade no Brasil, não incluídos neste total os
que são beneficiados por livramento condicional, e 127.562 (cento e vinte e
sete mil, quinhentos e sessenta e dois) presos provisórios.1
Por força do disposto no art. 15 da Constituição da República, os presos
condenados por decisão transitada em julgado estão com os direitos políticos
suspensos e não podem exercer o direito de sufrágio. Na verdade, não há
qualquer razão que justifique a suspensão do direito do condenado de votar
em candidatos que possam representar, no parlamento ou no Poder Executivo,
os seus interesses. No caso da suspensão dos direitos políticos que impeça a
candidatura do condenado, o direito da sociedade de ser representada e de
ter os recursos públicos administrados por pessoa que não esteja sob efeitos
1
Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Sistema Nacional de Informação Penitenciária
- InfoPen: dados consolidados. 2008, p. 34. disponível em http://www.mj.gov.br/depen/data/Pages/
MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm.
Revista ENM
75
TESE
Garantia do direito
de sufrágio aos presos
provisórios
de reprovação de natureza penal justifica a medida. No entanto, não há
interesse social que se legitime a restrição imposta ao condenado de escolher
representantes para defender seus interesses. Em especial no caso de eleitores
que estão submetidos às agruras do sistema prisional brasileiro, o direito
de escolher representantes que possam propor leis que possam melhorar
as condições carcerárias ou administradores que se comprometam com tal
objetivo avulta em importância. A impossibilidade de voto, na verdade,
evidencia uma deficiência de nosso ambiente democrático.
Quanto aos presos provisórios a Constituição da República assegura o
pleno exercício dos direitos políticos. No entanto, por questões de ordem
prática, esta significativa parcela do eleitorado brasileiro é excluída do processo
de escolha da representação popular.
Para evitar essa grave violação ao direito fundamental de participar
da escolha dos representantes populares o Poder Judiciário deve tomar as
providências administrativas que garantam ao preso provisório o exercício de
seu direito ao voto.
2. Fundamentação
Na preparação de uma eleição o Poder Judiciário precisa definir com
antecedência quem serão os eleitores inscritos em cada seção eleitoral, já
que ainda não é possível viabilizar administrativamente o voto dos eleitores
que se encontram em trânsito. Com a tecnologia do cadastro de eleitores
por características biométricas e a informatização nacional do sistema
eleitoral será possível o exercício do voto do eleitor que se encontre fora
de seu domicílio eleitoral. O Tribunal Superior Eleitoral estima que isso
possa acontecer nos próximos 10 anos (http://www.tse.gov.br/downloads/
biometria/index.htm). Por enquanto, a Lei no 9.504/97, em seu art.
91, determina que “nenhum requerimento de inscrição eleitoral ou de
transferência será recebido dentro dos cento e cinqüenta dias anteriores à
data da eleição”.
Algumas dificuldades administrativas se apresentam para colher o voto do
preso provisório. Dentre as quais podem se destacar:
a) é incerto que o eleitor continue preso no dia da eleição;
b) o eleitor pode estar fora de seu domicílio eleitoral;
c) o eleitor pode ser preso após o prazo estabelecido pela Justiça para a
transferência de domicílio eleitoral; e
76
Revista ENM
d) se o eleitor votar na unidade prisional e vier a ser solto no dia da eleição
poderá votar novamente em sua seção eleitoral.
Alguns dos problemas administrativos para a colheita do voto do preso
provisório podem ser superados com a tecnologia que hoje já nos é disponível.
Nos casos em que o preso provisório encontre-se detido em unidade
prisional situada em seu domicílio eleitoral a colheita de seu voto exige superar
menores problemas. Pode a Justiça Eleitoral colher os votos em separado na
própria unidade prisional, sem a necessidade de instituir uma seção especial
e para ela transferir todos os eleitores que ali se encontrem provisoriamente
presos. A colheita do voto em separado pode ser viabilizada por simples
informação ao cartório eleitoral, que retira o nome do eleitor da lista de
votação de sua seção eleitoral e o inclui em lista separada para utilização na
unidade prisional. Se o eleitor for solto antes do dia da eleição, não havendo
tempo hábil para incluir seu nome novamente na lista que será utilizada em
sua seção eleitoral, poderá votar na unidade prisional.
Com alguma preparação administrativa também é possível garantir o
direito de voto dos presos que não se encontrem em seu domicílio eleitoral. De
qualquer forma, a dificuldade tecnológica que hoje pode inviabilizar a colheita
do voto de quem se encontre provisoriamente preso fora de seu domicílio
eleitoral não justifica deixar de garantir o voto de todos os presos provisórios
que se encontrem em unidades prisionais situadas em seu domicílio.
3. Conclusão e proposição
Do exposto, pretende-se chegar às seguintes conclusões:
O Poder Judiciário deve tomar todas as providências administrativas
possíveis para garantir que o preso provisório exerça o seu direito de voto;
No caso de preso provisório que se encontre em unidade prisional situada
em seu domicílio eleitoral, a colheita do voto pode se dar em separado, sem
a necessidade da instituição de uma seção eleitoral especial, excluindo-se o
nome do preso/eleitor da lista a ser utilizada em sua seção eleitoral;
Neste caso, se o eleitor for solto antes do dia da eleição e não houver tempo
hábil para incluir seu nome novamente na lista que será utilizada em sua seção
eleitoral poderá votar na unidade prisional.
Revista ENM
77
TESE
Gestão de ações
de massA
João Ricardo dos Santos Costa
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Criação de um órgão de monitoramento e diagnóstico no Poder Judiciário para
identificação de macrolides, visando a uma atuação preventiva às denominadas
ações de massa, decorrentes de violações que capturam vultuosos recursos
financeiros da sociedade, causando severo abalo ao desenvolvimento econômico.
1. Ementa
As ações repetitivas têm sido um dos principais fatores de congestionamento
processual. O Poder Judiciário ainda não possui instrumentos preventivos
para atender a demanda decorrente de violações de direitos que atingem uma
coletividade. Nos casos de violações de individuais-homogêneos, o litígio,
geralmente envolvendo alguma forma de exploração econômica, acaba sendo
institucionalizado e a resposta jurisdicional fica muito limitada aos que ingressam
individualmente. Um alto percentual de vítimas não é atendido e as poucas que
acessam o sistema judicial contribuem com o congestionamento processual.
A criação nos tribunais de um organismo direcionado ao monitoramento
dessa demanda, poderia contribuir substancialmente para estimular de forma
preventiva o enfrentamento pela via do processo coletivo, com solução integral
da macrolide, além de possibilitar o conhecimento dos efeitos econômicos da
violação.
2. Justificativa
Com a diversificação das relações de consumo, as demandas aumentaram
assustadoramente, comprometendo farta parcela do orçamento do Judiciário
78
Revista ENM
e, mais grave, o funcionamento deste ente estatal, gerando um obstáculo
intransponível ao direito fundamental do acesso à justiça.
Já não se identifica qualquer racionalidade no fato de um juiz julgar milhares
de vezes o mesmo litígio quando dispomos de instrumentos processuais, como
a ação coletiva, no qual, no caso de reconhecimento do direito postulado, se
beneficia toda a comunidade vitimada, além de neutralizar o enriquecimento
indevido da parte violadora do direito. Isso sem ocupar milhões de verbas
orçamentárias e sem inviabilizar o sistema judicial.
É difícil, senão dramática, a situação da Justiça brasileira em virtude da
explosão da demanda judicial, notadamente nas questões que envolvem os
bancos e concessionárias de serviços públicos, situação que vem exigindo cada
vez mais do Judiciário meios processuais adequados para seu enfrentamento.
O processo deve ser entendido como forma de viabilizar o acesso à justiça.
Como tal, deve ser instrumentalizado, objetivando alcançar a satisfação do
cidadão que busca efetivar um direito violado. Esse sentido teleológico do
processo afeta a interpretação no emprego dos mecanismos processuais,
no momento em que roga pela influência de parâmetros valorativos que
privilegiam a administração da justiça. Aqui reside o ponto que pretendo
chegar para justificar a imperiosa necessidade de abolirmos uma via de solução
de conflitos que se mostra tão ineficaz quanto perniciosa ao funcionamento do
Judiciário e ao desenvolvimento, aqui considerado na expressão dos Direitos
Humanos.
O excedente de demandas desnecessárias, numa simples lógica matemática,
é proporcional aos litígios que ficam excluídos da apreciação judicial. Assim,
a demanda produzida desnecessariamente é uma excrescência por dupla via,
por reprimir a demanda real por justiça e por consumir os parcos recursos do
Poder Judiciário.
A criação de instrumentos que facilitem a percepção prematura de uma
avalanche de ações repetitivas e uma avaliação de seus reflexos danosos à
sociedade, poderá atuar como um mecanismo de repressão às praticas ilícitas
que atentam contra os direitos econômicos e obstaculizam o desenvolvimento.
O monitoramento e o diagnóstico dos efeitos destes fenômenos é o que se está
propondo.
Revista ENM
79
TESE
Gestão do Poder
Judiciário – Juiz
administrador
Ney Wiedemann Neto
Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e integrante do Centro de
Pesquisa Judiciário, Justiça e Sociedade da Escola Superior da
Magistratura da Ajuris
1. Resumo
Para que o magistrado, enquanto gerente dos processos de trabalho do seu
gabinete, possa tomar decisões estratégicas para aperfeiçoar a sua prestação
jurisdicional, ele necessita estar amparado em fatos e dados.
Os tribunais devem desenvolver ações visando aprimorar a sua “Inteligência
de Negócios”, ou, na língua inglesa, “Business Intelligence”, que consiste
em obter relatórios pormenorizados através de programas de informática
específicos que coletam informações dos bancos de dados das organizações.
Não há dúvida que se trata de importante ferramenta para auxiliar a tomada
de decisões pelo gerente do negócio, que será mais guiado por dados e fatos do
que por sua mera “intuição”.
2. Justificativa
De acordo com Marcelo A. Bombarda1, o termo Business Intelligence (BI)
refere-se a uma ferramenta de gestão utilizada para medir desempenho, fazer
projeções futuras e tomar decisões. Acrescenta o autor, em artigo publicado
em página especializada na Internet, o seguinte:
BOMBARDA. Marcelo A. Inteligência em Negócios. Disponível em <http://www.artigonal.com/tec-deinformacao-artigos/business-intelligence-bi-inteligencia-em-negocios-535676.html>. Acesso em 11 mar.
2009.
1
80
Revista ENM
Trazendo para nossa realidade, hoje em dia muitas empresas de pequeno e
médio porte estão implantando esta tecnologia de ferramenta de decisões.
Praticamente toda a empresa necessita de um sistema integrado,
onde todas as informações possam ser armazenadas em um
único lugar, facilitando, agilizando e integrando assim todos os
departamentos de uma organização. Mas somente a integração
para nosso mundo de hoje não basta, precisamos de inovação,
controle, e poder de decisões mais certeiras para sair na frente do
mercado globalizado.
O BI é um método de análise, integrando informações concretas
retiradas do banco de dados, onde se mostra os desempenhos de
praticamente todas as áreas da organização. Podendo ser configurado
para cada departamento ou não.
Sendo este de pronta vista, não depende de muitos esforços
para visualização dos resultados, sendo projetados na forma de
gráficos, sejam eles de formas configuráveis quaisquer. Quem
tem as habilidades para trabalhar com ele, pode facilmente
captar informações de como está sua empresa, ou seja, ele pode
fornecer um “raio-X” da organização naquele momento em que
foi solicitado à base de dados os resultados pedidos, avaliando e
tomando importantes decisões como, aumento de investimentos
em parques de máquinas, ou mesmo chegando a identificar possíveis
investimentos na área de qualidade.
Em termos de “Inteligência de Negócios”, os tribunais podem desenvolver
muitos aplicativos visando disponibilizar dados gerenciais aos magistrados.
Além de relatórios apresentados na forma de tabelas, os dados poderiam ser
estratificados em gráficos de vários formatos, cuja visualização mais amigável
facilita a análise e decisão a respeito.
Alguns desses indicadores deveriam ser individuados pelo Tribunal para
fornecer aos magistrados dados úteis à administração de seu trabalho. Entre
eles, poderíamos destacar a taxa de congestionamento de cada gabinete, a
carga de trabalho de cada gabinete e a taxa de recorribilidade de cada gabinete
(interna e externa).
Importa destacar que a tomada de decisões de gestão do gabinete deve
sempre estar amparada em dados e fatos, não apenas na intuição do magistrado
ou mera opinião sobre o que está acontecendo. Esses dados, às vezes, já são
Revista ENM
81
disponibilizados com algum indicador. Outras vezes, não há o indicador
calculado pelo Tribunal, mas os números permitem que seja feita a devida
análise e valoração dos dados, como a própria taxa de congestionamento do
gabinete, por exemplo, a amparar a tomada de decisões sobre o que fazer.
3. Proposta
Que os tribunais desenvolvam ações concretas para aprimorar a sua
“Inteligência de Negócios”, por seus departamentos de informática, a fim de
ampliar os relatórios e os dados estatísticos disponibilizados aos magistrados
para a gestão da sua prestação jurisdicional.
82
Revista ENM
Vanderlei Deolindo
Juiz de Direito do 1o Juizado da 1a Vara Cível de São Leopoldo – RS,Vice-Presidente
Cultural da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul e membro do Centro de
Pesquisa Judiciário, Justiça e Sociedade da Escola Superior da Magistratura da Associação
dos Juízes do Rio Grande do Sul – Ajuris
1. Ementa
Afirmação da responsabilidade das instituições de ensino jurídico do
País no processo de mudança da cultura litigiosa para a conciliatória como
alternativa fundamental para diminuir a crescente demanda judiciária, que ao
fim e ao cabo termina por comprometer a eficiência do Poder Judiciário no
atendimento das demandas em geral. Ação política da AMB, de suas associações
filiadas e da Magistratura no sentido de contribuir para o desenvolvimento da
cultura voltada para o consenso extrajudicial e judicial.
2. Justificativa
A demanda judicial vem aumentando geometricamente nos últimos anos em
todo o Brasil. São várias as causas, desde a consagração de uma série de direitos
fundamentais elevados a garantias constitucionais, que positivamente estimulam o
exercício da cidadania, passando pela facilitação do acesso à Justiça em decorrência
do elevado número de advogados atuantes no mercado e entendimento favorável
à universalização do acesso à Justiça por meio do instituto da justiça gratuita, até
o comprometimento da Magistratura nacional com a concretização dos direitos
consagrados na Constituição e nas leis, em favor da Sociedade.
Revista ENM
83
TESE
Medidas a serem adotadas
pela AMB junto às
instituições de ensino
jurídico do país
Soma-se a tanto a cultura adversarial, que faz parte do meio social
moderno, desapegado de um dos princípios fundamentais da humanidade:
a solidariedade, que ainda é exceção, ausente, muitas vezes, até no âmbito
familiar, onde preponderam individualismos, estendendo-se nas relações entre
vizinhos e seguindo adiante no tecido social. Essa cultura de individualismo,
que se transforma em conflitos de interesses, de confrontamento, cuja análise
interessa a outros setores da ciência, como a Filosofia e Sociologia, vem
originando a litigiosidade judicial, que também é desenvolvida no âmbito
das Faculdades de Direito. Os acadêmicos, em regra, são talhados ao apego
técnico-processual, com no mínimo quatro cadeiras/matérias de Processo
Civil, mais três de Processo Penal, isso quando ainda não são precedidas de
outras introdutórias às respectivas áreas processuais. São raras as faculdades
que desenvolvem matérias voltadas para o desenvolvimento de técnicas de
conciliação e mediação, passando por arbitragem, que também se constitui
numa importante via alternativa de resolução de conflitos.
Essa cultura adversarial se projeta para o âmbito profissional dos
futuros advogados, promotores e juízes. Em consequência, salvo exceções,
não se desenvolve com expressão o costume entre os advogados de tentar
uma composição extrajudicial antes de ingressar em juízo. Não se tem
presente que o primeiro “profissional” a atuar no conflito social é o próprio
advogado, e passa por ele a possibilidade de dirimir o conflito antes mesmo
de adentrar no sistema judicial. Ultrapassada essa fase sem o esgotamento
dessa alternativa, aportam as denominadas ações judiciais, que com o apoio
da informática se apresentam volumosas e recheadas de teses e pedidos. É
muito comum os profissionais deixarem para conversar acerca do processo
somente em audiência, causando perplexidade quando se nota que sequer
trocaram uma ligação telefônica para tentarem um acordo. Não se pode
deixar de considerar que honorários advocatícios também podem ser
cobrados no âmbito extrajudicial, com base em disposições expressas na lei.
E para que não fique parecendo apenas crítica aos advogados, também merece
inclusão nesse rol os demais operadores do Direito, como referidos acima, que
nem sempre apresentam apego à cultura da conciliação, que não priorizam
audiências, ou que as realizam sem o empenho e capacitação adequados, não
obstante o sempre elevado número de processos que esgotam as pautas.
Se é difícil atuar com eficácia na origem familiar dos conflitos, é preciso
atuar na base de formação acadêmica e com essa fonte formadora, repensar o
84
Revista ENM
exercício do direito, fazendo com que a preponderância da cultura adversarial
seja relativizada pela cultura consensual. Para tanto, respeitosamente,
conclui-se propondo, então, debate e aprovação da ementa pelos eminentes
congressistas, visando ao desenvolvimento de atuação política da AMB, das
associações filiadas e da Magistratura junto aos demais operadores do Direito
nas respectivas comarcas e, no caso, com ênfase no âmbito acadêmico. Palestras,
contatos, artigos, entrevistas, manifestações, enfim, o desenvolvimento de ações
que apesar de não aparecerem nos mapas mensais de produção da unidade
judiciária, constituem-se de fundamental importância para o aperfeiçoamento
da Justiça brasileira.
Revista ENM
85
TESE
Nas soluções
autocompositivas o juiz
não está limitado, nem
deve ficar adstrito, ao
pedido e à contestação
Roberto Portugal Bacellar
Juiz de Direito – Poder Judiciário do Paraná
1. Resumo
O Poder Judiciário, com sua estrutura atual e foco nos modelos
adversariais com solução heterocompositiva, trata apenas superficialmente da
conflitualidade social, dirimindo controvérsias, mas nem sempre resolvendo
o conflito. Essa visão de holofote (restrita aos limites do pedido) não enxerga
os verdadeiros interesses e, por isso, se afasta do postulado maior, princípio
e finalidade do direito, do processo e do próprio Poder Judiciário que é a
pacificação social.
O holofote ao iluminar a lide processual, deixa de iluminar fatos, argumentos,
justificativas e razões que na perspectiva do jurisdicionado representariam a
verdadeira Justiça (essa sim considerada a justa composição do conflito).
2. Fundamentação
No modelo adversarial o raciocínio é puramente dialético. De um conflito
entre pessoas, analisado sob o prisma da lide em disputa, resultam sempre
vencedores e vencidos. Por isso o juiz fica adstrito aos limites da inicial e da
contestação.
86
Revista ENM
Nas soluções heterocompositivas o juiz só pode decidir a partir de premissas
inafastáveis, entre as quais é possível citar as que envolvem os estreitos limites
da lide processual, o procedimento legal e os princípios informativos do
processo. Não pode, por exemplo, decidir citra, extra ou ultra petita; decidirá a
lide nos limites em que foi proposta (verdade formal dos autos), não podendo
proferir decisão diversa mesmo que perceba, no caso, o efetivo interesse das
partes de ampliar o conhecimento da matéria (verdade real dos fatos).
Para satisfazer integralmente os interesses dos jurisdicionados é preciso
investir na adoção de um modelo consensual que amplie o foco, busque visão
holística com raciocínio exlético.
No modelo adversarial, segundo o qual se pautou a estrutura processual
brasileira, o raciocínio é puramente dialético. De um conflito entre pessoas,
analisado sob o prisma da lide em disputa, resultam sempre vencedores e
vencidos.
Assim, em parcela significativa dos casos, o Poder Judiciário não soluciona
o conflito, não resolve ou dá atenção aos verdadeiros interesses das partes,
mas apenas extingue, com ou sem julgamento de mérito, a “lide processual”
(aquela descrita no processo judicial e materializada na petição inicial e na
contestação).
Distingue-se, portanto, aquilo que é trazido pelas partes ao conhecimento
do Poder Judiciário e que a solução heterocompositiva deve focar daquilo que
efetivamente é interesse das partes (verdade real dos fatos) e que a solução
autocompositiva necessariamente tem de ampliar.
Durante muitos anos, talvez inspirados em Carnelutti, afirmamos que o
objetivo do processo ou da própria jurisdição é a “justa composição da lide”
– aquela porção circunscrita do conflito que a demanda polarizada evidencia.
Descabe ao magistrado, na técnica processual, conhecer de qualquer fato,
argumento, justificativa ou razão que não constituam objeto do pedido,
competindo-lhe apenas decidir a lide nos limites em que foi proposta. Assim,
continuamos a repetir “o que não está nos autos de processo não está no mundo”!
Se isso é correto em relação aos métodos adversariais e heterocompositivos
em que devemos nos ater a uma verdade formal dos autos, isso não é adequado
nos métodos consensuais e autocompositivos onde a maior preocupação deve
ser dirigida à verdade real dos fatos.1
SOUZA NETO, João Batista de Mello e. Mediação em juízo: abordagem prática para a obtenção de um
1
Revista ENM
87
Enquanto nos modelos adversariais e nos processos heterocompositivos
(arbitragem e julgamento) há sempre vencedores e vencidos (ganha/perde),
nos modelos consensuais e nos processos autocompositivos (negociação,
mediação e conciliação) buscam-se soluções vencedoras (ganha/ganha).
Se mantivermos o raciocínio adverdarial, puramente dialético e a análise
do conflito circunscrito aos limites da lide processual, continuaremos a ter
perdedores.
Vimos que a finalidade do Poder Judiciário é a pacificação social,
e se esse é um valor a ser buscado, independentemente do processo e do
procedimento desenvolvidos para a resolução dos conflitos no âmbito do
que se denomina monopólio jurisdicional, cabe a ele incentivar processos e
mecanismos consensuais e autocompositivos que mais aproximem o cidadão
da verdadeira justiça.
A verdadeira justiça só se alcança quando os casos “se solucionam”2
mediante consenso. Não se alcança a paz resolvendo só parcela do problema
(controvérsia); o que se busca é a pacificação do conflito com a solução de
todas as questões que envolvam o relacionamento entre os interessados.
Para o alcance da pacificação o raciocínio deve ser exlético3 e o conflito
deve ser analisado sempre na sua integralidade com visão holística, global e
transdisciplinar4 abrangendo todos os prismas relacionais a fim de que possam
resultar apenas vencedores (ganha/ganha).
Para satisfazer integralmente os interesses dos jurisdicionados é preciso
investir na adoção de um modelo consensual que amplie o foco, busque visão
holística com raciocínio exlético.
Analisando apenas os limites da “lide processual”, na maioria das vezes
não há satisfação dos verdadeiros interesses do jurisdicionado. Em outras
palavras, pode-se dizer que somente a resolução integral do conflito (lide
sociológica – verdadeiros interesses) conduz à pacificação social; não basta
acordo justo. São Paulo: Ed. Atlas, 2000. p.47
2
Não é preciso solucioná-los por meio de decisões.
3
A exlética permitiria segundo Edward de Bono tirar de uma situação o que ela tem de válido – não importa
de que lado se encontre. Maury Rodrigues da Cruz e Nádia Bevilaqua Martins igualmente descrevem
aplicações exléticas. Maury Rodrigues da Cruz prefere a grafia eslético ou eslética.
4
O termo transdisciplinar foi forjado por Jean Piaget, num encontro sobre a interdisciplinaridade promovido
pela Organização da Comunidade Européia (OCDE), em 1970. Segundo Piaget “Enfim, na etapa das
relações interdisciplinares, pode-se esperar que se suceda uma fase superior que seria ‘transdisciplinar’, a
qual não se contentaria em atingir interações ou reciprocidades entre pesquisas especializadas, mas situaria
tais ligações no interior de um sistema total, sem fronteiras estáveis entre as disciplinas” (WEIL, Pierre.
Rumo à nova transdisciplinaridade. Sistemas abertos de conhecimento. São Paulo: Summus, 1993, p.39)
88
Revista ENM
resolver a lide processual – aquilo que foi trazido pelos advogados ao processo
– se os verdadeiros interesses que motivaram as partes a litigar não forem
identificados e resolvidos.
3. Conclusão objetiva
A visão restrita da lide e o raciocínio puramente dialético são importantes
para as soluções heterocompositivas. O mesmo raciocínio não é adequado
para os modelos consensuais e processos autocompositivos.
Nos modelos consensuais e nos processos autocompositivos como a
conciliação e a mediação, buscam-se soluções vencedoras (ganha/ganha) e por
isso o juiz não está adstrito aos limites da lide processual.
Revista ENM
89
TESE
Nos modelos consensuais
autocompositivos
(conciliação, mediação)
não há produção
de provas
Roberto Portugal Bacellar
Juiz de Direito – Poder Judiciário do Paraná
Resumo
No Brasil há um ensino jurídico moldado pelo sistema da contradição
(dialética) que forma guerreiros, profissionais combativos e treinados para a
guerra, para a batalha, em torno de uma lide, onde duas forças opostas lutam
entre si, colhem provas de suas versões e, ao final, só pode haver um vencedor
(modelo heterocompositivo). Todo caso tem dois lados polarizados. Quando
um ganha, necessariamente o outro tem de perder.
No modelo autocompositivo, de regra confidencial e sigiloso, não haverá
preocupação com provas e se a tentativa de conciliação resultar infrutífera
nada do que foi conversado será consignado ou repassado ao magistrado.
1. Fundamentação
O atual sistema processual brasileiro incentiva e estimula (a qualquer tempo),
mas também ao início da instrução e julgamento (solução heterocompositiva),
a tentativa de conciliação entre as partes (solução autocompositiva). Vimos
também ser costume do operador do Direito já armado para a batalha, segundo
o prisma heterocompositivo, buscar a todo o custo os elementos de prova que
90
Revista ENM
fortaleçam a sua posição no processo. Essa premissa é verdadeira para o processo
heterocompositivo: onde serão necessárias todas as provas a fim de que o juiz
possa decidir. Quando se trata de processo autocompositivo (onde a solução é
dos interessados), não deve haver qualquer preocupação com produção de prova
e a doutrina autocompositiva recomenda como fundamental o sigilo sobre tudo
que for conversado. Caso os interessados não encontrem uma solução, esquecese o que foi tratado na fase autocompositiva e aí sim cada parte vai procurar
produzir provas que demonstrem a veracidade de suas alegações. Os operadores
do Direito no Brasil muitas vezes pretendem que o teor da conversa no ambiente
autocompositivo seja utilizado como prova e requerem fique consignado no
termo propostas, confissões, desabafos que possam fortalecer seus argumentos
jurídicos. Fecho parênteses que teve o objetivo de registrar a incongruência, neste
ponto específico, entre a doutrina jurídico-processual voltada para o processo
judicial heterocompositivo e a doutrina de visão interdisciplinar/transdisciplinar
que fundamenta o processo autocompositivo.
2. Conclusão objetiva
Quando se trata de processo autocompositivo (onde a solução é dos
interessados), não deve haver qualquer preocupação com produção de prova e
sim com a pacificação.
Se a paz é a razão da existência do Poder Judiciário, só quando ela não for
alcançada diretamente pelas partes em uma negociação, conciliação ou mediação
é que se tornará necessária a solução heterocompositiva, onde a busca de provas
é necessária para instruir a decisão do juiz nos autos de processo.
Formar prova ou tentar registrar o que for consignado na audiência de
conciliação é contraproducente e inadequado ao modelo autocompositivo e
consensual.
Revista ENM
91
TESE
O princípio da separação
dos poderes e o regime
previdenciário dos
magistrados
Cláudio Luís Martinewski
Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – Ajuris
Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul – Centro de Pesquisa Judiciário,
Justiça e Sociedade
Resumo
A vedação à existência de mais de uma unidade gestora do regime
previdenciário em cada ente estatal, prevista no art. 40, § 20, da Constituição
Federal1, com a redação dada pela EC no 41, de 19.2.03, não subtraiu do Poder
Judiciário qualquer parcela de sua independência, decorrente do princípio da
separação dos poderes (CF, art. 2o 2) e das garantias institucionais (CF, art.
99 3) e funcionais (CF, art. 95 e parágrafo único4), entre as quais se encontra
1
§ 20. Fica vedada a existência de mais de um regime próprio de previdência social para os servidores
titulares de cargos efetivos, e de mais de uma unidade gestora do respectivo regime em cada ente estatal,
ressalvado o disposto no art. 142, § 3o, X.
2
Art. 2o. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário.
3
Art. 99. Ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira.
4
Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:
I – vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda
do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de
sentença judicial transitada em julgado;
II – inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII;
III – irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4o, 150, II, 153, III, e
153, § 2o, I.
Parágrafo único. Aos juízes é vedado:
I – exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério;
II – receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo;
III – dedicar-se à atividade político-partidária.
92
Revista ENM
o poder de iniciativa privativo do processo legislativo em relação ao Estatuto
da Magistratura no qual se inclui a questão relativa à aposentadoria dos
magistrados (CF, art. 93, VI 5) e o autogoverno dos Tribunais(CF, art. 96 6).
A previsão constante da parte final do inciso VI, do art. 93, da CF,
no sentido de observância do disposto no art. 40 da CF, não autoriza o
deslocamento da competência da administração, gerenciamento, concessão,
pagamento e manutenção da aposentadoria de seus membros para órgão do
Poder Executivo, em face do princípio da separação dos poderes e das garantias
constitucionais de independência.
Nesse sentido, afronta o princípio da separação dos poderes e as garantias
constitucionais de independência institucionais e funcionais do Poder Judiciário,
concretizados no poder de iniciativa exclusivo do Supremo Tribunal Federal de
encaminhar projeto de lei complementar (CF, art. 93, VI), a legislação federal ou
estadual que, não observando a referida iniciativa, versar sobre a administração,
o gerenciamento, a concessão, o pagamento, a revisão e a manutenção do
benefício previdenciário de aposentadoria dos magistrados.
IV – receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas
ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei
V – exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento
do cargo por aposentadoria ou exoneração.
5
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da
Magistratura, observados os seguintes princípios:
(...)
VI – a aposentadoria dos magistrados e a pensão de seus dependentes observarão o disposto no art. 40.
6
Art. 96. Compete privativamente:
I – aos tribunais:
a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo
e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos
órgãos jurisdicionais e administrativos;
b) organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados, velando pelo
exercício da atividade correicional respectiva;
c) prover, na forma prevista nesta Constituição, os cargos de juiz de carreira da respectiva jurisdição;
d) propor a criação de novas varas judiciárias;
e) prover, por concurso público de provas, ou de provas e títulos, obedecido o disposto no art. 169, parágrafo
único, os cargos necessários à administração da Justiça, exceto os de confiança assim definidos em lei;
f ) conceder licença, férias e outros afastamentos a seus membros e aos juízes e servidores que lhes forem
imediatamente vinculados;
II – ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder
Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169:
a) a alteração do número de membros dos tribunais inferiores;
b) a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem
vinculados, bem como a fixação do subsídio de seus membros e dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores,
onde houver;
c) a criação ou extinção dos tribunais inferiores;
d) a alteração da organização e da divisão judiciárias;
Revista ENM
93
1. Fundamentação
Com base no substrato normativo do art. 40, § 20, da Constituição
Federal, e instados pelo Ministério da Previdência Social, por intermédio de
atos infralegais (Portaria no 4.992/99, art. 10 e parágrafo único, de 5.2.99,
do Ministro da Previdência e Assistência Social7, e Orientação Normativa no
01, art. 2o, V, de 23.1.7, do Secretário de Políticas de Previdência Social8),
diversos governadores estaduais encaminharam projeto de lei ou projeto de
lei complementar às respectivas Assembleias Legislativas reformatando os
seus institutos previdenciários ao modelo de gestor único preconizado pelo
referido ministério.
Neles introduziram a previsão de que a administração, o gerenciamento,
a concessão, o pagamento e a manutenção da aposentadoria dos magistrados
passariam a ser efetivados pela referida unidade gestora, normalmente
autarquia vinculada ao Poder Executivo, cujo dirigente máximo, como regra,
é nomeado tendo em vista o critério exclusivamente político-partidário.
A referida inclusão, no entanto, é inconstitucional, por violação formal e
material da Constituição Federal.
Com efeito, corolário do princípio da separação dos poderes (CF, art. 2o),
cujo valor constitucional é absoluto, decorrente da cláusula pétrea (CF, art.
60, § 4o, III 9), e das garantias institucionais (CF, art. 99) e funcionais (CF, art.
95 e parágrafo único) do Poder Judiciário, compete privativamente ao STF
deflagrar o processo legislativo em relação à aposentadoria dos magistrados
(CF, art. 93, VI),
Não há espaço, outrossim, com base na remissão constante na parte final
do enunciado do inciso VI do art. 93 ao art. 40, ambos da CF, para pretender7
Art. 10. Fica vedada a existência de mais de um regime próprio de previdência social dos servidores
públicos, e de mais de uma unidade gestora do respectivo regime próprio de previdência social em cada ente
estatal, salvo disposição em contrário da Constituição Federal.
Parágrafo único. Entende-se como unidade gestora de regime próprio de previdência social, aquela com a
finalidade de gerenciamento e operacionalização do respectivo regime.
8
Art. 2o. Para os efeitos desta Orientação Normativa, considera-se:
(...)
V – unidade gestora: a entidade ou órgão integrante da estrutura da administração pública de cada ente
federativo que tenha por finalidade a administração, o gerenciamento e a operacionalização do RPPS,
incluindo a arrecadação e gestão de recursos e fundos previdenciários, a concessão, o pagamento e a
manutenção dos benefícios;
9
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
(...)
§ 4o – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
(...)
III – a separação dos Poderes;
94
Revista ENM
se que a vedação à existência de mais de uma unidade gestora em cada ente
estatal desconstitua as competências próprias da autonomia e gestão dos
tribunais, entre os quais o de dispor sobre a administração, gerenciamento,
concessão, pagamento e a manutenção das aposentadorias dos magistrados.
É próprio da constituição do Estado Democrático de Direito um
Poder Judiciário, institucionalmente, e seus magistrados, individualmente,
independentes.
Sem a existência das garantias constitucionais de independência não há
Poder Judiciário e sem Poder Judiciário não há garantia da efetividade dos
direitos e das liberdades públicas e preservação das garantias fundamentais.
A importância de tal valor constitutivo do próprio Estado de Direito
foi construído em cima de penosas experiências para a humanidade, sendo,
portanto, histórico nas democracias ocidentais.
Afirmam-na, à unanimidade, a doutrina não só nacional como estrangeira,
como exemplificativamente se transcreve:
Na verdade, o fator que compatibiliza o Poder Judiciário com o
espírito da democracia (no sentido que Montesquieu conferiu
ao vocábulo) é um atributo eminente, o único capaz de suprir a
ausência do sufrágio eleitoral: é aquele prestígio público, fundado
no amplo respeito moral, que na civilização romana denominava-se
auctoritas. Ora, esta, numa democracia, funda-se essencialmente na
independência e na responsabilidade com que o órgão estatal em
seu conjunto, e os agentes públicos individualmente considerados,
exercem as funções políticas que a Constituição, enquanto
manifestação original de vontade do povo soberano, lhes atribui.
Se quisermos, portanto, verificar quão democrático é o Poder
Judiciário no Brasil, devemos analisar a sua organização e o
seu funcionamento segundo os requisitos fundamentais da
independência e da responsabilidade.
(....)
Diz-se que o Poder Judiciário em seu conjunto é independente
quando não está submetido aos demais Poderes do Estado.10
10
COMPARATO, Fábio Konder. O Poder Judiciário no regime democrático, Revista Cidadania e Justiça,
ano no 7, vol. 13, 1o sem. 2004, páginas 7-8.
Revista ENM
95
Aos órgãos jurisdicionais, consoante vimos, incumbe a solução dos
conflitos de interesses, aplicando a lei aos casos concretos, inclusive
contra o governo e a administração. Essa elevada missão, que interfere
com a liberdade humana e se destina a tutelar os direitos subjetivos,
só poderia ser confiada a um poder do Estado, distinto do Legislativo
e do Executivo, que fosse cercado de garantias constitucionais de
independência. Essas garantias assim se discriminam: (1) garantias
institucionais, as que protegem o Poder Judiciário como um
todo, e que se desdobram em garantias de autonomia orgânicoadministrativa e financeira; (2) garantias funcionais ou de órgãos,
que asseguram a independência e a imparcialidade dos membros do
Poder Judiciário, previstas, aliás, tanto em razão do próprio titular
mas em favor ainda da própria instituição11.
“Um Judiciário independente” – há muito referiu William O. Douglas,
célebre Juiz norte-americano – “é condição sine qua non para uma sociedade livre.
Onde ficam sujeitos ao Poder Executivo ou ao Legislativo, os juízes tornam-se
instrumentos de expressão dos critérios ou caprichos dos detentores do poder”12.
A independência da magistratura está na própria essência do Poder
Judiciário. E tão marcante é êsse princípio que Story dizia que a
magistratura deve ser organizada como se fosse uma instituição
fora do próprio Estado (“as it were something exterior to the state”)
(apud Pedro Lessa, “Do Poder Judiciário”, 1915, pág. 4), o que sob
outra forma, repete Radbruch, ao mostrar que a independência
do juiz é a consagração do império do Direito em face do próprio
Estado (Filosofia do Direito, tradução portuguesa, 1034, pág. 255)13
Retirar do Poder Judiciário a competência de expedir a ato de aposentadoria
de seus membros e os demais atos correlatos, atinge diretamente o seu autogoverno, pois submete não só o Chefe do Poder Judiciário, mas igualmente
seu membro, à possibilidade do Presidente da autarquia previdenciária passar a
11
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros, São Paulo, 2003, 22a
edição, p. 575.
12
DOUGLAS, William O. Anatomia da Liberdade, tradução Geir Campos, Zahar Editores, 1965, p. 96.
13
SANTAMARÍA, Hermano Roberto. O Poder Judiciário como um dos poderes de Estado – Sua
independência e suas garantias, in Revista Justitia, Ano XXXI, 3o Trimestre de 1969, vol. 66, p.ç 135.
96
Revista ENM
determinar os critérios formais e materiais para a concessão das aposentadorias
por invalidez ou a compulsória (LOMAN, art. 42, V 14) e, consequentemente,
a negá-las, dessa forma atingindo e fragilizando na essência a atividade
jurisdicional do Poder Judiciário.
Nesse sentido, aliás, já decidiu o Tribunal Pleno do Tribunal de Contas do
Estado do Rio Grande do Sul no processo no 2976-02.00/08-2, sessão do dia
13.8.08, cuja ementa reza:
PEDIDO DE ORIENTAÇÃO TÉCNICA. Unidade Gestora do
Regime Próprio de Previdência Social. Invasão de competência
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Lei Estadual
no 12.909/2008. Instituto de Previdência do Estado como gestor
único. Competências que extrapolam a simples gestão. Interpretação
do art. 2o, I, da Lei Estadual no 12.909/2008. Deve haver respeito
às autonomias administrativas do Poder Judiciário, Assembleia
Legislativa, Ministério Público Estadual, Defensoria Pública do
Estado e Tribunal de Contas do Estado.
A vitaliciedade, outrossim, que integra o regime constitucional brasileiro
de separação e independência dos Poderes (STF, ADI no 98-5/MT), reafirma
a mesma convicção na medida em que não cessa pela aposentadoria, nem se
confunde com a salvaguarda dos requisitos para a perda do cargo. O cargo é
vitalício porque assim o afirma a Constituição.
A aposentadoria, embora faça cessar o feixe de obrigações pessoais do
magistrado em relação ao exercício do cargo, não torna o cargo assumido e
exercido em não vitalício.
Dada a necessidade da função e a gravidade do seu exercício, em prol dos
mais altos interesses da Nação e da sociedade, a vitaliciedade e a irredutibilidade
de vencimentos é o que resta como garantia, com tudo o que elas representam,
em relação aos efeitos que perduram na inatividade quanto aos atos praticados
no exercício da atividade.
A não ser assim, sem essa garantia – que longe está de se caracterizar como
privilégio15 – o magistrado que estivesse em vias de se aposentar, se veria
14
Art. 42. São penas disciplinares:
(...)
V – aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço;
15
“Longe de ser um privilégio para os juízes, a independência da magistratura é necessária para o povo,
Revista ENM
97
fragilizado em sua independência, sujeito à injunções de qualquer ordem,
porque logo a seguir, pela concessão da aposentadoria, passaria a não dispor
de qualquer garantia, o que vale a dizer, ele passaria a se orientar não mais sob
o manto das garantias de independência, mas sim com os olhos voltados aos
efeitos que decorreriam para ele, individualmente, da decisão que viesse a tomar.
Daí a sempre presente advertência de Fábio Konder Comparato:
“se quisermos, portanto, garantir a independência do Poder Judiciário,
precisamos, sobretudo, protegê-lo contras as indevidas incursões do Executivo
em seu território” (op. cit. p. 10).
2. Conclusão
Compete exclusivamente ao Poder Judiciário a administração, o
gerenciamento, a concessão, o pagamento, a revisão e a manutenção dos
benefícios previdenciários de aposentadoria e pensões relativos aos magistrados
que, para tanto, não se submete à unidade gestora constante do enunciado do
art. 40, § 20, da CF, vinculada ao Poder Executivo.
que precisa de juízes imparciais para a harmonização pacífica e justa dos conflitos de direitos. A rigor,
pode-se afirmar que os juízes têm obrigação de defender sua independência, pois sem esta a atividade
jurisdicional pode, facilmente, ser reduzida a uma farsa, uma fachada nobre para ocultar do povo a realidade
das discriminações e das injustiças” (DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes, São Paulo, Saraiva,
1996, p. 45).
98
Revista ENM
Higyna Josita Simões de Almeida Bezerra
Associação dos Magistrados da Paraíba (AMPB)
Resumo
A tese em epígrafe propõe um meio de transformação do juiz-juiz em juizgestor, através da ministração de cursos obrigatórios de gestão jurisdicional
pelas escolas da magistratura, sob a supervisão da Enfam – Escola Nacional
de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. Defendemos que através da
educação voltada para a gestão administrativo-jurisdicional, os juízes habilitarse-ão a usar suas habilidades administrativas na unidade judiciária com vistas
à entrega com excelência da prestação jurisdicional e atingimento das metas
previstas na Resolução no 70/2009 do CNJ.
1. Introdução
Vivemos um tempo de crise no Judiciário, consubstanciada no fato de o
processo não conseguir cumprir a missão que lhe é atribuída de ser instrumento
de acesso à justiça e meio efetivo de entrega da prestação jurisdicional em
prazo razoável. A Emenda Constitucional no 45/2004 não trouxe a reforma
estrutural necessária à transformação do Judiciário em serviço público célere,
eficiente e efetivo pelo qual clama a sociedade.
Revista ENM
99
TESE
Papel das escolas
na formação do
magistrado: curso
obrigatório de gestão
jurisdicional
Todavia, não é aconselhável a conformação com essa problemática que
assola o Judiciário, sob o argumento de que a mudança deve partir de outros
poderes e não somente do Poder Judiciário. O juiz da atualidade precisa
superar a crença de que sua função é apenas despachar e sentenciar processos;
precisa ter responsabilidade social e contribuir com o Judiciário utilizando as
armas de que dispõe para que o jurisdicionado tenha pleno acesso à Justiça.
O primeiro passo a ser dado é no sentido da mudança de mentalidade do
juiz, para que ele possa ousar, utilizando, sobretudo, a criatividade no âmbito
em que trabalha, vislumbrando o processo sob o ângulo dos “consumidores”
da prestação jurisdicional. Como se dará essa mudança de mentalidade?
A educação é a resposta. Através da educação voltada para conhecimentos
de gestão, o magistrado poderá saber da existência de métodos e técnicas
facilitadoras do exercício da função de juiz-administrador. Defendemos que
a transformação do juiz-juiz em juiz-gestor encontra amparo em conceitos e
ensinamentos advindos da ciência da Administração.
2. Fundamentação
Partindo da assertiva de que, na atualidade, a função de juiz pressupõe
também a função de administrador e que a educação é um ato de formação de
consciência, a transformação do juiz-juiz em juiz-gestor realizar-se-ia através
da participação em cursos de gestão jurisdicional a serem ministrados pelas
escolas da magistratura.
O juiz-gestor é aquele magistrado que administra sua unidade judiciária
com visão de administrador, utilizando métodos que vão desde a economia
de material até o desenvolvimento de técnicas que acelerem a entrega da
prestação jurisdicional. É o juiz que, diferentemente do juiz-juiz, não se
restringe a sentenciar e despachar processos e usa a criatividade para superar
os problemas existentes na Vara.
O próprio CNJ já sentiu a necessidade de o Judiciário se adequar a padrões
de gestão ao instituir a Resolução no 70/2009, que dispõe sobre o planejamento
e a gestão estratégica no âmbito do Poder Judiciário.
Os objetivos de números 11 e 12 da prefalada Resolução, pertinente à gestão
de pessoas, tem como foco, respectivamente, “desenvolver conhecimento, habilidades e atitudes dos magistrados e servidores” e “motivar e comprometer magistrados e servidores com a execução da Estratégia”. Entendemos que o êxito no cumprimento desses objetivos só é possível através da educação voltada para a gestão.
100
Revista ENM
Esses cursos seriam ministrados pelas escolas da magistratura, sob
coordenação/orientação da Enfam – Escola Nacional de Formação e
Aperfeiçoamento de Magistrados, de forma padronizada e de caráter obrigatório
para todos os magistrados na ativa. Obrigatoriedade essa decorrente do próprio
fim a que o curso se destina: de ser meio de mudança de mentalidade.
Os cursos deveriam, outrossim, ser contabilizados para os fins de promoção
por merecimento e ministrados em lapso temporal de curta duração. Uma das
disciplinas a serem ministradas deve ser a de “Boas Práticas de Gestão” para
que os juízes apliquem em suas varas as práticas que forem compatíveis com o
seu ambiente de trabalho.
O que mudaria com a transformação do juiz-juiz em juiz-gestor? De
posse do conhecimento das técnicas advindas da ciência da Administração,
o juiz passaria a estabelecer metas de trabalho para cumpri-las. Preocuparse-ia mais com a busca da excelência nos serviços prestados, na racionalização
de material, no modo como o público e os advogados são atendidos em sua
unidade judiciária. Essa mudança também traria benefícios para a temática da
celeridade processual, como resultado normal do processo de gestão.
3. Conclusão e proposição
Por todo o exposto, chega-se à ilação de que a educação de magistrados
voltada para a gestão administrativo-jurisdicional é imprescindível na construção
do juiz-gestor, munindo-o de habilidades administrativas a serem usadas
como parâmetros para desempenho de suas funções na unidade judiciária.
Funções estas voltadas para a excelência na entrega da prestação jurisdicional e
atingimento das metas previstas na Resolução no 70/2009, CNJ.
Nesse diapasão, propõe-se:
I) que as escolas da magistratura ministrem curso de aperfeiçoamento na
área de Gestão Jurisdicional, com as seguintes características:
a) sob a coordenação da Enfam;
b) de forma padronizada em todos os estados brasileiros;
c) caráter obrigatório para todos os magistrados “na ativa”;
d) como requisito para promoção/remoção por merecimento;
e) de curta duração; e
f ) com a inserção da disciplina de “Banco de Boas Práticas de Gestão do
Poder Judiciário”.
Revista ENM
101
TESE
Participação de todos
os magistrados nas
eleições para os cargos
administrativos dos
tribunais
Thiago Melosi Sória
Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2a Região (Amatra – SP)
1. Introdução
A questão da forma de escolha dos administradores dos tribunais é
importantíssima quando se trata do aperfeiçoamento dos mecanismos de gestão
do Poder Judiciário. Com efeito, a restrição do “eleitorado”, em qualquer situação
(dentro ou fora dos tribunais), implica em possível confronto com a vontade dos
administrados. A democratização da gestão do Poder Judiciário deve ter como
primeiro passo a democratização da forma de escolha dos gestores.
2. Fundamentação
O Estado brasileiro é um Estado Democrático e a democracia deve qualificar
todas as suas instituições, inclusive o Poder Judiciário. Essa democracia deve
sempre ser a mais ampla possível, sob pena de o vocábulo perder seu conteúdo.
Nesse sentido, mostra-se indevida qualquer limitação do eleitorado que não
esteja relacionada à impossibilidade de manifestação consciente da vontade.
O Poder Judiciário é o único poder do Estado cujos membros não são,
pelo menos em parte, escolhidos pelo povo. A característica técnica da função
jurisdicional exige que o acesso aos cargos da magistratura seja feito através de
concurso meritório. Mesmo esse concurso meritório, no entanto, não pode ser
considerado antidemocrático, pois a participação é aberta a todos que se disponham
a atender requisitos mínimos relacionados à formação educacional. Isso, porém,
não justifica a restrição interna na escolha dos dirigentes dos tribunais. É natural
102
Revista ENM
que os administrados sempre participem da escolha dos seus administradores.
É certo que os magistrados que compõem os tribunais propriamente ditos
assumem diversas funções administrativas e, através do órgão pleno ou do órgão
especial, assumem tarefas inacessíveis aos juízes de primeiro grau de jurisdição.
Porém, o direito de sufrágio não se confunde com atribuições administrativas.
É, antes, um direito político de exercício de poder. O acesso a certo grau da
carreira não é capaz de atribuir ao Magistrado direito político maior do que o de
seus pares, nem se admite distinção entre eles.
O voto censitário há muito tempo foi banido do Direito brasileiro, mas
ainda subsiste no Poder Judiciário, onde há cidadãos com direitos políticos
diferentes (magistrados que possuem e que não possuem direito de votar para
escolha dos dirigentes dos tribunais). A natureza de exercício de direito político
que o voto para eleição de administradores de um Poder possui não permite
que sejam criadas restrições indevidas ao exercício desse mesmo poder.
É razoável que a evolução da carreira seja tida como critério adequado para
a delimitação dos elegíveis, pois compatível com as regras da Constituição
da República, que escolheu critérios como idade para a elegibilidade a certos
cargos, trazendo o fator temporal (observado na carreira) para a qualificação
dos candidatos. No entanto, o tempo somente é fator relevante para que um
cidadão seja considerado eleitor quando relacionado à maturidade desse.
No caso da Magistratura, não se pode considerar objetivamente que há
imaturidade de seus membros, em quaisquer instâncias, não se justificando a
exclusão de parte dos juízes do processo eleitoral.
Importante ainda destacar que o ordenamento jurídico brasileiro impõe
mesmo que a mais simples das associações eleja seu administrador de forma
direta, com participação dos associados. Se tal imposição ocorre dirigida a
entes privados, mais justo se mostra que a eleição direta com participação
ampla seja instituída no Poder Judiciário.
Portanto, é justo que se lute pelas necessárias alterações constitucionais
destinadas a permitir que magistrados de todos os graus de jurisdição participem
da escolha dos administradores dos tribunais aos quais estão vinculados.
3. Conclusão e proposição
Diante da necessidade de democratização da gestão do Poder Judiciário
propõe-se que a escolha dos administradores dos tribunais seja realizada
através de eleição direta com participação de todos os magistrados vinculados
ao respectivo tribunal.
Revista ENM
103
TESE
PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO
DO PODER JUDICIÁRIO
– DESCENTRALIZAÇÃO
ADMINISTRATIVA E
GERENCIAL – PROCESSO
ELETRÔNICO
Jorge Luiz Lopes do Canto
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
Representante do TJRS no Comitê Gestor da Autoridade Certificadora do
Estado do Rio Grande do Sul – RS
Resumo
Criação de página informatizada para cada unidade judicial (Vara,
Câmara, Turma, Grupo, Órgão Especial, Distribuição, Contadoria, Diretoria
Processual, Diretoria de Material, etc.) no próprio sítio de cada Tribunal,
objetivando atender ao princípio da transparência, com a divulgação dos
dados estatísticos relacionados à atividade jurisdicional, além de informações
relativas ao funcionamento daquele órgão e, inclusive, históricas, divulgando
esta gama de informações à comunidade.
A divulgação dos serviços prestados pelo Poder Judiciário em meio
eletrônico quanto à atividade desempenhada, auxiliará na desmistificação
da Justiça e melhor compreensão do trabalho realizado, além de permitir a
criação de índices de avaliação e controle deste, a fim de possibilitar a gestão
mais eficaz do Judiciário.
A transparência das ações do Judiciário de forma institucional e coletiva afasta
a possibilidade do culto ao individualismo, de sorte a que não sejam criados sites
104
Revista ENM
ou blogs de forma individual, a fim de que se tenha uma análise institucional e
conjunta de toda atividade realizada no âmbito do Poder Judiciário.
Facilitar o acesso a cada unidade jurisdicional e administrativa do Poder
Judiciário, mediante a instituição da comunicação por meio eletrônico,
inclusive com consultas e agendamento de audiências.
1. Justificativa
A criação de página informatizada para cada unidade judicial (Vara,
Câmara, Turma, Grupo, Órgão Especial, Distribuição, Contadoria, Diretoria
Processual, Diretoria de Material, etc.) no próprio sítio de cada Corte,
objetivando atender ao princípio da transparência, com a divulgação dos dados
estatísticos relacionados à atividade jurisdicional e administrativa realizada, a
fim de que a comunidade tenha acesso a estas informações.
A existência de página de cada unidade jurisdicional dos tribunais
facilitaria o acesso a informações quanto ao funcionamento daquele órgão,
além de permitir obter dados até mesmo de cunho geopolítico de determinada
Comarca, como número de habitantes, de processos, dentre outras, a fim de
auxiliar na gestão de cada órgão, de acordo com a necessidade da comunidade
a que este pertença.
A constituição de página individualizada de cada órgão jurisdicional
facilitaria o acesso ao Judiciário, bem como atenderia aos princípios da celeridade
e economia processual, tendo em vista que os usuários poderiam contatar
diretamente com a unidade que tivessem eventual interesse a ser solvido.
A possibilidade de atualização dos dados na própria unidade judicial de
origem torna o sistema ágil e seguro, permitindo a dupla conferência daquelas
informações com os dados existentes em cada órgão correcional dos Tribunais.
Ademais, poderia ser instituído um e-mail setorial para comunicação em
cada página, a fim de implementar as comunicações coorporativas (ofícios,
requisições, instrução de precatórios, intimações, citações, etc.) a serem feitas
entre as unidades jurisdicionais de cada Corte, entre estas e os demais tribunais,
bem como em relação aos usuários (partes, advogados, Ministério Público,
serventuários da Justiça, etc.). Tal medida serviria para as comunicações por
meio eletrônico, como remessa de petições (iniciais, recursos, por exemplo),
diminuindo custos com correios e protocolos, além de evitar o retardo no
processamento com a impressão imediata do documento encaminhado, cujos
custos passariam a integrar as custas judiciais.
Revista ENM
105
A implementação das comunicações coorporativas poderia ser feita em
computador central, mediante a gravação daqueles dados. Tal providência
auxiliaria para atestar a autenticidade da referida documentação e, por via de
consequência, na segurança jurídica do ato praticado, mediante cadastramento
prévio dos usuários, o que impediria o ataque de “hackers” ou “crackers” ao
sistema informatizado.
O acesso as dados e a comunicação instantânea com a unidade judicial
desejada, auxilia na redução de custos elevados do Poder Judiciário com a
manutenção de quadro funcional e construção de prédios para a guarda de
documentos e atendimento ao público, o que também importa em despesas
com manutenção e segurança igualmente elevadas.
Os usuários poderiam ser cadastrados previamente, com a vantagem de que
a informação conteria não só a data do recebimento como aquela de acesso
ao documento, o que serviria para identificar qual o funcionário que recebeu
este e quando, bem como se o prazo de execução da medida correspectiva foi
razoável e atendeu aos parâmetros legais, servindo de prova hábil quanto à
utilização do meio eletrônico, à semelhança do que ocorre na Justiça Federal
com a intimação de órgãos do Estado e Ministério Público.
As vantagens da criação deste sistema de páginas para cada unidade no
sítio dos tribunais tanto em termos econômicos, como também relativo
à segurança jurídica deste, são evidentes, além de dar maior efetividade à
prestação jurisdicional, revelando-se esta mais ágil e transparente.
Ademais, a utilização de meio eletrônico no trânsito de documentos e
comunicações permite também a criação de índices de avaliação e controle,
possibilitando com isso a aferição da eficiência do sistema mediante a
verificação de dados estatísticos, a fim de possibilitar a melhor forma de gestão,
com redução de custos e aumento de produtividade.
A criação de páginas setoriais impede a proliferação de sites ou blogs de
forma individual, afastando a possibilidade do culto ao individualismo, bem
como implementando a desejada transparência das ações do Judiciário de
forma institucional e coletiva, a fim de que se tenha uma análise institucional
e conjunta de toda atividade realizada no âmbito do Poder Judiciário.
A facilitação do agendamento de audiência para conversar com os
magistrados, com informação prévia do assunto e interesse a ser tratado,
possibilitaria até mesmo que estas informações fossem encaminhadas de
pronto por e-mail, quando desnecessário o sempre profícuo contato pessoal.
106
Revista ENM
Instituição de um portal de transparência que seria útil a todos os
magistrados com as informações do acervo do gabinete, com o número de
processos para julgamento com indicação destes e das datas de conclusão, bem
como o número de processos que ingressam no mês, de processos julgados
neste interregno de tempo e do prazo médio em que estes são solvidos, com a
prestação de contas devida à sociedade.
A transparência do Poder Judiciário não está só na análise e gestão
financeira, mas também na possibilidade de acesso dos cidadãos à atividade
desempenhada por este de forma rápida e segura.
2. Proposta
Criar páginas setoriais relativas às unidades judiciárias dos tribunais,
jurisdicionais e administrativas, no site oficial de cada Corte, objetivando
divulgar as atividades realizadas em cada unidade, dados estatísticos e
informações úteis, como forma de acesso ao serviço judicial prestado,
prestando as contas devidas, em tempo real, à sociedade.
Revista ENM
107
TESE
Planejamento estratégico
e orçamento participativo:
a fundamental
contribuição dos
magistrados
José Barroso Filho
Justiça Militar da União (Amajun)
Resumo
No âmbito do Poder Judiciário, há que se reconhecer que existe um “cliente”
interno que são os magistrados e é necessário dotar os órgãos julgadores com
as adequadas condições materiais para o efetivo desempenho de suas funções
institucionais com uma prestação jurisdicional justa e célere ao “cliente”
externo, a população. Fundamental a participação dos magistrados nas fases
do planejamento estratégico, do orçamento e da formulação e execução
dos planos de ação de modo a propiciar as necessárias condições materiais
para a justa e efetiva “atividade fim” que é a prestação jurisdicional, razão da
existência do Poder Judiciário, personificado na atuação de seus magistrados.
1. Introdução
A função primordial do Poder Judiciário é a prestação jurisdicional e esta
se realiza por intermédio da atuação dos magistrados. A participação destes
nas fases do planejamento estratégico, da elaboração da peça orçamentária e
dos consequentes planos de ação constituem uma exigência lógica e sistêmica
necessária à eficiência do sistema judicial.
108
Revista ENM
2. Fundamentação
O princípio constitucional da eficiência impulsiona o Poder Judiciário a
rever a forma de atuação e a alterar a estrutura de funcionamento, exigindo de
seus integrantes a avaliação periódica da qualidade dos serviços que prestam
à sociedade.
Para cumprir seu dever jurisdicional, o Judiciário exerce também a função
administrativa, que compreende a atuação necessária à organização e gestão
de seus órgãos e serviços.
Essa atuação administrativa é tarefa desempenhada individualmente pelo
magistrado, na qualidade de agente público e também, institucionalmente,
pelos tribunais, no exercício de suas funções decorrentes de sua autonomia
administrativa e financeira (CF/88, art. 99) e está profundamente relacionada
com o desempenho da atividade final que é a prestação jurisdicional.
O princípio da eficiência na Administração Pública exige obediência ao
princípio, à avaliação periódica da qualidade dos serviços e o desenvolvimento
de programas de qualidade, de produtividade, de modernização e de
racionalização nas ações (CF/88, art. 37, § 3o, I; art. 39, § 7o).
Para o alcance das metas institucionais serão definidos projetos e planos de
ação para cada unidade envolvida, juntamente com os respectivos indicadores,
metas setoriais, responsáveis e prazos de conclusão, o que reforçará a ideia de
melhoria contínua e inovação.
Assim sendo, há que se definir que existe um “cliente” interno que são
os magistrados e é necessário dotar os órgãos julgadores com as adequadas
condições materiais para o efetivo desempenho de suas funções institucionais
com uma prestação jurisdicional justa e célere ao “cliente” externo, a população.
Fundamental a participação dos magistrados nas fases do planejamento
estratégico, do orçamento e da formulação e execução dos planos de ação.
Nesse contexto, o planejamento estratégico surge como importante ferramenta
para operacionalizar esse processo de mudança.
Na sua raiz semântica, estratégia significa “estabelecer caminhos”.
Estratégica envolve as questões relativas ao caminho determinado e também o
processo de se determinar o caminho.
A Administração Estratégica é definida como um processo contínuo
e iterativo e significa a administração de mudanças, a gestão de mudanças
estratégicas. É um quebra-cabeça dinâmico, cujas peças são encaixadas dia a
dia e não montadas de uma só vez.
Revista ENM
109
O Controle Estratégico é um tipo especial de controle organizacional que
se concentra em monitorar e avaliar o processo de administração estratégica.
Planejar não é um fim em si mesmo, mas um instrumento dinâmico de gestão.
Os planos precisam ser traduzidos em ações competentes que produzam os
resultados almejados: são as ações que criam a realidade.
Neste diapasão, os magistrados devem participar do planejamento
estratégico e, sobretudo, da elaboração da peça orçamentária e de sua execução,
ou seja, promover a transição da realidade atual para a visão de futuro.
Sem a contribuição efetiva de quem é responsável pela prestação
jurisdicional, a percepção dos objetivos estratégicos e das respectivas ações
compromete a qualidade do serviço público da Justiça.
Implementar processos de mudanças organizacionais é mudar pessoas:
comportamentos, habilidades e atitudes.
O coração da cultura são os seus valores, pois representam a essência da
filosofia da organização; definem o que é importante para os servidores e
estabelecem padrões a serem alcançados.
O processo de Gestão Estratégica tem de ser participativo. Informação e
participação são aliados importantes.
As pessoas precisam saber aonde a organização quer chegar, quais são
os benefícios, por que é necessário, como será feito, que comportamentos
são esperados. A luta por uma causa dá às pessoas sentido ao trabalho, gera
motivação. Os objetivos, além de direção, dão significado à caminhada.
Engajado neste processo, desde o planejamento estratégico, cabe ao
magistrado estimular competências individuais. Competência é a inteligência
prática e está associada a verbos como: saber fazer, saber aprender, saber
engajar-se, saber compartilhar, mobilizar recursos, integrar saberes múltiplos e
complexos, assumir responsabilidades, ter visão estratégica.
Assim sendo, o magistrado, em sua unidade jurisdicional, deve promover
uma gestão por competências que nada mais é do que a gestão de pessoas vista
por uma ótica mais ampla e sistêmica. É uma gestão integrada. Não há mais
como compreender os treinamentos desarticulados da estratégia, ou o sistema
de seleção desvinculado das demais áreas.
A gestão por competências mostra-se como um caminho racional, pois já é
possível traduzir visão, missão, valores, estratégias e cultura em conhecimentos,
habilidades, atitudes e experiências, ou seja, as competências necessárias para
concretizar a estratégia formulada.
110
Revista ENM
A gestão por competências sinaliza para os servidores o que se espera deles.
Em contrapartida, a instituição deverá sinalizar também qual é a recompensa
para quem alcança o que se espera.
O estudo dos processos organizacionais objetiva erradicar o trabalho
desnecessário, reduzir o tempo investido em ações repetidas e verificar desvios
de lotação ou novas demandas. Essa análise deve ser realizada de forma
participativa, envolvendo os magistrados e os servidores de modo a erradicar a
cultura de feudos organizacionais que tanto comprometem a efetiva prestação
jurisdicional.
3. Conclusão e proposição
É essencial e sistêmica a participação dos magistrados nas seguintes fases:
• planejamento estratégico;
• elaboração da peça orçamentária; e
• definição e execução dos planos de ação.
Desta forma, dotado dos meios materiais e promovendo uma gestão
por competência, há de se desenvolver um sinérgico clima organizacional,
ambiente que aprimorará a prestação jurisdicional de forma justa e célere.
TESE
Planejamento estratégico
em comarca
Vanderlei Deolindo
Juiz de Direito do 1o Juizado da 1a Vara Cível de São Leopoldo – RS,
Vice-Presidente Cultural da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul
Membro do Centro de Pesquisa Judiciário, Justiça e Sociedade da Escola Superior da
Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS
1. Ementa
Inserção da AMB no processo de estudo, reivindicação e capacitação de
magistrados, em parceria com o Conselho Nacional de Justiça, visando a
elaboração, por magistrados e servidores, de um “Planejamento estratégico
no âmbito das direções de Foro, na linha dos planejamentos estratégicos a
serem elaborados pelos tribunais, em cumprimento à Resolução no 70/2009,
de forma a conduzir a definição dos objetivos estratégicos da Comarca junto
às respectivas Comunidades.
2. Justificativa
A inexistência de planejamento estratégico é uma carência histórica do
Poder Judiciário em suas diversas esferas (justiças estaduais, federais, militares,
do Trabalho e eleitorais), salvo exceções. Urge que as altas administrações dos
respectivos tribunais deem início aos referidos planejamentos, estendendo-se a
cultura de planejamento estratégico para o âmbito da Comarca, com a efetiva
participação de magistrados, servidores e advogados, estes com base no art.
133 da Constituição Federal. É sabido que cada unidade forense conta com
peculiaridades segundo a cultura da região, padrão de vida diverso em âmbito
nacional, maior ou menor apego à cultura da gestão, meios social e jurídico
diferentes, que exigem ajustes na comunicação, nos processos de trabalho,
na estrutura e no ambiente de trabalho, na relação entre os atores judiciais
(magistrados, servidores, advogados, promotores e outros). Não raras vezes
esses atores se limitam ao exercício das respectivas atividades tradicionais,
112
Revista ENM
deixando de atuar de forma organizada e harmônica na busca de soluções para
os problemas locais. Não são poucas as críticas e reivindicações aos tribunais
buscando soluções para problemas que estão ao alcance da própria Comarca,
desde que desenvolvidas ações de liderança, muitas vezes adormecida ou não
estimulada. Impende, então, o estímulo ao desenvolvimento de medidas a
serem realizadas pelas lideranças, a partir dos magistrados, no sentido de
mudar o status quo, mobilizando pessoas, analisando os cenários, os pontos
fortes e fracos da organização, oportunidades e ameaças do meio ambiente, de
forma a estabelecer objetivos estratégicos para os próximos anos, indicadores e
ações que possibilitem o desenvolvimento ordenado da organização no passar
dos mandatos dos gestores diretores do Foro. Gestões empíricas, firmadas
em personalismos dos gestores do momento, não obstante a moralidade que
tem caracterizado as administrações do Judiciário, em regra são desapegadas
das técnicas gerenciais sugeridas pela ciência da Administração. Conclui-se
propondo, então, após os planejamentos estratégicos dos tribunais, com a
identificação dos objetivos estratégicos para os próximos anos, a realização
de Planejamento Estratégico no âmbito das comarcas, nas direções de Foro,
fazendo com que o Poder Judiciário sistematize ações ordenadas em todos os
níveis da organização perseguindo objetivos comuns em favor da sociedade,
razão da sua existência.
Revista ENM
113
TESE
Procedimentos judiciários
– Modernização e
racionalização dos
procedimentos judiciários
Jorge Luiz Lopes do Canto
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
Representante do TJRS no Comitê Gestor da Autoridade Certificadora do
Estado do Rio Grande do Sul – RS
Resumo
Atendimento ao disposto na Lei no 11.419/2006, a fim de que as comunicações
quanto aos resultados dos julgamentos sejam feitas eletronicamente e em tempo
real.
Criação de pauta virtual, diária ou semanal, com a publicação de data de
julgamento dos processos nos quais não haja intervenção das partes nas sessões
dos colegiados feita nos moldes atuais (embargos de declaração, agravos, etc.)
e daqueles que importarem em julgamentos repetitivos que envolvam somente
questões de Direito.
O sistema em questão atenderia aos princípios da economia e celeridade
processual, a fim de reduzir o tempo de tramitação dos feitos no segundo
grau, agilizando a solução das causas, pois não seria necessária a designação de
ato formal e presencial para liberação dos resultados, o que poderia ser feito
semanalmente em cada unidade judicial.
Tramitação mais célere e segura dos processos massificados e repetitivos,
que envolvam apenas questões de Direito, pois estes seriam pautados nas
sessões eletrônicas, cujas intervenções, porventura existentes, seriam admitidas
também de forma eletrônica por e-mail ou vídeo-conferência com data e
horário a serem apresentados aos magistrados.
114
Revista ENM
A redução de custos desse sistema para partes, advogados e para o próprio
Judiciário seria considerável, pois dispensa o deslocamento daqueles ao
Tribunal, bem como os custos com a construção e manutenção de prédios
para abrigar as salas de sessão de julgamento, o que facilitaria o uso do mesmo
local de trabalho por diversos colegiados. Ocorrendo, também, a consequente
diminuição dos custos com pessoal para atender as sessões nos tribunais em
relação ao sistema utilizado atualmente.
1. Justificativa
A utilização de sistemas on-line como a criação de sessões eletrônicas dá
maior transparência e segurança jurídica às decisões no segundo grau, pois
facilita o acesso a estas pelos interessados.
O sistema proposto daria maior segurança e agilidade na solução das
causas, pois os membros de determinado colegiado teriam condições de
disponibilizar com maior rapidez os seus julgados, com isso, diminuindo o
estoque de processos e tempo de tramitação do feito em Gabinete.
A solução preconizada poderia ser implementada mediante a mera
alteração dos regimentos internos dos tribunais, estabelecendo aqueles prazos
para Revisor e Vogal se manifestarem eletronicamente quanto ao voto do
Relator, colhidos os votos eletrônicos, o processo já estaria apto a ser pautado,
bem como publicada a decisão deste de forma célere.
No dia e hora aprazados seria publicado no sistema informatizado dos
tribunais o resultado dos julgamentos, iniciando a fluir o prazo recursal a
partir desta publicação eletrônica.
Os processos massificados e repetitivos que envolvam apenas questões de
Direito, teriam trâmite mais célere e seguro, pois estes seriam pautados nas
sessões eletrônicas, cujas intervenções, porventura existentes, seriam admitidas
também de forma eletrônica por e-mail ou vídeo-conferência com data e
horário a serem apresentados, sendo disponibilizadas na rede aos magistrados.
A adoção deste sistema possibilitaria a realização de sessões apenas para
discussão de processos que os relatores ou o Colegiado reputassem de interesse
público, relevantes, ou que houvesse pedido prévio e por escrito para realização
de sustentação oral em sessão.
Aplicação do princípio da transparência ao sistema, com maior publicidade
do trâmite do ato processual em questão, pois o tempo de tramitação do
processo no Tribunal até a sua solução poderia ser acompanhado pelas partes
Revista ENM
115
e pelos advogados de qualquer lugar do País em tempo real, uma vez que seria
divulgada a solução na rede mundial de computadores.
Eliminação do volume de processos que tramitam em sessão, pois as partes
seriam encaminhadas diretamente às secretarias dos órgãos colegiados, a fim
de terem acesso aos autos e à solução dada, o que importa em segurança no
trâmite dos feitos e reduz a possibilidade do extravio de autos.
As vantagens na utilização desse sistema de sessão eletrônica, tanto em
termos econômicos, como também relativo à segurança jurídica deste são
evidentes, além de dar maior efetividade à prestação jurisdicional, revelandose esta mais ágil e transparente.
Ademais, a utilização de meio eletrônico nas sessões dos tribunais permite
também a criação de índices de avaliação e controle, possibilitando com isso a
aferição da eficiência do sistema mediante a verificação de dados estatísticos, a
fim de possibilitar a melhor forma de gestão, com redução de custos e aumento
de produtividade.
A transparência do Poder Judiciário não está só na análise e gestão financeira,
cujas vantagens seriam evidentes neste caso, com a diminuição de custos com
papel, construção e manutenção de prédios, além da contratação de funcionários
para atendimento de partes, advogados e magistrados nas sessões presenciais
existentes atualmente, mas também na possibilidade de acesso dos cidadãos à
atividade desempenhada por aqueles de forma rápida e segura.
2. Proposta
Criação de sessões eletrônicas nos tribunais do País para publicação
das decisões dos colegiados nos processos em que não haja intervenção das
partes naquele ato processual e nos julgamentos de processos massificados e
repetitivos que envolvam somente questões de direito, implementando de
forma efetiva a Lei no 11.419/2006 nos tribunais do País.
116
Revista ENM
Aluízio Pereira dos Santos
Associação dos Magistrados do Estado de Mato Grosso do Sul (Amansul)
1. Introdução
Como todos sabem, nas capitais e grandes centros do País há considerável
número de homicídios e tentativas de homicídio por ano. As varas dos
tribunais do Júri, ainda que especializadas, não são suficientes para atender à
grande demanda, razão pela qual os julgamentos tornam-se morosos.
Assim, em tais circunstâncias, por óbvio, os réus soltos raramente vão a
julgamento por falta de pauta, gerando sensação de impunidade e os presos,
principalmente pobres, aguardam por muito tempo o dia dos seus julgamentos,
implicando também em injustiça.
No máximo, para atender a situações de emergência, os Tribunais de Justiça,
muitas vezes premidos pelo Conselho Nacional de Justiça, fazem “mutirões”. Essas,
porém, são ações isoladas, paliativas, sem caráter definitivo e jamais resolverão o
acúmulo de processos, pois novamente retornam à tona em poucos anos.
Dessa forma, as varas do Júri refletem pequena fração da crise que assola
o Judiciário, razão pela qual urge a mudança de alguns procedimentos para
agilizar a prestação jurisdicional, a exemplo da prorrogação da competência
dos juízes titulares das varas do Júri, o que, a princípio, parece paradoxal.
2. Fundamentação
Se tomarmos como exemplo o estado de Mato Grosso do Sul – e acredito
que a maioria dos demais estados da federação –, a competência do Juiz da
Revista ENM
117
TESE
Prorrogação da
competência da Vara do
Tribunal do Júri
Vara do Júri é para “processar os crimes dolosos contra a vida e presidir o
Tribunal do Júri”.
Por óbvio, em havendo desclassificação, na fase da sentença de pronúncia,
de tentativa de homicídio para lesão corporal leve, grave, gravíssima, lesão
corporal seguida de morte ou outro crime como disparo de arma de fogo,
periclitação da vida ou saúde de outrem, etc., as varas do Júri perdem a
competência para processá-los e julgá-los e, no caso, remetem os autos para
um Juiz da Vara Criminal residual.
Todavia, este procedimento tem dado margem a conflitos negativos de
competência, pois os juízes declinados em muitas vezes discordam, motivados
ou não pelos promotores, entendendo que ficou configurada a intenção de
matar, etc.
Importa aqui uma pequena digressão:
Guilherme de Souza Nucci, Código de Processo Penal, p. 410, comenta
sobre a possibilidade de o Juiz a quem foi remetido o processo suscitar conflito
de competência e, inclusive, faz a seguinte pergunta.
O Juiz pode suscitar conflito ou está impedido de fazê-lo, tendo em
vista que já houve decisão a respeito, da qual não mais cabe recurso?
“Há duas posições bem apontadas por Jacques de Camargo Penteado:
Para a primeira corrente, o Juiz singular não poderia suscitar conflito
negativo de competência para sustentar que deva ser restabelecida
a classificação originária e o caso ser julgado pelo Tribunal do Júri.
Ferir-se-ia a coisa julgada e o acusado seria submetido à possibilidade
de condenação por fato mais grave, em face de exclusiva dinâmica
judicial. Se o acusador e a vítima, ou seu representante legal,
conformaram-se com a desclassificação, ao julgador não é dado
promover o restabelecimento da denúncia mais gravosa”.
Prossegue o jurista:
A segunda corrente sustenta que o julgador pode declarar a sua
incompetência em qualquer fase procedimental e a omissão recursal
das partes não vincula o magistrado afirmado competente. Aduz
que, acolhida a primeira orientação, extinguir-se-ia a possibilidade
de conflito negativo, pois sempre haveria a preclusão para o juiz que
foi apontado como competente (Acusação, defesa e julgamento, p.
339/340).
118
Revista ENM
Finaliza, emitindo a sua opinião:
Em um primeiro momento, críamos ser mais correta a primeira
posição, embora atualmente faça mais sentido, para nós, a segunda.
Note-se que a competência em razão da matéria é absoluta e não pode
ser prorrogada, razão pela qual, a todo instante, pode o magistrado
suscitá-la, tão logo dela tome conhecimento. Além disso, há a
questão do juiz natural, que é o constitucional e legalmente previsto
para deliberar acerca de uma causa, incluindo-se nesse contexto o
tribunal competente para dirimir o conflito de competência. Em
São Paulo, cabe à Câmara Especial do Tribunal de Justiça deliberar
sobre os conflitos de competência entre magistrados estaduais, não
sendo, pois, atribuição de qualquer das Câmaras do Tribunal essa
apreciação. (...)
Ainda sobre o assunto, confira Adriano Marrey, em sua obra “Teoria e
Prática do Júri”, p. 284/5.
Como se vê, quando ocorre o conflito negativo de competência é o
Tribunal de Justiça que deverá resolver o impasse, e, naturalmente, há demora
na prestação jurisdicional em prejuízo principalmente de réus presos.
Por tais motivos, em muitos casos, tem-se optado pela pronúncia e, por
ocasião do julgamento no Tribunal do Júri, o Promotor, em regra, propõe a
desclassificação ao Conselho de Sentença e, in casu, resolve-se de forma prática
ou sem a mencionada polêmica.
Porém, se de um lado o caminho da pronúncia tem resolvido os problemas
acima enumerados, ou seja, evitado os referidos conflitos, por outro lado,
complica em muito. Isso porque, no fundo, são muitos processos que acabam
sendo pronunciados e in casu vão a julgamento, este por sinal, um ato
complexo, formal e oneroso ao Tribunal (convocação dos jurados, etc.), o que
torna extenuante para ouvirem, no mais das vezes, o pedido de desclassificação
do Promotor por falta do animus necandi, redundando no comprometimento
da pauta para inclusão de outros julgamentos de presos, com certeza mais
relevantes à sociedade.
Daí porque surgiu a ideia de, em havendo desclassificação na fase da
pronúncia, manter a competência da Vara do Júri para processar e julgar os
novos crimes.
Assim, evita-se:
Revista ENM
119
a) demora na prestação jurisdicional no cipoal de divagações jurídicas
entre os juízes para saber quem é competente;
b) interpretações divergentes entre juízes acerca da intenção do agente – se
era ou não o homicídio – se estendendo aos promotores;
c) o aumento da carga de processos das varas criminais residuais, aliás,
assoberbadas tanto quanto as varas dos júris;
d) a falsa ideia de que os juízes e/ou promotores das varas do Júri estão
“lavando as mãos, se eximindo de trabalho, etc”, na medida em que remetem
processos a outros colegas, o que, convenhamos, acaba sendo fato inibidor
considerando que são muitos processos;
e) quebra do princípio da identidade física do Juiz/Promotor, que
instruíram o processo, ditos naturais, por preceito constitucional.
A mesma tem respaldo legal, conforme vejamos:
O art. 74 do Código de Processo Penal preconiza que a competência – pela
natureza da infração – é regida pelas leis de organização judiciária de cada
Estado.
No Estado do MS, por exemplo, a Lei de Organização Judiciária no
1.511/94 (CODJ) disciplinou a matéria de competência dos juízes no art.
83: “Nas comarcas com mais de uma Vara, a competência de cada uma é
estabelecida pelo Tribunal de Justiça” por resolução.
Importante salientar, neste diapasão, que a competência privativa do
Tribunal do Júri nada tem a ver com a do Juiz que o preside, até porque
são órgãos do Poder Judiciário totalmente diferentes, art. 20, inc. IV e V, do
mencionado CODJ/MS.
Logo, apenas a competência do Tribunal do Júri é fixada pela Constituição
Federal e pelo Código de Processo Penal, portanto não passiva de modificação
ou alteração pelo ato normativo supracitado (Resolução).
O mesmo não se pode dizer da competência dos juízes de Direito, a qual,
conforme acima mencionado, é regida pelo art. 83 do CODJ/MS e, no caso
do MS, editada a Resolução no 221/94.
Esta mesma sugestão foi feita ao TJ/MS, sendo aprovada por unanimidade,
redundando na edição do art. 2o de outra Resolução, no 518/07, com o
seguinte teor:
Compete aos juízes das varas do Júri processar os crimes dolosos
contra a vida e presidir o Tribunal do Júri e, ainda, processar os
crimes em que houver desclassificação na pronúncia após o
120
Revista ENM
trânsito em julgado dessa, ou quando houver reunião de processos
decorrentes da aplicação das regras de conexão e continência.
Logo, no MS esta questão foi resolvida e reduziu de forma significativa o
número de processos que iam a julgamento popular, o que afasta a ideia, em
princípio, paradoxal.
3. Conclusão
Destarte, sugere-se que a AMB proponha, junto aos tribunais, a alteração
no CODJ dos estados, que possuem varas especializadas e normativo parecido
com o que existia no Estado/MS no sentido de “prorrogar a competência do
magistrado para prosseguir com o processo em caso de desclassificação na fase
da pronúncia para outro crime”.
Revista ENM
121
TESE
Unificação de entrâncias
na magistratura estadual
Giordane de Souza Dourado
Laudivon de Oliveira Nogueira
Associação dos Magistrados do Acre – ASMAC
Resumo
A unificação de entrâncias na estrutura do Poder Judiciário estadual é
indispensável para conferir-se unidade à magistratura nacional, bem como
para mitigar a excessiva hierarquização administrativa existente no 1o grau de
jurisdição.
1. Introdução
A divisão do 1o grau de jurisdição da magistratura estadual em entrâncias
é prática antiga e enraizada na estrutura da Justiça brasileira. Desde a Carta
Magna de 1946, o texto constitucional refere-se expressamente à “promoção
de entrância para a entrância” ao disciplinar a organização do Poder Judiciário.
De acordo com essa forma de estruturar a carreira da magistratura, o aprovado em concurso público para o cargo de Juiz de Direito Substituto deverá,
ao longo da sua vida funcional, galgar vários degraus na organização judiciária
até finalmente, através de promoção por antiguidade ou merecimento, estabilizar-se na entrância final ou especial, geralmente situada nas capitais dos
estados ou em cidades de maior contingente populacional.
É espantoso o forte apego da magistratura estadual à “cultura das
entrâncias”, como se ela integrasse a própria identidade do funcionamento
da jurisdição. Tal não ocorre na Justiça Federal e no Poder Judiciário do
Distrito Federal e territórios, onde o conceito de entrância foi abolido, pois
os magistrados de 1o grau desse segmento do Judiciário dividem-se apenas em
substitutos e titulares.
122
Revista ENM
Durante muitos anos poucas reflexões foram produzidas sobre as vantagens
e desvantagens da existência das entrâncias. Nesse período mais recente de
discussão da reforma do Poder Judiciário, surgiram alguns questionamentos a
respeito do tema, os quais procuram diagnosticar os possíveis reflexos positivos
da unificação das entrâncias no âmbito da Justiça Estadual.
O assunto torna-se mais relevante quando analisado a par da discussão
sobre a unidade da magistratura nacional, ponto que têm suscitado fecundos
debates na comunidade jurídica brasileira.
Diante desse contexto, no espírito do pulsante movimento de renovação
do Poder Judiciário, é razoável sustentar que o modelo de estruturação da
magistratura estadual em entrâncias está desgastado e é incompatível com a
intenção de consolidar a unidade da magistratura brasileira.
2. Fundamentação
A existência de entrâncias no 1o grau de jurisdição tem respaldo
constitucional no artigo 93, incisos I, III, e VIII-A, da Carta Magna de
1988. Esses dispositivos, ao contrário do que uma leitura apressada possa
sugerir, não obrigam a magistratura dos estados a criar entrâncias na sua
organização judiciária. O que a Constituição estabelece é uma autorização
para a existência das entrâncias. Reforça esse argumento o fato de que o artigo
93 da Constituição da República estabelece os princípios básicos que regem
a magistratura como um todo, não apenas o Poder Judiciário dos estados.
Dessa forma, sendo o citado dispositivo de aplicação geral para a magistratura,
ele também incide sobre o Poder Judiciário da União, o qual, repise-se, não
estabeleceu entrâncias no seu 1o grau de jurisdição.
Logo, conquanto a Justiça Federal comum e o Poder Judiciário do Distrito
Federal e territórios não tenham previsto a criação de entrâncias, em nenhuma
inconstitucionalidade incorreram.
É coerente então a assertiva de que a norma contida no inciso II do
artigo 93 da Constituição Federal representa mero critério de promoção a ser
observado na hipótese de existência de entrâncias.
Falece, portanto, óbice constitucional para a unificação das entrâncias no
âmbito da magistratura estadual.
Superada essa questão constitucional, convém destacar os principais
problemas causados pela existência das entrâncias.
Para qualquer magistrado que já enfrentou várias promoções até chegar
Revista ENM
123
à última entrância, é bastante evidente que a existência de várias entrâncias
submete o juiz à excessiva hierarquização frente à administração do Poder
Judiciário ao qual está vinculado. Com efeito, notadamente nas promoções
pelo critério de merecimento, onde os requisitos objetivos de avaliação são
ainda nebulosos, o juiz fica na dependência do alvedrio e, não raras vezes, do
humor dos membros do Tribunal para progredir na carreira.
Tal ambiente favorece a corrupção de consciência, que estimula a prática do
apadrinhamento de magistrados por membros do Tribunal. Isto compromete
sobremaneira a integridade dos juízes, os quais, ao procurarem proximidade
com integrantes do 2o grau de jurisdição, ficam mais vulneráveis à tentação
pelo poder.
Não bastasse isso, esse acentuado grau de hierarquização, mais pertinente
para as carreiras militares, causa a desconfortável impressão de que o magistrado
de entrância inicial é menos graduado do que o colega que ocupa outra mais
elevada, embora ambos tenham as mesmas prerrogativas e responsabilidades
constitucionais. Isto, aliás, gera uma disparidade de remuneração entre
magistrados que exercem a mesma função.
E, neste ponto, merece reflexão o fato de se vincular o escalonamento
remuneratório da magistratura de 1o grau às entrâncias, quando em verdade não
há diferença alguma entre juízes de Direito da capital ou do interior do Estado,
dado que num ou noutro caso são profissionais investidos no mesmo cargo.
A antiguidade, como é cediço, constitui valor de significativa importância
na carreira, que vai de Juiz Substituto a Desembargador. A valorização da
carreira, entretanto, não se firma com a mera existência de entrâncias, mas sim
com o tempo de serviço na classe, requisito sempre considerado na promoção,
remoção ou acesso.
Depois de promovido o Juiz Substituto a Juiz Titular, nada justifica que este
tenha tratamento diferente de outro Juiz de Direito, a não ser naturalmente,
em decorrência da antiguidade.
Há quem possa compreender que a mínima margem remuneratória daquele
que está no início da carreira e de quem está no final possa constituir um
desprestígio para os mais antigos. De fato, isso é um problema, contudo não
decorrente do sistema de entrância única e, sim, do sistema remuneratório dos
magistrados, que não contam atualmente com a extinta vantagem pecuniária do
adicional por tempo de serviço. Vale lembrar que já existe esforço da Associação
dos Magistrados Brasileiros – AMB para o resgate dessa vantagem pecuniária.
124
Revista ENM
De outra parte, o escalonamento em entrância contribui para o
distanciamento institucional do 2o grau de jurisdição em relação ao 1o
grau. Deveras, em muitos estados o Juiz de entrância final costuma ser mais
prestigiado pelo Tribunal de Justiça do que o magistrado de entrância inferior.
A instabilidade da prestação jurisdicional é outro efeito colateral decorrente
da criação de entrâncias, porquanto estas aceleram a alta rotatividade de juízes
em município de menor porte. É realmente comum que o juiz designado para
uma pequena cidade, onde normalmente a entrância é inicial, nela permaneça por
pouquíssimo tempo em virtude das promoções realizadas para outras entrâncias.
Ainda que o magistrado tenha a intenção de residir por mais tempo no
pequeno município para ali desenvolver um projeto de trabalho, ele será
praticamente obrigado a concorrer em promoções deflagradas para entrâncias
superiores instaladas em cidades maiores, sob pena de sofrer prejuízo na sua
carreira. O funcionamento desse sistema inevitavelmente estimula a vacância
nas comarcas menores de entrância inferior.
O sistema de várias entrâncias cria um desvalor social em relação a tais
localidades, desprestigiando-as, em flagrante prejuízo à administração da
Justiça, na medida em que força a movimentação prematura de magistrados e
a vacância do cargo de Juiz em municípios menores.
É certo que a existência de entrância única nos estados ainda representa
um tabu entre os magistrados, sobretudo por aparentemente colocar num só
universo um número maior de concorrentes ao acesso ao Tribunal de Justiça.
Essa questão, no entanto, é um problema inerente à efetividade dos critérios
objetivos de promoção e acesso, que devem ser aperfeiçoados, e não pode ser
apontado como decorrente dos sistemas de entrâncias.
Por fim, a consolidação de uma entrância única não engessará o magistrado
nas comarcas do Estado, pois ele poderá concorrer às remoções para outras
comarcas, conforme os critérios de antiguidade e merecimento. A vantagem
é que ele concorrerá se quiser realmente ser removido, e não apenas para
progredir na carreira, enfraquecendo a cultura do “carreirismo”.
3. Conclusão e proposição
A existência de várias entrâncias, como se vê, muito mais prejuízo resulta
ao sistema Judiciário do que benefícios, razão por que se propõe a adoção da
entrância única nos estados, permitida pela Constituição, como medida de se
conferir efetiva unidade à magistratura nacional.
Revista ENM
125
MONOGRAFIA
A pressa da justiça
morosa*
Roberto Portugal Bacellar
AMAPAR
Há muitos anos o Poder Judiciário recebe a crítica de que as soluções são
muito demoradas e em face do grande volume de serviço dos magistrados,
mesmo com a designação de muitas audiências por dia, algumas delas são
agendadas para até dois anos para frente.
Esta monografia de nome curioso e, a princípio, paradoxal – A pressa da
justiça morosa – apresenta um modelo de abordagem mais comum no sistema
do common law denominado estudo de caso.
No começo da década de 90, vários jornais inauguraram seções ou colunas
especializadas em Direito, descrevendo sentimentos dos leitores de pertencer a
uma sociedade mais justa onde seus direitos fossem respeitados. Registraramse dezenas de denúncias de mau atendimento e desrespeito ao cidadão pelos
prestadores de serviços públicos. Os jornais, por sua vez, diante desse novo
papel que lhes foi atribuído, abriram espaço em suas colunas, para registrar
e até responder a essas questões, servindo de instrumento de justiça para esse
grupo de indivíduos (SADEK, 2001).
Para contextualizar o problema objeto do estudo, por meio do método
“caso análise”, temos como ponto de partida a suposta narrativa de um
jurisdicionado encaminhada a um veículo de comunicação. A partir dessa
história de atendimento ao jurisdicionado pelo Poder Judiciário passaremos
a analisar a percepção dele como consumidor de serviços judiciários sobre
a qualidade e eficiência/ineficiência do sistema. Após a análise dos fatos o
desafio será o de projetar e construir medidas prospectivas em prol da atuação
de um Poder Judiciário de qualidade com a abertura de um leque de soluções
* Concurso de Monografia da AMB –Vencedor da Área II (Planejamento Estratégico do Judiciário)
126
Revista ENM
possíveis a fim de que o verdadeiro atendimento do jurisdicionado também
seja “Finalidade da Justiça”.
A monografia tem inspiração constitucional no postulado maior e
fundamento antropológico comum da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1o,
III) e no princípio da Eficiência (previsto, dentre outros, nos arts. 37 e 39 da
Constituição da República).
1. Os fatos do caso análise
“Recebi a intimação de que meu processo teria audiência de conciliação,
instrução e julgamento. Pensei: finalmente meu caso vai ser julgado; como ainda
tinha um ano e meio até o dia designado, me preparei muito para falar com o juiz.
Dias antes da audiência não pude nem dormir e minha cabeça rememorava
cada uma das melhores formas que eu já tinha planejado para contar o caso
para o juiz.
No dia, já pulei da cama bem cedinho revisei tudo, fiz anotações e uma hora
antes já estava no Fórum esperando meu advogado. Meu coração estava agitado
e esperar com calma era difícil no ambiente do fórum que estava uma correria.
Uma coisa eu estranhei: demorou tanto para chegar o dia do julgamento
e lá no fórum parecia que todo mundo estava com pressa. A audiência estava
marcada para 14h, já era mais de 15h e ninguém falava nada; meu advogado
confirmou que o caso ia ser julgado, mas ia atrasar mais um pouco. Começou
com quase duas horas de atraso e o juiz estava com muita pressa: ele entrou na
sala, nem se apresentou e já foi falando sobre o caso. Também percebi que ele
estava com pressa porque quando eu comecei a contar o ocorrido ele enfiou a
cabeça dentro daquele monte de papel do processo e ficou virando as páginas
para frente e para trás. Parei de falar por um instante e ele disse: ‘pode falar
que eu estou ouvindo!’. Comecei novamente a falar sobre o que eu queria e ele
disse que era para eu chegar logo no ponto; continuei um pouco inseguro e ele
esclareceu que eu estava falando sobre coisas que não eram ‘objeto da lide’. Não
entendi muito bem, mas avancei falando e definitivamente fui interrompido
porque o ponto que eu deveria falar era aquele do processo: era para falar
do valor que o advogado pediu; quando eu comecei a falar do dinheiro ele
começou a ler ‘de novo’ o caso; capotou o processo para um lado e para o
outro sem prestar atenção no que eu estava falando. Percebi que ele realmente
estava com pressa e não ia me ouvir. Parei de falar. Eu havia me preparado
muito e tinha todo o tempo do mundo para contar o caso e buscar uma solução.
Revista ENM
127
No fundo eu até entendi que para o juiz eu era só mais um número. Para mim,
resolver o caso com meu vizinho era realmente muito importante.
Lembro que teve uma hora na audiência que começamos a conversar –
meu vizinho (a outra parte) e eu – e parecia que as coisas iam se encaminhar,
já tínhamos algumas possibilidades de acordo e quase chegamos lá. Mas o
juiz disse que infelizmente não teria mais tempo para conversa e tinha de
começar a instrução. Eu argumentei que a conversa estava boa e poderia nos
levar a uma conciliação. Ainda assim o caso foi instruído – como eles dizem.
Ouviram testemunhas, minha fala não foi registrada porque quando eu tentei
falar novamente disseram que os advogados não tinham pedido depoimento.
Meio difícil de entender: eu estava ali e poderia esclarecer algumas coisas para
ajudar a resolver a questão.
Saiu a decisão na hora. Condenaram o vizinho a me pagar 7 mil. Eu tentei
falar com o juiz sobre a sentença e ele disse que agora só podia mudar alguma
coisa se eu recorresse. Eu ia dizer apenas que eu sei que ele não tem como
pagar e por isso queria muito contar para o juiz que não era bem isso que eu
queria, eu queria era resolver o caso mesmo. Fazer o quê? Tinha muita vontade
de voltar o caso e aproveitar aquele momento e continuar conversando até
achar uma solução. Agora a coisa ficou pior e o relacionamento está péssimo.
Eu tinha todo o tempo do mundo, mas depois de tantos anos de espera, o juiz
estava com muita pressa de julgar rápido o processo naquele dia. Foi o que ele
fez e até entendo: são tantos os outros casos, não é?”
2. Desafios
Sabe-se que o desafio de satisfazer os interesses do jurisdicionado não é
tarefa fácil.
Os resultados que o usuário espera (e avalia de maior importância) –
rapidez, bom atendimento (qualidade), clareza, informalidade e efetividade
geram uma expectativa.
A relação entre o que o cidadão (jurisdicionado) espera do juiz e aquilo que
o juiz faz (decidindo ou não o mérito da causa) é que determina a qualidade
do serviço – segundo a perspectiva dele, jurisdicionado.
Se no passado atender apenas ao pedido imediato do jurisdicionado
dirigido ao Estado-juiz de condenação, de constituição ou de declaração
era suficiente para determinar a eficiência formal do Poder Judiciário, hoje
a exigência é por uma tutela de resultados que produza efetivos resultados
128
Revista ENM
práticos e proporcione atendimento à expectativa de justiça do cidadão. A isso,
como resultado, se tem denominado de tutela jurisdicional justa.
Se no passado prometer acesso formal à justiça era suficiente, hoje esse
acesso é denominado de acesso à ordem jurídica justa, o que inclui um
processamento adequado e célere. A celeridade, entretanto, não mais pode
ser analisada apenas na perspectiva do Estado, antes deve ser tomada a partir
dos interesses do principal destinatário da Justiça que é o jurisdicionado. A
celeridade só se impõe e se justifica tendo em vista o interesse do jurisdicionado.
O acesso à ordem jurídica justa mede-se pela correspondência mais próxima
que houver entre a qualidade esperada do Poder Judiciário e a experimentada
pelo cidadão. Essa relação vai determinar a satisfação ou não satisfação do
jurisdicionado e a realização ou não realização da nova promessa “acesso à
ordem jurídica justa”.
O caso retrata a evidência corrente de que muitos dos valores e expectativas
do cidadão de ser respeitado, ouvido e valorizado pelo Poder Judiciário não têm
sido considerados. Mesmo no plano operacional dos tribunais, valorizam-se
mais a celeridade numérica, quantitativa e as soluções que resultam na extinção
de processos. Esse tecnicismo, embora elogiável para parcela das demandas
e necessário a vencer o índice de congestionamento dos tribunais, não pode
desconsiderar o jurisdicionado como ser humano (art. 1o, III, da Constituição
da República).
Os fatos narrados indicam haver algumas soluções técnico-jurídicas
que acabam sendo inadequadas: na perspectiva do Tribunal, a celeridade
de extinguir processos na própria audiência é mais produtiva, a despeito e
até contra a vontade do jurisdicionado (desconsiderando totalmente a sua
perspectiva).
Aos olhos do principal destinatário e usuário da prestação jurisdicional, a
celeridade desejada no atendimento de seu caso (rapidez) não se confunde com a
pressa que ele percebe (da parte do Poder Judiciário) no dia do julgamento do seu
caso. Nesse dia, ele quer ser ouvido, quer atenção, quer ser respeitado e valorizado.
Para o jurisdicionado, qualidade depende de um serviço atencioso que será célere
ainda que demore todo o tempo necessário à satisfação de seus interesses.
Essa postura do Poder Judiciário, que desconsidera os interesses do
jurisdicionado, lembra a da rainha descrita por Antoinne de Saint-Exupéry que
“desejando conhecer os seus súditos e saber se eles gostavam de seu reinado,
saiu dos limites do palácio e vislumbrou pessoas felizes, bem alimentadas;
Revista ENM
129
tudo isso cuidadosamente preparado pelos cortesãos que ergueram ao longo
da estrada um cenário maravilhoso e contrataram artistas para que dançassem
ali. Fora daquele estreito caminho ela nem sequer entreviu nada, e não soube
que pelos campos adentro seu nome era amaldiçoado pelos que morriam de
fome” (apud, CALANZANI, 1999, p. 29).
O acesso à ordem jurídica justa, como concretização da realidade dos
fatos, exige uma nova percepção de celeridade voltada a analisar o tempo pela
importância que o jurisdicionado a ele destina.
Todos os entraves já conhecidos que determinam a demora na prestação da
tutela jurisdicional não justificam a pressa no atendimento ao jurisdicionado.
“O tempo social é estudado pela cronêmica. Trata-se da percepção,
estruturação e reação ao tempo social, assim como às mensagens que
interpretamos através de seu uso. O conceito de tempo é parte essencial da
forma como vemos o mundo e interagimos com ele.” (RECTOR, 2003, p.78)
“Hoje, a unidade ‘hora’ deixou de ser o referencial da rapidez porque os
cronômetros estão preparados para os milionésimos de segundo. Esta nova
modalidade de viver tem como referencial a instantaneidade...” (MACCALÓS,
2002, p. 162).
A exigência de rapidez assusta porque sabemos que em alguns casos a
demora (na prestação da tutela jurisdicional) é necessária ao alcance de uma
solução justa. Há situações, entretanto, que independentemente do tempo de
espera é preciso valorizar o atendimento.
A falta de respeito ao jurisdicionado ou a percepção dele de que foi mal
atendido, ou atendido com pressa, prejudica a imagem e a legitimação social
do Poder Judiciário.
Não interessa e não é a prioridade do jurisdicionado, por exemplo, se
o índice de congestionamento dos tribunais diminuiu ou se os juízes são
trabalhadores e têm boa produtividade nas suas (belas e bem fundamentadas)
sentenças de mérito. Interessa sim, a esse consumidor (de justiça), que ele
seja bem atendido, receba as informações necessárias em linguagem acessível.
Claro que a ele também interessa que a solução final do seu caso seja rápida,
seja eficaz e, segundo sua perspectiva, seja justa.
Além do conhecimento técnico-jurídico, o desenvolvimento de habilidades
sociais e humanistas pelos magistrados é uma necessidade voltada ao melhor
atendimento jurisdicionado. Capacitações permanentes a partir da definição
de políticas públicas podem ser estimuladas ainda mais pela Escola Nacional
130
Revista ENM
de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam-STJ) e aplicadas em
todos os tribunais brasileiros.
A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados
(Enfam), a partir do art. 105, parágrafo único, I, da Constituição da
República, por meio das Resoluções 1/2007 e 2/2007, com ênfase na
formação humanística e pragmática dos magistrados apresentou, em um
primeiro momento, um balizamento geral destinado a orientar e colaborar
com os tribunais regionais federais e tribunais de Justiça na implementação
dos cursos de formação para ingresso, aperfeiçoamentos para vitaliciamento
e promoção de magistrados. Em seguida, e antes ainda de estabelecer as
diretrizes para os conteúdos programáticos mínimos, a Enfam colheu
subsídios das escolas de Magistratura Federal e Estadual e obteve, por meio
dessa interface, preciosas informações necessárias a projetar o perfil de
magistrado que se espera ver integrado aos quadros da magistratura, perfil
esse de um magistrado integral, humanista, pragmático e com conhecimentos
interdisciplinares que o capacitam a manter um relacionamento aberto com
a sociedade.
Uma formação humanista e interdisciplinar, além de tratar de situações
práticas da atividade e de assuntos diretamente relacionados ao exercício
jurisdicional (elaboração de decisões, sentenças, audiências e alterações
legislativas), abrange conhecimentos relativos às relações interpessoais e
interinstitucionais, psicologia, sociologia, deontologia, ética, administração
e gestão de pessoas, recursos da informação, impacto político, econômico e
social das decisões judiciais, difusão da cultura de conciliação como busca da
paz social, técnicas de conciliação, dentre outros conhecimentos.
O próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como gestor de políticas
gerenciais de uma magistratura nacional pode formular recomendações aos
tribunais no sentido de formar, capacitar e aperfeiçoar continuamente os
magistrados e servidores para atender, no contexto de programas de qualidade,
as expectativas do jurisdicionado como cidadão.
Indaga-se e questiona-se sobre essa possibilidade de efetivamente atender a
todas essas expectativas do cidadão.
A experiência do Poder Judiciário, como órgão oficial de resolução de
controvérsias, tem indicado que a satisfação plena é muito difícil de ser
alcançada. Quem decide sempre desagrada e, portanto, sempre haverá
insatisfação. Ninguém melhor que Millôr Fernandes para exprimir esse
Revista ENM
131
sentimento de desagrado permanente do destinatário da justiça: “– como é
que eu posso acreditar numa Justiça que dá razão aos outros?”.
Se não é possível chegar ao ideal, certamente é possível conduzir um
processo de modo a valorizar a pessoa humana dentro de uma perspectiva de
acesso à ordem jurídica justa.
A celeridade esperada pelo jurisdicionado não é a que decorre de
julgamentos apressados ou a que determina produtividade quantitativa.
Para chegar mais além, há necessidade de um esforço no sentido de
prestigiar o jurisdicionado dando ao caso atenção e destinando a ele o tempo
necessário à sua percepção de satisfação com celeridade. E a proposta é a de
que o atendimento presencial seja qualificado, que a morosidade e a demora
não pretendam ser compensadas no dia do atendimento das partes e em
desatenção às suas necessidades de serem ouvidas.
3. A Dignidade da pessoa humana e o Princípio da eficiência
O Postulado maior e fundamento antropológico comum a todos os
princípios constitucionais é o da Dignidade da Pessoa Humana.
Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos:
...
III – A dignidade da pessoa humana.
O princípio constitucional da eficiência é originário da ciência da
Administração e é descrito, dentre outros, nos arts. 37 e 39 da Constituição
da República.
O parágrafo 7o do art. 39 deixa clara essa assertiva ao descrever:
Art. 39
(...)
§ 7o Lei da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios
disciplinará a aplicação de recursos orçamentários provenientes
da economia com despesas correntes em cada órgão, autarquia
e fundação, para aplicação no desenvolvimento de programas
de qualidade e produtividade, treinamento e desenvolvimento,
modernização, reaparelhamento e racionalização do serviço público,
inclusive sob a forma adicional ou prêmio de produtividade.
132
Revista ENM
O Poder Judiciário, por ser titular do monopólio jurisdicional1, pouco
se incomodava, no passado, com a visão do povo, principal destinatário das
decisões judiciais.
Hoje, as colunas de leitores nos jornais, artigos assinados (como verdadeiros
desabafos), enquetes e pesquisas de opinião têm retratado a falta de respeito ao
cidadão que necessita dos serviços judiciários.
Tais reclamações, em relação ao atendimento do jurisdicionado, devem
ser também consideradas com fonte de inspiração para mudanças, inclusive
na interpretação do que seja acesso à ordem jurídica justa que deve ter como
componente a celeridade, tendo em vista os interesses dos jurisdicionados.
Alguns formulários de satisfação aplicados em tribunais brasileiros igualmente
têm sido uma rica fonte de conhecimento para identificar desrespeitos ao
cidadão e aperfeiçoar a atividade do Poder Judiciário.
A qualidade dos serviços judiciários – com foco na satisfação dos interesses
dos usuários – é o caminho para o alcance da eficiência.
A eficiência, em parte, resultará como consequência da melhor qualificação
do tempo destinado ao atendimento do jurisdicionado. Independentemente
da fração de tempo destinada ao jurisdicionado, nela o juiz e os servidores
precisam dar toda a atenção aos desabafos, ansiedades e reclamos do cidadão.
Resulta a convicção de que a imagem do Poder Judiciário perante a
população pode melhorar, a despeito da demora e até mesmo do conteúdo da
decisão de mérito, desde que o jurisdicionado seja bem atendido e valorizado.
4. Celeridade e justiça como valores dos jurisdicionados
A busca da paz é a razão da existência do Poder Judiciário. A pacificação
social é o resultado que se almeja quando se procura o Estado-Juiz e na
pacificação está o valor: Justiça.
Como se fez breve referência e bem ressalta GRISSANTI em seu estudo, “a
partir do começo da década de 90, um crescente número de jornais inaugurou
seções ou colunas especializadas em direito. Essa data tem estreita relação
com o restabelecimento da democracia e movimentos de conscientização
da cidadania. Esse sentimento de pertencer a uma sociedade, de ter seus
direitos respeitados, levou alguns cidadãos a apresentar denúncias contra os
1
Nasce hoje uma pequena “concorrência” formada pelos denominados tribunais arbitrais oriundos da Lei
9.307/1996 (Lei Marco Maciel).
Revista ENM
133
serviços prestados por certos órgãos públicos, no que diz respeito ao mau
atendimento, não execução de serviços etc. E outros, como consumidores,
foram levados a apresentar queixas quanto à qualidade dos serviços ou
produtos adquiridos. Perceberam, então que, para essas “pequenas” questões
de direito, os jornais com que tinham contato diário, ou quase diário,
poderiam ser um veículo a mais para fortalecê-los diante da ‘surdez’ de uma
empresa que se recusa a atender às reclamações de seus consumidores, ou
da ‘cegueira’ de órgãos públicos que não vêem seus usuários com o respeito
que merecem. Os jornais, por sua vez, diante do novo papel que lhes foi
atribuído, abriram espaço em suas colunas, passando a responder a essas
questões, servindo de instrumento de justiça para esse grupo de indivíduos.”
(SADECK, 2001, p. 219).
Só na cidade de São Paulo esse estudo selecionou sete jornais – o Estado
de S. Paulo, Gazeta Mercantil, Folha de S. Paulo, Jornal da Tarde, Agora São
Paulo, Diário Popular e Notícias Populares –, dos quais cinco foram analisados.
As reclamações são tanto em relação ao processo (forma, tempo, local,
atendimento) quanto em relação ao resultado.
Sabe-se haver maior satisfação quando a solução é alcançada diretamente
pelas partes em uma negociação, conciliação ou mediação. Quando isso
não é possível torna-se necessário fazer Justiça pela atividade final do juiz no
processo, que é a sentença (a decisão da causa). O desafio de fazer com que
o sentimento de justiça do juiz corresponda exatamente ao sentimento de
justiça das partes é muito difícil de ser alcançado.
Não é missão difícil, porém, atender com respeito, com educação e com
urbanidade ao cidadão que procura pelos serviços judiciários.
Justificado pelo absurdo volume de serviço nos juízos brasileiros, os
magistrados estão constatando a triste realidade narrada pelo cidadão: “demoram
para atender as partes e ao atendê-las o fazem com pressa”.
Perceba-se, em uma análise realista, que, depois de toda a demora no
atendimento das partes, não se afigura razoável um atendimento apressado e
que seja percebido pelo jurisdicionado como falta de respeito, falta de atenção
e desconsideração.
5. Reflexões e conclusões
Por acreditar na viabilização de efetivas medidas de gestão oriundas do
próprio Poder Judiciário é que os tribunais deverão construir, com base nos
134
Revista ENM
princípios da administração, uma projeção estratégica voltada ao atendimento
do jurisdicionado.
Além de produzir, em nome do Estado, decisões judiciárias e solucionar
controvérsias, os magistrados e os servidores precisam ser capacitados para
ouvir os reclamos da população e viabilizar um atendimento ao público de
qualidade.
Formulários de satisfação e outros mecanismos de pesquisa poderão indicar
as deficiências a serem corrigidas. Instrumentos de gestão estratégica e de
acordo com as diretrizes da Enfam facilitarão a capacitação e qualificação dos
magistrados para melhor desempenho social e atendimento do jurisdicionado.
As propostas estratégicas de treinamento, capacitação e percepção da
celeridade poderão levar o Poder Judiciário a alcançar o ideal de efetivação da
promessa de “acesso à ordem jurídica justa”, que é aquela analisada segundo a
perspectiva do jurisdicionado.
Da experiência vivida pelo Poder Judiciário, resulta a convicção dirigida à
necessidade de democratizar gestão ouvindo os jurisdicionados e capacitando
melhor os magistrados.
O prestígio dos juízes e do próprio Poder Judiciário depende
fundamentalmente do atendimento do jurisdicionado. A demora na prestação
jurisdicional é menos traumática do que a pressa que é percebida pelo
jurisdicionado como desatenção e desrespeito.
O momento atual exige que o Poder Judiciário resgate a sua boa reputação,
amplie a sua legitimação social e faça aflorar sua essência (um serviço público
essencial e de qualidade).
“Há esperança, e o limite entre o possível e o impossível está na força,
na coragem e na determinação que dedicarmos aos nossos ideais.”
Referências bibliográficas
BACELLAR, Roberto Portugal. Juizados especiais: a nova mediação paraprocessual. São Paulo: RT, 2004.
______. A mediação no contexto dos modelos consensuais de resolução de conflitos. Revista de Processo, São
Paulo, vol. 95, jul.-set. 1999.
CALANZANI, José João. Metáforas jurídicas: conceitos básicos de direito através do processo pedagógico
da metáfora. Belo Horizonte: Inédita, 1999.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988.
CAVALCANTE, Ricardo Caribé. A Comunicação Organizacional e a Legitimação Social de Organizações.
Revista Comunicação Organizacional, GEACOR - PPGCOM - FAMECOS/PUCRS. Disponível em:
<www.pucrs.br/famecos/geacor/texto9.html> Acesso em: 6/5/2004.
GRÖNROOS, Christian. Marketing gerenciamento e serviços. Trad. Cristina Bazán. Rio de Janeiro:
Campus, 1993.
HOLLEY, G. Saunders. Estratégia de marketing e posicionamento competitivo. Prentice Hall, 2001.
Revista ENM
135
JOBIM, Nelson. Problema da Justiça começa na primeira instância. Gazeta Mercantil, São Paulo, 16 set.
1998.
KANITZ, Stephen. Ponto de vista: preparadas para servir. Revista Veja n. 1850, ano 37, n.16, São Paulo:
Abril, 2004.
LAS CASAS, Alexandre Luzzi. Marketing de serviços. São Paulo: Atlas, 1991.
MACCALÓZ, Salete. O Poder Judiciário, os meios de comunicação e a opinião pública. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2002.
MACHADO-DA-SILVA, Clóvis L. Análise e Mudança Organizacional. Apostila, MBA Gestão Empresarial
- CEPPAD/UFPR/Univ. Corporativa Banco do Brasil, março 2003.
MADALENA, Pedro. Administração da justiça. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 1994.
MARCHETTI, Renato. Gestão estratégica de marketing. Apostila, MBA - CEPPAD/UFPR, Banco do
Brasil, setembro 2003.
MINTZBERG, Henry. Criando organizações eficazes: estrutura em cinco configurações. Trad. Cyro
Bernardes. São Paulo: Atlas, 1995.
MINTZBERG, Henry; AHLSTRAND, Bruce; LAMPEL, Joseph. Safari de estratégia. Trad. Nivaldo
Montingelli Jr. Porto Alegre: Bookman, 2000.
OLIVEIRA, Marco Antonio (Coord.). Vencendo a crise à moda brasileira: “turnaround” em empresas
nacionais. São Paulo: Nobel, 1994.
SADEK, Maria Tereza (org.). Acesso à justiça. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001.
SANTOS, Alvacir Correa dos. Princípio da eficiência da administração pública. São Paulo: LTr, 2003.
SOUSA SANTOS, Boaventura de. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Revista
Forense, Rio de Janeiro, 1980.
______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 6. ed. São Paulo: Cortes Editora, 1999.
TROUT, Jack e Ries. Posicionamento. São Paulo: Pioneira, 1995.
VIANA, Jairo. Justiça. Lux Jornal. Jornal de Brasília, Brasília, 27 dez. 1998.
WALLACE, Thomas. A estratégia voltada para o cliente. Campus, 1994.
WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. São Paulo: RT, 1988
136
Revista ENM
Guilherme Newton Dumont Pinto
AMARN – RN
Resumo
A independência dos órgãos que compõem o Judiciário, inclusive os
singulares, para ser plena, necessita abranger tanto a independência interna
quanto a externa. Assim, a forma hierarquizada como foi concebido o
Judiciário brasileiro, por atentar contra a independência interna, vulnera a
garantia constitucional. A hierarquia decorre da concentração, nos chamados
“órgãos de cúpula”, das funções jurisdicionais e administrativas, de tal forma
que a quebra da hierarquia só se daria com a redistribuição das funções a
serem entregues a órgãos distintos, cabendo a função administrativa, com
exclusividade, ao Conselho Nacional de Justiça e a conselhos estaduais,
instituídos com respeito ao princípio democrático.
Palavra-chave
Poder Judiciário. Independência. Hierarquia. Democracia. Funções
Judiciárias. Conselho Nacional de Justiça. Conselhos Estaduais de Justiça.
ABSTRACT In order to be absolute, the independence of all organs that
* Concurso de Monografia da AMB – Vencedor da Área I (Democratização do Judiciário)
Revista ENM
137
MONOGRAFIA
Da hierarquia à
democracia: a difícil
aproximação entre o
discurso e a realidade
judiciária
constitute the Judiciary, including the singular ones, has to be internal as well
as external. Therefore, the way that Brazilian Judiciary has been conceived,
hierarchically, attempts against the internal independence and offends the
constitutional guarantee. The hierarchy originates from the concentration
of both jurisdictional and administrative functions in what we call “dome
organs”, in such a way that the rupture of this hierarchy would only be
possible with the redistribution of the mentioned functions to different
organs, competing the administrative function exclusively to the National
Council of Justice and to State Councils, both created with absolute respect
to the democratico principle.
KEY-WORDS. Judiciary. Independence. Hierarchy. Democracy. Judicial
functions. National Council of Justice. State Councils of Justice.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Independência do Judiciário. 3. Independência
Interna e Hierarquia. 4. A Distribuição das Funções Judiciárias e a
Hierarquização do Judiciário. 5. A Redistribuição das Funções Judiciárias e
a Democratização do Judiciário. 6. O Significado Institucional do Conselho
Nacional de Justiça. 7. Os Conselhos de Justiça Estaduais. 8. Conclusão.
1. Introdução
Costuma-se falar em independência do Judiciário e em democratização
da Justiça como se fossem apenas belas expressões destinadas a enfeitar, com
a marca da retórica, os eloquentes discursos que, com certa frequência, se
repetem nas tradicionais solenidades dos edifícios judiciários, sem que o
verdadeiro significado, que se encontra sufocado pela sua utilidade estética,
tenha qualquer possibilidade de emergir ao mundo real, onde se travam as
verdadeiras batalhas por Justiça, cuja realização clama, e quase que grita, por
um Judiciário efetivamente independente e democrático .
Qual o verdadeiro grau de independência do Judiciário brasileiro? Estará
a Instituição Judiciária no Brasil, em seu todo e em sua plenitude, protegida
pela independência que, com certa facilidade, passeia entre os dispositivos
constitucionais e os discursos forenses?
Para que se possa responder a estas indagações, se faz necessário
examinar o alcance e a abrangência da independência necessária à Instituição
Judiciária. Não só em seu aspecto externo, perante os demais Órgãos e
138
Revista ENM
Poderes do Estado, mas, sobretudo, a independência interna, de um órgão
para com o outro, de juízes, por exemplo – órgãos singulares e base de toda
a estrutura judiciária –, para com os tribunais, que se situam no topo da
pirâmide recursal.
Se a percepção dos que fazem da independência uma ferramenta retórica
é da presença desta em sua mais larga abrangência – salvo, se muito,
algumas máculas decorrentes da insuficiência financeira –, um exame um
pouco mais profundo faz com que nos deparemos, de imediato, com a
constatação de uma estrutura hierarquizada, em que órgãos se sobrepõem
a outros, não somente no aspecto recursal, mas em absolutamente todas
as esferas de atuação, donde se torna inafastável a perplexidade diante
da incompatibilidade que o senso comum diz existir entre independência
e hierarquia. Surge a indagação, quase que intuitiva, se poderá haver
hierarquia e, ao mesmo tempo, a proclamada independência dos órgãos
judiciários.
A democracia, por sua vez, encontra dificuldades ainda maiores em sair
do mundo retórico e vir a povoar a realidade forense. A começar pelo fato
de que qualquer democracia que se pretenda na Instituição Judiciária terá
que conviver com o seu “pecado original”, decorrente da impossibilidade
de se impor, de forma razoável, a legitimidade eletiva aos seus membros –
legitimidade que se faz presente nos demais poderes do Estado, mas que, na
acertada opção constitucional pelo critério técnico de seleção dos membros do
Judiciário, encontra um obstáculo intransponível.
Resta a democracia interna, isto se a pretensão for a de que o princípio
democrático, proclamada em verso e prosa na Constituição Federal, não
seja um conceito absolutamente estranho à Instituição Judiciária que,
curiosamente, é posta como responsável pela proteção e garantia do princípio,
erigida que é ao grau de sua guardiã.
O enfrentamento desta questão se dará na abordagem de alguns aspectos
mais relevantes e atuais, como o significado do Conselho Nacional de Justiça
na independência e democratização do Judiciário, e na perspectiva de criação
de Conselhos Estaduais assemelhados que puderem cumprir o mesmo papel e
de forma até mais alargada.
É esta a pretensão temática do presente trabalho, que aqui foi posta, ainda
que de forma sucinta e introdutória, e que almeja ser uma contribuição, ainda
que singela, para a aproximação entre o discurso e a realidade.
Revista ENM
139
2. Independência do Judiciário
A primeira questão a ser enfrentada é a referente à independência do
Judiciário, tema que, aliás, não raras vezes enfrenta incompreensão e confusão.
Não nos interessa, para efeito do presente trabalho, enfrentar a questão
da independência institucional do Judiciário, pelo menos em seu aspecto
direto, ou seja, a independência da Instituição, do Poder Judiciário como um
todo e frente aos demais Poderes do Estado, que se traduz na independência
para se organizar e para regular o seu próprio funcionamento (art. 96 da CF)
e na autonomia administrativa e financeira (art. 98 da CF) que, de forma
razoável, já refletem a independência dos Poderes proclamada pelo art. 2º da
Constituição Federal.
Para os fins que aqui se propõe, centraremos o foco na independência da
magistratura, a partir da independência do juiz, ainda que considerado em
sua acepção orgânica, ou seja, como órgão do Judiciário, tal qual faz emanar,
com propriedade, a descrição do art. 92 da Constituição Federal, que coloca
não somente os tribunais, mas, também, o próprio juiz, como órgão do Poder.
Sob este ângulo, que traduz uma concepção da independência do
magistrado em seu aspecto individual, ainda que orgânico, poderíamos dizer
que a independência pode ser interna ou externa, e que, na expressão de
Canotilho, assim se diferencia:
A independência dos juízes tem uma dimensão externa e uma dimensão
interna. A independência externa aponta para a independência dos
juízes em relação aos órgãos ou entidades estranhas ao poder judicial.
A independência interna (que alguns autores identificam como
independência funcional) significa a independência perante os órgãos
ou entidades pertencentes ao poder jurisdicional”1.
A independência externa, acreditamos, já se encontra satisfatoriamente
blindada pelas garantias insculpidas na Constituição Federal, desde a
independência da própria Instituição e seu reflexo sobre os órgãos que a
compõem, até aquelas que Silva considera “garantias de independência dos
órgãos judiciários”2 – vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de
subsídios – sem desconsiderar, com inegável força, a distribuição de funções
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Edições
Almedina, 2003. p.664.
2
SILVA, José Afondo da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 578.
1
140
Revista ENM
entre os órgãos e poderes estatais que, se de alguma forma se submetem a um
controle recíproco decorrente da necessária manifestação do chamado sistema
de freios e contrapesos (cheks and balances), por outra não há qualquer avanço
significativo, a nível institucional, de qualquer dos Poderes sobre o Judiciário
que possa comprometer a independência, não só do Poder, como também dos
magistrados que o integram.
Daí que, salvo descompassos que se podem atribuir a fraquezas pessoais
ou desvios de caráter, não se pode imaginar, na realidade brasileira, em face
de todas as garantias constitucionalmente asseguradas, que algum magistrado
possa se sentir vulnerável diante de pressões porventura partidas de órgãos
externos à Instituição.
No que diz respeito à independência interna, entretanto, não obstante as
garantias constitucionais – da Instituição e dos juízes – a estrutura concebida pela
Constituição para o Poder Judiciário atenta contra o seu necessário resguardo,
de tal forma que os magistrados, em especial de primeiro grau, não guardam o
sentimento de estarem absolutamente isentos de pressões partidas dos órgãos
internos ao próprio Judiciário, pelo menos com a mesma desenvoltura com que
este sentimento se apresenta em relação aos órgãos externos.
Entre as razões que podemos apontar para tanto, uma nos parece determinante
– ainda que não tenha recebido dos que se propõem a enfrentar o tema considerações
mais profundas –, que é a forma hierarquizada como foi concebida a estrutura
do Poder Judiciário e que decorre, em grande parte, de uma indesejável mistura
e distribuição inadequada das funções atribuídas ao Judiciário – em especial a
jurisdicional e a administrativa –, que trataremos na sequência.
3. Independência Interna e Hierarquia
A independência interna que, no dizer de Zaffaroni, “implica a segurança de
que o juiz não sofrerá as pressões dos órgãos colegiados da própria judicatura”
está a exigir um mesmo grau de atenção que a independência externa,
razão pela qual, no seu pensar, “deve-se ter o mesmo cuidado em preservar
a independência interna, isto é, a independência do juiz relativamente aos
próprios órgãos considerados ‘superiores’ no interior da estrutura judiciária”.
E adverte: “na prática, a lesão à independência interna costuma ser de maior
gravidade do que a violação à própria independência externa”3.
3
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Poder Judiciário: Crise, Acertos e Desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1995. p. 88.
Revista ENM
141
Com efeito, nenhum valor tem a independência do magistrado em relação
aos órgãos externos ao Judiciário se, em relação às autoridades e órgãos que
compõem a própria estrutura do Poder a que pertence, guarda laços de
dependência capazes de comprometer a absoluta isenção e liberdade de seus
atos, em razão de pressões que destes possa receber.
Examinando o Judiciário brasileiro, não se pode negar que a independência
interna, que pretensamente também estaria garantida pela tríplice proteção
constitucional – vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios
– sofre um visível ataque das contingências que decorrem da própria estrutura
do Poder, como que a miná-la em seu intento de tornar isento o magistrado,
de forma absoluta, de eventuais pressões que lhe sejam dirigidas de dentro da
própria instituição.
É que a estrutura do Judiciário brasileiro, diferentemente do que se apregoa
no discurso comum, se posta de forma inegavelmente hierarquizada e, ao que
nos parece, difícil supor hierarquia divorciada de força advinda da escala superior
ou, pelo menos, de pressão desta, de modo que a suposta independência de
todos os órgãos jurisdicionais, em especial os de “menor hierarquia”, há de
vulnerar-se ou, pelo menos, desprover-se do necessário caráter absoluto, em face
da estrutura hierarquizada. Em outras palavras, incompatível a independência
pretendida com hierarquia efetivamente existente.
Há de se acentuar que a hierarquia que se observa na estrutura judiciária
brasileira não se limita ao campo recursal que, inclusive, não é suscetível de
ocasionar maiores problemas quanto à independência, máxime quando se
permite a compreensão da questão sob o ângulo tão somente da diferenciação
de competência, onde alguns órgãos, de hierarquia recursal superior, têm
competência distinta, competência esta que se compreende como a de julgar,
com igual independência, e em segunda instância, causa já decidida pelo órgão
de hierarquia recursal inferior. Tal circunstância, em verdade, muito longe de
se constituir em afronta à independência do órgão de competência originária,
se traduz em uma garantia ao duplo grau de jurisdição, ou seja, em uma
garantia de que os julgamentos podem ser revistos por outro órgão, distinto
do que julgou inicialmente a causa, preferencialmente coletivo e formado por
magistrados supostamente mais experientes.
O problema é que a hierarquia que se verifica na estrutura do Judiciário
brasileiro vai muito além da recursal, já que abrange absolutamente
todas as esferas de atuação, destacadamente a correicional, a funcional e a
142
Revista ENM
administrativa. Com efeito, os órgãos de cúpula recursal de cada esfera do
Judiciário concentram, a par desta função, a supremacia e a superioridade no
exercício das funções de administração da Justiça, aí se incluindo as esferas
relativas à atividade correicional e as deliberações de natureza funcional.
Dessa forma, não se pode enxergar o Judiciário brasileiro senão sob a forma
de uma estrutura hierarquizada e, neste ponto, está o primeiro descompasso
entre o discurso – que insiste em se apegar a uma suposta horizontalidade
que, entretanto, não vai além da fronteira da retórica – e a realidade, de onde
se extrai uma hierarquia que, de tão transparente, é perceptível até mesmo
pelos que, sem integrarem o Judiciário e mesmo sem ter com ele nenhuma
afinidade, lançam sobre o mesmo breves, leigos e despretensiosos olhares.
Necessário salientar que ao afirmar a existência de uma estrutura
hierarquizada não estamos falando de um plano ideal, pretendido pela
Constituição. Não nos referimos à intenção constitucional de um Judiciário
horizontalizado, plano, mas à situação real, fática, observável em seu aspecto
prático, onde há uma inegável verticalidade dos órgãos que integram o Poder
Judiciário. Evidentemente, não se trata de uma hierarquia absoluta, ao estilo
castrense, onde há simplesmente obediência, até porque presentes, como
formas genéricas destinadas a preservar a independência dos magistrados, as
garantias constitucionais já mencionadas, mas apenas de uma estrutura de
formato hierarquizado onde prevalece, pelo menos, a reverência de um órgão
para com o outro.
Seria ingenuidade afirmar, tomando por base observação apenas
empírica, que entre os diversos órgãos que compõem a estrutura judiciária,
marcadamente entre os de instância “inferior” em relação aos de instância
“superior”, que persiste uma absoluta horizontalidade, sem que haja, de uma
forma geral, qualquer resquício de reverência, de deferência proveniente
da posição de “superioridade” estrutural. Seria ingenuidade afirmar que o
único sentimento existente entre tais órgãos seria o respeito decorrente dos
atributos inerentes ao fato de estarem situados em uma escala superior da
estrutura recursal, destacadamente a experiência e a suposta amplitude de
conhecimento. Evidentemente há, de forma inegável, um sentimento que
ultrapassa a fronteira da admiração e do respeito meritório para se situar no
campo da reverência, que decorre diretamente da posição estrutural “superior”
que ocupa, com visível correlação com os poderes que dispõem tais órgãos.
É neste sentido que se fala em hierarquização da estrutura judiciária.
Revista ENM
143
Os perigos desta hierarquização, em especial sobre a independência interna,
são proclamados, em forma de uma comparação genuinamente original, por
Zaffaroni, em uma feliz metáfora:
Um juiz independente, ou melhor, um juiz, simplesmente, não pode
ser concebido em uma democracia moderna como um empregado
do executivo ou do legislativo, mas nem pode ser um empregado
da corte ou do supremo tribunal. Um poder judiciário não é hoje
concebido como mais um ramo da administração e, portanto,
não se pode conceber sua estrutura na forma hierarquizada de
um exército. Um judiciário verticalmente militarizado é tão
aberrante e perigoso quanto um exército horizontalizado4.
Com efeito, a essência do Judiciário é a independência, incompatível com a
hierarquia, assim como a essência de uma organização militar, como o Exército,
é a disciplina, a hierarquia, incompatível com a independência. Não se concebe
juízes em uma estrutura verticalizada, hierarquizados, devendo obediência uns
aos outros, assim como não se concebe militares horizontalizados, independentes,
descomprometidos com ordens de seus superiores.
Inegável, portanto, sob este argumento, que a forma hierarquizada do
Judiciário brasileiro corresponde a um atentado à independência dos seus
juízes e que, se não se manifesta de forma mais acentuada, é pelo fato de que
as demais garantias constitucionais, a despeito da estrutura verticalizada de
organização do Poder, embasam uma pretensão mínima de independência.
Em outras palavras, as garantias constitucionais que pretendem preservar
a independência do juiz não o fazem de forma absoluta, plena, pois que esta
se encontra sujeita aos ataques das pressões dos próprios órgãos internos ao
Judiciário, e que inequivocamente decorrem da estrutura hierarquizada que se
verifica na organização do Poder Judiciário.
5. A Distribuição das Funções Judiciárias e a Hierarquização do
Judiciário
Costuma-se identificar, dentre as funções atribuídas ao Poder Judiciário,
funções ditas judiciárias, três em especial: função de controle constitucional
4
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Poder Judiciário: Crise, Acertos e Desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1995. p. 88.
144
Revista ENM
(ou jurisdição constitucional); função de solução de conflitos (ou jurisdicional
propriamente dita); e função de auto-governo (ou de administração da Justiça
em sentido estrito).
São três funções distintas e inconfundíveis em sua essência cuja
distribuição entre os diversos órgãos que compõem a estrutura do Judiciário é
de fundamental importância para definir o perfil da Instituição.
Tradicionalmente, no Brasil, a função jurisdicional propriamente dita e a de
controle de constitucionalidade caminham juntas e se traduzem numa opção
constitucional plenamente admissível que, sob certo ângulo, até mesmo fortalece
o Judiciário. Assim, diferentemente da tradição continental europeia, onde, pelo
menos a partir do início do século XX, passou a adotar uma separação mais rígida
entre as duas funções, em especial através do sistema “austríaco”, de inspiração
Kelseniana, com a criação dos chamados tribunais constitucionais, no Brasil os
juízes e tribunais, a par de sua competência para a solução de conflitos – função
jurisdicional propriamente dita – também acumulam a função de controle de
constitucionalidade, seja de forma difusa, seja de forma concentrada.
Mesmo o Supremo Tribunal Federal concentra as duas funções – e nisto se
distingue essencialmente dos tribunais constitucionais europeus – exercendo
concomitantemente a função de controle de constitucionalidade, tanto na
forma concentrada quanto difusa, e a jurisdicional propriamente dita, se
constituindo em um Tribunal híbrido, ou seja, em um Tribunal Judicial que,
ao mesmo tempo, também faz as vezes de Corte Constitucional.5
O certo é que, não sendo desarrazoada esta opção constitucional pela
concentração das duas funções – ainda que haja defensores fervorosos da
existência no Brasil de uma Corte exclusivamente constitucional – e não
trazendo qualquer implicação sobre a independência do Judiciário e de seus
órgãos, foco de nosso trabalho, não dispensaremos maiores reflexões à questão.
Concentremo-nos na distribuição, entre os órgãos judiciários, das funções
jurisdicionais – e aí não há problema em se tratar indistintamente a jurisdição
propriamente dita e a jurisdição constitucional – e de administração da justiça6.
Observe-se que a Suprema Corte dos EUA também acumula as funções de controle de constitucionalidade
e a jurisdicional propriamente dita, porém somente as exerce de forma difusa, nisto se diferenciando do
STF que exerce as duas funções e o faz na forma difusa ou concentrada.
6
A expressão “Administração da Justiça” é, muitas vezes, utilizada em seu sentido amplo, principalmente
na doutrina estrangeira, significando a própria função jurisdicional, de julgar, porém aqui empregamos
em sentido restrito, que se assimila a função de auto-governo, e que significa tão somente a função
administrativa dos órgãos integrantes do Judiciário.
5
Revista ENM
145
No Brasil, como já foi referido, a função jurisdicional, atribuída a todos
os órgãos integrantes do Poder, encontra, entretanto, nos chamados “órgãos
de cúpula”, a sua instância superior, o que não poderia ser diverso e, ainda
que signifique uma certa forma de “hierarquia recursal”, não se afasta da
expressão de uma diferenciação de competências, necessária à garantia do
duplo grau de jurisdição, e que não atinge a independência de qualquer dos
órgãos jurisdicionais, tanto os que decidem em primeira instância quanto os
que detêm a competência recursal, ou seja, a de julgar em instância superior7.
Tal “hierarquia recursal” não é vista como uma hierarquia comprometedora
da independência dos juízes – em especial a independência política – de tal
forma que, em relação a esta, não se podem aplicar as advertências em relação
à verticalização da Instituição que, com apoio do pensamento de Zaffaroni,
acima foram feitas. É que tal hierarquia é insuscetível de fazer emanar pressões
dos órgãos “superiores” sobre os órgãos “inferiores” da estrutura judiciária.
Veja-se, a título de exemplo, a estrutura dos juizados especiais em que,
tal qual se observa na jurisdição comum, há órgãos que julgam em primeira
instância e outros que julgam em grau de recurso, ou seja, em um “grau
superior” na hierarquia recursal, que são as turmas recursais. No entanto, a
observação empírica demonstra a inviabilidade de qualquer forma de pressão
dos órgãos “superiores” (turmas recursais) sobre os órgãos “inferiores” pelo só
fato da posição que ocupam na estrutura recursal.
Em outras palavras, a existência de uma certa “hierarquia recursal” não é
suscetível de atentar contra a independência dos órgãos judiciários.
O problema é que, na estrutura judiciária brasileira, os órgãos que estão no
topo da estrutura recursal, os chamados órgãos de cúpula, acumulam, também,
a função administrativa – aí se incluindo todas as suas facetas, como a gestão
administrativa e financeira, a função correicional e o controle funcional – e é
exatamente neste aspecto que reside não só a percepção mas o efetivo formato
hierarquizado da estrutura do Judiciário brasileiro.
Com efeito, se o órgão que julga, e julga em instância superior, e detém
o legítimo poder de reapreciar os atos jurisdicionais dos demais órgãos
sujeitos à sua jurisdição, acumula também e em sua totalidade as funções
7
Questões como a da súmula vinculante, e mesmo o efeito vinculante das ações diretas de
inconstitucionalidade e das ações declaratórias de constitucionalidade, sob certo aspecto, podem atingir a
independência – não política mas jurídica – dos órgãos jurisdicionais, porém é uma reflexão que não cabe
no contexto do presente trabalho.
146
Revista ENM
administrativas, exercendo a gestão administrativa e financeira sobre estes
mesmos órgãos sujeitos à sua jurisdição, exercendo o poder correicional sobre
os juízes que lhe são “inferiores”, detendo o total controle funcional sobre
os mesmos, decidindo, por exemplo, todas as questões inerentes à sua vida
funcional, como promoções, remoções, apreciação de direitos, concessões
etc., não se poderia, ao se examinar a estrutura do Poder Judiciário, sequer
supor que aí não se encontra uma forma estruturalmente verticalizada,
hierarquizada.
É precisamente nisto – no acúmulo da função jurisdicional em sua
instância mais alta com a totalidade da função administrativa, em sua mais
larga abrangência – que reside o formato hierarquizado da estrutura do
Judiciário brasileiro. E é inegavelmente nesta hierarquia que a independência
dos juízes se encontra mais vulnerável.
6. A Redistribuição das Funções Judiciárias e a Democratização
do Judiciário
Identificado o problema da acumulação das funções jurisdicionais de
cúpula e administrativa como o que, de forma inequívoca, faz definir como
indesejavelmente hierarquizada a estrutura do Judiciário brasileiro, e já bem
fincado o sério atentado que tal hierarquia representa para a independência
interna do Juiz – que, se por um lado, goza de uma satisfatória independência
externa, fica, por outro, suscetível a pressões dos próprios órgãos internos ao
Judiciário –, não se poderia deixar de refletir sobre os efeitos benéficos, sob
este aspecto, que pudesse ter uma redistribuição de tais funções.
Ora, as três funções judiciárias básicas – solução de conflitos, controle de
constitucionalidade e administração – não se encontram, nenhuma delas,
entrelaçadas ao ponto de não poderem diferenciar-se e separar-se.
Na maioria dos países da Europa continental, por exemplo, estas funções
já se encontram separadas e entregues a órgãos distintos. Em geral, o controle
de constitucionalidade é exercido por um Tribunal Constitucional, algumas
vezes externo ao próprio Judiciário, que exerce, com plenitude, a jurisdição
constitucional. A função administrativa, em regra, é exercida por um Conselho
de Magistratura, composto não só por membros do Judiciário, como também
por membros externos à instituição, e que concentra a totalidade destas
funções, inclusive as funcionais, como nomeação de magistrados e controle da
vida funcional dos mesmos.
Revista ENM
147
Uma observação interessante é a de que a criação destes conselhos de
Magistratura na Europa, no início da segunda metade do século XX, foi
recebida com aplausos da maioria da magistratura, tendo em vista que,
como até então a função administrativa referente ao Judiciário era exercida
pelo Executivo, representou um avanço em termos de independência.
Diferentemente, no Brasil, as sucessivas tentativas de se criar qualquer órgão
de cunho eminentemente administrativo, a exemplo do Conselho Nacional
de Justiça, é sempre visto com reservas, e isto se deve ao fato da função
administrativa já ser exercida, em sua plenitude, pelo próprio Judiciário, ainda
que somente por sua cúpula.
No Brasil, todas as três funções já se encontram inseridas no âmbito do
Judiciário, o que dá uma dimensão importantíssima à Instituição – o que,
aliás, confere ao Judiciário brasileiro, sob este ângulo, uma situação ímpar em
comparação com o Judiciário de outros países –, fazendo-a satisfatoriamente
independente, institucionalmente, em relação aos órgãos e poderes externos,
com reflexo, também, sobre a independência externa de cada um dos órgãos
que a compõem, inclusive órgãos singulares.
Nada indica, assim, que seja conveniente o deslocamento destas funções
para qualquer órgão externo ao Poder Judiciário. A questão que resta
examinar, portanto, é a de acumulação de funções e, em consequência, de
uma redistribuição destas funções de forma interna, ou seja, dentre os órgãos
do próprio Judiciário.
No que diz respeito à acumulação de função jurisdicional propriamente
dita com a função de controle de constitucionalidade, embora pudessem
estar separadas, a exemplo da experiência europeia – até porque não afeta,
conforme já afirmado, a independência dos juízes –, não enxergamos, sob
este aspecto, nenhum inconveniente da persistência deste sistema híbrido,
sem prejuízo de outras reflexões que, analisando sob outros ângulos, possam
entender adequada a implantação, no Brasil, de uma Corte exclusivamente
constitucional e a diferenciação das respectivas funções.
A acumulação, no entanto, da função administrativa com a função
jurisdicional propriamente dita, nos chamados órgãos de cúpula, por
representar sério risco à independência interna dos juízes merece, a nosso
ver, uma revisão, ou seja, há de se fazer uma redistribuição de tais funções,
atribuindo-se a outros órgãos, que não aquele que ocupa o ponto superior na
estrutura recursal, a supremacia da função administrativa.
148
Revista ENM
Evidentemente, a inviabilidade de simplesmente se entregar tal função
administrativa a outro órgão, que já compõe a estrutura do Judiciário, é
patente. Seria tal hipótese tão somente uma subversão da ordem, uma inversão
estrutural, que levaria a uma estruturação talvez até mais maléfica que a atual,
quando o que se exige é uma mudança tendente a desconcentração que, a
nosso ver, não poderia ocorrer de outra forma senão através de um processo
de democratização da instituição, o que inexiste atualmente.
E aí, neste ponto específico da democratização, temos mais um enorme
descompasso entre um discurso em que o Judiciário surge como democrático
e guardião da ordem democrática e uma realidade em que o princípio
democrático não frequenta, de forma desejável, a estrutura da Instituição.
Não estamos aqui nos referindo ao “pecado original”, que corresponde
à ausência de uma inalcançável e inadequada legitimidade eletiva dos
membros do Judiciário, por incompatível com a função a ser exercida com
independência e imparcialidade, e que representou uma legítima e correta
opção constitucional por uma seleção predominantemente técnica dos que
integram a Instituição.
Mas a ausência de uma legitimidade eletiva não pode significar uma
renúncia ao princípio democrático que, como princípio constitucional
basilar de toda a ordem política e jurídica brasileira, deveria irradiar-se,
também, sobre a estruturação do Judiciário, máxime quando a ausência desta
diretriz leva a uma indesejável hierarquização que, como já argumentado,
afronta a independência, ainda que interna, dos órgãos que compõem o
Poder que, também por imposição constitucional fundamental, devem
guardar esta marca.
Assim, e sob pena de uma total abdicação ao princípio democrático, resta
a necessidade de uma democratização interna do Poder Judiciário, a partir
do exercício da função administrativa de forma harmônica com o princípio
democrático.
Não significa isto vislumbrar-se a possibilidade de fracionar a função
administrativa entre os diversos órgãos que compõem o Judiciário, até
porque absolutamente inoperante e ineficiente, tendo em vista que a função
administrativa exige unidade, uniformidade e harmonia, mas a existência de
órgãos de administração constituídos sob o signo do princípio democrático, o
que significa a possibilidade de participação de todos os níveis da magistratura
na sua eleição e na sua composição.
Revista ENM
149
Aí há de se abrir um parêntese para manifestar a incompreensão que nos
invade, no que diz respeito ao entendimento aceito ou partilhado por quase
todos, de que a administração da Justiça deve estar concentrada necessariamente
no mesmo órgão que ocupa o ponto mais alto da estrutura recursal, ainda
que isto conduza a uma indesejável hierarquia, conforme se demonstrou, e a
uma ausência de contornos democráticos. Não poderíamos encontrar outra
resposta senão o apego, por descuido ou tradição, a velhas e obsoletas formas
que herdamos, talvez até sem perceber, de tempos em que predominavam
concepções teológicas ou militares, de cunho hierárquico, despreocupados
com princípios democráticos que hoje nos são tão caros.
É a mesma incompreensão que, transportada para o campo empírico,
nos traz indagações como, por exemplo, por que, existindo múltiplos órgãos
em uma determinada estrutura judiciária pretensamente não hierarquizada,
somente um, no caso o tribunal de cúpula, exerce a função administrativa?
Por que os demais órgãos, inclusive singulares, não compartilham com a
administração e sequer participam da escolha dos que vão administrar?8 Por
que se confunde a presidência de um tribunal com a presidência do Poder
Judiciário e esta confusão se reflete sobre a forma de escolha do titular desta
presidência, inclusive sobre o universo dos que podem ser eleitos para ocupála? Por que o que preside um “Poder” – “Poder” este instituído sob a égide de
um Estado dito Democrático – não é eleito por todos os que o integram, mas
somente pelos que compõem um de seus órgãos, no caso o tribunal de cúpula?
São indagações cuja resposta usual não se justifica diante da inadmissibilidade da hierarquização da estrutura, da inadequação de qualquer afronta
à independência, ainda que interna, do juiz, nem do necessário respeito ao
princípio democrático, que está a exigir uma democratização, também, do
Poder Judiciário.
Talvez Garapon pudesse incluir a resposta no que chama de “funcionamento
aristocrático”9 e Dallari nas suas “tradições paralisantes”, que se traduzem na
constatação de que “a magistratura, na prática, ficou imobilizada, voltada para
si própria, incapaz de perceber que, em alguma medida, os outros procuravam
adaptar-se ao dinamismo da sociedade enquanto ela estagnava” ou, em outras
8
Neste contexto, a eleição direta dos órgãos administrativos dos tribunais, com participação de todos os
magistrados, tese por muito defendida pelos representantes das associações de magistrados, parece solução
parcial que não resolve por completo o problema da administração que se pretende democrática.
9
GARAPON, Antoine. O Juiz e a Democracia: o guardião de promessas. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
150
Revista ENM
palavras, que “o Judiciário envelheceu e o que muitos, dentro dele, veneram
como tradições, não passam de sinais de velhice”. Em outras palavras, sentencia
Dallari, “no Judiciário o passado determina o presente” e conclui: “esse é um
dos principais motivos pelos quais há evidente descompasso entre o Poder
Judiciário e as necessidades e exigências da sociedade contemporânea”10.
O certo é que o respeito a valores tão caros e necessários, em especial a
independência interna, incompatível com a hierarquia, e a democracia,
também interna, está a exigir uma redistribuição das funções judiciárias,
deslocando-se a função de administração para um órgão próprio, distinto do
órgão de cúpula recursal, que seja plural, já que composto por representantes
de todas as esferas do Judiciário; que seja legítimo, já que eleito por todos
os que integram a esfera do Poder a ser administrado; que seja autônomo,
já que não deve guardar vinculação direta com nenhum órgão específico e
nem com a função jurisdicional. Em suma, um órgão democrático que exerça,
distintamente da função jurisdicional, a função de administração da Justiça.
É esta, no nosso entendimento, a única forma de, separando as funções
jurisdicionais e administrativas, e democratizando esta última, se quebrar
a hierarquização da estrutura do Judiciário e, por consequência, afastar o
mais forte fator que atenta contra a independência interna dos magistrados,
devolvendo a sua plenitude, de forma a aproximar a realidade do discurso
em que o Judiciário aparece como um Poder democrático e plenamente
independente.
7. O Significado Institucional do Conselho Nacional de Justiça
A Emenda Constitucional no 45, de 8 de dezembro de 2004, criou o
Conselho Nacional de Justiça, com competência para o “controle da atuação
administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres
funcionais dos juízes”11.
Não nos cabe, no presente trabalho, examiná-lo em sua abrangência,
mas apenas tecer alguns comentários direcionados para a questão que aqui
se aborda, em especial na sua configuração como órgão titular da função de
administração e no que o mesmo se conforma ao perfil do órgão sugerido no
tópico anterior.
10
11
DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p.5-7.
Artigo 103-B da Constituição Federal.
Revista ENM
151
Diga-se, de início, que o CNJ não é órgão de controle externo, mas de
controle interno, uma vez que integra a estrutura do Poder Judiciário (art.
92, I-A), independentemente da existência de membros que não pertençam
originariamente ao Judiciário12 e que é um órgão nacional, e não apenas federal, o
que afasta a alegação de que suas funções possam afrontar o princípio federativo.
Acentue-se, outrossim, o seu verdadeiro significado institucional, não como
órgão de controle externo, que não o é, ou como órgão de controle social da
função jurisdicional, que também não o é. Significa ele, para a Instituição
Judiciária, aquele órgão que veio assumir – ainda que parcialmente e apenas
em nível nacional – uma das três funções judiciárias, mais precisamente a de
administração da Justiça. É este o seu papel, é esta a sua função, e é este o seu
significado institucional.
Neste papel, entretanto, não obstante significar um real avanço sobre o
que acima já se apregoou como necessidade, de distinguir e entregar a órgãos
diferentes as funções jurisdicionais propriamente ditas e administrativas,
a instituição do Conselho Nacional de Justiça se deu de maneira tímida,
insuficiente e incompleta.
Tímida porque não atribuiu ao Conselho, em sua integralidade, a função
administrativa, gerando, de forma definitiva, a retirada desta função da
esfera de atuação dos órgãos que exercem a função jurisdicional. Somente aí
poderia exercer, com plenitude, a função que se poderia esperar de um órgão
administrativo nacional, não só de administração geral do Poder Judiciário
mas, também, de planejamento estratégico, de função correicional, direta ou
subsidiária, de controle funcional etc.
Insuficiente porque, se por um lado instituiu um órgão de composição
plural, com representantes de todos os seguimentos da magistratura e,
inclusive, de funções essenciais à Justiça – Ministério Público e Advocacia –
por outro não foi tão democrática assim na forma de escolha, não havendo
participação dos próprios administrados – membros do Poder Judiciário –
mantendo a indicação predominantemente a cargo dos chamados “órgãos de
cúpula”, destacadamente o Supremo Tribunal Federal13.
12
Os tribunais eleitorais, por exemplo, que são órgãos de jurisdição e não apenas administrativos, têm,
dentre seus membros, pessoas que não integram o Judiciário sem que, no entanto, se possa alegar que não
integrem a estrutura do Judiciário.
13
Na proposta original do Conselho Nacional de Justiça a escolha, pelo menos dos magistrados de primeira
instância – juiz estadual, juiz do trabalho e juiz federal – se daria através de eleição direta dos magistrados.
152
Revista ENM
Incompleto porque não recebeu a necessária complementação estrutural,
imprescindível a um Estado da dimensão do Brasil e que se constitui sob
a forma Federativa, de órgãos similares de atuação em âmbito estadual.
Evidentemente, não se pode esperar, de um órgão nacional, uma atuação
minimamente eficiente em funções específicas, como a correicional, por
exemplo, salvo se o fizer de forma subsidiária. Também não se pode esperar
que seja assimilada uma mudança estrutural que, em nível nacional, desloque
a função de administração para outro órgão distinto do jurisdicional, ainda
que parcialmente, sem que a mesma providência seja adotada no âmbito dos
estados, fazendo com que subsista um sistema que se submeta e conviva com
duas lógicas estruturais absolutamente diversas.
A instituição do Conselho Nacional de Justiça, entretanto, não obstante as
deficiências acima apontadas, representou, ainda assim, um avanço parcial no
que se refere especificamente à independência da magistratura, sem prejuízo
de outros importantes avanços em outros campos que não nos cabe aqui
examinar.
É que representou ele, de alguma maneira, um contrapeso à forma
hierarquizada de diversas estruturas judiciárias que se inserem no Judiciário
brasileiro.
A Justiça Estadual, por exemplo, não somente guardava uma forma
hierarquizada, nos termos acima já demonstrados, como, ainda, uma
hierarquização fechada, já que estanque em seu próprio universo. Assim,
todas as questões funcionais e disciplinares, por exemplo, se fechavam até o
limite dos tribunais de Justiça. Isto implicava em pelo menos dois aspectos
particularmente maléficos: primeiro, a função correicional, quando exercida
no âmbito do próprio tribunal e em relação aos seus próprios membros,
era inegavelmente deficiente, de forma que, em alguns casos, parecia
mesmo inexistente; em segundo lugar, a estrutura hierarquizada, que já tem
naturalmente uma considerável força sobre as garantias de independência dos
magistrados de primeiro grau, ganha indesejável reforço com a concentração,
no topo desta hierarquia, do poder sobre toda a vida funcional dos magistrados
singulares, desde promoções até eventual punição disciplinar, sem que pudesse
haver, pelo menos, um controle desta atuação que viesse de órgãos situados
fora deste círculo.
Neste sentido é que a instituição do Conselho Nacional de Justiça
representou, ainda que parcialmente, uma quebra no poder decorrente da
Revista ENM
153
hierarquia estrutural de esferas do Judiciário, ainda que não tenha significado
o fim desta estrutura hierarquizada.
Para que cumpra o seu papel com a integralidade que vislumbramos teria
que ser menos tímido institucionalmente, de forma que representasse uma
completa distinção entre as funções jurisdicionais e administrativas, assumindo
esta última integralmente em âmbito nacional; teria, ainda, que afastar a sua
insuficiência no sentido de, não somente na composição mas, também na
escolha dos seus integrantes, ser mais atento aos preceitos democráticos. Teria,
por fim, que receber a necessária complementação estadual, imprescindível a
um Estado que se constitui sob a forma federativa e da dimensão do Brasil.
8. Os Conselhos de Justiça Estaduais
Ao tratarmos do Conselho Nacional de Justiça, no tópico anterior,
atentamos para o fato de sua instituição não somente ter sido tímida e
insuficiente como, também, incompleta, e isto porque não recebeu, em
âmbito estadual, a sua necessária complementação.
Na verdade, não só a necessidade de complementação das tarefas atribuídas
ao Conselho Nacional de Justiça – o que já teria sido possível deste a Emenda
Constitucional 45 – mas, sobretudo, a necessidade de efetivamente se buscar
a quebra total da hierarquização da estrutura judiciária, em âmbito também
estadual, e, ainda, de democratizar, pelo menos internamente, a instituição
judiciária, enseja a necessidade – o que representa uma mudança mais radical
– da instituição dos conselhos de Justiça estaduais.
Tais órgãos, para que possam atingir a plenitude da missão que para eles
se vislumbra, teriam que representar, a exemplo do que se apregoa para órgão
nacional, uma distinção e separação completa entre a função jurisdicional
propriamente dita e a função administrativa, assumindo, em sua inteireza,
esta última, e nisto representariam a consolidação da independência judicial
também em nível interno.
Somente desta forma, distinguindo e entregando a órgãos diversos as
funções administrativas e jurisdicionais, se quebraria, em definitivo, a estrutura
hierarquizada, uma vez que inexistiria vinculação necessária entre estas duas
esferas e, portanto, a hierarquia recursal se constituiria, efetivamente, em
mera forma de diferenciação de competências, e não, como se verifica na atual
realidade, em um dos itens essenciais para configuração de uma completa
hierarquização da Instituição Judiciária.
154
Revista ENM
Teriam, por outro lado, que se constituir em órgãos plurais compostos
por representantes de todos os setores e instâncias da estrutura judiciária,
não se descartando, inclusive, a exemplo do Conselho Nacional de Justiça,
a participação de representantes de funções essenciais à Justiça, como o
Ministério Público e a Advocacia. Neste ponto, o avanço da democratização
interna do Judiciário.
É que tais órgãos, ou conselhos estaduais, não poderiam deixar de ter
a marca do princípio democrático, essencial à estrutura do Judiciário que,
como se afirmou, já carecendo de uma reclamada “legitimidade eletiva” não
poderia virar as costas, também em âmbito interno, aos preceitos inerentes
à democracia. Desta forma, não se poderia concebê-los sem a participação
efetiva de todos os que compõem a esfera de Poder, tanto na possibilidade de
integrá-los como no direito de escolher os que irão compô-los.
Não se pode deixar de vislumbrar alguns problemas que mereceriam ser
enfrentados, como a interação mais intensa entre quem administra e quem
é administrado, o que é particularmente delicado em questões como as
funcionais e correicionais, mas permitem solução adequada. De antemão,
é de se apresentar a necessidade de, para enfrentar a questão funcional, em
especial no que se refere a promoções e remoções de magistrados, se buscar,
para a magistratura, uma postura cada vez mais profissional e, no entanto,
menos “carreirista”. Quanto a questão correicional, acreditamos que a
temporariedade dos mandatos de seus membros e a existência de uma via
recursal administrativa, no caso o Conselho Nacional de Justiça, por si só,
dilui a questão. De qualquer forma, tais questões merecem uma argumentação
mais profunda, que deverá ser objeto de outro trabalho.
O essencial é que, para que cumpram adequadamente a função a que
se propõem, os conselhos estaduais de Justiça aqui vislumbrados, terão que
ser instituídos sob a lógica do seu verdadeiro significado, que é a separação
entre as funções jurisdicionais e administrativas, em complementação, neste
intuito, ao Conselho Nacional de Justiça, o que faz com que seja quebrada a
visível hierarquia da estrutura judiciária brasileira, devolvendo a plenitude da
independência dos órgãos judiciários, inclusive e especialmente os singulares,
e trazendo, pelo menos no âmbito interno, os raios do princípio democrático
para a Instituição Judiciária, passando a função administrativa a ser exercida,
direta ou indiretamente, por todos os que integram a estrutura do Poder.
Revista ENM
155
9. Conclusão
Ao final deste trabalho se pode, de forma resumida, enfatizar as seguintes
conclusões, extraídas do próprio corpo da exposição:
a) Não obstante as garantias constitucionais – da Instituição e
dos juízes –, a estrutura concebida pela Constituição para o Poder
Judiciário atenta contra o necessário resguardo da independência
interna, de tal forma que os magistrados, em especial de primeiro
grau, não guardam o sentimento de estarem isentos de pressões
partidas dos órgãos internos ao próprio Judiciário, pelo menos com
a mesma desenvoltura com que este sentimento se apresenta em
relação aos órgãos externos;
b) Entre as razões que podemos apontar para tanto, uma nos parece
determinante, que é a forma hierarquizada como foi concebida a
estrutura do Poder Judiciário, o que decorre, em grande parte, de uma
indesejável mistura e distribuição inadequada das funções atribuídas
ao Judiciário – em especial a jurisdicional e a administrativa;
c) É precisamente no acúmulo da função jurisdicional, em sua
instância mais alta, com a totalidade da função administrativa, em
sua mais larga abrangência, que reside o formato hierarquizado da
estrutura do Judiciário brasileiro. E é inegavelmente nesta hierarquia
que a independência dos juízes se encontra mais vulnerável;
d) O respeito a valores tão caros e necessários, em especial a
independência interna e a democracia, também interna, está a
exigir uma redistribuição das funções judiciárias, deslocando-se a
função de administração para um órgão próprio, distinto do órgão
de cúpula recursal, que seja plural, composto por representantes
de todas as esferas do Judiciário; que seja legítimo, já que eleito
por todos os que integram a esfera do Poder a ser administrado;
que seja autônomo, já que não deve guardar vinculação direta com
nenhum órgão específico e nem com a função jurisdicional. Em
suma, um órgão democrático que exerça, distintamente da função
jurisdicional, a função de administração da Justiça;
e) A instituição do Conselho Nacional de Justiça representou, ainda
que parcialmente, uma quebra no poder decorrente da hierarquia
estrutural de esferas do Judiciário, ainda que não tenha significado
o fim desta estrutura hierarquizada. A sua instituição, entretanto,
156
Revista ENM
não somente se deu de forma tímida e insuficiente, como também
incompleta, e isto porque não recebeu, em âmbito estadual, a
sua necessária complementação, o que enseja a necessidade da
instituição dos conselhos de Justiça estaduais.
f ) Para que cumpra o seu papel com a integralidade que
vislumbramos, o Conselho Nacional de Justiça teria que ser
menos tímido institucionalmente, de forma que representasse uma
completa distinção entre as funções jurisdicionais e administrativas,
assumindo esta última integralmente em âmbito nacional; teria,
ainda, que afastar a sua insuficiência no sentido de não somente
na composição mas também na escolha dos seus integrantes, ser
mais atento aos preceitos democráticos. Teria, por fim, que receber
a necessária complementação estadual, imprescindível a um Estado
que se constitui sob a forma federativa e da dimensão do Brasil.
g) Para que os conselhos estaduais de Justiça aqui vislumbrados
cumpram adequadamente a função a que se propõem, terão que
ser instituídos sob a lógica do seu verdadeiro significado, que é a
separação entre as funções jurisdicionais e administrativas, em
complementação, neste intuito, ao Conselho Nacional de Justiça,
o que faz com que seja quebrada a visível hierarquia da estrutura
judiciária brasileira, devolvendo a plenitude da independência dos
órgãos judiciários, inclusive e especialmente os singulares, e trazendo,
pelo menos no âmbito interno, os raios do princípio democrático
para a Instituição Judiciária, passando a função administrativa a
ser exercida, direta ou indiretamente, por todos os que integram a
estrutura do Poder.
Portanto, resgatada que seja a independência plena, inclusive e especialmente
interna, de todos os órgãos judiciários, principalmente singulares, mediante a
quebra da visível hierarquização do Judiciário brasileiro, com o deslocamento
da função administrativa para órgãos específicos, plurais, representativos
de toda a magistratura e democráticos, se estaria aproximando o discurso
da realidade, de forma que as eloquentes expressões que proclamam um
Judiciário plenamente independente e democrático poderiam ecoar pelos
edifícios judiciários sem causar estranheza aos personagens forenses.
Não se propõe aqui, pois, que se abandone o discurso, por ausência de
substância fática, por descompasso com o real, pelo vazio da eloquência desnuda
Revista ENM
157
de significado, mas que se o adote como bandeira a nortear a construção de
uma nova realidade. De forma mais simplória, que o fato busque a palavra
para que o discurso se aproxime da realidade.
Referências bibliográficas
CAMPILONGO, Celso Fernandes. O Judiciário e a Democracia no Brasil. São Paulo: In: Revista USP, n.
21, p. 116-125 março/maio 1994.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Edições
Almedina, 2003.
DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 1996.
DROMI, José Roberto. El Poder Judicial. 4. Ed. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1996.
FARIA, José Eduardo. Os Desafios do Judiciário. In: Revista USP. São Paulo: n. 21, p. 46-56, março/maio
1994.
GARAPON, Antoine. O Juiz e a Democracia: o guardião de promessas. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
GARAPON, Antoine; ALLARD, Julie. Os Juízes na Mundialização: uma nova revolução do direito. Trad.
Rogério Alves. Porto Alegre: Instituto Piajet, 2006.
GUARNIERI, Carlo. Los Jueces e La Política: poder judicial e democracia. Madrid: Taurus, 1999.
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luis Afonso
Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1998.
IBAÑEZ, Perfecto Andrés. A Profissão de Juiz, hoje. Coimbra: In: Revista Julgar, n. 1. p. 19-30 janeiro/
abril 2007.
LOPES, José Reinaldo de Lima. Justiça e Poder Judiciário ou a Virtude Confronta a Instituição. In: Revista
USP. São Paulo: n. 21, p. 22-33, março/ maio 1994.
PINTO, Flávia Sousa Dantas. O Judiciário Francês sob a Ótica de um Juiz Brasileiro in Revista Direito
e Liberdade/Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte – Ano 4, v. 8, n.2 (2005). – Mossoró:
ESMARN, 2008, p. 131/165.
PINTO, Guilherme Newton do Monte. Controle Externo: um tabu a ser vencido, in Revista Letras Jurídicas,
ano 41, no 1, novembro de 2003, p. 58/60.
RIBEIRO, Helcio. Justiça e Democracia: Judicialização da Política e Controle Externo da Magistratura.
Porto Alegre: Síntese, 2001.
RIGAUX, François. A Lei dos Juízes. Trad. Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2007.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Poder Judiciário: Crise, Acertos e Desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1995.
158
Revista ENM
Roberto da Silva Fragale Filho
Amatra I - RJ
1. Eleitor potencial
A quele era, sem dúvida, um momento especial, único. No Centro do
Rio de Janeiro, diante da multidão que se perdia no horizonte, o jurista
Sobral Pinto pedia silêncio e dizia querer falar à nação brasileira: “Este
movimento não é contra ninguém. Este movimento é a favor do povo”1. E
quando ele, repetindo o comando do artigo 1º da precedente Constituição
Federal, lembrou que “todo poder emana do povo e em seu nome é
exercido”, um frisson percorreu a multidão, emocionada. Com efeito, a
certeza da aprovação da Emenda Dante de Oliveira, que reinstituía, de
forma imediata, a eleição direta para Presidente da República, sobrepairava
os manifestantes e prolongar-se-ia nos dias que se seguiram ao comício de
10 de abril de 1984, quando mais de um milhão de pessoas se reuniram na
frente da Igreja da Candelária para reclamar “Diretas Já”! Este grito coletivo
voltaria a ecoar, seis dias depois, na passeata percorrida da Praça da Sé até
o Vale do Anhangabaú, onde se concentraram um milhão e quinhentas
mil pessoas para realizar aquela que ainda é a maior manifestação pública
da história do país. Para todos os ali presentes com menos de 40 anos, a
eleição presidencial de 1960, que era até então a última a ter sido realizada
mediante voto direto, tinha sido uma festa cívica para a qual não obtiveram
ingresso. Pior: para os mais novos, ela era apenas uma página de história,
um evento passado e longínquo que pouco ou nada lhes dizia.
* Concurso de Monografia da AMB – Menção Honrosa
1
Cf. “O grito da Candelária”, Revista Veja, de 18.04.1984. Disponível em: http://veja.abril.com.br/
arquivo_veja/capa_18041984.shtml, acesso em: 16 jul. 2009.
Revista ENM
159
MONOGRAFIA
Democratização
dos tribunais: Eu quero
votar pra Presidente! *
A pajelança cívica, entretanto, seria barrada no Congresso Nacional, que
lhe recusou os últimos 22 votos necessários para que o quorum mínimo
para aprovação fosse atingido2. O frustrante resultado trouxe à tona o
dilema em torno da participação no colégio eleitoral indireto. Entre a
recusa de compactuar com o processo eleitoral indireto e a construção de
uma candidatura viável no reduzido colégio eleitoral, a oposição dividiu-se,
assim como, com a oficialização da candidatura de Paulo Maluf, dividiu-se a
base governista. A recomposição político-partidária daí oriunda resultou na
eleição de Tancredo Neves em um colégio eleitoral indireto composto por
686 eleitores3. Não se encerrava ali, contudo, o longo processo da transição
democrática, cujo desfecho viria, tão somente, com a promulgação da
Constituição Federal de 1988 e a eleição presidencial de 1989, dessa vez pelo
voto direto e universal. Este último ato da transição representava, sem dúvida,
uma mudança expressiva, pois o colégio eleitoral nas eleições presidenciais
havia passado dos 686 membros indiretos da eleição de Tancredo Neves
para um total de 82.074.718 eleitores. O envolvimento desse expressivo
contingente populacional produziu um importante impacto na democracia
brasileira ao alavancar uma cidadania eleitoral e ampliar sobremaneira o seu
grau de participação. Duas décadas mais tarde, o eleitorado cresceu quase
60% e ultrapassou cento e trinta milhões de pessoas4.
Semelhante processo poderia ser experimentado pelos tribunais nacionais,
guardadas as devidas proporções, caso a eleição de seus dirigentes ocorresse de
forma direta, com participação de toda a magistratura. Consoante os dados
do relatório Justiça em Números 2008, entre primeiro e segundo graus nas
Justiças Estadual, Federal e do Trabalho, existem 15.731 magistrados5, dos
quais apenas uma pequena parcela participa dos processos eleitorais das cortes
nacionais. Com efeito, tome-se o maior tribunal do país, ou seja, o Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, como referência e constatar-se-á que seu atual
colégio eleitoral é composto pelos 352 membros do Tribunal Pleno6, muito
A Emenda Dante de Oliveira recebeu 298 votos favoráveis, 65 contrários e três abstenções.
No colégio eleitoral, Tancredo Neves e Paulo Maluf obtiveram, respectivamente, 480 e 180 votos. Houve,
ainda, 26 abstenções.
4
Em junho de 2009, consoante os dados do TSE, havia 130.958.083 eleitores no país. Cf. http://www.tse.
gov.br/internet/eleicoes/evolucao_eleitorado.htm, acesso em: 16 jul. 2009.
5
Consoante o Justiça em Números 2008, haveria 1.478 juízes federais, 3.145 juízes do trabalho e 11.108
juízes estaduais. Cf. http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/justica_em_numeros_2008.pdf, acesso em: 24
jul. 2009.
6
Cf. http://www.tj.sp.gov.br/ComposicaoCamaras/Composicao.aspx, acesso em: 16 jul. 2009.
2
3
160
Revista ENM
Tabela I
Tribunais Regionais do Trabalho com oito desembargadores
Dimensão percentual do colégio eleitoral
Tribunal
TRT-20 (SE)
TRT-22 (PI)
TRT-21 (RN)
TRT-19 (AL)
TRT-16 (MA)
TRT-14 (AC e RO)
TRT-7 (CE)
TRT-24 (MS)
TRT-17 (ES)
TRT-23 (MT)
TRT-13 (PB)
TRT-11 (AM e RR)
TRT-18 (GO)
Desembargadores
08
08
08
08
08
08
08
08
08
08
08
08
08
Magistrados 1
30
34
46
46
46
57
57
61
62
65
67
71
76
Percentual
26,66%
23,52%
17,39%
17,39%
17,39%
14,03%
14,11%
13,11%
12,90%
12,30%
11,94%
11,26%
10,52%
Cf. Justiça em Números, 2008, p. 209. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/justica_
em_numeros_2008.pdf, acesso em: 24 jul. 2009. A listagem de magistrados de primeiro grau do TJSP por antiguidade indica, entretanto, a existência de 2.030 juízes entre substitutos, entrância inicial,
intermediária e final. Assim, o total de magistrados seria de 2.382, o que reduz ainda um pouco mais
a dimensão percentual do colégio eleitoral. Cf. http://www.tj.sp.gov.br/Download/ComposicaoCamaras/
lista_antiguidade.pdf, acesso em: 16 jul. 2009.
8
Cf. http://www.tst.jus.br/Sseest/PESSOAL/Trtjuiz/2003.htm, acesso em: 16 jul. 2009.
9
O dado aqui utilizado foi extraído do relatório Justiça em Números 2007 (Cf. http://www.cnj.
jus.br/images/stories/docs_cnj/relatorios/justica_em_numeros_2007.pdf, acesso em: 24 jul. 2009).
Surpreendentemente, a edição de 2008 registra uma redução no quadro de magistrados para 278. Nada
semelhante é observado nas demais regiões. Com efeito, as variações negativas, salvo o caso do TRT-1 (RJ),
nunca foram superiores a três magistrados. Por outro lado, as variações positivas superiores a três juízes
sinalizam para a realização de concurso público com elevado número de candidatos aprovados. São os casos
de TRT-2 (SP), TRT-3 (MG), TRT-9 (PR), TRT-11 (AM e RR) e TRT-15 (SP-Campinas), cujo número
de juízes sofreu o acréscimo, respectivamente, de 42, 34, 20, 15 e 26 novos magistrados. Na verdade, tudo
indica que os dados do TRT-1 (RJ) foram preenchidos sem se levar em consideração o segundo grau, uma
vez que com a redução observada é quase equivalente à dimensão do segundo grau.
7
Revista ENM
161
MONOGRAFIA
embora o contingente de magistrados ali existente seja de 2.2917. Em outras
palavras, o colégio eleitoral é composto por 15,36% da magistratura estadual
paulista. Ainda exemplificativamente, tome-se a Justiça do Trabalho como
referência e ter-se-á que apenas 463 magistrados8 participam dos processos
eleitorais, muito embora haja, entre primeiro e segundo grau, 3.145 juízes do
trabalho. Mais uma vez, o percentual de juízes eleitores sobre a totalidade de
magistrados gira em torno de 15%. Naturalmente, esse é um dado genérico,
pois as realidades regionais são diversas. No Tribunal Regional do Trabalho da
Primeira Região (Rio de Janeiro), por exemplo, há 54 eleitores para um total
de 329 magistrados9, o que se traduz em 16,41%. Esse percentual pode oscilar
bastante em tribunais de menor porte, cujo segundo grau é composto pelo
número mínimo de oito desembargadores, como indicado na tabela I.
Na Justiça Federal, a oscilação percentual dá-se para baixo, uma vez que
a proporcionalidade média entre eleitores e a totalidade de magistrados é
pouco superior a 9%. Contudo, conforme ilustra a tabela II, as peculiaridades
regionais fazem com que três tribunais tenham percentuais em torno de 7%!
Tabela II
Tribunais Regionais Federais Dimensão percentual
do colégio eleitoral
Tribunal
Desembargadores
Magistrados
Percentual
TRF-1
27
378
7,14%
TRF-2
27
237
11,39%
TRF-3
43
328
13,10%
TRF-4
27
370
7,29%
TRF-5
10
165
6,06%
Total
134
1.478
9,06%
Constata-se, por conseguinte, que mais de quatro quintos da magistratura
nacional encontra-se alijada dos processos eleitorais para escolha de seus
dirigentes. Esse alijamento produz como conseqüência a ausência de
accountability10 das direções dos tribunais em relação a essa ampla parcela
da magistratura que não participa do colégio eleitoral. Em outras palavras,
as direções desenham suas legitimidades em relações horizontais, a partir
de colégios eleitorais enxutos, com um diálogo marcadamente facultativo
com a maior parcela da magistratura, cuja opinião revela-se periférica ao
processo deliberativo sobre seus destinos.
Na verdade, impõe-se reconhecer que até mesmo essa legitimidade
construída a partir da eleição pelos pares é relativa, uma vez que as condições
de elegibilidade são bastante restritas. Com efeito, o artigo 102 da Lei Orgânica
da Magistratura (LOMAN) estabelece que a escolha dos tribunais para os
cargos de direção deverá recair sobre seus juízes mais antigos, ficando vedada a
eleição daqueles que tiverem exercido quaisquer cargos de direção por quatro
anos, ou o de Presidente, salvo se já tiverem esgotados todos os nomes, na
10
Embora a literatura especializada eventualmente utilize a expressão responsabilização, na ausência de uma
tradução exata, optou-se pela utilização do termo original da língua inglesa, que remete à obrigação de
prestação de contas em sentido amplo e de responsividade em relação ao eleitorado.
162
Revista ENM
Revista ENM
163
MONOGRAFIA
ordem de antiguidade. Ou seja, a eleição, pautada por uma lógica de exclusão,
ganha ares homologatórios, reduzindo drasticamente as possibilidades de
institucionalização de um efetivo debate sobre os rumos do tribunal. E assim
seria, pois, consoante o voto vencido do Ministro Ricardo Lewandowski
na ADI nº 3.976-MC-SP, “a LC nº 35/1979, à imagem e semelhança do
macromodelo jurídico que lhe emprestava abrigo, arquitetou um Judiciário
centralizador, rigidamente hierarquizado, no qual prevalecia, absoluto, o
princípio da autoridade, baseado na mera antiguidade, engendrando uma
estrutura que inviabilizava qualquer interlocução entre a base e a cúpula do
sistema”.
Isso quer, no fundo, dizer que a legitimidade das direções dos tribunais
não está atrelada ao seu processo de escolha, mas encontra seu fundamento
alhures, mais precisamente na própria função judicante. Em outras palavras,
pode-se dizer que não é a eleição que legitima o escolhido, mas é a sua própria
prática judicante, que traz em si, de forma quase ontológica, a prerrogativa
de um dia exercer a direção administrativa de seu tribunal. Consoante
o voto vencedor do Ministro Cezar Peluso na mesma ADI nº 3.976-MCSP, a natureza democrática do Poder Judiciário não é afetada pelo fato dos
juízes não serem eleitos, do universo elegível ser restrito ou de nem todos os
juízes poderem votar, pois ela estaria fundada em outras conexões jurídicas.
Em suma, a eleição, em seu sentido mais estrito, percebida como disputa ou
concorrência entre pares, é assim repudiada, de forma a evitar que, “pela porta
do aparente pluralismo, da aparente democratização, entrem nos tribunais,
no interior da vida dos tribunais, o partidarismo, o sectarismo, que levam
à desagregação, à discórdia, a desprestígios e a retaliações que a história tem
registrado”.
Essa não é, entretanto, a vontade da grande maioria da magistratura, que
deseja não só a eleição direta para a escolha de seus dirigentes, mas também
uma efetiva participação na construção de uma gestão democrática do
Judiciário, como, aliás, demonstram recentes e diferentes surveys realizados
junto a si. Com efeito, é o que se constata ao se tomar como parâmetro para
pensar o alcance da gestão democrática no Judiciário uma dupla referência
mínima, i.e., a participação coletiva: (a) na escolha de seus dirigentes e (b)
na definição de alocação dos recursos financeiros. Em outras palavras, a
existência de eleições diretas para escolha de seus dirigentes e a elaboração de
um orçamento participativo. Ora, consoante a pesquisa coordenada por Sadek
(2006), quase três quartos dos magistrados seriam favoráveis à participação
de juízes do primeiro grau na elaboração do orçamento dos tribunais e quase
quatro quintos seriam favoráveis à realização de eleições diretas para os órgãos
dirigentes. É inegável, entretanto, como evidencia a tabela III, que o lugar da
fala tem um importante impacto sobre tais números, uma vez que o orçamento
participativo é desejado por 80,2% dos juízes de primeiro grau, ao passo que
esse percentual desce para 48,4% quando se consideram apenas os juízes de
segundo grau. Observa-se, ainda, a mesma redução percentual em relação à
eleição direta, já que, no primeiro grau, ela seria desejada por 85,8% dos
juízes, enquanto, no segundo grau, apenas 52,6% de seus membros seriam
favoráveis à sua realização.
Tabela III
Gestão democrática
Critério
Primeiro grau
Segundo grau
Magistratura
Eleição direta
85,8%
52,6%
77,5%
Orçamento participativo
80,2%
48,4%
72,3%
Por sua vez, sem que seja possível observar as nuanças entre seus
diferentes graus de jurisdição, outro não foi o resultado obtido na pesquisa
“Trabalho, Justiça e Sociedade: o olhar da magistratura do trabalho sobre
o Brasil do século XXI”, realizada pelo Centro de Estudos Sindicais e de
Economia do Trabalho (CESIT) da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) para a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça
do Trabalho (ANAMATRA). Com efeito, ela indica que 83,6% dos
magistrados trabalhistas são favoráveis à eleição direta para escolha de
seus dirigentes11. Já o survey realizado por Gomes et alli (2007) junto à
magistratura trabalhista ratifica o desejo de participação dos juízes de
primeiro grau no processo de escolha de seus dirigentes, uma vez que ele
aponta para uma preferência pela eleição direta em mais de 80% de seus
componentes. No entanto, o grau de resistência do segundo grau, quando
comparado à pesquisa de Sadek, é superior, já que, entre esses, a eleição
direta é desejada por menos de 40% de seus integrantes. Essa dissonância em
11
O percentual foi obtido pela soma das respostas favoráveis à eleição direta, que, entretanto, distinguem
entre eleição para todos os cargos e eleição para todos os cargos, salvo corregedor. Cf. http://ww1.anamatra.
org.br/sites/1200/1223/00000990.pdf, acesso em: 19 abr. 2009.
164
Revista ENM
12
Na primeira eleição organizada pela ANAMATRA, em 2007, ela deu origem a duas listas tríplices: para o
primeiro grau, foram indicados os Juízes Paulo Schmidt (TRT-RS), Firmino Alves Lima (TRT-Campinas)
Revista ENM
165
MONOGRAFIA
relação aos resultados obtidos na outra pesquisa pode, talvez, ser explicada
pela dimensão quantitativa dos diferentes ramos do Judiciário. Em outras
palavras, como o universo de desembargadores trabalhistas é bastante
inferior ao correlato contingente das Justiças Estaduais é bem provável
que entre eles se encontre uma maior disposição ao “conformismo”, aqui
entendido como o desejo de manutenção do status quo. Embora não haja
dados quantitativos para corroborar tal assertiva, caso essa hipótese se
revele correta, constatar-se-ia a existência de um percentual ainda menor
entre os desembargadores federais.
A democracia corporativa não se limita, contudo, à participação no
processo de escolha de seus dirigentes e na elaboração orçamentária. Ela
vai, certamente, além de tais parâmetros e inclui outras dimensões aqui
não abordadas, que dizem respeito à deliberação conjunta e à construção de
um sentido coletivo para as instituições judiciais. Nesse sentido, ela alcança
o próprio processo associativo, como evidenciam o processo eleitoral da
ANAMATRA e o sistema por ela institucionalizado para indicação dos
representantes de primeiro e segundo grau da magistratura trabalhista no
Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Assim, a eleição para escolha dos
dirigentes associativos trabalhistas, desde a reforma estatutária de agosto
de 1994 da ANAMATRA, é realizada por voto direto dos associados
e não mais por meio de um processo eleitoral indireto, que limitava o
voto às representações estaduais. Institucionalizou-se, assim, um colégio
eleitoral de quase três mil magistrados, cuja deliberação escolhe os portavozes de uma vontade coletiva. O exercício não é por certo desinteressante
na medida em que possibilitou um efetivo debate sobre os rumos e os
posicionamentos da magistratura trabalhista quanto aos temas mais
controversos da profissão. A experiência estendeu-se para o processo de
escolha de seus representantes junto ao CNJ, que resulta na elaboração
de duas listas tríplices encaminhadas ao Tribunal Superior do Trabalho
(TST), já que este é constitucionalmente o responsável pelas referidas
indicações. Embora o TST não esteja vinculado à lista tríplice organizada
pela ANAMATRA, é inegável que a escolha por um desses indicados
reforça a legitimidade da representaçãona medida em que traz o respaldo
de toda a corporação12. Enfim, o mecanismo eleitoral não é aqui repudiado
como um passaporte para o partidarismo e o sectarismo, mas, ao contrário,
é visto como uma forma de institucionalizar e reconhecer o dissenso em
uma magistratura que, sem dúvida, está longe de ser homogênea. A eleição
é a tradução mais simples de um amplo desejo de participação, cujo real
alcance diz respeito à construção de uma verdadeira gestão democrática,
consoante constatado nos diferentes surveys.
Poder-se-ia objetar que tais pesquisas possuem o bias de terem sido
realizadas a pedido do movimento associativo. Ora, por um lado, o
trabalho de Gomes et alli (2007) não possui tal origem, já que realizado
no âmbito do projeto de pesquisa “História do Direito e da Justiça do
Trabalho no Brasil”, com apoio institucional do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de
Amparo à Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Por outro lado,
ainda que os trabalhos de Sadek (2006) e do CESIT-UNICAMP (2008)
tenham surgido a partir de encomendas das associações, sua independência
acadêmica é inquestionável e encontra-se evidenciada nas preocupações
explícitas de validação do universo amostral. De qualquer sorte, a crítica
perde sentido quando são examinados os dados da recente pesquisa realizada
pela Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes (EJEF), do Tribunal
de Justiça de Minas Gerais, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas
(FGV). Com efeito, a pesquisa “Radiografia da Justiça Mineira”13, além de
não ter qualquer vínculo com o movimento associativo, contou com uma
expressiva taxa de participação de 75%. Ou seja, 746 dos 989 magistrados
estaduais de Minas Gerais responderam, de forma não identificada, o
questionário enviado pela FGV.
Tabela IV
e Antonio Umberto de Souza Júnior (TRT-DF) e, para o segundo grau, Gustavo Tadeu Alkmim (TRTRJ), Manoel Edílson Cardoso (TRT-PI) e Fernando da Silva Borges (TRT-Campinas). Por sua vez, o
TST indicou o Juiz Antonio Umberto de Souza Júnior (TRT-DF) e o Desembargador Altino Pedrozo dos
Santos (TRT-PR). Em 2009, foi realizada nova eleição que deu origem a duas novas listas: para o primeiro
grau, foram indicados Marcos Neves Fava (TRT-SP), Guilherme Guimarães Feliciano (TRT-Campinas) e
Antônio Umberto de Souza Júnior (TRT-DF) e, para o segundo grau, Éridson João Fernandes Medeiros
(TRT-RN), Francisco das Chagas Lima Filho (TRT-AC e RO) e Gustavo Tadeu Alkmim (TRT-RJ). Dessa
vez, o TST indicou, como representantes da magistratura trabalhista, a Juíza Morgana de Almeida Richa
(TRT-PR) e o Desembargador Nélson Tomáz Braga (TRT-RJ). Constata-se, assim, que, se, em 2007, um
dos indicados do TST trazia consigo a legitimidade do processo eleitoral do movimento associativo, em
2009, isso não ocorreu para nenhum dos dois indicados pelo Tribunal.
13
Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/radiografia-justica-.pdf, acesso em: 23 jul. 2009.
166
Revista ENM
MONOGRAFIA
Grau de satisfação
Critério
Insatisfeito
Regular
Bom
Participação na gestão estratégica
64%
24%
12%
Participação na gestão finan- 72%
ceira4
Os dados sistematizados na tabela IV indicam que cerca de dois terços
da magistratura mineira está insatisfeita com o nível de participação que lhe
é oferecido nas gestões estratégica e financeira do tribunal. Não surpreende,
portanto, que 87% dos respondentes se manifestem em favor da eleição
direta para a direção do tribunal. Ainda que todos os não-respondentes se
manifestassem de forma contrária, os magistrados favoráveis à eleição direta
representariam 65,6% da totalidade dos magistrados estaduais mineiros. Mais
uma vez, os dados expressam um intenso e inequívoco desejo de participação e
podem ser entendidos como uma clara manifestação em favor de uma cidadania
eleitoral no espaço judicial. Essa é, aliás, uma vontade perene e presente em
diferentes universos da magistratura, conforme pode ser constatado na tabela V.
Tabela V
Eleição direta
Pesquisa
Universo
Sadek (2006)
Juízes
85,8%
Brasileiros
Juízes do >80,0%
Trabalho
Juízes do
Trabalho
Juízes
93%
Mineiros
Gomes et alli (2007)
CESIT-UNICAMP (2008)
EJEF e FGV (2009)
Primeiro grau
Segundo
grau
52,6%
Magistratura
77,5%
<40,0%
83,6%
25%
87%
Não obstante essa ressonante manifestação coletiva em favor de uma
Revista ENM
167
mais ampla participação de todos os segmentos nos processos deliberativos
do Judiciário, em especial no que diz respeito à escolha de seus dirigentes
e à elaboração de seus orçamentos, tal demanda não encontra amparo no
atual quadro normativo, consoante a jurisprudência consolidada do Supremo
Tribunal Federal (STF), que se encontra sistematizada na tabela VI.
Tabela VI
Jurisprudência do STF
Período
Processo
Relator
Objeto
Pré-EC nº 45/2004
ADI nº 841-2 RJ
Carlos Veloso
Duração do mandato dos dirigentes do
Tribunal
ADI nº 2012 MC SP
Marco Aurelio
Eleição direta para
escolha dos dirigentes do Tribunal
ADI nº 2370-5 CE
Sepúlveda Pertence
Elegibilidade de todos os membros do
Tribunal
ADI nº 3566-5 DF
Joaquim Barbosa
(Cezar Peluso, acórdão)
Elegibilidade de todos os membros do
Órgão Especial
Pós-EC nº 45/2004
ADI nº 3976-8 MC Ricardo
SP
wski
Lewando-
Elegibilidade de todos os membros do
Órgão Especial
ADI nº 4108-8 MG
Ellen Gracie
Elegibilidade
de
metade do Órgão
Especial
RCL nº 5158
Cezar Peluso
Ofensa à decisão
proferida na ADI nº
3566-5 DF
O julgamento da ADI nº 3566-5 DF tem aqui especial relevância, pois
nele restou consignado, de forma explícita, que uma mudança de paradigma
em relação à escolha dos dirigentes dos tribunais não estaria inscrita no bojo
da Emenda Constitucional nº 45/2004, ainda que ela pudesse vir a ocorrer no
âmbito do futuro Estatuto da Magistratura. É o que se extrai da intervenção
do Ministro Cezar Peluso, quando ele afirma que “se a Corte não conhecer da
ação ou julgá-la improcedente, vai permitir a subsistência de ambas as normas
e deixar, pelo menos implicitamente, assentado ou admitido o princípio de
que os regimentos internos dos tribunais têm competência para disciplinar
criação e competência de órgãos diretivos, tempo de duração de mandatos
168
Revista ENM
Cf. http://imagem.camara.gov.br/dc_20.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=13/01/1993&txpagina=66
&altura=650&largura=800, acesso em: 19 jul. 2009.
14
Revista ENM
169
MONOGRAFIA
– são todas as matérias conexas –, condições de elegibilidade, universo de
elegíveis e de eleitores. De modo que cada tribunal neste país terá um perfil
diferenciado, com possibilidades ilimitadas de hipóteses que talvez não
valha a pena comentar”. Em outras palavras, o espaço para realização de tais
mudanças, em virtude do princípio da unidade nacional da magistratura, não
é o dos regimentos internos, mas o do futuro Estatuto da Magistratura, pois
tais matérias devem receber tratamento uniforme. É, por conseguinte, no
âmbito da elaboração do Estatuto da Magistratura que esta voz coletiva, que
está a gritar “Eu quero votar pra Presidente!”, terá que se esforçar para se fazer
ouvida. Assim, nesse momento paradoxal, em que, por um lado, a LOMAN
acaba de completar 30 anos com uma eloqüente ausência de celebração da
data e, por outro lado, intensificam-se os trabalhos para elaboração de um
novo Estatuto da Magistratura, mais adequado aos contornos da ConstituiçãoCidadã e da Reforma do Judiciário, esta voz coletiva precisa se empenhar para
não se tornar uma mera testemunha privilegiada da mudança.
Na verdade, o debate em torno da necessidade de uma nova regulamentação
profissional não constitui uma novidade. Com efeito, em 1992, o Supremo
Tribunal Federal encaminhou ao Congresso o Projeto de Lei Complementar
nº 14414, que foi sobrestado pelo Relator, Deputado Inaldo Leitão (PSDBPB), por conta, de uma banda, das modificações introduzidas pelas Emendas
Constitucionais nº 19/1998, nº 20/1998 e nº 24/1998 e, de outra banda, da
tramitação da PEC nº 96-A/1992, cujo conteúdo versava sobre a Reforma
do Judiciário. O projeto, que chegou a receber uma proposta substitutiva
encaminhada pelo então Presidente do STF, Ministro Maurício Corrêa,
acabou, entretanto, sendo retirado da agenda legislativa, por solicitação da
própria Corte, aprovada pela Mesa Diretora do Congresso em novembro de
2003.
Além da nova arquitetura constitucional, construída essencialmente
entre 1998 e 2004, a atuação do movimento associativo ganhou uma outra
dimensão, com os juízes procurando participar de forma mais intensa na
elaboração da nova proposta a ser encaminhada pelo STF. Nesse sentido,
contribuições isoladas foram elaboradas pela Associação dos Magistrados
Brasileiros (AMB), pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça
do Trabalho (ANAMATRA) e pela Associação dos Juízes Federais do Brasil
(AJUFE), sendo que, recentemente, as duas primeiras encaminharam um
expediente conjunto à Comissão do STF designada para a elaboração da
proposta de novo Estatuto15.
É certo que as diferentes propostas encaminhadas pelo movimento
associativo refletem, simultânea e paradoxalmente, tanto o consenso até aqui
nele construído quanto as percepções “individualizadas” de uma representação
funcionalmente pulverizada e segmentada. A ampliação do debate, com a
desejável integração da sociedade civil e da universidade, é urgente e necessária.
A heterogeneidade de olhares e opiniões será certamente enriquecedora
para a qualificação das discussões, que não podem ser aprisionadas em
uma perspectiva corporativa. Neste texto, de forma singela, postulo minha
participação no debate, trazendo uma contribuição, cujo conteúdo pode ser
apresentado a partir de três distintos eixos:
• Cidadania eleitoral, que diz respeito às propostas com vistas a ampliar a
participação dos diferentes segmentos da magistratura na deliberação de seus
desígnios;
• Gestão financeira, que alcança as propostas tendentes a ampliar a
participação da magistratura na elaboração e na implementação da gestão
orçamentária, emprestando-lhe maior transparência e efetividade; e
• Transparência, que inclui as propostas com vistas a aproximar o Poder
Judiciário da sociedade civil, ampliando sua participação na construção de uma
Justiça democrática e de proximidade, atenta às necessidades da população.
No âmbito da cidadania eleitoral, ter-se-ia a eleição direta para a direção
dos tribunais e para escolha dos representantes da magistratura de primeiro e
segundo graus no CNJ. As condições de elegibilidade em relação à primeira
eleição devem assegurar a possibilidade de todos os membros do segundo
grau concorrer aos cargos de direção, vedando-se a possibilidade de reeleição,
bem como o exercício de cargos de direção por mais de quatro anos, de sorte
a impedir a perpetuação dos mesmos nomes. Por outro lado, deve-se exigir
que os candidatos possuam, ao menos, cinco anos de exercício da atividade
judicante, de modo a assegurar que tenham conhecimento da realidade dos
15
Cf. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=104213&caixaBusca=N,
acesso em: 23 jul. 2009.
170
Revista ENM
16
Cf. Primeira Pesquisa sobre Condições de Trabalho dos Juízes, slide 54. Disponível em: http://www.amb.
com.br/portal/docs/pesquisas/MCI_AMB.pdf, acesso em: 21 jul. 2009.
17
O Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (SIAFI) foi implantado, em
janeiro de 1987, “para suprir o Governo Federal de um instrumento moderno e eficaz no controle e
acompanhamento dos gastos públicos”. Cf. http://www.tesouro.fazenda.gov.br/SIAFI/index_conheca_
siafi.asp, acesso em: 24 jul. 2009. A adoção de semelhante instrumento para o Poder Judiciário já estaria
em gestação no âmbito do CNJ, como indicado por seu Presidente Ministro Gilmar Mendes. Cf. http://
www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8051:amb-elogia-ideia-do-cnj-decriar-sistema-de-divulgacao-dos-gastos-do-judiciario&catid=1:notas&Itemid=169, acesso em: 23 jul.
2009 e http://www.conjur.com.br/2009-jul-22/cnj-criara-sistema-fiscalizacao-gastos-judiciario, acesso em:
24 jul. 2009.
Revista ENM
171
MONOGRAFIA
tribunais. Quanto à segunda eleição, deve-se também exigir o mesmo tempo
de exercício da magistratura, com vistas a assegurar que a representação seja
exercida por membro vitalício da corporação, com conhecimento da realidade
representada, com possibilidade de uma recondução.
Por sua vez, no âmbito da gestão financeira, propõe-se a adoção
do orçamento participativo, de sorte a possibilitar que a totalidade da
comunidade dos tribunais – magistrados e servidores – possa interferir na
destinação de seus recursos. É, aliás, medida essencial para dar cabo à situação
de desconhecimento retratada na Primeira Pesquisa sobre Condições de
Trabalho dos Juízes, realizada pela AMB, em janeiro de 2009. Com efeito, nela
restou identificado que 99% dos magistrados desconhecem o percentual do
orçamento que é destinado às suas unidades judiciais16. Não basta, entretanto,
assegurar a participação das comunidades dos tribunais na elaboração de seus
orçamentos. É necessário assegurar a possibilidade de acompanhamento de
sua execução, o que se tornaria possível mediante a implantação de comitês
gestores, com participação de representantes de todos os segmentos das
respectivas comunidades. Como instrumento de acompanhamento, inclusive
aberto ao público externo, seria importante criar uma espécie de jus-siafi17, que
possibilitaria o acesso imediato a todos os dados da execução orçamentária.
Por fim, no âmbito da transparência, conforme já indicado no
segundo eixo, faz-se necessário possibilitar o acompanhamento da execução
orçamentária pela sociedade, facultando a todo e qualquer um o acesso aos
dados de elaboração e execução dos orçamentos dos tribunais. Outra medida
salutar consistiria na criação de Observatórios de Justiça na esfera de cada
tribunal, com a presença de membros da sociedade civil e da universidade, com
o propósito de refletir sobre o planejamento do Judiciário. Para dar voz à mais
ampla parcela de pessoas da sociedade civil, a prática de audiências públicas
deve ser institucionalizada pelos referidos Observatórios, que poderiam assim
integrar a mais ampla pluralidade de concepções sobre o papel da Justiça. Estas
são medidas que possibilitariam, sem dúvida, a aproximação da sociedade civil
à realidade dos tribunais, bem como sua interação com eles, tudo de sorte a
contribuir para seu desenvolvimento.
Enfim, as medidas aqui preconizadas, que se encontram sistematizadas
na tabela VII, embora não se constituam em condições sine qua non para a
democratização dos tribunais, correspondem à tradução mais fiel e acabada
dos mecanismos usualmente associados à construção democrática, o que torna
difícil pensar que aquela será sem elas alcançada.
Tabela VII
Propostas para o Estatuto da Magistratura
Ainda que elas sejam, portanto, desejáveis e importantes para o
desenvolvimento de uma eventual gestão democrática dos tribunais, não nos
iludamos, contudo, assumindo que esta será uma conseqüência natural da
aqui postulada mudança legislativa. Qualquer que seja o conteúdo da norma
172
Revista ENM
Revista ENM
173
MONOGRAFIA
que venha a ser inserida no futuro Estatuto da Magistratura, seu alcance
será, na verdade, definido pela prática, pelo efetivo exercício de construção
de uma vontade coletiva. Afinal, as potencialidades da norma dependem da
forma com que ela é implementada, das interpretações que lhe são dadas pelos
tribunais. Nesse sentido, ainda que sob uma dimensão judicial, os tribunais
estejam organizados sob uma perspectiva vertical, é preciso que seus intérpretes
percebam que sua dimensão administrativa deve ser cada vez mais horizontal,
possibilitando a participação de toda a comunidade nas deliberações de seu
destino. É, aliás, por meio dessa horizontalidade que os tribunais poderão dar
conta da crescente accountability que lhes está sendo exigida pela sociedade.
Afinal, a cobrança não é dirigida tão somente à cúpula, mas é endereçada a
cada um de seus magistrados, em seu dia-a-dia judicial, no contato com a
população e seus usuários diretos. Na ausência de uma figura emblemática
como o velho Sobral Pinto, é a voz coletiva e anônima que deve se levantar
para dizer que este não é um movimento contra ninguém, contra nenhuma
das Cortes Superiores, contra nenhum dos atuais dirigentes dos tribunais. Este
é, apenas, um movimento a favor de um Judiciário de proximidade, de um
Judiciário transparente, enfim, de um Judiciário democrático!
Referências Bibliográficas
ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS (2009). Primeira Pesquisa sobre Condições
de Trabalho dos Juízes. Disponível em: http://www.amb.com.br/portal/docs/pesquisas/MCI_AMB.pdf,
acesso em: 21 jul. 2009.
CENTRO DE ESTUDOS SINDICAIS E DE ECONOMIA DO TRABALHO (CESIT-UNICAMP)
(2008). Trabalho, Justiça e Sociedade: o olhar da magistratura do trabalho sobre o Brasil do século
XXI. Disponível em: http://ww1.anamatra.org.br/sites/1200/1223/00000990.pdf, acesso em: 19 abr.
2009.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (2009a). Justiça em Números 2007. Disponível em: http://
www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/relatorios/justica_em_numeros_2007.pdf, acesso em: 24 jul.
2009.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (2009b). Justiça em Números 2008. Disponível em: http://
www.cnj.jus.br/images/imprensa/justica_em_numeros_2008.pdf, acesso em: 24 jul. 2009.
ESCOLA JUDICIAL DESEMBARGADOR EDÉSIO FERNANDES (EJEF); FUNDAÇÃO GETÚLIO
VARGAS (2009). Radiografia da Justiça Mineira. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/radiografiajustica-.pdf, acesso em: 23 jul. 2009.
GOMES, Ângela de Castro; PESSANHA, Elina G. da Fonte; MOREL, Regina de Moraes (2007). “Perfil
da Magistratura do Trabalho no Brasil”. in: GOMES, Ângela de Castro (Org.). Direitos e cidadania:
justiça, poder e mídia. Rio de Janeiro: Editora FGV.
SADEK, Maria Tereza (2006). Magistrados: uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: FGV
174
Revista ENM
Hygina Josita Simões de Almeida Bezerra
AMPB – PB
1. Introdução
O acesso à Justiça deve ser encarado, na contemporaneidade, como um dos
mais importantes direitos fundamentais, na medida em que é através dessa via
que o indivíduo pode cobrar do Estado outros direitos dos quais é titular. Nessa
ordem de ideias, o acesso a uma ordem jurídica justa deve estar inserido dentro
do núcleo intangível de Direitos Humanos e estar elevado à categoria de direito
fundamental e essencial do qual emanam os demais direitos.
Uma releitura do conceito de acesso à Justiça à luz dos Direitos Humanos
ensina-nos que esse direito não pode mais ser entendido apenas como a mera
possibilidade de propor uma ação em Juízo. Pressupõe, também, a manutenção
da demanda em trâmite até a prolação da sentença, que deve ser proferida em
prazo razoável e efetivada na prática.
O Judiciário é a ponte que liga o indivíduo à Justiça. É instituição central
à democracia brasileira, quer no que se refere à sua expressão propriamente
política, quer no que diz respeito à sua intervenção no âmbito social1. Quanto
mais estável for esta ponte, mais forte será o Estado Democrático de Direito.
Ainda hoje a Bósnia, a antiga Iugoslávia, Ruanda, Zaire, Afeganistão ou
Darfur demonstram que o Judiciário está passível de anulação como instrumento
* Concurso de Monografia da AMB – Vencedor da Área III (Autonomia e Gestão do Judiciário)
1
VIANA, Luiz Werneck. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. MELO, Manoel Palácios Cunha. A
Judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 9.
Revista ENM
175
MONOGRAFIA
Educação para formação
de juízes-gestores: um
novo paradigma para um
Judiciário em crise*
de garantia de direitos mínimos aos habitantes da Terra, principalmente se não
estiver fincado em bases estáveis.
O Judiciário se fortalece na medida em que consegue cumprir o seu papel
de ser instrumento viabilizador do acesso à Justiça e pacificador dos conflitos
sociais. Não pode, pois, reduzir-se a uma mera proclamação formal de direitos
sem que se verifiquem as condições materiais para o seu exercício efetivo2.
A Era dos Direitos trouxe consigo a ampliação da cidadania, ou seja, “do
direito a ter direitos3”, e isso aumentou a busca pelo Judiciário, que até hoje
não conseguiu se preparar adequadamente para fazer face aos anseios dos
jurisdicionados. O fato de não ter conseguido acompanhar a demanda da
sociedade gerou uma crise nesse poder, consubstanciada, principalmente, na
morosidade na entrega da prestação jurisdicional.
O juiz precisa, paralelamente ao desempenho de suas funções jurisdicionais,
assumir a função de administrador da unidade judiciária.
Defendemos, pois, que o Judiciário brasileiro, através das escolas da
Magistratura, forme juízes-gestores, usando processo educativo pertinente, que
os torne capazes de administrar suas unidades judiciárias de maneira criativa, e
de superar os problemas existentes de forma eficiente e eficaz.
2. A crise como fator de motivação para aperfeiçoamento do
Judiciário
Se de um lado não se pode negar que o Judiciário está em crise, de outro
a história desse poder no Brasil justifica essa crise, na medida em que nos
mostra que o Judiciário passou de coadjuvante a protagonista do processo de
democratização social que aconteceu logo após a promulgação da Constituição
Federal de 1988. Ressalte-se que:
[...] o Poder Judiciário, enquanto instituição, não foi diretamente
envolvido no processo da transição, permanecendo como árbitro
do contrato básico que persistia na sociedade brasileira de então,
distanciado da cena política. Todavia, essa distância do Judiciário
em relação à travessia política do autoritarismo para a democracia
é quebrada no momento seguinte, quando a ordem democrática se
consolida. De mero coadjuvante, o Judiciário passa a ser mobilizado
2 NUNES, João Arriscado. Um novo cosmopolitismo? Reconfigurando os direitos humanos. In: BALDI, César
Augusto (org). Direitos Humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 29.
3 Conceito de cidadania, segundo Hannah Arendt.
176
Revista ENM
para uma posição de protagonista ativo, instado por um poderoso
processo de democratização. [...] o Judiciário foi surpreendido no
papel político de árbitro do equilíbrio entre os Poderes, assim como
destes em relação à sociedade. [...] O Judiciário de hoje – e nesse
contexto o próprio magistrado – vive uma contradição, posto que
não foi obrigado a construir a sua identidade nos difíceis trâmites da
transição e inesperadamente vê-se alçado a essa posição estratégica de
árbitro efetivo entre os outros dois Poderes e responsável, num certo
sentido, pela inscrição na esfera pública dos novos atores trazidos pelo
processo de democratização4.
A verdade é que, atualmente, a sociedade procura no juiz um mega assistente
social, porque outras instituições, notadamente o Estado, estão desertando
das relações sociais. O fenômeno novo do acesso à Justiça coloca o cidadão a
defender os seus direitos civis, os direitos sociais, procurando cada vez mais o
Judiciário, justamente por falta do Estado e de outras instituições5.
A despeito da crise, contudo, o Judiciário segue o curso da história afirmandose como poder necessário para existência do Estado Democrático de Direito e
garantidor do exercício da cidadania.
Hannah Arendt ensina-nos que é através da ação, desempenhada no espaço
público, que podemos mudar as coisas. Segundo ela, “o fato de que o homem é
capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de
realizar o infinitamente improvável”6. Os juízes devem agir buscando mudanças
positivas para o Judiciário.
A crise não precisa ser algo negativo, ao contrário, deve ser vista como
um processo que servirá de motivação para busca de um Judiciário melhor.
Acredito que a referida crise deve ter a conotação que lhe deu Albert Einstein
quando afirmou:
[...] A crise é a melhor benção que pode ocorrer com as pessoas e países,
porque a crise traz progressos. A criatividade nasce da angústia, como
o dia nasce da noite escura. É na crise que nascem as invenções, os
ABREU, Pedro Manoel. Crise do Judiciário, globalização e o papel do juiz orgânico na sociedade brasileira.
In:< http://tjsc25.tj.sc.gov.br/academia/cejur/arquivos/crise_poder_papel_juiz_pedro_abreu.pdf >.
5
Artigo intitulado “Crise do Judiciário, globalização e o papel do juiz orgânico na sociedade brasileira” de
autoria de Pedro Manoel Abreu. Disponível na internet.
6
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 191.
4
Revista ENM
177
descobrimentos e as grandes estratégias. Quem supera a crise, supera
a si mesmo sem ficar “superado”. Quem atribui à crise seus fracassos
e penúrias, violenta seu próprio talento e respeita mais aos problemas
do que às soluções. A verdadeira crise, é a crise da incompetência.
O inconveniente das pessoas e dos países é a esperança de encontrar
as saídas e soluções fáceis. Sem crise não há desafios, sem desafios, a
vida é uma rotina, uma lenta agonia. Sem crise não há mérito. É na
crise que se aflora o melhor de cada um. Falar de crise é promovê-la, e
calar-se sobre ela é exaltar o conformismo. Em vez disso, trabalhemos
duro. Acabemos de uma vez com a única crise ameaçadora, que é a
tragédia de não querer lutar para superá-la.
Apropriemo-nos dessa visão otimista da crise para superá-la logo, porque ela
afeta não só a legitimidade do Poder Judiciário para o exercício de sua função
soberana, como também afeta a economia do País. Isso porque a atividade
produtiva de uma nação se embasa na consistência e na credibilidade das
instituições, criadas e mantidas com o escopo de fazer nascer um ambiente
seguro para os diversos relacionamentos sociais, através da elaboração e da
preservação de regras de convivência. A lentidão do Judiciário, a demora em
exercer suas atividades típicas, acaba por mitigar o contexto estável necessário
para o aprimoramento das relações comerciais e financeiras indispensáveis ao
crescimento econômico7.
Ter conhecimento das causas que motivam a crise do Judiciário é passo
imprescindível para a busca de soluções rápidas e não superficiais para a
superação do problema. Tais causas resumem-se a duas: a morosidade e a falta
de acesso à Justiça. As pesquisas revelam que o Judiciário não tem conseguido
cumprir a missão que lhe é atribuída de ser instrumento de acesso à justiça
e meio efetivo de entrega da prestação jurisdicional em prazo razoável. A
Emenda Constitucional no 45 não trouxe a reforma estrutural necessária à
transformação do Judiciário em serviço público célere, eficiente e efetivo pelo
qual clama a sociedade.
A resolução da problemática que afeta o Judiciário encontra guarida na
questão da gestão judicial.
7
BOTTINI, Píerpaolo Cruz. A reforma do Judiciário: aspectos relevantes. Revista da Escola Nacional da
Magistratura. Ano II. N. 3. Abril 2007. p. 89-99.
178
Revista ENM
Segundo BOTTINI8, a gestão da Justiça é feita em três níveis: o governo
judicial, a gestão judicial e a gestão de cartórios. Na primeira camada, estão
os órgãos responsáveis pelo planejamento estratégico da implementação de
políticas judiciais, que fixam normas genéricas para a atividade administrativa
do Judiciário, entre eles o Conselho Nacional de Justiça. Na segunda
camada encontram-se os órgãos responsáveis pela elaboração das propostas
orçamentárias e pela execução dos orçamentos nas diversas unidades judiciais.
Como exemplo, podemos citar os tribunais de justiça do País. A última
camada da administração da Justiça é a gestão de cartórios. Esta é de domínio
do juiz e diz respeito à organização da tramitação cotidiana dos processos e
procedimentos realizados na unidade judiciária.
Uma análise dos três eixos mencionados revela que através da gestão judicial
o magistrado pode agir para vencer os problemas afetos à lentidão de processos
e referentes ao acesso à Justiça, colocando em prática conhecimentos de gestão
para a qualidade total dos serviços judiciários.
3. Mudança de paradigma: transformação do juiz-juiz em juiz-gestor
Como asseverou o Ministro Gilmar Mendes em um dos seus discursos:
“o juiz brasileiro tem que ser um gestor. Quem administra uma Vara é um
administrador e deve assumir responsabilidade”9. O Judiciário precisa de juízes
que mudem a realidade existente a partir das ferramentas que têm à disposição
deles, sem esperar que a solução parta da cúpula do Poder Judiciário ou de
outros poderes.
O primeiro passo a ser dado é no sentido da mudança de mentalidade do
juiz, para que ele possa ousar, utilizando, sobretudo, a criatividade no âmbito
em que trabalha, vislumbrando o processo sob o ângulo dos “consumidores” da
prestação jurisdicional.
Como se dará essa mudança de mentalidade? A educação é a resposta.
Através da educação voltada para conhecimentos de gestão, o magistrado
poderá saber da existência de métodos e técnicas facilitadoras do exercício
da função de juiz-administrador. A transformação do juiz-juiz em juizgestor encontra amparo em conceitos e ensinamentos advindos da ciência
da Administração.
BOTTINI, Píerpalo Cruz. Op. cit.
Discurso proferido no encerramento do mutirão carcerário em Vitória. Retirado do site do CNJ, na seção
de notícias. < http://www.cnj.jus.br >
8
9
Revista ENM
179
E, como gestor, o juiz é capaz de desenvolver as atividades de gestão judicial e
de gestão de cartórios. Prova disso são as diversas práticas celebradas nos diversos
cantos do País, onde juízes conseguiram, de forma criativa, superar deficits
existentes em suas unidades judiciárias.
Propomos, como já fez NALINI10 outrora, que “a chave da transformação
é a gestão pela qualidade total na administração da Justiça”. O juiz deve usar
as armas de que dispõe para enfrentar os obstáculos ao acesso à Justiça, entre
eles a morosidade, sem contar com a atuação e ajuda de fatores externos. E
quando se fala em acesso à justiça, referimo-nos à tríade: propor ação em
juízo; mantê-la até o final; receber resposta célere e efetiva do Judiciário. É
indubitável que o Judiciário precisa de reformas processuais que diminuam
a burocracia existente nas leis, e de reformas estruturais que melhorem a
organização judiciária e aumentem o número de juízes, insuficiente para julgar
tantas causas. Nenhuma serventia resultará de reforma processual alguma,
por mais brilhante tecnicamente que seja, por mais astutos, preparados e
dignos seus idealizadores e coordenadores, se o sistema brasileiro continuar
admitindo que um juiz tenha sob sua responsabilidade uma média de feitos
em muito superior ao milhar; ou que o Poder Judiciário sobreviva com um
número mínimo de tribunais, muitas vezes situados a milhares de quilômetros
de distância dos jurisdicionados, constituídos por um número mais reduzido
ainda de juízes11. Essas ações, certamente, contribuiriam para a celeridade na
entrega da prestação jurisdicional. Mas os juízes não precisam esperar que
essas mudanças cheguem para começar a agir por conta própria. O juiz não
pode se limitar a esperar pelas modificações na esfera legiferante ou na esfera
administrativa dos tribunais. Estas, em regra, chegam a destempo, e o acesso
à justiça é caso de urgência.
Os entraves burocráticos não podem ser usados como desculpa para entrega
ineficaz e ineficiente da prestação jurisdicional. O juiz pode, a despeito de suas
limitações pessoais, dos defeitos de estrutura, da má produção da lei processual,
tornar a justiça mais eficiente. Para que isso ocorra, entretanto, ele deve se
livrar da roupagem arcaica acaso existente, e ter em si a vontade de mudar o
10
José Renato Nalini prefaciando o livro Administração da Justiça: a gestão pela qualidade total, de autoria
de Rogério A Correia Dias. Editora Millenium, 2004.
11
REBELO, José Henrique Guaracy. O processo civil e o acesso à justiça. Conferência proferida no “Seminário
sobre Acesso à Justiça”, realizado pelo Centro de Estudos Judiciários, nos dias 24 e 25 de abril de 2003, no
auditório do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte-MG. Publicado na Revista
CEJ, Brasília, n. 22, jul/set.2003.
180
Revista ENM
presente status quo atuando dentro de suas limitações, no espaço que o sistema
lhe reservou para atuar.
A ação do juiz voltada para melhoria do acesso à Justiça, a partir do paradigma
da gestão para a qualidade total, produz reação e como diz Hannah Arendt12:
[...] o ator nunca é simples agente, mas também, e ao mesmo tempo,
paciente. Agir e padecer são como faces opostas da mesma moeda,
e a história iniciada por uma ação compõe-se de seus feitos e dos
sofrimentos deles decorrentes. Estas conseqüências são ilimitadas
porque a ação, embora possa provir do nada, por assim dizer, atua
sobre um meio no qual toda a reação se converte em reação em
cadeia, e todo processo é causa de novos processos. Como a ação
sobre seres que também são capazes de agir, a reação, além de ser
uma resposta, é sempre uma nova ação com poder próprio de atingir
e afetar os outros [...].
Urge que se supere a “visão tradicional” da magistratura, forçando o juiz
a repensar o seu papel dentro da nova sociedade contemporânea. Quando se
reflete sobre a necessidade de um novo juiz, é porque se tem em conta que o juiz
de hoje não mais pode estar identificado com o juiz de ontem, ou seja, diante
de uma nova sociedade, com inéditas demandas e necessidades, o novo juiz é
aquele que está em sintonia com a nova conformação social e preparado para
responder, com eficiência e criatividade, às expectativas da sociedade moderna,
tendo em consideração as promessas do direito emergente e as exigências de uma
administração judiciária compromissada com a qualidade total. Esse juiz, que é
impactado pelas profundas deficiências da prestação de serviços estatais, os quais
não conseguem fazer frente às necessidades sociais básicas. Assim, o novo juiz, a
par de sua formação técnico-jurídica, desfruta de uma formação interdisciplinar
que lhe permite ir além, conhecendo a realidade social, econômica e mesmo
psicológica envolvida na lide em julgamento. Portanto, a interdisciplinaridade é
característica marcante do novo juiz13.
Essa mudança de mentalidade concretizar-se-á através da substituição “do
estar adstrito ao processo” pela busca da excelência nos serviços prestados
pelo Poder Judiciário. Desse modo, o juiz-juiz passará a ser o juiz-gestor, com
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 203.
ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. O novo juiz e a administração da justiça. Curitiba: Juruá, 2006. p.
67 e 68.
12
13
Revista ENM
181
visão além do processo. Isso viria com a consciência de que o juiz não pode
ficar adstrito às paredes de seu gabinete, apenas sentenciando e despachando
processos e achar que com isso cumpriu seu mister. Cada juiz, resguardando
sua imparcialidade, deve ter compromisso com a racionalização dos serviços
judiciários, com o atendimento ao público e aos advogados, com o estreitamento
comunicativo com os demais órgãos públicos, entidades de classe e com outras
esferas da sociedade civil organizada. Deve ter responsabilidade social.
A interdisciplinaridade é marcante na otimização dos serviços prestados pelo
Judiciário, na medida em que a impositiva aliança entre o Direito e a ciência da
Administração empresta valioso subsídio à revisão e à modernização dos métodos
de gerenciamento do serviço judiciário, nem sempre aptos à entrega dos resultados
práticos exigíveis pelos jurisdicionados. A ciência da Administração dotará os
magistrados de conhecimentos sobre mecanismos que podem ser usados no
Judiciário para entrega eficiente e eficaz da prestação jurisdicional, tais como:
ferramentas P. D. C. A14., 5W2H15 e 5S16; inteligência de negócios, entre outros.
Falamos de um gerenciamento que não precisa necessariamente vir da
Cúpula, mas que pode ser iniciado pelo próprio juiz “a quo”, dentro do espaço
que lhe cabe atuar. Não propomos a transformação do Poder Judiciário em
uma grande empresa, mas a adoção das experiências positivas que a atividade
14
PDCA significa plan (planejar), do (fazer), check (verificar) e action (ação para correção de imperfeições).
Através do PDCA o gestor planeja, executa, controla e corrige a estratégia que está sendo colocada em
prática. O ciclo PDCA deve ser uma constante dentro da unidade judiciária, pois uma vez aplicado
continuamente levará ao aprimoramento das tarefas, dos processos e das pessoas.
15
A técnica 5W2H é constituída de sete palavras em inglês, sendo cinco delas iniciadas com W e duas
iniciadas com H: What, Who, When, Why, Where, How e How much. Em português, significa: a) O que
será feito? b) Quem fará? c) Quando será feito? d) Por que será feito? e) Onde será feito? f ) Como será feito?
g) Quanto custará? Essa técnica incorpora a grande vantagem de propiciar a definição objetiva e clara de
todos os itens que compõem um planejamento. Com essa ferramenta, temos um quadro completo de cada
atividade, com os dados necessários para implementar um projeto. A resposta às perguntas mencionadas vai
guiar a atuação da equipe na fase de implantação das estratégias.
16
O nome 5S provém de cinco palavras do idioma japonês, iniciadas com a letra “S”, e que designam cada
um dos princípios a serem adotados: a) Seiri (Senso de Utilização), b) Seiton (Senso de Organização), c)
Seisou (Senso de Limpeza), d) Seiketsu (Senso de Saúde/Melhoria Contínua) e, e) Shitsuke (Senso de
Autodisciplina). O seiri consiste em deixar no ambiente de trabalho apenas os materiais úteis, descartando
ou destinando os demais da maneira mais adequada. O seiton consiste em estabelecer um lugar para cada
material, identificando-os e organizando-os conforme a frequência do uso. Se utilizado frequentemente, o
material deve ficar perto do trabalhador, caso contrário, deve ser armazenado em um local mais afastado, para
que não prejudique as tarefas rotineiras. O seisou consiste em manter os ambientes de trabalho limpos e em
ótimas condições operacionais. Este princípio diz: “melhor que limpar é não sujar”. O seiketsu é um princípio
que pode ser interpretado de duas formas. Na aplicação de ações que visam à manutenção e melhoria da
saúde do trabalhador e das condições sanitárias e ambientais do trabalho. Como melhoria contínua, aplica-se
o princípio do kaizen, melhorando e padronizando os processos. O shitsuke consiste na autodisciplina é um
estágio avançado de comprometimento das pessoas, que seguem os princípios independente de supervisão.
Para atingir este estágio é necessário ter atendido satisfatoriamente os 4 princípios anteriores do 5S.
182
Revista ENM
empresarial pode fornecer para ampliar a qualidade dos serviços prestados pelo
Poder Judiciário.
4. Conhecendo a gestão judiciária
Frise-se que gestão Judiciária é um conjunto de tarefas que procuram garantir
a afetação eficaz de todos os recursos disponibilizados pelo Poder Judiciário
com o escopo de se alcançar uma entrega da prestação jurisdicional excelente.
A gestão otimiza o funcionamento da unidade judiciária através da tomada de
decisões racionais fundamentadas pelo gestor como forma de caminhar para o
desenvolvimento e satisfação das necessidades dos jurisdicionados.
Nesse diapasão, gestor judiciário é, ab initio, o juiz, a quem compete
colocar em prática o objetivo maior do Poder Judiciário que é a entrega da
prestação jurisdicional, em prazo razoável e de forma efetiva. O que se torna
possível através de planos estratégicos e operacionais mais eficazes para atingir
os objetivos propostos através da concepção de estruturas e estabelecimento de
regras, políticas e procedimentais mais adequadas aos planos desenvolvidos;
implementação, coordenação e execução dos planos mediante de um
determinado tipo de comando e de controle.
Como bem afirmou Sidnei Agostinho Beneti:
O juiz deve ser encarado como um gerente de empresa, de um
estabelecimento. Tem sua linha de produção e o produto final,
que é a prestação jurisdicional. Tem de terminar o processo,
entregar a sentença e a execução. Como profissional de produção,
é imprescindível mantenha ponto de vista gerencial, aspecto da
atividade judicial que tem sido abandonado. É falsa a separação
estanque entre as funções de julgar e de dirigir o processo – que
implica orientação ao cartório. (...) Como um gerente, o juiz tem
seus instrumentos, assim como um fabricante os seus recursos. São
o pessoal do cartório, as máquinas de que dispõe, os impressos.
É o lugar em que trabalha; são os carimbos, as cadeiras, o espaço
da sala de audiências e de seu gabinete; são a própria caneta, a
máquina de escrever, o fluxo de organização dos serviços e algumas
coisas imateriais17.
17
BENETI, Sidnei Agostinho. Da conduta do juiz. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 12.
Revista ENM
183
Essa gestão deve ser voltada para a qualidade total, o que pode ser alcançado
a partir do envolvimento de todas as pessoas ligadas ao processo produtivo
visando à excelência no serviço prestado pelo Poder Judiciário.
5. A era do saber: educação para mudança de mentalidade
Para que o juiz adquira consciência e técnicas, com vistas a alcançar as
mudanças anteriormente mencionadas, faz-se necessário ter acesso a uma
educação voltada para a gestão.
A educação desperta a capacidade de expansão da autonomia individual.
Uma cultura voltada para a gestão jurisdicional é aquela capaz de incentivar o
juiz, em processo de formação educacional, a pensar no processo jurídico e de
gestão por si próprio, através do incentivo ao desenvolvimento de habilidades
e competência que o aparelhe a tomar medidas para a qualidade total na
entrega da prestação jurisdicional18.
Educar só tem sentido enquanto preparação para o desafio. Uma
educação que não seja desafiadora, que não se proponha a formar iniciativas,
que não prepare para a mobilização, que não instrumente a mudança, que
não seja emancipatória, é mera fábrica de repetição de formas de ação já
conhecidas19.
As escolas da Magistratura desempenham importante papel na formação
do magistrado. Formação esta que inclui não somente o aprimoramento
intelectual dos juízes, mas a transformação deles em núcleos pensantes capazes
de produzir propostas e soluções para o desenvolvimento de todo o sistema
judicial. BOTTINI20 assevera que
A formação de profissionais conscientes dos problemas concretos
que afetam o sistema e capazes de refletir sobre as alternativas para
sua superação deve ser uma prioridade. Mais do que um técnico com
atribuições de aplicar as normas aos casos concretos, o magistrado é
um agente de Estado, responsável por administrar a distribuição de
Justiça de maneira coerente e racional. Logo, é dever das instituições
responsáveis pela formação e pelo aprimoramento intelectual dos
juízes formar núcleos pensantes que produzam propostas e soluções
BENETI, Sidnei Agostinho. Da conduta do juiz. São Paulo: Saraiva, 1997, pg. 12.
BITTAR, Eduardo C. B. Educação e metodologia para os direitos humanos: cultura democrática, autonomia
e ensino jurídico.
20
Píerpaolo Cruz Bottini. Op. cit.
18
19
184
Revista ENM
para o desenvolvimento de todo o sistema judicial, contribuindo,
desta forma, para a construção de um novo modelo mais eficiente e
mais acessível a toda a população.
FOUCAULT aduz que “todo o sistema de educação é uma maneira política
de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os
poderes que estes trazem consigo”21.
As escolas da Magistratura devem se apropriar do discurso voltado para a
gestão jurisdicional e usá-lo para incutir na mente do juiz esse papel que ele
precisa desempenhar na condução da unidade judiciária, onde a atividade
administrativa é indispensável à realização da Justiça.
6. As escolas da magistratura como coadjuvantes no processo
de formação do juiz-gestor
Partindo da assertiva de que, na atualidade, a função de juiz pressupõe
também a função de administrador e que a educação é um ato de formação de
consciência, a transformação do juiz-juiz em juiz-gestor realizar-se-ia através da
participação em cursos de gestão jurisdicional a serem ministrados pelas Escolas
da Magistratura.
O juiz-gestor é aquele magistrado que administra sua unidade judiciária
com visão de administrador, utilizando métodos que vão desde a economia de
material até o desenvolvimento de técnicas que acelerem a entrega da prestação
jurisdicional. É o juiz que não se restringe a sentenciar e despachar processos e
usa a criatividade para superar os problemas existentes na Vara.
O próprio CNJ já sentiu a necessidade de o Judiciário se adequar a padrões
de gestão ao instituir a Resolução n. 70/2009, que dispõe sobre o planejamento
e a gestão estratégica no âmbito do Poder Judiciário.
Os objetivos de números 11 e 12 da referida Resolução, pertinente à gestão
de pessoas, têm como foco, respectivamente, “desenvolver conhecimento, habilidades e atitudes dos magistrados e servidores” e “motivar e comprometer magistrados e servidores com a execução da Estratégia”. Entendemos que o êxito no cumprimento desses objetivos só é possível através da educação voltada para a gestão.
Os cursos de gestão jurisdicional devem ser ministrados pelas escolas da
21
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Disponível na internet: <http://www.scribd.com/
doc/2520353/Michel-Foucault-A-Ordem-do-Discurso>,acessado em 12.8.2009.
Revista ENM
185
Magistratura, sob coordenação/orientação da Enfam – Escola Nacional de
Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, de forma padronizada e de caráter
obrigatório para todos os magistrados na ativa. Obrigatoriedade essa decorrente
do próprio fim a que o curso se destina: de ser meio de mudança de mentalidade.
Os cursos devem, outrossim, ser contabilizados para os fins de promoção
por merecimento, e uma das disciplinas a ser ministrada deve ser a de Boas
Práticas de Gestão para que os juízes apliquem em suas varas as práticas que
forem compatíveis com o seu ambiente de trabalho.
O que mudaria com a transformação do juiz-juiz em juiz-gestor? De posse do
conhecimento das técnicas advindas da ciência da Administração, o juiz passaria
a estabelecer metas de trabalho para cumpri-las. Preocupar-se-ia mais com a
busca da excelência nos serviços prestados, na racionalização de material, no
modo como o público e os advogados são atendidos em sua unidade judiciária.
Essa mudança também traria benefícios para a temática da celeridade processual,
como resultado normal do processo de gestão.
7. Considerações finais
O Judiciário brasileiro ainda não está construído. Vem se construindo a cada
dia. A cada nova ação tenta superar a crise da morosidade e das limitações do
acesso à Justiça, com vistas a suprir os anseios da sociedade. É um poder que
se tornou tão necessário, por causa da sua função de garantidor dos direitos
dos indivíduos, que não conseguiu acompanhar a demanda dos jurisdicionados,
com a velocidade necessária aos novos tempos.
Não existe uma única solução capaz de sanar o problema da crise do
Judiciário. Podemos dizer que existe um conjunto de soluções que trarão
melhorias concretas para a Justiça. Entre elas, apontamos uma imprescindível: a
educação voltada para a formação de juízes-gestores. Papel a ser desempenhado
pelas escolas da Magistratura.
Educado para acompanhar as mudanças trazidas pelos novos tempos, o juiz
será capaz de, ele mesmo, empreender diligências para resolver os problemas
de sua unidade judiciária. O contato com a ciência da Administração é capaz
de tornar o juiz criativo e capacitado a colocar métodos de racionalização
de atividades em prática; elaborar técnicas para agilização dos despachos e
consequente redução do tempo de entrega da prestação jurisdicional.
A educação voltada para a gestão é uma solução de base para o Judiciário. É
como se, ao invés de “dar o peixe se ensinasse a pescar”, para que, de posse desse
186
Revista ENM
novo ofício – o de juiz-gestor – o magistrado possa contribuir para o acesso à
Justiça e para a celeridade na entrega da prestação jurisdicional.
Seguindo raciocínio lógico, temos que o acesso a uma ordem jurídica justa
é alcançado a partir da interdisciplinaridade e da gestão judiciária na busca pela
qualidade total. Só assim é possível ao Judiciário alcançar a celeridade processual,
sem que haja necessidade da interferência de fatores externos. A gestão é apta
a transformar o juiz-juiz em juiz-gestor, o que fará com que o Judiciário passe
a ousar e a centrar-se em tudo aquilo que pode fazer por iniciativa de seus
integrantes. Algo que pode ocorrer se trocar formalidade por criatividade e
dificuldade por capacidade de iniciativa.
O Judiciário deve caminhar para a aceitação de que a interdisciplinaridade e
a gestão jurisdicional são medidas indispensáveis ao acesso à justiça e à celeridade
na prestação jurisdicional.
Chega-se à ilação, pois, de que a educação de magistrados voltada para a
gestão administrativo-jurisdicional é imprescindível na construção do juiz-gestor,
munindo-o de habilidades administrativas a serem usadas como parâmetros
para desempenho de suas funções na unidade judiciária. Funções estas voltadas
para a excelência na entrega da prestação jurisdicional e atingimento das metas
previstas na Resolução no 70/2009, CNJ.
A despeito de toda a problemática que acomete o Judiciário, o tempo tem
mostrado que a história tem se curvado na direção da justiça. A ideia de que
a justiça é possível, que a brutalidade será punida e que o Judiciário é capaz
de proteger os brasileiros de ameaças ou violações de direitos, cria esperança e
promove a confiança nas instituições públicas.
Referências bibliográficas
ARAÚJO, João Alberto de Faria e. Trabalho & felicidade: o ponto G da gestão. 1. ed. (ano 2001), 2. tir. Curitiba: Juruá, 2004.
ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. O novo juiz e a administração da justiça. Curitiba: Juruá, 2006.
BEAUSAY, William. Gestão de pessoas segundo Jesus. São Paulo: Mundo Cristão, 2005.
CAPPELLETTI, Mauro; BRYANT, Garth. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre, Fabris,
1988.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do
processo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
DIAS, Rogério A. Correia. Administração da Justiça: a gestão pela qualidade total. Campinas, SP: Millennium Editora, 2004.
DUARTE, Francisco Carlos. Management Judicial: a nova gestão judicial. Vol. III. 1. ed. (ano 2002), 2. tir. Curitiba: Juruá,
2003.
GOMES NETO, José Mário Wanderley. O acesso à justiça em Mauro Cappelletti: análise teórica desta concepção como
“movimento” de transformação das estruturas do processo civil brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed., 2005.
LEAL FILHO, José Garcia. Gestão estratégica participativa. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007.
MORALLES, Luciana Camponez Pereira. Acesso à justiça e princípio da igualdade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Ed., 2006.
RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. A prática da mediação e o acesso à justiça. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
SCHIER, Carlos Ubiratan da Costa. Gestão prática de custos. 1. ed. (ano 2004), 4. tir. Curitiba: Juruá, 2007.
SELEM, Lara Cristina de Alencar. Gestão Judiciária Estratégica: o Judiciário em busca da eficiência. Natal, RN: Esmarn, 2004.
Revista ENM
187
MONOGRAFIA
O Poder Judiciário e a
coesão social*
Gláucia Falsarella Pereira Foley
Amages – DF
“A sociedade é o conjunto das relações sociais. Ora, entre estas,
podem ser distinguidos dois tipos extremos: as relações coercitivas,
cuja particularidade é impor do exterior, ao indivíduo, um sistema
de regras com um conteúdo obrigatório; e as relações de cooperação,
cuja essência é fazer nascer, no interior mesmo dos espíritos, a
consciência das normas ideais que comandam todas as regras”. (Jean
Piaget)
1. Introdução
O presente trabalho tem por objetivo analisar o papel do Poder Judiciário
na promoção da coesão social, como uma das expressões da realização da
justiça. Uma comunidade coesa pressupõe a corresponsabilidade de seus
membros pela resolução de seus conflitos, articulados sob um sentimento de
identidade, alteridade e pertença. Um dos instrumentos aptos a promover esta
coesão é a mediação que, na qualidade de meio autocompositivo de resolução
de conflitos, pode colaborar na construção do consenso, sob a lógica da
cooperação.
O que se pretende demonstrar é que os esforços de modernização
dos recursos do Sistema Judiciário – humanos, materiais, normativos e
tecnológicos – não terão a capacidade de responder ao fenômeno de explosão
da litigiosidade se não houver uma profunda transformação na concepção
do papel do Poder Judiciário, no sentido de ir além de uma célere e eficiente
prestação jurisdicional.
* Concurso de Monografia da AMB – Vencedor da Área IV (Procedimentos Judiciários)
188
Revista ENM
Se, de um lado, o aumento da litigiosidade vem revelando um traço
adversarial na sociedade brasileira, de outro, o fenômeno do culto ao litígio –
que encerra uma dimensão positiva ao expressar a consciência dos cidadãos em
relação aos seus direitos – parece refletir a ausência de espaços institucionais
voltados à comunicação de pessoas em conflito. O Estado brasileiro não
oferece serviços públicos dotados de técnicas apropriadas para a promoção
do diálogo entre partes em litígio. Diante deste déficit de consenso, as pessoas
utilizam os meios de resolução de conflito disponíveis: a aplicação da “lei
do mais forte”, seja do ponto de vista físico, armado, econômico, social ou
político – o que gera violência e opressão – a resignação – o que provoca
descrédito e desilusão – ou o acionamento do Poder Judiciário, cujas restrições
ainda são uma realidade1.
Os que acessam a via judicial enfrentam as dificuldades próprias de um
sistema organizado sob a lógica adversarial. Os profissionais do Direito, por
sua formação, tendem a aplicar técnicas excessivamente persuasivas, que
comprometem a qualidade dos acordos obtidos, na medida em que não
atendem às necessidades dos usuários do Sistema.
Nesse sentido, para o sistema operar com eficiência, é preciso que as
instâncias judiciárias, em complementaridade à prestação jurisdicional,
fomentem políticas públicas voltadas à pacificação e coesão sociais, o que
implica o fornecimento de serviços direcionados à construção do consenso.
Conforme já se assinalou, a premissa adotada é a de que para se construir
uma justiça do futuro, o Poder Judiciário não pode se limitar à atividade da
prestação jurisdicional, eis que não há realização efetiva da justiça sem coesão
social.
Para sustentar a ampliação do papel a ser desempenhado pelo Poder
Judiciário, há que se analisar, primeiramente, o paradoxal contexto de
desjudicialização e de explosão de litigiosidade no qual se encontra inserido
o Sistema Judiciário. Logo em seguida, serão apresentados os modelos
disponíveis de resolução de conflitos, para que se destaquem os meios aptos
a colaborar neste projeto. Ao final, apresentar-se-á uma proposta concreta de
ampliação das portas de acesso ao Sistema de Justiça, denominado Sistema
Múltiplas Portas.
ANDRIGUI, Nancy e FOLEY, Gláucia Falsarella. Sistema multiportas: o Judiciário e o consenso.
Tendências e Debates. Folha de São Paulo, 24 de junho de 2008.
1
Revista ENM
189
2. Desjudicialização e explosão de litigiosidade
As sociedades contemporâneas ocidentais passam por um momento de
transformação em relação ao Sistema de Justiça que revela um fenômeno
aparentemente paradoxal: de um lado, o acelerado processo de urbanização
e o desenvolvimento da sociedade de consumo – e, com ele, o aumento da
consciência em relação aos direitos individuais e coletivos – ensejaram uma
explosão de litigiosidade2 que judicializou o social. De outro, é possível
constatar um processo de desjudicialização3 da resolução dos conflitos.
A judicialização da esfera social, visível a partir do aumento vertiginoso
das demandas judiciais sem a correspondente ampliação dos recursos estatais,
elevou a expectativa social em relação ao papel do Sistema de Justiça, que
passou a absorver quase que exclusivamente a quota da responsabilidade pela
coesão social. Ocorre que este fenômeno atingiu somente uma determinada
parcela da sociedade que dispõe de recursos para recorrer ao Sistema de Justiça
mediante a violação de um direito. Além disso, essa demanda aumentada foi
colonizada por causas numerosas, porém de baixo impacto, como o são as
dívidas cobradas pelas prestadoras de serviço público4, fato que contribuiu
ainda mais para o déficit de celeridade e eficiência que trazem insatisfação aos
usuários do Sistema de Justiça.
A desjudicialização, por seu turno, ocorre exatamente por força dessa
exclusão de uma significativa parcela da sociedade do acesso ao Sistema de
Justiça, aliada à fragmentação e complexidade das sociedades contemporâneas
que exigem respostas plurais a uma realidade multifacetada. Essa busca por
informalização dos procedimentos revela uma (re) descoberta de novos meios
de resolução de conflitos que não se limitam à atividade jurisdicional e que
procuram veicular uma “justiça democrática da proximidade”.5 Compreender
esse fenômeno e posicionar-se diante dele é uma tarefa necessária para aqueles
que consideram que a criação do direito – mesmo antes da (re) emergência
destes meios “alternativos” de solução de conflitos – não é, nem nunca foi,
obra exclusiva dos parlamentos e tribunais.
Também denominado “o direito em abundância”, por Marc GALANTER. Apud, PEDROSO, João;
TRINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da desjudicialização – por caminhos
da reforma da administração da justiça (análise comparada), p. 14, disponível na Internet no sítio: http://opj.
ces.uc.pt/portugues/relatorios/relatorio_6.html. Acesso em 7 de maio de 2009.
3
Idem, p. 32-33.
4
Fenômeno que se verifica no Brasil, conforme notícias diariamente veiculadas na imprensa e, em Portugal,
conforme SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução Democrática da Justiça, p. 27.
5
Idem, p. 59.
2
190
Revista ENM
O monopólio estatal da resolução de litígios nunca foi uma realidade. Há
um direito vivo, latente, que se traduz na forma como os cidadãos lidam com
as adversidades da vida no cotidiano. Afastados dos tribunais, estes conflitos
vão sendo solucionados da melhor maneira – nem sempre emancipatória –
encontrada pelos seus protagonistas.
Como afirma Aguiar6, o direito, que se expressa nas lutas sociais, não se
restringe à legalidade estatal, emergindo “em todas as situações onde existam
as relações de alteridade, onde os olhares diversos sobre problemas engendrem
soluções novas, aberturas diferentes e consignação de novos direitos”.
As sociedades são consideradas juridicamente pluralistas quando há uma
sobreposição entre o direito oficial e os demais direitos que são erigidos nas
relações sociais – família, produção, trabalho, vizinhança. E é exatamente essa
normatividade que “é freqüentemente mobilizada pelos mecanismos informais
de resolução de litígios7”.
Embora a utilização de métodos autocompositivos de solução de conflitos
não seja uma novidade do século XX8, houve um resgate do uso destes meios nos
anos 60/70, nos EUA, reunidos sob a sigla ADR9. Este processo foi o resultado
de dois movimentos sócio-políticos aparentemente contraditórios. De um
lado, o ADR mostrou-se um remédio para lidar com o excessivo número de
demandas judiciais que, uma vez não absorvidas pelo sistema oficial, causaram
insatisfação e descrédito na justiça. Era o “direito em abundância”, expressão
cunhada por Galanter10 para expressar o fenômeno da inflação jurisdicional,
verificado em um momento de grande atividade política voltada para a defesa
dos direitos. De outro, o movimento ADR constituiu um meio de contestação
da centralidade do monopólio estatal, visando valorizar o espaço comunitário
AGUIAR, Roberto Armando Ramos. Procurando superar o ontem: um direito para hoje e amanhã, p. 70.
SANTOS, Boaventura de Sousa, MARQUES, Maria Manuel Leitão, PEDROSO, João, FERREIRA,
Pedro Lopes. Os Tribunais nas sociedades contemporâneas. O caso português, p. 48.
8
Conforme Nazareth Serpa, “Começando pelo diálogo até a guerra, são incontáveis e informais os métodos
utilizados pela humanidade para pôr fim aos seus conflitos. Os tribunais sempre foram a última opção.
ADR não é panacéia do século XX. É a institucionalização do que vem sendo feito, desestruturada e
informalmente, em matéria de resolução de disputas em todo século. Apud ROMÃO, José Eduardo Elias,
Justiça procedimental. A prática da Mediação na Teoria Discursiva do Direito de Jürgen Habermas, p. 155. E,
ainda, para um excelente resgate histórico do movimento ADR nos EUA, consultar AUERBACH, Jerold
S. Justice without Law? UK: Oxford University, 1983.
9
Alternative Dispute Resolution (ADR) ou Resolução Alternativa de Disputas (RAD). Adotar-se-á, neste
trabalho, a nomenclatura ADR, por ser a mais freqüentemente utilizada nas fontes bibliográficas citadas
neste trabalho. Outras denominações, entretanto, são possíveis: justiça informal, justiça da proximidade,
justiça de vizinhança, justiça popular, dentre outras.
10
Apud PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da
desjudicialização – por caminhos da reforma da administração da justiça (análise comparada), p. 14.
6
7
Revista ENM
191
e estimular a participação ativa na solução dos conflitos. O propósito era o de
promover a reapropriação da gestão dos conflitos pela sociedade.
Se o que se pretende aqui é a retomada da gestão dos conflitos pela sociedade,
os meios autocompositivos devem ser considerados eis que abertos à produção da
normatividade que se constrói nas relações concretas e à autolegislação, adequando
a lei às inúmeras e fragmentadas realidades sociais11. O acesso à justiça não pode se
limitar, pois, a proporcionar que todos recorram aos tribunais, mas “implica que
se procure realizar justiça no contexto em que se colocam as partes: nesta óptica, os
tribunais só desempenham um papel indirecto e, talvez mesmo, menor”.12
Confere-se, assim, aos cidadãos, a autonomia de participar na formação
racional da vontade e da opinião. Sob esta ótica, somente aqueles meios de
resolução de conflitos que contemplem a razão comunicativa – ou seja, que
garantam a participação com direitos iguais de comunicação, a racionalidade,
a exclusão de enganos e ilusões e de coação – é que podem proporcionar a
aplicação de um direito válido13.
Para Habermas, a vontade racional extrai-se das narrativas inseridas nas
negociações, conferindo legitimidade ao direito, sob um arranjo comunicativo:
“enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito devem
poder examinar se uma norma controvertida encontra ou poderia encontrar o
assentimento de todos os possíveis atingidos”.14
O objetivo deste trabalho é exatamente ampliar as possibilidades para que
o Sistema Judiciário promova coesão social, por meio do agir comunicativo e
da força transformadora do diálogo presentes na mediação.
Para tanto, adotar-se-á a mediação de conflitos como foco principal do
trabalho, logo após a apresentação do panorama e da classificação dos meios
de resolução de conflitos disponíveis na sociedade.
3. A realização da Justiça e os modelos de resolução de conflitos
Segundo Azevedo15, a processualística atual organiza-se em torno de três
espécies de resolução de conflitos: a autotutela ou autodefesa, que implica
HESPANHA, António. Justiça e Litigiosidade: história e prospectiva, p. 21
GALANTER, Marc. A justiça não se encontra apenas nas decisões dos tribunais. In: HESPANHA, António.
Idem, p. 75.
13
ROMÃO, José Eduardo Elias, Justiça procedimental. A prática da Mediação na Teoria Discursiva do Direito
de Jürgen Habermas, p. 135.
14
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. Volume I, p. 138.
15
GOMMA, André Azevedo. Perspectivas metodológicas do processo de mediação: apontamentos sobre a
autocomposição no direito processual, p. 151-153.
11
12
192
Revista ENM
a dissolução do conflito com a imposição de uma vontade sobre outra pela
violência física ou moral; a heterocomposição que enseja a resolução de
disputas por meio da imposição de uma decisão de um terceiro a qual as
partes encontram-se vinculadas – assim como ocorre no processo judicial e na
arbitragem – e, finalmente, a autocomposição.
Os meios autocompositivos são aqueles em que a resolução do conflito
decorre da vontade dos próprios envolvidos na situação, sem a intervenção
vinculativa de um terceiro, ou seja, sem a emanação de uma decisão unilateral.
Essa autocomposição pode ser impulsionada pela aplicação de técnicas de
negociação, conciliação ou mediação. Como todos estes instrumentos podem
ser judiciais ou extrajudiciais, há que se ressaltar que, ao contrário da imediata
associação que usualmente se faz entre meio extrajudicial e meio alternativo
– os meios autocompositivos de solução de conflitos não necessariamente
correspondem aos meios extrajudiciais – por vezes, denominados “alternativos”
– ao Sistema Judiciário.
Conforme já assinalado, um dos objetivos deste trabalho é investigar
quais são os meios de resolução de conflito que, convertidos em práticas
comunicativas, podem colaborar para a promoção da coesão social, por meio
do desenvolvimento da autonomia e do empoderamento16 individuais e coletivos.
Antes, porém, que se proceda a essa seleção, é preciso traçar um panorama
dos principais instrumentos de resolução de disputas colocados à disposição
dos cidadãos em conflito, contextualizando-os.
2. 1. Apresentação e Classificação dos Meios de Resolução de Conflitos
A apresentação dos principais mecanismos de resolução de conflito pode
ser feita a partir de um critério de classificação que contenha as variáveis
regulatório/emancipatório e estatal/não-estatal. A primeira variável se justifica
pelo fato de que o objeto da presente investigação é analisar em que medida
as práticas comunicativas estabelecidas entre cidadãos em conflito podem
colaborar para a coesão e emancipação sociais. O critério estatal/não-estatal,
apesar da sua dificuldade – posto que, em uma sociedade complexa, por vezes,
16
A palavra empoderamento, traduzida do inglês, empowerment, será adotada neste trabalho, à luz da definição
talhada por SCHWERIN, pela qual “O processo de empoderamento reúne atitudes individuais (autoestima, auto-avaliação) e habilidades (conhecimento, aptidões e consciência política) para capacitar ações
individuais e colaborativas (participação política e social), a fim de atingir metas pessoal e coletivas (direitos
políticos, responsabilidades e recursos)”, In: SCHWERIN, Edward. Mediation, Citizen Empowerment and
Transformational Politics, p. 56.
Revista ENM
193
essa classificação não se mostra suficiente – tem por finalidade demonstrar que
os espaços de construção do consenso podem ou não ser estatais.
A fim de apresentar um quadro no qual os meios de resolução de conflitos
se organizam segundo tais vértices, urge adotar uma definição de direito
capaz de abarcar diferentes ordens jurídicas. Adotar-se-á, aqui, a definição
talhada por Sousa Santos, pela qual o direito é “um corpo de procedimentos
regularizados e de padrões normativos, com base nos quais uma terceira parte
previne ou resolve os litígios no seio de um grupo social”.17
Este conceito amplo permite o reconhecimento de uma pluralidade de
ordens jurídicas. Segundo Sousa Santos18, apesar de não admitido oficialmente
pelo Estado, há, nas sociedades contemporâneas, uma constelação de direitos,
vários sistemas jurídicos que regem os conflitos e a ordem social. Neste
cenário, estão incluídas diferentes ordens jurídicas internas e transnacionais
cujo campo transborda o espaço nacional do direito estatal. Nesse sentido, a
unidade estatal não pressupõe a unidade do direito. Este hiato entre o controle
político e o administrativo promove a fragmentação e a heterogenização do
Estado e, consequentemente, a perda de sua centralidade, a partir de dois
movimentos estatais aparentemente contraditórios: de um lado, a terceirização
– ou mesmo privatização de alguns serviços – de suas funções outorgadas
à esfera privada. De outro, um retorno à comunidade incentivando as suas
organizações sociais. Nas palavras de Sousa Santos, “na situação actual, a
centralidade do Estado reside, em grande parte, na forma como ele organiza o
seu próprio descentramento”.19 Porque esta perda de centralidade é controlada
pelo próprio Estado, há uma unidade regendo a heterogeneidade.
Neste cenário múltiplo de reconhecimento da pluralidade de ordens
jurídicas, podemos identificar a variável estatal/não-estatal, esta última
abarcando as práticas jurídicas levadas a efeito fora do âmbito oficial, ainda
que densamente reguladas pelo direito estatal, como é o caso da arbitragem.
Os modelos podem vir a ser classificados, ainda, sob a variável regulatório/
emancipatório. Teoricamente, o modelo emancipatório é o campo de exercício
17
SOUSA SANTOS, Boaventura de. O Estado heterogêneo e o pluralismo jurídico, In: SOUSA SANTOS,
Boaventura de e TRINDADE, João Carlos (Orgs.). Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das
Justiças em Moçambique, p. 50.
18
Idem, p. 48.
19
E complementa: “e isso é bem ilustrado nas políticas, por ele apoiadas, de regresso à comunidade e de
recuperação da comunidade. Desse modo, a distinção entre o estatal e o não-estatal é posta em questão,
o que, naturalmente, só vem tornar ainda mais complexo o debate sobre pluralidade de ordens jurídicas.”
Ibidem, p. 56.
194
Revista ENM
da retórica, enquanto que no regulatório impera o direito permeado pela
coerção e/ou burocracia. Assim, o grau de “contaminação” ou colonização
entre estes elementos – retórica, coerção e burocracia – é que define se o
modelo é do tipo emancipatório ou regulatório.
Pretende-se, aqui, analisar quais as combinações possíveis entre as variantes
estatal/não-estatal e regulatória/emancipatória. Nada impede que, nas esferas
não estatais, haja uma forte prevalência da coerção, em detrimento da retórica.
Ou ainda, uma retórica persuasiva ao invés de dialógica20. Nesse sentido, essas
classificações são válidas para guiar o nosso debate, mas deve-se ressalvar que
“as dicotomias são um bom ponto de partida se for claro, desde logo, que não
são um bom ponto de chegada”.21
O critério, portanto, de classificação sob as variáveis adotadas obedecerá a
articulação entre os três componentes estruturais do direito22, bem assim, da
natureza da retórica utilizada. Assim, onde há prevalência da retórica dialógica,
há o exercício do direito emancipatório. As práticas que privilegiam a coerção
e a burocracia serão identificadas como manifestações do direito regulatório.
Em um campo intermediário, situa-se a retórica do tipo persuasivo, cujo
enfoque se concentra na produção de resultados satisfatórios para as partes.
A adoção dessas duas variáveis nos conduz a desenhar um quadro com
quatro campos para a classificação das diferentes ordens jurídicas: a) o direito
estatal regulatório; b) o direito estatal emancipatório; c) o direito não-estatal
regulatório; e, d) o direito não-estatal emancipatório. O gráfico apresentado
a seguir classifica os diversos modelos segundo os critérios já expostos. Desse
modo, temos os seguintes modos de resolução de litígios: 1) a jurisdição; 2) a
violência; 3) conciliação; 4) a arbitragem; 5) a mediação – judicial e comunitária.
2.1.1. A jurisdição
Sob o modelo estatal do tipo regulatório, identificam-se os meios de
resolução de litígios realizados por intermédio da jurisdição formal. Nele estão
20
Segundo SANTOS a ‘novíssima retórica’, ou retórica dialógica “deve privilegiar o convencimento em
detrimento da persuasão, deve acentuar as boas razões em detrimento da produção de resultados.” SOUSA
SANTOS, Boaventura de. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência, p. 104-105
21
SOUSA SANTOS, Boaventura de. O Estado Heterogêneo e o Pluralismo Jurídico, In: SOUSA SANTOS,
Boaventura de e TRINDADE, João Carlos (Orgs.). Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das
Justiças em Moçambique, p. 61.
22
Retórica, burocracia e coerção são, na análise de Sousa Santos, os três componentes estruturais do direito
que podem se articular sob diferentes combinações, a depender do campo jurídico ou dentro de um mesmo
campo. SOUSA SANTOS, Boaventura de. Idem, p. 50.
Revista ENM
195
incluídas as experiências que, embora denominadas “informais”, reproduzem
os mesmos pressupostos da jurisdição formal.23
A jurisdição formal é, por excelência, palco da justiça da Modernidade,
já que inspirada em princípios universais baseados em imperativos de uma
razão profundamente intrínseca a todos os seres humanos. Essa é a justiça que,
codificada, aplica o mesmo procedimento a casos tão diferentes, com base em
deduções racionais advindas da autoridade da lei ou dos precedentes.
Nas democracias ocidentais, uma das fontes de legitimidade do parlamento
está no procedimento democrático por meio do qual seus membros são
eleitos. O pressuposto é que os indivíduos são livres e racionais, capazes de
eleger seus representantes. Esta lógica, quando transferida para a resolução de
disputas, é a de que, quando em conflito, os indivíduos – sujeitos de direitos
– provocam o Estado para “dizer o direito” no caso concreto. Nesta esfera, os
representantes deste Estado legítimo são os juízes que, com imparcialidade e
saber jurídico, aplicarão a lei, que fora expedida pelo parlamento democrático,
ao caso concreto.
Todo o procedimento judicial é, pois, estruturado para dar cumprimento
a esta racionalidade: a) o sistema é adversarial e dialético – porque
direcionado a oferecer uma síntese resultante da contraposição de direitos
que necessariamente se excluem. Ao final, haverá um vencedor e um vencido;
b) é autocrático – posto que pautado na autoridade da lei ditada por um
terceiro imparcial também revestido da autoridade estatal; c) tem pretensão
universal, porque, conforme adverte Shonholtz, “o tratamento da lei é igual,
não respeitando as diversidades cultural, lingüística, étnica, cultural e racial”;24
d) é coercitivo, burocrático e não-participativo, na medida em que produz
resultados mandamentais, sem que tenha sido dada a oportunidade das partes
interessadas se manifestarem livres das amarras e estratégias da linguagem
forense traduzida pelos denominados “operadores do direito”.
Não raro, os “clientes da justiça” sentem-se excluídos do processo
conduzido por seus advogados, os quais fornecem estratégias baseadas na
interpretação da lei no interesse imediato das partes. Muitos clientes ficam
intimidados com a formalidade do processo de adjudicação e sentem que não
23
Tais como as iniciativas de democratização do acesso à jurisdição no Brasil – juizados especiais cíveis
e criminais, juizados itinerantes, dentre outros – os quais procuram despir a jurisdição do excessivo
formalismo que reveste o rito comum.
24
SHONHOLTZ, Raymond. Justice from another perspective: the ideology and developmental history of the
Community Boards Program, p. 203.
196
Revista ENM
estão aptos a participar de forma ativa. Trata-se da “advocacia ritualística”,
conforme denomina W. Simon25, pela qual “os litigantes não são os sujeitos da
cerimônia, mas os pretextos para ela”.
O padrão adversarial nem sempre se mostra adequado, na medida em
que o sistema binário – considerado pela Modernidade o melhor meio de se
atingir a verdade – polariza o debate, distorce a realidade, omite informações
importantes, simplifica complexidades e obscurece, ao invés de clarificar.
Carrie Menkel-Meadow26 argumenta que a pós-modernidade é marcada
por uma realidade multicultural que apresenta problemas complexos, os
quais requerem soluções multifacetadas nem sempre fornecidas pelas cortes.
Toda esta complexidade é distorcida quando o conflito é analisado sob uma
estrutura binária.
Apesar de sua longevidade, o padrão adversarial como um modo do
discursar humano e como uma ferramenta para se buscar a verdade parece ter
entrado em crise. O problema está em saber se a verdade existe fora daquilo
que se conhece. No mundo atual, marcado pela complexidade, fragmentação e
multiplicidade, não há como sustentar a imutabilidade ou universalidade dos
fatos e valores. Seria possível fixar a verdade? Sentidos são “descobertos” ou
estabelecidos contextualmente? As pessoas cuja tarefa é “encontrar” a verdade
– juízes, jurados, a mídia, ou mesmo os cientistas – possuem interesses sociais,
econômicos, políticos, raciais, de gênero que afetam a forma como eles vêem
o mundo. Este novo olhar que questiona a objetividade e neutralidade traz
sérias consequências para o modelo adversarial baseado na imparcialidade,
neutralidade e inércia dos juízes. Para Menkel-Meadow, a realidade da vida
não pode ser reconhecida pela “verdade”, mas por meio de múltiplas histórias
e deliberações. Há que se pensar em caminhos que possibilitem mais vozes,
mais histórias e mais complexas versões da realidade.
É possível identificar uma alta intensidade regulatória na jurisdição formal,
tendo em vista a presença dos elementos da burocracia e da coerção, em
detrimento da retórica. Urge, assim, apontar outros meios capazes de realizar
a justiça do consenso, dentro e fora do âmbito jurisdicional.
O fato de a jurisdição pertencer ao campo do direito regulatório, contudo,
não significa que o seu exercício não possa contribuir para a emancipação.
Apud MACFARLANE, Julie In: An alternative to what? p. 5.
MENKEL-MEADOW, Carrie. The Trouble with the Adversary System in a Postmodern, Multicultural
World, 2001.
25
26
Revista ENM
197
Em situações extremas, nas quais os conflitos repousam na violência e na
eliminação da divergência pela força, a jurisdição revela-se um instrumento
hábil a conferir uma decência na regulação, protegendo direitos e garantindo
a realização da justiça.
2.1.2. A violência
Com a retração das instituições em razão da centralidade do mercado,
outros núcleos de emanação do poder e de resolução de conflitos emergem.
Diante do enfraquecimento da regulação estatal, o Estado é, hoje, um campo
de disputas de diferentes projetos e interesses, no qual novas formas de
fascismo societal buscam consolidar suas regulações despóticas, privatizando
a esfera estatal27.
Um deles é o apartheid social. Trata-se da segregação, no espaço urbano,
dos excluídos que vivem em zonas consideradas “selvagens”, onde impera a
lei do Estado de natureza hobbesiano. Neste espaço, o Estado age de maneira
predatória, sem qualquer observância aos princípios do Estado de Direito. Do
outro extremo, os cidadãos incluídos no contrato social buscam proteção do
constante perigo que emana das zonas segregadas, fechando-se em guetos nos
quais se faz presente a ação estatal, por meio do fornecimento dos serviços públicos
garantidores do bem-estar social, ainda que muitas vezes de forma insatisfatória.
Este duplo padrão de atuação estatal, a depender da zona destinatária, é o que
constitui a segunda forma de fascismo, o do Estado paralelo.
É, sobretudo em razão dos fascismos do apartheid social e do Estado paralelo
que algumas formas de resolução de litígios reproduzem um modelo no qual
imperam a violência e a coerção em detrimento da retórica. Tais práticas têm
assento em um pilar regulatório, na medida em que funcionam por meio de
mecanismos de controle, tutela e coerção.
A violência como meio de resolução de conflitos pode assumir diversas
colorações. No seu extremo, temos aquela realizada por um fascismo social
local, que opera segundo as regras da denominada sociedade civil não civil.28
Não há qualquer exercício da retórica e o poder de decisão acerca dos conflitos
é monopólio dos membros da comunidade que a controlam pela imposição
SOUSA SANTOS, Boaventura de. Reinventar a Democracia.
Segundo Santos, “A sociedade incivil é o círculo exterior habitado por aqueles que estão completamente
excluídos. Eles são socialmente invisíveis. Este é o círculo do social fascismo e, a rigor, aqueles que o
habitam não pertencem à sociedade civil, na medida em que foram jogados no novo Estado de natureza.
Eles não têm expectativas estáveis porque, na prática, não possuem direitos”. Idem, p. 457.
27
28
198
Revista ENM
do silêncio, do medo e das armas. Como exemplo, os chefes do tráfico de
drogas nas favelas brasileiras, que destroem o sentido da comunidade a partir
da negação do outro.
A justiça desenvolvida segundo os ditames do fascismo social opera por
meio da violência, e sua retórica é a arma. O julgador, terceiro a substituir a
vontade das partes, não se pretende imparcial. Ao contrário, trata-se de uma
justiça politizada e parcial, na medida em que o julgador não atua segundo
orientação da justiça, mas do controle da política. A justiça do fascismo
societal não oferece um segundo grau de jurisdição; qualquer questionamento
da decisão pode implicar eliminação física do queixoso, mesmo porque este
modelo comunitário adota, em alguns casos, a pena de morte como uma das
formas de punição. A violência – estatal ou não – é, pois, a manifestação mais
extremada da justiça, praticada sob um viés regulatório.
2.1.3. A conciliação
Em uma zona intermediária, mais próxima do exercício da retórica
persuasiva, encontra-se a conciliação, como um meio de resolução de conflito
pertencente ao campo regulatório. É que, embora tecnicamente a conciliação
seja uma modalidade de autocomposição do conflito, uma vez que dispensa
o pronunciamento unilateral do juiz sobre o mérito da causa, a condução
do procedimento é atribuída a um terceiro – juiz, juiz leigo ou conciliador
privado – com poderes para sugerir, ponderar, aconselhar as partes quanto à
melhor solução para o conflito29.
Além disso, o que se verifica, em geral, é que o objeto da conciliação
judicial encontra seus limites no próprio objeto da lide. De qualquer sorte,
sendo ou não judicial, a atuação do conciliador é interventiva, na medida
em que seu papel é o de estimular as partes para que cheguem a um acordo,
sugerindo alternativas e condições para a resolução do conflito, interferindo,
assim, no resultado da composição.
Conforme se verá adiante quando da análise da mediação, enquanto na
conciliação o objetivo é a celebração de um acordo para evitar um processo
judicial, na mediação, o acordo não é a meta, mas a – provável – resultante
29
Sem prejuízo de que a conciliação pode ocorrer em uma esfera privada, a tentativa de conciliação judicial
está prevista na legislação brasileira como uma etapa obrigatória, tanto no procedimento ordinário – art.
331 do Código de Processo Civil – quanto no rito previsto na Lei de Juizados Especiais – art. 21 da Lei
9.099/95 – bem assim, no art. 846 da CLT.
Revista ENM
199
de um processo de comunicação sobre os reais interesses que se escondem
sob a rigidez das posturas assumidas pelas partes em conflito. Para Warat, a
conciliação limita-se a atuar na disputa das posições, não explorando o conflito
e suas circunstâncias30.
Embora opere com elementos da retórica, a conciliação é do tipo persuasivo
o que afasta a sua consideração nesta obra como um meio de resolução de
conflitos de alta intensidade emancipatória para a promoção da coesão social.
2.1.4. A arbitragem
Conforme afirma Moore, arbitragem é um termo genérico para um
processo voluntário em que as pessoas em conflito submetem a questão objeto
de controvérsia a uma terceira parte imparcial e neutra para que tome uma
decisão por elas. O instituto, segundo previsão na legislação brasileira31, é
definido como um processo formal pelo qual as partes, de comum acordo,
aceitam submeter o litígio envolvendo direito patrimonial disponível a
um terceiro, cuja decisão terá observância obrigatória. A sentença arbitral
produzirá os mesmos efeitos que a sentença proferida pelos órgãos do Poder
Judiciário, constituindo, inclusive, título executivo, quando condenatória.
Tendo em vista que o papel do árbitro é o de adjudicação, sua estrutura
segue o padrão do processo judicial. O paradigma que se revela na arbitragem
é o de uma estrutura piramidal-coercitiva, sendo que no vértice desta relação,
ao invés do estado-juiz, está o árbitro escolhido pelas partes nos contratos
celebrados à luz do direito privado.
2.1.5. A mediação
Com precisão e simplicidade, Littlejohn afirma que “mediação é um
método no qual uma terceira parte imparcial facilita um processo pelo qual os
disputantes podem gerar suas próprias soluções para o conflito”.32
30
“A conciliação e a transação não trabalham o conflito, ignoram-no, e, portanto, não o transformam como
faz a mediação. O conciliador exerce a função de ‘negociador do litígio’, reduzindo a relação conflituosa a
uma mercadoria. O termo de conciliação é um termo de cedência de um litigante a outro, encerrando-o.
Mas, o conflito no relacionamento, na melhor das hipóteses permanece inalterado, já que a tendência é a
de agravar-se devido a uma conciliação que não expressa o encontro das partes com elas mesmas”. WARAT,
Luis Alberto. O ofício do mediador, p.79- 80.
31
Conforme previsão na Lei n. 9.307, de 23/9/96.
32
LITTLEJOHN, Stephen W. Book reviews: The Promise of Mediation: Responding to Conflict Through
Empowerment and Recognition by Roberto A. B. Bush and Joseph. P. Folger, p. 103.
200
Revista ENM
Segundo a sistematização de Garrett33, mediação é um processo voluntário
de resolução de conflitos, no qual um terceiro coordena as negociações entre
as partes. Diferentemente do juiz, o mediador não tem autoridade para impor
a decisão sobre os disputantes. Ao contrário, o mediador conduz o processo,
por meio da discussão do problema, dos temas que precisam ser resolvidos e
das soluções alternativas para a solução do conflito. As partes, entretanto, é
que decidem como construirão o consenso.
Vê-se, pois, que o núcleo do conceito de mediação contém, basicamente,
os seguintes elementos: a) processo voluntário; b) mediador como terceira
parte desinteressada; c) mediador sem poder de decisão; d) solução talhada
pelas partes em conflito.
Mais completa, contudo, é a análise de Schwerin34 que reúne os elementos
da mediação a partir das suas finalidades. Para o autor, trata-se de um processo:
a) apto a lidar com as raízes dos problemas; b) não-coercitivo; c) voluntário e
permite aos disputantes resolverem seus problemas por eles próprios; d) mais
rápido, barato e igualitário; e) desenvolve a capacidade de comunicação entre
os membros da comunidade; f ) reduz o congestionamento das cortes; g) reduz
as tensões na comunidade; h) não-burocrático e flexível; i) os mediadores não
são profissionalizados, eles representam a comunidade e compartilham os
valores, não sendo estranhos aos disputantes; j) um veículo de empoderamento
da comunidade e um estímulo às mudanças sociais.
Posto que voltada para a construção do consenso, a mediação sugere que onde
há conflito e dificuldades humanas, há a oportunidade para a reconciliação, a
comunicação, o aprendizado. O paradigma visivelmente presente na proposta
da mediação desafia o sistema oficial de resolução de disputas baseado na lógica
adversarial, o qual pressupõe um sistema binário, dialético, pelo qual as partes
confrontam-se entre si perante uma autoridade cuja decisão será coercitiva e
amparada no ordenamento legal. A lógica da mediação, ao contrário, obedece
a um padrão dialógico, horizontal e participativo, o qual inaugura um novo
enfoque para o tema da realização da justiça.
As soluções construídas pelas partes envolvidas no conflito podem
ser talhadas além da lei. Quando os protagonistas do conflito inventam
seus próprios remédios, em geral, não se apoiam na letra da lei porque seu
pronunciamento é por demais genérico para observar a particularidade dos
33
GARRETT, Robert. Mediation in Native America, p. 40.
34 SCHWERIN, Edward. Mediation, Citizen Empowerment and Transformational Politics, p. 21.
Revista ENM
201
casos concretos. Há, pois, a liberdade de criar soluções sem as amarras dos
resultados impostos pelo ordenamento jurídico. Nesse sentido, as partes,
antes alheias ao processo de elaboração das leis, “legislam” ao constituir suas
próprias soluções, não somente para enfrentar os conflitos já instaurados, mas
para evitar adversidades futuras.35
A estrutura da mediação pode veicular, em sua gênese, um potencial
emancipatório, na medida em que sua lógica subverte o padrão adversarial do
sistema oficial. Assim, ainda que atrelado ao sistema judicial, a mediação de
conflitos mostra-se essencial para a tarefa de ampliação do papel do Judiciário
na promoção do consenso, conforme se verá a seguir.
3. Uma proposta concreta: “Sistema Múltiplas Portas: o
Judiciário aberto ao Cidadão”.
A presente proposta tem por objetivo colaborar com a formulação de
políticas públicas afetas ao Sistema Judiciário que pretendam enfrentar
o déficit de consenso e promover a coesão social. Trata-se de um esboço
de um sistema que contempla múltiplas portas de acesso ao Judiciário,
pelo qual os cidadãos possam escolher meios de resolução de conflitos que
pacifiquem as suas relações sociais e atendam às suas necessidades e aos
seus interesses.
O projeto tem, ainda, por objetivo ampliar o acesso à justiça e assegurar
eficiência e celeridade na gestão e tramitação dos processos judiciais, por meio
do exercício e valorização do consenso.
Conforme já analisado, por meio da mediação de conflitos, as partes
constroem, em comunhão, uma solução talhada nas suas necessidades. O
mediador não julga, não sugere, nem aconselha. O seu papel é o de facilitar
que a comunicação seja (re) estabelecida, sob uma lógica cooperativa e não
adversarial. Além de efetiva na resolução de litígios, a mediação confere sentido
positivo ao conflito porque patrocina o diálogo respeitoso entre as diferenças;
o empoderamento individual e social; a consciência das circunstâncias em que
repousam os conflitos; a prevenção de futuros litígios; a ética da alteridade; a
coesão social e, com ela, a diminuição da violência.
35
Isto não quer dizer, por óbvio, que a mediação seja um instrumento voltado para o “fazer justiça com
as próprias mãos”, o que poderia, em alguns casos, configurar o crime de “exercício arbitrário das próprias
razões”, conforme art. 345 do Código Penal Brasileiro. Na verdade, trata-se de um “fazer justiça com
múltiplas vozes”.
202
Revista ENM
Conforme se verá adiante, o serviço de mediação do Sistema pode ser
organizado a partir de núcleos temáticos que deverão ser acionados após a
devida triagem. Embora não haja qualquer previsão legal, nada impede que
este meio de resolução pacífica de conflitos seja oferecido nas demandas que
já ingressaram no Sistema Judicial como também naquelas que ainda não
foram judicializadas. Para tanto, o projeto deverá contemplar a capacitação
de servidores do Sistema Judiciário para o manejo desta técnica, conferindo
permanência e estabilidade ao investimento que a sua implantação
demandará.
3.1. Os núcleos temáticos
O “Sistema Múltiplas Portas: O Judiciário aberto ao Cidadão” contempla
a instituição de núcleos temáticos de mediação que possam atender às mais
diversas demandas: cíveis; familiares; conflitos criminais e de violência
doméstica; mediação comunitária, incluída aqui a mediação escolar. Nada
impede que o rol temático se alargue, conforme a iniciativa e interesse dos
tribunais, a fim de que se inclua a mediação de conflitos agrários e a mediação
em presídios, por exemplo.
Todos os núcleos devem estar preparados para o manejo de técnicas de
mediação sob um enfoque específico, a depender da natureza da matéria
veiculada em cada demanda trazida ao sistema após a devida triagem.
3.1.1. Núcleo de Mediação Cível
Esse núcleo contempla as matérias objeto de processos que tramitam
em todas as varas cíveis e juizados especiais cíveis, a quem competirá a
homologação de eventual acordo celebrado ao final do processo de mediação.
Sugere-se, aqui, a aplicação de uma abordagem pragmática, com técnicas
de negociação destinadas à resolução dos problemas, em especial quando as
partes não mantêm relação afetiva ou de caráter permanente.
Conforme se verá adiante, esse Núcleo poderá desenvolver suas atividades,
tanto nos processos judiciais já instaurados quanto nos conflitos ainda não
judicializados.
3.1.2. Núcleo de Mediação de Conflitos Familiares
Esse núcleo poderá desenvolver técnicas de mediação adequadas para conflitos
que tramitam junto às varas de família. Sugere-se, aqui, o desenvolvimento de
Revista ENM
203
enfoques de mediação que possam lidar com partes em conflito que guardam
relação de parentesco e afetivas. A mediação, nesse caso, é especialmente
aconselhável na medida em que pode proporcionar o empoderamento e
transformação das relações humanas que permeiam o conflito.
3.1.3. Núcleo de Mediação de Conflitos Criminais
A atuação desse núcleo é afeta aos conflitos que configuram crimes de
menor potencial ofensivo, cujos processos tramitam nos juizados especiais
criminais. As experiências consolidadas de Justiça Restaurativa poderão
ser adotadas como referência para a implantação deste serviço. O núcleo
poderá acolher uma equipe especializada em violência doméstica que possa
desenvolver estratégias e pesquisas sobre a adequação ou não da aplicação de
mediação neste tipo de conflito.
3.1.4. Núcleo de Justiça Comunitária
A experiência e consolidação de programas de Justiça Comunitária
demonstram a viabilidade de se oferecer um serviço de mediação fora do
âmbito da atividade jurisdicional. O conceito de mediação comunitária não
se define pela natureza da matéria, mas por ser um instrumento manejado
para, na e pela comunidade36.
A adoção de um enfoque transformativo37 para os conflitos comunitários
de toda a ordem – excluídos, a princípio, os de natureza criminal – assegura
que o objetivo da mediação comunitária não se limite à resolução pontual do
conflito, eis que toda a sua abordagem está voltada à promoção da emancipação
individual e do empoderamento comunitário.
Pode-se, ainda, inserir, neste núcleo, a mediação de conflitos escolares e de
políticas públicas, esta última envolvendo conflitos entre o poder público local
e a comunidade.
3.2. A mediação pré-processual e incidental
Conforme já assinalado, a ausência de previsão legal não obsta que
as partes sejam convidadas para o processo de mediação, antes mesmo
do ajuizamento da ação judicial. Nesta hipótese, o comparecimento das
Conforme FOLEY, Gláucia. Justiça Comunitária. Uma experiência.
O enfoque transformativo é desenvolvido na obra BUSH, Robert A. Baruch; FOLGER, Joseph P. The
Promise of Mediation. Responding to Conflict Through Empowerment and Recognition.
36
37
204
Revista ENM
partes será, por óbvio, voluntário e a assistência de um advogado, opcional
ou obrigatória38.
Se o serviço ostentar eficiência e assegurar satisfação dos usuários, a sua
ampla divulgação assegurará o êxito da iniciativa, compensando a ausência
de intimação da parte solicitada. Quando incidental, a mediação poderá
substituir a audiência de conciliação já prevista na legislação processual.
3.3. O quadro de mediadores
Com exceção do Núcleo Comunitário, cuja mediação é realizada por
membros da comunidade capacitados para tal fim, os demais núcleos deverão
contar com a atuação de servidores dos tribunais que, voluntariamente,
manifestarem interesse em colaborar com o Projeto, no horário de expediente
forense. Uma vez formalizada a adesão dos servidores, os tribunais passarão
a investir na capacitação dos mediadores, sob o compromisso do servidor
permanecer naquele serviço por um período previamente estabelecido, sob pena
de restituição do valor investido. Essa medida mostra-se essencial para evitar
que o serviço dependa da atuação voluntária, conferindo assim estabilidade ao
projeto e, consequentemente, melhor aplicação dos recursos públicos.
3.4. O planejamento e a implantação do Sistema
Cada Tribunal que aderir ao Sistema desenvolverá o seu planejamento, em
permanente interlocução com os demais e sob a coordenação do Conselho
Nacional de Justiça, para a definição do seguinte: a) Procedimento a ser
desenvolvido, adequado à legislação processual em vigor e enfoques de
técnicas de mediação; b) Número de servidores necessários para compor a
equipe de mediadores para a atuação em cada Tribunal; c) Financiamento
para a capacitação dos servidores interessados; d) Estratégias de captação da
demanda para cada núcleo, eis que, com exceção dos processos já judicializados
que ainda não se submeteram à fase de conciliação prevista na legislação
processual, o uso desse serviço deve ter, a princípio, natureza voluntária
para as partes e seus advogados; e) Metas que cada núcleo pretende alcançar,
no primeiro ano da experiência piloto; f ) Definição das situações em que a
presença de um advogado ou defensor público será essencial; g) Avaliação do
38
A assistência opcional ou obrigatória do advogado poderá seguir o mesmo critério da previsão da Lei
9.099/95, segundo a qual as partes poderão ajuizar causas cujo valor não supere vinte vezes o salário
mínimo, sem a assistência de um advogado.
Revista ENM
205
impacto do projeto, em todas as suas fases de execução; h) Criação de um
Fórum permanente de Mediação para a partilha das experiências; i) Outros.
Conclusão
O atual arcabouço legal permite que as instâncias judiciárias abertas a
novos paradigmas viabilizem um sistema de múltiplas portas que possa gerar
um choque de eficiência na gestão judiciária. Indispensável, contudo, será o
investimento de recursos públicos para intensificar as possibilidades de acesso
e, sobretudo, qualificar a prestação jurisdicional. Somente após a consolidação
de múltiplas experiências, em nível nacional, é que haverá elementos para
eventual proposta legislativa que regulamente a matéria. Vencidos os
desafios institucionais para a implantação do sistema, caberá à sociedade,
que legitimamente anseia por justiça e paz, intensa participação para que o
exercício do diálogo e do consenso colabore na construção de uma sociedade
mais pacífica, coesa e solidária.
Referências bibliográficas
AGUIAR, Roberto. Procurando superar o ontem: um direito para hoje e amanhã. Notícia do Direito
Brasileiro. Nova série, Brasília: Universidade de Brasília. Faculdade de Direito, n. 9, 2002.
ANDRIGUI, Nancy e FOLEY, Gláucia Falsarella. Sistema multiportas: o Judiciário e o consenso.
Tendências e Debates. Folha de São Paulo, 24 de junho de 2008.
AUERBACH, Jerold S. Justice without Law? UK: Oxford University, 1983.
BUSH, Robert A. Baruch; FOLGER, Joseph P. The Promise of Mediation. Responding to Conflict Through
Empowerment and Recognition. San Francisco: Jossey-Bass, 1994.
FOLEY, Gláucia Falsarella. Justiça Comunitária. Uma experiência. 2. ed. Brasília: Ministério da Justiça,
2008.
GALANTER, Marc. A justiça não se encontra apenas nas decisões dos tribunais. In: HESPANHA, António
(Org.). Justiça e Litigiosidade: história e perspectiva. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1993.
GARRETT, Robert D. Mediation in Native America. Dispute Resolution Journal, p. 40, março, 1994.
GOMMA, André Azevedo. Perspectivas metodológicas do processo de mediação: apontamentos sobre a
autocomposição no direito processual. In: Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. Brasília: Editora
Grupos de Pesquisa, 2003.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1997.
HESPANHA, António (org.) Justiça e litigiosidade: história e perspectiva. Lisboa: Calouste Gulbekian,
1993.
LITTLEJOHN, Stephen W. Book reviews: The Promise of Mediation: Responding to Conflict Through
Empowerment and Recognition by Roberto A. B. Bush and Josepf. P. Folger. International Journal of
Conflict, p. 101-104, janeiro, 1995.
MACFARLANE, Julie. An alternative to what? In: MACFARLANE, Julie (Ed.). Rethinking Disputes: The
Mediation Alternative. UK: Cavendish Publishing, 1997.
MENKEL-MEADOW, Carrie (Ed.) The Trouble with the Adversary Sistem in a Postmodern, Multicultural
World. In: Mediation. USA: Georgetown University Law Center, 2001.
PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da
desjudicialização – por caminhos da reforma da administração da justiça (análise comparada). Coimbra:
Observatório permanente da Justiça Portuguesa, Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra, novembro de 2001. Disponível na internet no sítio: http://opj.ces.uc.pt/
206
Revista ENM
portugues/relatorios/relatorio_6.html. Acesso em 7 de maio de 2009.
ROMÃO, José Eduardo Elias. Justiça procedimental. A prática da Mediação na Teoria Discursiva do Direito
de Jürgen Habermas. Brasília: Maggiore, 2005.
SCHWERIN, Edward. Mediation, Citizen Empowerment and Transformational Politics. London: Westport
Connecticut, 1995.
SHONHOLTZ, Raymond. Neighborhood Justice Systems: Work, Structure, and Guiding Principles.
Mediation Quarterly, p. 3-30, 1984.
________. Justice from another perspective: the ideology and developmental history of the Community
Boards Program. In: MERRY, Sally Engle; MILNER, Neal (Ed.). The Possibility of Popular Justice: a case
study of Community Mediation in the United States. USA: University of Michigan Press, 1996.
SOUSA SANTOS, Boaventura de. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. São
Paulo: Cortez, 2000.
________. Reinventar a Democracia. Cadernos Democráticos. Lisboa: Gradiva, 1998.
________. e TRINDADE, João Carlos (Orgs.). Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças
em Moçambique. Porto: Edições Afrontamento, 2003.
________. Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2007.
________. e MARQUES, Maria Manuel Leitão. PEDROSO, João. FERREIRA, Pedro Lopes. Os Tribunais
nas sociedades contemporâneas. O caso português. Porto: Afrontamento, 1996.
WARAT, Luis Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001.
Revista ENM
207
Gestão
A APRENDIZAGEM COMO
FERRAMENTA ESTRATÉGICA NA
ADMINISTRAÇÃO JUDICIÁRIA
Roberto Portugal Bacellar
Juiz de Direito em Curitiba, professor e mestre em Direito pela PUCPR
Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela UNIPAR
MBA em Gestão empresarial pela UFPR
Professor convidado do CNJ, ENFAM e MJ (SRF) para capacitar magistrados
estaduais e federais em técnicas de mediação e conciliação
Coordenador Nacional do Programa Cidadania e Justiça também se aprendem
na Escola da AMB e Diretor-Geral da EMAP)
1. A base de um planejamento estratégico
Os órgãos do Poder Judiciário previstos no art. 92 da Constituição da
República (CR), existem para prestar serviço público (serviço judiciário)
ao povo (usuário dos serviços jurisdicionais – jurisdicionado) de maneira a
concretizar a promessa de resolver oficialmente (no âmbito do Estado) as
controvérsias existentes entre as pessoas e ao final alcançar a coordenação dos
interesses privados e a paz na sociedade.
Para efeitos didáticos a expressão Tribunais será apresentada não no sentido
estrito de órgão de segundo grau que reaprecia as decisões dos juízes, mas no
sentido amplo de órgão julgador e também órgão de cúpula administrativa (administrador) responsável pelas políticas públicas específicas que traça os destinos
e comanda todos os setores do Poder Judiciário em cada uma das suas esferas
de atuação (estadual e federal, da justiça comum ou especial). Além disso, as
expressões administração de tribunais, administração da justiça e administração
judiciária serão utilizadas como sinônimas e abrangerão não só os tribunais,
mas também o trabalho dos juízes na qualidade de administradores de fóruns,
208
Revista ENM
gabinetes, secretarias, dentre outras tantas atividades administrativas e de representação política (não jurisdicionais) que desempenharem perante a sociedade.
Há problemas estruturais que atingem o Poder Judiciário como um todo.
Note-se que esses problemas não são novos e o decurso do tempo tem agravado
os seus efeitos sem que os tribunais consigam implementar sistemas de
administração eficazes para atenuar ou resolver o que se costumou denominar
crise da Justiça ou crise do Poder Judiciário.
Os valores Justiça (e seu acesso), Segurança Jurídica, Rapidez e Efetividade
são alguns que compõem o “pacote” de ideais que o Poder Judiciário promete,
formalmente, oferecer ao cidadão.
A falta de planejamento estratégico adequado e específico ao ambiente do
Poder Judiciário motiva a ideia inicial deste artigo: viabilizar o início de um ciclo
empreendedor alicerçado no conhecimento acumulado, na profissionalização
da administração dos tribunais (e por consequência de seus diversos órgãos) para
cumprir a promessa de acesso à uma ordem jurídica justa. Além de viabilizar
o acesso ao Poder Judiciário verifica-se a necessidade de se ofertar instrumentos
públicos e privados não só de entrada (acesso), mas de saída da justiça1.
É preciso retomar o foco na missão do Poder Judiciário e a partir daí, com
esteio nos problemas (forças restritivas), planejar as metas de aprendizagem
para alcançar os objetivos da administração judiciária.
São poucos ainda os trabalhos científicos e muito restritas as pesquisas
específicas dirigidas à administração dos órgãos do Poder Judiciário2. Muitas
pesquisas existentes tomam por base modelos empresariais (sem trabalhar
a redefinição e ressignificação de seus conceitos) que pouco ou nada se
identificam com as linhas gerenciais e administrativas dos tribunais.
O objetivo geral deste artigo é o de transportar algumas experiências do
denominado sistema de aprendizagem da ciência da administração e adequá-las
ao complexo modelo de administração dos serviços judiciários.
2. O Poder Judiciário e seus problemas gerais
Foram muitas as pesquisas gerais, não qualitativas, já desenvolvidas para
avaliar o trabalho do Poder Judiciário. Embora essas pesquisas já tenham
O número de processos judiciais em andamento é desproporcional à estrutura, como constatam várias
peças de informação oriundas da imprensa e pesquisas sobre o tema.
2
Há poucos, mas bons exemplos de projetos de administração judiciária em tribunais federais e estaduais,
entretanto, com metodologia de pesquisa e análise diversas das eleitas para este trabalho.
1
Revista ENM
209
respondido algumas das várias indagações e outras tenham respostas notórias,
as abordagens seguintes são importantes, como ponto de sustentação e até de
conveniência para o desenvolvimento deste artigo:
• A administração dos tribunais é satisfatória?
• A população, que necessita dos serviços judiciários, está satisfeita
com o atendimento do Poder Judiciário?
• Há necessidade de mudanças?
• A estrutura organizacional para a administração da justiça é adequada?
Constatou-se que a estrutura organizacional do Poder Judiciário, analisado
em sua generalidade, é centenária, inadequada, burocratizada e de baixa
aprendizagem. Ainda em consideração geral, normalmente o ambiente físico
não é o mais adequado ao atendimento dos jurisdicionados na condição de
consumidores dos serviços judiciários.
Assim, em geral, a Administração dos Tribunais é insatisfatória, se analisada
mediante a perspectiva do usuário dos serviços.
2.1 Insatisfação dos usuários dos serviços da Justiça
Já se percebeu que aos olhos do principal destinatário e usuário da
prestação jurisdicional (população), a segurança jurídica, tão só pela promessa
de segurança, não mais se justifica e há de se considerar outros aspectos e
valores que interessam diretamente ao povo como a celeridade (rapidez), o
custo, o atendimento, a clareza e a efetividade – estes sim representativos, para
ele cidadão, da verdadeira justiça.
A constante possibilidade de revisão das decisões desprestigia os
magistrados, principalmente os magistrados de primeiro grau, e a cada passo
procedimental abre-se oportunidade para que as partes apresentem seus
recursos. A justificativa dos processualistas é de que na ausência do recurso
(mecanismo de impugnação das decisões) poderia eternizar erros e prejudicar,
ao final, de maneira irreversível, o direito da parte.
Portanto, para garantir a segurança jurídica, muitos doutrinadores não
aceitam a diminuição do número de recursos judiciais, o que de certa forma
contribui para a morosidade dos julgamentos.
A população, que necessita dos serviços judiciários, está, portanto,
insatisfeita com o atendimento prestado pelo Poder Judiciário que,
embora assegure possibilidade de vários recursos e outras formas de
210
Revista ENM
impugnação (e por isso atenderia a um dos aspectos do ideal de segurança
jurídica), é moroso.
Nesse ponto, não há controvérsias. Os dados informativos colhidos da
imprensa e as pesquisas só confirmaram o que já era conhecido. É notória a
morosidade e a insatisfação do povo com os órgãos do Poder Judiciário que,
responsáveis pela prestação jurisdicional, a entregam com atraso muitas vezes
de anos, para não dizer lustros ou décadas.
Até aqui alguns aspectos da atividade jurisdicional, função típica do Poder
Judiciário, foram considerados.
2.2 Deficiência organizacional da administração judiciária
A análise organizacional em relação à administração do Poder Judiciário
informa:
a) baixa qualidade no atendimento operacional;
b) ausência de informatização adequada (e padronizada) e falta de
controle dos procedimentos nas áreas operacionais;
c) centralização dos poderes na cúpula (juízes, presidentes de
tribunais) e ausência de tecnoestrutura;
d) falta de conhecimento, pela cúpula estratégica, em administração,
com prejuízo da liderança perante diretorias, assessorias da linha
intermediária e área operacional;
e) juízes sobrecarregados de processos judiciais, sem disponibilidade
de tempo ou condições para desviar sua atenção para atividades
administrativas (que podem ser desenvolvidas por servidores do
quadro ou outros profissionais específicos e qualificados).
Tratou este tópico de análise organizacional geral sem intenção de passar
a ideia de generalizações – sempre injustas. Registra-se, assim, a existência de
pontuais experiências onde há bom atendimento e destacam-se magistrados
com conhecimento em administração que contam com apoio de tecnoestrutura
ou assessorias especializadas.
2.3 Os juízes são muito caros para atender telefone, preparar ofícios e
administrar fóruns
Os juízes assumem, em geral, responsabilidade por várias funções
administrativas, cartoriais, de pessoal e mesmo de simples impulso processual,
Revista ENM
211
que lhes retiram de suas atividades principais (que deveriam ser de dedicação
exclusiva) para as quais foram preparados (julgar).
A falta ou deficiência de assessoria, notadamente nos juízos de primeiro
grau, transforma o juiz em um operário que faz tudo: do atendimento do
telefone, arquivamento de documentos, gerenciamento de processos, controle
de provimentos, organização da pauta de audiências, redação de ofícios,
formulação de pedidos de material, elaboração de portarias, orientação aos
servidores, inspeção permanente nas secretarias até chegar a suas atividades
típicas consistentes na fundamental presidência das audiências, decisões e o
julgamento dos processos.
De todas essas atividades, a presidência das audiências e o julgamento dos
processos são de sua exclusiva atribuição. Essas outras atividades administrativas,
frequentemente, geram desinteresse e desmotivação dos juízes em comandá-las.
Parece uma afirmação pesada, mas há de se registrar, que o juiz – como
membro de Poder – é, dentre os prestadores de serviço público, um “servidor”
muito caro para desempenhar atividades administrativas comuns, corriqueiras
e para as quais não se exige a sua alta qualificação técnico-jurídica. Portanto,
mais do que aumentar o número de juízes no Brasil é imperioso capacitar os
existentes,3 fornecendo-lhes assessoria de apoio para o melhor exercício de suas
tantas funções – administrativas, de gestão, de representação e jurisdicionais.
2.4 Estrutura simples e burocracia mecanizada na administração judiciária
As organizações podem ser descritas de acordo com suas configurações
preponderantes. No que diz respeito à estrutura do Poder Judiciário, em face da
diversidade de órgãos que o compõe, de acordo com os dados levantados, ora
se apresenta como uma estrutura simples, ora se identifica com a configuração
estrutural de uma burocracia mecanizada, em outras situações lembra a
burocracia profissional, em alguns tribunais é possível visualizar a forma
divisionada e em outras a Adhocracia. Adiante descrevem-se características
de cada configuração. Nenhum desses perfis, de forma isolada, é suficiente ao
alcance da excelência.
3
A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM-STJ, por meio das
Resoluções 1 e 2 de 2007 e 1 e 2 de 2009, tem estabelecido diretrizes de trabalho, orientação e colaboração
aos tribunais, além de conteúdos mínimos que devem ser ministrados aos magistrados estaduais e federais,
desde a formação inicial (ingresso na carreira) até o aperfeiçoamento e formação continuados durante o
decorrer da carrreira.
212
Revista ENM
Devemos extrair as vantagens decorrentes de cada uma das configurações
e afastar os vícios e as deficiências que brotam em cada um desses cenários.
Da análise de Henry Mintzberg (1995)4, extrai-se que muitas organizações
sofrem essas cinco solicitações, porém, na proporção que as condições
favorecem uma em prejuízo das demais, a organização é levada a estruturar-se
como uma das configurações. Assim, resume:
a) Estrutura Simples: a cúpula estratégica exerce uma tração para
a centralização, por meio da qual pode manter o controle sobre a
tomada da decisão e na proporção que as condições favorecem essa
tração, a organização se identifica com a Estrutura Simples.
b) Burocracia Mecanizada: a tecnoestrutura exerce sua tração para
a padronização dos processos de trabalho. Na proporção que as
condições favorecem essa tração, a organização estrutura-se como
Burocracia Mecanizada5.
c) Burocracia Profissional: contrastando, os membros no núcleo
operacional procuram minimizar a influência dos administradores
– gerentes, bem como analistas – sobre o seu trabalho. Quando
eles conseguem, trabalham com relativa autonomia, obtendo
tudo o que é necessário para a coordenação pela padronização de
habilidades. Dessa forma, os operadores exercem uma tração para a
profissionalização – isto é, para o apoio do treinamento externo que
amplia suas habilidades. Na proporção que as condições favorecerem
essa tração, a organização estrutura-se como Burocracia Profissional.
d) Forma Divisionada: os gerentes da linha intermediária também
procuram autonomia, porém, para obtê-la, retiram poder da
centralização da cúpula estratégica para baixo e, se necessário,
do núcleo operacional para cima, a fim de concentrá-la em suas
unidades. Na proporção que as condições favorecem essa tração,
resulta na Forma Divisionada.
e) Adhocracia: finalmente, conclui Mintzberg e ensina haver
nova configuração que ocorre nas ocasiões em que a assessoria de
apoio consegue mais influência na organização e sua colaboração é
solicitada para a tomada de decisão em virtude de sua perícia. Na
MINTIZBERG. Henry. Criando organizações eficazes, p.155.
Há muitos pontos positivos na burocracia mecanizada que devem ser conservados. O que preocupa são os
vícios que se proliferaram em face de suas características como a reatividade a quaisquer mudanças.
4
5
Revista ENM
213
proporção que se favorece essa tração para colaborar, a organização
adota a configuração da Adhocracia.
Na administração da justiça, com a precariedade e falta de uniformidade
nos sistemas de informatização (várias ilhas incomunicáveis) percebe-se a
preponderância de uma administração de estrutura simples eminentemente
burocrática, com as ações e decisões vindas de cima para baixo. O mesmo
cenário, por vezes, se repete nas formas de administração da Ordem dos
Advogados do Brasil, Ministério Público e Defensorias Públicas, componentes
do tripé básico de sustentação do sistema judiciário brasileiro.
Na administração judiciária há a percepção de que muitos magistrados (ao
atuar na administração) trazem características de império, mando, ordem, da
jurisdição e transformam-se em péssimos gestores.
Sem conhecer essas configurações estruturais, vantagens e desvantagens de
cada um desses mecanismos, o resultado, no plano operacional dos tribunais,
acaba sendo inadequado e desconhecido da cúpula diretiva tal qual o foi pela
rainha descrita por Antoinne de Saint-Exupéry que desejando conhecer os
seus súditos e saber se eles gostavam de seu reinado, saiu dos limites do palácio
e vislumbrou pessoas felizes, bem alimentadas e alegres. Tudo cuidadosamente
preparado pelos cortesãos que ergueram ao longo da estrada um cenário
maravilhoso e contrataram artistas para que dançassem ali. Fora daquele
estreito caminho ela nem sequer entreviu nada, e não soube que pelos campos
adentro seu nome era amaldiçoado pelos que morriam de fome6.
Renovam-se as gestões administrativas dos tribunais, direção de foro (fórum),
a cada dois anos, normalmente, e permanece a mesma estrutura simples de
baixa aprendizagem, burocrática, centralizada e sem padronização do sistema
de informática aos usuários (não há, em geral, padronização interna entre
os órgãos da própria estrutura, muito menos entre os demais operadores do
direito – advogados, promotores de justiça, delegados de polícia, procuradores,
defensores públicos, dentre outros), o que contribui com a demora, facilita o
erro e gera deficiência no atendimento da atividade fim, que é a prestação do
serviço jurisdicional. No ambiente do Estado e em cada uma das instituições
essenciais à função jurisdicional, igualmente é importante o conhecimento das
vantagens e desvantagens de cada uma dessas estruturas organizacionais a fim de
6
Apud, CALANZANI, José João. Metáforas jurídicas. p. 29.
214
Revista ENM
planejar estrategicamente a integração e eficiência dos serviços judiciários.
Para avançar na padronização operacional, mais racional dos processos
de trabalho e dos serviços, a administração judiciária poderá servir-se de
consultores, analistas, estrategistas, administradores, dentre outros profissionais
que integrarão as assessorias de apoio e a tecnoestrutura7.
2.5 Necessária profissionalização dos serviços na administração de tribunais
Os servidores dos tribunais, em vista da configuração estrutural existente e
da falta de mecanismos de coordenação, de regra, estão acomodados carregando
as características culturais brasileiras do personalismo, protecionismo, jeitinho
e aversão à sistematização (e padronização objetiva) do trabalho.
Aqui, não se trata de generalização, ressaltam-se os bons exemplos de profissionais, servidores públicos, vocacionados, dedicados, responsáveis e competentes8.
Para eficiência no atendimento ao povo é preciso que o Estado valorize
seus servidores. Há muitos servidores vocacionados esperando oportunidade
para realizar grandes projetos.
Os dedicados servidores vocacionados ao atendimento público não
têm merecido a atenção devida. Os próprios magistrados, notadamente
os de juizados especiais estaduais e federais (de maior visibilidade), que
defendem a Justiça democrática, simples, informal, célere e econômica, são,
constantemente, tratados como magistrados de segunda categoria.
A assertiva de que os servidores dos tribunais (no sistema com contornos
de estrutura simples e burocracia mecanizada) estão acomodados e viciados
no personalismo e protecionismo, tem base nos dados nacionais colhidos de
pesquisas e noticiados nos órgãos de imprensa. Além disso, essa afirmação
é ratificada pela percepção do jurisdicionado como principal consumidor
dos serviços judiciários que precisa conhecer alguém (dentro da estrutura)
para conseguir que o processo seja distribuído com eficiência, que tramite
mais rápido, além de outras percepções ainda mais pejorativas como “uma
tendência ‘natural’ de julgar a favor dos mais ricos”9.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem exigido padronização de relatórios e trabalhado na consolidação
e divulgação de dados estatísticos confiáveis; há ações no CNJ no desenvolvimento de sistemas e apoio técnico
e suporte aos tribunais; há coordenação de programas nacionais de conciliação, gestão, cadastros e pela
efetividade da legislação, passos importantes para o alcance da qualidade dos serviços judiciários brasileiros.
8
A honestidade não entrou no rol das qualidades por ser dever e obrigação de todos.
9
IBOPE. Pesquisa qualitativa sobre a imagem do Poder Judiciário encomendada pela Associação dos
Magistrados Brasileiros e realizada em quatro capitais de 1º a 5 de março de 2004.
7
Revista ENM
215
Não mais se justifica o conhecimento de vícios (oriundos da estrutura simples
e da burocracia mecanizada) sem aprendizagem. A administração judiciária deve
aprender a extrair – dessas configurações estruturais –, apenas as suas vantagens
e, mais que isso, buscar uma visão estratégica voltada ao conhecimento.
2.6 A baixa aprendizagem dos tribunais
Os erros, ao serem constatados, não geram correção e se repetem há anos,
demonstrando um perfil administrativo dos órgãos do Poder Judiciário de
baixa aprendizagem.
Do erro conhecido é possível disseminar a inteligência e estabelecer
instrumentos de maior controle e previsibilidade.
Na maioria das empresas que vão à falência, os indícios de problemas já
haviam se manifestado anteriormente, mas por negligência dos administradores
as evidências não foram consideradas.
No ambiente do Poder Judiciário, os juízes, os servidores, os auxiliares
diretos e a própria população, têm denunciado sintomaticamente que a
situação não está bem. As deficiências não são novas nem se originaram de
eventos súbitos, repentinos, mas de processos lentos e graduais. Não é de hoje
que a administração judiciária vai mal.
A maneira como os tribunais são estruturados e administrados cria
enormes deficiências de aprendizagem. Muitas vezes o próprio juiz da
Comarca avisa que está sobrecarregado de processos e que não mais
consegue “dar conta do serviço” mesmo que trabalhe nos feriados, finais
de semana e à noite: vêm os argumentos de que cabe ao Poder Executivo
atribuir mais verbas e ao Poder Legislativo criar os cargos necessários por
lei e, portanto, nada pode ser feito. Resposta: – Não há outro juiz para
auxiliá-lo, “se vire”. Alguns, com criatividade, encontram soluções, outros
não recebem a ajuda necessária.
Só esse fato já é conhecido há décadas e não gerou correção, nem se
converteu em aprendizagem para os tribunais. Sabe-se de alguns programas
emergenciais, no estilo mutirão, que apresentam soluções paliativas.
O problema, até hoje, nunca foi assumido como de administração
judiciária. O inimigo sempre está fora10. Existe uma propensão a procurar
alguém ou alguma coisa para culpar quando as coisas não dão certo. Os
10
SENGE. Peter. A quinta disciplina.
216
Revista ENM
fatores externos (exógenos), por evidente, não devem ser desconsiderados,
até porque, como veremos, muitos deles significativos. Os fatores externos
não podem, entretanto, inibir as ações necessárias no âmbito interno da
administração judiciária.
Ao discorrer sobre as novas direções para o aprendizado estratégico,
MINTZBERG lembra a distinção de Argyris e Schön (1978) entre o
aprendizado de laço simples e o aprendizado de laço duplo: o de laço simples
é mais conservador e sua finalidade principal é detectar erros e manter as
atividades organizacionais nos trilhos.
O aprendizado de laço duplo é aprender a respeito do aprendizado de
laço simples: “aprender a respeito de como aprender”. Exemplifica: (...) Um
termostato que liga automaticamente o aquecedor sempre que a temperatura
numa sala cai abaixo de 20 graus Celsius é um bom exemplo de aprendizado
simples. Um termostato que pudesse perguntar “porque estou regulado para
20ºC?” e então explorar se alguma outra temperatura poderia ou não atingir,
de forma mais econômica, a meta de aquecer ou resfriar a sala, estaria se
empenhando em aprendizado de laço duplo11.
Independentemente dos fatores externos, a demora dos processos, a falta
de acesso à justiça, a falta de efetividade, o mau atendimento ao usuário
são fatores endógenos de responsabilidade do Poder Judiciário. Assumir a
responsabilidade pelas falhas é passo fundamental para a aprendizagem.
Há de se refletir sobre a seguinte constatação: sempre que se culpa o outro,
nada se faz para melhorar. Sempre se fica no aguardo de que o outro, o culpado,
faça; e se ele não faz, a culpa é dele. Não se pode esquecer que a resolução
desses problemas é responsabilidade dos tribunais. Assumir a responsabilidade
pela crise e difundir essa percepção para buscar alternativas, é aprender.
A sabedoria só tem sentido quando posta em prática: saber e não difundir
é perder o conhecimento e a inteligência da empresa12.
Se o primeiro passo para sanar as deficiências é identificá-las, isso já foi
feito. A responsabilidade é do Poder Judiciário.
A base de dados históricos, experiências e críticas é grande e apenas
precisam ser estrategicamente analisadas com os olhos no futuro.
Apud. MINTZBERG, Henry. Safári de estratégia, p. 157.
SCHWANFELDER, Werner. Buda: o encontro do equilíbrio. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 98. Conhecimento
adquirido, pelo autor do artigo, das aulas do Prof. Renato Marchetti. Gestão Estratégica de Marketing.
MBA – CEPPAD/UFPR, Banco do Brasil, 2003.
11
12
Revista ENM
217
2.7 A importância da crise e da experiência da crise
É significativa a lição de John Ramée (1987) no prisma de que a
administração de uma empresa sempre deve avaliar as ações que empreendeu
durante a crise. Entre as questões mais importantes que a empresa deve se
formular estão as seguintes:
a) O que a empresa fez para evitar a crise?
b) Quais ações foram tomadas pela empresa, se e quando percebeu os
sinais de que a crise era iminente?
c) Os dirigentes da empresa ajudaram ou atrapalharam os esforços para
debelar a crise?
d) As decisões tomadas para resolver a crise foram efetivas?13.
Marco Antonio Oliveira (1994) vai mais além e, mais que isso, recomenda
que as empresas provoquem elas mesmas sua próxima “crise”, estabelecendo um
clima de alerta suficientemente perceptível, para que todos percebam os sinais
de que algo deve ser feito, bem antes que a empresa seja novamente atingida14.
No ambiente da Justiça15 não será necessário provocá-la vez que a situação
de crise tem se manifestado constantemente sem que se tenham aproveitado
as experiências dela decorrentes.
O Poder Judiciário, em sua história, ao não aprender com a experiência do
passado e não prevenir o futuro, foi negligentemente surpreendido pela crise
e continua “apagando incêndios” sem solucionar os problemas de fundo ou
projetar ações para minorá-los.
Em linguagem figurada, em face de sua baixa aprendizagem, ocorreu que:
o tribunal não foi mais capaz de ver a floresta por causa das árvores.
3. Sistema de aprendizagem e suas ferramentas estratégicas
Há expressões populares que ensinam: “Errar é humano, persistir no erro
é burrice”. Em outras palavras, o erro pode servir de aprendizado e uma vez
cometido não deve ser repetido, tecnicamente ensinam Anthony J. BiBella e
Edwin C. Nevis:
A organização aprendiz tem sido caracterizada como sendo aquela
que possui a capacidade de adaptar-se às mudanças que ocorrem
RAMÉE, John. Aput OLIVEIRA, Marco Antonio. Vencendo a crise à moda brasileira.
OLIVEIRA, Marco Antonio. Vencendo a crise à moda brasileira.
15
A expressão não é técnica mas é usada popularmente para se referir ao Poder Judiciário. Para facilitar a
comunicação, em algumas situações, a expressão será utilizada.
13
14
218
Revista ENM
com seu ambiente e reagir às lições trazidas pelas experiências por
meio da alteração do seu comportamento organizacional16”.
3.1 Alta aprendizagem
A alta aprendizagem nas organizações manifesta-se quando, nos
planejamentos e decisões, a liderança apresenta-se de forma altamente
envolvida e quando os planejamentos são flexíveis e interativos. A estratégia é
de construção permanente. A dependência dos setores diretivos, via de regra,
apresenta-se como menor (baixa), ao contrário das organizações de baixa
aprendizagem, onde essa dependência é maior (alta)17.
Nas organizações de alta aprendizagem o grau de difusão e acessibilidade
às informações é amplo. Já o grau de centralização da comunicação é baixo.
As organizações que têm alta aprendizagem buscam interpretar seus “erros” de
forma legítima e institucionalizada, nunca de forma puramente punitiva. O
erro faz parte do processo conquanto se aprenda com ele e ele não se repita
em situações idênticas ou similares: aprende-se com os erros do passado e
projetam-se ações experimentais para alcançar os acertos do futuro. Se da
experiência resultarem novos erros a ação é refeita, gera-se reflexão, teorização
e nova experimentação em um ciclo de aprendizagem.
Para que uma organização possa gerir seus conhecimentos e atingir a
aprendizagem a partir da própria experiência, ela deve tratar seus conhecimentos
e experiências dentro desse ciclo, onde após iniciar sua atividade, reflete e
teoriza sobre ela e experimenta novos caminhos, para, a partir daí, reiniciar sua
atividade aplicando a experiência anterior.
(RE)
EXPERIMENTAR
TEORIZAR
FAZER
REFLETIR
DiBELLA, Anthony J. e NEVIS, Edwin C. Como as organizações aprendem, p.6.
Há exemplos na organização judiciária de baixa aprendizagem que tudo depende do presidente e nada
acontece sem que ele autorize. A pergunta mais comum é: o presidente já resolveu?
16
17
Revista ENM
219
No dizer de DiBella e Nevis: “Aprender significa ganhar experiência,
construir competência e evitar a repetição de enganos, problemas e erros que
desperdiçam os recursos da empresa”18.
3.2 Estilos, orientações e fatores integrantes do sistema de aprendizagem
A ciência da administração tem ampliado o estudo do papel da
aprendizagem como ferramenta de múltiplas aplicações inclusive para o
alcance da qualidade e da excelência. Abre-se um leque de dezenas de situações
a serem consideradas no contexto de um verdadeiro sistema de conhecimento
considerando fontes, orientações, fatores e portfolios de aprendizagem.
A aplicação, nas atividades judiciárias, de alguns desses elementos (que
integram o sistema de aprendizagem) poderá abrir promissoras frentes de
oportunidade de correção viáveis e totalmente compatíveis com a ideia de
um serviço público de qualidade.
3.2.1 Fonte de conhecimento e finalidade da aprendizagem
Pode haver aprendizagem que tenha fonte em criação interna (construir
sobre o que já existe) ou tenha fonte em conhecimento buscado no ambiente
externo (tentar uma transformação). As duas formas de busca de conhecimento
se completam e não é necessário que elegendo uma tenhamos de afastar a outra.
As possibilidades dentro da ideia de orientação para aprendizagem são sempre
complementares e não excludentes. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
tem buscado conhecimento e articulado ações a partir de fontes extraídas dos
próprios tribunais, o que não deixa de ser fonte interna considerando-se o
sistema judiciário como um todo.
Quando internamente a tentativa de incrementar e melhorar situações
já conhecidas não é suficiente, há de se buscar fontes externas e procurar
alternativas transformativas inteiramente novas.
3.2.2 Registro ou reserva de conhecimento
Alguns servidores públicos da linha intermediária (chefias de departamentos
e divisões – equivalentes às gerências da iniciativa privada), como resultado de
suas experiências pessoais, acabam concentrando um conhecimento informal
que muitas vezes desaparece nas trocas de gestão dos tribunais. A despeito de
18
DiBELLA, Anthony J. e NEVIS, Edwin C. Como as organizações aprendem, p. 30.
220
Revista ENM
toda a burocracia no serviço público é comum não haver registro documental
de muitos desses conhecimentos.
Tanto o conhecimento informal quanto o formal são fundamentais e cabe
aos administradores orientar a documentação e o registro desse conhecimento
na memória do Tribunal (cultura corporativa).
A memória de todo o conhecimento adquirido (interno ou externo),
registrado ou não registrado formalmente é muito importante para se estabelecer
qualquer planejamento projetivo ou corretivo na administração judiciária.
3.2.3 Modos de disseminação da aprendizagem
O conhecimento pode circular e evoluir informalmente ou pode
ser disseminado por meio de procedimentos burocratizados escritos. A
recomendação é a de que o administrador de acordo com a importância,
necessidade, urgência, dentre outros fatores selecione a forma mais adequada
de fazer com que ocorra o processo de aprendizagem. Novamente uma
situação não é excludente da outra e mais importante é que todos saibam o
que precisam saber para melhor desempenhar suas atividades.
Como vimos, a circulação do conhecimento e sua disseminação variam
de acordo com o perfil das organizações. O perfil da nossa administração
judiciária, de regra, é configurada como de estrutura simples ou de uma
burocracia mecanizada (com padrões de baixa aprendizagem) e com pouca ou
nenhuma legitimação social19.
O diagnóstico do Poder Judiciário vem sendo construído há anos. Os
problemas evoluíram e, sem perda de tempo, justifica-se a necessidade de
ministrar as estratégias específicas e já conhecidas pela ciência da administração.
O desenvolvimento de sistemas de aprendizagem, nos tribunais, poderá
orientar estrategicamente a ação dos administradores.
3.3 Cultura de aprendizagem
Adverte-se que a mera contratação de consultorias, universidades ou
fundações produzirá resultados ínfimos e de curto prazo caso não ocorra uma
significativa mudança de mentalidade por parte da cúpula estratégica. Um
19
Legitimação social como reconhecimento perante a sociedade. Ressalta-se a evidente necessidade de
apresentar com clareza os argumentos que justificam a importância do Poder Judiciário como um dos
Poderes do Estado. Investimentos em marketing e comunicação institucional – sem promoções pessoais –
são instrumentos que produzirão bons resultados.
Revista ENM
221
plano de desenvolvimento estratégico plurianual também não será suficiente
se a cada dois anos todo o conhecimento adquirido for esquecido e não houver
o registro do planejamento na memória dos tribunais.
A consciência da necessidade de mudança estrutural, da profissionalização
e da implementação de padrões de aprendizagem (e qualidade), contribuirão
para a realização de um trabalho empreendedor pelos administradores de
tribunais brasileiros.
4. Diagnóstico, objetivos e propostas para utilização
da aprendizagem como ferramenta estratégica na
administração judiciária
Vale-se da definição de diagnóstico – originária da medicina – para descobrir, a
partir dos sintomas, as doenças e com base no conhecimento sobre elas, ministrar
os respectivos remédios (construir planos estratégicos para combater os problemas).
Muito embora fosse notório o agravamento dos problemas, o ambiente
organizacional dos tribunais sempre foi desfavorável às mudanças conduzindo
os administradores, mesmo em situações “de crise”, a seguir a tendência
natural de acomodação.
Da constatação do desajuste administrativo em relação à coordenação
das atividades do Poder Judiciário, se impõe a adoção de mecanismos para
ativar a organização das atividades a partir da cúpula estratégica (no campo
institucional e estrutural) e investir na tecnoestrutura e nas assessorias de
apoio a fim de alcançar uma nova visão estratégica modificadora dos antigos
esquemas interpretativos.
Se há necessidade de mudanças, o objetivo geral é estabelecer bases
estratégicas para que elas, uma vez implementadas, solucionem os mais graves
e notórios problemas que atingem o Poder Judiciário como a morosidade
(demora) e ineficiência (falta de efetividade).
As experiências passadas formam uma rica estrutura de referência (dados já
colhidos) para futuros processos de alta aprendizagem.
A análise dos erros do passado ampara a definição dos objetivos específicos
a serem alcançados em benefício do jurisdicionado.
4.1 Aprendizagem para a descentralização e empoderamento no
ambiente da administração judiciária
Conforme enfatiza Alvacir Correa dos Santos (2003), ao tratar das
222
Revista ENM
mudanças no ambiente empresarial, o administrador contemporâneo terá que
desenvolver algumas habilidades, tais como:
a) capacidade para prever e se antecipar às mudanças;
b) capacidade para liderar e para formar líderes (e líderes que sejam
avessos à acomodação, à inércia, que tenham espírito empreendedor
e que também sejam receptivos às mudanças).
Ressalta, ao concluir, que as empresas que se destacarão nos próximos
anos serão aquelas cujos gestores apresentarem habilidades para liderar,
estimulando a capacidade de criação dos empregados, proporcionandolhes treinamento e reciclagem adequados, fazendo-os sentir-se realizados
e gratificados20.
Note-se que cabe, como regra, aos presidentes de tribunais, a coordenação
ou supervisão direta, a chefia de todos os departamentos, além das atribuições
naturais de comando, planejamento e execução do orçamento. Por meio da
alternância de mecanismos administrativos de coordenação (por desenvolvimento
ou ajustamento mútuo, por padronização dos resultados, por habilidades e por
padronização dos processos de trabalho) e com uma gestão participativa os
presidentes poderão desenvolver habilidades para distribuir recursos de forma a
alcançar os melhores resultados. A descentralização e coordenação das atividades
é nesse contexto um passo de suma importância.
São tantas as missões do Poder Judiciário que a centralização impede a
implementação de uma gestão empreendedora.
Empowerment é uma ferramenta de exercer poder e sem perdê-lo.
Compartilhá-lo com subordinados que assumirão a responsabilidade de fazer
acontecer. Em tradução livre, é o que se tem denominado de “empoderamento”.
Aquele administrador que está “sem tempo” de realizar todas as suas
importantes atividades e “sem perda de tempo” deve empoderar alguém,
dentre seus subordinados ou auxiliares, a cumprir uma ou algumas dessas
muitas tarefas sem, contudo, perder o controle e o poder de também realizá-las.
4.2 Padrões de aprendizagem
Um dos focos mais destacados da aprendizagem tem sido o de correção
dos erros do passado. Conhecedores dos problemas e das forças restritivas,
20
Santos, Alvacir Correa dos. Princípio da eficiência da administração pública. p.124
Revista ENM
223
resta aos administradores desta geração corrigir os erros do passado,
aprender com os erros em um processo de contínua aprendizagem e, ao final,
sugerir alternativas viáveis e concretas para manter as forças propulsoras e
potencializá-las.
Um dos desafios para traçar os caminhos ao alcance da alta aprendizagem
preparando, estrategicamente, os tribunais para os desafios do futuro –
inclusive em relação ao macroambiente (aumento populacional, diminuição
dos recursos naturais e consequente crescimento dos conflitos) – é a mudança
de mentalidade.
Alguns vícios da burocracia mecanizada fortalecem a ideia de manter as
coisas como estão e continuar a fazer o que sempre se fez (fazer mais do mesmo)
exatamente porque sempre foi assim e é cômodo permanecer na inércia.
Com um planejamento estratégico contínuo, os gestores dos órgãos do Poder
Judiciário (administrados pelos tribunais), poderão projetar criativamente a
visão administrativa para cumprir, com eficiência, seus respectivos planos de
ação e, ao final, atingir os objetivos de uma Justiça ágil, organizada e eficiente.
4.3 Diminuir a quantidade de serviço e aumentar a qualidade
Sempre quando se discute a possibilidade de delegar ou transferir algumas
questões para solução extrajudicial, privada, fora do âmbito do Poder
Judiciário, surge de imediato uma primeira prevenção: haverá perda de poder,
portanto um desprestígio aos juízes, se o Poder Judiciário permitir solução
privada para alguns conflitos. Ao juízo do autor, a maior perda de prestígio
e poder decorre da absoluta incapacidade de solucionar as demandas que são
ofertadas aos tribunais.
Note-se que se afigura possível, sem qualquer quebra ao estado de direito
e à segurança jurídica, que algumas atividades administrativas negociais,
consensuais e enunciativas, sejam desenvolvidas por outros servidores,
administradores, e não só por juízes.
Várias atividades, relacionadas com as atividades principais do Poder
Judiciário, prescindem da atuação direta dos juízes e podem ser praticadas
por auxiliares da Justiça dentro ou fora do ambiente do Poder Judiciário, até
porque um especialista em Direito, um jurista experiente e experimentado,
muitas vezes, como se afirmou, é muito caro para o Estado para “perder seu
precioso talento jurídico” e, por que não dizer, “perder tempo” com questões
operacionais e administrativas diversas da atividade jurisdicional.
224
Revista ENM
5. Conclusões
Com base na análise do passado, em parcela significativa dos órgãos do
Poder Judiciário, verifica-se a ausência de profissionalização e uma organização
simples de espírito burocrático, com centralização de poder e características de
baixa aprendizagem.
Por acreditar na viabilização de efetivas medidas de gestão oriundas
do próprio Poder Judiciário (mesmo que buscando transformações por
conhecimentos externos) é que os tribunais deverão construir, com base nos
sistemas de aprendizagem, uma projeção estratégica de administração da justiça.
A administração do Poder Judiciário necessita urgentemente abandonar o
ciclo burocrático e iniciar um ciclo empreendedor marcado pelo planejamento
estratégico e pela visualização do futuro.
Ser empreendedor é ser criativo, avançar em mudanças necessárias sem
medo de errar. É também aceitar os erros e encará-los como parte do processo
de desenvolvimento estratégico.
A crise deve ser trabalhada construtivamente. A inadequação administrativa, a falta de planejamento e análise de impacto das condições externas (do
aumento populacional, do crescimento das demandas, diminuição dos recursos naturais...), importarão no agravamento da atual crise e na impossibilidade
de tratar da previsibilidade em relação aos novos problemas oriundos de uma
sociedade em constante evolução.
Como vimos, se “errar é humano, persistir no erro é burrice”. O erro, bem
aproveitado, pode e deve servir de aprendizado.
A administração judiciária pós-moderna será aquela com capacidade de
adaptar-se às mudanças que ocorrem no contexto tempo-cultural (ambiente) e
reagir às lições trazidas pelas experiências negativas, projetando, passo a passo,
as alterações na sua estrutura e no seu comportamento organizacional.
É possível, como a experiência registra, tirar partido positivo da crise,
investindo na sinergia de administração (experiência anterior sendo aproveitada
na solução de novos problemas com traços comuns com antigas decisões de
sucesso).
Esse é o desafio dos magistrados pós-modernos, gestores, administradores
e líderes servidores que, a despeito de todas as limitações estruturais do Poder
Judiciário, farão a travessia entre a promessa de eficiência e o alcance do
verdadeiro sentido da palavra “Excelência”.
Revista ENM
225
Referências bibliográficas
Prêmio Innovare – A Justiça do Século XXI. A reforma silenciosa da Justiça. Org. Centro de Justiça e
Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: 2007.
Revista da Escola Nacional de Magistratura – Ano II, no 3. Brasília: Escola Nacional da Magistratura, 2007.
Revista IOB de Direito Pena e Processual Penal, p. 177. Porto Alegre: Síntese v.1, n.1, abr/maio, 2000.
ALMEIDA, Marcelo; SOUZA, Maurício (org.). Superando desafios – o livro das motivações. Ed. Própria,
2000.
ANATER, Arnoldo (org.). Pronunciamentos do Judiciário 1996 – 2000. Curitiba: Artes&Textos, 2005
ANSOFF, Igor; McDONNEL, Edward J. Implantando a administração estratégica. São Paulo: Atlas, 1995.
ARAÚJO, Francisco Fernandes de. A cara da justiça 2. Campinas, SP: Copola livros, 1996.
AZEVEDO, André Gomma (org.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação. Brasília: Brasília Jurídica,
2002.
BUARQUE DE HOLANDA, Aurélio. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira,1986.
BACELLAR, Roberto Portugal. Juizados Especiais – a nova mediação paraprocessual. São Paulo: RT, 2004.
______. A mediação no contexto dos modelos consensuais de resolução de conflitos. Revista de Processo,
São Paulo, vol. 95, jul.-set. 1999.
BUKOWITZ, Wendi R.; WILLIAMS, Ruth L. Manual de gestão do conhecimento. Trad. Carlos Alberto
Silveira Netto Soares. Porto Alegre: Bookman, 2002.
BULGACOV, S. Conteúdo e Processo Estratégico. Rio de Janeiro: Anais da ENANPAD, 1997.
CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas (Org.). Desenvolvimento Econômico e Intervenção do Estado na Ordem
Constitucional. Estudos Jurídicos em homenagem ao Professor Washington Peluso Albino de Souza. Rio Grande
do Sul, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1995.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988.
De BONO, Edward. Novas estratégias de pensamento. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Nobel,
2000.
_________. Tática – a arte e a ciência do sucesso. Trad. Luzia Machado da Costa. Rio de Janeiro: Record,
1985.
_________. De Bono’s thinking course. Facts on file, 1994.
_________. O pensamento lateral. Trad. Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Record.
DiBELLA, Anthony J.; NEVIS, Edwin C. Como as organizações aprendem. Trad. Flávio Kuczynski. São
Paulo: Educator, 1999.
FERNANDES FILHO, José. Relatório. In Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça dos
Estados. Brasília, 03-05 abril 1997.
FREITAS, Vladimir Passos de (coord.). Direito e administração da Justiça. Curitiba: Juruá, 2006.
_________. Corregedorias do Poder Judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
GRÖNROOS, Christian. Marketing gerenciamento e serviços. Trad. Cristina Bazán. Rio de Janeiro:
Campus, 1993.
GUASPARI, John. A empresa que parou no tempo. São Paulo: M. Books, 2005.
HOOLEY, Graham J.; SAUNDERS, John A.; PIERCY, Nigel F. Estratégia de Marketing e posicionamento
competitivo. Trad. Arão Sapiro. 2. ed. São Paulo: Prentice Hall, 2001.
HUNTER, James C. Como se tornar um líder servidor. Trad. de A. B. Pinheiro de Lemos, Rio de Janeiro,
Sextante, 2006.
JOHNSON, Spencer. Quem mexeu no meu queijo? Trad. Maria Clara de Biase. 31. ed. Rio de Janeiro:
Record, 2002.
KANITZ, Stephen. Ponto de vista – Preparadas para servir. Revista Veja n. 1850, ano 37, n. 16, São Paulo:
Abril, 2004.
KOERNER, Andrei. Judiciário e cidadania na Constituição da República brasileira. São Paulo: Hucitec/
Departamento de Ciência Política, USP, 1998.
LADEW, Donald P. Como gerenciar pessoas. Trad. Eduardo Cunningham Martinez. São Paulo: Amadio,
2002.
LAS CASAS, Alexandre Luzzi. Marketing de serviços. São Paulo: Atlas, 1991.
MACCALÓZ, Salete. O Poder Judiciário, os meios de comunicação e opinião pública. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2002.
MADALENA, Pedro. Administração da Justiça. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 1994.
226
Revista ENM
MAGER, Robert Frank. Análise de metas. Trad. Roger Maioli dos Santos. São Paulo: Market Books, 2001.
MATOS, Francisco Gomes de. Empresa feliz. São Paulo: Makron Books, 1996.
MINTZBERG, Henry. Criando Organizações eficazes. Estrutura em cinco configurações. Trad. Cyro
Bernardes. São Paulo: Atlas, 1995.
MINTZBERG, Henry; AHLSTRAND; Bruce e LAMPEL, Joseph. Safari de estratégia. Trad. Nivaldo
Montingelli Jr. Porto Alegre: Bookman, 2000.
OLIVEIRA, Marco Antonio. (coord). Vencendo a crise à moda brasileira: “turnaround” em empresas nacionais.
São Paulo: Nobel, 1994.
PICKERING, Peg. Como administrar conflitos profissionais. Trad. Equipe Market Books. São Paulo: Market
Books, 2002.
RAMÉE, John. Corporate crisis: the aftermath. In: management solutios, N. York, 1987.
SADEK, Maria Tereza (org.). Acesso à Justiça. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001.
SANTOS, Alvacir Correa dos. Princípio da eficiência da administração pública. São Paulo: LTr, 2003.
SCHWANFELDER, Werner. Buda: o encontro do equilíbrio. Petrópolis: Vozes, 2008.
SELEM, Lara. Gestão de escritório. Brasília: Consulex, 2006.
STACEY, Ralph. Managing chaos: Dynamic business strategies in na unpredictable world. Londres, Kogan
Page, 1992.
TRACY, Diane. 10 passos para o empowerment. Trad. Luiz Euclydes Trindade Frazão Filho. Rio de Janeiro:
Campus, 1994.
TROUT, Jack e Ries. Posicionamento.São Paulo: Pioneira, 1995.
VIANA, Jairo. Justiça. Lux Jornal – Jornal de Brasília, Brasília, 27 dez. 1998, p. 9.
Revista ENM
227
Gestão
A melhor reforma da
Justiça do Trabalho:
a formação do Juiz
Amauri Mascaro Nascimento
Professor Titular e Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP
Presidente Honorário da Academia Nacional de Direito do Trabalho
Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas
Secretário Geral da Sociedade Iberoamericana de Direito do Trabalho e Seguridade Social
Juiz do Trabalho aposentado
1. Introdução
Dar ao País um Judiciário com maior eficiência, celeridade e acerto cada
vez maiores em suas decisões é uma aspiração da sociedade e um imperativo
do desenvolvimento do País, como é possível concluir das pesquisas sobre a
imagem da Justiça perante a população.
As reformas do Judiciário são estudadas em mais de uma perspectiva,
porém a principal delas, aqui avaliada, é a da formação do Juiz que não pode
ser descuidada, como não é, embora não tendo atingido ainda os níveis
maiores que pode alcançar.
Para que esse objetivo seja atingido a Resolução no 75 do Conselho
Nacional da Justiça altera os critérios e o conteúdo dos concursos de ingresso
na magistratura visando exigir do candidato uma formação não apenas técnica,
mas também humanística, modificação que merece a atenção e o elogio de
todos.
Um sistema judicial, por melhor que seja, sucumbe nas mãos de um mau
Juiz e um sistema judicial, por pior que seja, pode dar resultados positivos
se conduzido por um bom Juiz. Logo, o centro da atenção deve ser dirigido
ao sujeito e ao seu comportamento, e não tanto na estrutura, embora esta
também represente bastante para o aperfeiçoamento da organização.
228
Revista ENM
É nessa perspectiva que as observações a seguir são dirigidas.
2. Sociologia da administração judiciária
O Juiz deve preocupar-se com os fenômenos sociais, uma das dimensões do
Direito.
Já sabemos que Sociologia é a ciência dos fatos sociais, termo atribuído a
Comte para indicar a “ciência de observações dos fenômenos sociais”, isto é,
toda espécie de análise dos fatos que ocorrem na sociedade, os grupos de que é
constituída, as instituições nela encontradas, na tentativa de levantamento das
leis que disciplinam o seu comportamento.
Assim, cabe à Sociologia a investigação das estruturas do fato social,
valendo-se de técnicas diversas, como a pesquisa, a estatística, os trabalhos de
campo, etc. Uma das maiores autoridades da Sociologia, Émile Durkheim,
em As Regras do Método Sociológico, ensina que existem vários tipos dessas
regras: regras sobre observação dos fatos sociais, distinção entre normal
e patológico, constituição dos tipos sociais, explicação dos fatos sociais e
regras de administração da prova em alentado estudo que se tornou dos
mais conceituados na sua área. Considera os fatos sociais como objeto da sua
análise. Afirma que a estrutura política de uma sociedade não é mais do que
o modo pelo qual os diferentes segmentos que a compõem tomaram o hábito
de viverem uns com os outros. Se suas relações são estreitas, os segmentos
tendem a se confundir e, no caso contrário, tendem a se distinguir. Conclui
que política não se situa apenas no nível das estruturas estatais, mas sim no
nível da sociedade.
Desse modo, a preocupação maior da Sociologia é a procura do método
sociológico e suas regras para responder à indagação central que a move: o que
é um fato social?
Quando voltados esses estudos para o Direito em geral estar-se-á diante da
sociologia jurídica que Ramón Soriano — para quem o direito é provavelmente
o instrumento mais importante de controle social —, em Sociologia del derecho
(1997), define por meio da interconexão dos dois termos da sua nomenclatura:
a sociologia jurídica ocupa-se da influência dos fatores so­ciais no direito e
da incidência que este tem, por sua vez, na sociedade. Há, portanto, uma
mútua dependência entre o jurídico e o social. Se dirigidos para a sociedade
empresarial, os grupos trabalhistas e econômicos e suas relações, o âmbito será
o da sociologia do trabalho.
Revista ENM
229
Na sociologia jurídica, estudam-se os fatos que influenciam a formação
do direito, portanto parte-se desses fatos para a norma; quando na ciência
do Direito o movimento é contrário, parte-se da norma para os fatos, sem
prejuízo de uma concepção integrativa de implicações recíprocas.
Um dos aspectos da Sociologia do Direito é a administração judiciária
vista, obviamente, sob o prisma da gestão e da gerência da atividade judiciária.
Sobre o tema existe um interessante estudo de Boaventura de Sousa Santos,
Introdução à Sociologia da Administração da Justiça. Esses estudos interessam
ao Direito Processual do Trabalho e especialmente para o Poder Judiciário.
Ele afirma que não se trata de examinar o conceito de Justiça, de Direito,
nem a tipologia das normas jurídicas e sua aplicação, temas que pertencem a
outras áreas de estudo. O autor centraliza sua análise em outros temas como
o pessoal especializado encarregado da aplicação nas normas jurídicas, as
profissões jurídicas, a burocracia estatal e o desenvolvimento da sociologia das
organizações das quais a organização judiciária é uma das partes.
Propõe uma sociologia da administração da justiça desenvolvida a partir de
linhas de investigação concentradas em três grandes grupos temáticos: o acesso
à justiça; a administração da justiça enquanto instituição política e organização
profissional; e a litigiosidade social e os mecanismos da sua resolução existentes na
sociedade, aspectos demarcatórios do tema e para os quais volta a sua atenção.
Quanto ao acesso à justiça – que é pelo mesmo examinado no Judiciário em
geral e específico para o Judiciário trabalhista – adverte que é um direito cuja
denegação acarretaria a de todos os demais. Nesse domínio, a contribuição da
Sociologia consiste em investigar sistemática e empiricamente os obstáculos ao
acesso efetivo à justiça por parte das classes populares. Salienta que o Processo do
Trabalho é uma conquista dos trabalhadores no sentido de consolidar o direito
de acesso a um órgão para decidir os seus conflitos com os empregadores, mas
não deixa de mostrar que existem também obstáculos sociais e culturais que
dificultam esse acesso por parte dessas classes. Os cidadãos de menores recursos
tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades
e reconhecer um problema que os afeta como sendo um problema jurídico.
Uma sensação de dependência e insegurança produz o temor de represálias
de se recorrer aos tribunais. Quanto mais baixo é o estrato sócio-econômico
do cidadão menos provável é que conheça um advogado que demonstre os
caminhos que deve seguir para ingressar numa organização judiciária, enfrentar
audiências, apresentar recursos e discutir com fundamentos as questões que
230
Revista ENM
vão aparecendo no processo. A assistência judiciária colabora para facilitar o
processo. Todavia, para isso, deve estar bem estruturada e contar com recursos
suficientes para que possa cumprir os seus fins.
Acrescento que o realismo jurídico norte-americano colocou temas como
esses e os próprios juízes no centro do campo analítico para estudar os seus
comportamentos, as decisões e o problema da neutralidade ou não do juiz.
Diversos pensadores optaram por essa temática. Já os estudos italianos
ocupam-se mais da ideologia da magistratura e não do comportamento decisório
e, como ensina Renato Trevis, o mito do apoliticismo da função judiciária
diante das três grandes tendências ideológicas no seio da magistratura italiana:
a tendência estrutural funcionalista dos juízes conservadores ou moderados, a
tendência do conflitivismo pluralista que defende as ideias de mudança social
e reformismo e a tendência mais radical do conflitismo dicotômico de tipo
marxista e do direito alternativo.
Boaventura chega a algumas conclusões.
Entende que uma nova política judiciária deve zelar por alguns aspectos
básicos que devem ser mencionados.
Primeiro, a democratização da administração da justiça, fundamental para a
democratização da vida social, econômica e política e que tem duas vertentes,
uma é a constituição interna do processo com maior envolvimento dos cidadãos,
individualmente ou em grupos, e a ampliação dos conceitos de legitimidade
das partes e do interesse de agir; a segunda vertente diz respeito à democratização
do acesso à justiça.
Segundo, preocupa-se com a diminuição do contencioso jurisdicional em
vários países. Considera disfuncional e negativa em relação ao processo de
democratização da justiça a demora na solução dos litígios.
Terceiro, adverte que os litígios entre cidadãos ou grupos parificáveis
admitem a informalização da justiça como fator de democratização, todavia,
e ao contrário, os litígios entre cidadãos ou grupos com posições de poder
estruturalmente desiguais – como os litígios entre patrões e operários, entre
consumidores e produtores, entre inquilinos e senhorios –, se informalizados,
podem se deteriorar diante da posição jurídica da parte mais fraca contribuindo
para a maior desigualdade social, a menos que os amplos poderes do juiz
compensem a perda das garantias.
Termina dizendo que a contribuição maior da Sociologia para a
democratização da justiça está em mostrar empiricamente que as reformas do
Revista ENM
231
processo ou mesmo do direito material não terão maior significado sem outras
duas reformas, a da organização judiciária e a da gestão dos recursos de tempo e
capacidade técnica, em especial os processos de recrutamento dos magistrados,
tudo para que se possa contar com a magistratura culturalmente esclarecida.
Entende a concepção de administração da justiça, inicialmente propugnada
pelos cientistas políticos, vendo no Poder Judiciário “uma instância política,
subsistema do sistema político geral partilhando com este a característica de
processar uma série de inputs externos constituídos por estímulos, pressões,
exigências sociais e políticas e de, através de mecanismos de conversão,
produzir outputs (as decisões) portadoras elas próprias de um impacto social e
político nos restantes subsistemas”.
E conclui:
Uma tal concepção dos tribunais teve duas consequências muito
importantes. Por um lado, colocou os juízes no centro do campo
analítico. Os seus comportamentos, as decisões por eles proferidas
e as motivações delas constantes passaram a ser uma variável
dependente cuja aplicação se procurou nas correlações com
variáveis independentes, fossem elas a origem da classe, a formação
profissional, a idade ou, sobretudo a ideologia política e social
dos juízes. A segunda consequência consistiu em desmentir por
completo a ideia convencional da administração da justiça como
uma função neutra protagonizada por um juiz apostado apenas em
fazer justiça acima e equidistante dos interesses das partes.
Penso que a sociologia da administração judicial pode desempenhar um
papel importante no sentido de promover o levantamento de dados de que
o Juiz, na administração do Tribunal ou da Vara, para que possa ter melhor
conhecimento da realidade que dirige.
Para esse fim, o Juiz deve contar com dados estatísticos e relatórios periódicos
que o municiem dos elementos necessários para a verificação da situação em
que o seu órgão se encontra. Com esses dados, o Juiz poderia fazer uma reflexão
melhor, necessária para a procura da racionalização dos serviços judiciais, com
a aplicação dos métodos de gestão que simplifiquem as funções de cada um dos
que colaboram para o desenvolvimento das respectivas atividades.
É o que aconteceria com as pautas de audiências nas grandes cidades
quando acumulam um grande número de audiências no mesmo dia, o que
impede, por falta de tempo, uma tentativa de conciliação mais detalhada e
232
Revista ENM
quando as partes não se conciliam o caso é adiado para outro dia, em prejuízo
das partes que terão que retornar e das testemunhas que compareceram e que
são dispensadas sem serem ouvidas para que retornem futuramente também.
Há, por outro lado, um aspecto negativo dos levantamentos de dados
estatísticos do trabalho do Juiz. Como no atual período há um controle maior
sobre a produtividade do Juiz, esse fato pode sobre ele exercer uma pressão para
que sua atividade seja voltada para a produtividade. Isso que pode prejudicar
a qualidade do seu serviço. Mas não vejo como abrir mão desse controle e
a solução é definir, com precisão, os limites exigíveis do Juiz e pressionar o
Poder Executivo para que amplie os quadros do Judiciário, o que pode trazer
resultados quando o pleito é bem conduzido – como aconteceu em 2009 com
a ampliação desses quadros na Justiça Federal e do Trabalho.
A informatização pode prestar também uma excelente contribuição e
corrigir defeitos crônicos que durante muito tempo foram um suplício para
os advogados, e hoje já não são mais, como obter informações sobre trâmites
processuais e localização de autos nas secretarias.
Mas escapa ao seu âmbito a avaliação da postura dos juízes na sua atividade
jurisdicional, tema que não pertence à Sociologia, embora nada impeça que
nela incursione, mas sim a uma opção do próprio Poder Judiciário.
Questão complexa é a da neutralidade ou não do Juiz. Não estou
convencido de que as suas sentenças são resultados das influências que sofreu
na sua formação e das variáveis de origem, classe, idade e ideologia política
e social. Esses fatores podem, de algum modo, pesar na cosmovisão do Juiz,
e seria mesmo difícil negar que tal influência não se manifestasse. Faz parte
de toda pessoa trazer consigo um pouco da sua história. Porém, daí a chegar
à conclusão de que as pessoas, não obstante essa dependência, são incapazes
de mudar o seu pensamento depois de uma diversidade de cosmovisões das
quais toma conhecimento é o mesmo que negar a possibilidade de evolução
intelectual do ser humano. O Juiz, qualquer que seja sua classe social de
origem ou ideologia, como Juiz, sempre decide com a responsabilidade e com
as interpretações segundo técnicas jurídicas que aprendeu durante os cursos
que fez. Desse modo, ele sabe que tem que ser neutro, e fazer justiça acima dos
interesses das partes, sob pena de não ser um Juiz. Não devemos nos deixar
influenciar nesse ponto, pelo realismo jurídico norte-americano, porque o
nosso sistema é completamente diferente, aquele um sistema de Common
Law enquanto que no nosso território o sistema é de Direito Legislado.
Revista ENM
233
Esses fatores influem muito no problema e modificam a posição do Juiz, que
nunca poderá, aqui, afrontar o modelo em que vivemos, no respeito à Lei, da
inspiração na Doutrina, e da nossa cultura. Reconheço, no entanto, que há
juízes que são tidos como conservadores, e outros como progressistas. Porém,
o que é ser conservador? O que é ser progressista? Essa é uma questão de alta
indagação, porque muito do que é feito por um chamado conservador é muito
mais progressista do que diversas iniciativas de um Juiz considerado moderno
e reformador. Por exemplo, foi na magistratura do período dos governos
militares no Brasil que o Judiciário teve que lidar com questões como suspensão
dos contratos individuais de trabalho por motivos econômicos, porque foi
feita uma lei nesse sentido. Essa lei é flexibilizadora. Não é conservadora. O
Juiz teve que aplicá-la, quer fosse conservador ou progressista e a despeito do
regime político na época vigente.
As afirmações do conceituado sociólogo sobre a maior contribuição da
Sociologia para a democratização da administração da Justiça, a reforma da
organização judiciária e a reforma dos meios de recrutamento dos magistrados,
são de inegável consistência.
A reforma da administração da Justiça do Trabalho no Brasil tem como
sua última medida de repercussão a extinção dos juízes classistas. Estes eram
representantes dos sindicatos que integravam os órgãos judiciais em todos os
níveis. Era uma forma de administração popular, na administração da justiça.
Foi suprimida porque não deu certo. Esses representantes sempre eram
vencidos nos votos que proferiam, e sempre com escassa fundamentação.
Acabava valendo a posição do Juiz embora os três votos, do Juiz e dos dois
classistas, um de empregado e o outro de empregador, tivesse o mesmo peso. O
Juiz era sempre acompanhado por um dos classistas ficando o outro vencido.
Essa modificação na organização judiciária é tida como acertada. Não foi um
meio de inclusão do povo no Judiciário. Ao contrário, foi uma forma de
eliminar a composição paritária dos tribunais.
Vê-se, portanto, que nem sempre a proposta de democratização com
inclusão popular traz benefícios à administração judicial, como ficou
comprovado na nossa história da Justiça do Trabalho. Justiça internamente
democrática é a transparente, e não a popular. A Justiça do Trabalho poderá, no
entanto, democratizar-se mais, como já o fez com as varas itinerantes que vão
até o local onde haja uma razoável concentração de demandantes que teriam
difícil acesso ao Judiciário, para, ali mesmo, instruir e julgar as demandas
234
Revista ENM
trabalhistas, como tem ocorrido com sucesso em estados do norte do País.
Outra forma, já experimentada com êxito, é a dos tribunais que apreciam
os recursos quando constituída, pelo Tribunal, uma Turma compostas por
juízes de varas que, em nome do mesmo, apreciará o apelo, como já foi feito
na Região do Tribunal de Campinas. É o caso, também, de atuação conjunta
e programada do Tribunal Regional e das subseções da OAB para, mediante
convênio entre ambas as instituições, em cada Subseção da OAB atuar um
grupo de mediação, conciliação ou arbitragem composto de advogados
indicados pela Subseção ao Presidente do Tribunal que os designaria para essas
atribuições durante um tempo.
Por outro lado, os processos de recrutamento dos magistrados podem
melhorar cada vez mais com medidas, como a do Conselho Nacional de
Justiça, em 2008, que programou exigências necessárias dos candidatos. É o
que se fez com a Resolução no 75, do Conselho Nacional de Justiça, e das novas
exigências de conhecimentos dos candidatos a juízes. A resolução exige uma
formação humanística, incluindo temas de Filosofia do Direito, Sociologia da
administração judiciária e Psicologia Jurídica, além das matérias tradicionais.
3. Os mecanismos de resolução dos conflitos sociais
No Direito, e segundo os estudos de Niceto Alcalá Zamora y Castillo em
Processo, Autocomposição e Autodefesa os conflitos, nas diversas etapas da história,
foram solucionados por diferentes meios, cuja amplitude alterou-se com o tempo.
Nas sociedades primitivas, prevaleceu a autotutela, que é a imposição
do mais forte ao mais fraco mesclada com os juízos de Deus. Os conflitos
eram resolvidos mediante os duelos, os combates, as liças, as ordálias, com
a exposição física das pessoas a toda sorte de atrocidades para, no caso de
resistência, tornarem-se vitoriosos, práticas que o direito procurou afastar,
apesar de, nas épocas em que eram comuns, terem aceitação social.
Em um segundo período, os conflitos passaram a ser resolvidos pelo
processo, quando o direito aperfeiçoou o estudo das técnicas de solução e
desenvolveu o conceito de jurisdição, hoje inafastável do Estado Democrático
de Direito. Ganhou relevância, também, a solução dos conflitos diretamente
pelas partes, mas não pela imposição do forte ao fraco, e, sim, pelo entendimento
ou a negociação. O direito deu forma a várias técnicas destinadas a esse fim.
São formas tradicionais de resolução dos conflitos a autocomposição ou
heterocomposição.
Revista ENM
235
Há autocomposição quando as próprias partes, diretamente, solucionamno e haverá a heterocomposição quando, não sendo resolvidos pelas partes,
o são por um órgão ou uma pessoa suprapartes. Forma autocompositiva
é, principalmente, a negociação coletiva para os conflitos coletivos e o
acordo ou a conciliação para os conflitos individuais, estes acompanhados
ou não de mediação. A aproximação das partes por um terceiro que tem a
incumbência não de decidir, mas de ajudar o acordo, é a mediação. Técnicas
heterocompositivas são a arbitragem e a jurisdição do Estado. Acompanhando
essas formas, podem empregar as partes, quando autorizadas ou não proibidas
pela legislação do País, técnicas de autodefesa: a greve e o lock-out.
Dentro desses conceitos centrais é que são classificadas diversas formas
compositivas no Direito do Trabalho, com maior ou menor relevo, permitindo
um debate sobre a natureza de cada uma delas.
A relação dos meios de solução dos conflitos de interesses no setor privado
pode não coincidir com a do setor público; a dos conflitos jurídicos com a
dos econômicos; a dos conflitos individuais com a dos conflitos coletivos;
a greve pode ser, para alguns, forma de solução dos conflitos e, para outros,
não, apenas meio de pressão que pode conduzir a uma forma de solução
do conflito; a conciliação e a mediação, para alguns, não apresentam
características que permitam distingui-las, enquanto, para outros, são
inconfundíveis; alguns doutrinadores defendem uma lista maior para os
conflitos coletivos de interesses para o setor privado, incluindo negociação
coletiva, greve, conciliação, informes oficiais, investigação dos fatos, fórmulas
mistas de conciliação, mediação e arbitragem, decisões judiciais e decisões
administrativas; em alguns ordenamentos, a principal forma de solução é a
jurisdicional, enquanto, em outros, é a arbitral.
Em alguns países, como o Brasil, prevalecem soluções jurisdicionais. Em
outros, como os Estados Unidos, destaca-se a arbitragem. Em todos se procura
dar ênfase à autocomposição coletiva e cercar-se de garantias à vontade do
trabalhador nas individuais. Em todos os ordenamentos coexistem diversas
formas que compõem um sistema. Há, portanto, um sistema de composição
dos conflitos trabalhistas, o que pressupõe que as partes que o integram
estejam entrelaçadas e ordenadas conforme uma sequência rígida. É possível
falar-se em sistema entrelaçado mesmo sem uma ordem sequencial no sentido
de que, invariavelmente, as partes teriam de procurar a solução do conflito por
um dos meios previstos para, depois, passar a outros, como degraus de uma
236
Revista ENM
escada obrigatória, portanto, em sistema de composição dos conflitos como
conjunto de técnicas de composição existentes em um ordenamento jurídico,
utilizáveis de modo facultativo ou obrigatório na conformidade que lhe for
atribuída pelas normas jurídicas.
A substituição da autodefesa pelo processo é descrita pelos processualistas
como uma conquista do desenvolvimento cultural. Merece de Alcalá-Zamora
y Castillo uma observação. A proibição da autodefesa, tal como existe nos
ordenamentos jurídicos modernos, é o resultado de uma larga e trabalhosa
evolução. Em associação primitiva, na qual não existisse acima dos indivíduos
uma autoridade superior, capaz de decidir e de impor decisão, não se pode
pensar para resolver os conflitos de interesses entre coassociados, a não ser
em dois meios: ou no acordo voluntário entre dois interessados (contrato),
destinado a estabelecer, amigavelmente, qual dos interesses opostos deve
prevalecer, ou, quando não se chegasse a acordo voluntário, ao choque violento
entre os interessados.
Na atual fase, ainda segundo a mesma fonte, desde que acima dos
indivíduos, afirmou-se um princípio de autoridade, esta interveio primeiro
para disciplinar ou para limitar; depois, para proibir, de um modo cada vez
mais enérgico e absoluto, o uso da autodefesa, até chegar ao ponto mais
extremo da evolução atual: o exercício da autodefesa considerado como delito.
4. O Juiz e a emoção
Dentre as questões abordadas pela Psicologia Judiciária e, de certo modo, por
uma corrente da Filosofia Jurídica, o realismo jurídico, está a do Juiz e a Emoção
na qual se procura saber ao proferir uma decisão o que é mais importante, a
razão ou a emoção, ou se ambas caminham juntas, como nos parece. Sobre o tema, um criterioso estudo é o de Lídia Reis de Almeida Prado, em
O Juiz e a Emoção – Aspectos da Lógica da Decisão Judicial, no qual a autora, com
a dupla condição de jurista e psicóloga, examina, para o nosso fim, os aspectos
da lógica da decisão judicial. Concluiu que há evidências neste início de milênio
de uma gradativa valorização da emoção junto com o pensamento na tomada
de decisões. Esse fenômeno continua, pode ser entendido no contexto de um
novo paradigma dentro de um padrão democrático, numa tentativa de dirimir
a dissociação positivista e racionalista do passado. Cita Antônio Damásio, em O
erro de Descartes, ao afirmar que o sentimento, a emoção e a regulação biológica
são essenciais para a racionalidade, e aduziu que é incompleta a razão que existe
Revista ENM
237
sem nenhuma ligação com o sentimento, o que poderia comprometer a própria
racionalidade ao desequilibrar a razão e a emoção.
Transcrevemos da autora o seguinte trecho:
A sentença judicial, embora baseada no conhecimento jurídico,
constitui uma decisão como outra qualquer. Por isso, como ocorre
em outras áreas do saber, lentamente começa a se notar no direito
a valorização da emoção no ato de decidir, sem ser desconsiderada
a racionalidade.
E acrescenta:
Existem prenúncios de novas configurações, novas imagens
arquetípicas da justiça e do juiz, mais adequadas ao nosso tempo,
que começam a se abrir para a sensibilidade. Penso não estar sendo
irrealisticamente otimista ao acreditar que tais transformações
estariam anunciando os primeiros sinais observáveis no Brasil neste
momento histórico, de uma lenta e gradativa comunhão no ato de
julgar entre pensamento e sentimento.
Muito há de verdade nas conclusões acima resumidas, e que só podem ser mais
bem compreendidas com a leitura integral do livro da Professora Lídia Reis.
Penso que a emoção está presente em praticamente todos os atos decisórios
da vida, porque é através dos sentidos que conseguimos conhecer os objetos
da realidade que nos cerca e sei que, como Juiz que fui, pode haver sim a
influência da emoção numa decisão judicial, entendendo-se por emoção um
conjunto de aspectos que vão desde valores pessoais a influências ideológicas,
desde o impulso de solidariedade a uma rejeição liminar de um ato que no
passado já nos causou um impacto negativo.
Eu mesmo, num caso concreto, dispus-me a julgar por emoção para ajudar
uma idosa desamparada, dispensada do serviço e sem outras opções de vida
profissional. Ela estava com uns 55 anos de idade. Vivia da prostituição.
Ganhava da gerência da casa uma ficha por “serviço”. A idade fez com que
raramente fosse escolhida pelos clientes. As colegas solidarizaram-se com ela.
No final do expediente cada colega lhe dava algumas fichas que eram por
ela trocadas no “caixa” por dinheiro. Fiquei penalizado com a sua situação e
me inclinei a decidir que havia uma relação de emprego entre ela e a “casa”,
embora não fosse obrigada a lá comparecer só o fazendo por sua iniciativa.
238
Revista ENM
Deparei-me, no entanto, com um problema: o Juiz é obrigado a fundamentar
a decisão por escrito. Ora, a fundamentação é jurídica com base no sistema
normativo. Se eu fundamentasse a sentença nas verdadeiras razões de decidir,
que eram de solidariedade humana e de ordem emocional, certamente a minha
decisão seria reformada pelos tribunais que não aceitam uma decisão do juiz
quando não tem suporte no sistema normativo e nos princípios jurídicos.
Ao interpretar as normas, o Juiz tem margem de discricionariedade, mas
nunca a ponto de ser liberado da fundamentação da sentença ou do despacho.
Essa exigência tem tamanha importância que se tornou preceito constitucional
(Constituição Federal, art. 93, IX). A fundamentação consiste na exposição
pelo Juiz dos motivos que o levaram a decidir da forma que o fez. Uma
decisão sem fundamentação é nula. E não terá sustentabilidade se for uma
fundamentação decorrente de motivos de ordem sentimental experimentados
pelo Juiz. Existem limites impostos ao Juiz pelo Direito num sistema moderno
e democrático. Instransponíveis para que a emoção se sobreponha à razão. A
garantia das partes que litigam no processo está exatamente na fundamentação
da decisão, pois é esta que vai proporcionar a rediscussão do tema nos tribunais,
para reforma ou manutenção da sentença.
Miguel Reale afirma que o psicologismo jurídico é redutivista.
O debate está aberto na Filosofia do Direito. A contribuição da Psicologia
poderá ser relevante.
5. §2º Relacionamento do magistrado com o advogado, as partes
e os servidores
Uma das questões de constantes divergências entre o Juiz e a Comissão de
Defesa das Garantias do Advogado da Ordem dos Advogados é exatamente a do
relacionamento entre magistrado e advogado, ambos na sua atividade jurídica.
Nas audiências surgem, às vezes, embates que nada lembram os padrões
éticos que devem prevalecer. São às vezes dominados pela paixão dos advogados
entre si, em outras vezes pela impaciência do Juiz perante os advogados diante
do desentendimento entre as partes conflitantes.
Felizmente, esses casos não são em número elevado, mas deles é possível
uma ideia mais concreta mediante um levantamento casuístico na Comissão
de Defesa das Garantias do Advogado da OAB ou nas Corregedorias da Justiça
do Trabalho, órgãos para os quais são encaminhadas as representações contra o
magistrado por quem se sentiu pelo mesmo agravado.
Revista ENM
239
Nesses órgãos, em algumas raras situações, que não são a regra geral, é
inevitável a influência de um sentimento corporativista na apreciação do
comportamento do colega.
Na OAB a sanção praticada é uma sessão de desagravo designada pela
entidade dos advogados na sua sede, na qual um dos advogados designados
fala em nome da categoria para relatar o ocorrido e solidarizar com o
ofendido, porém as decisões nos órgãos do Poder Judiciário em representações
semelhantes são pouco conhecidas.
O certo é que existem algumas regras que devem ser seguidas por
magistrados e advogados. São, primeiramente, as dos respectivos códigos
de ética, nem sempre conhecidas, apesar da sua maior importância; depois
as regras da Moral, indicativas do respeito ético que deve existir nesse
relacionamento; em seguida o que eu chamaria de regras pessoais, que
vão desde a formação educacional de cada um até a sua capacidade de
controle dos instintos que eclodem do seu psiquismo quando contrariados
por alguma coisa, controle esse que deve ser muito maior no magistrado,
pela sua posição suprapartes. O magistrado que não tem essa capacidade
de controle dos impulsos irrefletidos, às vezes até compreensíveis, não
tem vocação para a magistratura. Esta foi feita para os com paciência,
equilíbrio emocional, discernimento, altitude no sentido de se sobrepor
aos embates que surgem na sua frente, mas que estão no chão, e não no
teto das salas de audiência.
Confesso que, como advogado, já me descontrolei em uma audiência. Não
me lembro de outra em que isso tenha ocorrido. O advogado, numa defesa
insustentável para ele, tentava confundir a Juíza com perguntas desnecessárias,
desvirtuantes da questão e com nítido propósito tumultuário. Não interferi
até quando o limite do razoável tivesse sido pelo mesmo ultrapassado. Nessa
altura dirigi-me diretamente ao meu opositor não o fazendo por meio da Juíza,
porque achava que deveria defendê-la da postura indevida do advogado pelo
qual ela estava sendo envolvida. Não fui ameno. Indevidamente exaltei-me –
pelo que peço desculpas. A intervenção da Juíza foi a mais sábia possível. Em
vez de me punir, pediu-me várias vezes o seguinte: “Paciência, Professor. Calma,
Professor....” Foi o suficiente para que eu voltasse ao normal. O incidente
terminou e a audiência também. Um Juiz arbitrário poderia ter tomado outra
atitude mais rigorosa. Poderia, até mesmo, determinar intervenção policial, o
que teria sido um desastre diante dos desdobramentos que daí decorreria, sem
240
Revista ENM
resolver o incidente. Foi sábia a Juíza que presidiu a audiência. Não recomendo
que façam o que eu fiz, mas entendo se alguém o fez, e indico como melhor
comportamento o da Juíza.
Todos nós, juízes e advogados, temos que apagar os incêndios da vida.
Nosso dever é colaborar para o curso normal da atividade judiciária e das partes
e manter um bom relacionamento entre dois sujeitos do triângulo judicial.
Quanto aos servidores, o maior contato do advogado com os mesmos é no
cartório ou na secretaria para procura de processos, necessidade que decaiu de
intensidade na medida em que os trâmites processuais foram informatizados.
Entre o Juiz e o seu servidor há uma relação hierárquica. Não é por isso que
o Juiz não possa humanizar as suas relações com os serventuários.
Problemas atuais da Psicologia com reflexos no Direito.
É clara a importância da Psicologia e seus reflexos no Direito.
Os reflexos atingem mais de um ramo do Direito, em especial no Direito
de Família do Direito Civil, a ponto de Rodrigo da Cunha Pereira (Direito de
família e psicanálise, in Psicanálise e Direito) afirmar que “o direito de família
é a tentativa de organização das relações de afeto, do desejo e das relações
econômicas aí envolvidas. E sobre as relações do Direito com a Psicanálise
sustentar que talvez possamos dizer que o Direito, para a Psicanálise, seja
mesmo uma avançada técnica de controle das pulsões”.
É que para conhecer a subjetividade do sujeito que atua no Direito temos
que buscar ajuda em outros campos do conhecimento, regra válida para todo
o intérprete do Direito, juízes, procuradores, professores e advogados. Ao
interpretar, o intérprete parte de uma pré-interpretação que sofre a influência
de toda a sua vida profissional marcada por episódios que ficam gravados em
seu inconsciente e que podem levá-lo a uma racionalização diversificada do
objeto interpretado, diferente de um para outro sujeito. Difere a intensidade
concorrente no ato interpretativo dos seus gigantes da alma como a vaidade
que o leva a não reconsiderar uma decisão, um memorial, um parecer, um
pleito jurídico reconhecidamente equivocado segundo os padrões do Direito,
o que o impede de voltar atrás para não se sentir ferido em sua personalidade,
o ódio, a simpatia, a antipatia, a raiva, a infelicidade, a ansiedade e outros
sentimentos, bem como não se excluem os distúrbios afetivos como a de­pressão,
as neuroses e o comportamento desajustado em geral.
A influência do psiquismo do Juiz na sentença é tema que já foi estudado,
entre outros, por Lídia Reis de Almeida Prado, em O juiz e a emoção nos seus
Revista ENM
241
variados aspectos: o papel criador do Juiz; as conquistas na construção de uma
nova compreensão do Direito; a influência das características psicológicas do
Juiz na sentença segundo Recaséns Sichez, Joaquim Dualde, Jerome Frank,
Miguel Reale e Renato Nalini, o arquétipo do Juiz e o arquétipo da Justiça.
Por arquétipo entende-se uma potencialidade inata de pensar, sentir ou
agir, que se transforma, na medida em que a consciência do ego se modifica no
decorrer da história. O arquétipo, ensina a autora, têm dois pólos, o homem que
reage arquetipicamente a alguma coisa ou a alguém quando se defronta com
uma situação recorrente e típica e outro sujeito, como o Juiz e o infrator que
está sendo julgado, surgindo nessa relação uma tensão entre essas polaridades.
6. Teoria psicológica do conflito
Se uma reivindicação do trabalhador é resistida pelo empregador contra
o qual é dirigida, surge um conflito de trabalho. O vocábulo conflito, de
conflictus, que significa combater, lutar, designa posições antagônicas. Outra
palavra usada é controvérsia. Segundo a teoria, surge uma controvérsia quando
alguém pretende a tutela do seu interesse, relativa à prestação do trabalho ou
seu regulamento, em contraste com interesses de outrem e quando este se opõe
mediante a lesão de um interesse ou mediante a contestação da pretensão,
mas é possível dizer que o conflito trabalhista é toda oposição ocasional de
interesses, pretensões ou atitudes entre um ou vários empresários, de uma
parte, e um ou mais trabalhadores a seu serviço, por outro lado, sempre que se
origine do trabalho e uma parte pretenda solução coativa sobre outra.
Os sociólogos dividem-se quanto ao estudo da sociedade e dos conflitos.
A sociologia dos conflitos sustenta a natureza conflitante dos grupos sociais
e a consequente impossibilidade da sua integração como modo natural
do desenvolvimento dos movimentos sociais e outra teoria, a sociologia da
integração, afirma que há um caráter integrativo dos conjuntos sociais, não
obstante a sua oposição, sendo possível uma ordem social sem conflitos.
Na infinidade de grupos existentes na sociedade, há diversos fatores
que atuam nestes e nas relações com outros grupos, como a solidariedade
de interesses materiais e espirituais, a interação, o predomínio dos laços
de aproximação sobre os motivos de afastamento, a consciência comum
unificante, a uniformidade de sentimentos, de modo que o que ocorre
dentro de um grupo pode, também, suceder nas relações entre as pessoas e
entre os grupos.
242
Revista ENM
O trabalho é um traço instituidor de um grupo como a atividade
econômica comum é outro. Os trabalhadores, como classe social, podem ter
interesses contrapostos aos dos empregadores, como segmento. O conflito de
classes existe. Mas a possibilidade de convivência, apesar da contraposição de
interesses, também. A experiência demonstra a impossibilidade de eliminação
de classes sociais. Basta haver de um lado governantes e, de outro lado,
governados para que duas classes sociais coexistam.
Conflitos trabalhistas, como são denominados aqueles que existem entre os
trabalhadores e os empregadores, eclodem em um conjunto de circunstâncias
fáticas, econômicas e outras, como a insatisfação com a própria condição,
pessoal, social ou profissional.
O conflito não é apenas a insatisfação com as condições de trabalho, mas,
também, a exteriorização dessa insatisfação, expressada como ruptura com o
modelo jurídico pondo em crise a relação de trabalho.
A ruptura não observa uma unidade de forma e, às vezes, tem a máxima
evidência, como na greve; outras vezes, a exteriorização é mínima, como o
pleito de novas condições de trabalho visando à negociação. Há conflitos
pacíficos e violentos. O encaminhamento de um dos dois modos depende
de uma série de fatores, não só dos trabalhadores como a ideologia de um
grupo sindical, como dos empregadores com a sua política mais aberta ou
fechada de receptividade ao diálogo e sensibilidade diante dos problemas do
trabalhador.
Assim, há aqueles que só acreditam no conflito como meio de exteriorizar
insatisfações e outros que não participam dessa convicção.
O conflito leva à reformulação, embora não seja a única forma de reformular
e em sua base está também um problema de produção de novos modelos
jurídicos, de estruturas normativas como unidades integrantes de um conjunto
fático-axiológico (Reale). A tensão de novos fatos e novas exigências rompe
uma determinada ordem que nunca se mantém imutável em um movimento
normativo contínuo de destruição e reconstrução em que se desenvolve
dialeticamente o direito e que não se completaria sem um ato decisório,
entendido como a manifestação da qual resulta a escolha, dentre várias opções,
a que for eleita, ou por imposição de um poder institucionalmente constituído
ou contratualmente assim investido, ou por convergência de consentimento
entre os conflitantes no exercício da autonomia da vontade ou por submissão
de uma parte às pressões ou maior organização da outra.
Revista ENM
243
Sendo assim, o conflito não é apenas um fenômeno de dimensões
sociológicas, mas, também, um fato jurídico estruturado em conjunto
com instrumentos criados pela cultura jurídica dos povos e incluídos nos
seus sistemas de organização normativa da sociedade, indispensáveis para o
equilíbrio da vida na sociedade e nas relações entre as pessoas e os grupos.
As empresas podem evitar processos judiciais na medida em que passem a
usar mais e melhor as técnicas da Psicologia aplicadas às relações de trabalho
que nelas se desenvolvem.
Lembro-me de um caso que me foi trazido por uma colega, professora
de Faculdade de Assistência Social. Um empregado era problemático. Criava
casos desnecessários e a empresa pretendia despedi-lo, mas queria saber como
deveria fazer para garantir-se contra o processo judicial. O empregado tinha
por volta de 50 anos, fazia a faxina das instalações sanitárias e ganhava pouco.
Li a sua Carteira de Trabalho e a sua função nela registrada: faxineiro.
Sugeri que a empresa alterasse a anotação da sua função registrada na
Carteira de Trabalho para Responsável pela Higiene do local e desse um pequeno
aumento de salário. Nem cogitei de saber se o nome sugerido para a mesma
função constava do Código Brasileiro de Ocupações. O que queríamos era
solucionar um problema. Minha sugestão foi aceita pela empresa. Deu certo:
um processo judicial a menos para a Justiça do Trabalho.
A Teoria Psicológica estuda o conflito numa dimensão mais ampla da que é
considerada pelo Direito ao examinar os aspectos psicossociais do conflito, as
concepções psicanalíticas, conflito e consciência, conflito e conduta, conflito
intrassubjetivo e intersubjetivo, o ego diante do conflito e tantos outros temas
da maior relevância para a correta compreensão do tema.
Davidoff, em Introdução à Psicanálise, mostra que a escolha de uma opção
em detrimento de outra causa a frustração, contribuindo para a decisão
fatores como o vigor dos conflitos, porque as metas despertadas por motivos
fortes exercem mais atração do que as que são excitadas por motivos fracos, à
distância no tempo e espaço das opções porque uma meta atrativa torna-se mais
forte à medida que a data do acontecimento se aproxima e as expectativas a
respeito das opções em conflito.
Sustenta que sob o prisma da Psicologia, frustração, conflito e outras
tensões estão associados a estados emocionais desagradáveis como a ansiedade
e a raiva. Quando as pessoas se controlam respondem de um modo que lhes
permita evitar, escapar ou reduzir sua aflição ao tratar de um determinado
244
Revista ENM
problema. Nossas decisões podem ser tomadas conscientemente ou sem
o percebermos.
Concluo que as causas dos conflitos não se identificam no plano da
Psicologia e do Direito. Neste as motivações que levam as pessoas ao conflito
são principalmente econômicas e morais, naquela as excitações que geram o
conflito são de ordem emocional. É possível que ambas as causas atuem em
conjunto, mas o que interessa à Psicologia são as reações subjetivo-psicológicas
das pessoas, o que difere do que interessa ao Direito. Este, no entanto, pode
valer-se com proveito dos conhecimentos da Psicologia, notadamente nos
conflito individuais, mais dificilmente nos conflitos coletivos nos quais além
das causas mencionadas pode ser acrescentada outra, a motivação política.
Outro tema da Psicologia Forense é o estudo da expressão dos sentimentos e
reações das partes em conflito.
7. Código de Ética da Magistratura Nacional
Ética é um dever de todos os que vivem numa sociedade civilizada, na
medida em que o seu fim é a criação de normas morais que devem inspirar o
comportamento das pessoas e permitir uma convivência saudável, de modo
espontâneo, já que as normas morais, ao contrário das jurídicas, são destituídas
de coação.
A magistratura nacional, fiel a essas premissas e reconhecendo a importância
da ética, elaborou um código denominado Código de Ética da Magistratura
Nacional (2008), aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça, que considerou
a adoção desse código necessária como instrumento essencial para os juízes
incrementarem a confiança da sociedade em sua autoridade moral. Cultivar
os princípios é, pois, uma função educativa e exemplar de cidadania em face
dos demais grupos sociais. O magistrado não pode ter um “procedimento
incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções” e é seu
dever “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular”.
O código dispõe sobre transparência, imparcialidade, integridade pessoal e
profissional, independência, diligência e dedicação, cortesia, prudência, sigilo
profissional, dignidade, honra e decoro. Cada um desses itens têm dispositivos
específicos no código, dos quais salientaremos apenas alguns.
Primeiro, a transparência como dever do magistrado de sempre que possível
dar publicidade aos seus atos, salvo nos casos de sigilo contemplado em lei. Deve
comportar-se de forma prudente em relação aos meios de comunicação social,
Revista ENM
245
abstendo-se de emitir opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou
de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos, sentenças ou acórdãos,
ressalvada a crítica nos autos, a crítica doutrinária e a do exercício de magistério.
Segundo, a imparcialidade que o obriga à procura da verdade dos fatos
mostrados pela prova e evitando todo o tipo de comportamento de favoritismo,
predisposição ou preconceito.
Terceiro, a integridade pessoal e profissional também fora do âmbito estrito da
atividade jurisdicional como meio de inspirar confiança nos jurisdicionados,
sendo que para esse fim na sua vida privada deve comportar-se de modo a
dignificar a função.
Quarto, a independência, o que significa que o único poderoso para o
Juiz deve ser o titular do direito e a única pressão que deve sofrer é a arterial
(Homero Diniz Gonçalves, ex-presidente do TRT de São Paulo).
Quinto, a diligência e a dedicação, zelando pela celeridade, rejeitando
iniciativas dilatórias e protelação processual.
Sexto, a cortesia, para com os colegas, os membros do Ministério Público,
os advogados, os servidores, as partes, as testemunhas e todos quantos se
relacionem com a administração da justiça, utilizando-se de linguagem polida,
respeitosa e compreensiva.
Sétimo, a prudência, que é a busca de comportamento e decisões que
resultem de um juízo justificado racionalmente após meditação e valoração dos
argumentos e contra-argumentos, sem deixar de considerar as consequências
que as suas decisões podem provocar.
Oitavo, o Sigilo Profissional, obrigando-se a manter absoluta reserva sobre
os dados ou fatos pessoais de que haja tomado conhecimento na sua atividade,
bem como o sigilo dos seus votos.
Nono, o Conhecimento e a Capacitação, que têm como fundamento o
direito dos jurisdicionados e da sociedade em geral à obtenção de um serviço
de qualidade na administração da justiça, bem como a obrigação de formação
contínua, mediante o estudo constante.
Décimo, Dignidade, Honra e Decoro vedado procedimento incompatível
com a dignidade, a honra de suas funções, o exercício de atividade empresarial,
salvo se acionista ou cotista e desde que não exerça o controle ou gerência.
246
Revista ENM
José Ernesto Lima Gonçalves
Professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV
Consultor da Fundação Getulio Vargas
Coordenador de projetos de consultoria para a modernização dos Tribunais
(TJSP, TRT 2a Região, TRT 12a Região, TRE-SP e TST)
1. Introdução
Muito se fala da demora da Justiça, que corresponde à espera pela
decisão nos processos judiciais. Mas existe uma segunda espera muito
importante, pois também gera insatisfação de quem precisa recorrer
aos locais físicos onde estão instaladas as unidades judiciárias. Muito
da imagem que é transmitida ou percebida pelo público com relação à
Justiça decorre exatamente desta segunda demora e está associada a um
atendimento muitas vezes prestado sem padronização geral do serviço
ou mesmo preparo técnico específico para o atendimento das solicitações
do público.
Em qualquer instituição de prestação de serviços, inclusive nos tribunais,
existem dois tipos de esperas por parte do público, bastante independentes
entre si: o tempo transcorrido para a execução das providências indispensáveis
para a efetivação do serviço solicitado e o tempo transcorrido para o
atendimento presencial a cada vez que as pessoas comparecem aos locais físicos
da instituição, seja para solicitar o serviço, para acompanhar o andamento das
providências ou para receber o que foi solicitado.
Partindo do princípio de que o público é a razão de existir de qualquer
instituição prestadora de serviço e, portanto, a razão dos tribunais existirem, é
razoável que essas instituições se preocupem em melhorar a forma de atender
a esse público. O assunto é do interesse de todos os tribunais.
Revista ENM
247
GESTÃO
AS DUAS DEMORAS DA
JUSTIÇA
A primeira demora da Justiça refere-se à execução das atividades, em geral
de retaguarda, quando um número muito grande de etapas deve ser cumprido,
distante fisicamente e independente da presença física do seu solicitante.
A realização dessas atividades envolve os deslocamentos de documentos
e de informações internamente pela estrutura da organização, a participação
de diversas pessoas e equipes e muitas vezes depende de trâmites e respostas
externas à organização.
Essa primeira demora, que chamamos de demora do processo de
trabalho, ocorre sempre que as atividades necessárias para o atendimento
forem executadas, seja no restaurante, seja no hospital, seja na oficina
mecânica. No caso dos tribunais, ela ocorre principalmente nos cartórios
e deve ser analisada para que sejam apresentadas soluções que otimizem o
funcionamento do processo de trabalho para a diminuição do tempo total
desse processo de trabalho1, ou seja, do trâmite do processo judicial. Este
tipo de demora tem sido objeto da atenção dos projetos de redesenho dos
processos de trabalho que, atualmente, estão sendo realizados nos órgãos
públicos e nas empresas privadas.2
Essa demora não é claramente entendida pelo público que sente os seus
reflexos e consequências, mas não tem contato direto com os mecanismos
internos da Justiça nem com as pessoas que a representam. Essa demora é
interna, invisível, com motivos muitas vezes imperceptíveis pelo público.
Aliás, a percepção da demora, a provável distinção entre a espera tolerável
e a espera inaceitável pela execução das tarefas, certamente tem relação com
a informação disponível a quem espera a respeito das atividades a serem
realizadas e do tempo de duração previsto para a execução dessas atividades.
Já a segunda demora da Justiça ocorre em cada uma das diversas vezes que
as pessoas se dirigem às unidades judiciárias.
No caso do Tribunal3, o público enfrenta esperas quando comparece
às audiências, para entregar documentos solicitados, para acompanhar o
A duração total do processo de trabalho corresponde ao “tempo de ciclo”, que é a demora percebida pelo
cliente.
2
A abordagem conceitual do assunto pode ser encontrada nos artigos “As empresas são grandes coleções de
processos” e “Processo, que processo ?”, publicados na Revista de Administração de Empresas, São Paulo,
2000.
3
Neste documento, Tribunal se refere ao conjunto integrado das unidades judiciárias que atuam numa dada
jurisdição. Assim, o Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região corresponde, para efeito desta discussão,
ao conjunto formado pelas 1a e 2a Instâncias da Justiça Trabalhista na região da Grande São Paulo e Baixada
Santista, mais a correspondente área administrativa.
1
248
Revista ENM
andamento do processo judicial ou para conhecer os resultados do processo.
O público também espera pelo atendimento às solicitações em situações
que não têm relação obrigatória com o andamento de processos judiciais,
como, por exemplo, para receber as certidões que solicitou, para obter as
autorizações de viagem ou para casamento de menor. Podemos dizer que o
solicitante dos serviços percebe demora quando perde tempo indo de um
local a outro, quando as providências poderiam ser tomadas todas no mesmo
local. Esta segunda demora geralmente ocorre fora dos cartórios judiciais,
principalmente nos corredores dos fóruns. Este artigo se concentra na segunda
demora da Justiça.
2. Os elementos do atendimento ao público
A abordagem da demora no atendimento ao público que comparece às
unidades onde os serviços são prestados exige falar sobre:4 as filas de pessoas
em espera e o tratamento dessas filas; a entrega efetiva do serviço frente à
expectativa do usuário sobre o retorno da sua solicitação; a acomodação física
das pessoas para a espera do atendimento e outros itens ligados ao conforto do
público; as alternativas para solicitação e recebimento do serviço, que possam
dispensar ou simplificar o comparecimento pessoal; e a informação prestada
ao usuário quando ele solicita um serviço.
A segunda demora tem relação com a necessidade de orientação do público
leigo que se apresenta às unidades judiciárias, sobre como proceder, para onde
se dirigir, que documentação preparar e apresentar em cada situação.
Os estudos de otimização de rotinas e de redesenho de processos de
trabalho são muito utilizados para aperfeiçoar a lógica da execução das tarefas
necessárias, mas não costumam levar em consideração as demoras para que
o interessado seja atendido, para ele receber uma resposta correta para a
pergunta que faz em cada local por onde passa ou para resolver o que o fez
se dirigir até o local indicado. Muitas vezes também não levam em conta o
deslocamento do cliente de um local a outro para que possa percorrer todas as
estações envolvidas no processo de atendimento.5
4
Para tratamento mais sistemático e completo do assunto, referir-se a GONÇALVES, José Ernesto Lima
(coordenador) Atendimento ao Público na Prestação de Serviços, Cadernos FGV Projetos no 5, Fundação
Getulio Vargas, 2007.
5
O fluxo de atendimento, chamado de “caminho do cidadão”, corresponde ao trajeto que o público realiza,
desde que ele apresenta uma necessidade, passando por todos os pontos de atendimento, até a realização
completa de todas as etapas para o atendimento da sua solicitação.
Revista ENM
249
A segunda demora da Justiça pode ter impacto muito menor no desconforto
do cidadão, já que depende diretamente de ações que podem ser planejadas
pela Justiça. As medidas que devem ser tomadas referem-se à padronização
do atendimento, à preocupação com o conforto das pessoas e à utilização
de conceitos de orientação especializada e informações uniformes, com a
introdução de conceitos de:
a) triagens específicas das pessoas para os serviços prestados;
b) divulgação da informação sobre as condições e requisitos a serem preenchidos,
documentos a serem oferecidos, locais e prazos de solicitação e de entrega;
c) esclarecimento de dúvidas do público, tanto no local de prestação do
serviço como por meio dos diversos canais de comunicação; e
d) utilização de linguagem clara, objetiva e simples que atinja todos os
níveis de conhecimento que o público possa ter com relação aos serviços
prestados pelos tribunais.
As diferentes demandas do público devem ser analisadas e o seu atendimento
deve ser planejado. O Tribunal precisa ter procedimentos únicos, homogêneos
e padronizados para o tratamento dessas demandas. Os assuntos da Justiça,
assim como o de outras prestadoras de serviço público ou privado, têm e devem
ter um padrão de funcionamento, uma lógica de operação, uma sequência
de atividades, segundo regras e critérios da Instituição para o atendimento
das necessidades do seu público-cliente. Esse conjunto de definições deve ser
adequado às necessidades, possibilidades e expectativas desse público.
Uma das formas de se olhar para uma instituição é através dos serviços
prestados por ela ao seu público. Esse público não deve precisar entender nada
da estrutura e da organização da instituição para poder ser bem atendido nas
suas demandas. Esta abordagem reforça a importância do pessoal de linha de
frente, que é quem recebe o público diretamente.
Para que o serviço seja realizado existem regras e deveres dos dois lados,
do público-cliente e da Instituição. Essas regras devem ser claras e conhecidas,
bem como devem ser criados mecanismos para divulgá-las, seja em forma de
sinalização, folhetos, Internet, telefone, equipamentos de auto-atendimento
ou outros meios. Mas, o imprescindível é que elas sejam do conhecimento do
público que solicita os serviços nessa Instituição.
O público tem contato direto com os tribunais durante a prestação de
serviços jurisdicionais em diversos momentos ao longo do andamento do
processo judicial:
250
Revista ENM
a) o interessado busca orientação inicial para uma situação específica da
sua vida que demanda uma solução judicial;
b) o interessado toma as providências iniciais que foram solicitadas pelo
Poder Judiciário;
c) o interessado participa de ações intermediárias de todo o tipo (audiências,
conciliações, apresentação de documentos ao longo do processo etc);
d) o interessado obtém informações sobre o andamento das providências
solicitadas;
e) e o interessado recebe o resultado final, conforme solicitado inicialmente.
O público também entra em contato com as unidades judiciárias quando
precisa de algum das outras dezenas de serviços prestados pelo Tribunal e
que não tem necessariamente relação com processos judiciais: a obtenção de
autorizações de viagem, de certidões de vários tipos, de definições sobre pensão
alimentícia ou de informações sobre tempo restante de pena a ser cumprida.6
Em cada uma dessas situações, ocorre a relação cliente-prestador de serviço e a
oportunidade de ser aperfeiçoado o atendimento ao público.
Desta forma, fica muito ampliado o conceito de serviço nos tribunais, que vai
muito além da tramitação do processo judicial. A imagem do Tribunal depende de
muitos outros aspectos, além da demora na obtenção de uma resposta na tramitação
do processo e é responsabilidade da administração da Instituição tomar todas as
providências que forem necessárias para aperfeiçoar os demais serviços oferecidos.
Uma pergunta que sempre pode ser feita aos servidores públicos envolvidos
nessas situações é com relação à atenção que tem sido dada à qualidade do
atendimento ao público. Trata-se de questão de resposta difícil pelo simples
fato de que, na maioria dos órgãos públicos, não existe propriamente
familiaridade com o assunto, o que leva a que ele dificilmente tenha alguma
importância ou que receba alguma prioridade por parte da administração. Na
maioria das vezes, o que se vê são iniciativas pontuais, fruto da boa vontade
e da improvisação, de pouquíssima eficácia. É difícil até mesmo obter dados
estatísticos básicos sobre o atendimento prestado.
Provavelmente é impossível de eliminar a segunda demora da Justiça,
como não se pode pretender eliminar a primeira. Mas é possível, sim, procurar
reduzir essa demora e o desconforto que ela causa e este é o desafio presente.
Um levantamento realizado em 2007 no Tribunal de Justiça de São Paulo identificou mais de 80 serviços
deste tipo prestados pelo Tribunal.
6
Revista ENM
251
3. Os tipos de atendimento ao público
O atendimento ao público pode ser presencial, remoto ou por
autosserviço. Cada uma dessas alternativas se aplica melhor a determinados
serviços jurisdicionais e conforme o perfil do público ou especialidade
do processo judicial, como no caso das atividades que exigem a presença
física do interessado ou da emissão de certidões, que pode ser feita por
autosserviço.
A utilização maior ou diferente de recursos de informática para a integração
dos interessados ao processo de trabalho deverá provocar profundas mudanças,
por exemplo, no padrão de comparecimento do público, no andamento dos
processos judiciais e em outros serviços a serem identificados na etapa de
revisão dos processos de trabalho do Tribunal.
Um número grande de demandas que poderiam ser resolvidas de forma
remota acaba congestionando o atendimento presencial, que deveria ser
focado nas demandas que não têm como ser atendidas sem a presença do
envolvido. Deve-se considerar que o comparecimento do público quando
não estritamente necessário provoca a necessidade de destinar espaço físico,
deslocar servidores para o atendimento e se preocupar com todos os aspectos
relativos ao conforto e à segurança de quem comparece. Esse deslocamento
de recursos termina por comprometer a execução de todos os serviços em
execução na unidade.
O agendamento do atendimento é uma técnica bastante utilizada, para
no caso de solicitação de serviços que requeiram a presença do interessado
e não tenham caráter de urgência A opção pelo autosserviço é cada vez
mais comum a todos os que operam com bancos e pode ser oferecida,
quando possível, nos casos que não dependam de análise para decisões
para o atendimento.
Como exemplos de serviços em que o público desnecessariamente entra
em contato direto com os locais de atendimento presencial temos: dúvidas
sobre recebimento de direitos trabalhistas, cálculos de direitos trabalhistas,
atermação de processo trabalhista, tirar dúvidas sobre a forma de conduta em
uma audiência para a qual foi intimado, solicitação de pedido de alimentos,
solicitação de uma certidão cível, orientação sobre a forma e viabilidade de
adoção de uma criança, denúncia de maus tratos de menor etc. Muitas dessas
atividades poderiam ser resolvidas satisfatoriamente sem o comparecimento
do público nas unidades judiciárias.
252
Revista ENM
O grande desafio de oferecer a orientação e a informação é estar perto dos
locais onde o público precisa de ajuda. É também entender a solicitação e a
linguagem desse público, de forma a auxiliá-lo para a solução correta da sua
solicitação, sem necessidade de idas e vindas desnecessárias.
Um dos mais importantes parâmetros para o aperfeiçoamento do
atendi­mento corresponde ao volume de público a ser atendido: soluções
aceitáveis para atender a pequeno número de pessoas muito dificilmente
será a solução adequada para grandes volumes de público. Precisamos
lembrar que o número de pessoas atendidas numa Vara Judicial pode
variar de algumas por dia a várias centenas no mesmo período. A unidade
de emissão de certidões da Comarca de São Paulo, por exemplo, atende
entre 1.200 e 1.400 pessoas por dia e emite aproximadamente 2.400
certidões por dia. Todas as características dessa unidade, equipe, recursos
de informática, lay-out, lógica de atendimento, procedimentos, tudo
precisa ser muito específico e diferente das de uma unidade que atenda a
apenas algumas pessoas por dia.
Quando se trata de unidades judiciais que recebem quantidades muito
grandes de solicitações de todos os tipos, são necessárias soluções adequadas
para o tratamento de volumes industriais. Em certos tribunais, temos varas
com 10.000 a 150.000 processos judiciais cada uma, milhares de certidões
emitidas por dia e milhares de pessoas interessadas em licenças, negociação
de pensão alimentícia. Nestas circunstâncias, é impossível obter tempos de
espera razoavelmente pequenos com técnicas e processos de trabalho típicos
de unidades judiciais pequenas.7
4. Como aperfeiçoar o atendimento ao público
Algumas ações concretas podem ser adotadas para otimizar o atendimento
ao público, diminuindo, portanto, a demora do atendimento, especialmente
o presencial, nos tribunais:8
Possibilitar que vários serviços do Judiciário possam oferecer informações
e/ou receber solicitações nos mesmos espaços, facilitando a compreensão e a
movimentação do público nos Fóruns;9
7
Quanto mais oferecer, de forma contínua e consistente, tempo de razoável duração do processo, como
prevê a Constituição Federal, em função da EC 45 de 2004.
8
O caso mais marcante de aplicação destas ações é o do Poupatempo, do Governo de São Paulo, que se
tornou padrão e referência no assunto, graças aos resultados alcançados.
9
A ideia é aplicar intensamente o conceito do single point of contact.
Revista ENM
253
Permitir que a requisição de um serviço ou informação, sempre que
possível, possa ser feita em qualquer Fórum, sem vinculação ao local de início
do processo ou de local de moradia do público solicitante;
Orientar a criação de alternativas de atendimento para aqueles serviços, ou
etapas de serviços, que não necessitem do atendimento presencial, podendo
ter como opções o atendimento via telefone, Internet ou autoatendimento. A
ênfase fica colocada, desta forma, em melhorar ao máximo possível as condições
de interação pessoal quando ela for necessária e indispensável; promover a
uniformidade de conhecimento sobre os serviços do Tribunal, tanto para o
público como para seus servidores; orientar a criação de estrutura própria para a
gestão e manutenção da prestação do serviço, envolvendo a manutenção constante
da infraestrutura, da capacitação dos servidores e da divulgação da informação;
consolidar o conhecimento das necessidades e características do seu público como
base para a melhora no atendimento; criar as unidades executoras das tarefas
internas não relacionadas ao processo de trabalho e, que aparentemente não são
voltadas ao público, mas que fazem parte do suporte ao atendimento.
Outros pontos que devem ser observados na prestação de serviço para
simplificar o funcionamento das unidades de atendimento e diminuir a
demora pelo resultado:10 obedecer aos critérios da simplicidade, objetividade
e segurança das informações prestadas ao público a respeito dos serviços
prestados; acolher, orientar e informar o público sobre os requisitos necessários
para a obtenção dos serviços disponíveis; diversificar a forma de prestação de
informações, utilizando-se de todas as ferramentas novas (totens, Internet,
etc.) ou antigas (faixas, cartazes, sinalização interna, etc); dar atendimento
sem privilégios e sem discriminação, buscando adequação do horário
de atendimento às necessidades do seu público; ampliar a divulgação, o
conhecimento e o acesso do público às informações e aos serviços do Judiciário
de forma clara, com vocabulário acessível; tornar polivalentes o atendimento e
os atendentes, sempre buscando oferecer maior responsabilidade, informação
e capacitação para as pessoas que realizam as atividades que envolvem a entrega
do serviço ao público; e implantar padrão único para a prestação do serviço e
atendimento ao público nas diversas Unidades do Tribunal.11
Ver GONÇALVES, José Ernesto Lima (coordenador) Atendimento ao Público na Prestação de Serviços,
Cadernos FGV Projetos no 5, Fundação Getulio Vargas, 2007.
11
O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, adotou o padrão do Poupatempo como referência para
a prestação de serviços nas suas unidades judiciais.
10
254
Revista ENM
5. O tratamento das filas de espera
Outro aspecto da segunda demora, que pode ser um dos fatores que definem
a imagem de um local de atendimento, é a fila de espera para o atendimento.
As filas de espera acontecem todas as vezes que o número de pessoas
interessadas no serviço é maior do que a capacidade de atendimento no mesmo
período de tempo. Elas são observadas em praticamente todas as instalações
judiciárias, em todos os períodos do dia. Imaginando-se que as chegadas sejam
aleatórias e que o ritmo médio de atendimento seja da mesma ordem de grandeza,
corre-se o risco de termos filas infinitamente crescentes. Algumas características
não intuitivas do funcionamento das filas de espera fazem com que o tratamento
adequado do assunto requeira o apoio técnico de especialistas.12
A fila de espera deve ter tratamento específico em função do local,
dos tipos de serviços prestados e do perfil de público. Temos observado o
comportamento das filas e desenvolvido tratamentos específicos há mais
de dez anos e percebemos que a avaliação que o público faz do tempo de
espera, seja ele curto ou longo, depende muito da percepção e da expectativa
de cada indivíduo. Por sua vez, a expectativa das pessoas depende muito da
informação recebida a respeito dos prazos e condições de espera considerados
mais frequentes.
Alguns pontos de desconforto na fila de espera, além do tempo de espera
propriamente dito, são: a falta de informação sobre o tempo de espera estimado
e sobre o que está acontecendo com o atendimento; a falta de alternativas para
a espera, como por exemplo, poder sair do local e voltar mais tarde com a
garantia do atendimento; a falta de regras claras, abrangentes e adequadas para
o funcionamento da fila e para o atendimento de quem está em espera; a falta
de instalações e de infraestrutura adequadas para a espera, com informações
constantes, entretenimento (leitura, programas de vídeo etc).
Alguns fatores podem colaborar de maneira eficaz para mitigar o desconforto
da espera nos locais de volumosa presença de público. É fácil de imaginar que
as varas de Infância e Juventude sejam corriqueiramente visitadas por senhoras
com crianças de colo e que bancos e sanitários disponíveis sejam necessidades
usuais. Na mesma sequência de raciocínio, pode-se supor que é obrigatório
que os detidos e apenados que tenham que comparecer às varas criminais para
depoimento não se desloquem pelo meio do público presente nos corredores.
12
Ver, por exemplo, FITZSIMMONS, James e outro Administração de serviços, Bookman, Porto Alegre, 2004
Revista ENM
255
A análise da distribuição das chegadas do público ao longo dia pode sugerir
alterações substanciais na distribuição do pessoal encarregado do atendimento.
Esta técnica, chamada de alocação dinâmica de recursos, reforça a linha de
frente nos períodos de maior afluxo de pessoas e redireciona esses recursos para
a retaguarda ou para outras tarefas nos demais períodos do dia.
É comum encontrar unidades judiciais que não possuem registro nem
conhecimento do número de pessoas que as procuram a cada dia. Nestas
condições, é de se imaginar que não são tomadas providências objetivas para
adequar o tratamento dado à quantidade das pessoas que comparecem.
6. Providências que estão sendo tomadas
Uma das maiores dificuldades para a efetiva redução da segunda demora
reside na resistência, previsível e observada por parte dos responsáveis,
pelas decisões que poderiam levar a novas e melhores situações. O
aperfeiçoamento do atendimento ao público e a perceptível redução da
segunda espera dependem da mudança de hábitos dos servidores, da troca
de procedimentos tradicionais, do redirecionamento de recursos de todos
os tipos e da requalificação do quadro de servidores. Não são atividades
de fácil implementação e não bastam ordens internas e outros mecanismos
puramente burocráticos.
Ainda assim, o Poder Judiciário tem realizado ações específicas com o
objetivo de melhorar o atendimento ao público, além dos esforços estruturais
destinados a fazer com que ele possa funcionar melhor e mais rapidamente.
Modificações realizadas pelos tribunais regionais do Trabalho na interface com
seus usuários e a criação de juizados virtuais pela Justiça Federal são iniciativas
concretas que já estão surtindo efeito.
A importância da segunda demora da Justiça já é percebida em diversos
grupos de pessoas e provocou a alteração do escopo do contrato do Tribunal
de Justiça de São Paulo com a FGV no início de 2006 para incluir o foco
no atendimento ao público, já que é conhecida a necessidade de atender às
necessidades e situações específicas de vida do público que procura as unidades
judiciais e, portanto, não é só a celeridade no trâmite processual que deve
ser considerada nos estudos de novas maneiras de trabalhar para prestar os
serviços jurisdicionais.
Durante a execução do projeto de aperfeiçoamento do atendimento
público, foi estimado que os 660 edifícios utilizados pelo Tribunal de Justiça
256
Revista ENM
de São Paulo recebem aproximadamente 90 milhões de visitantes todos os
anos. Estão incluídos nesta estimativa tanto o público profissional como o
público comum. O público profissional, formado pelos advogados e auxiliares,
conhece o funcionamento do Tribunal e está familiarizado com as rotinas do
órgão. Já o público comum, leigo nesses assuntos, necessita de informações
básicas sobre todos os aspectos do funcionamento do Tribunal e geralmente
está constrangido e desorientado quando comparece.
Com o aperfeiçoamento dos processos de trabalho e a observação
sistemática dos resultados obtidos em termos de atendimento ao público, é
possível ir melhorando a previsibilidade da hora do atendimento, se cumpridas
as exigências do procedimento. Quanto melhor for o conhecimento sobre
o funcionamento dos processos de trabalho relativos aos serviços prestados,
menor é a ansiedade do público e dos próprios servidores, o que leva à redução
do stress dos servidores, da ansiedade do cidadão e da consequente pressão
sobre o servidor e ao controle da gestão sobre o servidor.
O aperfeiçoamento do funcionamento dos tribunais, sob o ponto de vista
que está sendo discutido neste documento, virá com a redução substancial das
duas demoras aqui mencionadas. A adoção de indicadores de desempenho
institucionais, como técnica básica para a gestão dos tribunais, poderá ajudar cada
um deles a acompanhar a evolução da sua melhora no tocante a este aspecto, entre
outros. Esses indicadores de desempenho podem servir como base para a tomada
de decisão para possibilitar expressiva melhora nos resultados dos órgãos públicos,
pois o seu emprego permite o monitoramento das áreas críticas de resultado.13
Para o Tribunal de Justiça de São Paulo foi desenvolvido um Modelo de Atendimento ao Público14 que está sendo implantado gradativamente nas suas unidades
judiciárias. Um dos resultados esperados é a diminuição dessa segunda demora.15
Para maiores detalhes ver GONÇALVES, José Ernesto Lima e outro A utilização de indicadores de
desempenho para tomada de decisão em órgãos públicos prestadores de serviços in GONÇALVES, José
Ernesto Lima (coordenador) A construção do novo Tribunal de Justiça de São Paulo, Fundação Getulio
Vargas, São Paulo, 2007
14
Este modelo está apresentado de forma detalhada em GONÇALVES, José Ernesto Lima (coordenador)
A construção do novo Tribunal de Justiça de São Paulo, Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2007
15
Artigo baseado no documento As duas demoras da Justiça, de autoria dos Prof. José Ernesto Lima
Gonçalves e Vera Lucia de Oliveira, consultores da Fundação Getulio Vargas, publicado em Buscando uma
nova organização judiciária, Documento Técnico 1, 2007
13
Revista ENM
257
Gestão
AUTONOMIA FINANCEIRA
DOS TRIBUNAIS E GESTÃO
ORÇAMENTÁRIA EFICIENTE –
EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL
Luiz Felipe Siegert Schuch
Mestre em Ciência Jurídica. Pós-graduado pela Escola Superior da Magistratura do Estado
de Santa Catarina. Professor da Escola Superior da Magistratura e da Academia Judicial do
Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Professor convidado do Curso de Pós-Graduação da
Fundação Universidade Regional de Blumenau. Juiz de Direito. Autor das obras “Acesso à
Justiça e Autonomia Financeira do Poder Judiciário: a quarta onda?” e “Dano Moral Imoral:
o abuso à luz da doutrina e jurisprudência”
1. Considerações preliminares – As reformas constitucionais e o
novo Judiciário
Vivemos em tempos de reformas sociais, políticas e institucionais.
Encontramo-nos no epicentro de um processo acelerado de mutações na
história da humanidade.
A globalização das informações, das culturas e dos mercados financeiros
se processa de forma real e “virtual”, na velocidade de um simples toque no
teclado de um computador. Para onde estamos indo? Quais os produtos e
subprodutos das modificações que hoje estamos a introduzir nas estruturas da
sociedade? Qual o nosso legado para as gerações que virão?
No Brasil, se é certo afirmar a existência de um processo contínuo de
mudanças político-econômicas e institucionais, não menos certo é advertir
que eventuais alterações devem ser pautadas em obediência aos princípios
fundantes da sociedade nacional, encimados na Carta Política de 1988,
respeitando-se as liberdades individuais tão duramente conquistadas por
258
Revista ENM
aqueles que nos precederam, por vezes com o sacrifício de vidas humanas.
Oportuno recordar as lições da história da humanidade e o exemplo da
Roma antiga, onde a lei já permitiu matar qualquer homem que almejasse ser
rei; ou o pensamento da Antiguidade, segundo o qual o direito, a justiça, a
moral, e tudo o mais, deveria ceder diante do interesse da pátria1, argumento
este perigosíssimo, ainda hoje utilizado para legitimar o ilegítimo.
Assim, seja qual for a reforma imaginada pelo legislador constitucional,
através de um processo de revisão ou de emenda, haverá de respeitar,
sempre, as regras estabelecidas pelo constituinte originário como elementos
fundamentais, seja na estruturação organizacional do Estado, seja no âmbito
das tutelas erigidas em favor da própria sociedade. O poder constituinte
derivado2, na clássica divisão de Sieyès, encontra limites, como assinalam
Celso Ribeiro Bastos3 e Pinto Ferreira4.
Igual raciocínio se aplica em relação aos Direitos Fundamentais do cidadão,
portadores de um “conteúdo essencial” concebido como limite à atividade
legislativa, uma fronteira que o legislador não pode ultrapassar na regulação
ou limitação dessa categoria especial e constitucional de direitos, sob pena de
invadir espaço proibido, gerador de inconstitucionalidade5.
Nesse contexto, especialmente em relação ao Poder Judiciário, desde o início
das anunciadas “reformas”, grandes foram as preocupações sobre o seu conteúdo e
extensão, diante das forças vivas da sociedade inseridas no processo de mudança.
O temor maior, para muitos, residia na falta de consciência da importância
desempenhada pela instituição judiciária na sobrevivência sadia da democracia,
o que colocava em risco toda a ordem jurídica.
Destacou Silvio Dobrowolsky, em meio à turbulência reformista, a
necessidade de se “arrostar a má vontade dos outros Poderes estatais e de setores
dos poderes sociais, que buscam, a todo custo, alcançar resultados favoráveis
em sua atuação, ainda que para isso tenham de pisotear a lei e os direitos.
Conforme noticia Fustel de Coulanges [1999, p. 194].
Na definição de Ferreira Filho, “o Poder Constituinte de revisão é aquele poder inerente à Constituição
rígida que se destina a modificar essa Constituição segundo o que ela estabelece. Na verdade, o Poder
Constituinte de revisão visa, em última análise, a permitir a mudança da Constituição, a adaptação da
Constituição a novas necessidades, a novos impulsos, a novas forças, sem que para tanto seja preciso recorrer
à revolução, sem que seja preciso recorrer ao Poder Constituinte originário”. FERREIRA FILHO, Manoel
Gonçalves. O poder constituinte, p. 124. No mesmo sentido, observa-se a lição de Canotilho [2002, p.
1044].
3
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 34.
4
FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional, p. 607.
5
LOPES, Ana Maria D’Ávila. Os direitos fundamentais como limites ao poder de legislar, p. 188.
1
2
Revista ENM
259
Compreendem-se, assim, os constantes ataques à independência judicial,
orquestrados através dos meios de comunicação social, buscando destruíla, a fim de transformar a Justiça em mero instrumento dos detentores de
poder. A luta democrática, de momento, é preservar essa autonomia do Poder
Judiciário, por sua ligação com a garantia dos direitos e, por isso mesmo, com
a defesa da dignidade do homem e da Constituição”6.
Depois de longos anos de debates e embates, que atravessaram uma década
e navegaram entre maiorias ideológicas e políticas diversas, veio a lume a
“Reforma do Poder Judiciário”, condensada na Emenda Constitucional n. 45,
de 8 de dezembro de 2004.
Diante das mudanças e inovações introduzidas na estrutura e no funcionamento desse Poder da República, os temores maiores se dissiparam. O Judiciário
não foi mutilado conforme se anunciara.
Mas a onda reformista permanece, apenas com o eixo deslocado do ambiente
constitucional, voltando-se agora para as mudanças infraconstitucionais necessárias
à implementação das novas diretrizes inseridas na Constituição Federal.
O saldo desse movimento contínuo, se positivo ou negativo, o tempo se
encarregará de dizer.
De todo modo, a constatação imediata indica que o Judiciário “pósreforma” não é mais o mesmo. Ganhou em transparência, visibilidade e
necessita agora ajustar o rumo e o prumo em busca da eficiência para atender
ao crescente clamor social por Justiça. Este, sem dúvida, é um caminho sem
volta.
Enquanto as reformas sociais, as reformas política e tributária, todas tão
urgentes e aguardadas pela sociedade brasileira, ainda se encontram em grande
parte no plano das promessas, das boas intenções, a Reforma do Judiciário,
ao contrário, vem se materializando não apenas no plano normativo,
constitucional e infraconstitucional, mas gradativamente vem operando
importante mudança na mentalidade dos operadores do Direito, resultando
desse conjunto um processo construtivo permanente de um novo modelo.
O Poder Judiciário de hoje está aprendendo a trabalhar com dados estatísticos,
a gerar esses dados, interpretá-los e utilizá-los no plano administrativo, visando a
qualidade das decisões gerenciais, dada a compreensão dos seus reflexos diretos
na eficiência da atividade-fim – a jurisdição.
6
DOBROWOLSKY, Silvio (org). A constituição no mundo globalizado, p. 315.
260
Revista ENM
A administração baseada no empirismo, no improviso, na eventual
habilidade inata do administrador do momento, não mais se coaduna com o
modelo de eficiência que se pretende edificar e, por conta disso, ganha força a
tese das eleições diretas para os órgãos diretivos dos tribunais.
De sua vez, a revolução tecnológica alcançou o Judiciário como um todo e,
rapidamente, estamos passando da máquina de escrever para o processo virtual.
O potencial da informática aplicado à atividade jurisdicional venceu
medos, rompeu barreiras, deixando para trás o tempo em que o computador
servia apenas como uma máquina de escrever qualificada.
Enfim, o fato é que todo este conjunto de mudanças, reformas e alterações
tem um sentido, uma finalidade, um objetivo constitucional a atingir:
reconstruir um Judiciário renovado, capaz de conferir eficácia aos direitos
fundamentais, dentre eles o Acesso à Justiça e a Duração Razoável do Processo
(art. 5o, CRFB/88), os quais, em última instância, consagram verdadeira
garantia de respeito aos demais direitos fundamentais.
Vale lembrar que, para alcançar esse desiderato, a Constituição Federal
vigente garantiu ao Poder Judiciário Independência e Autonomia, destacandose aqui o princípio da Autonomia Financeira (art. 99, CRFB/88).
Na quadra atual, entretanto, não basta apenas proclamar e exigir o
cumprimento desse instituto garantidor de independência institucional.
Imperioso que o Judiciário, paralelamente, avance para combinar esse
preceito (Autonomia Financeira) com outro importante mandamento
constitucional – o Princípio da Eficiência, consagrado no art. 37 da Carta
Política em vigor, conceituado, na lição de Alexandre de Moraes, como
aquele que “impõe à Administração Pública direta e indireta e a seus agentes
a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de
forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e
sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e
morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de
maneira a evitar desperdícios e garantir uma maior rentabilidade social”7.
Nessa combinação reside um novo desafio para o Judiciário da modernidade,
ou pós-modernidade8, preferindo designá-lo de “contemporâneo”, cujos
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. p. 822.
Cabe aqui registrar a discussão acadêmica sobre “modernidade” ou “pós-modernidade”, sendo esta última,
se existente, a sustentação do direito constitucional pós-moderno ou neoconstitucionalismo. O tema
refoge ao objetivo deste trabalho, razão pela qual deixamos de aprofundar o assunto. Relevante, entretanto,
7
8
Revista ENM
261
contornos adiante pretendemos traçar, obviamente sem a pretensão de esgotar
tema tão complexo e multifacetado neste limitado espaço, e permitindo-se
certa liberdade quanto ao rigor científico no tratamento da matéria.
Como primeiro passo dessa jornada que se inicia, necessário estabelecer
algumas premissas teóricas para a melhor compreensão do tema central deste
trabalho.
2. O Estado e o princípio da tripartição dos poderes – Um
modelo em constante reafirmação
O Estado, bem sabemos, não surgiu do acaso e resulta de um longo processo
de transformação social e política, conforme doutrina Paulo Márcio Cruz9.
Assim também entende Celso Ribeiro Bastos10, ao afirmar que “o Estado
– entendido portanto como uma forma específica da Sociedade política – é o
resultado de uma longa evolução na maneira de organização do poder”11.
Modernamente, podemos conceituá-lo, conforme Ferreira Filho12, como “uma
associação humana (povo), radicada em base espacial (território), que vive sob o
comando de uma autoridade (poder) não sujeita a qualquer outra (soberania)”,
com o que concordam Pontes de Miranda13, Cruz14, Bonavides15 e Canotilho16.
Não se pode olvidar, contudo, que o exercício do poder estatal sempre foi
motivo de acirradas disputas, diante da imensa gama de interesses em jogo em
qualquer sociedade, daí porque, ao longo da história, o Estado sofreu profundas
ao menos referir a existência de duas posições interessantes, antagônicas, sustentadas por conhecidos
doutrinadores nacionais: I – em defesa da existência do direito constitucional pós-moderno – conferir
artigo do Prof. Luís Roberto Barroso: “Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional
brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo)”. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ –
Centro de Atualização Jurídica, v. I, no 6, setembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.
com.br>. Acesso em: agosto 2011; II – refutando a existência de um direito constitucional pós-moderno
e o neoconstitucionalismo – conferir artigo do Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “Notas sobre o
direito constitucional pós-moderno, em particular sobre certo neoconstitucionalismo à brasileira”. Revista
de Ciências Jurídicas e Econômicas, v. 2, n. 1, p. 101-118, 2010. Disponível em: <http://revistasystemas.
com.br/index.php/systemas/article/view/29>. Acesso em: 2.9.2011.
9
CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia e estado contemporâneo, p. 61. Sobre a evolução histórica
do Poder e os modelos históricos de organização política da Sociedade (Sociedade acéfala ou tribal, cidade
Estado, império burocrático, Sociedade feudal e Estado), recomenda-se a leitura das páginas 64-74 da obra
ora referenciada.
10
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 05.
11
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 05.
12
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 47.
13
MIRANDA, Pontes de. Comentários à constituição de 1946, p. 234.
14
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos de direito constitucional, p. 43.
15
BONAVIDES, Paulo. Ciência política, p. 67.
16
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 89-90.
262
Revista ENM
alterações na sua forma de organização política, processo contínuo e que
permanece ativo ainda hoje, na medida da intensidade das forças antagônicas
(políticas, econômicas e sociais) envolvidas em determinado tempo e lugar.
Nesse processo histórico de construção e afirmação do Estado, os abusos,
as arbitrariedades, o desrespeito aos mais elementares direitos dos cidadãos,
a própria “ausência” de direitos do povo em relação ao Estado, as práticas
semidespóticas e o excessivo poder político nas mãos de uma ou poucas
pessoas, acabaram por criar condições para o surgimento do Estado Moderno,
o qual trouxe consigo, como uma das suas características básicas, o Princípio
da Separação dos Poderes17.
É a partir do Estado Moderno18, portanto, que se pode identificar com
nitidez a adoção em sua estrutura do referido princípio, por intermédio do
qual mantendo-se a unidade do Estado se buscou dividir as três funções
estatais elementares19 como forma de evitar os abusos de outrora.
Devemos lembrar, contudo, que a existência de pelo menos três funções
estatais básicas e distintas não era algo desconhecido da civilização, tanto que
tal realidade já fora isolada na Antiguidade por Aristóteles20 e, mais tarde, por
outros juristas21.
17
Diz Bonavides [2000, p. 135/136] sobre a fase monárquica: “O poder soberano do monarca se extraviara
dos fins requeridos pelas necessidades sociais, políticas e econômicas correntes, com os quais perdera
toda a identificação legitimativa. Mudaram aqueles fins por imperativo de necessidades novas e todavia
a monarquia permanecera em seu caráter habitual e poder cerrado, poder pessoal, poder absoluto da
coroa governante. Como tal, vai esse poder pesar sobre os súditos. Invalidado historicamente, serve tãosomente aos abusos pessoais da autoridade monolítica do rei” [p. 135]. E adiante complementa: “Todos os
pressupostos estavam formados pois na ordem social, política e econômica a fim de mudar o eixo do Estado
moderno, da concepção doravante retrógrada de um rei que se confundia com o Estado no exercício do
poder absoluto, para a postulação de um ordenamento político impessoal, concebido segundo as doutrinas
de limitação do poder, mediante as formas liberais de contenção da autoridade e as garantias jurídicas da
iniciativa econômica”.
18
Sobre o surgimento do Estado Moderno, também chamado de Estado Liberal, assevera Cruz [2001, p.
80-81]: “Com as revoluções inglesa, norte-americana e francesa, dos séculos XVII e XVIII, as novas forças
sociais burguesas liberadas pelo desenvolvimento do capitalismo consolidam seu poderio econômico e sua
hegemonia social e política, substituindo a Monarquia absoluta pelo Estado Liberal que, para o raciocínio
científico levado a efeito nesta obra, coincide com o início efetivo do Estado Moderno. Este Estado se
constitui como representativo e oligárquico – no qual o direito de participação política é daqueles que têm
patrimônio ou título acadêmico – limitado pela razão, pelos direitos fundamentais e pela separação dos
poderes”.
19
Conforme esclarece Bastos (2001, p. 351), não se pode levar ao pé da letra a expressão tripartição
de poderes estatais, uma vez que o poder é sempre um só, qualquer que seja a forma por ele assumida,
indicando a princípio uma diferenciação entre as funções estatais.
20
Aristóteles indica a consciência da existência de funções distintas dentro da organização do Estado, ao
afirmar: “Porque o soberano não é um juiz, um senador, ou um membro da assembleia, mas o tribunal, o
senado e o povo. Cada indivíduo não é mais que uma parte desses três corpos; entendo por uma parte cada
senador, cada cidadão, cada juiz”. [ARISTÓTELES, 1988, p. 64].
21
Assim conclui Bonavides [2000, p. 135/136], acrescentando outros juristas: “Distinguira Aristóteles
Revista ENM
263
Porém, inegavelmente, coube a Montesquieu, com a obra “L’Esprit des Lois”
(O Espírito das Leis, 1748), a formulação melhor sistematizada juridicamente do
referido princípio, servindo seu trabalho como um marco histórico, porquanto
capaz de influenciar, definitivamente, a ordem jurídica mundial até os dias atuais.
Sobre a Tripartição dos Poderes, definiu:
Em cada Estado há três espécies de poderes: o Legislativo; o Executivo
das coisas que dependem do Direito das Gentes; e o Executivo das
que dependem do Direito Civil. Pelo primeiro, o Príncipe ou o
Magistrado faz leis para algum tempo ou para sempre, e corrige
ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, ele faz a paz ou a
guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne
as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes, ou julga as demandas
dos particulares. A este último chamar-se-á Poder de Julgar; e ao
anterior simplesmente Poder Executivo do Estado22.
Para o constitucionalista Celso Ribeiro Bastos23, “a teoria da separação dos
poderes diz que, qualquer que seja a atividade estatal, esta deverá ser sempre
precedida por normas do último tipo citado, isto é, normas abstratas e gerais,
denominadas leis. Os atos concretos, ainda segundo a teoria ora exposta, só
serão legítimos na medida em que forem praticados com fundamento nas
normas gerais. (...) Eis aí a função legislativa e a executiva. Além dessas, é
prevista uma terceira função: a judiciária. Esta consiste em dirimir, em cada
caso concreto, as divergências surgidas por ocasião da aplicação das leis”.
O grande mérito de Montesquieu foi o de indicar, para cada uma das
três funções distintas do Estado, a correspondência de órgãos distintos e
autônomos, ou seja, haveria necessidade da existência de uma divisão funcional
que correspondesse a uma divisão orgânica, opondo-se assim esta disposição
ao antigo poder estatal concentrado do monarca24.
a assembleia-geral, o corpo de magistrados e o corpo judiciário; Marsílio de Pádua no Defensor Pacis já
percebera a natureza das distintas funções estatais e por fim a Escola de Direito Natural e das Gentes,
com Grotius, Wolf e Puffendorf, ao falar em partes potentiales summi imperii, se aproximara bastante da
distinção estabelecida por Montesquieu. Em Bodin, Swift e Bolingbroke a concepção de poderes que se
contrabalançam no interior do ordenamento estatal já se acha presente, mostrando quão próximo estiveram
de uma teorização definida a esse respeito. Locke, menos afamado que Montesquieu, é quase tão moderno
quanto este, no tocante à separação dos poderes”.
22
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis..., p. 166-167.
23
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 353.
24
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 354.
264
Revista ENM
Segundo Michel Temer25, “o valor de sua doutrina está na proposta de um
sistema em que cada órgão desempenhasse função distinta e, ao mesmo tempo,
que a atividade de cada qual caracterizasse forma de contenção da atividade de
outro órgão do poder”, resultando num sistema de independência e ao mesmo
tempo de inter-relacionamento entre os poderes, fórmula denominada pela
doutrina americana de “freios e contrapesos”.
A solução proposta pelo jurista francês, a partir de então, alcançou
inescondível importância para a humanidade ao servir de esteio ao Estado
liberal que se formava, acabando por encontrar “objetivação positiva nas
Constituições das ex-colônias inglesas da América, concretizando-se em
definitivo na Constituição dos Estados Unidos de 17.9.1787”26.
Com o advento da Revolução Francesa, a teoria tornou-se um dogma
constitucional, a ponto de ser inscrita no art. 16 da Declaração de Direitos do
Homem e do Cidadão27, sob a afirmação de que a ausência do Princípio da
Separação dos Poderes na Constituição de um Estado, faria deste um Estado
sem Constituição28.
Disseminada a proposta de Montesquieu, a tendência de inflexibilidade
inicial na aplicação da teoria – separação rígida entre os Poderes – aos poucos
cedeu lugar a uma melhor compreensão e inevitável acomodação entre o
ideal teórico e a realidade, especialmente diante do fato de, muitas vezes, um
Poder necessitar praticar atos que estavam fora de sua órbita, assemelhados à
competência dos demais29.
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional, p. 119.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 109.
27
Canotilho [p. 89-90] transcreve o dispositivo: “Toute société, dans laquelle la garantie des droits n’est pas
assurrée ni la séparation des pouvoirs détérminée, n’a point de constitution (Art. 16o da Déclaration des
droits de l’homme et du citoyen du 26 Août 1789)”.
28
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional, p. 109.
29
No dizer de Bastos (2001, p. 355), “(...) constata-se que os órgãos estatais não exercem simplesmente as
funções próprias, mas desempenham também funções denominadas atípicas, quer dizer, próprias de outros
órgãos. É que todo o poder (entendido como órgão) tende a uma relativa independência no âmbito estatal,
e é compreensível que pretenda exercer na própria esfera as três mencionadas funções em sentido material”.
E Canotilho [p. 114/115] refere mesmo que “hoje, tende a considerar-se que a teoria da separação dos
poderes engendrou um mito (...). Consistiria este mito na atribuição a Montesquieu de um modelo teórico
reconduzível à teoria dos três poderes rigorosamente separados: o executivo (o rei e os seus ministros),
o legislativo (1a câmara e 2a câmara, câmara baixa e câmara alta) e o judicial (corpo de magistrados).
Cada poder recobriria uma função própria sem qualquer interferência dos outros. Foi demonstrado por
Eisenmann que esta teoria nunca existiu em Montesquieu (...)”, ou seja, o próprio Montesquieu admitira
a interdependência entre os Poderes, uma combinação entre eles no exercício da atividade estatal. Exemplo
dessa realidade é a hipótese do Poder Executivo conceder indulto aos condenados, quando então estaria
julgando, ou no caso da elaboração, pelos tribunais, de seus regimentos internos, instrumentos jurídicos,
através dos quais as Cortes disciplinam o funcionamento dos seus órgãos administrativos e jurisdicionais,
25
26
Revista ENM
265
Assim também reconhece Ivo Dantas30, quando diz que “o princípio não tem
mais um sentido ‘absoluto’, podendo-se até afirmar que encontra-se caracterizado
por aspectos que são predominantes a cada função, ou seja, o Legislativo, além de
legislar, julga e executa (administra); o Executivo, além de executar (administrar),
legisla e julga; finalmente, o Judiciário, além de julgar, legisla e executa (administra)”.
Alcança-se, desse modo, o estágio atual de aplicação deste Princípio constitucional, já desgastado e objeto de críticas, mas que tem sobrevivido ao tempo31.
A propósito, oportuna a análise efetuada por Cruz32 sobre o futuro do modelo:
(...) é preciso esclarecer que a divisão clássica do poder do Estado
em Executivo, Legislativo e Judiciário talvez não atenda mais à
complexidade do mundo contemporâneo. A doutrina que permanece
ativa é a da separação dos poderes e a da tripartição destes mesmos
exercitando validamente, nesses casos, atividade tipicamente legislativa. O Supremo Tribunal Federal já
reconheceu a validade dos regimentos internos dos tribunais como típicas normas legisladas pelo Judiciário,
na medida da competência que lhe foi outorgada pela Constituição, como se pode conferir na Ação Direta
de Inconstitucionalidade nº 1105 MC/DF, Relator Ministro PAULO BROSSARD, em julgamento pelo
Tribunal Pleno, datado de 3.8.1994 e publicado no DJU de 27.4.2001, p. 00057. BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 1105 MC/DF, Relator Ministro Paulo Brossard.
Pleno. Brasília, 03 de agosto de 1994. DJU de 27.4.2001, p. 00057. Disponível em <http://www.stf.gov.
br>. Acesso em 29 maio 2004.
30
DANTAS, Ivo. Constituição federal..., p. 225.
31
Confira-se o que diz Bonavides (2003, p. 557) sobre a eterna vitalidade deste Princípio: “Trata-se de
um princípio invariavelmente sujeito a renascer das ruínas de todas as reformas políticas e jurídicas e
institucionais que tentam bani-lo do novo Direito Constitucional construído por obra das idéias sociais
do século XX. Nem poderia, aliás, ser diferente, desde que a primeira Constituição do Estado social pôs
nos alicerces da divisão de poderes a proteção suprema dos próprios direitos fundamentais. É o que se
depreende, com toda nitidez, das ponderações de um abalizado constitucionalista de nossa época – Karl
August Bettermann (...)”. No mesmo sentido, afirma Saldanha que “não foi cancelada a idéia da separação,
enquanto derivada da própria pluralidade de atribuições centrais existentes no Estado”. SALDANHA,
Nelson. O estado moderno e a separação de poderes, p. 119.
32
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos de direito constitucional, p. 101/102. Acrescenta-se aqui
a constatação de Ferreira Filho [2003, p. 135/136], ao comentar sobre o valor atual da Separação de
Poderes: “Historicamente, desempenhou ela papel relevante, contribuindo, e não pouco, para a instauração
do governo moderado. Hoje, todavia, sua importância costuma ser minimizada; seu fim, profetizado;
sua existência, até negada. De fato, conforme o sistema de partidos, ela é mais aparente do que real. O
bipartidarismo, sobretudo se disciplinados os partidos, tende a reduzi-la a mera aparência, quando, é
claro, o mesmo partido detém o Executivo e a maioria parlamentar. Por outro lado, a prática, universal
quase, da delegação do poder Legislativo e as formas bem ou mal disfarçadas de ‘legislação’ pelo Executivo
evidentemente a renegam”. E esta realidade também é anotada por Cruz [2002, p. 130], de forma bastante
direta: “No Brasil, quase sempre os governos eleitos são obrigados a ‘negociar’ com o Parlamento para obter
maioria. Esta maioria, ‘negociada’ normalmente em bases pouco indicadas, é volátil e inconfiável, além de
irresponsável”. Igualmente relevante o destaque de Canotilho [p. 555/556]: “Uma das observações mais
correntes sobre o «envelhecimento» do princípio da separação de «poderes» e de «órgãos de soberania»
relaciona-se com o facto de a repartição horizontal clássica desconhecer o fenômeno partidário e o dualismo
moderno «maioria-oposição». (...) Hoje, a «verdade» político-constitucional não é o dualismo – parlamento
mas a relação de maioria-oposição, aquela «suportada» pelos partidos e coligações maioritários e esta
dinamizada pelos partidos ou coligações minoritários”.
266
Revista ENM
poderes. Esta última já encontra, atualmente, muita contestação.
Muitos doutrinadores entendem que a tripartição tradicional do
poder do Estado já não atende às necessidades da Sociedade e do
Estado. Alguns dos itens da agenda do terceiro milênio, como os
meios de comunicação, a manipulação genética e a globalização
empurram a doutrina no sentido de começar a propor uma nova
divisão do poder do Estado, com quatro, cinco ou mais poderes.
As discussões sobre o declínio ou a ascensão do princípio em questão, ou
mesmo o reconhecimento de um “quarto Poder”33, não são poucas, mas a conclusão recorrente tem se pautado pela necessidade de sua manutenção como fórmula capaz de dar sustentação à democracia. Conforme Canotilho, “separação
ou divisão de poderes significa responsabilidade pelo exercício de um poder[...]”34.
Assim, a divisão referenciada ainda hoje permaneceria relevante pelo
menos em dois pontos35:
a) ao garantir a diferenciação entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo,
mantém também a peculiaridade do processo legislativo, baseado na discussão
e publicidade que permite a participação das minorias e a atividade de controle
do governo por estas mesmas minorias. O Poder Legislativo se mantém como
foco de controle e crítica, assim como de discussão pública, entre as diversas
alternativas políticas;
b) a divisão permite, sobretudo, a manutenção da garantia da independência
do Poder Judiciário, expresso pela independência de cada juiz em relação aos
outros poderes do Estado.
No Brasil, o princípio se tornou tradição constitucional, e, especialmente
com relação à vigente Carta Política da República de 1988, observa-se uma
clara preocupação do legislador constituinte com a estabilização do preceito,
tanto que vedou qualquer possibilidade de emenda constitucional tendente
a abolir a Separação dos Poderes, tornando-a verdadeira Cláusula Pétrea36,
conforme se verifica no art. 60, § 4o, inciso III37.
33
Saldanha refere a existência de constantes menções a um “quarto Poder”, que poderia ser a Opinião
Pública, a Imprensa, a Igreja, a educação ou outra instituição, mas descarta qualquer validade a estas
suposições. Saldanha, Nelson. O estado moderno e a separação de poderes, p. 121.
34
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 250.
35
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos de direito constitucional, p. 101.
36
Cláusula Pétrea, na lição de Dantas [1994, p. 96], significa aquela disposição constitucional intocável,
rija, resistente e insensível “[...] a qualquer proposta de manifestação do Poder de Reforma”.
37
CRFB/88: “Art. 60. [...] § 4o Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...]
Revista ENM
267
Vive-se, pois, em um sistema constitucional no qual o Princípio da
Tripartição dos Poderes, nas palavras de Bastos38, tornou-se “insuprimível da
nossa Constituição”, e, por se tratar de peça fundamental para a Democracia,
deve ser observado em toda a sua plenitude.
O Poder Judiciário tem contribuído nesse sentido, registrando a sua
consagração em inúmeros julgados da Suprema Corte do País, impondo a
sua observância por parte daquelas autoridades que atuam e corporificam
concretamente cada uma das funções do Poder estatal39.
Para Bonavides40, foi o trabalho de intérpretes e aplicadores do Direito
que rejuvenesceu o velho princípio, o qual, assim, voltou a “fruir a plena
atualidade das ocasiões em que foi emblema da resistência a poderes
autocráticos e a formas de governo havidas por usurpadoras de Direitos
e garantias fundamentais da pessoa humana”. E arremata: “onde houver,
pois, lesões à liberdade e ao Estado de Direito, aí sempre haverá lugar para
invocar-se a tutela do princípio e conjurar prosperem ofensas aos valores que
ele representa na ordem jurídica”.
Por certo, também no Brasil críticas existem quanto à operacionalização
do princípio em referência, sendo oportuna a reflexão de Manoel Gonçalves
Ferreira Filho41:
O exame da governança tal qual ela de fato se faz na realidade
brasileira contemporânea aponta três fenômenos que merecem
ser ponderados. São eles: 1) a exacerbação do presidencialismo,
com a proeminência acentuada do Presidente da República;
2) o fenecimento do Legislativo, cujo papel empalidece; e 3) a
assunção pelo Judiciário de um crescente papel político. Tudo isto
evidentemente significa uma profunda transformação da separação
III – a separação dos Poderes;”. Dantas [1994, p. 144] reconhece expressamente essa condição da cláusula
pétrea do Princípio da Separação dos Poderes na Carta Política vigente.
38
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 356.
39
Confira-se o seguinte precedente: “SEPARAÇÃO E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES. Submissão
de convênios firmados pelo Poder Executivo à prévia aprovação ou, em caso de urgência, ao referendo de
Assembleia Legislativa: inconstitucionalidade de norma constitucional estadual que a prescreve: inexistência
de solução assimilável no regime de poderes da Constituição Federal, que substantiva o modelo positivo
brasileiro do princípio da separação e independência dos poderes, que se impõe aos Estados-membros:
reexame da matéria que leva à reafirmação da jurisprudência do Tribunal (STF – ADI 165-5 – MG – TP –
Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJU 26.9.97)”. [MACHADO, 2002, p. 15].
40
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 558.
41
MARTINS, Ives Gandra da Silva (coordenador). Princípios constitucionais relevantes. Porto Alegre:
Magister, 2012, p. 69.
268
Revista ENM
de poderes, que, paradoxalmente, a Constituição consagra como
cláusula pétrea (art. 60, § 4o, III).
Contudo, vê-se que a necessidade de sobrevivência do Princípio da
Tripartição dos Poderes ainda é uma realidade, notadamente em países em
estágio de consolidação do regime democrático, para que se tenha uma efetiva
proteção das liberdades individuais e preservação do Estado de Direito.
5. Independência e autonomia financeira do Poder Judiciário
brasileiro – Importância para a harmonia constitucional
O Estado brasileiro, desde a Constituição de 1824, vem consagrando o
Princípio da Tripartição dos Poderes em seu ordenamento jurídico.
A Constituição da República vigente (1988) expressou a sua adoção já no
art. 2o, ao determinar: “são Poderes da União, independentes e harmônicos
entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”42.
Como resultado do modelo constitucional escolhido, identifica-se no
Poder Judiciário, por intermédio de seus órgãos jurisdicionais – juízes, a grave
função de dirimir os conflitos de interesses surgidos no tecido social, sejam
eles de particulares entre si, ou aqueles estabelecidos entre os particulares e o
próprio Estado.
Nesse sentido, define Pinto Ferreira43 que “o Poder Judiciário é um dos
três Poderes clássicos previstos pela doutrina. Foi consagrado em seguida às
grandes transformações dos séculos derradeiros como um Poder independente
e autônomo”. Invocando lição de Pedro Lessa44, atesta que “o Poder Judiciário
é o que tem por missão aplicar contenciosamente a lei a casos particulares”.
Contudo, por força da natureza dessa elevada função a desempenhar, a
própria Constituição, ao mesmo tempo em que lhe impôs o encargo, outorgou
ao Judiciário uma condição de Independência em relação aos demais poderes,
sem o que não seria possível se desincumbir da missão a contento.
Isto porque, como adverte Pinto Ferreira45, dificilmente poder-se-ia supor
um Estado de Direito sem a existência de um Poder Judiciário autônomo
Leciona Carlin [2002, p. 37] que “a relação entre eles obedece a critérios positivos constitucionais:
entre eles deve imperar independência sem prejuízo da harmonia. Tais freios e contrapesos objetivam
impedir a instauração do absolutismo. Trata-se do conhecido sistema de checks and balances, teoria que foi
desenvolvida no século XIX”.
43
FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional, p. 414.
44
em sua obra Do Poder Judiciário.
45
FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional, p. 414.
42
Revista ENM
269
e independente. Trata-se de verdadeira fórmula consagrada pela doutrina
contemporânea, prática não repelida, mas consolidada pelas Constituições.
Esta também é a posição de Dallari46, ao afirmar que “sem juízes
independentes não pode existir Estado democrático”.
Mas qual seria a razão dessa independência?
Obviamente, diante da atividade desempenhada pelo Poder Judiciário –
dirimir conflitos - a condição de estar desobrigado a agradar este ou aquele litigante
na solução do litígio exsurge essencial para a garantia da segurança jurídica (aqui
entendida como a certeza do Direito e da força vinculante de suas previsões47).
A importância dessa condição de liberdade de atuação, por sua vez,
se potencializa na medida em que são inúmeras as situações em que “o
objeto da disputa ou o conflito a ser resolvido pelo juiz foi ocasionado pelo
enfrentamento do cidadão com o poder do Estado, como a ação do Governo
através da Administração Pública ou com a acusação pública levada a efeito
pelo Ministério Público nos casos penais”48.
Desse modo, “só a absoluta Independência do juiz em relação aos poderes
Executivo e Legislativo garante que será a lei, e não a vontade do Executivo ou
de membros do Parlamento, a que decidirá o litígio”49, revelando-se o Princípio,
assim, uma das pedras angulares na defesa dos interesses fundamentais do
cidadão, mormente em tempos presentes, quando se pode constatar verdadeira
hipertrofia do Poder Executivo, que julga (tem concedido, por exemplo, indultos
criminais repetidamente nos últimos anos) e legisla (basta conferir o número
expressivo de medidas provisórias editadas), por vezes indiscriminadamente50.
É o que também aponta com lucidez Manoel Gonçalves Ferreira Filho51:
A Independência do Judiciário é uma necessidade da liberdade
individual. Que existam no Estado órgãos independentes que possam
DALLARI, Dalmo de Abreu. O renascer do direito..., p. 58.
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos de direito constitucional, p. 115.
48
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos de direito constitucional, p. 115.
49
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos de direito constitucional, p. 115/116.
50
Anota Saldanha que, “o crescimento das atribuições do Executivo, em nosso século, tanto nas nações
capitalistas como nas socialistas, determinou em certos setores (inclusive o didático e o jornalístico) a
tendência a identificar os termos governo e Poder Executivo. Com efeito, a imagem que o homem
comum tem do governo centra-se sobretudo nas atividades do Executivo: decisões e planejamentos,
poder e administração. Nos regimes presidencialistas, a realidade constitucional corrobora esta imagem,
havendo então uma separação de poderes sem igualdade e sem equilíbrio que eram preconizadas na
fórmula clássica”, ao que acrescento ser fenômeno recorrente em países considerados subdesenvolvidos ou
em desenvolvimento, com democracias ainda em fase de sedimentação. SALDANHA, Nelson. O estado
moderno e a separação de poderes, p. 118.
51
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 246.
46
47
270
Revista ENM
aplicar a lei, inclusive contra o governo e contra a administração, é
condição indispensável para a liberdade e a proteção dos Direitos
humanos. E não foi outra a razão que levou a doutrina clássica a
erigir o Judiciário em poder do Estado, com função própria. De
fato. Que argumento melhor havia para retirar das mãos do governo
a administração da Justiça do que afirmá-la, por natureza distinta da
a ele confiada?
Daí a razão, portanto, da relevância dessa garantia constitucional erigida
em favor desse Poder.
Quanto ao sentido e alcance do termo examinado, destaca-se que a
palavra independência, à primeira vista, nos traz a ideia de algo que é livre,
desvinculado, totalmente liberto de forças estranhas que possam traduzir uma
subjugação aos interesses ou desejos de outrem.
Esta noção inicial, conquanto eminentemente empírica, é intuitiva e serve
perfeitamente como indicativo da necessidade dessa garantia instituída pelo
ordenamento constitucional.
A independência, pois, relativamente aos três poderes reciprocamente
considerados, na dicção de José Afonso da Silva52, significa: (a) que a investidura
e a permanência das pessoas num dos órgãos do governo não depende da
confiança nem da vontade dos outros; (b) que, no exercício das atribuições
que lhe sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem
necessitam de sua autorização; (c) que, na organização dos respectivos serviços,
cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e legais.
Isto quer dizer, num primeiro sentido, que cada Poder tem a liberdade
de se organizar internamente, prover seus cargos e executar sua atividade-fim
sem depender de autorização dos demais poderes constituídos, estabelecendo
a norma constitucional, expressamente, a inexistência de qualquer grau de
subordinação entre eles53.
Logicamente, esta ausência de subordinação não quer significar a possi­
bilidade de cada um dos poderes atuar de forma deliberada e desencontrada,
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 110.
Assim ensina Temer [2003, p. 123], ao destacar que “o Judiciário, tal como o Legislativo, também organiza
seus serviços auxiliares, provendo-lhes os cargos, na forma da lei. Cuida de todo o aparato administrativo
necessário para dar suporte ao desempenho de sua atividade típica. Não depende, como visto, do Poder
Executivo, cuja atividade típica é administrar”.
52
53
Revista ENM
271
uma vez que a própria Constituição determina aos três poderes a realização
de suas funções em cooperação, em “Harmonia”54, como forma de alcançar a
consumação dos objetivos fundamentais da República, estampados no art. 3o
da Carta Maior da nação brasileira55.
Neste sentido, relativamente ao Judiciário, anota José Afonso da Silva56
que a independência e a autonomia se tornaram ainda mais pronunciadas,
pois passou para a sua competência também a nomeação de juízes e outras
providências referentes à sua estrutura e funcionamento, inclusive em matéria
orçamentária (arts. 95, 96 e 99).
A observação do doutrinador é pertinente, e, efetivamente, pode-se notar,
no âmbito da vigente Constituição republicana, que a independência do
Poder Judiciário foi estabelecida com um viés mais extenso do que em outras
épocas57, passando a significar, além das conhecidas garantias instituídas em
favor dos magistrados para o exercício seguro e imparcial da função judicante
(vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios – art. 95,
CRFB 1988), também uma proteção estendida pelo legislador constituinte à
Justiça-instituição, nivelando-a com os demais poderes, de sorte a preservarlhe o pleno, correto e ininterrupto funcionamento, e protegê-la de eventuais
efeitos decorrentes da alternância na chefia do Executivo e das mudanças na
composição do Legislativo, decorrentes do cíclico processo eleitoral.
Portanto, partindo dessa constatação, torna-se possível subdividir as regras
que compõem a independência do Poder Judiciário em dois grandes grupos.
Eugênio Raul Zaffaroni58 (citando lição de Picardi), identifica estes dois
Sobre a Harmonia discorre Silva [2002, p. 110]: “A harmonia entre os poderes verifica-se primeiramente
pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente
todos têm direito. De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem
sua independência são absolutas. Há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e
contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar
o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados”.
55
Art. 3o Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade
livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização
e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
56
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 110.
57
Consoante lição de Ferreira [2002, p. 418-420], no início a Justiça não possuía qualquer independência, e, sendo
a magistratura eletiva tanto na Antigüidade greco-romana como na monarquia, seus juízes haveriam de agradar
o rei ou monarca, estando o sistema judicial logicamente sujeito às condições da investidura de seus membros.
No Brasil, a primeira Constituição de 1824 concedeu uma tímida independência relativa à magistratura togada,
a vitaliciedade. Somente com a República é que foram acrescidas as garantias da irredutibilidade de vencimentos
(Constituição de 1891, art.57), e depois a inamovibilidade (Constituição de 1934).
58
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Poder judiciário: crise, acertos e desacertos, p. 87/88.
54
272
Revista ENM
conjuntos de normas, que juntos formam o que chama de “Independência
Judicial”. O primeiro, denomina de Independência da Magistratura, e
corresponde a regras restritas à autonomia de governo e o poder disciplinar, aos
órgãos ou ao conjunto de órgãos judiciários; o segundo conjunto, denominado
como “Independência do Juiz”, refere-se àquelas normas dirigidas à pessoa dos
juízes, de sorte a protegê-los de pressões, no exercício da atividade jurisdicional.
José Afonso da Silva59, por sua vez, igualmente faz a distinção quanto às
garantias que integram a Independência do Poder Judiciário, separando-as em
dois grupos: a) garantias institucionais – protegem o Poder Judiciário como
um todo; b) garantias funcionais ou de órgãos – asseguram a Independência
e imparcialidade dos membros do Poder Judiciário, previstas tanto em favor
destes, como em favor da própria instituição (vitaliciedade, irredutibilidade de
subsídios, inamovibilidade).
Esta operação também foi efetuada por Ferreira Filho60, ao comentar que
em relação às garantias outorgadas ao Judiciário “algumas concernem ao poder
como um todo, resguardando-o de interferência de outros poderes; outras
dizem respeito aos órgãos desse poder, particularmente aos juízes”.
Bem identificadas, pois, estas duas partes, atentando agora somente para as
regras atinentes à independência da Justiça-instituição (ou independência da
Magistratura, segundo Zaffaroni, ou Garantias Institucionais, segundo Silva),
observa-se que a doutrina realiza ainda uma outra subdivisão, identificando
como seus elementos integrantes a Autonomia Administrativa e a Autonomia
Financeira do Poder Judiciário.
A primeira, Autonomia Administrativa, consiste na “possibilidade de autoorganização de seus serviços, como prover suas secretarias, concursos e outros
(art. 93, incisos e alíneas)”61.
A segunda, Autonomia Financeira, seria a “capacidade de elaboração
de Orçamento próprio”62, encontrando no art. 99, “caput” e §§ 1o e 2o, da
Constituição da República de 1988, a sua previsão63.
José Afonso da Silva64 decompõe a independência da Justiça-instituição
em Autonomia Orgânico-Administrativa e a Autonomia Financeira, aquela
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 575.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 248.
61
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 393.
62
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 393.
63
CRFB/88: Art. 99. Ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira.
64
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 575.
59
60
Revista ENM
273
compreendendo a independência na estruturação e funcionamento dos seus
órgãos, e esta a independência na elaboração e execução do próprio Orçamento.
Enfim, chega-se, especificamente, na Autonomia Financeira do Poder Judi­
ciário, consagrada no ordenamento constitucional vigente da seguinte forma:
a) cabe aos tribunais elaborar suas propostas orçamentárias dentro dos
limites estipulados conjuntamente com os demais poderes na lei de diretrizes
orçamentárias (arts. 99, § 1o, e 165, II);
b) compete o encaminhamento da proposta orçamentária, ouvidos os
outros tribunais interessados: (a) no âmbito da União, aos presidentes do
STF e dos tribunais superiores (STJ, TST, TSE e STM), com a aprovação
dos respectivos tribunais; (b) no âmbito dos estados e no Distrito Federal
e territórios, aos presidentes dos tribunais de Justiça, com a aprovação dos
respectivos tribunais65.
Soma-se a estas diretrizes, ainda, outro dispositivo de sentida importância,
conforme reconhece Ricardo Lobo Torres66, servindo de garantia ao Poder
Judiciário para fazer valer, concretamente, a sua Autonomia Financeira. Tratase do artigo 168 da CRFB/88, que possibilita o direito de sequestro de sua
cota-parte orçamentária em caso de ausência de repasse, sendo certeira a via
mandamental:
Art. 168. Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias,
compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados aos
órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público
e da Defensoria Pública, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada
mês, em duodécimos, na forma da lei complementar a que se refere
o art. 165, § 9o67.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 576.
Diz o jurista: “A CF instituiu a autonomia financeira entre os poderes, estabelecendo, no art. 168, que ‘os
recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais,
destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário e do Ministério Público, ser-lhes-ão entregues até
o dia 20 de cada mês, na forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9o’”. [TORRES, p. 164].
67
CRFB/88. A redação está de acordo com a Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004.
Exemplo disso ocorreu no Estado de Santa Catarina, quando, a partir do mês de outubro de 1998, o
Poder Executivo deixou de efetuar o repasse da dotação orçamentária mensal devida ao Poder Judiciário
estadual, obrigando-o a impetrar Mandado de Segurança diretamente junto ao Supremo Tribunal Federal.
Distribuída a ação mandamental no dia 29.10.1998, a liminar foi deferida no mesmo dia pelo Ministro
Néri da Silveira, determinando a regularização imediata dos repasses dos duodécimos orçamentários. O
mérito do “mandamus” foi julgado em 3 de abril de 2003, com a seguinte ementa: “Mandado de segurança.
2. Ato omissivo de governador de Estado. 3. Atraso no repasse dos duodécimos correspondentes às dotações
orçamentárias do Poder Judiciário. 4. Art. 168 da Constituição Federal. 5. Independência do Poder Judiciário.
6. Precedentes. 7. Deferimento da ordem”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança no
65
66
274
Revista ENM
Diante desse sistema garantidor criado pela Constituição da República
em vigor, inevitável reconhecer que a Autonomia Financeira foi guindada
pelo legislador constituinte à condição de um dos importantes elementos
materializadores da independência do Poder Judiciário.
Essa realidade tem ligação direta com a evolução histórica das salvaguardas
outorgadas ao Poder Judiciário ao longo do tempo, sempre no sentido de
trazer maior confiabilidade e segurança às suas decisões.
Nessa perspectiva, a instituição da Autonomia Financeira, ao permitir que
os Tribunais elaborem e executem seus próprios Orçamentos, cujo limite deverá
ser estipulado em conjunto com os demais Poderes, e não unilateralmente, por
qualquer deles, finalmente colocou o Poder Judiciário em pé de total igualdade
com o Legislativo e o Executivo, não havendo mais espaço constitucional para se
submeter a função jurisdicional do Estado à penúria da carência sistemática de
recursos e à inviabilização de projetos orientados ao aperfeiçoamento e à ampliação
do atendimento ao cidadão, não sem a violação de preceito expresso da CRFB/88.
As críticas de José Afonso da Silva68, ao dizer que a Autonomia “vai gerar
mais problemas do que benefícios”, professando disputas entre tribunais
na aprovação das propostas orçamentárias a demonstrar a inaptidão dos
julgadores para administrar, bem como a necessidade de se deixar tal matéria
aos cuidados dos administradores, parecem não encontrar fundamento
jurídico ou científico a justificá-las, mormente se considerado que os tribunais
são dotados de corpos técnicos nas áreas administrativa e financeira, são
fiscalizados pelos tribunais de Contas e, agora, particularmente, ainda estão
sob o olhar correicional do Conselho Nacional de Justiça.
Ao contrário de criar problemas, a Autonomia Financeira concedida ao
Poder Judiciário, sem dúvida, constitui importante instrumento instituído
pelo constituinte originário para libertar aquele Poder do jugo dos demais
Poderes, especialmente do Executivo, aquele que administra a coisa pública e
detém “a chave do cofre”.
23267/SC. Relator Ministro Gilmar Mendes. Brasília, 3 de abril de 2003. DJU de 16.5.2003. Disponível
em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 29/maio/2004.
68
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 576. No mesmo sentido afirma Torres
[2002, p. 164]: “A gestão orçamentária pelo Legislativo, Judiciário e Ministério Público não fortaleceu em
nada a autonomia dos poderes e ainda trouxe grandes desvantagens do ponto de vista gerencial. Políticos
e juizes não estão habilitados tecnicamente a gerir orçamento, fazer licitações e pagar despesas. A CPI
instalada em 1999 demonstrou o desacerto na realização de inúmeros gastos, principalmente a construção
de sedes e palácios suntuosos, como ocorreu no Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo”.
Revista ENM
275
A crítica que merece destaque em tema tão relevante é aquela desferida com
agudeza e proficiência por Dalmo de Abreu Dallari69, ao exortar a leniência
do próprio Poder Judiciário, acostumado a ser submisso e inferiorizado em
relação ao Poder Executivo, ranço de séculos de perniciosa condescendência,
parecendo desconhecer o próprio texto constitucional.
Disse certa vez o jurista, com absoluta propriedade:
A maior evidência da acomodação está no Orçamento, tanto
no plano federal quanto no estadual. O Judiciário elabora sua
proposta orçamentária, prevendo o aumento do número de juízes,
a ampliação e modernização de seu equipamento material e outras
coisas que ajudariam a melhorar seu desempenho. Essa proposta
sofre cortes substanciais no Executivo, que prepara o projeto geral
de lei orçamentária, e, às vezes, também no Legislativo, que emenda
e vota o projeto. E o Judiciário aceita passivamente esses cortes,
como se não fosse um dos Poderes do mesmo nível dos demais70.
Esse comportamento, aliás, não é novidade em países da América Latina
e no Brasil, portadores de longa tradição autoritária, notadamente quando
a “história do continente é estigmatizada pela hipertrofia do Executivo, pela
quebra das garantias da magistratura, por reformas constitucionais casuísticas
e pela instabilidade constitucional constante”, conforme lembra Anna Cândida
da Cunha Ferraz71.
A indignação, portanto, pode ser haurida em razão da passividade
demonstrada por muitos tribunais, os quais, paradoxalmente, apesar de
elaborarem propostas orçamentárias baseadas em louváveis projetos para
ampliação e modernização dos seus serviços, ao sofrerem cortes reiterados,
injustificáveis e significativos realizados pelo Executivo72 (seja por ocasião da
preparação do anteprojeto geral de lei orçamentária, seja durante o exercício
de execução orçamentária), ou, por vezes no Legislativo, com as emendas e
votação do projeto de lei do Orçamento, permanecem inertes, sem reação,
DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes, p. 142.
DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes, p. 142.
71
Citação em obra de BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição..., p. 146.
72
Sobre as constantes restrições orçamentárias impostas pelo Poder Executivo em relação ao Poder
Judiciário, não só por ocasião da elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias, como também durante a
sua execução, basta conferir as manchetes dos jornais: “Poderes terão corte de R$ 277 milhões: Governo
sugere a redução de despesas”. Diário Catarinense. Notícias de Brasília. Florianópolis. 26 de março de
2003. p. 15; “Poderes esperam pelo aumento de percentuais”. [A Notícia,15 abr. 2004, p. A5].
69
70
276
Revista ENM
sem contestação, como se estivessem obrigados a aceitar os minguados recursos
destinados unilateralmente, quando a própria Constituição determina que os
limites devem ser “conjuntamente” estabelecidos.
Essa mentalidade, contudo, aos poucos vem apresentando uma tendência
favorável de mudança.
O Supremo Tribunal Federal, em memorável precedente, teve a
oportunidade de reconhecer expressamente a Autonomia Financeira do Poder
Judiciário como novel atributo da independência entre os Poderes, estatuído
na Constituição da República, ao firmar:
(...) O autogoverno da Magistratura tem, na autonomia do Poder
Judiciário, o seu fundamento essencial, que se revela verdadeira pedra
angular, suporte imprescindível à asseguração da Independência
político-institucional dos Juízos e dos Tribunais. O legislador
constituinte, dando consequência à sua clara opção política –
verdadeira decisão fundamental concernente a Independência da
Magistratura - instituiu, no art. 168 de nossa Carta Política, uma
típica garantia instrumental, assecuratória da Autonomia Financeira
do Poder Judiciário. A norma inscrita no art. 168 da Constituição
reveste-se de caráter tutelar, concebida que foi para impedir o
Executivo de causar, em desfavor do Judiciário, do Legislativo e
do Ministério Publico, um Estado de subordinação financeira que
comprometesse, pela gestão arbitrária do Orçamento – ou, até
mesmo, pela injusta recusa de liberar os recursos nele consignados
–, a própria Independência político-jurídica daquelas Instituições.
Essa prerrogativa de ordem jurídico-institucional, criada, de modo
inovador, pela Constituição de 1988, pertence, exclusivamente, aos
órgãos estatais para os quais foi deferida. (...)73.
A imprensa, por sua vez, tem demonstrado maior interesse em conhecer o
Poder Judiciário e seu funcionamento, de sorte a compreender seus desafios
e limitações, o que lhe possibilita informar, de maneira mais fidedigna à
população, as reais deficiências e entraves à melhoria do serviço judiciário, a
ponto de respeitado jornal estampar em seu editorial:
73
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Mandado de Segurança Coletivo no 21291/
DF. Relator Ministro Celso de Mello. Brasília, 12 de abril de 1991. DJU de 27 out. 1995, p. 36331. RTJ
159/454. Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 29 maio 2004.
Revista ENM
277
É indispensável que o Judiciário se aparelhe e se modernize, que supere
falhas como o regime arcaico e burocratizado do processo, o excesso
de formalismos, o espantoso número de lides por juiz, a escassez de
julgadores, o vagar dos cartórios. Essa deveria ser causa comum de
legisladores, magistrados e da própria Sociedade. Mas, para que haja
efetivamente Justiça para todos, será imprescindível ainda que conte com
meios materiais adequados e se utilize dos instrumentos tecnológicos
hoje empregados em todos os campos de atividade humana74.
Conclui-se, portanto, que a CRFB/88, ao adotar o Princípio da Tripartição
dos Poderes, atribuindo a cada um deles a garantia de independência, no
exercício da função específica, em relação ao Poder Judiciário instituiu, ainda,
a Autonomia Financeira como elemento particular da independência a ser
observado, tornando-o indissociável e imprescindível para a consecução de um
convívio harmônico e democrático, elevando o Judiciário, definitivamente, ao
patamar de total igualdade relativamente aos demais Poderes da República.
A verdadeira Autonomia Financeira do Poder Judiciário, assim, pode ser
entendida como a capacidade de elaborar e executar Orçamento próprio, dotado
de recursos financeiros suficientes à manutenção e ampliação dos serviços
necessários ao atendimento da demanda por Jurisdição, protegido de unilaterais
e injustificadas reduções impostas pelos demais poderes da República75.
O desafio atual está em se fazer reconhecer e concretizar esse mandamento
constitucional, tarefa que ainda tem encontrado toda a sorte de obstáculos.
4. Orçamento público – Noções sobre esta ferramenta
constitucional para a concretização da autonomia financeira
do Poder Judiciário
Como vimos, o Judiciário é um Poder independente na República brasileira,
e uma das garantias institucionais asseguradas na Constituição vigente para
concretizar esta independência constitui-se na Autonomia Financeira.
Diante da evidente relação entre a Autonomia Financeira e o Orçamento
Público, relevante apresentar uma breve noção sobre este último instituto,
Leis Mofadas. Diário Catarinense. Florianópolis-SC, 7 set. 2003, p. 12.
Este Conceito Operacional foi elaborado pelo autor e originalmente apresentado na seguinte obra:
SCHUCH, Luiz Felipe Siegert. Acesso à justiça e autonomia financeira do Poder Judiciário: a quarta onda? Em
busca da efetividade dos direitos fundamentais. 1. ed. (2006), 2ª reimpr. (2010). Curitiba: Juruá, 2010. 260 p.
74
75
278
Revista ENM
com duplo propósito: demonstrar a sua importante condição de instrumento
realizador da Autonomia referenciada, e fornecer substrato teórico para melhor
compreensão do tema central a ser tratado neste trabalho.
Nesse passo, rápida retrospectiva histórica permite observar que as
necessidades sociais sempre aumentam na medida em que o Estado evolui,
enquanto os recursos financeiros recolhidos junto aos cidadãos, ao contrário,
são geralmente insuficientes para atender à demanda de bens e serviços
disponibilizados pelo aparelho estatal76.
Por sua vez, a desorganização, tanto no que se refere à arrecadação, como
no tocante aos gastos do dinheiro público, tem se mostrado outro problema
recorrente.
Na Antiguidade, por exemplo, ao discorrer sobre a Lacedemônia, Aristóte77
les retratou realidade que, ainda hoje, guardada a devida contextualização,
encontramos em muitos países da atualidade:
As finanças são mal organizadas. Os lacedemônios são obrigados a
sustentar grandes guerras, e no entanto não possuem um tesouro
público, e os impostos são mal arrecadados. Proprietários da maior
parte do território, são em consequência interessados em não impor
muita severidade na cobrança dos impostos. Desse modo o legislador
chegou a um resultado absolutamente contrário ao interesse geral:
tornou o Estado pobre e o particular rico e cúpido. Tais são os vícios
principais da Constituição da Lacedemônia.
Como resultado dessa desordem financeira, segundo Ricardo Lobo Torres78,
a partir do Estado Moderno surgiram as primeiras regras disciplinando o
lançamento de tributos e a realização de gastos, primeiro na Inglaterra (Magna
Carta de 1215) e depois na França, Espanha e Portugal, as quais acabaram
por ser constitucionalizadas nesses países; o fenômeno também ocorreu no
Brasil, iniciando, timidamente, com a Constituição de 1824 e prosseguindo
nas constituições nacionais seguintes até os dias atuais79.
A esta atividade do Estado, voltada à obtenção da receita e realização dos
gastos, cumprindo uma determinada programação, se denominou Atividade
76
Segundo Rosa Junior [2002, p. 28], “há uma tendência universal no crescimento da despesa pública,
que ocorreu lentamente até a Primeira Grande Guerra, quando passou a acelerar-se consideravelmente”.
77
ARISTÓTELES. A política, p. 44.
78
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 153.
79
FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional, p. 492.
Revista ENM
279
Financeira80, entendendo-se por Direito Financeiro o conjunto de normas
e princípios reguladores daquela Atividade, disciplinando a constituição e a
gestão da Fazenda Pública81, o estabelecimento das regras e os procedimentos
para a obtenção da receita pública (na maior parte advinda dos Tributos82),
bem como a realização dos gastos imprescindíveis à consecução dos objetivos
do Estado83.
O produto dessa especialização do conhecimento humano, no que diz
respeito ao controle das contas públicas, foi o aparecimento da figura do
Estado Orçamentário, entendido aqui como aquele que, baseado num
planejamento, procura através do Orçamento fixar a receita tributária e a
patrimonial, redistribuir rendas, entregar prestações de educação, saúde,
seguridade e transportes, promover o desenvolvimento econômico e equilibrar
a economia84.
É a partir desse Estado Orçamentário, pois, que se inicia um processo
contínuo de aperfeiçoamento no que se refere às regras para administração
das receitas e despesas estatais, processo este que alcançou os dias presentes,
tempos difíceis, porquanto as carências sociais cada vez mais se avolumam,
ao passo que a capacidade da Sociedade de suportar a carga tributária já se
encontra próxima ou no seu limite85.
Daí resulta a grande importância do Orçamento Público “na vida pública e
administrativa do país como o plano das suas necessidades monetárias, em um
determinado período de tempo, aprovado e decretado pelo Poder Legislativo
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 3.
Fazenda Pública: “A Fazenda Pública, objetivamente considerada, é o complexo dos recursos e obrigações
financeiras do Estado. [...] A Fazenda Pública, subjetivamente considerada, confunde-se com a própria
pessoa jurídica de direito público, tendo em vista que a responsabilidade do Estado é apenas financeira”.
[TORRES, p. 4].
82
Na dicção de Nogueira [1990, p. 160], invocando o art. 3o do Código Tributário Nacional, Tributo
significa “[...] toda a prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir,
que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa
plenamente vinculada”.
83
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 12.
84
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 154.
85
Segundo BASTOS, “as finanças públicas podem tornar-se poderoso instrumento de atuação do Estado
no domínio econômico. Atualmente a tendência é a utilização moderada desse recurso, porque a sua
exacerbação pode conduzir a profundas distorções da economia. Embora não haja mais condições de voltarse a uma concepção de finanças neutras, porque, obviamente, alguma influência elas haverão de cumprir, no
entretanto, a procura de um orçamento equilibrado e a contenção de gastos públicos continuam a ser metas
almejadas. Crê-se que é por aí que se propiciam as condições ideais de desenvolvimento, sobretudo com o
combate ao gigantismo estatal, ao desperdício dos dinheiros públicos e, fundamentalmente, à inflação ...”.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito financeiro e de direito tributário, p. 13.
80
81
280
Revista ENM
como órgão de representação popular”86, sabendo-se que, se mal elaborado,
pode inviabilizar a consecução dos objetivos e ações planejadas pelo Estado.
Mas, em verdade, o que significa o pré-falado Orçamento?
Na abalizada lição de Aliomar Baleeiro87, o Orçamento constitui-se no “ato
pelo qual o Poder Legislativo prevê e autoriza ao Poder Executivo, por certo
período e em pormenor, as despesas destinadas ao funcionamento dos serviços
públicos e outros fins adotados pela política econômica ou geral do país, assim
como a arrecadação das receitas já criadas em lei”.
Assim também leciona Esmein, quando afirma que o Orçamento “é
‘um ato que contém, para um tempo determinado, a previsão das receitas
e das despesas do Estado e ordena a percepção de umas e o pagamento de
outras’”88.
Mais atual é o conceito de José Afonso da Silva89, ao assentar que o
Orçamento, o qual também denomina de Orçamento-programa90, “é o
processo e o conjunto integrado de documentos pelos quais se elaboram, se
expressam, se aprovam, se executam e se avaliam os planos e programas de
obras, serviços e encargos governamentais, com estimativa da receita e fixação
das despesas de cada exercício financeiro”.
A natureza jurídica do Orçamento, por sua vez, encontra alguma discussão
na doutrina, no tocante à definição quanto à sua classificação como uma lei
formal ou material, conforme apontado por Pinto Ferreira91.
Todavia, entende Rosa Junior92 ser uma “lei formal, que por ser disciplinada
pela Constituição em seção diferente daquela própria das leis, deve também
ser considerada lei especial, mas seu conteúdo é de mero ato de administração.
Isso porque fixa as despesas públicas e prevê as receitas públicas, não podendo
versar sobre outra matéria que não seja orçamentária”.
ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro e tributário, p. 73.
BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças, p. 411.
88
Citado por Pinto Ferreira. FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional, p. 492.
89
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 714.
90
Refere SILVA que o Brasil adotou a técnica do “orçamento-programa”, definindo-o como um “tipo de
orçamento vinculado ao planejamento das atividades governamentais. Na verdade, o orçamento-programa
não é apenas uma peça financeira, é, antes de tudo, um instrumento de execução de planos e projetos de
realização de obras e serviços, visando ao desenvolvimento da comunidade. É um documento em que
se designam os recursos de trabalho e financeiros destinados à execução dos programas, subprogramas e
projetos de execução da ação governamental, classificados por categorias econômicas, por função e por
unidades orçamentárias”. SILVA, José Afonso da. Orçamento-programa no Brasil, p. 41.
91
FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional, p. 492.
92
ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro e tributário, p. 83.
86
87
Revista ENM
281
É o que também defende Carlos Maurício Figueiredo93: “no Brasil prevalece
a corrente doutrinária segundo a qual as leis orçamentárias são leis formais.
Seus efeitos jurídicos não transcendem as relações existentes entre os Poderes
de Estado, não garantem a realização de receitas nem impõem a execução de
quaisquer despesas”.
De fato, a lei orçamentária, por ser de natureza formal, não modifica a
legislação tributária e financeira pré-existentes, igualmente não cria Direitos
subjetivos em favor de terceiros, servindo, assim, apenas como um instrumento
para prever a receita e fixar as despesas, no período e nos limites estabelecidos
pelo Poder Legislativo.
A CRFB/88, objetivando traçar um plano adequado para administrar as
receitas e despesas públicas, inspirando-se na tripartição do planejamento
orçamentário alemão94, estabeleceu no artigo 165 três formas de programar as
Atividades Financeiras estatais – o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias
e o Orçamento anual –, as quais devem se integrar harmoniosamente, cuja
iniciativa legislativa é reservada ao Poder Executivo [art. 165, I, II e III, CF
198895].
O Plano Plurianual [art. 165, § 1o, CRFB/88], também conhecido pela sigla
“PPA”, é uma lei formal que “tem por objetivo estabelecer os programas e as
metas governamentais de longo prazo. É o planejamento conjuntural para a
promoção do desenvolvimento econômico, do equilíbrio entre as diversas regiões
do País e da estabilidade econômica”96, o qual, porém, não vincula o Legislativo
na elaboração das leis orçamentárias, servindo apenas como orientação.
A Lei de Diretrizes Orçamentárias [art. 165, § 2o, CRFB/88], de seu
turno, também conhecida pela sigla “LDO”, trata-se, igualmente, de uma
lei de caráter formal, não vinculativa, mas agora de periodicidade anual,
servindo de orientação para a elaboração do Orçamento do ano seguinte, cujo
93
FIGUEIREDO, Carlos Maurício et alli. Comentários à lei de responsabilidade fiscal, p. 55. Ainda afeto ao
tema, discorrendo sobre as teorias existentes que pretendem justificar a natureza jurídica do Orçamento,
confira-se a seguinte obra: TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 156-160.
94
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 154.
95
CRFB/88. Este dispositivo se encontra reproduzido, por simetria, nas Constituições dos Estados
Federados. No Estado de Santa Catarina a matéria está assim disciplinada: “Art. 120 – O plano plurianual,
as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais serão estabelecidos em leis de iniciativa do Poder
Executivo”. SANTA CATARINA. Constituição do Estado de Santa Catarina, p. 105.
96
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 154. No mesmo sentido, tem-se a
lição de Rosa Junior [2002, p. 93]: “O plano plurianual deve conter, de forma regionalizada, as diretrizes,
os objetivos e as metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes
e para as relativas aos programas de duração continuada (art. 165, § 1o)”.
282
Revista ENM
projeto deve ser encaminhado pelo Executivo até oito meses e meio antes do
encerramento do exercício financeiro (ou seja, do início do mês de Janeiro até
metade do mês de Abril), e devolvido pelo Legislativo para sanção ainda no
primeiro semestre (até o final do mês de junho)97.
Consiste, em última análise, de “um plano prévio, fundado em considerações
econômicas e sociais, para ulterior elaboração da proposta orçamentária do
Executivo, do Legislativo (arts. 51, IV e 52, XIII), do Judiciário (art. 99, § 1o)
e do Ministério Público (art. 127, § 3o)”98.
Por último, a LOA – Lei Orçamentária Anual, igualmente de natureza
formal, consiste em uma lei aprovada pelo Poder Legislativo, a partir de uma
proposta enviada pelo Poder Executivo, englobando, num único documento,
o Orçamento fiscal, o Orçamento de investimentos das empresas estatais e o
Orçamento da seguridade social [art. 165, § 5o, incisos I a III, CRFB/88].
Destaca-se que o projeto de Lei Orçamentária deve ser encaminhado
até quatro meses antes do encerramento do exercício financeiro (isto é, até
o final do mês de Agosto), e devolvido para sanção até o encerramento da
sessão legislativa (até o final do mês de Dezembro)99, sob pena de prorrogação
da lei anterior, durante o novo exercício, até a aprovação das novas normas
orçamentárias100.
É a Lei Orçamentária Anual, portanto, que poderá ou não dar concretude
às recomendações e orientações expressas no Plano Plurianual e na Lei de
Diretrizes Orçamentárias, porquanto não há relação de vinculação obrigatória
na elaboração da primeira aos ditames destes dois últimos diplomas, senão
a recomendação constitucional de harmonia e compatibilização entre as
mesmas, conforme assevera Torres101.
Particularmente, em relação à Lei Orçamentária Anual, interessa ressaltar
a importância de uma de suas partes – o Orçamento Fiscal, porquanto
este é o documento que contém discriminadas todas as receitas e despesas,
97
Estes prazos estão de acordo com o disposto no art. 35, inciso III, do Ato das Disposições Transitórias da
Constituição da República de 1988, enquanto outros não forem definidos pela Lei Complementar a que
se refere o art. 165, § 9o, da referida Constituição, até hoje não editada. Confira-se, a propósito: ROSA
JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro e tributário, p. 95-96.
98
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 156.
99
Este prazo está de acordo com o disposto no art. 35, inciso II, do Ato das Disposições Transitórias da
CRFB/88, enquanto outro não for definido pela Lei Complementar a que se refere o art. 165, § 9o, da
referida Constituição, até hoje não editada. Confira-se, a propósito: [ROSA JUNIOR, 2002, p. 95-96].
100
No mesmo sentido entende ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro e
tributário, p. 96.
101
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 156.
Revista ENM
283
abrangendo os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, além dos fundos,
órgãos e entidades da administração direta, indireta e fundações públicas102.
A análise do Orçamento Fiscal, assim, pode servir de relevante fonte de
informação para se aferir até que ponto o Princípio da Independência e da
Harmonia entre os Poderes é respeitado, bastando, para isso, comparar a proposta
orçamentária elaborada e encaminhada ao Executivo pelos poderes Legislativo
e Judiciário, para efeito de elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias e
Lei Orçamentária, bem como as respectivas justificativas apresentadas sobre
necessidades e projetos de aperfeiçoamento e ampliação, com a efetiva dotação
orçamentária que, ao final, lhes foi consignada pela Lei Orçamentária.
Com efeito, o maior ou menor grau de atendimento das necessidades e
expectativas orçamentárias destes poderes, na Lei de Diretrizes Orçamentárias
ou na Lei Orçamentária, o maior ou menor grau de consenso na elaboração
do Orçamento Público, indicarão o equivalente estágio de evolução e
maturidade no cumprimento da Independência e Harmonia constitucionais,
daí decorrendo reflexos positivos ou negativos para a efetividade da Autonomia
Financeira do Poder Judiciário.
Destaca-se ainda outro grande desafio, quando se fala em Orçamento
Público, consistente na gestão orçamentária, isto é, a administração das
Receitas previstas e das Despesas fixadas103.
A relação entre Receita e Despesa, explica Ricardo Lobo Torres104, consiste
nas “duas faces da mesma moeda, as duas vertentes do mesmo Orçamento.
Implicam-se mutuamente e devem se equilibrar”.
Recolhe-se na doutrina que a política vigorante no período de 1930 a 1980,
admitindo Orçamentos com déficit por excesso de despesa, para viabilizar
investimentos no sentido de garantir o pleno emprego e a estabilidade
econômica, hoje se encontra superada, buscando-se alcançar estes mesmos
objetivos, mas com a manutenção de um Orçamento equilibrado105.
Neste sentido, em busca do referido equilíbrio, a Constituição da República
de 1988, além das três formas de planejamento já referidas (PPA, LDO e LOA),
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 157.
A Categoria Receita deve ser entendida como a “[...] soma de dinheiro percebida pelo Estado para fazer
face à realização do gastos públicos”, ao passo que a Categoria Despesa significa “[...] a soma dos gastos
realizados pelo Estado para a realização de obras e para a prestação de serviços públicos”. [TORRES, 2002,
p. 165 e 172].
104
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 173.
105
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário, p. 173.
102
103
284
Revista ENM
ainda determinou a edição de lei complementar para disciplinar as finanças
públicas (art. 163, inciso I), bem como para limitar os gastos com pessoal ativo e
inativo, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
(art. 169), deixando o quantum de limitação para a norma infraconstitucional.
Em cumprimento ao mandamento da Carta Política, sobreveio a Lei
Complementar no 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal
– “LRF”) 106, até hoje objeto de críticas e aplausos.
Louvando os propósitos da referida Lei Complementar, assevera
Figueiredo107:
A LRF [...] trouxe novamente à tona a discussão sobre o equilíbrio
orçamentário e não se limitou à ingenuidade do mero equilíbrio
entre previsão de receitas e fixação de despesas na proposta de
Orçamento. Foi mais longe e impôs o efetivo equilíbrio financeiro
ao longo de todo o exercício, com ênfase no último ano de mandato
dos gestores, inclusive instituindo formalmente preocupação com
o que denomina riscos fiscais, fatores que, se não adequadamente
previstos, podem comprometer o equilíbrio das contas e a qualidade
da gestão. Equilíbrio e transparência são, aliás, dois grandes pilares
sobre que se assenta a LRF.
Evidentemente, a necessidade de controlar os gastos com pessoal, por
parte do Estado, é um problema histórico, sendo elogiável a preocupação do
legislador constituinte em buscar alternativas para estancar práticas clientelistas
e de apadrinhamentos políticos, condutoras de verdadeiro loteamento de
cargos públicos, fonte geratriz de inchaço da máquina administrativa e cujos
custos impedem os investimentos necessários para a melhoria e ampliação dos
serviços estatais.
Adverte Torres108, todavia, que a Lei de Responsabilidade Fiscal, inspirada
no modelo autoritário da Nova Zelândia, ao trazer diversas previsões
visando ao controle dos gastos com “pessoal”, incorreu em situações de
duvidosa constitucionalidade por promover uma centralização vertical (no
106
O art. 163 está assim redigido: “Art. 163. Lei complementar disporá sobre: I – finanças públicas;”;
o caput do art. 169 da Constituição Federal tem a seguinte redação: “Art. 169. A despesa com pessoal
ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites
estabelecidos em lei complementar”. CRFB/88.
107
FIGUEIREDO, Carlos Maurício et alli. Comentários à lei de responsabilidade fiscal, p. 61.
108
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 9. ed. atual. até a publicação da Emenda
Constitucional n. 33, de 11.12.2001 e da Lei Complementar 113, de 19.9.1. Rio de Janeiro: Renovar,
2002. p. 164-165.
Revista ENM
285
Governo Federal) ou horizontal (no Poder Executivo) do poder controlador.
E exemplifica:
(...)
a) o art. 19 estabeleceu limites de gastos com o pessoal para cada
ente da Federação e o art. 20 repartiu tais gastos entre o Judiciário,
o Legislativo, o Executivo e o Ministério Público;
b) o § 3o do art. 9o prescreveu que “no caso de os Poderes Legislativo
e Judiciário e o Ministério Público não promoverem a limitação
no prazo estabelecido no caput, é o Poder Executivo autorizado
a limitar os valores financeiros segundo os critérios fixados pela
Lei de Diretrizes Orçamentárias” (o dispositivo foi suspenso por
liminar concedida pelo STF em 22.2.02, na ADIN 2.238).
c) os arts. 21, 22 e 23 estabelecem normas para o controle total do
pessoal.
A impressão do jurista, no que se refere à violação de preceitos constitucionais
pela Lei Complementar referenciada, quando estabelece limites no âmbito dos
entes federados e entre os poderes para gastos com pessoal, não é isolada.
Adauto Viccari Junior109, de forma bastante direta e incisiva, ao interpretar o
artigo 20, da Lei de Responsabilidade Fiscal, deixa estampada sua posição crítica:
A nova lei de responsabilidade fiscal ao importar o modelo de metas
inflacionárias de países que adotam a forma parlamentar de governo,
tais como Alemanha, Canadá, Grã-Bretanha e Nova Zelândia, desconsiderou as especificidades do sistema presidencialista e a estrutura
do Estado Federal. Daí se extrai que os Estados são dotados de autonomia, enquanto a União é dotada de soberania. A autonomia dos
Estados manifesta-se por meio de governos próprios e competências
exclusivas. Está na autonomia a capacidade de auto-organização. A
fixação de percentuais, no art. 20, II, para os Poderes e para o Ministério Público, no âmbito dos entes da federação brasileira, importou
na revogação da autonomia de auto-organização. A União, ao invadir
a autonomia dos Estados-membros, afronta o disposto no art. 2o da
CF (Separação de Poderes) e art. 60, § 4o, I e II, de CF (forma federativa e separação de poderes), que trata das cláusulas pétreas.
109
VICCARI JUNIOR, Adauto. et alli. Lei de responsabilidade fiscal comentada..., p. 78.
286
Revista ENM
Por sua vez, destaca Figueiredo110 que “esse artigo encerra uma série de
análises, muitas vezes polêmicas, sobretudo quanto à sua constitucionalidade.
Inova em relação às leis Camata I e II, pois fixa o limite máximo de gasto com
pessoal em cada Poder e não apenas no ente”.
Acrescenta ainda outros importantes questionamentos: “como esses
percentuais foram encontrados? Qual o critério, ou critérios, para determinar
o percentual de cada Poder”111.
E a resposta à pergunta é contundente: “simplesmente foi estabelecida
uma medida aritmética dos valores encontrados para todos os Estados da
Federação. O critério de estabelecimento dos limites do artigo 20 foi, se não
arbitrário, no mínimo, pueril”112.
Porém, ao analisar, especificamente, o artigo 20, da Lei de Responsabilidade
Fiscal, malgrado as suas desconfianças, ainda assim entende constitucional o
dispositivo, apontando para tanto uma interpretação intermediária, qual seja
a possibilidade das Leis de Diretrizes Orçamentárias de cada ente federado
estipularem limites diferentes para gastos com pessoal, respeitado o valor
global, previsto no artigo 19, da “LRF”. Defende o doutrinador:
(...) harmonizando princípios de hermenêutica constitucional com
o princípio fundamental da autonomia dos entes federados e, por
fim, arrimados em pronunciamento da Suprema Corte, entendemos
que os entes federados poderão estabelecer em suas LDOs limites
percentuais de gastos com pessoal diferentes daqueles estabelecidos
no artigo 20 da LRF. No entanto, é importante lembrar, poderão
fazê-lo desde que respeitados os limites globais do artigo 19. Caso
as LDOs sejam omissas, serão utilizados, então, os limites dispostos
no art. 20 (...)113.
Mas esses argumentos são rebatidos por Régis Fernandes de
Oliveira114, ao afirmar taxativamente que a União, no âmbito da
legislação concorrente (art. 24, CRFB/88), tem competência para
legislar aos entes federais apenas na edição de normas gerais, e,
descendo a LRF a minúcias quanto aos percentuais de gastos com
FIGUEIREDO, Carlos Maurício et alli. Comentários à lei de responsabilidade fiscal, p. 138.
FIGUEIREDO, Carlos Maurício et alli. Comentários à lei de responsabilidade fiscal, p. 61.
112
FIGUEIREDO, Carlos Maurício [et al]. Comentários à lei de responsabilidade fiscal, p. 61.
113
FIGUEIREDO, Carlos Maurício [et al]. Comentários à lei de responsabilidade fiscal, p. 61.
114
OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Responsabilidade fiscal. p. 55.
110
111
Revista ENM
287
pessoal por parte dos Poderes dos Estados, agrediu de forma direta o
princípio federativo, incidindo em flagrante inconstitucionalidade.
E acrescenta o mesmo autor que, “por maior boa vontade que se
tenha no entendimento de que a norma é moralizadora, antes de
mais nada, deve o jurista respeito aos princípios cardeais do sistema
jurídico constitucional115.
Decididamente, a questão não é pacífica quanto à constitucionalidade dos
limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, relativamente aos gastos
com pessoal.
Observa-se, neste ponto, que desconsideradas pelo legislador as funções
específicas de cada Poder, ao estabelecer os limites indicados, notadamente no
que se refere ao Poder Judiciário, porque um exclusivo prestador de serviços.
Não é possível perder de mira ser a atividade judicial um monopólio estatal,
que não admite delegação, erigindo-se, pois, como condição imprescindível
ao cumprimento da missão constitucional imposta ao respectivo Poder, a
existência de um corpo funcional qualificado (material humano insubstituível
por máquinas) e em número capaz de suportar a demanda, sempre crescente.
De qualquer forma, o fato é que a questão encontra-se sub judice perante o
Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN,
no 2.238116.
Em decisão cautelar, proferida no referido processo, datada de 22.2.2001,
restou suspensa a eficácia do § 3o, do artigo 9o, da lei em referência, justamente
por suspeita de malferimento olímpico ao Princípio da Tripartição dos
Poderes (Independência e Autonomia do Poder Judiciário e do Poder
Legislativo), eis que permitia ao Poder Executivo limitar, unilateralmente,
os valores financeiros dos demais poderes e do Ministério Público, na
hipótese de comportamento inadequado da receita em relação ao previsto,
com risco de comprometimento das metas de resultado primário e nominal,
estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais.
A liminar deferida pela Corte Suprema, se de um lado ainda se mostra
precária porque não apreciou com profundidade o mérito da controvérsia, de
OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Responsabilidade fiscal. p. 56.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 2.238/2000-DF. Relator
Ministro Ilmar Galvão (substituído pelo Ministro Carlos Britto). Disponível em <http://www.stf.gov.br>.
Acesso em: 2 de março de 2006.
115
116
288
Revista ENM
outro, continua a lançar dúvida117 séria de que a Lei Complementar no101/2000
efetivamente possui incompatibilidades com o texto constitucional, as quais
aguardamos sejam devidamente declaradas, em tempo.
Anota-se, ainda, relativamente à referida decisão da Excelsa Corte que,
mesmo na parte onde foi reconhecida a constitucionalidade do art. 20 da
LRF, o placar de seis votos a cinco assinala a dificuldade do problema e aponta
o caráter político do Tribunal, sustentando Régis Fernandes de Oliveira seu
inconformismo ao afirmar não ser possível “(...) entender constitucional o
dispositivo, no que vincula Estados e Municípios, impondo-lhes restrições,
bem como no que alcança os Poderes Judiciário e Legislativo. A norma nacional
complementar apenas pode dispor sobre ‘normas gerais’ e, positivamente,
assim não se podem entender aquelas que descem a detalhes sobre percentuais
de aplicação obrigatória”118.
A indignação do jurista encontra eco nas palavras do ex-Ministro Carlos
Mário da Silva Velloso, do próprio Supremo Tribunal Federal, ao prefaciar
obra de Ives Gandra Martins e Carlos Valder do Nascimento, oportunidade
em que sustentou a inconstitucionalidade do artigo 20 da LRF, em face do
malferimento da autonomia estadual, a qual classifica como “espinha dorsal
do federalismo”.119
E manifestou surpresa o então Ministro, inclusive, com a aprovação do
texto da LRF por parte de alguns Governadores, dizendo que estariam eles
“esquecidos de que o dispositivo provoca a ofensa ao princípio maior, o da
autonomia do Estado, sem o qual não há federação”, e indagou: “o que vai
acontecer, então, daqui para frente?”.
Antevendo os efeitos negativos para o Poder Judiciário, finalizou o exMagistrado do Pretório Excelso:
O serviço da Justiça, de regra deficiente, porque deficiente o número
de juízes, deficiente o apoio administrativo aos juízes de 1º grau, tende
a piorar, porque os Tribunais não poderão aperfeiçoá-lo. Convém
registrar que, por esse Brasil afora, há juízes que não dispõem nem
Dúvida, para Mendes [2004, p. 107], “[...] pressupõe uma opinião hipotética que traduz insegurança
sobre a validade da lei [...]. Não se exige, tal como admitido por Schumann [...], uma opinião definitiva ou
a negação da legitimidade da norma [...]. Aquele que tem dúvida sobre a constitucionalidade de uma norma
não nega, definitivamente, a sua legitimidade”.
118
OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Responsabilidade fiscal. p. 57.
119
MARTINS, Ives Gandra da Silva; NASCIMENTO, Carlos Valder do. Comentários à lei de
responsabilidade fiscal, p. XXVIII.
117
Revista ENM
289
de máquina de escrever, quando a máquina de escrever, diante da
revolução dos computadores e da informática, virou peça de museu.
Enfim, possível constatar, de tudo o quanto foi trazido que, para a
concretização das complexas atividades desenvolvidas pelo Estado, no âmbito
das três esferas de Poder (Executivo, Legislativo e Judiciário), dado o volume
de recursos financeiros envolvidos na atualidade, necessário se faz, cada vez
mais, um controle eficiente das receitas e despesas públicas.
Para tanto, o sistema de planejamento orçamentário previsto na CRFB/88
e acima apresentado (PPA, LDO, LOA, LRF), assume uma função de extrema
relevância, qual seja, a otimização dos recursos captados da Sociedade, de forma
a possibilitar a ampliação dos serviços estatais e atender uma população cada vez
mais ávida pelo exercício da cidadania, sob pena de se vivenciar uma situação de
“ingovernabilidade”, usando, aqui, a expressão de José Eduardo Faria120.
E o risco desse desgoverno é sempre iminente em períodos de crise fiscal,
assegurando Faria121 que “se agrava ainda mais quando as dificuldades fiscais,
as tensões orçamentárias e os demais problemas políticos ameaçam a própria
autonomia, a coesão, a operacionalidade e a funcionalidade das instituições
governamentais”.
O esforço permanente para o Poder Judiciário, pois, está em não permitir
que as normas disciplinadoras da Atividade Financeira do Estado, na ânsia
de solucionar o déficit de caixa, sejam conformadas em confronto com os
preceitos fundamentais do Estado Democrático de Direito, em prejuízo
da sua Autonomia Financeira e em detrimento da promoção dos Direitos
Fundamentais, dentre eles o Acesso à Justiça.
120
Sobre este fenômeno da “ingovernabilidade”, adverte Faria [2002, p. 119-120]: “A situação limite de um
cenário de ingovernabilidade é uma crise fiscal, quando o Estado perde crédito público, deixa de acumular
poupança, é pressionado por grupos de interesses de todos os tipos, enfrenta dificuldades crescentes para
executar suas políticas e vê comprometida sua capacidade de regular a economia e promover transferências
de renda no interior da sociedade. Essa crise se torna particularmente visível no momento em que as
despesas sociais destinadas a legitimar um modo específico de produção, mediante a busca de harmonia
social e de lealdade às regras do jogo econômico, em troca de programas de bem-estar nas áreas da saúde,
transporte, previdência, saneamento básico, moradia e educação, passam a crescer mais rapidamente do que
os meios de financiá-la. Como é sabido, essas despesas, uma vez efetivadas, convertem-se em direitos sociais
que acabam não podendo mais ser suprimidos sem o risco de grandes tensões – sob a forma de greves por
vezes selvagens, protestos por vezes violentos e grandes mobilizações – para a sustentação dos governos e
para legitimidade do próprio sistema político”.
121
FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada, p. 121.
290
Revista ENM
5. Autonomia financeira dos tribunais e gestão orçamentária
eficiente – Exigência constitucional
Estabelecidas essas importantes premissas para a correta compreensão
do tema (Princípio da Tripartição dos Poderes, Independência, Autônoma
Financeira e Orçamento Público), volvemos ao início para repisar, uma vez
mais, que as mudanças impostas ao Poder Judiciário brasileiro, a partir da
Reforma Constitucional 45/2004, buscaram, em sua essência, a reconstrução
desse Poder da República, tornando-o moderno e capaz de conferir eficácia aos
direitos fundamentais, notadamente o Acesso à Justiça e a Duração Razoável
do Processo (art. 5o, CRFB/88), os quais, em última instância, consagram
verdadeira garantia de respeito aos demais direitos consagrados na Carta
Constitucional.
A empreitada é de grande envergadura, na medida em que os dados estatísticos continuam a demonstrar um desconcertante déficit entre a estrutura
judicial nacional hoje existente e a crescente demanda dos “consumidores” da
Justiça, usando aqui expressão cunhada por Cappelletti.
Somente para exemplificar, no ano de 2007 existiam no Brasil 64.510.608
processos em andamento no Primeiro Grau122, para um quadro de 13.349
Juízes (Estaduais, Federais e do Trabalho), do que resulta uma média de 4.832
processos por Juiz, conforme planilhas divulgadas pelo Conselho Nacional de
Justiça no Projeto “Justiça em Números 2007”.
No mesmo ano, se considerada a estimativa populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, igual a 184.000.000 de habitantes,
e ainda, partindo do pressuposto de que a Justiça brasileira é nacional e está
apenas dividida em dois níveis com competências distintas (Estadual e Federal
– esta última subdividida em Comum e do Trabalho), encontramos a seguinte
realidade no tocante ao número de Juízes de Primeiro Grau por habitante, no
âmbito nacional:
a) 19.440 habitantes por Juiz Estadual de Primeiro Grau;
b) 143.413 habitantes por Juiz Federal de Primeiro Grau;
c) 70.742 habitantes por Juiz do Trabalho de Primeiro Grau.
No ano de 2010, a situação não registrou grandes avanços positivos,
122
Os dados se referem apenas ao Primeiro Grau, e englobam a Justiça Comum Estadual, a Justiça Federal e
a Justiça do Trabalho. Foram somados os processos novos ajuizados e os processos pendentes de julgamento
no ano de 2007, inclusive os feitos do Juizado Especial, as execuções de títulos extrajudiciais na Justiça
Federal, e as execuções na Justiça do Trabalho.
Revista ENM
291
alcançamos o contingente de 83.400.000 processos tramitando nos três ramos
da Justiça, para um universo de 16.553 magistrados123.
Esses dados, seguramente, mostram realidade desconfortável se comparados
a outros países, como a Alemanha, cuja razão é de um Juiz para cada grupo
de 4.000 habitantes, segundo referiu certa vez o então Ministro do Supremo
Tribunal Federal Carlos Mário da Silva Veloso124.
Em nossa obra “Acesso à Justiça e Autonomia Financeira do Poder
Judiciário”125, as carências materiais e humanas do Judiciário brasileiro, assim
como a insuficiência crônica de recursos financeiros, especialmente nos
tribunais estaduais, foram cientificamente demonstradas através de pesquisa
de campo realizada entre os anos de 2001 a 2004. O trabalho acadêmico
que serviu de base à referida obra, então marcado pelo ineditismo em razão
da temática e abrangência nacional, posteriormente foi continuado de forma
amplificada e aprofundada pelo Supremo Tribunal Federal e, ao depois, pelo
Conselho Nacional de Justiça (Justiça em Números).
De todo modo, a análise dos dados estatísticos hoje disponíveis permanece
apontando para o descumprimento do primado da Autonomia Financeira do
Poder Judiciário; esse problema de natureza político-institucional (posto que
a solução exige uma agenda comum positiva, um significativo esforço entre os
Poderes da República), em grande medida, situa-se na base do fenômeno da
morosidade processual.
Assim, forçoso reconhecer que a erradicação da morosidade passa,
necessariamente, pelo cumprimento efetivo desse preceito constitucional,
inserido no art. 99 da Carta Política de 1988.
Todavia, essa afirmação/constatação, ousada para alguns, equivocada para
outros, mas respeitada por muitos daqueles que vivenciam a realidade do
Judiciário brasileiro, remete a um desdobramento complementar e oportuno.
Ocorre que o legislador constituinte, ao mesmo tempo em que corajosamente
avançou e emancipou o Poder Judiciário, conferindo-lhe expressa Autonomia
Administrativa e Financeira, igualmente dele exigiu o cumprimento de outro
Esses dados, extraídos do Relatório “Justiça em Números 2010”, elaborado pelo Conselho Nacional de
Justiça-CNJ, englobam o primeiro e o segundo graus de jurisdição.
124
SCHUCH, Luiz Felipe Siegert. Acesso à justiça e autonomia financeira do Poder Judiciário: a quarta onda?
Em busca da efetividade dos direitos fundamentais. 1. ed. (2006). 2. reimpr. (2010) Curitiba: Juruá Editora,
2010. p. 156.
125
SCHUCH, Luiz Felipe Siegert. Acesso à justiça e autonomia financeira do Poder Judiciário: a quarta onda? Em
busca da efetividade dos direitos fundamentais. 1. ed. (2006), 2. reimpr. (2010). Curitiba: Juruá Editora, 260 p.
123
292
Revista ENM
preceito – o Princípio da Eficiência (art. 37, CRFB/88), já conceituado linhas
atrás e que, resumidamente, significa a obrigação de bem gerir os recursos
públicos para extrair o máximo de produtividade.
Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, no plano do Direito Administrativo
a Eficiência significa a “melhor realização possível da gestão dos interesses
públicos, em termos de plena satisfação dos administrados com os menores
custos para a sociedade”126.
Como corolário, temos então que a combinação dos princípios da
Eficiência e da Autonomia Financeira do Poder Judiciário faz surgir para este
Poder a obrigação constitucional de uma Gestão Orçamentária Eficiente, aqui
entendida como um conjunto de atos de administração do orçamento público,
destinados à sua elaboração sintonizada com as políticas institucionais eleitas
como prioritárias, e voltados para a responsável, fiel e integral execução no
curso do exercício financeiro para o qual foi projetado127, do que não escapam,
obviamente, os demais entes públicos.
Transportando a discussão do plano teórico para o mundo das coisas
terrenas, significa dizer que a adoção pura e simples dos métodos e técnicas
do Direito Financeiro por parte dos tribunais, brevemente referenciadas do
tópico anterior, dentre as quais a utilização da peça orçamentária apenas como
baliza de receitas e despesas, não mais condiz com a quadra atual de exigência
social de qualidade dos serviços.
O Poder Judiciário contemporâneo precisa ser proativo para superar
as adversidades e alcançar a excelência no cumprimento de sua missão
institucional/constitucional.
Nesse quadro, pois, a Gestão Orçamentária Eficiente se apresenta como
importante meta a ser perseguida e implementada, razão pela qual neste breve
estudo entende-se oportuno destacar três ferramentas úteis para a sua concretização,
como forma de contribuir para o aprimoramento da atividade gerencial: a)
orçamento participativo; b) planejamento e gerenciamento estratégico – adoção
do sistema “Balanced Scorecard (BSC)”; c) execução orçamentária plena.
Vejamos cada uma delas em separado.
A adoção da prática do Orçamento Participativo na formulação da
proposta orçamentária do Poder Judiciário se revela de grande importância, na
126
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A lei de responsabilidade fiscal e seus princípios jurídicos. RDA
n. 221, jul./set. 2000, p. 84.
127
Conceito operacional elaborado pelo autor.
Revista ENM
293
medida em que democratiza a decisão sobre as necessidades e prioridades da
instituição, produzindo maior comprometimento dos envolvidos na execução
futura da peça orçamentária consolidada.
Conforme Cláudia Dantas Ferreira da Silva, “somente um plano de
gestão legitimado pelo corpo de magistrados do tribunal e pelos servidores
pode possibilitar a implementação de mudanças a longo prazo e garantir a
continuidade, superando o problema dos avanços e retrocessos a que se
submete o órgão a cada nova gestão”128.
A realização de reuniões regionais com magistrados, servidores, membros
do Ministério Público e representantes da Ordem dos Advogados do Brasil no
processo de colheita de informações, sugestões, identificação dos problemas e
suas causas, contribui para a confecção de um orçamento mais próximo das
expectativas sociais, e, por conseguinte, com maior probabilidade de produzir
os resultados esperados.
Diferentes percepções sobre uma mesma realidade podem enriquecer
a avaliação sobre as verdadeiras causas dos problemas enfrentados por
determinada comarca ou unidade jurisdicional.
É preciso diferenciar a deficiência de estrutura da unidade/comarca para
atender a demanda, que reclama maiores investimentos financeiros em
equipamentos e material humano, da deficiência de gestão na mesma unidade/
comarca/seção judiciária por parte dos seus responsáveis, o que reclama outro
tipo de abordagem.
De outro lado, a adoção do Planejamento Estratégico e a combinação
com o sistema “Balanced Scorecard (BSC)”, este último adaptado para o
setor público129, constitui importante ferramental para a produção do retorno
almejado na execução orçamentária.
Entenda-se como planejamento estratégico o processo pelo qual os
integrantes e líderes de uma organização visualizam cenários futuros a partir
de causas e efeitos e, partindo dessas projeções, estabelecem procedimentos
128
SILVA, Cláudia Dantas Ferreira da. Administração judiciária: planejamento estratégico e a reforma do
judiciário brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 976, 4 mar. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.
com.br/doutrina/texto.asp?id=8062. Acesso em: 21 maio 2007.
129
Segundo Kaplan e Norton, o sistema Balanced Scorecard pode perfeitamente ser adaptado às
entidades governamentais e não lucrativas, bastando colocar os clientes no alto da pirâmide, ou
seja, como o principal objetivo a atingir. KAPLAN, Robert S.; NORTON, David P. Organização
orientada para a estratégia. Tradução Afonso Celso da Cunha Serra. 9. Ed. Rio de Janeiro: Elsevier,
2000. p. 146.
294
Revista ENM
e ações direcionados a alcançar um resultado futuro; quanto ao Balanced
Scorecard, representa um sistema de monitoramento, medições e indicadores
para aferir a eficiência/realização daquilo que se planejou realizar.
Assim, o planejamento é substancialmente potencializado quando as
metas predefinidas como prioritárias e os projetos incluídos no orçamento
são monitorados durante a execução orçamentária, através de um conjunto de
indicadores sobre o desempenho desses projetos, permitindo uma posterior
avaliação, um amplo feedback.
O resultado dessas medições é necessário ao aperfeiçoamento do planejamento
e aferição da correção ou não das estratégias então utilizadas, aqui residindo,
pois, uma das grandes virtudes do sistema Balanced Scorecard (BSC).
Como bem afirmam Kaplan e Norton, “medir é importante: o que não é
medido não é gerenciado”130, elencando uma série de vantagens na utilização
do sistema BSC na gestão estratégica, tais como:
a) esclarecer e obter consenso em relação à estratégia;
b) comunicar a estratégia a toda a empresa;
c) alinhar as metas departamentais e pessoas à estratégia;
d) associar os objetivos estratégicos com metas de longo prazo e orçamentos
anuais;
e) identificar e alinhar as iniciativa estratégicas;
f ) realizar revisões estratégicas periódicas e sistemáticas;
g) obter feedback para aprofundar o conhecimento da estratégia e
aperfeiçoá-la.
Por último, também importante para uma gestão orçamentária eficiente,
a busca permanente da Execução Orçamentária Plena, aqui entendida como
a completa execução dos projetos inseridos no orçamento, durante o seu
exercício.
Injustificável à população, ao jurisdicionado, a carência ou deficiência
dos serviços judiciários por falta de execução dos projetos previstos, quando
disponíveis os recursos orçamentários necessários para a melhoria do
atendimento.
Também não se mostra razoável, no atual quadro de dificuldades
orçamentárias enfrentado pelos tribunais, a alocação de recursos em projetos de
130
KAPLAN, Robert S.; NORTON, David P. A estratégia em Ação: balanced scorecard. Tradução Luiz
Euclydes Trindade Frazão Filho. 17. Ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 21.
Revista ENM
295
difícil realização ou que previamente se sabe não serão executados, porquanto
tal prática produz desequilíbrio e, por vezes, falta de recursos em outros setores
prioritários. Pior ainda são os casos de hipertrofia de alguns projetos, fruto da
falta de um correto planejamento prévio à confecção da proposta orçamentária.
Esses desvios na execução do orçamento público frustram expectativas,
sendo necessário lembrar que o objetivo do planejamento estratégico, da
execução orçamentária eficiente, da adoção de ferramentas de medição
e controle dos projetos, não está, como na iniciativa privada, na obtenção
do lucro, mas sim na satisfação do “consumidor” da Justiça, do cidadão, na
prestação de um serviço de qualidade e com níveis de excelência capazes de
fortalecer ainda mais o Estado democrático.
A adoção dessas ferramentas poderá, seguramente, produzir melhores
resultados gerenciais, emprestando mais eficiência no dispêndio dos recursos
financeiros disponíveis.
Como consequência, estarão os gestores públicos protegidos dos dez
pecados capitais enumerados por Valéria Fernandes da Silva131:
a) o gestor público não programa suas Ações de forma planejada, mas as
concebe no dia a dia, conforme a urgência de cada situação;
b) o gestor público não dá importância ao orçamento público, concebendo-o
como entrave burocrático à sua administração;
c) o gestor público não gosta de descentralizar decisões, pois entende que
isto significa perda de poder;
d) o gestor público não investe em capacitação e nem tampouco busca as
melhores referencias profissionais. O seu foco é político e não técnico;
e) o gestor público tem receio de ser transparente, pois teme ser questionado
sobre suas ações;
f ) o gestor público não tem o hábito de socializar informações e de utilizálas em sua estratégia de ação;
g) o gestor público fica tentando inventar a roda, quando poderia
aperfeiçoar e adequar para a sua realidade situações já existentes;
h) o gestor público ainda não acredita que será punido se cometer erros ou
prejuízos à sociedade;
i) o gestor público administra a coisa pública como se fosse uma
administração doméstica e baseada em contabilidade de botequim;
131
SILVA, Valeria Fernandes da. Orçamento público e controle democrático. TCEMG. 5/2004. Disponível
em: www.scribd.com/doc/7393026/Orcamento-Publico-E-Democracia. Acesso em 15.9.2009.
296
Revista ENM
j) o gestor público não se preocupa em ser responsável do ponto de vista
legal, mas sim em ser eficiente do ponto de vista político.
Ao finalizar, resta apenas consignar uma necessária advertência: a melhora
gerencial, tão somente, não possui o condão de arrostar o grave problema do
déficit estrutural do Poder Judiciário brasileiro, antes referenciado; tampouco
se mostra o remédio adequado para curar a chaga degenerativa que acomete a
legislação processual, que de tantos curativos e cirurgias vem se transformando
em um verdadeiro Frankstein.
O Judiciário nacional permanece com uma desproporção acentuada entre o
número de julgadores, o quantitativo populacional e o volume de processos novos
e em andamento, desproporção esta que se afigura mais destrutiva do que em
países desenvolvidos, na medida em que, nestes últimos, o elevado nível cultural é
fator auxiliar na autocomposição dos conflitos, ao contrário do que se vê no Brasil,
onde os Tribunais convivem com questões da mais alta complexidade ladeadas por
brigas de vizinhos, decorrentes de motivos dos mais exóticos132.
Enfim, planejamento, gestão eficiente e investimento, estes são os três
alicerces fundamentais para reconstruir o Judiciário atual, e sobre os quais
devem ser apoiadas as novas bases para o Judiciário do futuro.
Para encerrar, resta apenas dizer que é tempo de vivificar os princípios
constitucionais fundantes da Sociedade nacional, através de posturas ativas
daqueles que detém o poder político, social e econômico. O momento exige
a demonstração de “vontade de Constituição” (Wille zur Verfassung), para que
a Carta Magna possa expressar, na sua plenitude, a “força normativa” de cada
um dos seus preceitos, usando aqui as valiosas expressões de Konrad Hesse133.
Referências Bibliográficas
ARISTÓTELES. A política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. 15. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988.
187 p. A edição não traz o título original.
__________. Arte retórica e arte poética. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. 14. ed. Rio de Janeiro:
Ediouro. 290 p. Título original: “Art Rhétorique et Art poétique”. A edição não traz o ano da publicação.
__________. Ética a Nicômacos. Tradução de Mário da Gama Kury. 4. ed. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2001. 238 p. Título original: “Ethikon Nikomacheion”.
ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS. Um poder independente. Brasília: AMB, 1995.
48 p.
BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 15. ed. rev. e atual. por Dejalma de Campos.
132
SCHUCH, Luiz Felipe Siegert. Acesso à justiça e autonomia financeira do Poder Judiciário: a quarta onda?
Em busca da efetividade dos direitos fundamentais. 1. ed. (2006), 2. reimpr. (2010).Curitiba: Juruá, 2010.
p. 165. Nota de rodapé 393.
133
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
Revista ENM
297
Rio de Janeiro: Forense, 2000.
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática
constitucional transformadora. 4. ed. revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2001. 324 p.
__________. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da constituição
brasileira. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 366 p.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. atualizada. São Paulo: Saraiva, 2001. 515 p.
_________. Curso de direito financeiro e de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1991.
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. 9. tir. revista, atualizada. São Paulo: Malheiros, 2000. 498 p.
BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. 4. ed. Brasília: OAB Editora,
2002. 950 p.
BRASIL. Constituição [1988]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro
de 1988. 33. ed. atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2004. 386 p.
__________. Constituição [1988]. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional
promulgado em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2001. 405 p.
__________. Ministério da Justiça. Modernização do Judiciário passa por autonomia financeira do setor.
Notícias. Disponível em «http://www.mj.gov.br/ noticias/2003/setembro/RLS180903-reforma.htm».
Acesso em: 29 de maio de 2004.
__________. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 1105 MC/DF. Relator
Ministro Paulo Brossard. Tribunal Pleno. Brasília, 3 de agosto de 1994. DJU de 27.4.2001, p. 00057.
Disponível em «www.stf.gov.br». Acesso em: 29 de maio de 2004.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade no 2238 / DF. Relator Ministro Ilmar
Galvão. Brasília, 22 de fevereiro de 2001. Disponível em «www.stf.gov.br». Acesso em: 29 de maio de 2004.
__________. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança no 23267 / SC. Relator Ministro Gilmar
Mendes. Brasília, 03 de abril de 2003. DJU de 16.05.2003. Disponível em «www.stf.gov.br». Acesso em:
29 de maio de 2004.
__________. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem no Agravo Regimental no Mandado de Segurança
Coletivo no 21291 / DF. Relator Ministro Celso de Mello. Brasília, 12 de abril de 1991. DJU de 27.10.1995,
p. 36.331. RTJ 159/454. Disponível em «www.stf.gov.br». Acesso em: 29 de maio de 2004.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra:
Livraria Almedina, 2002. 1504 p.
CARLIN, Volnei Ivo. Deontologia jurídica: ética e justiça. Florianópolis: Obra Jurídica, 1997. 180 p.
__________. Direito administrativo: doutrina, jurisprudência e direito comparado. 2. ed. revista, atualizada
e ampliada. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2002. 384 p.
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos do direito constitucional. 1. ed., 2. tir. Curitiba: Juruá, 2002. 274 p.
__________. Política, poder, ideologia e estado contemporâneo. Florianópolis: Diploma Legal, 2001. 284 p.
DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. 163 p.
__________. O renascer do direito: direito e vida social, aplicação do direito, direito e política. 2. ed., corrigida.
São Paulo: Saraiva, 1980.
DANTAS, Ivo. Constituição federal: teoria e prática. Vol. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. 412 p.
__________. Direito constitucional e instituições políticas. Bauru: Editora Jalovi, 1986. 219 p.
DOBROWOLSKY, Silvio (org). A constituição no mundo globalizado. Florianópolis: Diploma Legal, 2000,
316 p.
FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002. 359 p.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 30. ed. revista e atualizada. São
Paulo: Saraiva, 2003. 371 p.
__________. Direitos humanos fundamentais. 4. ed. revista. São Paulo: Saraiva, 2000. 191 p.
__________. O poder constituinte. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. 204 p.
FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional. 12. ed. ampliada e atualizada de acordo com as emendas
constitucionais e a revisão constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002. 669 p.
FIGUEIREDO, Carlos Maurício et al. Comentários à lei de responsabilidade fiscal. 2. ed. revista, atualizada
e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2001. 320 p.
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudos sobre o culto, o direito e as instituições
da Grécia e de Roma. Tradução de Edson Bini. 2. ed. São Paulo: Edipro, 1999. 334 p. Título original: “La
cité antique”.
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
KAPLAN, Robert S.; NORTON, David P. A estratégia em Ação: balanced scorecard. Tradução Luiz Euclydes
298
Revista ENM
Trindade Frazão Filho. 17. Ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 344 p.
KAPLAN, Robert S.; NORTON, David P. Organização orientada para a estratégia. Tradução Afonso Celso
da Cunha Serra. 9. Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000. 411 p.
Leis Mofadas. Diário Catarinense. Florianópolis, SC. 7 de setembro de 2003. p. 12.
LOPES, Ana Maria D’Ávila. Os direitos fundamentais como limites ao poder de legislar. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2001. 207 p.
MACHADO, Charles M. Constituição Federal na prática. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2002. 601 p.
MARTIS, Ives Gandra da Silva (coordenador). Princípios constitucionais relevantes. Porto Alegre: Magister,
2012. 550 p.
MARTINS, Ives Gandra da Silva; NASCIMENTO, Carlos Valder do. Comentários à Lei de Responsabilidade
Fiscal. São Paulo: Saraiva, 2001. 640 p.
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha.
4. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. 395 p.
MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica
constitucional e direitos fundamentais. 1. ed. 2. tir. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. 322 p.
MIRANDA, Pontes. Comentários à constituição de 1946. Tomo I: Arts. 1o - 5o. 3. ed. revista e aumentada.
Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1960. 533 p.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis: as formas de governo, a federação,
a divisão dos poderes, presidencialismo versus parlamentarismo. Introdução, tradução e notas de Pedro
Vieira Mota. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. 235. A edição não indica o título original.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. 6. ed. São Paulo: Atlas. 2982 p.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. A justiça no liminar de novo século. Texto de conferência pronunciada
em 22.10.1992, em São Paulo, no Congresso de Direito do Trabalho, promovido pela Associação dos
Magistrados da Justiça do Trabalho da 2a Região. Disponível em: «http://almeidafilho.adv.br/acadêmica/
novoseculo.pdf». Acesso em: 29 de maio de 2004.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A lei de responsabilidade fiscal e seus princípios jurídicos. RDA n.
221, jul./set. 2000, p. 84.
NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 352 p.
OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Responsabilidade fiscal. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002.
ROSA JUNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Manual de direito financeiro & direito tributário. 16. ed.
atualizada com as alterações no CTN e as Emendas Constitucionais 32 e 33 de 2001, e ampliada. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002. 838 p.
SALDANHA, Nelson. O estado moderno e a separação de poderes. São Paulo: Saraiva, 1987. 124 p.
SANTA CATARINA. Constituição [1989]. Constituição do Estado de Santa Catarina. 5. ed. anotada,
ampliada, revista. Florianópolis: Insular, 2002. 264 p.
SCHUCH, Luiz Felipe Siegert. Acesso à justiça e autonomia financeira do Poder Judiciário: a quarta onda?
Em busca da efetividade dos direitos fundamentais. 1. ed. (2006), 2. reimpr. (2010). Curitiba: Juruá, 2010.
260 p.
SILVA, Cláudia Dantas Ferreira da. Administração judiciária: planejamento estratégico e a reforma do
judiciário brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 976, 4 mar. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.
com.br/doutrina/texto.asp?id=8062. Acesso em: 21 maio 2007.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. revista e atualizada nos termos da
reforma constitucional [até a emenda constitucional n. 35, de 20.12.2001]. São Paulo: Malheiros, 2002.
878 p.
__________. Orçamento-programa no Brasil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1973. 388 p.
SILVA, Valeria Fernandes da. Orçamento público e controle democrático. TCEMG. 05/2004. Disponível
em: www.scribd.com/doc/7393026/Orcamento-Publico-E-Democracia. Acesso em 15.9.2009.
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 19 ed. revista e atualizada. São Paulo: Malheiros,
2003. 224 p.
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 9. ed. atualizada até a publicação da
emenda constitucional n. 33, de 11.12.2001 e da lei complementar 113, de 19.9.01. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. 401. p.
VICCARI JUNIOR, Adauto et al. Lei de responsabilidade fiscal comentada. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
346 p.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Poder Judiciário: crises, acertos e desacertos. Tradução de Juarez Tavares. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995. 216 p. A edição não traz o título original.
Revista ENM
299
Gestão
Democracia e Poder
Judiciário: propostas
para uma nova Justiça
Brasileira
Fernando Cesar Baptista de Mattos
Juiz Federal Titular da 1a Vara Federal de Execução Fiscal de Vitória – ES
Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Vilian Bollmann
Juiz Federal Substituto
Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí
Autor dos livros “Novo Código Civil: princípios, inovações na parte geral e direito
intertemporal”, “Juizados Especiais Federais: comentários à legislação de regência”,
“Hipótese de Incidência Previdenciária e temas conexos” e “Justiça e Previdência”
Diretor Tesoureiro da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) para o biênio
2008/2010.
Resumo
O estudo aborda a democratização do Poder Judiciário. São analisadas tanto
a ideia de Democracia no plano político e na dogmática constitucional quanto
no âmbito dos novos papéis assumidos pelo Poder Judiciário contemporâneo.
A partir desta análise, busca-se apontar alguns instrumentos para ampliação
da Democracia na atividade-fim jurisdicional quanto na sua gestão interna.
Palavras-chave
DEMOCRACIA – PODER JUDICIÁRIO – STF – AÇÕES COLETIVAS
– JUIZADOS ESPECIAIS – CNJ – CJF – CSJT
300
Revista ENM
1. Nota introdutória
A evolução histórica da humanidade revela uma aparente ampliação do debate
acerca da legitimidade do Estado e das instituições sociais que detêm e exercem
o poder1. As pressões sociais pela participação na tomada de decisões levam, cada
vez mais, a uma consolidação do exercício da Democracia como elemento de
regulação dos embates políticos. Neste caminho, influenciado pelas contínuas
transformações da Sociedade, o Constitucionalismo2 sofreu diversas alterações no
tempo, especialmente no que se refere à ampliação da esfera de atuação do Poder
Judiciário bem como à necessidade de observância do princípio democrático.
Por outro lado, muito embora cresça o consenso quanto à necessidade de
estabelecimento e perenidade da Democracia, não há, ainda, um discurso claro
sobre o que significa este regime e nem tampouco como este discurso teórico
deve se concretizar na prática, especialmente no âmbito das instituições que
compõem o Estado.
Neste processo é possível apontar algumas direções, ainda que elas possam
trazer contradições entre si e não formem um todo sistemático. A questão não
é achar uma resposta definitiva (objetivo que seria no mínimo ingênuo e, no
limite, arbitrário3), mas sim a possibilidade de formação de um discurso que
1
O poder é capacidade que um sujeito ou grupo de realizar a sua vontade, influenciando, condicionando
ou determinando o comportamento de um ou mais pessoas (BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política,
p. 216. NOVA, Sebastião Vila. Introdução à Sociologia, p. 85). Há três teorias para conceituar poder: (a)
substancialista, o poder é o meio – força psicológica – para obter um fim; (b) subjetivista, o poder é a
capacidade de obter algo; (c) relacional, poder é a relação entre sujeitos na qual um obtém de outro um
efeito desejado (BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade, p. 77-78). Diz-se que há três formas de
poder, que produzem desigualdades entre fortes e fracos: (1) riqueza ou poder econômico, decorrente da
organização das forças produtivas; (2) saber ou poder ideológico, oriundo organização do consenso; (3)
força ou poder político, mediante a organização do poder coativo (BOBBIO, Norberto. Estado, Governo,
Sociedade, p. 82-85). A partir da obra de Foucault, o poder pode ser considerado como uma situação
estratégica complexa numa sociedade que não representa uma única dominação maciça e homogênea de um
grupo sobre outro, mas sim um de forma fragmentada nas múltiplas instâncias da vida, manifestando-se de
formas sutis, como a criação e classificação de identidades ou o controle do corpo e dos desejos, ou expressas,
como julgamentos e condenações. Segundo essa visão, o poder é uma forma múltipla de dominação que
circula, pois funciona em cadeia, ou seja, o poder funciona e se exerce em rede e os indivíduos estão sempre
em posição de exercer o poder e de sofrer sua ação (FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder, p. 160162/179-181/183. WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direito, p. 76-77).
2
Constitucionalismo é, simultaneamente, uma teoria ou ideologia e um movimento que, sob a influência do
Iluminismo e do Contratualismo, estrutura a organização política a partir do princípio do governo limitado
como indispensável para a garantia dos direitos. Apresenta-se como uma teoria normativa da política
contra o absolutismo, pregando que o Direito limita o poder Estatal. Logo, a liberdade, como sentido
axiológico inicial do constitucionalismo, fundamentou a ideia da Constituição como a lei para reger o
Estado. Tem como traços marcantes a Organização do Estado e a Limitação do seu poder (CANOTILHO,
José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 51).
3
Ao revés, é natural e previsível que diversas das propostas aqui apresentadas sejam criticadas e, com isso,
aperfeiçoadas ou até mesmo rejeitadas.
Revista ENM
301
tenha possibilidade de aplicação no mundo da vida e, mais particularmente,
no cotidiano do Poder Judiciário.
O fio condutor do presente trabalho é a de que a democracia é um processo
e não uma simples instituição, e que ela permeia tanto a sociedade quanto
pequenos grupos sociais, em qualquer aspecto em que o poder é exercido.
Para isso, após (1) uma breve exposição das características principais do conceito
de Democracia no plano da Filosofia Política e do Direito Constitucional Positivo
e (2) do papel do Judiciário, (3) buscar-se-á apresentar algumas possibilidades para
implementação de uma gestão democrática do Judiciário, (3.1) tanto no plano de
sua atividade-fim, (3.2) quanto a aspectos de suas atividades-meio.
2. Desenvolvimento
2.1. A ideia e a prática da Democracia
A Democracia é um termo utilizado tanto para designar um tipo de regime
político quanto uma teoria política. Ambos partem do pressuposto de que
os governos são legítimos quando as pessoas afetadas pelas decisões coletivas
participam do processo de sua formulação4. Em função da competição política
nos regimes democráticos, a existência de oposição representa um mecanismo
de controle que obriga a prestação de contas pelos detentores do poder
político5. Essa Democracia competitiva facilita a discussão sobre os argumentos
utilizados pelos políticos, obrigando-os a justificar as suas decisões6.
O princípio fundamental da Democracia é o de que, nas questões que
afetam a vida e os interesses coletivos, o povo sabe se governar7. Ou seja, a
legitimação do Estado decorre da soberania popular, que seria, em última
instância, o verdadeiro detentor do poder8. Contra esse princípio, argumentase que, em certos assuntos, o povo não saberia decidir adequadamente
(argumento do comandante do navio)9. Este argumento contrário a uma
“democracia total” foi inicialmente desenvolvido por Platão na sua obra “A
República”. Segundo ele, por analogia, o povo seria como tripulantes de um
SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 7-8. Confira-se, também: CAPELLA, Juan
Ramón. Os cidadãos Servos.
5
SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 258-261.
6
SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 265.
7
SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 248.
8
Para o tema, especialmente para a configuração do chamado “Estado Democrático de Direito” confira-se:
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 98-100; SILVA,
José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 133-138.
9
SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 250.
4
302
Revista ENM
navio que, por não terem ideia de que existe uma ciência da navegação, em
vez de estudarem os astros, as estações do ano e os ventos para guiar o barco,
discutem, entre si, para ver quem comandará o navio, embora todos se achem
mais aptos do que os demais10. Para Platão, o bem supremo é o conhecimento
e a democracia acaba sendo regida pelo princípio da bajulação das massas,
geralmente incapazes de aceitar ou ver a verdade11.
Decorre do princípio da democracia a regra da maioria, isto é, as decisões
são feitas a partir da vontade da maior parte dos votantes. Para os antigos, o
regime democrático implicava que as decisões fossem tomadas em assembleias
com a participação de todos; o que não seria possível em estados com grande
extensão territorial. Porém, a partir da experiência norte-americana, foi
iniciada, com os escritos dos federalistas, uma distinção entre Democracia e
República. Esta permitiria a representação. Mais tarde, passa-se a admitir que
a forma representativa também é Democracia12.
Um argumento que se opõe à regra da maioria é o da tirania da maioria, isto é,
o fato de que as minorias ficariam sujeitas à vontade das maiorias. Por isso, alegase que a Democracia seria, em certa medida, inimiga dos direitos individuais13.
Esse perigo pode ser reduzido por alguns instrumentos antimajoritários, tais
como a previsão de mecanismos de veto institucionais entre os poderes (freios
e contrapesos), constitucionalização de direitos individuais cuja alteração seja
possível somente por um quorum maior e atribuição para um órgão independente
(tribunal constitucional) da tarefa de manter estes limites14. Este argumento é
utilizado por Dworkin para atacar a concepção de direito que, em nome de um tipo
de democracia, limita as decisões políticas e morais aos órgãos responsabilizáveis.
Para ele, porém, diante da equidade, as decisões que digam respeito a direitos
contra a maioria não podem ser deixados para a própria maioria15.
Dworkin sugere uma dupla classificação de concepções de democracia. Uma
concepção dependente de democracia é a que tenha a maior probabilidade de
produzir decisões substantivas que tratem com igual consideração os membros
da comunidade, exigindo, portanto, sufrágio universal, liberdade de expressão
SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 250.
SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 252.
12
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade, p. 149-152.
13
SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 268-269.
14
SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política, p. 269-281. HÖFFE, Otfried. Justiça política, p.
369-374.
15
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 221-223.
10
11
Revista ENM
303
e outros direitos inerentes16. Uma concepção separada de democracia julga
o processo político apenas pelas suas próprias características, e não pelo
resultado que dele pode surgir17. Assim, enquanto a concepção separada avalia
a partir de um teste inicial, a dependente avalia por um teste de chegada, ou
seja, a democracia é um conjunto de dispositivos para produção de resultados
do tipo certo18. Por conta dessas diferenças, a concepção separada é mais
popular e a concepção dependente gera mais controvérsias19. Essa distinção
de Dworkin corresponde à distinção entre democracia formal e democracia
substancial. Numa discussão sobre os fins e valores que movem um grupo
político, o discurso sobre democracia distingue a democracia formal que trata
da forma de governar (como se governa) e a substancial, que diz quais os fins
para que se governa (o conteúdo da forma de governo)20.
Como se vê, muito embora a expressão “Democracia” tenha uma carga
valorativa positiva, gerando um consenso sobre a sua importância, o seu
detalhamento contém diversos aspectos sobre os quais há divergência.
No plano do Direito positivo, notadamente no Constitucional, a Democracia
foi uma opção política explícita tomada pelos constituintes em 1988, tanto que
assim a expressam no Preâmbulo da Constituição da República Federativa do
Brasil (CR). De fato, o texto constitucional é aberto com a menção de que a
República constitui-se num “Estado Democrático de Direito” (art. 1o) e que os
entes federados deverão zelar pela Constituição e pelas instituições democráticas
(art. 23, I). Aliás, se os Estados atuarem contra o regime democrático, poderão
ser alvos de intervenção Federal (art. 34, VII, “a”).
A Democracia, enquanto regime político valorizado pelo constituinte, foi
alçado à proteção especial, seja pela hipótese de previsão de inafiançabilidade
e imprescritibilidade da ação de grupos armados contra o Estado Democrático
(art. 5o, XLIV), seja pela vedação de partidos políticos que não resguardem o
regime democrático (art. 17) ou que não haja norma tendente a abolir o voto
direto, secreto, universal e periódico (art. 60, §4o, II)21.
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana, p. 255.
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana, p. 256
18
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana, p. 256.
19
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana, p. 260.
20
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade, p. 157-158.
21
Os direitos políticos, que abrangem o Voto (exercício do direito) e o Sufrágio (direito propriamente dito
de votar), decorrem do princípio democrático. O sufrágio é o direito de eleger (capacidade eleitoral ativa =
alistabilidade) e de ser eleito (capacidade eleitoral passiva = elegibilidade). Não se confunde com o voto, que é
o exercício do direito de eleger. O voto é exercício do direito de sufrágio; logo, o direito ao voto é instrumento
16
17
304
Revista ENM
É importante notar que a ideia democrática não está restrita ao exercício
do direito de votar e ser votado, mas também na ordem constitucional para
que certas instituições sejam geridas com a participação dos interessados.
Com efeito, a Seguridade Social, como conjunto de ações de iniciativa
do Estado e da Sociedade, deve ser administrado de forma democrática,
mediante gestão quadripartite (art. 194, p. único, VII). Também deve ser
gerido democraticamente o ensino público (art. 206, VI) e o acesso aos bens
culturais (art. 215, §3o, IV). Além disso, a participação popular também se dá
na forma de consultas (iniciativa popular, referendo e plebiscito), previstas na
Constituição (art. 14) e regulamentadas pela Lei 9.709/1998.
Por fim, como um dos mais importantes instrumentos de salvaguarda das
minorias ou dos indivíduos em face da regra da maioria, a Constituição de
1988 prevê a impossibilidade de edição de norma para certos assuntos, ainda
que a ofensa seja potencial (= “tendente a abolir”). Por isso, são previstas as
chamadas cláusula pétreas, ou seja, normas constitucionais imunes a alterações
futuras, constitucionais ou legais, que abrangem a forma federativa de Estado,
o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os
direitos e garantias individuais (art. 60, §4o)22.
2.2. O Poder Judiciário no Estado Contemporâneo
O Poder Judiciário sempre foi caracterizado como o conjunto de
atribuições do Estado destinado a compor litígios concretos, ou seja, órgão
estatal cuja função jurídica e social é de individualizar as normas gerais e
abstratas emanadas do Poder Legislativo para dizer a solução de um conflito
específico que lhe foi trazido.
Porém, um novo papel foi exigido do Poder Judiciário nas sociedades
contemporâneas23. Houve uma invasão da Política pelo Direito em função
para a realização dos direitos políticos. No Brasil, o voto tem as seguintes características (art. 60, §4o, I): (1)
Direto; (2) Secreto e (3) Igual. A capacidade de ser votado depende do preenchimento das condições de
elegibilidade (art. 14, § 3o) e não haver nenhum das hipóteses de inelegibilidade (art. 14, §§4o a 9o).
22
Para uma análise do mecanismo das cláusulas pétreas como mecanismos de garantia de direitos, princípios
e instituições, confira-se: VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de Justiça. Nesta obra, o autor
não só descreve o fundamento teórico, como também a prática jurídica comparada a partir das experiências
das cortes constitucionais brasileira, norte-americana e alemã.
23
Confira-se, dentre outros: CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores, p. 31-46. CINTRA, Antônio
Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo,
p. 24-25. VIANNA, Luiz Werneck; REZENDE DE CARVALHO, Maria Alice; MELO, Manuel Palácios
Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil, p. 15-25.
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil, p. 9-10/34-39/50-51/100-103.
Revista ENM
305
evolução do Estado de Bem-Estar. A profusão de direitos sociais e o ideal
de um Estado regido por uma Constituição dirigente produziram novas
exigências por parte da Sociedade e uma transformação do Estado legal para
um Estado Constitucional.
Nele, o Executivo e Legislativo buscam regrar os processos econômicos de
forma simultânea ao seu acontecimento. Orientam-se, para essa regulação,
não pelo tempo passado, mas pelo tempo futuro. Com isso, surgem as leis
experimentais de caráter temporário e a utilização cada vez maior de conceitos
jurídicos indeterminados.
Cada vez mais é exigido o cumprimento das promessas da Jurisdição de
pacificação, da qual surgem os chamados escopos do processo, isto é, (1)
o escopo social, pelo qual o processo se torna elemento para educação dos
direitos próprios e alheios; (2) os escopos políticos, caracterizados tanto
pela preservação da liberdade individual de cada um, quanto de participação
de todos nos destinos da nação, e, ainda, (3) o escopo jurídico do processo,
pelo qual este atua a fim de fazer valer a vontade concreta do direito.
Como consequência, aumentam os litígios trazidos pela Sociedade Civil
ao Judiciário, deslocando o poder de decisão política para este, já que ele
dará a palavra final. Aliados a este fenômeno que tornou o juiz um legislador
implícito, surgem, também, (1) a positivação de princípios jurídicos e
direitos fundamentais nas constituições modernas, ampliando os limites de
interpretação jurídica direcionada a um imaginário do ético e do justo, e
(2) a massificação da tutela jurídica nos conflitos coletivos, transformando o
Judiciário em uma alternativa para o exercício do jogo político.
Neste sentido, enquanto face do Estado (art. 2o, CR), o Poder Judiciário está
orientado não só pelos ditames que regem toda a Administração Pública (art. 37,
CR) – legalidade, moralidade, impessoalidade, finalidade e eficiência – e pelos
objetivos previstos para a República (art. 3o, CR) – construir uma sociedade livre,
justa e solidária, com desenvolvimento nacional e igualdade social, erradicando a
pobreza e a marginalização para promover o bem de todos, sem discriminação –,
mas também pelos deveres específicos e inerentes à sua atividade precípua, dentre
eles, motivar, pública e fundamentadamente, suas decisões (art. 93, IX e X, CR),
que são a última instância de proteção dos direitos (art. 5o, XXXV, CR), fazendo-o
dentro de um tempo razoável (art. 5o, LXXVIII, CR).
Como integrante do Estado, é possível classificar os atos oriundos do
Poder Judiciário sob duas categorias, conforme seja, ou não, uma decisão
306
Revista ENM
inerente à sua atividade precípua (composição de litígios): (1) atos ligados
à atividade-fim (= ato jurisdicional), ou seja, dizer o direito dentro de uma
relação jurídica controvertida, como um terceiro externo ao conflito; (2)
atos ligados a atividades-meio, ou seja, atos administrativos de gestão do
aparelho burocrático que compõem os órgãos judiciais. Por isso, o exame da
democratização do Poder Judiciário pode ser feito sob dois prismas distintos,
conforme o tipo de ato a que se refere.
2.3. A democratização do Poder Judiciário na sua atividade-fim
Partindo-se da premissa lógica e prática de que a atividade judicial não pode
ser substituída por uma máquina ou por decisões de assembleias permanentes
e censitárias24, a democratização do Poder Judiciário na sua atividade-fim não
significa trocar o sujeito emissor dos juízos de valor e de fato, mas sim assegurar
que as formas de participação popular sejam mantidas e ampliadas. Isso não
significa simplesmente aumentar o direito à ampla defesa e ao contraditório,
já previstos na Constituição (art. 5o, LV), mas sim o de permitir que os
instrumentos processuais hoje existentes sejam transformados a fim de garantir
a permeabilidade das decisões à soberania popular.
Para isso, os seguintes instrumentos podem ser utilizados como técnicas
para ampliação dos espaços democráticos no âmbito da atividade-fim da
jurisdição: (1) efetivação e observância das regras da teoria do discurso; (2)
audiências públicas; (3) ampliação dos “amicus curiae”; (3) priorização das
ações coletivas sobre as individuais; (4) acesso à justiça; (5) desconcentração
das competências do STF; e (6) aprimoramento dos procedimentos de seleção
e composição do STF.
Um dos primeiros aspectos é a interiorização definitiva nas regras lógicas
do discurso e das teorias da argumentação no âmbito do Judiciário25. Como
24
Esta premissa funda-se em diversos argumentos. O primeiro é que o próprio conceito de jurisdição,
como um terceiro desinteressado na lide de fundo, é incompatível com a possibilidade de um dos litigantes
ser o seu próprio juiz. O segundo consiste no caráter contramajoritário que há nos direitos fundamentais,
isto é, há esferas de proteção que, pelo seu papel moral, são reconhecidos pelo Direito a partir do embate
entre as forças políticos. O terceiro é a impossibilidade de que os milhões de processos julgados todo ano
sejam submetidos à consulta popular. Por fim, o critério lógico de igualdade, como um dos fundamentos
da Justiça, implica que as decisões jurídicas sejam as mesmas se mantidas as características essenciais, o que
poderia não ocorrer se as decisões judiciais fossem realizadas por “eleições adhoc”.
25
As teorias da argumentação jurídica têm como objeto de estudo a argumentação produzida nos
contextos jurídicos e teriam a função de fornecer critérios para a aplicação do ordenamento (ATIENZA,
Manuel. As razões do direito, p. 18-19). As décadas de 1960 e 1970 viram o crescimento e evolução de
correntes antilogicistas da argumentação jurídica, especialmente com Toulmin, Viehweg e Perelman,
Revista ENM
307
a repercussão social da decisão é proporcional à posição ocupada pelo órgão
judicial dentro da estrutura do Poder Judiciário, maior é a necessidade de que
os tribunais de cúpula observem os princípios democráticos.
Outro ponto fundamental para a Democratização do Poder Judiciário no
âmbito de sua atividade-fim é a realização de audiências públicas, que asseguram
uma maior participação dos entes sociais potencial ou efetivamente atingidos
pela decisão de um conflito. Este mecanismo é relevante especialmente em duas
situações: (1) processos coletivos ligados à defesa de direitos difusos, coletivos
ou individuais homogêneos, notadamente os veiculados por intermédio de
ação civil pública; e (2) processos de índole constitucional, tanto no caso de
controle objetivo e concentrado da constitucionalidade de normas quanto no
controle subjetivo e difuso26.
Nesta mesma linha, já está incorporada na prática jurídica brasileira a
figura do “amicus curiae”. Do original latino que significa “amigo da corte”,
esta figura representa a possibilidade de terceiros, não incluídos na lide
processual, ingressarem na demanda a fim de se manifestar sobre a questão
jurídica de fundo. Está prevista na Lei 9.868/99, que, ao regular o processo e
julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de
constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, previu, expressamente
que: “O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade
dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo
fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades”
(art. 7o, § 2o). Nota-se, portanto, a possibilidade de participação da Sociedade
Civil com voz no curso do procedimento de formação da vontade/decisão
judicial que poderá lhe afetar.
influenciando os estudos contemporâneos com orientação hermenêutica e analítica de Alexy, Dworkin,
Aarnio, Peczenik, MacCormick e Wróblenski (FARALLI, Carla. A filosofia contemporânea do direito, p.
43-44). O desenvolvimento destas teorias insere-se numa dimensão política da democratização ocidental
em que a autoridade institucional perde seu valor e se passa a exigir dos órgãos públicos que justifiquem
racionalmente suas decisões (DUARTE, Écio Oto Ramos. Neoconstitucionalismo e Positivismo jurídico, p.
57-58).
26
No segundo caso, a necessidade de ampliação dos debates acerca de decisões a serem proferidas no âmbito
de recursos extraordinários torna-se maior em função do mecanismo da repercussão geral, especialmente
pelo fato de que a implantação desta nova técnica jurídica é caracterizada pelo julgamento simultâneo.
Nota-se, de fato, que há, cada vez mais, uma “objetivação” destas demandas individuais, ou seja, em razão
do elevado número de feitos (centenas de milhares por ano), deixa-se de analisar o recurso extraordinário
como um caso individual para julgar a questão constitucional de fundo, determinando-se a suspensão das
remessas dos processos pelos tribunais de segunda instância. Esta dinâmica, oriunda da exitosa inovação
contida na Lei dos Juizados Especiais Federais (Lei 10.259/2001) foi incorporada no texto do Código de
Processo Civil pela Lei 11.418/2006, que inclui os artigos 543-A e 543-B.
308
Revista ENM
Assim, uma democratização do processo sugere, por exemplo, que, em
vez de aguardar a manifestação de eventuais interessados, o próprio relator dê
ampla divulgação ao tema discutido e oficie a entes representativos a fim de
colher suas opiniões. Abre-se a discussão para argumentos que possibilitem
uma decisão afinada com os ditames de ordem social que estejam sob a
influência deste julgamento. Por exemplo, em ações que envolvam matéria
previdenciária, é possível cogitar-se de manifestações de associações de
aposentados; nas que envolvam créditos do sistema financeiro de habitação,
permite-se sejam apresentadas razões por associações de mutuários e também
pelas instituições financeiras envolvidas direta ou indiretamente.
Há, também, uma necessidade de priorização das ações coletivas em face
das individuais, otimizando os recursos do Poder Judiciário e simultaneamente
resguardando o princípio material da igualdade. De fato, as ações coletivas
foram esvaziadas pela prática jurídica em razão da legislação ultrapassada.
Logo, a sua revalorização não pode ser apenas no plano teórico que busca criar
ritos que reproduzem os conceitos tradicionais, mas sim focada nos aspectos
que viabilizem a plena efetividade das ações coletivas.
Assim, diante do efeito “erga omnes” ou “ultra partes” destas ações, é
imprescindível a abertura da participação dos interessados na ação, seja pela
previsão de publicação das questões envolvidas em meios de comunicação em
massa (suportados por fundos específicos para isso), seja pela sensibilização
da importância de aceitação da participação oral e efetiva de quem tenha sido
admitido como “amicus curiae”.
A partir do momento em que os tribunais superiores exercem políticas
de ampla repercussão pelas ações coletivas, há que se possibilitar que a
decisão tenha efeitos diferidos no tempo, como ocorre atualmente com
as ações de controle concentrado de constitucionalidade. A decisão, por
exemplo, referente à correção de benefícios previdenciários pode determinar
que o pagamento dos valores atrasados seja feito em parcelas. Ou, em outro
exemplo pertinente às concessionárias de serviços públicos monopolizados
pela iniciativa privada, que seja determinada a realização e implementação
de um plano de adequação da conduta. Inibe-se, com isso, o argumento “ad
terrorem” de colapso econômico, pois as dificuldades podem e devem ser
levadas em conta na decisão que implementar um plano de cumprimento.
Essa revalorização das ações coletivas, que resolveriam as questões jurídicas
de forma mais célere e democrática, implicaria, necessariamente, no óbice
Revista ENM
309
ao ajuizamento de milhares de ações individuais. Porém, para que isso possa
ser alcançado, o descumprimento da decisão coletiva tem que receber forte
sanção, sob pena de se tornar inócua.
Outro aspecto da Democratização do Poder Judiciário são as chamadas
ondas renovatórias27 do processo civil que implicaram a remoção ou diminuição
dos obstáculos ao acesso à Justiça28. Ao removerem o formalismo do processo
civil e criminal, os juizados especiais29, regrados pela Lei 9.099/1995, no plano
da Justiça Estadual, e 10.259/2001, para a Justiça Federal, representaram um
dos mais importantes passos para a democratização do Poder Judiciário. Com
efeito, a título exemplificativo, é importante notar que, de 2004 a 2008, por
meio de seus julgamentos, só os juizados federais já pagaram mais de 15 bilhões
de reais, beneficiando quase 4 milhões de pessoas, na maioria dos casos os mais
carentes. Por isso, a importância da ampliação da competência destes juizados e
da estruturação dos órgãos encarregados de processar e julgar essas ações.
A preocupação com a sobrevivência da democracia reflete também na
necessidade de desconcentração de competências do Supremo Tribunal
Federal. Com efeito, embora seja necessário que algum órgão dê a última
palavra nas discussões constitucionais, este direito e dever implica que ele
não seja cumulado com outros poderes e que haja uma postura discreta e
reservada. Algumas características do sistema brasileiro geram deturpações,
que, se não são problemáticas agora, podem representar um perigo no futuro.
Uma delas é o excesso de atribuições do STF, que, além de Corte
Constitucional, também é instância para processar e julgar autoridades com
foro privilegiado. Isso provoca não só um elevado número de processos no
STF, mas também cria um poder adicional que é o de controlar os agentes dos
demais poderes que deveriam fiscalizar aquele tribunal. Evitar que o STF se
transforme em um órgão centralizador dos três poderes implica modificar suas
competências não-constitucionais, acabando com privilégio de foro para altas
autoridades. Também é necessário alterar a sua composição e o seu procedimento
de nomeação de ministros, prevendo que os cargos sejam destinados a membros
27
As chamadas ondas renovatórias do processo civil são reformas decorrentes da evolução da ciência
processual que se torna mais preocupada com a assistência judiciária aos pobres e a representação dos
interesses difusos e a racionalização do modo-de-ser do processo na busca de sua efetividade (CINTRA,
Antônio; GRINOVER, Ada; DINAMARCO, Cândido. Teoria Geral do Processo, p. 43).
28
O acesso à justiça é a ideia ou fim de que as partes têm que ter acesso a uma ordem jurídica justa,
implicando não apenas a admissão no processo, mas também a da efetividade do próprio direito material
(CINTRA, Antônio; GRINOVER, Ada; DINAMARCO, Cândido. Teoria Geral do Processo, p. 33-34).
29
Para o tema, confira-se: BOLLMANN, Vilian. Juizados Especiais Federais, p. 3-10.
310
Revista ENM
oriundos das carreiras jurídicas (juízes, promotores e advogados) mediante listas
formadas pelo Congresso Nacional, mediante prévia e exaustiva sabatina.
2.4. A democratização interna do Poder Judiciário
Se a prática democrática é determinada pela Constituição ao Estado,
ela deve influenciar não só a atividade final do Judiciário, mas também as
suas próprias relações internas. É democratização interna que interioriza
os valores necessários para a sua prática externa, sob pena de haver uma
incompatibilidade genética que cause ruídos à atividade jurisdicional,
refletindo, por consequência, na própria Sociedade.
Logo, no âmbito da democratização do Poder Judiciário dentro de suas
atividades-meio, são medidas que devem ser buscadas como técnicas para
fortalecimento dos valores democráticos: (1) eleição dos dirigentes do Poder
Judiciário pelos juízes; (2) ampliação da participação dos juízes nas decisões dos
conselhos (CNJ, CJF e CJT), seja diretamente, seja indiretamente, por meio
das associações; (3) garantia de participação dos juízes na gestão orçamentária
dos tribunais; e (4) aprimoramento dos mecanismos de planejamento
estratégico dos tribunais.
A seleção dos dirigentes do Poder Judiciário30 é um dos principais aspectos
para ampliação do ideal democrático. Com efeito, atualmente, pelo texto da Lei
Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), cabe aos próprios tribunais,
privativamente, eleger seus presidentes e demais titulares de sua direção e exercer
a direção dos serviços (art. 21, I, e V, da LC 35/1979; art. 96, I, “a”, da CR).
Apesar de serem diretamente interessados no curso das ações administrativas
que serão dadas pelos tribunais, os juízes de primeira instância não podem
participar do processo de decisão. É de se ressaltar, por exemplo, que tal prática
já é adotada pelo Ministério Público de vários estados e, em certo grau, pelo
Ministério Público Federal, que, por exemplo, indica, por meio de todos os
membros da carreira em atividade no Ministério Público Federal (art. 52, da
LC 75/1993). Logo, há, no mínimo, a necessidade propositura de Emenda
Constitucional que amplie a democracia no Poder Judiciário.
Outro ponto é a participação dos juízes de primeira instância na
composição dos conselhos de controle, quais sejam, o Conselho Nacional de
30
No caso, em especial, os presidentes dos tribunais de Justiça, tribunais regionais federais e tribunais
regionais do trabalho.
Revista ENM
311
Justiça (CNJ), o Conselho da Justiça Federal (CJF) e o Conselho Superior da
Justiça do Trabalho (CSJT), previstos, respectivamente, nos artigos 103-B;
105, par. único, II; e 111-A, §2o, II; todos da Constituição. Muito embora
o primeiro tenha previsão de assentos por parte de juízes de primeiro grau, a
indicação destes é faculdade outorgada aos tribunais superiores (STF, STJ e
TST), impedindo a escolha por parte dos próprios juízes. Nos demais, não há,
na Constituição, a previsão de sua composição. Logo, a alteração pode ser feita
por meio de lei, prevendo tanto que sejam integrados também por juízes de
primeira instância quanto o procedimento de sua escolha.
Um aspecto importante para a democratização interna do Judiciário é a
criação de comissões de orçamento formadas por juízes e desembargadores,
que, cumprindo a autonomia financeiro-orçamentária (art. 99, §1o, CR),
teria a competência para emitir parecer prévio sobre a proposta orçamentária
organizada pelo respectivo Tribunal, inclusive com a sugestão de modificações e
ajustes que devam ser implementados, inclusive mediante abertura de créditos
suplementares e especiais; e, principalmente, receber sugestões de magistrados
e servidores acerca de pontos que devam ser priorizados por ocasião da
elaboração da proposta orçamentária. Além disso, caberia a esta comissão
avaliar a execução do orçamento do Tribunal, bem como os resultados, quanto
à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial, sem
prejuízo da atuação dos órgãos encarregados do controle interno.
Por fim, é vital, para a democracia dentro do Judiciário, que aos juízes seja
oportunizada a participação nos processos de elaboração, acompanhamento
e controle do planejamento estratégico dos tribunais. O CNJ, por meio da
Resolução 70/2009, instituiu o Planejamento Estratégico do Poder Judiciário,
com suas diretrizes e objetivos (art. 1o) e determinou que os tribunais elaborem
os seus planejamentos, com abrangência mínima de cinco anos, aprovandoos em seus plenários até dezembro de 2009 (art. 2o), que devem ter efetiva
participação dos magistrados de primeiro e segundo grau (art. 2o, §4o). Logo,
o descumprimento desta abertura democrática admite questionamento do
Tribunal perante o CNJ.
3. Considerações finais
A partir do texto apresentado, é possível traçar algumas premissas que,
embora não conclusivas no sentido de uma verdade inalcançável, permitem
supor que, muito embora exista uma clara tendência de aprimoramento dos
312
Revista ENM
instrumentos de democratização no plano da atividade-fim do Judiciário (com
ampliação do uso das técnicas do “amicus curiae”, audiências públicas, ampliação
dos juizados especiais etc.), não há, ainda, o mesmo movimento no âmbito da
sua atividade-meio, sobremodo no que toca à participação da magistratura de
primeira instância na formulação das políticas administrativas dos tribunais.
Neste ponto, há a necessidade de uma articulação dos integrantes do
Poder Judiciário para a busca de alterações legislativas e constitucionais que
permitam, dentre outros, (1) a escolha dos presidentes, vice-presidentes e
corregedores dos tribunais por parte também dos juízes de primeiro grau, tal
como ocorre no âmbito do Ministério Público; (2) a ampliação da composição
dos conselhos específicos da Justiça Federal e da Justiça do Trabalho para que
prevejam assento pelos juízes, seja por indicação das associações nacionais,
seja por meio de eleição direta pelos juízes; (3) alteração do procedimento de
escolha dos integrantes do CNJ para permitir os representantes dos juízes de
primeiro grau seja feita pelos próprios juízes, e não pelos órgãos de cúpula
(que já têm seus respectivos assentos naquele órgão); e, mediante ação judicial
ou administrativa, (4) a participação dos juízes nas comissões de planejamento
estratégico (conforme já determinado pelo próprio CNJ) e (5) criação de
comissões de orçamento nos tribunais.
Referências bibliográficas
ATIENZA, Manuel. As razões do direito: Teorias da Argumentação Jurídica. Trad. Maria Cristina Guimarães
Cupertino. 3. ed. São Paulo: Landy, 2003.
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade; para uma teoria geral da política. 2. ed. Tradução de Marco
Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
_______. Teoria Geral da Política: a filosofia política e a lição dos clássicos. Tradução de Daniela Becaccia
Versiane. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 216-265.
BOLLMANN, Vilian. Juizados Especiais Federais: Comentários à Legislação de Regência. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2004. 203 p.
_______. Mais do mesmo: reflexões sobre as reformas processuais. Revista de Processo, v. 137, p. 153-170,
2006.
CAPELLA, Juan Ramón. Os cidadãos Servos. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998.
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sergio Fabris, 1999.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra:
Almedina, 1999.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria Geral do Processo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
DUARTE, Écio Oto Ramos. Neoconstitucionalismo e Positivismo jurídico. In: DUARTE, Écio Oto
Ramos; POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico: as faces da teoria do Direito em
tempos de interpretação moral da Constituição. São Paulo: Landy, 2006.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_______. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Tradução de Jussara Simões. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
FARALLI, Carla. A filosofia contemporânea do direito: temas e desafios. Tradução de Candice Premaor
Gullo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
Revista ENM
313
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 10. ed. Rio de Janeiro, Graal, 1992.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.
NOVA, Sebastião Vila. Introdução à Sociologia. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política. Tradução de Fernando Santos. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 14ª Ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
VIANNA, Luiz Werneck; REZENDE DE CARVALHO, Maria Alice; MELO, Manuel Palácios Cunha;
BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro:
Revan, 1999
VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de Justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao
poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999.
WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003.
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Trad. Marina Gascón. Trotta:
Madrid, 2005.
314
Revista ENM
Newton Meyer Fleury
Graduado em Administração e Mestre em Gestão Empresarial pela Escola Brasileira de
Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas, Doutorando pela
COPPE/UFRJ, Professor da Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Turismo,
e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Gestão Empresarial e Sistemas de
Informações, na Universidade Federal Fluminense, Professor convidado dos Programas
de Pós-graduação em administração judiciária da Fundação Getulio Vargas (FGV in
Company) , Professor colaborador dos Programas de Pós-graduação da Universidade da
Força Aérea (UNIFA), Pesquisador e instrutor em programas de modernização da gestão
em instituições do Poder Judiciário
1. Introdução
Nos últimos dez anos a modernização da gestão tem sido enfatizada como
um dos meios fundamentais para o reordenamento do papel das instituições
públicas na sociedade, na busca da otimização das suas competências
essenciais1.
No âmbito da administração pública brasileira, não obstante os esforços
pontuais que resultaram na criação de “ilhas de excelência” no setor público
desde a década de 1970, a reflexão mais intensa sobre o processo de modernização
da gestão se deu a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988,
que consagrou os princípios que devem reger o desempenho na administração
pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência2.
1
Papéis que cabem exclusivamente ao Estado, tendo em vista a natureza de suas funções e as possibilidades
de outros atores nas esferas do mercado e terceiro setor poderem desenvolver outras funções a contento.
MARTINS, Humberto Falcão (2005)
2
Artigo 37 da Constituição Federal
Revista ENM
315
GESTÃO
Gestão Estratégica no
Judiciário: aspectos
conceituais e lições
aprendidas
Tendo como pano de fundo a recomendação da Carta Magna do País,
diversos movimentos se desenvolveram desde então, no sentido de promover
uma gestão eficiente e eficaz voltada à melhoria da qualidade dos serviços
prestados aos cidadãos. Nesta linha se insere o GESPÚBLICA3, programa ao
qual têm aderido diversas instâncias do Poder Público, incluindo o Judiciário,
cujas principais diretrizes estão voltadas para o aumento da capacidade de
formulação, implementação e avaliação das políticas públicas, melhor
aproveitamento dos recursos, e adequação entre meios, ações, impactos e
resultados alcançados, entre outros aspectos.
É neste contexto que a gestão estratégica se insere, como um dos elementos
fundamentais para a promoção de um processo de aperfeiçoamento da
governança pública. Este artigo tece considerações sobre a aplicação dos
conceitos e métodos relacionados à formulação e implementação de estratégias
no setor público, com ênfase nas instituições do Poder Judiciário. Destaca
também o papel que deve ser exercido pelos magistrados, especialmente
quando investidos de funções gerenciais na condução dos órgãos julgadores4.
O texto está dividido em três seções: a primeira apresenta conceitos básicos
e busca desenvolver a compreensão sobre os processos de gestão estratégica
e de planejamento estratégico; a segunda discorre sobre os objetivos e os
resultados que devem ser perseguidos com a formulação e a implementação da
gestão estratégica e do planejamento estratégico no Poder Judiciário; a terceira
busca identificar a contribuição do magistrado como agente de formulação
e implementação das estratégias de gestão, e os requisitos de formação e
comportamentais necessários ao desempenho deste papel.
2. Gestão Estratégica e Planejamento Estratégico
Para entendermos a aplicação nas organizações da gestão estratégica e do
planejamento estratégico, há que se distinguir inicialmente o que significam
estes dois conceitos e qual é a relação entre os mesmos.
O que é Gestão Estratégica? Estratégia é a direção e o escopo de atuação
de uma organização, em um horizonte de tempo, constituindo instrumento
gerencial imprescindível tanto no setor privado como na administração
Programa Nacional de Gestão Pública e Desburocratização – GESPÚBLICA, instituído pelo Decreto no
5.378, de 23/2/2005
4
Os órgãos julgadores são as unidades diretamente relacionadas à entrega da prestação jurisdicional, tais
como as varas de 1a Instância e as câmaras de 2a Instância nas cortes.
3
316
Revista ENM
pública. As estratégias, dessa forma, representam as principais linhas de ação a
serem seguidas pela organização para atingir seus objetivos, consubstanciadas
em políticas, planos de ação, projetos e alocação de recursos.
Assim, a gestão estratégica “é um processo contínuo e iterativo, que visa manter uma organização como um conjunto apropriadamente integrado ao seu ambiente” (Certo & Peter, 1993). Tal definição nos permite então afirmar que ele
reveste-se de três características fundamentais: continuidade, iteratividade e integração com o ambiente externo no qual a empresa desempenha suas atividades.
Quando vista sob a perspectiva da continuidade, a gestão estratégica deve
ser entendida como um processo que tem data de início mas não de conclusão,
isto é, após desencadeado deve manter-se como uma ação permanente
envolvendo toda a organização.
A iteratividade significa que a gestão estratégica se dá por meio de um conjunto
de etapas que se repetem ciclicamente, e cada ciclo tenderá a tornar os resultados
do processo mais precisos. É o que afirmam Certo & Peter ((1993 : 8):
O termo “iterativo” usado na definição de administração estratégica
indica que o processo de administração estratégica começa pela
primeira etapa, vai até a última e, então, começa novamente com a
primeira etapa. A administração estratégica, então, consiste de uma
série de etapas que são repetidas ciclicamente.
Finalmente, a integração com o ambiente externo consiste na implementação
de estratégias em sintonia com as necessidades e expectativas dos atores que
fazem parte do relacionamento permanente e contínuo com a instituição,
sejam estes fornecedores, parceiros ou clientes dos produtos e serviços que
fazem parte do ambiente do negócio. A integração também deve se dar por
meio de adaptações a novas condições ambientais que surgem, tais como a
legislação que afeta a instituição, novas condições políticas e econômicas, ou
tecnologias emergentes, entre outros aspectos.
O processo de pensar estrategicamente com o foco na flexibilidade e
agilidade organizacional, associado à adaptação às condições ambientais
externas, é assim estabelecido por Motta (1999 : 76):
Devido à sua complexidade, as organizações tendem à inflexibilidade
e lentidão, incompatibilizando-se com a velocidade das demandas e
tornando-se insensíveis a valores sociais externos. Assim, recomendase como um elemento indispensável à mudança a análise profunda
Revista ENM
317
e sistemática da ambiência na qual a empresa opera. No mundo
moderno, o êxito de qualquer instituição depende de sua capacidade
de perceber alterações em valores ambientais e incorporá-los aos
objetivos organizacionais. Em outras palavras, é preciso aprender
a pensar estrategicamente considerando variações ambientais e seus
efeitos sobre a missão da empresa.
Levados em conta os pressupostos anteriores, deve-se complementarmente
entender que o processo de gestão estratégica, antes de um conjunto de ações
concretos, é um “modelo mental”5 que deve ser disseminado e internalizado
entre todos os membros da organização. Nesta linha de raciocínio, embora
embasada no pensamento sistematizado e na racionalidade, a gestão estratégica
é também decorrente da experiência vivida, das emoções e dos valores pessoais
de cada uma das pessoas que fazem parte da organização.
Pensar e agir estrategicamente, então, consiste em atuar no presente de forma
proativa, tendo consciência dos fatores críticos que devem ser enfrentados e
superados para possibilitar o alcance do cenário futuro aonde se pretende chegar.
Adicionalmente, em conformidade com o modelo originalmente proposto
por Kaplan e Norton (2009), o pensamento estratégico deve contemplar
quatro perspectivas complementares entre si6: (1) financeira/resultado global,
(2) cliente/usuário/sociedade, (3) processos; e (4) aprendizagem/crescimento.
A perspectiva financeira/resultado global tem como foco a geração de
impactos relacionados à satisfação e aos ganhos financeiros para os acionistas
nas empresas privadas, e voltados à geração de valor público, no caso específico
das empresas e demais instituições na esfera do Poder Público. Assim, as
organizações públicas devem prioritariamente buscar geração de valor para
a sociedade, por meio da contribuição de suas ações para a efetividade das
políticas públicas.
A perspectiva do cliente/usuário/sociedade tem como foco o alcance de
resultados que atendam às expectativas quanto a atributos associados aos
produtos e serviços fornecidos, tais como preço, qualidade, disponibilidade,
Modelos mentais são representações conceituais e operacionais, na mente das pessoas, de situações e
eventos reais, ou de pensamentos e situações imaginárias (WIIG, 2004)
6
A formulação original dos autores trabalha com as perspectivas financeira, de clientes, processos e
aprendizagem e crescimento. Em relação às duas primeiras perspectivas estamos acrescentando os termos
resultado global (perspectiva 1) e usuário/sociedade (perspectiva 2), de modo a contemplar de forma mais
precisa as organizações do setor público.
5
318
Revista ENM
seleção e funcionalidade, ou relacionados ao relacionamento entre a empresa
e o cliente, e quanto à imagem da instituição.
No caso específico do setor público, além dos atributos anteriores devem
ser incorporados aspectos associados à garantia do acesso igualitário de todos
os cidadãos aos serviços e informações disponibilizados, transparência da
gestão e accountability7.
A perspectiva dos processos contempla os impactos relacionados a
otimizações nos procedimentos internos, ou relacionados ao ambiente externo,
que resultem na melhoria dos serviços para clientes internos ou externos, nas
relações com o ambiente externo, ou no controle da gestão interna.
A perspectiva de aprendizagem/crescimento tem como foco os impactos
relacionados à evolução da instituição, em termos de melhorias na sua
infraestrutura de operações, especialmente quanto a tecnologias de informação
e comunicação; desenvolvimento de ambientes de informação e conhecimento
para apoio ao processo decisório; e capacitação e desenvolvimento dos seus
quadros técnicos, administrativos e gerenciais.
Sintetizando os conceitos anteriormente apresentados, a gestão estratégica
é então uma ação contínua que deve se institucionalizar no seio da organização
e ser internalizada pelos seus quadros funcionais em todos os níveis. Ela
diferencia-se do planejamento estratégico que, como veremos adiante, constitui
um processo sistematizado e suportado por métodos e técnicas específicos.
O que é Planejamento Estratégico? Segundo Bryson e Alston, “o
planejamento estratégico é um esforço disciplinado para produzir decisões e
ações fundamentais, que moldam e guiam o que é uma organização, o que ela
faz, e porque faz” (1996 : 3). Então, por meio do planejamento estratégico as
organizações devem: (1) examinar o ambiente externo, onde existem e operam;
(2) observar os aspectos organizacionais e gerenciais internos; (3) avaliar os
desafios que devem enfrentar e superar para cumprir a sua missão; e (4)
formular e implementar objetivos e metas para curto, médio e longo prazos.
A execução do planejamento estratégico deve ser apoiada em uma
metodologia para definir a direção que a empresa deve seguir, concretizada
por meio da identificação e formulação de objetivos e metas não subjetivos.
Deve constituir-se em um processo participativo, não exclusivo da alta
O termo accountability é aqui usado no sentido dos meios que a empresa disponibiliza para o exercício
da fiscalização da sua gestão pelos cidadãos e pela sociedade, procurando estabelecer formas de controle de
baixo para cima sobre os governantes e burocratas (conforme propõe CENEVIVA : 2006)
7
Revista ENM
319
administração, tendo como resultado um documento escrito denominado de
Plano Estratégico.
Para que o planejamento estratégico seja efetivo, ele deve ser orientado para
ações e resultados concretos e mensuráveis, abrangendo um horizonte de médio
e longo prazos8, e deve estar relacionado aos planos de ação nos níveis tático e
operacional. Deve ser executado como um projeto específico, dividido em etapas
e dentro de um prazo determinado, usualmente entre três a quatro meses. Após
sua implementação, deve ser revisto sistematicamente de forma a incorporar
ajustes decorrentes de modificações nos ambientes interno e externo.
Assim, diferentemente da gestão estratégica, o planejamento estratégico
tem datas de início e de conclusão, e cada uma das suas etapas deve estar
relacionada a produtos e resultados específicos, conforme demonstrado na
figura que se segue.
Processo de Planejamento Estratégico
Análise de Contexto ( externo e interno)
Construção (ou revisão) da Identidade Institucional
Formulação da Estratégia
Elaboração dos Planos de Ação
Implementação e Acompanhamento dos Planos de Ação
A Análise de Contexto tem por finalidade, de um lado, identificar no ambiente
externo as ameaças e oportunidades que se apresentam face à organização e,
de outro lado, determinar as suas vulnerabilidades e potencialidades internas.
As ameaças externas são fatores ou situações identificadas no ambiente
8
Não existe um horizonte padrão para o plano estratégico, que é condicionado pelas características de
cada setor de negócio específico. No Judiciário brasileiro, as diretrizes do Conselho Nacional de Justiça
recomendam o desenvolvimento de planejamento estratégico plurianual abrangendo, no mínimo, cinco
anos (anexo II da Resolução CNJ no 70, de 18/3/2009).
320
Revista ENM
externo que, se ignoradas ou não enfrentadas, poderão dificultar a instituição
no desempenho efetivo de sua missão. Já as oportunidades externas são fatores
ou situações identificados no ambiente externo que, se adequadamente
aproveitados, poderão contribuir favoravelmente para os seus resultados.
As vulnerabilidades internas constituem deficiências associadas a recursos
ou capacitações que, se ignoradas ou não enfrentadas, poderão dificultar
o desempenho da instituição, ao passo que as potencialidades internas
constituem aspectos a serem valorizados e enfatizados como meios efetivos
para a consecução das estratégias corporativas.
A Análise de Contexto é um método bastante explorado na literatura sobre
planejamento estratégico, e constitui instrumento consagrado e eficaz para
subsidiar a formulação das estratégias corporativas. Em complementação à
análise de contexto, deve ser salientada a importância de se identificar e clarificar
os mandatos relacionados à organização, que são constituídos por prescrições
externas sobre o que deverá ser feito no âmbito da instituição, usualmente
associados a leis, normas e instruções provenientes de órgãos reguladores de
determinadas atividades e políticas públicas, entre outros aspectos.
Nesta linha, Bryson e Alston postulam que, no estabelecimento do curso
futuro para a organização, os mandatos devem ser levados em conta como
restrições que condicionarão a formulação das estratégias: “é vital que a
organização tenha claro entendimento dos seus mandatos e das implicações
relacionadas a suas ações e utilização de recursos” (1996 : 37).
A Construção (ou revisão) da Identidade Institucional é a etapa seguinte
no processo de planejamento estratégico, e deve resultar na formulação da
missão, da visão de futuro e dos valores da organização.
A missão deve deixar claro o propósito da instituição (sua razão de ser e
de existir), por meio de uma formulação objetiva e precisa, possível de ser
entendida e assimilada por todos que dela fazem parte, ou pelos que com ela
mantêm relações significativas. Já a visão de futuro, estabelece um cenário
sobre como se deseja estar e ser visto em um determinado horizonte de tempo,
constituindo um balizador essencial para o direcionamento dos esforços
internos e junto aos atores externos com os quais se interage.
Embora a formulação da missão e da visão de futuro seja uma prática
consagrada, e bastante usual, no processo de planejamento estratégico, segundo
Kaplan e Norton (2009) tais direcionadores não raro são descritos em termos
que não favorecem a execução. Ainda em conformidade com os mesmos
Revista ENM
321
autores, a missão deve ser breve, geralmente em uma ou duas sentenças,
enquanto a visão de futuro deve buscar incorporar três componentes vitais:
objetivo ousado, definição de nicho e horizonte temporal.
Nesta linha, exemplificam o que postulam com os casos do GOOGLE,
para ilustrar uma missão de forma objetiva, e da Universidade de Leeds, no
Reino Unido, para caracterizar uma visão de futuro dotada dos requisitos por
eles propostos (Kaplan e Norton, 2009 : 39 – 41):
Organizar as informações disponíveis no mundo e torná-las
acessíveis e úteis para todos – missão do GOOGLE.
Classificar-se entre as 50 universidades mais importantes (objetivo
ousado), integrando pesquisa, bolsas de estudos e educação de classe
mundial (nicho) até 2015 (horizonte temporal) – visão de futuro da
Universidade de Leeds.
Os valores organizacionais estabelecem as regras de conduta essenciais
que devem nortear as ações da instituição e das pessoas que dela fazem parte,
tanto nas práticas de trabalho internas como nas relações com o ambiente
externo. A identificação de valores não é uma tarefa fácil, dada a tendência
de se buscar formulações genéricas e sem uma vinculação com objetivos e
ações de caráter prático.
Exemplificando, se uma organização considera a transparência como um
valor que deve fazer parte de sua estratégia, deve-se tornar explícito o seu
significado em termos de ações concretas: utilização dos meios de comunicação
para informação e divulgação dos seus atos e procedimentos.
A Formulação da Estratégia é o passo seguinte do processo de planejamento
estratégico, iniciada com a explicitação dos desafios estratégicos institucionais,
que são os focos de ação e de mudança essenciais que devem ser contemplados
pela organização, de forma a cumprir sua missão e caminhar no sentido de
alcançar a visão de futuro estabelecida.
Conforme postulado por Bryson, “a identificação dos desafios estratégicos
é o coração do processo de planejamento estratégico” (1995 : 104). É
uma questão política fundamental, afetando mandatos, missão e valores
organizacionais, produtos ou serviços ofertados, estrutura organizacional,
paradigmas quanto à gestão e outras questões essenciais.
Ainda em conformidade com Bryson, “a identificação dos desafios
estratégicos é tipicamente um dos mais excitantes passos do planejamento
322
Revista ENM
estratégico, para os que dele participam. Virtualmente, cada desafio estratégico
envolve conflitos: o que será feito, por que será feito, como será feito, quando
será feito, onde será feito, quem fará o quê e quem será favorecido ou
prejudicado pela sua concretização” (1995 : 104 – 105).
A escolha dos desafios estratégicos, portanto, é o momento da escolha dos
caminhos fundamentais a serem trilhados na direção do futuro, quando vai se
definir o que é prioritário para a organização. Eles devem ter caráter seletivo,
abrangendo as questões chave a serem enfrentadas, e a percepção dos mesmos
decorre de uma análise acurada e integrada dos resultados apurados nas etapas
precedentes do planejamento estratégico: análise de contexto e construção da
identidade institucional.
Alguns exemplos de desafios estratégicos são a seguir apresentados, a partir
de situações vivenciadas ou constatadas pelo autor:
Eficiência na gestão do salário educação e na gestão dos programas
finalísticos (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
– FNDE)9; elevar a produção de julgados (Superior Tribunal de
Justiça)10; garantir a agilidade nos trâmites judiciais e administrativos
(Conselho Nacional de Justiça).11
A partir de sua explicitação e formalização, os desafios estratégicos passam
a constituir, então, os balizadores que direcionam o estabelecimento dos
objetivos estratégicos e das metas a eles associados que correspondem às
diretrizes de ação fundamentais para o cumprimento da missão e o alcance da
visão de futuro estabelecida.
Os objetivos estratégicos representam resultados a serem alcançados
ou mantidos pela instituição, podendo extrapolar o horizonte do plano
estratégico, e as metas devem fluir naturalmente dos mesmos, constituindo
pontos de referência para avaliação do progresso das estratégias de ação.
As estratégias representam as principais linhas de ação a serem seguidas,
devendo responder a seguinte questão básica: como vamos chegar aos
objetivos e metas pré-estabelecidos? Segundo Bryson & Alston (1996), elas
se materializam por meio de políticas, decisões, planos de ação, projetos e
alocação de recursos.
Plano Estratégico do FNDE, 2004 - 2006
Plano de Gestão do STJ, 2006 - 2008
11
A Estratégia do Poder Judiciário, CNJ, Anexo I da Resolução no 70, de 18/3/2009
9
10
Revista ENM
323
Deve ser entendido também que as estratégias podem constituir-se por
meio de decisões e ações imediatas, ou através de planos de ação e mobilização
de recursos de médio e longo prazo. Outrossim, podem estar relacionadas a
um objetivo estratégico como um todo, ou à determinada meta específica.
Ainda cabe salientar que o alcance de cada meta deve ser sistematicamente
acompanhado e avaliado, para o que são estabelecidos instrumentos para
a sua mensuração, os indicadores de desempenho que, conforme Cérutti
& Gattino, “constituem um dado objetivo que descreve uma situação
do ponto de vista estritamente quantitativo, que constata um resultado”
(1992 : 6).
A utilização de indicadores de desempenho como instrumento de apoio à
gestão parte do princípio que a avaliação de qualquer empreendimento, seja
no plano da organização como um todo ou na dimensão de ações e projetos
específicos, deve estar apoiada em critérios objetivos de medição. Entretanto,
para implementar um sistema de medição em uma organização, as seguintes
providências básicas se fazem necessárias:
a) definir os objetos (ou campos) de medição (o que medir);
b) estabelecer critérios objetivos de medição (fórmula e variáveis associadas
à medição);
c) definir o significado de cada variável, e as fontes de sua obtenção;
d) definir o resultado esperado (meta);
e) estabelecer os processos de obtenção dos dados associados às variáveis
de medição.
Exemplificando os conceitos anteriores, vamos utilizar como exemplo
direcionadores relacionados ao plano estratégico do Tribunal de Justiça de
Goiás, para o período 2009 – 201112:
Objetivo Estratégico: ser efetivo nos trâmites judiciais, trabalhando
com foco no atendimento ao cidadão e buscando a melhoria contínua do
desempenho.
Meta 1: Reduzir para 78% a taxa de congestionamento de 1o grau.
Meta 2: Reduzir para 30% a taxa de congestionamento de 2o grau.
Estratégias (linhas de ação): promoção do programa Justiça Ativa nas
comarcas, incentivo ao sistema não adversarial de resolução de conflitos,
alocação de equipes de apoio itinerante.
12
Manual do Plano Estratégico 2009 / 2011, disponível em http://www.tjgo.jus.br, acesso em 16/8/2009.
324
Revista ENM
Indicadores de desempenho (relacionados à meta 1): o indicador mede
o índice que reflete a divisão dos casos não sentenciados pela soma dos casos
novos mais os casos pendentes de julgamento, e indica se a Justiça consegue
decidir com presteza as demandas da sociedade, ou seja, se as novas demandas
e os casos pendentes do período anterior são finalizados ao longo do ano.
A Elaboração dos Planos de Ação, e sua subsequente Implementação e
Acompanhamento, constituem as etapas finais do planejamento estratégico.
Para que sejam criadas condições efetivas para o alcance dos objetivos e metas
estabelecidos, este momento deve abranger o detalhamento das ações de
implementação necessárias à consecução de cada estratégia específica. Nesta
ocasião, são também especificadas as datas de início e término de cada uma das
ações, assim como os valores orçados para a alocação dos recursos humanos,
técnicos e materiais necessários à sua execução.
Cabe salientar que esta é uma etapa extremamente delicada do processo
de planejamento estratégico, pois é aqui que se estabelece a ponte entre o
nível estratégico e os níveis tático e operacional da instituição, onde estarão
as instâncias que responderão pela concretização de todas as ações planejadas.
Conforme postulam Bryson & Alston, “a mera criação de um plano
estratégico não é suficiente. O desenvolvimento de planos de ação efetivos,
e sua posterior implementação, dará vida à estratégia e agregará valor real e
concreto à organização” (1996 : 97).
Finalmente, cabe aqui enfatizar a necessidade imperiosa da existência
de uma unidade dentro da organização que articule, de forma integrada e
sistemática, a elaboração e implementação das ações, seja mobilizando
os recursos necessários ou, posteriormente, coordenando a avaliação dos
resultados alcançados e promovendo a revisão, quando necessário, dos
objetivos e metas estabelecidos e do próprio plano estratégico como um todo.
É por meio desta ação catalisadora que o processo de planejamento se
tornará iterativo, conforme proposto por Certo & Peter (1993), com um
conjunto de etapas se repetindo ciclicamente.
3. A Gestão Estratégica no Poder Judiciário
No âmbito do Poder Judiciário, as preocupações quanto à modernização
da sua gestão remontam à primeira metade da presente década de 2010.
Naquela ocasião, o Ministro Nelson Jobim, então Presidente do Supremo
Tribunal Federal, argumentava que a legitimidade do Judiciário deveria estar
Revista ENM
325
alicerçada na prestação do serviço jurisdicional com qualidade e eficiência,
o que dependeria de uma gestão orientada por objetivos e metas voltados
à eliminação dos gargalos apresentados pelo sistema judiciário para ofertar
decisões, identificação, qualificação e quantificação das demandas, e redução
dos custos da prestação jurisdicional, entre outros aspectos.13
Desde então, diversos tribunais em todas as instâncias do Poder Judiciário
vêm desenvolvendo ações no sentido de, mediante uma visão estratégica,
consolidar as bases para responder, com efetividade, as demandas básicas
da sociedade por justiça: maior acesso da população ao Judiciário, prestação
de serviços em tempo razoável, efetividade e celeridade no julgamento e na
aplicação das decisões.
Neste contexto, há que salientar o papel indutor à gestão e ao planejamento
estratégico que vem sendo desempenhado pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), especialmente a partir dos mandatos14 que institucionalizaram o
processo no âmbito do Poder Judiciário e, complementarmente, com a
promoção de encontros de âmbito regional e nacional, congregando os
presidentes e principais gestores de todas as cortes para a discussão conjunta
de problemas e soluções no âmbito do planejamento e da gestão.
A ação de coordenação do CNJ, através da Resolução no 70, recentemente
baixada pelo órgão, buscou pautar os principais desafios que devem ser enfrentados
e superados pelas cortes no âmbito da eficiência operacional, do acesso ao sistema
de justiça, da responsabilidade social, do alinhamento e integração, da atuação
institucional, da gestão de pessoas, da infraestrutura e tecnologia, e da garantia de
recursos orçamentários necessários à execução das estratégias15.
Ainda na mesma Resolução foram estabelecidas dez metas de nivelamento
para o ano de 2009, visando o início de um processo de equalização de ações e
resultados entre todas as instituições e instâncias do Poder Judiciário16.
A partir das diretrizes emanadas do CNJ, torna-se oportuna uma digressão
sobre a situação atualmente existente em algumas cortes, quanto à gestão e
ao planejamento estratégico, baseada na experiência vivida e na observação
participante do autor em algumas instituições do Judiciário.
JOBIM, Nelson (2004).
Resolução CNJ no 49, de 18/12/2007, que dispôs sobre a organização de núcleos de Gestão Estratégica
nos órgãos do Poder Judiciário, e Resolução CNJ no 70, de 18 de março de 2009, que dispôs sobre o
planejamento e a gestão estratégica do Poder Judiciário.
15
Anexo I da Resolução CNJ no 70: A Estratégia do Poder Judiciário.
16
Anexo II da Resolução CNJ no 70: Metas Nacionais de Nivelamento – Ano de 2009.
13
14
326
Revista ENM
Inicialmente, não nos parece que existam problemas para a mobilização
dos quadros gestores internos, especialmente em nível da administração dos
tribunais, para apoiar e participar da formulação das estratégias, já que o
funcionamento de comissões de modernização da gestão e grupos similares
tem sido bastante participativo e proveitoso nos projetos observados.
A análise dos contextos interno e externo e a construção da identidade
institucional (missão, visão de futuro e valores organizacionais), são etapas
que não constituem problema significativo nos processos de planejamento
observados, visto que os temas envolvidos já estão bastante difundidos
e assimilados nos tribunais, principalmente a partir da ação do CNJ e dos
tribunais superiores, que têm incentivado e orientado tais formulações.
Por outro lado, a maioria das cortes tem sistematicamente envolvido seus
principais quadros em programas de capacitação em administração judiciária,
nos quais esta temática já é abordada de forma corriqueira. Os encontros
regionais e nacionais do Poder Judiciário, promovidos pelo CNJ para a
discussão da gestão estratégica, já salientados anteriormente, também têm
auxiliado na sensibilização e no envolvimento das pessoas com o tema.
A etapa de formulação das estratégias, especialmente quanto aos objetivos
estratégicos, metas e indicadores de desempenho, a despeito do material que
tem sido amplamente disseminado na literatura sobre o tema, constitui ainda
um desafio a ser superado, em face de a cultura de gestão baseada em critérios
objetivos de medição não estar ainda arraigada no setor judiciário de forma
sistemática.
Uma das principais razões para tal dificuldade deve-se ao fato que,
especialmente no nível dos órgãos julgadores, os dados primários sobre
a atividade de prestação jurisdicional carecem ainda de maior precisão e
padronização, dificultando a sua obtenção e tratamento com qualidade.
A despeito de as instâncias superiores do Poder Judiciário virem insistindo
formalmente no sentido de que os tribunais gerem resultados padronizados
para possibilitar uma comparação mais objetiva e precisa entre as cortes17, o
fato concreto é que o acompanhamento dos resultados através de indicadores
carece ainda de uma adequada infraestrutura de dados primários, conforme
salientado acima, de forma a possibilitar um acompanhamento coerente e
eficaz das ações desenvolvidas.
17
As Resoluções CNJ no 4, de 24/8/2005, e no 15, de 20/4/2006, dispõem sobre a criação e regulamentação
do Sistema de Estatística do Poder Judiciário.
Revista ENM
327
Nesta linha, cabe enfatizar a necessidade, que ainda se faz sentir, de uma
abordagem mais sistemática e objetiva para a geração de indicadores de
desempenho com a qualidade almejada, a partir da estruturação de um processo
centrado em um roteiro conforme preconizado anteriormente: definição dos
objetos (ou campos) de medição (o que medir); estabelecimento de critérios
objetivos de medição (fórmula e variáveis associadas à medição); definição
do significado de cada variável e das fontes de sua obtenção; definição do
resultado esperado (meta); e estabelecimento dos processos de obtenção dos
dados associados às variáveis de medição.
No âmbito das unidades prestacionais, especialmente em nível da primeira
instância, o envolvimento dos magistrados e servidores no processo de
planejamento ainda deixa a desejar, provavelmente porque não tem havido
mobilização efetiva destas unidades no sentido de integrá-las de forma mais
direta no processo de gestão. Esta situação se fez notar em praticamente todas
as instâncias do Judiciário observadas pelo autor, especialmente quando se
trata das comarcas do interior dos estados.
Ainda existe dificuldade na formulação das metas e resultados para prazos
maiores do que dois anos, de um lado pela necessidade de sanar problemas
emergenciais que afligem cotidianamente a vida das unidades judiciais e
administrativas, de outro lado pela dificuldade em se visualizar horizonte maior
do que aquele associado à Administração que está à frente da gestão do Tribunal.
Tal situação ainda é vista mesmo naqueles casos onde existe um “pacto
informal” de continuidade administrativa entre os gestores atuais e futuros,
pois tal compromisso geralmente não é diretamente percebido por aqueles que
exercem as funções de comando nas instâncias de nível tático e operacional.
A elaboração e a posterior implementação dos planos de ação (como chegar
lá, isto é, como definir e estruturar as ações e responsabilidades para chegar aos
objetivos e metas pré-estabelecidos) constitui um grande problema na maior
parte das situações, devido à dificuldade de mobilizar efetivamente as pessoas
para pensarem em planos de ação concretos e focados em ações encadeadas, e em
indicadores efetivos para medir o progresso das ações e dos resultados alcançados.
Este fato deve-se a nosso ver, em primeiro lugar, ao envolvimento ainda
insuficiente da maioria dos quadros da instituição no processo inicial de
formulação das estratégias, ou à inexistência de mecanismos que tornem
efetiva a motivação e o comprometimento de todos com a mudança e com o
alcance das metas estabelecidas.
328
Revista ENM
Por outro lado, a divulgação e assimilação dos direcionadores estratégicos
e das estratégias provenientes da cúpula dos tribunais junto à maior parte da
população que compõem os quadros dos órgãos julgadores ainda não é um
processo consolidado. Isto porque nos parece ainda faltar, na cultura de boa
parte das organizações do Judiciário, uma ação arraigada voltada para a criação
de mecanismos e atitudes que tornem fluida a comunicação entre os diversos
níveis organizacionais.
Não queremos dizer, com a afirmação anterior, que não existam esforços e
intenções neste sentido. Todos os tribunais, via de regra, possuem ambientes
de comunicação eletrônica através da internet e das redes internas, são criados
folhetos ilustrativos das diretrizes e intenções da Administração quanto à
estratégia, e “banners” são espalhados pelas instalações, com a divulgação da
missão, dos valores organizacionais e do cenário futuro a que se pretende chegar.
Entretanto, os efeitos pretendidos pela administração, em termos do
envolvimento coletivo e de respostas sob forma de ações concretas, têm sido
bastante tímidos e abaixo das expectativas, em nosso entendimento. Nesta
linha, já observamos experiências de divulgação dos direcionadores estratégicos
da instituição – a missão, a visão de futuro e os valores organizacionais – na
rede corporativa interna, a intranet, seguida da formulação de uma pergunta
para todos os funcionários, “como você pode contribuir para o alcance da
missão e da visão de futuro do Tribunal?”, mas os resultados constatados, em
termos de retorno de contribuições e sugestões, foram pouco significativos.
Dessa forma, pode-se concluir que o modelo mental proposto na literatura de
um “pensar estrategicamente” envolvendo toda a instituição, a nosso ver ainda é
mais uma aspiração do que um fato real nos tribunais observados pelo autor.
Finalmente, o que se percebe é um enorme esforço para dotar as instituições
de métodos e tecnologias para apoio à formulação e à implementação
das estratégias, sem que haja ainda uma institucionalização de políticas
consistentes de recursos humanos para criar contrapartidas de incentivo real
para recompensar o alcance das metas estabelecidas, seja em termos financeiros
ou por meio de outras formas de premiação aos funcionários individualmente
ou a grupos (times) envolvidos com a concretização dos planos.
4. O magistrado como agente de mudança na gestão estratégica
Conforme enfatizado no início deste trabalho, a gestão estratégica é
uma ação contínua que deve se institucionalizar no seio da organização e
Revista ENM
329
internalizar-se nos seus quadros funcionais em todos os níveis. O planejamento
estratégico, visto como um esforço disciplinado para produzir decisões e ações
fundamentais, é o instrumento conceitual e metodológico para concretizar a
formulação e a implementação das estratégias.
Entretanto, por melhor que sejam as formulações derivadas do processo
de planejamento, elas não são um substituto para a liderança como o meio
fundamental para motivar as pessoas, desencadear as ações e fazer acontecer os
resultados em qualquer instância da organização.
Nas instituições do Judiciário o principal foco de concentração das ações
estratégicas, tendo como propósito final a prestação do serviço jurisdicional
com qualidade e eficiência, deve estar voltado para os órgãos julgadores, no
âmbito da primeira e da segunda instâncias. É neste contexto que deve se
ressaltar o papel chave dos magistrados como os agentes fundamentais nas
ações de formulação e de implementação das estratégias.
Tendo como referência a compreensão da natureza dos processos inerentes
ao Poder Judiciário, conforme proposto por Dakolias (1996), além do seu
exclusivo espaço do livre convencimento para a resolução dos conflitos, razão de
ser da instituição judiciária, o magistrado ainda atua na esfera da administração
da justiça em outra instância, a da gestão das funções administrativas dos
órgãos julgadores e da tramitação do processamento das ações relacionadas à
resolução dos conflitos de interesse entre as partes envolvidas.
É nesta dimensão administrativa do órgão julgador que ressalta o papel
do magistrado como agente da transformação estratégica da gestão. Nesta
situação, para uma atuação eficaz, ele deve desvincular-se do modelo mental
utilizado no processo de formação do seu convencimento para a resolução
das lides, orientado por uma atuação bastante individualizada e condicionada
pelos fatos inerentes ao processo que está sendo analisado, pelas normas e
doutrinas do direito e pelos seus valores pessoais.
Na figura de gestor administrativo, alinhado com a estratégia da instituição,
o magistrado deve desenvolver e internalizar outros papéis e habilidades, especial­
mente no sentido de conduzir os processos que requerem, essencialmente, o
desempenho de tarefas de natureza interpessoal, conforme proposto a seguir.
Em primeiro lugar deve entender o contexto estratégico em que está
atuando, sendo capaz de perceber como as proposições relacionadas à missão,
visão de futuro e valores organizacionais podem transformar-se em ações
concretas no âmbito de sua esfera de atuação, o órgão julgador.
330
Revista ENM
Para tanto, de forma a atuar efetivamente como o principal agente
facilitador do processo de mudança, o magistrado deve, antes de tudo,
internalizar o sentido do que significa pensar e agir estrategicamente na
sua esfera de atuação, para o que é imperativo o desenvolvimento de uma
visão clara, objetiva e sucinta dos fatores críticos a serem enfrentados e
superados para o sucesso da implementação das ações propostas no órgão
onde atua.
Em seguida, deve envolver o pessoal sob sua jurisdição (os funcionários
do gabinete e do cartório) na execução das ações propostas, para o que faz-se
necessária uma prévia discussão com os mesmos a respeito dos direcionadores
estratégicos formulados e da forma como eles podem impactar o funciona­
mento e os resultados da unidade prestacional.
A partir da compreensão das pessoas sobre o significado das diretrizes
estratégicas no seu cotidiano, o passo seguinte do magistrado é investir-se
da missão de ser o patrocinador político das mudanças no seu contexto de
jurisdição. Neste papel, ele não estará necessariamente envolvido nos detalhes
do dia a dia das ações, mas deverá acompanhar acuradamente o progresso das
ações e a reação das pessoas às mudanças que estarão acontecendo.
Como principal articulador local da implementação das estratégias, deve
também dispor de um canal efetivo de comunicação com a administração da
instituição, notadamente com a unidade responsável pela gestão estratégica,
de forma a garantir os recursos necessários para a concretização das ações,
especialmente quanto à provisão dos meios materiais, e à capacitação,
reconhecimento e recompensa das pessoas envolvidas.
Finalmente, no seu papel de líder do processo de mudanças, deve utilizar o
diálogo e as discussões em grupo como os meios essenciais para construir um
ambiente de transformação dotado de significado para as pessoas.
5. Conclusões
A aplicação da gestão estratégica nas organizações públicas é plenamente
factível, desde que a cultura predominante favoreça a adoção de procedimentos
centrados na racionalidade do processo de gestão.
O primeiro e principal benefício potencial da gestão estratégica é a
oportunidade de se criar um ambiente coletivo orientado para o pensamento e
a ação estratégica no âmbito da organização como um todo. Este é o principal
resultado a ser alcançado.
Revista ENM
331
Neste sentido, o planejamento estratégico tem utilidade somente se dele
resultarem elementos que facilitem e fortaleçam o pensamento e a ação
estratégica.
Como decorrência do primeiro, o segundo benefício potencial consiste na
possibilidade de se alcançar melhores resultados na gestão do negócio, a partir
do foco nos desafios cruciais que se apresentam à organização, tanto no plano
interno como no relacionamento com o ambiente externo.
O terceiro benefício potencial, melhor resposta aos desafios provenientes
do ambiente externo e maior transparência da gestão, é uma decorrência direta
e natural dos dois primeiros.
A implementação da gestão estratégica no setor público tem o mesmo
grau de complexidade que nas empresas privadas, entretanto apresenta
uma conotação bastante diferente quando observada a perspectiva dos seus
resultados, dado que estes devem contemplar a contribuição da instituição
para a efetividade das políticas públicas estabelecidas.
No caso do Poder Judiciário, a formulação das estratégias deve buscar o
fortalecimento de suas instituições no sentido de prover uma efetiva prestação
jurisdicional para a sociedade, política pública estabelecida pelas suas instâncias
de nível superior.
A experiência recente nas organizações do Judiciário, conforme percebido
pelo autor, revela um contínuo progresso na utilização de processos de
planejamento estratégico como um meio sistemático de fortalecer a
compreensão de sua missão e a visão do cenário futuro onde se pretende
chegar.
Entretanto ainda permanece, como um grande desafio, a concretização
efetiva do “pensar estrategicamente” envolvendo toda a instituição, que ainda
constitui mais uma aspiração do que um fato real nas situações observadas
pelo autor.
Para se chegar efetivamente ao cenário desejado, ressalta a missão
que deve ser assumida pelos magistrados como agentes da transformação
estratégica da gestão. Na figura de gestor administrativo alinhado com a
estratégia corporativa, o magistrado deve desenvolver e internalizar novos
papéis e habilidades, notadamente no sentido de conduzir os processos que
requerem, essencialmente, o desempenho de tarefas de natureza interpessoal,
especialmente quanto à comunicação, negociação e condução de grupos.
332
Revista ENM
Referências Bibliográficas
BRYSON, John M.; ALSTON, Farnum K. Creating and Implementing your Strategic Plan: A Woorkbook
for Public and Nonprofit Organizations. San Francisco, Jossey-Bass Inc Publishers, 1996.
BRYSON, John M. Strategic Planning for Public and Nonprofit Organizations. San Francisco, Jossey-Bass
Inc Publishers, 1995.
CENEVIVA, Ricardo. Accountability: novos fatos e novos argumentos – uma revisão da literatura recente.
Anais do EnANPG-2006, São Paulo, novembro de 2006.
CERTO, Samuel C.; PETER, J. Paul. Administração Estratégica: Planejamento e Implantação da Estratégia.
São Paulo, MAKRON Books do Brasil Editora Ltda, 1993.
CÉRUTTI, Olivier; GATTINO, Bruno. Indicateurs et Tableaux de Bord. Paris, AFNOR, 1992.
DAKOLIAS,M. O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe: Elementos para Reforma, documento
técnico no 319, Washington, D.C., Banco Mundial, 1. ed., junho de 1996.
JOBIM, Nelson. Por um Judiciário mais moderno, in Justiça e Cidadania, Rio de Janeiro, abril 2004.
KAPLAN, Robert S.; NORTON, David P. A Execução Premium. Rio de Janeiro, CAMPUS ELSEVIER
Editora, 2009.
MARTINS, Humberto Falcão. Gestão de Recursos Públicos: Orientação para Resultados e Accountability.
Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 3,
setembro/outubro/novembro, 2005. Disponível na Internet: http://www.direitodoestado.com.br, acesso
em 31/7/2009.
MOTTA, Paulo Roberto. Transformação Organizacional: A Teoria e a Prática de Inovar, Rio de Janeiro,
Qualitymark Editora, 1999.
WIIG, Karl. People-Focused Knowledge Management. Oxford, ELSEVIER, 2004.
Revista ENM
333
Gestão
JUDICIÁRIO DO NOVO TEMPO
Cesar Augusto Mimoso Ruiz Abreu
Mestre em Direito e pós-graduado em Administração Pública
Autor de “Sistema Federativo brasileiro: degeneração e reestruturação” e “Governo Judiciário”
Ex-Presidente da Associação dos Magistrados Catarinenses − AMC
Desembargador
1. Fundamento primeiro
O Poder Judiciário sempre viveu uma cultura de não-poder. É chegada a
hora da mudança, que se inicia com a participação nas decisões que permeiam
as transformações da sociedade. O Judiciário é poder político com o mesmo
grau de quantidade e qualidade de poder que possam ter o Legislativo e o
Executivo. Os três são um. E em conjunto devem decidir as questões de Estado.
A mudança para o Novo Tempo está a exigir do Judiciário outra postura,
um caminhar proativo, e dos juízes maior envolvimento na consolidação
dos alicerces da República. Os desafios econômicos, políticos e sociais da
atualidade colocam os juízes no epicentro dos acontecimentos, alterando-lhes
o perfil tradicional, de isolamento e equidistância, para obrigá-los, no sítio da
sua jurisdição, a perseguir ativamente a concretização da justiça e do direito.
O juiz é, por mandato social, o curador dos excluídos, menores, idosos,
órfãos e ausentes. É curador, também, da Criação, da vida, do meio ambiente
e da cidadania. A ele é reservada a tarefa de conferir e graduar a dimensão
política do Poder Judiciário e, por extensão, a do seu próprio múnus.
É de sua responsabilidade, também, adotar posição firme e clara perante o
controle externo do Poder Judiciário e as relações deste Poder com o Executivo,
Legislativo, Tribunal de Contas, Ministério Público e a Ordem dos Advogados
do Brasil.
Mudar, portanto, é preciso. E a mudança começa por um novo olhar dos
juízes, para além dos escaninhos dos processos!
334
Revista ENM
2. Os outros fundamentos
A passagem para o Judiciário do Novo Tempo reclama algumas iniciativas,
entre elas o diálogo interinstitucional permanente, a formulação de parcerias
para o desenvolvimento, a democratização e descentralização da atuação
judicio estatal, a revisão do papel do juiz na sociedade, a remodelação da
divisão e organização judiciárias, a desburocratização e modernização das
atividades administrativa e judicial e, fundamentalmente, a transformação da
Justiça brasileira em padrão mundial de segurança jurídica.
Como fazer?
O Poder Judiciário de Santa Catarina criou o seu modelo ao instituir
o Conselho de Gestão, Modernização Judiciária, de Políticas Públicas e
Institucionais, órgão por meio do qual recobre tarefas que vão além da
prestação jurisdicional corrente. No conjunto, as funções atribuídas ao
Conselho conduzem ao chamamento dos demais poderes e instituições que
lhe são afins para um necessário diálogo interinstitucional, com vistas a um
projeto comum de reconstrução e desenvolvimento.
É desse Conselho a tarefa de apontar o caminho que deve percorrer o
Judiciário para assumir qualitativamente a sua parte de responsabilidade
política na produção do bem comum.
2.1 Diálogo interinstitucional permanente
O diálogo interinstitucional é a instância que congrega, permanen­
temente, formal ou informalmente, os poderes (Judiciário, Legislativo
e Executivo) e as instituições (Ministério Público, Tribunal de Contas e
Ordem dos Advogados) para definição e implementação de prioridades
e o recobrimento de oportunidades, emergências e ocasionalidades que
afetam o interesse coletivo.
2.1.1 Os poderes do Estado brasileiro e o direito à coadjuvação
Está expresso na Constituição, em seu art. 2o, que Executivo, Legislativo e
Judiciário são harmônicos e independentes.
A harmonia há ser interpretada como reveladora de um acordo
interinstitucional permanente, de cooperação mútua, facilitadora do
cumprimento pelos órgãos que compõem o Estado, dos seus respectivos papéis
institucionais. Espera-se que o Executivo possa resolver com competência os
reclamos sociais e econômicos da população, o Legislativo legisle melhor, num
Revista ENM
335
ambiente de correção e moralidade, e o Judiciário realize com maior presteza
e eficiência os ideais de justiça da sociedade.
A independência, pré-requisito para o Estado de Direito, impõe apenas
que Poder nenhum se sujeite à dominação do outro, não inibe iniciativas
conjuntas, muito menos conjunção de esforços para superação das causas que
embaraçam ou causam ineficiência a um ou outro dos poderes.
Na consecução dos objetivos fundamentais da República, é direito-dever
dos que exercem poder de mando e comando dos órgãos que compõem a
estrutura política do Estado, exatamente, coadjuvarem no cumprimento dos
postulados inscritos na Carta Constitucional.
2.1.2 A inter-relação entre os órgãos do Estado e as instituições democráticas
A separação de poderes, tal como concebida na Constituição brasileira,
não é tão acentuada ou absoluta a ponto de inibir iniciativas conjuntas, que,
antes de ferir a sagrada e necessária independência do Legislativo, Executivo e
Judiciário, lhes propicia a melhora de desempenho.
É a lição que se extrai dos últimos dois pactos, escritos pelos poderes da
União, em favor de um Judiciário mais rápido e republicano.
Aliás, é da essência democrática que os poderes do Estado devem ser mantidos
tão separados e independentes uns dos outros quanto o admita a natureza de
um governo livre; ou na medida compatível com aquela cadeia que liga todo o
tecido da Constituição num laço indissolúvel de unidade e amizade.
Como adverte o professor Alcides Abreu, o poder do Estado divide-se por
conveniência. Em concreto, a prática da tripartição resultou, no Brasil, em
três absolutismos, sob a capa da independência dos poderes. Em verdade, no
Poder que se divide os subpoderes são interdependentes porque são sistêmicos.
Não são independentes. O poder do Estado, dividido por especialização
em serviços legislativo, judiciário e executivo, deve atuar sinergicamente. A
sinergia é obtida no interior de cada serviço ou subpoder e entre os subpoderes
pela retroalimentação ou controle externo e interno. Na visão moderna
– e apropriada –, prossegue, tudo é sistêmico, isto é, constituído de partes
interatuantes e, por isso, interdependentes. A interdependência impõe a
concertação permanente, a sincronia na ação, a retroalimentação – controle –
constante, on-line, a sinergia.
Com essa visão de conjunto e de cooperação mútua, por simetria, os
estados federados e os municípios estão convocados a escrever, cada um, o
336
Revista ENM
seu próprio pacto, observadas as exigências que lhes sejam próprias e mais
imediatas, não apenas para superar a ineficiência deste ou daquele Poder ou
Instituição, mas para fazer cumprir os compromissos escritos na Carta da
República, preferencialmente os de conteúdo social.
Na costura desse acordo de recíproca cooperação devem concorrer as
instituições que, direta ou indiretamente, contribuem para que o EstadoNação brasileiro se faça democrático de direito. Refiro-me ao Tribunal de
Contas, ao Ministério Público e à Advocacia. Instituições que não competem
com os poderes da República, apenas somam esforços para realização do
ideário da sociedade.
A responsabilidade conjunta pela busca do bem comum os tornam
parceiros obrigatórios em quaisquer iniciativas.
2.1.3 O Poder Judiciário catarinense propondo-se ao diálogo
A ideia que Santa Catarina coloca à discussão, como contribuição na
construção de um novo Judiciário, é a formulação de uma agenda política,
social e econômica, comum às duas esferas de Poder, estadual e municipal, e a
institucionalização do Diálogo Interinstitucional Permanente entre os Poderes
Judiciário, Legislativo, Executivo e as instituições do Ministério Público,
Tribunal de Contas e, como sugestão, a OAB/SC, com o objetivo de adotar
e fazer implementar o Projeto de Reconstrução e Desenvolvimento de Santa
Catarina para 2020.
A tendência pela conversação, pelo diálogo, pela discussão prévia e pelo
consenso é sentida universalmente, basta citar a iniciativa da Comunidade
Europeia, que, em 2004, via resolução do seu Parlamento, entendeu desejável
um diálogo interinstitucional permanente entre as diversas instituições
comunitárias sobre a melhoria da qualidade da legislação. O exemplo deve ser
seguido. A União já escreveu o seu segundo pacto em favor de um Judiciário
mais rápido e republicano. Os estados, o Distrito Federal e os municípios
precisam aderir, escrevendo também os seus.
Esse diálogo democrático e construtivo, que servirá de instrumento à
solução de problemas na área dos direitos fundamentais sociais e formulação
de políticas de implementação desses direitos, deve começar pelo Município,
ou Município-comarca, não só em decorrência do princípio federativo da
subsidiariedade, mas por se concentrarem ali, na menor divisão geopolítica do
Estado-Nação, os problemas mais sensíveis da sociedade.
Revista ENM
337
A magistratura deve fazer-se presente. O juiz não está excluído desse contexto.
É ele agente propulsor do desenvolvimento social e econômico, portanto,
agente político, na exata dimensão e conteúdo da expressão. Os promotores de
justiça, advogados, prefeitos e vereadores também são convocados ao diálogo,
porque mais próximos das pessoas e das causas de suas angústias e aflições.
Cabe-lhes, comprometidos que estejam com o desenvolvimento e progresso
das comunidades a que servem, avaliar e operacionalizar as soluções para as
adversidades.
Temos nesses cinco legítimos representantes da sociedade – aos quais deve
somar-se, em nível estadual, o Tribunal de Contas –, o embrião para uma
agenda que seja do tamanho do Brasil.
2.2 Formulação de parcerias para o desenvolvimento
A cooperação entre os poderes da República está expressamente prevista
no art. 241 da Constituição Federal. É a chave da própria descentralização,
implícita no princípio federativo da subsidiariedade, segundo o qual, presumese, melhor realiza quem está mais próximo dos problemas e das pessoas, ou
seja, o Município prefere ao Estado e à União. O Estado, por sua vez, prefere
à União.
Um dos direitos fundamentais da cidadania é exatamente o direito a uma
boa administração. Objetivando alcançá-la e facilitando o diálogo entre os
entes federados e os respectivos poderes do mesmo ou de outros níveis é que
a Constituição autorizou a edição de leis permissivas de consórcios públicos e
convênios de cooperação.
No Estado de Santa Catarina, o diálogo interinstitucional foi deflagrado,
em alguma medida, e com concretude, a partir da edição da Lei no 14.266,
de 21/12/2007, que dispôs sobre as execuções fiscais de pequeno valor e
autoriza a celebração de convênios de cooperação entre o Poder Judiciário
e os municípios catarinenses, com vistas na instalação, descentralizada e
desburocratizada, em próprios municipais, de unidades judiciais de cobrança
de dívida ativa, o que importará, a curto prazo, tão logo disseminados os
convênios, na retirada física dos escaninhos do Pretório Estadual de 1/3 do
volume de demandas que correm na Justiça de primeiro grau.
Espera-se, com iniciativas de igual importância, em áreas como segurança
pública, meio ambiente, saúde, educação, justiça, desenvolvimento, por
exemplo, transmudar a realidade dos municípios, das comarcas, transformando
338
Revista ENM
as sedes destas em ponto de efervescência, de reuniões e encontros para a
discussão e resolução de importantes temas de interesse local, e porque não,
Estadual e Federal, definindo estratégias e estabelecendo consensos para a
consecução de objetivos comuns, relacionados ao bem estar das pessoas, das
famílias e das comunidades.
Uma nova cultura há de se implementar na base, no interior das comunas,
para que, fortalecidas, venham facilitar ao Poder Judiciário o cumprimento de
sua missão estratégica.
Para iniciar esse diálogo, e como corolário dele, parece essencial que os
poderes públicos municipais, Legislativo (vereadores) e Executivo (prefeito),
em harmonia, com o concurso do juiz de direito, do promotor de justiça e do
advogado, este na condição de representante da subseção local da Ordem dos
Advogados do Brasil, revejam as suas leis, extirpando tudo quanto seja fonte
de iniquidade, e as suas práticas administrativas, na busca por maior qualidade
para que melhor se realizem os direitos de cidadania.
Rever os poderes, passar a limpo as suas práticas, é um bom começo para um
diálogo sério, maduro, democrático. Nenhum deles, Legislativo, Executivo ou
Judiciário, pode esquivar-se do chamamento. O Legislativo é o primeiro que
deve sofrer revisão adequada, profunda, para que esteja à altura das aspirações
do seu povo, porque fonte de leis hostis aos parâmetros constitucionais. Dessa
revisão não escapa o Executivo, que deve priorizar a profissionalização do
serviço público. Mas não seria apenas isso.
Outros temas podem ser objeto de consideração, de debate, de consenso,
como a elaboração orçamentária, com vistas na adequada distribuição dos
recursos públicos, e um maior controle não só das despesas como também
das receitas. O Judiciário, que sofre os efeitos das leis imperfeitas e dos atos
administrativos, quando malferem direitos, também não está fora. Precisa
remodelar-se, adaptar-se à realidade, para que sejam mais céleres os seus
pronunciamentos, sem perda da qualidade ou da referência ao justo. Deve,
enfim, primar pela excelência de seu serviço e pela segurança jurídica.
A sociedade reclama segurança legislativa, jurídica e administrativa. Almeja
um governo ótimo, porque o interesse público não é protegido com violação de
direitos, mas com a supressão de vícios e irregularidades.
O Judiciário, como o Poder de Estado, mais presente nas comunidades, bem
como a instituição do Ministério Público, com essa iniciativa e a participação
ativa da nobre classe dos advogados, será capaz, a médio prazo, de concretizar
Revista ENM
339
a ideia do povo no poder, fazendo do espaço público de que dispõe o lugar
para o exercício da cidadania e o fortalecimento da democracia.
O despertar da consciência popular, para o controle do governo, é
tarefa que cabe também aos juízes, insuspeitos e imparciais que o sejam, e
igualmente ao Ministério Público, atores privilegiados para a accountability
do serviço público. E esse controle sobre o Estado, em qualquer das suas
divisões – Legislativo, Executivo e Judiciário −, só vai ocorrer efetivamente
se os seus atos e as suas ações forem verdadeiramente fiscalizados pelos
cidadãos, ou por quem responsavelmente os represente. Não haverá condição
para a accountability, entretanto, enquanto o povo se definir como tutelado e o
Estado como tutor. Essa, talvez, a maior contribuição que o Judiciário possa
dar à democracia e ao povo brasileiro, qual seja, fazer dele o tutor, e não
mero tutelado.
É momento, pois, de mudança, da deflagração de um processo
revolucionário na Administração Pública, de passar a limpo as instituições
democráticas do País, a começar pela casa, pelo Município, menor ente
político, mas lugar onde vivem as pessoas e se produzem as riquezas da nação.
Não há dinheiro em Brasília que não provenha dos municípios, das pessoas.
2.3 Democratização e descentralização da atuação judicio estatal
Em Santa Catarina três fatos políticos marcaram o início do processo de
democratização e descentralização da atuação judicio estatal, pela ordem: a
dissolução do Órgão Especial; a instituição do Governo Judiciário a partir do
Tribunal Pleno; a criação do Conselho de Gestão, Modernização Judiciária,
Políticas Públicas e Institucionais.
A extinção do Órgão Especial representou: a) a restauração das prerrogativas
dos desembargadores excluídos de sua composição; e b) um primeiro passo
para a democratização do próprio Poder Judiciário.
A implosão desse órgão nasceu da consciência de que o Poder Judiciário,
como Poder Político que é, não pode e não deve se partilhar em grupos de
interesses, por mais democráticos e republicanos que possam parecer.
Aliás, é da experiência parlamentar que uma câmara escolhida por grupos
de interesses cuidará de todos os interesses, menos de um, o coletivo, que, por
ser geral, não terá defensor específico.
Essa advertência, trazida à realidade do Poder Judiciário, está a indicar que
todas as decisões a serem tomadas, que digam respeito ao interesse geral da
340
Revista ENM
sociedade, por um corpo de juízes, não podem prescindir da participação de
nenhum deles, sob pena de quebra de sua legitimidade.
A dissolução do Órgão Especial, portanto, constituiu-se num marco na busca
pela plena democratização do Poder Judiciário catarinense e representou o início
do que se passou a denominar Governo Judiciário a partir do Tribunal Pleno.
O Governo Judiciário no âmbito externo, pode-se dizer, é governo do povo,
pelo povo e para o povo. No interno, no seu âmago, o Governo Judiciário é
do seu órgão máximo de cúpula, o Tribunal Pleno, e a sua administração
– no sentido de Administração Pública, e não de Justiça – é delegada, vale
dizer, reversível, com poderes sempre menores, nunca superiores, portanto
reduzidos aos limites consignados regimentalmente.
A retomada do controle político da instituição pelo Tribunal Pleno, antes
de caracterizar uma mudança de mentalidade ou tomada de consciência,
representa, isto sim, o exercício soberano das suas prerrogativas e o único
caminho capaz de ensejar governabilidade, que consiste na capacidade de
alcançar resultados possíveis e desejados.
O individualismo cedeu à governabilidade.
Reflexo da retomada do comando da instituição pelo Tribunal Pleno está
exatamente na criação do Conselho de Gestão, Modernização Judiciária,
Políticas Públicas e Institucionais. É ele o órgão através do qual o Poder
Judiciário recobre tarefas que vão além das prestações judiciárias correntes.
No conjunto, as funções atribuídas ao Conselho compõem o chamamento
dos demais poderes a um necessário Diálogo Interinstitucional para um novo
tempo catarinense, brasileiro e planetário.
O Conselho propõe-se a promover: (1) avaliação de conjunturas com vistas ao
planejamento estratégico e desenhos de futuro; (2) formulação de agenda pública
e institucional; (3) avaliação de proposta orçamentária; (4) acompanhamento e
verificação de desempenhos, conducentes à gestão para resultados.
Vistas uma a uma, as funções se descrevem como a seguir: (1) Agenda
pública e institucional: colaborar na formulação da agenda pública de discussão
das questões direta ou indiretamente ligadas à Justiça, Segurança Pública e aos
direitos da Cidadania, e na definição da agenda institucional, relativa a ações
concretas para melhoria na prestação jurisdicional e nos serviços judiciários
e afins, voltadas para uma gestão pública de qualidade e de resultados,
com ênfase no cidadão catarinense, visando ao bem comum; (2) Proposta
orçamentária anual: emitir parecer prévio, quando solicitado pelo Tribunal
Revista ENM
341
Pleno, sobre a proposta orçamentária anual e sobre os pedidos de abertura de
créditos adicionais e especiais, submetidos à sua apreciação pelo Presidente do
Tribunal; (3) Acompanhamento e avaliação de desempenhos: acompanhar, em
nome do Tribunal Pleno, o desempenho da Administração e de seus órgãos
subordinados, bem como o cumprimento das metas estabelecidas pelo Poder
Judiciário na Lei de Diretrizes Orçamentárias; (4) Planejamento estratégico:
desenvolver estudos na área do planejamento estratégico, com a participação
ativa dos servidores, juízes e órgãos da Administração, ouvidos a associação
de classe da magistratura e o sindicato dos servidores, para apresentação de
planos e metas de gestão e geração de programas de avaliação institucional,
objetivando o aumento da eficiência, da racionalização e da produtividade
do sistema, bem como o maior acesso à Justiça; (5) Gestão para resultados:
elaborar programas de aperfeiçoamento de gestão administrativa e financeira
do Poder Judiciário, propondo suas metas.
A decisão do Tribunal Pleno dá ao Poder Judiciário o caminho para assumir
qualitativamente a sua parte de responsabilidade política na produção do bem
comum dos brasileiros de Santa Catarina. De mediato.
A adoção do Conselho de Gestão abre também ao Judiciário a oportunidade
de promover, entre os poderes Judiciário, Legislativo, Executivo e as instituições
do Ministério Público, Tribunal de Contas e OAB, o diálogo interinstitucional
ampliado, com o objetivo de, em conjunto, escreverem e reescreverem o futuro
do Judiciário e de Santa Catarina.
A descentralização recentemente adotada pelo Tribunal de Justiça, pela via
da regionalização, com a instalação de uma câmara experimental de julgamento
no Oeste catarinense, distante 630 km da Capital, impõe exatamente discutir
Santa Catarina e o seu futuro.
A atuação estatal de distribuição da justiça é historicamente uma atividade
descentralizada, não sendo propriamente uma inovação o permissivo
constitucional da instituição de câmaras regionais.
Como está posto objetivamente na Constituição Federal (arts. 107, § 3o e
125, § 6o), esse deslocamento centrífugo representa mais uma das formas de
assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo.
Configurando o acesso à justiça, a própria facilitação do ingresso em Juízo,
em todas as suas instâncias, a instituição das câmaras regionais constitui não
só a garantia da recorribilidade, ou seja, do exercício do direito fundamental
de revisão das decisões judiciais, mas também um modo de assegurar a razoável
342
Revista ENM
duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação
(CF, art. 5o, LV e LXXVII), além de expressar a aplicação do princípio
federativo da subsidiariedade e revelar uma ação afirmativa em direção à plena
democratização do Poder Judiciário brasileiro.
É expressão ainda do desejo de mudança, no sentido estrutural do sistema
de distribuição de justiça, do desapego a qualquer forma de corporativismo
e de uma ação estratégica de consolidação de uma cultura jurídica não
patrimonialista, vale dizer, que bem separa o público do privado, fazendo
do Judiciário, se não uma instituição mais representativa dos interesses da
sociedade, ao menos positivamente compromissada com a redução da
tensão que gravita na relação que mantém com os usuários dos seus serviços,
colaborando na redução do grau de insatisfação desses mesmos consumidores
de justiça.
Aliás, as causas da ineficiência que se atribui ao Judiciário, em grande parte
com indiscutível razão, não estão apenas nas leis imperfeitas produzidas no
Legislativo, ou nos abusos e desmandos do Executivo, mas na sua própria
estrutura e cultura, que deita raízes no Brasil-Colônia.
Está exatamente na maior franquia de acesso à justiça o elemento
democratizante, garantidor da universalização dos direitos de cidadania.
O acesso à Justiça, que a Constituição busca garantir, está fundado
basicamente na concepção de um sistema a todos acessível e na produção de
resultados que sejam individual e socialmente justos.
2.4 Revisão do papel do juiz na sociedade
O papel do juiz na sociedade ultrapassa os limites do mero aplicador e
intérprete qualificado das leis. Investe-se da condição de agente político
propulsor do desenvolvimento social e econômico de sua terra e de sua gente,
além de garante do Estado Democrático de Direito. Equipara-se ao estadista,
que se preocupa com o bem-estar comum, coletivo, enfim, com as gerações
futuras, antes de preocupar-se consigo mesmo, ou com os seus. E o juiz,
estadista será se tiver qualidades para sem perda da independência que lhe
confere a ordem jurídica, ao lado do Legislativo e do Executivo, utilizar-se do
Poder Político de que é detentor para decidir em conjunto e simultaneamente
as questões de Estado, que incluem a revisão da Constituição e das leis
infraconstitucionais, planejamento, orçamento e implementação de políticas
públicas, especialmente quanto aos direitos sociais fundamentais.
Revista ENM
343
É preciso preparar o juiz para esse desafio. Fazer dele um ativista social.
Alguém altamente comprometido com o bem-estar das pessoas, das famílias,
da comunidade em que vive, do Estado que o abriga e da Nação que o acolhe
como filho.
A dimensão política, as qualificações pessoais, a visão da realidade
econômico-social do País (do Município, do Estado e do mundo, por que
não), o alto espírito público, que caracterizam as ações que se disponha a
implementar, a capacidade de não se deixar envolver pela rotina, que desgasta
e cansa, sem proveito maior, para concentrar-se nas grandes decisões, é que
fazem do juiz um estadista.
O estadista, aliás, não precisa, como não precisam os juízes, de acesso
aos postos de mando e comando das instituições para a promoção do bem
comum. Ele, o estadista, serve sem servir-se. Nem sempre busca o poder
para si. Viabiliza-o, em empenho, para pô-lo nas mãos de quem possa
desempenhar com desenvoltura as competências e atribuições próprias do
cargo transitoriamente ocupado.
Os juízes são povo; não estão fora nem acima do povo; são, em relação a
ele, um igual. Simples, austero, respeitoso, contido, mas sem diferenças. Cabelhe, é verdade, velar pelo pleno cumprimento da lei, resguardar os direitos
fundamentais que a Constituição assinala, como o direito à vida, à liberdade,
à segurança e à propriedade, e conter energicamente quem a desrespeite, pois
sem a preservação deles, fundamentais que são segundo o juízo do pacto maior,
todos os demais direitos, derivados que lhes sejam, acabam por substituir a
ordem pela anarquia, a paz pelo conflito.
Copartícipe da construção de uma sociedade mais livre, justa, solidária e
fraterna, reserva-se ao Judiciário e a seus juízes o desafio de garantir um mínimo
de existência condigna ao povo, elevando os direitos sociais fundamentais,
pelo menos os mais básicos, ao status constitucional de bens juridicamente
protegidos, de modo a afastar o trágico distanciamento entre a promessa de
direitos posta solenemente na Constituição e a sua realidade prática.
2.5 Remodelação da divisão e organização judiciárias
Obra do constituinte derivado, extrai-se da Constituição um princípio que
se tem por impositivo, qual seja, o número de juízes na unidade jurisdicional
será proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população (CF, art.
93, XIII).
344
Revista ENM
Para atender a essa exigência, de duas uma: ou se amplia imediatamente
o número de juízes, para dar adequada e tempestiva vazão aos processos,
ou se facilitam iniciativas e o exercício da criatividade, com vistas na célere
administração da Justiça.
No primeiro caso, vale a advertência da Doutora em Ciência Política, Luciana
Gross Cunha, quando trata da necessária mudança do gerenciamento da Justiça,
verbis: “Se quanto mais processos mais se contratar juízes, vai se chegar em um momento que o Judiciário se transformará em uma instituição muito cara e inviável.
A solução, então, é conferir ao Judiciário uma gestão empresarial. A
filosofia é a da visão do Estado-empresa como instrumento da sociedade à
qual deve resultados e produtividade.
Ora, sendo finalidade do Estado o bem comum, cumpre, por primeiro, na
distribuição territorial das instâncias judiciárias, considerar as pessoas mais à
margem do processo cultural-econômico e colocar à sua disposição os meios de
inclusão. E mais, promover o diálogo interinstitucional Judiciário-ExecutivoLegislativo-Ministério Público-Tribunal de Contas-OAB, incluindo na pauta
o estudo e a definição da presença ativa do Estado, serviço executivo e serviço
judiciário no território tendo em conta, quanto ao tema Judiciário do Novo
Tempo, garantir a Santa Catarina e, por que não, ao País, o melhor Índice de
Segurança Jurídica e padrão mundial nesse campo.
Para alcançar o melhor índice devem ser considerados na distribuição
territorial tanto os juízes de primeiro como os de segundo grau. O Tribunal
de Justiça, como o Tribunal Federal de Recursos, este seguindo o modelo do
Tribunal Regional do Trabalho, com atuação em todos os estados da Federação,
deve descentralizar-se em câmaras, tantas quantas necessárias, para dar
celeridade com qualidade às disputas judiciais. Na busca desse melhor Índice
de Segurança Jurídica, que exprime o melhor serviço (presteza, qualidade e
oportunidade) à sociedade, cumpre ao Judiciário também agilizar e ampliar o
processo de especialização dos juízes.
O Poder Judiciário deverá organizar-se, outrossim, dentro do modelo de
Administração Pública voltada para resultados. Isso impõe a implementação da
reforma gerencial, com o objetivo de aumentar a governança e a governabilidade
do sistema político de que o Judiciário faz parte. São princípios do modelo
gerencial de gestão: orientação para o cidadão, transparência, responsabilização
e participação. O Juízo é, em princípio, uma unidade de produção de solução
de conflitos, unidade de produção de serviços de garantia jurídica.
Revista ENM
345
É indispensável, pois, promover a remodelação do sistema tradicional
da Justiça, o que implica na alteração, ainda, da formatação da divisão e
organização judiciárias dos estados.
A fórmula, para mudar o paradigma, é estabelecer uma divisão judiciária
não uniforme, que possa a um só tempo compatibilizar os princípios do
pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo e da razoável
duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (CF,
arts. 125, § 6o, e 5o, LXXVIII) com eficiência, de modo a garantir redução de
custo e racionalização do trabalho.
Pois bem, uma das soluções seria considerar a divisão judiciária a partir da
matéria (cível, criminal, previdenciária, fiscal, família, infância e juventude,
etc.); outra, a partir da pessoa do litigante (física ou jurídica, cliente habitual
ou não eventual − exemplo do ente estatal, das instituições financeiras,
bancárias, securitárias, etc.). Não haveria coincidência nessa divisão, a não ser
que o interesse público o recomende. Assim, poder-se-ia redesenhar o mapa da
divisão judiciária do Estado, por exemplo, para as matérias criminais, diferentes
das civis, diversas da fiscal, da previdenciária, e assim sucessivamente. Ou seja,
seria possível que em dada comarca houvesse um juiz competente apenas nas
áreas penal e de família, por exemplo, sendo do juiz sediado na Vara regional
as demais competências.
As causas conexas, referentes ao mesmo bem jurídico, a tornar a prevenção,
se não obrigatória, ao menos um elemento de política judiciária, garantindo-se
segurança jurídica, seriam tratadas num único Juízo, ou processadas em todos,
mas julgadas pelo juiz prevento, ou a partir da orientação deste. Haveria,
então, varas especializadas em causas repetitivas, múltiplas, sazonais ou não.
Evitar-se-iam decisões contrárias ou divergentes, que fogem à compreensão
do cidadão em geral, que espera por justiça e não entende o motivo pelo qual
perdeu a demanda, idêntica àquela em que foi vitorioso um vizinho seu.
Há que se buscar, primeiro, nos próprios juízes essa visão. Depois, estimular
as partes e procuradores – e nisso podem colaborar, também, nas ações de que
participem, os promotores de justiça − para que informem da existência dessas
ações repetidas, correlatas, como contribuição ética para o processo, e para o
Judiciário, por que não?
A garantia do acesso à justiça, que pressupõe manter o Judiciário próximo dos
que lhe batem à porta, poderia ser atendida, também, com a transformação do
juiz local, nas hipóteses de causas repetidas, mas espalhadas por diversas unidades
346
Revista ENM
jurisdicionais do Estado, em juiz preparador, com jurisdição concorrente para
levá-las até o ponto em que se apresentem aptas ao julgamento, quando então
as remeteria ao juízo indicado como prevento (o primeiro a receber a causa),
mantendo-se, entretanto, competente também para o julgamento, desde que
participe do mesmo entendimento ditado por aquele.
O que se busca com a iniciativa é garantir eficiência, segurança jurídica
e, ao mesmo tempo, satisfazer o ideal de uma Justiça presente, próxima do
cidadão, acessível nas imediações do seu habitat. O processo e as suas regras,
porque instrumentos para ministrar justiça, são secundários em relação a
esta. Busca-se, apenas, a harmonia entre as decisões e com isso satisfazer o
princípio da igualdade entre os jurisdicionados, evitando-se decisões díspares
em situações idênticas de direito material.
Uma só Justiça Estadual, entretanto várias divisões judiciárias, consideradas
as especialidades. Uma divisão judiciária para enfrentamento das questões
criminais, por exemplo, outra divisão para as matérias comerciais, e assim
por diante. Dar-se-ia uma nova feição às comarcas, quiçá desconsiderandoas, e, em substituição, apenas varas, como ocorre na Justiça Federal (CF, art.
110), cada uma delas com uma determinada abrangência territorial, sem
uniformidade, e com uma ou duas especialidades, o que for mais conveniente
para o exercício rápido e seguro da prestação jurisdicional.
2.6 Desburocratização e modernização das atividades administrativa e judicial
O Judiciário, em termos de administração, não é fato que passa
despercebido; tem sido marcado pelo conservadorismo, havendo pouca
predisposição para o novo, portanto demora para o processo de adaptação às
mutações que permeiam a vida em sociedade.
Entretanto, constitucionalizado o direito à obtenção de decisão
administrativa e judicial em prazo razoável, o pronunciamento intempestivo
passou a representar para a Administração Pública em geral, e para o Judiciário
em particular, causa de responsabilidade.
Portanto, no âmbito da Administração Pública, todo o sistema deve
modernizar-se funcionalmente, aproveitando-se das atualidades da informática
e das técnicas disponíveis de gestão pública.
Há, ainda, a necessidade de se estabelecer, na exata medida, uma conexão
competente entre a atividade-meio exercida pelo Poder Judiciário e a atividadefim, de prestação eficiente da jurisdição.
Revista ENM
347
Essa conexão passa pela consciência de que nenhuma iniciativa ou ação, na
via administrativa, é boa o bastante se não adotada de forma a repercutir na
atividade principal da instituição.
A desburocratização é, pois, necessária. Um imperativo na atualidade. A
burocracia, aliás, constitui-se em prática antidemocrática e é a prova mais
concreta da ineficiência e da falta de racionalidade no serviço público, se não
resultado do próprio centralismo a que se submetem as instituições.
A distribuição pelo Estado dos centros decisórios, creio seja uma exigência
da modernidade e possa contribuir para a desburocratização, porque a
descentralização é uma decorrência lógico-sistêmica da aplicação do princípio
federativo da subsidiariedade, e qualquer iniciativa nessa direção constitui
uma decisão política a ser tomada para garantia de uma gestão de qualidade.
Santa Catarina adotou o modelo da regionalização das suas atividades,
meio e fim. O Estado foi dividido em 9 regiões, com indicativo, na Lei de
Organização e Divisão Judiciárias do Estado (LC n. 339, 8/3/2006), da
descentralização, pela via das câmaras regionais (CF, art. 125, § 6o), e da
desconcentração, para operacionalização de suas atividades administrativas,
objetivando a eficiência e a eficácia (art. 21, I e II).
Para bem atuar, entretanto, as regiões judiciárias, no âmbito de seu espaço
territorial, devem aparelhar-se de forma a dispor de uma miniorganização
judiciário-administrativa autarquizada, com autonomia, no mínimo, relativa,
para a realização das suas atividades administrativas e judiciais.
Essas unidades funcionariam como sátrapas da unidade central, ou com
a feição de uma autarquia sui generis. Disporiam de órgãos administrativos
e de disciplina próprios, descentralizados, vinculados à Secretaria-Geral do
Poder Judiciário, bem como, se for o caso, à Corregedoria-Geral da Justiça.
Exerceriam as funções: a) de acompanhamento do rendimento das atividades
forenses; b) de fiscalização das atividades extrajudiciais; c) de avaliação do
funcionamento das comarcas e varas para proposta de futuros desdobramentos
ou instalação de juízos especiais, transitórios, direcionados para a solução de
conflitos não ordinários; e d) de desempenho de outras funções delegadas
ou complementares, como, por exemplo, de início, a realização de licitações
de pequeno porte para satisfação de necessidades imediatas e otimização de
custos de transporte quando as compras realizam-se de forma centralizada.
Serviriam, ainda, para superintender as atividades extraordinárias do
Judiciário, com ênfase no desenvolvimento da política de expansão dos juizados
348
Revista ENM
especiais, instalação de casas da cidadania, câmaras de Autocomposição e
juizados informais de pequenas causas, programas de Conciliação e Mediação,
abrangendo também o Direito de Família. Alternativamente, poderiam
propor o agrupamento ou a divisão de comarcas, bem como a instituição de
juízos itinerantes, com alçada especial.
É – ou deve ser – da índole das regiões judiciárias a inter-relação, o mais
informal possível, de forma que picuinhas burocráticas não comprometam o
objetivo maior, que é, com a descentralização, a simplificação do sistema, com
a consequente celeridade da prestação jurisdicional. Em suma, os meios não
devem nem podem comprometer os fins.
A busca por soluções e métodos, como aqui proposto, enfim por melhoria da
qualidade na prestação do serviço, diante da avassaladora pletora de processos,
que a todos os juízes angustia, antes da própria sociedade destinatária dos
serviços, com o propósito de dar-lhes cabo – embora sabido que não é, em
absoluto, exclusivo da Justiça brasileira esse verdadeiro caos instalado, pela
aparente falta de perspectiva de superação –, deve ser fonte permanente de
preocupação daqueles a quem cabe distribuir justiça, e não causa para esmorecer
ou abandonar o otimismo que alimenta a vida e os sonhos de cada um.
2.6.1 A era da tecnologia: aparelhamento dos juízes e das estruturas de
sustentação do Poder
A instrumentalização do magistrado, indiscutivelmente, deve ser a
preocupação primeira daqueles que acreditam em mudanças e na capacidade
individual e coletiva de superação das dificuldades. Prover o magistrado
de melhores, mais modernas e eficazes ferramentas de trabalho, com a
incorporação das inovações tecnológicas, conhecidos os avanços na área
da informática, deve corresponder a uma ação concreta, aliada à gradativa
ampliação do quadro funcional e ao uso do melhor instrumental que é inato
ao homem e, consequentemente, aos juízes: a inteligência e a criatividade.
A disposição pessoal do juiz de enfrentar o problema passa por uma revisão
interna do seu próprio comportamento e grau de comprometimento com a
instituição que serve, com vistas a verificar e detectar as causas e os problemas,
e, com base neles, implementar as soluções pessoais ou coletivas para melhor
atender às expectativas do Judiciário. Portanto, ao juiz não basta mais somente
saber julgar; tem que adotar práticas de gestão para conseguir desempenhar bem as
suas funções. Não é suficiente dizer do problema nem questionar sobre o que
Revista ENM
349
a instituição fará para superá-lo. Antes, cabe ao juiz dizer o que pode e como
fazer para ajudar a instituição a superar as dificuldades sentidas.
É aquela velha história: não pergunte o que a instituição pode fazer por
você, mas o que você pode realizar para fazê-la melhor! Isso vale não só para
os juízes, advogados e membros do Ministério Público, como também para
toda a sociedade, em maior grau para os que utilizam os serviços judiciários.
Não deve ser esquecida a atividade-meio, de suporte, administrativa,
defasada ou esquecida tecnologicamente. Primeiro, fortalecendo a própria
DRH – Diretoria de Recurso Humanos com aplicativos e sistemas de
informação, que existem no mercado e podem ser adaptados à realidade
da Instituição, com vistas numa gestão de pessoal mais condizente com a
modernidade disponível.
A gestão da folha de pagamento, o registro de pessoal, os direitos individuais
dos servidores, o andamento de processos relacionados à seleção, promoção,
treinamento e aposentadoria devem tornar-se mais ágeis e transparentes,
reduzindo até mesmo a necessidade de participação do próprio servidor no
reconhecimento de direitos que decorrem de lei, e, portanto, independem
de provocação do beneficiário. Com isso, diminui-se a margem de erros e
melhora-se a qualidade do serviço numa área sensível da Administração.
Facilita-se a própria profissionalização da gestão de recursos humanos.
Mas não é só essa área da administração que prescinde de urgente revisão.
Dela não escapam as áreas de compras e licitações, engenharia, saúde, controle
interno, publicações, enfim, é indispensável passar a limpo as práticas e as
praxes, conferir à administração um novo perfil para que possa se transformar
em verdadeira parceira na consecução das atividades finalísticas do Poder
Judiciário, de distribuição de justiça, sem comprometimento da grandeza dos
serviços que lhe são correlatos.
2.6.2 Comando político e o gerenciamento da instituição judiciária
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por seu órgão máximo,
consciente dessa necessidade de controle do poder pelo poder, criou o seu
modelo, um Conselho de Gestão, Modernização Judiciária, de Políticas
Públicas e Institucionais, ao qual incumbe, além da avaliação de conjunturas,
com vistas no planejamento estratégico e desenhos de futuro, a formulação
da agenda, pública e institucional, com o exame de proposta orçamentária
e o acompanhamento e verificação de desempenhos, conducentes à gestão
350
Revista ENM
para resultados. Esse Conselho, ao submeter propostas de ação à aprovação do
Tribunal Pleno e receber deste o placet, cria as diretrizes do Governo Judiciário,
de curto, médio e longo prazos. Aos integrantes da cúpula administrativa,
representados pelo Presidente do Tribunal, vice-presidentes, CorregedorGeral da Justiça e respectivo Vice-Corregedor, cumpre traduzir essas diretrizes
em decisões políticas concretas e avançar na sua implementação. Ao Pleno,
numa segunda fase, é reservada a tarefa de fiscalização e controle da eficiência
dessa administração por ele eleita. Esse controle, aliás, por outros mecanismos
ou formas, diretas ou indiretas, também acaba sendo exercido pelos juízes,
servidores e pela sociedade em geral.
Mas não só de decisão política vive a alta Administração. A máquina
judiciária precisa movimentar-se racionalmente, cumprindo que se cerquem
os seus administradores eleitos de auxiliar competente, criativo, dedicado,
e com alto grau de comprometimento com a instituição e de compreensão
da importância da atividade-meio – administrativa − para a concretização
da atividade-fim − jurisdicional. Esse auxiliar, categorizado, um membro
do próprio Poder delegante, haverá de manter-se em plano obviamente
secundário ou complementar, mas não menos responsável, tendo em vista a
atuação do Presidente da Corte, a relação com os demais poderes, seus órgãos
e suas secretarias. Portanto, esse qualificado auxiliar, que haverá de se cercar de
outros especialistas, especialmente das áreas da Administração Pública, Gestão
de Pessoas, Finanças e Informática, não deve estar abaixo das autoridades
com quem obrigatoriamente terá de se relacionar para a execução competente
das decisões políticas adotadas na cúpula. Falo de alguém que possa estar no
mesmo nível funcional daqueles que, soberanamente (Pleno), apontam os
caminhos da Instituição ou decidem sobre as políticas a implementar.
Seria o auxiliar uma espécie de executivo, com a função de dar cabo a duas
tarefas fundamentais: a) ajudar o Presidente e a cúpula diretiva do Tribunal na
tomada de decisões, trazendo à discussão a opinião da máquina administrativa;
e b) supervisionar o cumprimento dessas diretrizes políticas encetadas pelo
Tribunal Pleno.
Diretamente ligado ao Presidente, e por este escolhido pessoalmente, com
ele despacharia as matérias não delegadas e de maior significação administrativa
ou política. Esse modelo evitaria: primeiro, a impropriedade da subdelegação
de atribuições à pessoa não qualificada como membro de Poder; e, segundo,
reservaria ao Presidente maior tempo à adequada e eficiente representação da
Revista ENM
351
Instituição e ao exame mais apropriado das opções políticas fundamentais,
para pensar e refletir sobre os grandes temas que angustiam o Judiciário, seus
agentes e a quem servem, a sociedade.
Sabido que o sucesso ou insucesso de qualquer política pública, ou
institucional, por melhor que tenha sido concebida, depende sempre da
capacidade de desempenho da máquina burocrática estatal, pois a esta cumpre
a sua execução, por óbvio que o estabelecimento de uma certa estabilidade
administrativa é sempre preferível, porque presumivelmente de melhor
resultado. Afasta-se a luta intestina por cargos administrativos, preferindose os que sejam competentes aos mais próximos.
A escolha de um desembargador para o exercício de função de
controle administrativo da execução das decisões políticas do Presidente do
Tribunal e de sua cúpula diretiva parece constituir uma garantia de eficiência
e um passo decisivo em prol da continuidade administrativa e do Governo
Judiciário a partir do Tribunal Pleno.
2.7. Transformação da Justiça brasileira em padrão mundial de segurança
jurídica
Entende-se por segurança jurídica a garantia relativa provida pelo Estado
às pessoas e respectivas instituições pertinentes à estabilidade, certeza,
previsibilidade e calculabilidade das normas constitutivas das relações sociais
de toda ordem; e à prestação rápida, eficaz, qualificada e definitiva dos direitos
questionados à autoridade que os deve reconhecer e suprir.
Sustenta-se a segurança jurídica pelos princípios constitucionais dos
direitos individuais e coletivos, sociais e políticos; com destaque aqui para o
mandamento segundo o qual a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato
jurídico perfeito e a coisa julgada.
Para alcançar o nível do desejável, faz-se necessário superar as principais
causas da baixa segurança jurídica, retratada nos seguintes indicadores: (1)
frequência com que a Administração Pública modifica ou invalida seus atos
pretéritos. Isso inclui desde a quebra recorrente de contratos até as alterações
constantes das regras tributárias; (2) má qualidade da produção legislativa,
resultando em leis ambíguas e conflitantes. A fragmentação político-partidária
conduz a que apenas leis muito gerais tenham condições de aprovação no
Congresso Nacional. O conflito político é transferido à arbitragem do Poder
Judiciário, surgindo então a judicialização da política; (3) decisões judiciais
352
Revista ENM
contaminadas pela visão política dos magistrados, descuidadas e ao arrepio
da jurisprudência estabelecida pelos tribunais superiores, dando margem à
chamada politização do judiciário.
E o objetivo é exatamente esse, fazer da Justiça brasileira padrão mundial
de segurança jurídica.
Santa Catarina poderia ser a sede do projeto piloto. Distingue-se o
Poder Judiciário catarinense dos demais do País por ter assumido uma
posição protagônica na condução de seu munus institucional: criou e opera
um Conselho de Gestão, Modernização Judiciária de Políticas Públicas e
Institucionais.
O Conselho atua com duas agendas: uma pública e outra institucional. Na
esfera pública repercutirão os temas de interesse social – segurança pública e
meio ambiente, por exemplo. As duas agendas fazem do Judiciário um poder
significativamente protagônico na construção do “país” Santa Catarina, no
imediato e no futuro.
Em sua reunião de 16 de junho de 2008 ficou registrado que no campo
teórico o órgão vai construir cenários a partir de indicadores sociais,
econômicos, geográficos e políticos, com vistas a definir políticas do Poder
Judiciário até 2030. Voltado também ao futuro, o Tribunal de Justiça conhece
a demanda judiciária para até 2016.
Para aumentar a eficiência – produtividade – o próprio Tribunal regionalizase. A regionalização do Tribunal de Justiça reúne à inovação o desafio do
sucesso. Reforma o Estado, renova o compromisso com o crescimento e a
justiça social, exprime-se num choque de gestão. Zerar o déficit da prestação
jurisdicional e recobrir as novas demandas em padrão superior ao da Coreia
do Sul é o desiderato.
Artigo dos professores Alcides Abreu e Nelson de Abreu a esse respeito,
invocando estudos do Banco Mundial, procedidos em 155 países, registra a
Coreia do Sul como o país que melhor recobre a demanda por segurança
jurídica nos fatos econômicos.
Na avaliação, o Banco Mundial considerou para cada ação o número de
dias corridos contados entre o momento da petição inicial e a decisão final,
e, nos casos apropriados, o pagamento. Os indicadores foram medidos
computando-se a evolução passo a passo de uma cobrança judicial padrão e de
uma dívida vencida, por meio da análise dos códigos de processo e de outras
regulações judiciais, assim como de pesquisas com advogados de cada país.
Revista ENM
353
Em um quarto dos países, juízes também foram entrevistados. Para garantir
a comparabilidade dos indicadores, aos respondentes foram apresentadas
situações iguais definidas com grande detalhe quanto ao valor da disputa, à
localização e às principais características das partes em litígio, ao mérito das
causas do réu e do seu acusador e às implicações sociais das decisões.
A Coreia do Sul constitui-se, então, em padrão de segurança jurídica que
os países pudessem imitar.
E por que não Santa Catarina e o Brasil como padrão mundial em segurança
jurídica? É o desafio que completa este despretensioso artigo!
3. Proposições
Penso que mais oportuno do que pretender formular conclusões será
apresentar proposições, que possam ser enriquecidas pela experiência e o debate.
a) proposição: revisar a atuação administrativa, legislativa e judicial
do Estado brasileiro, em seus três níveis e esferas de governo, horizontal e
verticalmente; passar a limpo suas instituições e costurar ações conjuntas para
satisfação do ideário da sociedade.
b) proposição: escrever os pactos estaduais e municipais, para, a partir
da revisão do comportamento interno de cada Poder e Instituição, fazer do
Judiciário um Poder por inteiro, com vista na justiça social e na realização do
bem comum.
c) proposição: criar nos estados e nas regiões metropolitanas, por iniciativa
conjunta do Executivo, Legislativo, Judiciário, Tribunal de Contas, Ministério
Público e OAB, uma Secretaria de Governo Estadual e intercomunal,
incumbida de levantar as carências que impedem melhor desempenho dos
poderes e das instituições, com a atribuição fundamental de antecipar ações
corretivas e preparar a primeira agenda do diálogo interinstitucional, cujas
deliberações caberá a ela implementar ou fazer executar. O secretário dessa
pasta seria, portanto, escolhido por consenso.
d) proposição: fazer da Escola Judicial o instrumento de fomento de inclusão
da comunidade na discussão dos grandes temas locais, estaduais e nacionais, e
sua organização para o controle responsável e ético do governo, considerados
os diversos poderes e instituições democráticas, para que se realize a ideia do
povo no poder.
e) proposição: escrever, pelas mãos do Conselho de Gestão, Modernização
Judiciária de Políticas Pública e Institucionais, do Poder Judiciário, uma
354
Revista ENM
vez instituído em todos os tribunais, em sintonia com o pensamento da
magistratura, com o concurso das instituições que lhe são essenciais e da
sociedade civil, o Judiciário desejável e possível, tendo em vista 2030.
f ) proposição: reivindicar a descentralização dos tribunais de Justiça dos
estados, via regionalização, recobrindo todo o território do Estado, e dos
tribunais regionais federais, em nível dos estados-membros, com instalação de
câmaras regionais, com relativa autonomia administrativa e financeira.
g) proposição: estimular a cultura do juiz agente político e estadista, sacerdote do direito e da justiça, verdadeiro cavalheiro da cidadania, com os olhos
voltados à satisfação das legítimas aspirações da sociedade, compromissado em
fazer concretas as promessas sociais inscritas na Constituição.
h) proposição: revisar o modo e a forma da divisão judiciária, que não
precisa ser uniforme, considerados a natureza das causas e os clientes habituais,
fugindo ao modelo tradicional da concentração de todas as competências
próprias da Justiça estadual nas comarcas, dando prevalência à divisão a partir
da Vara, menor unidade jurisdicional, com abrangência territorial díspar, a
mais adequada à consecução rápida e segura da prestação jurisdicional.
i) proposição: criar a função de Secretário Executivo, vinculada à Presidência
do Tribunal, a ser ocupada por um desembargador ativo, para o exercício do
controle administrativo da execução das decisões políticas do Presidente e de
sua cúpula administrativa, assegurando a continuidade no serviço público e liberando o comando político da Instituição da praxe do cotidiano, que desgasta e
cansa, sem proveito maior, para concentrar-se nos desafios do porvir.
j) proposição: transformar a Justiça brasileira, com a participação e cooperação dos poderes do Estado e instituições ao Judiciário essenciais, com o
concurso da sociedade, em padrão mundial de segurança jurídica.
Revista ENM
355
Gestão
O Judiciário que queremos...
Reflexões sobre o
planejamento estratégico
do Poder Judiciário
Luciano Athayde Chaves
Juiz do Trabalho da 21a Região (RN)
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Ex-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – Anamatra
Alice - Você poderia me dizer, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?
Gato - Isto depende bastante de aonde você quer chegar [...].
Alice - Eu não me importo muito com isso [...].
Gato - Então não importa muito que caminho você irá tomar.
(Alice no País das Maravilhas)
1. Introdução
Na obra de Lewis Carrol, a menina Alice está perdida diante de uma
encruzilhada e tem à sua frente a única criatura que lhe é sincera, entre ironias
e brincadeiras, num mundo sabidamente louco e confuso.
Nos apontamentos que fez esse clássico de Carrol, Martin Gardner sugere
que a cena tenha sido tirada do Talmud1: “se você não sabe aonde está indo,
então qualquer estrada o levará lá”.2
1
O Talmude ou Talmud (em hebraico: ‫ )דּומְלַּת‬é um registro das discussões rabínicas que pertencem à
lei, ética, costumes e história do judaísmo. É um texto central para o judaísmo rabínico, perdendo em
importância apenas para a Bíblia hebraica (cf. www.wikipedia.org).
2
cf. gardner, Martin. The Annotated Alice. The Definitive Edition. New York: W. W. Norton &
Company, 2000.
356
Revista ENM
Vivemos num mundo realmente confuso e assimétrico, talvez, em
muitos aspectos, semelhante ao País de Alice. Um mundo de relações sociais
hipercomplexificadas, que frequentemente demanda soluções novas em relação
às quais não temos caminhos já percorridos ou experiências conhecidas.
As instituições públicas, inseridas de forma inexorável nesse contexto,
também são diariamente desafiadas a encontrar novos meios e veios para
cumprir suas missões, num ambiente societal em constante transformação.
O Judiciário do Brasil tem 70 milhões de processos em andamento, numa
aproximada proporção de um para cada três brasileiros!
Isso nos faz os maiores, senão o maior, dos litigantes do mundo e em nada
lembra a imagem que possuímos de nós mesmos, como um povo tranquilo,
pacífico e cordato.
A cada ano, exibimos com entusiasmo impressionantes números de casos
resolvidos, centenas, milhares.
O valor a esses resultados é refletido nas expectativas depositadas nos
responsáveis pela solução dos conflitos.
O padrão do bom juiz, num olhar pelo menos majoritário, é o daquele que
está com o trabalho em dia, que consegue resolver o maior número de casos
possíveis, conciliador, que profere despachos, sentenças e votos aos cântaros,
numa verdadeira linha de produção.
E a ideia de trabalho em dia supõe, quase sempre, prazos razoáveis na
fase de conhecimento, olvidando que a jurisdição sugere a entrega integral da
tutela material, que somente faz algum sentido para o jurisdicionado quando
presentes os efeitos concretos da atuação do Poder Judiciário (a satisfação de
uma obrigação de pagar, a entrega da coisa objeto do litígio, a desconstituição
de uma relação jurídica, etc.).3
3
Tenho, já de algum tempo, realçado os problemas desse quadro de prestígio demasiado à ideia de
jurisdição como apenas a declaração de direitos. Em outro texto, assinalei: “tenho insistido, já de algum
tempo, quanto aos dissabores causados no sistema processual pelo fenômeno do ‘mito da cognição’,
que ainda insiste em predominar nas práticas judiciárias. Por ‘mito da cognição’ entendo a demasiada
ênfase na fase de conhecimento dos feitos (audiências, sentenças, etc.), que também visa a atender às
expectativas institucionais de prazos e otimização de pautas de audiência projetadas pelas corregedorias,
sem se estabelecer, contudo, um equilíbrio de atuação do juiz do Trabalho na fase de cumprimento da
sentença. A par dessa circunstância, temos um verdadeiro paradoxo: os novos processos e os novos clientes
da Justiça recebem, em geral, uma boa (e merecida!) atenção. Tanto que os prazos médios para sentença
de primeiro grau apresentam bons números na maioria das regiões trabalhistas. Os processos já julgados e
em fase de execução forçada, porém, têm sua análise e impulso muitas vezes comprometidos pela falta de
tempo do juiz para neles atuar, já que os prazos na fase de conhecimento são mais curtos. Disso resulta o
seguinte: quem já teve um crédito reconhecido em seu favor e ainda não satisfeito por quem de direito, deve
Revista ENM
357
O tempo judiciário não é cíclico, ele é contínuo, embora nos pareça
renovado a cada ano judiciário ou a cada biênio de alteração nas cúpulas
dos tribunais, quando uma nova leva de administradores é chamada para
“encontrar o caminho certo”.
Aproveitando a metáfora de Carrol, podemos nos valer do gato, como
uma espécie de oráculo, e buscar, mercê de sua provocação, a saída para uma
situação que insiste em nos incomodar, apesar das melhorias no sistema
judiciário nas últimas décadas.
Talvez possamos pensar diferente, propor uma nova caminhada.
Num ambiente em que a efetividade de direitos é tão importante quanto a
sua conquista, é fundamental planejar e administrar os problemas da Justiça,
procurando implementar uma visão moderna do “governo dos juízes”, de
modo a construir um Poder Judiciário acessível, célere e justo.
Não raro ouvimos críticas a essa “governança” do Judiciário, em grande
parte centradas na ideia de que os magistrados brasileiros não são bons gestores
e que sua função, no cenário republicano, não seria essa.
O interessante é notar que, em muitos países (como Espanha, Argentina
e França), onde é encargo do Poder Executivo gerir a máquina judiciária,
cresce a demanda dos magistrados por uma independência em relação aos
outros poderes. O sentimento é o de que o atrelamento do Judiciário a outro
poder, ainda que na área administrativa, compromete em grande medida seu
desempenho e, em última instância, seus próprios predicamentos.
No Brasil, onde o Judiciário goza de um forte estatuto constitucional que
robustece sua independência administrativa, financeira e orçamentária, ainda
sobrevive uma leitura de que a gestão judiciária não seria um problema dos juízes.
Por isso, desde logo, creio ser apropriado assentar uma nota metodológica
para o enfrentamento dos bloqueios para uma justiça melhor: cabe aos juízes,
com apoio da comunidade jurídica e em harmonia dos outros Poderes4,
identificá-los e pensar na formulação e execução de soluções.
aguardar ainda mais, enquanto novos feitos ocupam a centralidade da atuação judicial” (CHAVES, Luciano
Athayde. Estudos de direito processual do trabalho. São Paulo: LTr, 2009, p. 256). Sobre o mesmo assunto,
consultar, ainda, CHAVES, Luciano Athayde. A recente reforma no processo civil e seus reflexos no direito
judiciário do trabalho. São Paulo: LTr, 3. ed., 2007, p. 346 e ss.).
4
Exemplo dessa harmonia está na relação entre os tribunais brasileiros e a Secretaria da Reforma do Poder
Judiciário, vinculada ao Ministério da Justiça, órgão que, nos últimos anos, tem realizado um grande esforço
para concretizar reformas processuais e sugerir ferramentas de acesso à justiça. Foi no âmbito dessa relação
interpoderes que tiveram lugar os dois Pactos de Estado em favor de um Judiciário Rápido e Republicano, por
meio dos quais muitos projetos de lei chegaram à aprovação perante o Congresso Nacional, inclusive o da
grande reforma do Código de Processo Civil brasileiro de 2005 e 2006.
358
Revista ENM
2. Resolvendo problemas, além dos processos
Antes de olharmos para o futuro que podemos e devemos imaginar, nossa
própria história recente poderá nos indicar o caminho que não deve ser seguido.
Durante os últimos anos, os tribunais brasileiros têm dado mostra de
grande capacidade de resolução dos processos.
Os números são impressionantes, como indicam os relatórios dos últimos
anos do Programa Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça5.
Se os administradores do Judiciário fossem um CEO6 de uma grande
corporação prestadora de serviço, estariam esfregando as mãos contentes, pois
a tendência é de aumento da demanda por mais decisões.
A realidade, entretanto, não é essa.
Aumento de demandas pode indicar muitas coisas, mas jamais pode ser
associado ao êxito dos serviços prestados, normalmente uma consequência da
fidelidade da clientela, numa organização empresarial que objetiva o lucro, o
que não sucede aqui.
O recrudescimento da demanda é fenômeno dos mais complexos, e
seu exame não cabe nos propósitos do presente texto. Nada obstante, creio
ser possível assinalar que esse fenômeno tem causas sistêmicas (burocracia,
formalismo, etc.) e decorrentes do comportamento dos atores sociais (falta de
observância da legislação nas relações sociais, aproveitamento da morosidade
para dilação no cumprimento das obrigações, dentre outras).7
Precisamos nos preparar para a caminhada na busca de uma excelência na
gestão judiciária. Ter a consciência de que somos um único Poder Judiciário.
Estarmos conectados ao mundo, sermos transparentes e “organizar a casa”.
As 10 metas para o Judiciário, fixadas pelo Conselho Nacional de Justiça
e tribunais brasileiros, a partir do II Encontro do Poder Judiciário (Belo
Horizonte, fev. 2009), mostram que ainda estamos na primeira etapa de uma
longa jornada.
Disponível em: www.cnj.jus.br. Acesso em: 20/7/2009. A propósito, trata-se de um programa dos mais
importantes, pois a existência de estatísticas e números confiáveis sobre o funcionamento do Judiciário
brasileiro é uma importante ferramenta para a concepção e o desenvolvimento de projetos de gestão,
conquanto não seja elemento que, por si só, possa definir as políticas de governo do Judiciário.
6
Chief executive officer (“Diretor-executivo” ou “diretor-geral”, em português), mais conhecido como
CEO, é um termo em inglês para designar a pessoa com a mais alta responsabilidade ou autoridade numa
organização.
7
Aproveito-me, neste ponto, do método oferecido por Boaventura de Sousa Santos para qualificar as causas
da morosidade judiciária. Para maiores detalhes do método, cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma
revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2007.
5
Revista ENM
359
Do contrário, para ficarmos apenas no caso da Meta 2 (julgamento de
todos os processos distribuídos até dezembro de 2005), seria possível imaginar
que em 2014, ano da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, a meta número
2 será julgarmos todos os processos de 2009?
O pensador português Boaventura de Souza Santos, ao falar sobre a criação
do Observatório da Justiça no Brasil, menciona estar interessado não apenas na
quantidade e na velocidade dos processos, mas na qualidade das decisões e se
os cidadãos sentiram-se bem e se tiveram dificuldade de acesso ao tribunal.8
Nesse sentido, o primeiro aspecto a considerar é descobrir qual Judiciário
queremos, quando falamos em qualidade e eficácia das decisões, por exemplo,
com decisões de qualidade, com potencial efetivamente pacificador e
pedagógico, etc.
Nosso objetivo é pura e simplesmente continuar resolvendo processos ou
podemos desejar mais? Podemos almejar também eficácia e qualidade nas
decisões? O que significa isso?
Como agentes de um Poder estatal, o Judiciário e seus órgãos e os próprios
magistrados estão sujeitos, obrigados e compelidos ao cumprimento dos
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, nos termos do art.
3o da Constituição da República.
Em última medida, as pretensões deduzidas em juízo por pessoas e
instituições estão impregnadas do espírito contido nestes objetivos: liberdade,
justiça, solidariedade, desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e
marginalização, redução de desigualdades sociais e regionais, promoção do
bem comum, sem preconceitos e discriminação.
Todavia, o mito do princípio da inércia processual impregnou o juiz
brasileiro, cristalizando uma situação que, em alguns momentos, parece
retirar-lhe a condição de cidadão e agente do Estado.
Como ‘guardiões’ 9 e realizadores das promessas do Estado de Direito os
juízes poderiam e podem realizar mais.
Não no sentido de mais trabalho ou mais processos, mas de pensar diferente,
na busca de solucionar também os problemas causadores das demandas.
A apresentação foi feita no Ministério da Justiça, cuja Secretaria de Reforma do Poder Judiciário é parceira
na implementação do modelo de ‘Observatório’ já em funcionamento na Universidade de Coimbra, sob
a coordenação do Professor Boaventura de Sousa Santos. Cf., sobre esse assunto, a matéria está disponível
em: www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/02/03/materia.2009-02-03.0316125551/view. Acesso em
20.7.2009.
9
cf. GARAPON, Antonie. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução de Maria Luiza de
Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
8
360
Revista ENM
No caso da Justiça do Trabalho, os problemas são conhecidos e também
suas consequências.
Considerando a afirmação de que as decisões do Poder Judiciário moldam
o comportamento dos cidadãos, qual é então o comportamento que nossas
decisões estão impondo?
Qual a razão do contínuo aumento das demandas e por que nossas decisões
não provocam a redução dos conflitos?
Um exemplo. No dia a dia das manchetes dos periódicos e fazendo parte
das estatísticas oficiais, temos o trabalho informal, um eufemismo para a
ilegalidade nas relações de trabalho. Esse fenômeno socioeconômico produz
um exército de trabalhadores à margem da seguridade social, torna desleal a
concorrência de mercado fundada na livre iniciativa, igualmente inserida no
texto da Constituição, bem como expõe a clara desigualdade social existente
no País, a partir da consolidação de um abismo social entre os “trabalhadores
formais e informais”.
Para melhor exemplificar tal condição, podemos mencionar dados do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), uma fundação pública federal
vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
Seu relatório semestral sobre o mercado de trabalho, conjuntura e análise10
mede oficialmente o “nível de informalidade” ou de “trabalhadores sem
carteira assinada”, que corresponde a 38,1% do nível de ocupação no Brasil e
associa a melhoria da “formalização” ao crescimento econômico do País.
Nesse compasso, seria possível indagar como a Justiça do Trabalho,
reconhecidamente célere, pode contribuir para que a eficácia de suas decisões
compreenda também medidas que contribuam para redução da ilegalidade
nas relações de trabalho e na melhoria das condições de saúde e segurança no
ambiente de trabalho?
Voltando à metáfora do início do texto, parece-me que o primeiro passo é escolher um caminho e ele pode muito bem considerar a hipótese de que o Judiciário
também esteja preocupado em resolver o problema e não apenas o processo.
3. Conhecimento de suas próprias entranhas
Para saber aonde se quer chegar é preciso descobrir o que se deseja e o
desejo implica em autoconhecimento.
10
Disponível em: www.ipea.gov.br.
Revista ENM
361
Projetos do Conselho Nacional de Justiça têm buscado compreender a
realidade do Judiciário brasileiro, seus números e suas práticas. Além disso,
para os casos mais severos, há notícias de trabalhos realizados pela Corregedoria
Nacional de Justiça, investigando in loco a realidade de determinada instituição.
O presente texto é escrito a partir do olhar da Justiça do Trabalho e, nesse
particular, não se observam projetos buscando conhecer as origens de suas
demandas e práticas que tenham buscado a solução desses problemas ou
mesmo o resultado provocado por suas decisões.
O Judiciário que queremos deve olhar a si mesmo sob dois aspectos: para
dentro do aparelho estatal, como um dos pilares do Estado. Enxergando
a si mesmo como um produtor de demandas que precisa administrar os
próprios compromissos, tais como gastos e aumento de pessoal; para fora,
como administrador da Justiça, observando quais os efeitos que suas decisões
provocam externamente. Quais as mudanças concretas e como essa “política
judiciária” é vista. Qual é o efetivo resultado das decisões que proferimos e
quais são os efeitos desejados.
Conhecer e reconhecer a própria estrutura implica em saber o custo do
Judiciário para o Estado, não apenas do ponto de vista econômico, mas os
recursos e energias despendidos para a solução dos processos e, como ousamos
propor, também dos problemas.
As administrações dos tribunais precisam olhar para fora e indagar a
respeito dos efeitos de suas decisões na vida dos trabalhadores e empregadores,
quais as efetivas mudanças e como esta “política judiciária” é vista.
Há necessidade de se saber qual é o efetivo resultado das decisões que
proferimos, ou seja, o alcance para além das partes envolvidas no litígio
solucionado.
Assim, uma primeira proposta deveria ser a adaptação da marcha até agora
realizada e caminhar no sentido de também saber as origens ou causas dos
conflitos, como eles têm sido resolvidos e quais os resultados das decisões
proferidas, do ponto de vista da coletividade originária.
A segunda proposta, igualmente importante na busca por autoconhecimento
da Instituição, reside na necessidade de ajustar a própria estrutura, para que
não atue como um fim em si mesma, mas para alcance dos objetivos e da
missão a que se propõe.
Como é possível levar toda uma Instituição para o melhor caminho
quando diversos de seus principais atores são alijados do processo decisório?
362
Revista ENM
4. O Magistrado como gestor judiciário
Lara Cristina de Alencar Selem, em sua obra Gestão Judiciária Estratégica,
define o gestor judiciário como aquele responsável por “exercer todas as
atribuições inerentes à função jurisdicional, bem como as administrativas
referentes aos serviços conexos ou auxiliares da Justiça, que estejam a ele
vinculados, bem como os servidores que lhe sejam diretamente subordinados”
(SELEM, Lara Cristina de Alencar. Gestão Judiciária Estratégica: o Judiciário
em busca da eficiência. Natal: Esmarn, 2004, p.29).
Sob esse aspecto, a autora define outras atribuições desse gestor,
que vão além das responsabilidades jurisdicionais e administrativas
determinadas por lei. Gestão geral, de atendimento ao cliente, de pessoas,
de tecnologia e sistemas, de infraestrutura e da qualidade judiciária são
algumas das obrigações atribuídas por Lara Selem ao encargo do gestor
judiciário, em nosso caso o magistrado, com o imprescindível apoio do
corpo funcional.
Tendo o magistrado sob sua responsabilidade todas essas tarefas, e sendo
ele auxiliado por uma equipe, não restam dúvidas de que todos esses atores
precisam estar inseridos no planejamento estratégico de forma efetiva e
democrática.
Assim como define Selem, “o gestor será o grande líder que levará a
equipe da Unidade Judiciária sob sua responsabilidade a realizar seu maior
intento. Sem ele, toda e qualquer iniciativa de implementação de melhorias e
modernização da Gestão Judiciária sucumbirá” (2004, p.34).
Desse modo, temos que compreender o papel do juiz em sua dupla
dimensão, na perspectiva dinâmica da atuação do Poder Judiciário: como
julgador e como gestor. Ambas as tarefas se entrelaçam e se completam, ainda
que reconheça que a visão da maioria dos atores é de que essa dupla dimensão
implica em disfunção institucional, já que o papel do juiz seria apenas o de
distribuir justiça, em sentido estrito e endoprocesssual.
Definitivamente, não compartilho dessa leitura limitada da atuação
do magistrado perante a estrutura e o funcionamento do Judiciário.
Não enxergo essa disfunção e me recuso a admitir que se pode exercer os
predicamentos da magistratura, com liberdade e independência, sem uma
gestão participativa e baseada na ideia de um governo dos juízes, e de todos
eles, respeitadas as atribuições de cada um e as tarefas reservadas pela lei e
pelos regulamentos e regimentos.
Revista ENM
363
5. Democracia interna, gestão e controle
Um Estado Democrático pressupõe a ampla participação da sociedade nos
negócios e nos espaços públicos, bem como o fortalecimento do sistema político
vigente, o que resulta, via de regra, em instituições fortes e republicanas.
Porém, esse é um processo ainda em curso e que expõe diversos pontos de
melhoria em nossa democracia, inclusive no Judiciário. Um desses pontos é a
questão da legitimidade democrática dos agentes de poder.
Por certo, não nos referimos aqui à falta de legitimidade dos juízes em exercerem
suas funções de acordo com o modelo profissional vigente em nosso país.
Como tem destacado a literatura jurídico-constitucional, a soberania
estatal das decisões de índole jurisdicional encontra sua legitimidade na própria
Constituição; no dever indeclinável de fundamentação coerente de todas as
decisões; pela existência de controles técnicos de revisão (recursos e outras
formas de impugnação); e, em certas circunstâncias, pela disponibilidade
de diversas vias de apuração de responsabilidade funcional (processos
disciplinares, ações penais e processos de impeachment).
Falamos, sim, do ainda presente déficit democrático relacionado com a
dinâmica da gestão administrativa do Poder Judiciário, aspecto pouco visível,
a julgar pelo silêncio em torno do tema, raramente quebrado.
Um olhar mais distante poderia até conceber, à luz do sistema de
recrutamento dos magistrados, que uma baixa abertura de participação
no governo dos tribunais fosse corolário das próprias características que
cercam a carreira dos juízes e a escolha de seus dirigentes, as quais, em regra
geral, combinam, em dosagens diferentes, merecimento e antiguidade, não
necessariamente nessa ordem.
Contudo, sendo a jurisdição expressão do poder político, também o
Poder Judiciário há de observar princípios constitucionais inerentes a toda a
Administração Pública.
Até hoje, “a gerência dos recursos humanos e materiais do Judiciário
prossegue, em regra, passando ao largo de qualquer preocupação democrática.
Esta só tem sua face visível no modo de escolha dos membros da mesa diretora
dos tribunais, periodicamente eleitos para mandatos bienais irrenováveis”
(CHAVES, Luciano Athayde; SOUZA JUNIOR, Antonio Umberto. Uma
nova gestão para o Poder Judiciário. Valor Econômico, 10.9.2009).
Mas, mesmo em relação a essa escolha dos dirigentes dos tribunais, pelas
regras do jogo vigentes, a partir do próprio texto de nossa Constituição e, em
364
Revista ENM
especial, da Lei Orgânica da Magistratura, trata-se de eleição com reduzido
universo de eleitores (desembargadores, nos tribunais estaduais e regionais, e
ministros, nos tribunais superiores) e com uma ínfima porção de candidatos
elegíveis, definida segundo a baliza única da antiguidade no posto.
Sem adentrar na hipótese, plenamente possível, de deliberarem os tribunais
pela autonomia normativa constitucionalmente conferida, pela abertura dos
processos de escolha de seus dirigentes, soa razoável ponderar que tal limitação
da legitimidade democrática no processo de eleição para os cargos de direção
pode ser, em alguma dimensão, compensada pela legitimação democrática no
exercício do poder confiado a tais autoridades.
Para alcançar tal compensação, um método mais adequado consiste em
assegurar maior participação do coletivo dos juízes em todos os matizes
administrativos, imprimindo total transparência à atuação administrativa,
financeira e orçamentária dos tribunais: a publicidade dos atos e operações
realizados pelos tribunais permite que os contribuintes e usuários da Justiça
saibam onde estão sendo aplicados os recursos humanos e materiais por eles
financiados, facilita o controle pelas diversas instituições (conselhos, Ministério
Público, tribunais de contas, sociedade civil organizada) e aproxima juízes e
servidores da Administração.
O outro meio extremamente útil e eficaz consiste na criação de colegiados
plurais de que participem magistrados de todos os níveis da carreira e servidores.
Também é importante a criação de mecanismos que permeiem e assimilem
as sugestões e críticas de outros atores importantes para a Justiça, como
advogados, jurisdicionados, universidades e outros segmentos interessados em
um Judiciário mais rápido, sério e efetivo.
E não podemos desprezar a importância da autonomia administrativa e
financeira assegurada pela Constituição aos tribunais brasileiros. Em muitos
países, como já assinalei no início deste texto, em que essa autonomia não
é assegurada ao Poder Judiciário, constitui agenda para os juízes a luta para
conquistá-la. No Brasil, não raro se ouvem vozes contra essa autonomia, como
se ela não fosse uma face da independência da atividade judicante.
A transparência e a participação na Administração Pública exalam do
texto original da Constituição de 1988 e tiveram tal aroma reforçado nas
sucessivas mudanças patrocinadas pelo Congresso Nacional. Somente para
ilustrar, recorde-se a abolição das sessões administrativas secretas, decretada
pela Emenda Constitucional no 45/ 2004.
Revista ENM
365
Nessa perspectiva democratizante há de ser valorizada, comemorada e
levada muito a sério a determinação do Conselho Nacional de Justiça, órgão
administrativo de cúpula do Judiciário (subsumido apenas ao controle do
Supremo Tribunal Federal), no sentido de que os tribunais devam garantir
“a participação efetiva de serventuários e de magistrados de primeiro e
segundo graus, indicados pelas respectivas entidades de classe, na elaboração
e na execução de suas propostas orçamentárias e planejamentos estratégicos”
(Resolução CNJ no 70/2009, art. 2o, § 4o).
O poder normativo primário dos atos do Conselho Nacional de Justiça
confere à regra o caráter de obrigatoriedade imediata. A novidade, em verdade,
traduz “opinião consensual retirada dos vários encontros regionais de tribunais
que aquele órgão promoveu em 2008” (CHAVES; SOUZA JUNIOR, 2009)
na busca de um modelo ideal de planejamento estratégico no Poder Judiciário:
em todas as reuniões, concluíram os participantes (dirigentes, magistrados,
entidades de classe) que a audiência e o engajamento dos magistrados e
servidores são requisitos imprescindíveis para o êxito da ideia de melhoria na
qualidade de gerência e planejamento dos tribunais brasileiros.
Assim, doravante, tanto a programação quanto a execução dos orçamentos
e dos planejamentos de médio e longo prazos dos tribunais deverão ser
acompanhadas, no mínimo, por representantes dos magistrados e servidores
formalmente integrados a instâncias deliberativas das cortes.
Além de aproximar os gestores dos tribunais de suas bases, a medida
propicia o constante fluxo de informações acerca das necessidades dos
órgãos que compõem cada corte de justiça e das eventuais dificuldades ou
limitações da direção, abrindo espaço para o incremento do grau de eficiência
e economicidade na gestão pública dos tribunais.
Outra determinação recente complementa esse verdadeiro “pacote”
democratizante implantado pelo Conselho Nacional de Justiça: inspirado no
dever de publicidade e na recém-aprovada Lei Complementar no 131/2009,
que aperfeiçoou a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal.
O CNJ, por meio da Resolução no 79, tornou compulsória a exibição,
em caráter permanente e em local de fácil acesso nos sítios dos tribunais na
internet, de todos os dados relativos aos gastos e receitas do Judiciário, inclusive
com a discriminação pormenorizada das rubricas dos pagamentos e os dados
identificadores das pessoas e empresas que prestem serviço ou entreguem
produtos nesse Poder.
366
Revista ENM
Não é preciso assinalar a importância da transparência como instrumento
de apoio à participação de juízes, servidores e da sociedade em geral na gestão
dos tribunais.
Esses são aspectos de um tormentoso, mas necessário, processo de
transformação do Poder Judiciário, na direção de uma nova institucionalização,
para usar uma expressão do Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro
Gilmar Mendes, em encontro com associações de magistrados no Conselho
Nacional de Justiça, em julho de 2009.
Porém, para que a perspectiva democratizante aberta pelo cenário
normativo aqui desenhado efetivamente transforme a realidade de nossos
tribunais, é essencial que se dê vida a tais comandos.
É buscando trilhar esse caminho que todos nós queremos, no tocante à
gestão judiciária, que o Conselho de Representantes da Associação Nacional dos
Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), que congrega os 24 presidentes
das Associações Regionais de Magistrados (Amatras) em todo o Brasil, deliberou,
no dia 1o de julho de 2009, apoio às medidas de fortalecimento, transparência e
participação nos processos de administração das estruturas do Poder Judiciário.
Nesse propósito, a Anamatra vem implementando ações que vão ao
encontro da Resolução no 70 do CNJ, entre elas:
a) a busca da pronta efetividade do disposto no art. 2o, § 4o, da Resolução n.
70/09, que garante a concreta e ampla participação de magistrados indicados
por sua associação de classe no processo de elaboração do planejamento
estratégico dos tribunais; bem como da elaboração e execução dos orçamentos
dos órgãos do Poder Judiciário do Trabalho;
b) a estruturação de uma assessoria técnica especializada para se dedicar ao
estudo do orçamento da Justiça do Trabalho, com a contratação de um especialista na área, que tem a importante missão de subsidiar de forma técnica o acompanhamento do orçamento por parte das associações regionais e dos tribunais;
c) o oferecimento de novos cursos de planejamento e gestão orçamentária, de
modo a qualificar a participação dos juízes de primeiro e segundo graus indicados
pelas associações nos processos de planejamento e execução dos orçamentos.
Afora isso, a Anamatra está compilando e acompanhando o desenvolvimento
desses processos de renovação administrativa, de cariz participativo, pretendendo
entregar ao Conselho Nacional de Justiça relatórios periódicos dos avanços e
eventuais bloqueios, tudo no escopo de tornar realidade as propostas contidas
nas referidas resoluções.
Revista ENM
367
Eis o desafio que ora se descortina diante dos atores do Poder Judiciário. E
ele somente será vencido na medida da vontade presente nessa busca por uma
nova gestão do Judiciário.
6. Os conselhos superiores e o planejamento estratégico
A composição democrática e plural do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), respeitando
também a vontade de seus representados, significaria um avanço na efetivação
do planejamento estratégico para os tribunais.
À luz da gestão democrática e das definições do CNJ sobre a participação
de diversos atores no planejamento estratégico, a Anamatra lança o debate,
primeiramente, sobre o papel do CSJT como agente democratizador do
Judiciário Trabalhista e como ator fundamental do planejamento estratégico
da Justiça especializada.
Sob esse aspecto, e, em consonância com as definições da Resolução no 70
do CNJ, há de se analisar as consequências da ausência dos juízes de primeiro
grau na formação do CSJT.
Ainda que se tenha assegurado assento e voz à Anamatra (Resolução
CSJT n. 1/2005), aspecto que tem contribuído para uma maior interlocução
entre o conjunto da magistratura do Trabalho e o Conselho, parece-me que a
própria Constituição estampa a necessidade de simetria com a arquitetura da
composição do CNJ, onde está presente a participação de todos os níveis da
carreira da judicatura.
É dizer: se a Constituição deixou expressa que a composição do CNJ
deveria ser assim, é razoável interpretar que a faculdade temporária de
se regulamentar o funcionamento do CSJT também deveria observar
semelhantes critérios.
Os aspectos negativos dessa composição foram detalhados em documento encaminhado ainda em 2005, logo após a publicação da Resolução
Administrativa no 1064/05, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), com
a regulamentação do CSJT. No documento, a Anamatra criticou o sistema
“excessivamente hierarquizado que implica na concentração do aparelhamento dos serviços judiciários nas cúpulas administrativas, cujo acesso, na
prática, não permite uma abertura democrática”.11
11
Princípios e Diretrizes da Anamatra para o CSJT, janeiro de 2005, disponível em www.anamatra.org.br.
368
Revista ENM
Por essa razão, a Anamatra já apresentou ao CSJT uma proposta de anteprojeto
de lei de sua regulamentação legal, exigida constitucionalmente (art. 111-A, §
2o, inciso II, CF c/c art. 6o da Emenda n. 45/04), prevendo a participação de
magistrados de todos os níveis em sua bancada, notadamente por entender ser
essencial a representação de todas as instâncias da magistratura trabalhista na
elaboração de políticas estratégicas e de planejamento dos tribunais.
Especialmente após a Emenda 45/2004, que alargou a competência da
Justiça do Trabalho, houve mudanças no ambiente forense que precisam ser
relatadas e pensadas por todos.
Não obstante a composição do CSJT, a Anamatra vem lançando o seu
olhar também quanto à indicação dos representantes da Justiça do Trabalho
no CNJ, prerrogativa conferida ao Tribunal Superior do Trabalho.
Para tanto, desde 2007 elabora lista tríplice com nomes de juízes de 1o e
2o graus, feita a partir de uma eleição entre seus mais de 3.500 associados. A
lista, encaminhada ao TST, tem como objetivo sensibilizar o Tribunal quanto
à importância da participação majoritária dos magistrados do Trabalho na
escolha de seus representantes no CNJ.
Trata-se de preocupação que decorre de uma difícil constatação: somente
os juízes não podem participar, de forma coletiva, dessas indicações, o que
não sucede com o Ministério Público e com os representantes da Ordem
dos Advogados, como bem sintetizou Cláudio Montesso, ex-presidente da
Anamatra, em texto sobre o assunto, do qual extraio a seguinte passagem:
Curiosamente, no CNJ, somente a magistratura não escolhe seus
representantes, o mesmo não ocorrendo com o Ministério Público,
que decide, inclusive, os seus integrantes do correspondente
conselho daquela instituição. Os advogados escolhem seus
representantes por meio de votação dos membros do Conselho
Federal da OAB. Os representantes do Senado e da Câmara,
como representantes do parlamento, estão legitimados como
representantes do povo. Mesmo os tribunais superiores escolhem
seus representantes com o voto de seus pares. Mas à magistratura
de todo o país tal direito é negado.
Não se argumente que a escolha pelo conjunto da magistratura
resultaria na representação de interesses meramente corporativos.
Trata-se de um argumento preconceituoso. Afinal, não se imputa
aos outros conselheiros, escolhidos pelos seus pares, a mesma pecha.
Revista ENM
369
Não se acusam os representantes do Ministério Público, da OAB
e do Congresso de defender interesses de seus eleitores. Além do
mais, as associações de magistrados têm mostrado, por sua atuação
social e política, que é possível conciliar interesses de classe com os
interesses do país. O mesmo se pode esperar de eventuais escolhidos
(MONTESSO, Cláudio José. O CNJ e a democratização do
Judiciário. Correio Braziliense. 14.4.2009).
Essa preocupação me parece procedente, pois uma escolha mais ampla e
democrática dos membros dos conselhos poderia ser uma eficaz ferramenta de participação dos magistrados em torno dos temas de gestão e de planejamento, pois haveria um saudável debate prévio de ideias e de propostas, reforçando o engajamento
de todos numa seara que hoje não tem despertado o interesse geral da categoria.
De mais a mais, num regime democrático, é de se supor que essa
participação deve ter lugar em todas as instituições.
Trata-se, portanto, de uma crítica ao sistema de escolha, jamais em
relação aos colegas indicados para as três composições do CNJ até aqui, os
quais demonstraram e demonstram todas as qualidades para a função, e cujas
contribuições estão a merecer todo nosso apoio.
7. A participação de magistrados na administração dos
tribunais: uma leitura do potencial contido no art. 9o da
resolução no 72 do Conselho Nacional de Justiça
Ainda dentro de todo esse contexto de uma tomada de posição em favor
de uma gestão mais eficiente e participativa, como um dos elementos centrais
de um planejamento estratégico para o Poder Judiciário, está o exame da
ampliação dos atores dos tribunais dedicados à atividade administrativa.
Tradicionalmente, tem prevalecido entre nós a ideia de que a função
judicante somente excepciona a atividade administrativa no que se refere
aos magistrados eleitos para cargos de direção. Na maioria dos tribunais, isso
significa dizer: presidente, vice-presidente e corregedor.
Contudo, pelas especificidades de atribuições, não podemos afirmar que
o corregedor exerce propriamente atividades administrativas nos tribunais.
Resta, assim, o presidente e o vice. Nossas tradições, porém, apontam para
a conclusão de que a participação do vice-presidente não ultrapassa, em boa
parte dos casos, as substituições legais, ainda que não se ignore a sinergia
370
Revista ENM
afirmada em alguns casos, em que, por vontade da mesa diretora, prevalece a
atuação comum nos temas mais importantes pelos membros dirigentes.
Assim, é de diagnosticar que a função administrativa dos tribunais é tarefa
afeta, basicamente, ao presidente do tribunal, com o apoio dos servidores
ocupantes de cargos de direção.
Esse modelo, todavia, vem se mostrando cada dia mais ineficiente. É que
planejar e executar projetos envolvendo a magistratura e o ofício judicante
não é missão das mais fáceis. E mais: não costumam ter sucesso o diálogo e o
engajamento os juízes.
Por outro lado, a forma de ser da atividade jurisdicional nem sempre permite
que o corpo funcional de apoio à direção do tribunal consiga desenvolver
adequadamente um trabalho de interlocução institucional entre a presidência
e os demais juízes, especialmente os de primeiro grau, que são em maior
número e, não raro, apresentam maiores pontos de tensão administrativa.
Certamente em função desse quadro, muitos tribunais passaram a
experimentar um outro modelo, por meio do qual se convoca juízes de
primeira instância para atuarem, em forma de auxílio, com o presidente do
tribunal, colaborando com a instituição no planejamento e na execução dos
projetos aprovados pelo órgão, além da atuação como interlocutores entre os
diversos atores judicantes, máxime em razão do pouco tempo disponível da
presidência para desempenhar essa tarefa.
Essas experiências se mostraram tão exitosas que hoje fazem parte do
cotidiano de muitos tribunais, inclusive do Supremo Tribunal Federal, do
Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Superior Eleitoral.
O mesmo sucede com o próprio Conselho Nacional de Justiça, cuja função
de secretário-geral é exercida, na forma do regimento interno, por um juizauxiliar da presidência do CNJ.12
Por isso, o CNJ adotou, na Resolução no 72/09, regulamentação sobre a
matéria, com efeitos sobre todo o Poder Judiciário:
Art. 9o. A Presidência dos Tribunais, excepcionalmente e observados
os critérios desta Resolução, poderá convocar, observados os critérios
desta resolução, até dois (2) juízes para auxílio aos trabalhos da
Presidência e até dois (2) para a Vice-presidência, respectivamente.
12
Aliás, é voz corrente na comunidade jurídica que essa função, exercida por um juiz, mostra-se um dos
traços mais positivos da atuação do Conselho Nacional de Justiça.
Revista ENM
371
§ 1o. Nos Tribunais com mais de trezentos (300) juízes, a convocação
de que trata o caput em número acima do limite estabelecido deverá
ser justificada e submetida ao controle e referendo do Conselho
Nacional de Justiça.
Não se diga que essa convocação implica prejuízo jurisdicional. Dentro
de certas balizas, como apontadas pelo dispositivo acima, o auxílio pode
melhorar, e muito, o desempenho administrativo da estrutura judiciária,
trazendo ganhos gerais sobre a atividade jurisdicional.
Isso porque a melhoria das rotinas, dos fluxos de trabalho, dos sistemas
informatizados, da distribuição dos servidores, do regime de plantão dos juízes,
da distribuição dos feitos, dentre outros aspectos, é fator de racionalização
geral da atividade do Poder Judiciário, com potencial para encurtar prazos e
emprestar maior efetividade aos processos.
Não é por acaso que, em muitos lugares, a experiência de convocação teve
como motivo principal agregar os conhecimentos de juízes em áreas de gestão de
tecnologias da informação (TI) para viabilizar o desenvolvimento de ferramentas
eletrônicas apropriadas para o uso dos magistrados, tarefa que simplesmente não
poderia ser apenas confiada a técnicos, pois esses não conseguiriam harmonizar
os recursos tecnológicos aos limites e exigências legais para o desenvolvimento
de um processo judicial em espaço totalmente virtualizado.
Logo, creio que esse passo dado pela Resolução no 72 é digno de nota e
rompe com diversos e vetustos paradigmas, realçando o caráter participativo
do planejamento estratégico do Poder Judiciário.
A mesma Resolução estendeu a possibilidade de convocação também às
corregedorias:
Art. 9o............................................................................................
§ 2o. A Corregedoria-Geral junto aos Tribunais poderá solicitar a
convocação de juízes de primeiro grau em auxílio aos seus trabalhos
correicionais, sendo um (1) para cada cem (100) juízes efetivos em exercício
no Estado ou região sob sua jurisdição, devendo ser expressamente
justificada e submetida ao referendo do CNJ quando exceder de 6 juízes.
Essa convocação pode ser especialmente útil para permitir uma atuação da
corregedoria mais próxima dos juízes, o que nem sempre é possível em razão
das diversas atribuições apenas do corregedor.
372
Revista ENM
Ademais, pela própria natureza das atividades correicionais, algumas
questões somente podem ser enfrentadas por juízes, em razão dos
predicamentos que cercam a função. Logo, esse auxílio tem potencial
capacidade de reduzir conflitos e tensões intrainstitucionais. Por outro lado,
aproveitando-se da experiência presente dos juízes auxiliares, a padronização
de alguns procedimentos pode ser realizada de forma mais ágil, porquanto eles
podem atuar como interlocutores entre o corregedor e o corpo de magistrados,
ajudando na construção de consensos e na efetiva implementação de práticas
procedimentais mais eficazes.
O campo, enfim, é vasto para a construção de um Poder Judiciário que
substituta a hierarquização que imobiliza, pela participação que dinamiza e
melhora a prestação dos serviços jurisdicionais, tudo dentro do espírito de
garantir ao cidadão uma justiça mais acessível, célere e substancialmente justa.
Nessa mesma quadra, vejo também a necessidade de se repensar o papel
dos juízes-diretores de foro na Justiça do Trabalho. Em geral, essa função não
é desempenhada com o potencial que poderia ter, notadamente dentro de
um espírito de descentralização administrativa, que teria, dentre outros tantos
aspectos positivos, o condão de preparar, progressivamente, o magistrado para
o desempenho de outras funções administrativas dentro do próprio Tribunal,
como a presidência mais adiante.
Na maioria dos tribunais que conheço, não é assegurado ao juiz-diretor de
foro qualquer margem de autonomia orçamentária ou administrativa, sendo
presente muita concentração de encargos na própria presidência do Tribunal
ou na diretoria-geral e administrativa, essas últimas exercidas por servidores.
Há casos em que o diretor-geral do Tribunal recebe delegação da presidência
para nomear servidores para funções comissionadas, conceder diárias e férias,
etc., e o diretor do foro não pode desempenhar nenhuma dessas tarefas.
A meu juízo, cuida-se de uma inversão hierárquica que se atrita com a ideia
de governo dos juízes.
O resultado dessa disfunção institucional é o afastamento e o
descomprometimento dos juízes com as questões administrativas, implicando
na existência de um ‘arquipélago de juízes’, no lugar de um continente
integrado e participativo do corpo de magistrados.
É de se lembrar que só muito recentemente foi assegurado, de forma
nacional, a indicação do diretor de secretaria pelo juiz titular de Vara. Como
se poderia pensar em planejamento estratégico nessa época?
Revista ENM
373
Creio, portanto, que fortalecer o papel dos juízes-diretores de foro é um
fator de desenvolvimento institucional, na medida em que descentraliza
a administração, trazendo o administrador para mais próximo dos
problemas. Além disso, como assinalei, é aspecto que pode contribuir para o
aprimoramento de uma cultura administrativa no seio dos magistrados, que
vão, ainda no primeiro grau, familiarizando-se com temas como orçamento
público, licitações, regime jurídico dos servidores, etc.
8. Conclusão
As propostas até agora adotadas pela Justiça do Trabalho buscam a eficiência
judiciária e não consideram adotar um caminho que possa reconhecer nas
suas ações a possibilidade de transformação social, na esteira dos objetivos
fundamentais da República.
Enquanto a marcha continuar, o rumo que tomamos não é importante,
pois não refletimos a respeito dele.
Esse primeiro aspecto implica em buscar caminhos que levem à solução,
não apenas dos processos judiciais, mas dos problemas neles encontrados. É
dever da justiça exercer seu escopo pedagógico, lançando luzes nas situações
“litigiogênicas”, isto é, geradoras de conflitos, de litígios judiciais.
Essa busca pressupõe o autoconhecimento da instituição e a constatação
de que alguns dos seus principais atores estão alijados da tomada de decisões,
como é o caso da maior porção dos juízes.
O modelo gerencial da administração dos tribunais é um simulacro do
modelo da competência funcional no processo judiciário, mas não confere ao
juiz de primeiro grau um papel decisório ou de gestão.
O governo dos juízes, previsto na Constituição brasileira, é fundamental
na sustentação do projeto de mudanças.
Assim, o Judiciário que queremos deve ser aquele que saiba qual o caminho
deve seguir: “Comece pelo começo, siga até chegar ao fim e então, pare” (Lewis
Carroll).
374
Revista ENM
Sônia Maria Amaral Fernandes Ribeiro
Graduada em Direito e Filosofia pela UFMA/MA
Mestre em Políticas Públicas pela UFMA/MA
Professora da Escola Superior da Magistratura do Maranhão – ESMAM
Ex-Presidente da Associação dos Magistrados Maranhenses – AMMA
Ex-Vice-Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB
Agraciada pelo Senado Federal com o prêmio “Mulher-Cidadã Bertha Lutz”
1. Introdução
Quando, no ano de 2003, o então Presidente do Supremo Tribunal Federal,
Ministro Nelson Jobim, divulgou os primeiros dados estatísticos sobre a Justiça
brasileira, compilada naquilo que se denominou de “Justiça em Números”, foi
possível ter-se uma ideia mais real dos quadros quantitativo e qualitativo dos
diversos segmentos do Poder Judiciário.
Graças a esses números, e aos demais que os sucederam, foi possível confirmar
algumas teses e refutar outras.
Falava-se muito que o Judiciário brasileiro tinha poucos juízes e demandas
em excesso, mas a verdade é que, em alguns estados da federação, tínhamos
números próximos a países de primeiro mundo; pensava-se que o número
de recursos em demasia é que exclusivamente atrapalhava o funcionamento
da justiça, porém comprovou-se que, de fato, poucos eram os processos que
resultavam em insurgência; achava-se que muito se investia em aquisição de
hardware, entretanto, ficou comprovado justamente o inverso, entre outras
constatações.
Se, por um lado, os números apresentados desvendavam véus e apontavam
outras verdades, por outro, estes por si só não produziriam mudanças. Era
primordial analisá-los e entendê-los, para fazer as opções que melhorassem o
sistema, promovendo a verdadeira Reforma do Judiciário.
Revista ENM
375
GESTÃO
Planejando o Judiciário
em cima e embaixo
A proposta que os dados estatísticos encerravam exigia uma mudança de
postura dos magistrados, o que passava obrigatoriamente pela adoção de novas
atitudes gerenciais.
A competência gerencial que utilizávamos para gerir secretarias judiciais1,
gabinetes, presidência e corregedoria dos tribunais, já não se mostravam
suficientes. Tínhamos, como bem afirma o mestre e pesquisador Newton
Meyer Fleury2 (2005, p. 25), de “substituir a improvisação pela ciência,
por meio do planejamento do método”.
Nesse caldo de discussões, portanto, é que surgem as primeiras propostas
que dariam início ao que chamou o Professor Joaquim Falcão de “revolução
silenciosa do Poder Judiciário”3, a ser desenvolvida em três frentes.
Em primeiro lugar, a própria produção estatística sobre o funcionamento
do Judiciário brasileiro, promovida pelo Supremo Tribunal Federal – STF, que
afastaria a discussão meramente ideológica e forjaria, pragmaticamente, o Poder
Judiciário que a sociedade precisa.
Em segundo lugar, a formação dos juízes em conhecimentos outros, que não
somente do direito, já que a estes é conferida a tarefa de administrar o aparelho
judicial, mas não lhes são oferecidas nos bancos das faculdades disciplinas que
os preparem para essa função.
Por fim, a reforma gerencial, que já estaria em curso pelo novo Judiciário,
bem menos conservador, mas que por ser uma corrente minoritária precisa
de estímulo e visibilidade. Com esse propósito é que foi instituído o Prêmio
“Innovare”.
Nas duas últimas frentes, observe-se que a Associação dos Magistrados
Brasileiros (AMB) tem firmado parcerias que possibilitam à magistratura
brasileira avançar nessa revolução: a uma, na capacitação dos magistrados para
as tarefas gerenciais; e a duas, na identificação e premiação das boas práticas já
desenvolvidas por diversos magistrados e tribunais.
Para a segunda frente, foi firmada parceria com a Fundação Getúlio Vargas
(FGV) para disponibilizar aos magistrados pós-graduação em administração
judiciária. E, para alcançar o terceiro objetivo, foi lançado o Prêmio “Innovare”,
Cartórios judiciais.
A reforma do Poder Judiciário no Estado do Rio de Janeiro. Org.: Fundação Getúlio Vargas. Editora FGV:
Rio de Janeiro, 2005.
3
Expressão utilizada no prefácio da obra A reforma silenciosa da Justiça.. Org.: Centro de Justiça e Sociedade
da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2006, p. 5.
1
2
376
Revista ENM
cuja organização tem a frente representantes da Associação dos Magistrados
Brasileiros, da Fundação Getúlio Vargas, da Vale (antiga Companhia Vale do
Rio Doce) e do Ministério da Justiça.
Entretanto, por uma questão de justiça, registre-se que antes mesmo da
apresentação dos primeiros dados do “Justiça em Números”, alguns membros
do Judiciário brasileiro, notadamente aqueles que participavam dos movimentos
associativos, já sentiam a necessidade de mudar, pois identificavam, na proposta
de Reforma do Judiciário e nas críticas constantes de morosidade do sistema,
possíveis ameaças.
A consciência reinante era de que a mudança deveria ultrapassar a fórmula
usualmente utilizada de criação de novas opções legislativas, viabilizadas na
esfera externa (Congresso Nacional), para focar-se no âmbito interno (tribunais),
mediante ações planejadas e estratégicas.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro é exemplo de ativismo
pioneiro na busca de uma gestão mais adequada da estrutura judiciária, pois foi
um dos primeiros a pensar e agir estrategicamente, a partir de 2001.
Em “A nova gestão do Poder Judiciário” 4 (2006, p. 22), artigo de autoria
dos então desembargadores Marcus Faver e Miguel Pachá,
estes informam quais os objetivos do planejamento estratégico do Judiciário
fluminense, nos seguintes termos:
(...) adoção de medidas de nível gerencial e operacional do sistema de
distribuição de Justiça, com o fim de dotá-lo de presteza e objetividade,
sem prejuízo das garantias individuais; definição de prioridades
estimulantes do funcionamento integrado das funções essenciais à
Justiça; cooperação entre os órgãos gestores dessas funções; aplicação
de medidas preventivas e corretivas de desvios na execução.
A mudança de paradigma em curso, além de imprescindível, é inafastável.
A sociedade atual, fruto da Revolução Digital (sucessora da Revolução
Industrial), obriga a nós todos, magistrados, independente da instância
ocupada, a dispor de capacidade e autonomias gerenciais, ter postura (quanto
à cidadania e à responsabilidade social) compatível com os novos tempos, e
adquirir estruturas organizacionais mais ágeis e informatizadas.
4
A reforma silenciosa da Justiça. Org.: Centro de Justiça e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro
da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2006.
Revista ENM
377
No presente artigo, entende-se que essa “revolução silenciosa”, para
ter êxito, deve contemplar todos os componentes da estrutura judicial –
servidores e magistrados – como partícipes, respeitando, por óbvio, a
competência de cada um.
Nesse sentido, a intenção é analisar as seguintes propostas estratégicas de
planejamento: estratégia corporativa a ser apresentada pelos tribunais, enquanto
instância de gestão macro; e estratégia funcional a ser desenvolvida pelos magistrados
em suas unidades jurisdicionais (comarcas, gabinetes, varas e juizados).
Assim, tomando-se emprestado os argumentos de Mintzberg (apud
MAXIMIANO, 2004, p. 3795), pode-se afirmar que as estratégias de que aqui
se trata são, ao mesmo tempo: a) “uma forma de pensar no futuro, integrada
no processo decisório”; b) “um procedimento formalizado e articulador de
resultados”; e c) “um programa de trabalho”.
2. Planejando estrategicamente o Judiciário em cima
A palavra “estratégia” é um legado grego, usado para designar “a arte dos
generais”. Por esse motivo, na antiga Grécia chamava-se estrategos os comandantes
supremos escolhidos para planejar e fazer guerras.
Com as mudanças societárias acontecidas no decorrer da história da
humanidade e o surgimento das empresas mercantis, a concepção contida na
palavra estratégia ultrapassou os campos das batalhas fratricidas e alcançou os
campos da administração dos negócios.
De longa data, as empresas privadas adotam administrações estratégicas,
voltadas à obtenção de resultados, em face da competitividade. Na grande
maioria dos serviços públicos, porém, essa preocupação é recente.
Reputa-se a omissão do serviço público, na construção de planejamentos
estratégicos, aos seguintes fatores:
a) preocupação quase que exclusiva da ciência da Administração com a
gestão apenas das empresas privadas, o que gerou uma farta doutrina sobre o
assunto, sendo insignificante em relação aos serviços públicos;
b) percepção equivocada dos agentes públicos, até em face da literatura
disponível, de que o planejamento estratégico só tinha função definida para
empresas privadas, pois versava sobre competitividade e geração de lucros; e
In MAXIMIANO, Antonio Cesar Amaru. Teoria Geral da Administração: da revolução urbana à revolução
digital. Editora Atlas S/A: São Paulo, 2004.
5
378
Revista ENM
c) solidificação entre os agentes públicos de uma postura refratária às
mudanças e pouco afeta à prestação de contas para com a sociedade.
Enfim, seja pela visão distorcida dos fins propostos pelo planejamento
estratégico, seja pela passividade daqueles que ingressavam na carreira pública,
que pouco ou quase nada precisavam fazer para se manter ou ascender a
outros cargos, não foram realizados movimentos na busca de uma gestão mais
qualificada.
Com a abertura política no nosso país e a promulgação da Carta Cidadã
de 1988, esse cenário começou a mudar, pois o povo foi elevado, de fato e de
direito, à condição suprema que confere fundamento e razão à existência dos
poderes constituídos6 e, dentre outras coisas, dos serviços que estes prestam à
sociedade.
Críticas foram formuladas e deficiências apontadas, inicialmente em relação
aos poderes Executivo e Legislativo.
No que concerne ao Poder Judiciário, o desconforto foi sentido certo
tempo depois, já que os direitos e garantias conferidos pela nova Constituição
só começaram a gerar efeitos, e, portanto maior demanda junto ao Judiciário,
somente a partir da edição das legislações ordinária e complementar
(Código de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente,
Legislação Ambiental, entre outros diplomas), que concretizaram os preceitos
constitucionais.
Antes, não havendo, pois, reclamações significativas quanto à dinâmica
da prestação jurisdicional, o sistema não sentia a necessidade de mudanças
gerenciais, a considerar que, naquele momento da nossa história, a preocupação
maior e justificada da Justiça era preservar o máximo de direitos e garantias
individuais e coletivas, já que o regime ditatorial suprimia-os.
Superado o momento de política ditatorial e ultrapassada a Revolução
Industrial pela Digital, a democratização produziu novos ares e a sociedade,
cada vez mais informatizada, tem gerado outras demandas, tanto qualitativas
quanto quantitativas.
As relações familiares, empresariais, trabalhistas, dentre outras, não são mais
iguais às de outrora. Não se discute mais, por exemplo, quem teve culpa ou não no
fim do casamento, como forma de definir direitos patrimoniais e guarda dos filhos,
6
Art.1o, parágrafo único da CF/1988: Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Revista ENM
379
assim como a própria família deixou de ser engessada na fórmula matrimonializada
para alcançar todas as formas de constituição baseadas no afeto.
Em termos numéricos, da mesma forma, o padrão é outro: com a sociedade
de consumo florescente, as demandas de massa são a tônica, exigindo a criação
de mecanismos mais rápidos (como a Lei no 9.099/95) para oferecer decisões
em tempo mais razoável; por motivos variados, a unidade familiar dissolve-se
com maior rapidez; principalmente pela acentuação das desigualdades sociais,
a criminalidade cresce assustadoramente; com o exercício mais frequente dos
direitos conferidos pela cidadania, o Estado não mais pode ferir direitos dos
cidadãos impunemente.
Por todos esses exemplos acima citados, e muitos outros existentes, que
resultaram no crescimento contínuo da demanda afeta ao Judiciário, a solução
tradicional de eventuais modificações legislativas não se mostra mais suficiente.
A opção, então, foi buscar aperfeiçoar a gestão administrativa, através de
estratégias que nos possibilitassem cumprir com maior eficácia e eficiência a
missão constitucional que nos foi conferida.
No contexto traçado, o planejamento estratégico, adaptado da administração
privada para a pública, é de extrema importância, porquanto, em resumida
análise, ao fomentar uma estrutura organizacional mais racional e com eleição de
prioridades, permite que o Poder Judiciário cumpra sua missão, a partir de valores
previamente estabelecidos e, consequentemente, que alcance seus objetivos.
E mais: só o fato dos tribunais contarem com quadros que, em regra,
ultrapassam a casa de quatro mil pessoas (entre servidores e magistrados), somado
ao volume de processos a serem julgados (linha de produção), já justificam, por
si só, a opção por um planejamento estratégico.
Nesse tópico – “Planejando o Judiciário em cima” – o planejamento estratégico
pensado é aquele que a ciência da Administração chama de “Estratégia corporativa”,
posto que, no dizer de MAXIMIANO7, abrange “os objetivos e os interesses de
todos os negócios das empresas que atuam em diversos ramos de negócios”.
Em outras palavras, a estratégia corporativa destina-se à organização como
um todo, logo deve ser macro, a considerar a complexidade dos negócios de
empresas que atuam em vários segmentos.
Esse tipo de estratégia permite que a corporação se veja como um todo,
composto de partes que, para atingirem suas metas, devem traçar objetivos
7
Op.cit., p.383.
380
Revista ENM
estratégicos amplos e que contemplem a totalidade da organização em termos
de perspectivas e resultados.
Nesses termos, todo tribunal é uma organização complexa, pois diversas são
as unidades (ramos de negócios) – câmaras cíveis, criminais, reunidas, varas e
juizados cíveis ou criminais, varas fazendárias, de família, etc. – assim como
variados são os serviços prestados (produtos), em face das competências.
Contudo, ao mesmo tempo em que temos múltiplos ramos, temos uma só
missão, qual seja: a distribuição da Justiça.
Por tudo isso, o planejamento estratégico que se passa a detalhar melhor
é aquele cujos tribunais deverão tomar o comando de direção, posto que
corporativo.
As principais qualidades no planejamento estratégico corporativo que se
entendem como importantes e, por via de consequência, devem ser observadas
são: participação, pacto, construção, continuidade, longevidade e adaptabilidade.
Apesar de nominar-se este capítulo de “Planejando o Judiciário em cima”, a
expressão não traduz, de fato, toda sua extensão, tendo mais o interesse de causar
impacto.
Se fosse tomado literalmente, a primeira característica indicada – participação
– estaria tacitamente excluída, pois a impressão que o subtítulo passa, sem
maior reflexão, é que o planejamento seria construído de cima para baixo, logo,
somente com a participação das cúpulas dos tribunais.
Não se trata disso.
Na verdade, o sentido correto é de que os tribunais precisam formular
planejamentos macros, que alcancem todo o sistema. Ou seja, os tribunais têm
que definir posições macros da instituição, que irão refletir no todo e nas partes,
ao passo que a participação dos que compõem as diversas instâncias deve ser
plena nessa construção.
Dito isso, o planejamento estratégico é participativo se, na sua elaboração,
além dos membros das cúpulas dos tribunais formadas pelos desembargadores,
participam também os magistrados de primeiro grau e os servidores de todos os
níveis.
No entanto, pela dimensão numérica dos tribunais, que alcança milhares de
servidores e centenas de magistrados, por certo, quando se fala em participação
também desses atores, não se pensa na universalidade desses. Pensar diferente,
apesar de ideal, é metodologicamente inviável.
Na verdade, a participação efetiva e eficiente de servidores e magistrados no
Revista ENM
381
projeto de planejar só pode se dar em termos percentuais, portanto de forma
representativa.
Em termos práticos, a participação pode se dar, sem perda de
legitimidade da proposta, por meio da aplicação de formulários em um
percentual de servidores de todos os setores da administração (diretorias,
divisões, coordenações, secretarias judiciais, entre outros), e de entrevistas
com um percentual de magistrados (de primeiro e segundo graus, e diversas
competências e entrâncias), buscando-se identificar problemas e colher
algumas sugestões com foco nos planos de ação.
Em segundo lugar, a participação pode também se concretizar com a
realização de workshops, ocasião em que servidores e magistrados, escolhidos
em número e forma representativos, utilizem técnicas do balenced scorecard8 e
tracem, em grupo, a missão, a visão, os valores e os objetivos estratégicos da
instituição.
Os dois grandes méritos de construir o planejamento estratégico corporativo
com participação são: primeiro, a corresponsabilidade no sucesso da empreitada;
e segundo, os diferentes e variados olhares lançados sobre os pontos fortes e
fracos, ameaças e oportunidades da instituição.
A pactuação, por outro lado, é uma característica que decorre da participação
e acontece quando os membros da instituição sentem-se responsáveis pelo êxito
da proposta de planejamento, passando a empregar as estratégias pensadas.
Todo planejamento é idealizado na perspectiva futura, de sorte que haverá de
estender-se por um longo período.
Com efeito, como a mesa diretora dos tribunais perdura por invariáveis
dois anos (biênio de gestão), é imprescindível que esse processo de pactuação
tenha a adesão principalmente dos desembargadores que assumirão a
presidência e a corregedoria dos tribunais nos anos sucessivos à validação
do documento.
O planejamento também há que ser contínuo, pois as necessidades e
demandas de toda e qualquer empresa ou instituição mudam constantemente.
O que ontem se mostrava premente, como, por exemplo, a aquisição de
hardware, amanhã talvez não o seja mais. Por esse motivo, tanto no processo de
acompanhamento da execução do planejado, quanto no “final” do ciclo (nunca
Metodologia desenvolvida pelos professores da Harvard Business School, Robert Kaplan e David Norton,
que possibilita identificar pontos fortes e fracos da empresa e definir estratégias gerenciais para superação,
com a utilização de indicadores de desempenho.
8
382
Revista ENM
do planejamento), há que se ficar atento aos indicadores e adaptações que se
mostrem necessárias.
Administrar estrategicamente tem começo, mas não tem fim.
Em hipótese alguma a instituição deve se valer de um planejamento pronto
e acabado de outra instituição, mesmo se esta tiver obtido resultados positivos.
Portanto, todo planejamento deve ser construído desde a base.
No máximo, admite-se que sejam adotadas soluções já testadas e que
demonstrem êxito, nos casos em que o problema é detectado logo quando da
elaboração do planejamento. Assim, se um tribunal verificar a necessidade de
implementar ferramentas informatizadas para melhorar a gestão do setor de
recursos humanos, e um outro tribunal já as possui, o ideal é adquirir a solução
desenvolvida, pois isso acelera o processo.
O planejamento deve ser também adaptável, o que reforça o argumento
de que não pode ser copiado de um tribunal e utilizado por outro, já que as
realidades vivenciadas nesse país continental são diferenciadas.
É óbvio que alguns tribunais dispõem de melhores condições orçamentárias
e, por isso, terão condições de dispor de infraestrutura (pessoal, instalações físicas,
etc.) mais adequadas aos propósitos perseguidos. Contudo, a não existência de
condições ideais não inviabiliza o ato de planejar. Muito pelo contrário, dá-lhe
fundamentação e justificativa. Afinal, o planejamento estratégico tem como tarefa
primordial o melhor uso possível do tempo e dos recursos financeiros e humanos
disponíveis.
Por fim, o administrador deve pensar em planejar estrategicamente para um
período mínimo de cinco anos, apesar de ter-se ciência de que as gestões dos
tribunais só têm a duração de dois anos, para cada mesa diretora.
Malgrado a inviabilidade de gestões mais longas que os dois anos, posto
ser regra constitucional, é possível planejar com foco no lapso temporal ideal
de cinco anos, se as lideranças estiverem cônscias de que planejar é pensar no
futuro e que com ações de longo prazo é que se consegue mudar estruturas tão
complexas como as nossas.
Com a edição da Resolução no 70 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ,
essa dificuldade de entendimento de alguns, que se preocupam em “realizar” o
máximo em dois anos, sem se preocupar se os projetos terão continuidade, pode
ser superada, a considerar que o uso do planejamento estratégico pelos tribunais
sai do campo das possibilidades para o da obrigatoriedade.
Entretanto, mesmo diante da imposição do CNJ, a adesão a essa forma de
Revista ENM
383
administrar é, de fato, voluntária. Afinal, o ato de planejar estrategicamente exige
envolvimento, e envolvimento exige sempre voluntarismo, nunca imposição.
3. Planejando estrategicamente o Judiciário embaixo
Como exposto no item anterior, o planejamento estratégico pelos tribunais
tem se tornado, felizmente, uma realidade. E, pelo sucesso demonstrado,
projeta-se vinda longa.
Porém, apesar da participação dos magistrados de primeiro e segundo graus no
processo de planejamento macro e da tomada de consciência da sua importância
para que tenhamos uma instituição mais eficiente e eficaz, as preocupações mais
imediatas dos magistrados, notadamente do primeiro grau, persistem.
Para os magistrados, no dia a dia de uma Vara ou Juizado, a percepção é de
que produz muito, mas suas decisões não se traduzem em ações. Ou seja, apesar
de trabalhar diariamente em incontáveis processos, com produção de sentenças
e despachos, o resultado final não é sentido, pois as partes continuam a bater à
sua porta requerendo maior agilidade da secretaria judicial.
Não é raro constatar que a efetivação das decisões tomadas nos autos demora
mais do que o desejado, pois os mandados respectivos ou encaminhamentos
diversos não são cumpridos pelo servidor da secretaria, sob o argumento de que
o tempo tem sido insuficiente para atender a demanda.
Isso nos torna eficientes, mas ineficazes, posto que nossas decisões demoram
a causar os efeitos pretendidos. Não adianta determinar o despejo de um
inquilino faltoso, se o mandado de despejo não chega ao destino; não adianta a
parte oferecer sua contestação no prazo legal, se esta só é juntada aos autos bem
depois e, em face disso, o processo é apresentado com atraso.
Por certo, o planejamento estratégico corporativo terá como perspectiva a
melhoria dessas rotinas, posto que toda e qualquer missão do Poder Judiciário
passa pela distribuição da Justiça. Logo, todos os planos de ação, por menos que
pareça, terão como objetivo final perseguir esse propósito utilizando meios e
tempo adequados.
Entretanto, pelo caráter de longevidade que as ações macros exigem para
começar a produzir resultados na atividade fim travada nos gabinetes, varas
e juizados, faz-se inadiável a adoção de medidas de planejamento funcional,
concomitante ao planejamento corporativo.
Essa opção permite que o magistrado comece a usufruir das vantagens de
administrar estrategicamente e, ainda, cooptá-lo ao “pensar estratégico”, pois
384
Revista ENM
passa a perceber, num curto espaço de tempo, as vantagens da proposta.
No presente capítulo pretende-se apresentar uma sugestão que vai
ao encontro do acima exposto, idealizada pelo Núcleo de Planejamento
Estratégico do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, que tem como
objetivo orientar os magistrados na elaboração de planos de ação, utilizando
ferramentas da ciência da Administração e experiências testadas e aprovadas
pelos próprios magistrados estaduais, voltadas à racionalização e otimização
das atividades desenvolvidas nas secretarias.
Trata-se do “Gestão de Secretarias Judiciais: Guia de Boas Práticas”,
apresentado no XXV Fórum Nacional de Juizados Especiais – FONAJE,
realizado entre os dias 27 e 29 de maio de 2009 na cidade de São Luis/MA, que
tem as seguintes características: inclusivo, participativo, adaptável à realidade e
que “ensina a pescar”.
Explica-se melhor.
O referido Guia não apresenta um projeto acabado, de cima para baixo,
como apanágio a todos os problemas de gestão das secretarias, mas sim uma
proposta que ensina, através de uma metodologia própria e ordenada, como
traçar planos de ação para alcançar os resultados almejados.
É inclusivo, pois a obra não tem fim: a uma, em face da dinâmica social e, a
duas, em razão de a cada dia sermos apresentados a novas “ameaças”. Por via de
consequência, para cada nova “ameaça” temos que buscar novas “oportunidades”
de superação, a fim de efetivamente melhorar a prestação jurisdicional.
É participativo, ainda, pois as boas práticas (pontos fortes) já apontadas ou a
surgirem, podem e poderão ser aproveitadas para superação de nossas limitações
(pontos fracos), como meios aptos a alcançar nossos objetivos.
E, por fim, é adaptável à realidade, pois não se pode desprezar os diversos
“brasis” dentro do nosso Brasil.
Pelas experiências observadas pelo Núcleo de Planejamento Estratégico do
TJMA, levadas a efeito por secretarias judiciais9, pelos brilhantes magistrados
maranhenses Ferdinando Marco Gomes Serejo10 e Douglas de Melo Martins11,
bem como pelas práticas selecionadas em certame12 realizado pela associação
estadual (AMMA), é possível concluir que, mesmo em situações estruturais
9a Vara Cível e 1a Vara de Família da Comarca de São Luís.
Comarcas de São Bernardo e Icatu.
11
Titular da 1a Vara da Comarca de Pedreiras.
12
“Prêmio AMMA: Melhores Práticas do Judiciário”.
9
10
Revista ENM
385
adversas, a Justiça consegue alcançar metas positivas, a partir de inovações e
gestões mais qualificadas, mesmo que as condições estruturais não sejam as
melhores.
O Guia apresenta regras e técnicas de administração, que observam
metodologias e métodos próprios ao enfrentamento da questão posta.
Para melhor compreensão, de forma sucinta, pode-se diferenciar “método”
e “metodologia”, afirmando que o primeiro é o caminho para alcançar
determinado fim, enquanto que a segunda é a explicação detalhada da ação
desenvolvida no método.
Como métodos gerais são sugeridos no Guia: que a escolha do gestor do
projeto não incida sobre o secretário judicial (ou escrivão) e que o escolhido
tenha iniciativa, espírito de equipe, organização, criatividade e, se possível,
conhecimentos de administração ou práticas de gestão; que o gestor, nas
entrevistas para diagnóstico prévio da secretaria, não interfira nas impressões
emitidas pelos entrevistados; e que, nesse diagnóstico, sejam feitos registros
fonográficos e fotográficos, objetivando, respectivamente, fidedignidade dos
dados fornecidos pelos entrevistados e avaliação posterior do antes e depois da
implantação dos planos de ação.
Metodologicamente, o processo de implantação de uma gestão planejada
deve obedecer, passo a passo, quatro etapas: diagnóstico situacional, análise,
planos de ação e acompanhamento, a seguir delineados.
3.1. Diagnóstico
O diagnóstico visa levantar informações sobre a situação atual da secretaria
judicial, sob os aspectos: servidores, estrutura física, material, processos
judiciais, organização dos processos, documentos, informática e sistemas,
rotinas de trabalho e usuários. Essa análise gera dados para identificação do
que deve ser melhorado e consequente definição dos planos de ação.
Quando se avalia o nível de satisfação dos nossos próprios servidores
(colaboradores diretos), foca-se no “insumo” mais importante de qualquer
organização, seja pública ou privada, a considerar que estes, quando bem
orientados, valorizados, motivados e conscientes da importância das
atividades que desenvolvem, representam a diferença entre o fracasso ou
o sucesso.
A estrutura física, variável de comarca para comarca, de estado para estado,
deve ser igualmente analisada, pois reflete na qualidade das atividades, na medida
386
Revista ENM
em que limita a capacidade de atendimento, restringe o acesso dos usuários e
prejudica a imagem da instituição.
Os materiais utilizados nas secretarias, de consumo ou permanentes, devem
ser avaliados nos quesitos quantidade, qualidade e armazenamento, já que assim
pode-se pautar as compras pela administração central dos tribunais e utilizar
com racionalidade os recursos postos.
Deve-se, ainda, identificar o quantitativo de processos judiciais na distribuição
mensal, a considerar que qualquer plano de ação deverá contemplar metas a
serem alcançadas em determinado período de tempo. Dessa forma, os períodos
sofrerão variação ao sabor da dimensão do trabalho.
Na avaliação da organização dos arquivos de processos, devem ser levados em
conta: o tempo gasto na localização dos autos e para realização dos procedimentos
pela secretaria; o controle eficiente de carga e devolução; e a inexistência de autos
não localizados nos escaninhos.
Como nas organizações de um modo geral, em face da mudança de
tecnologia em tempos relativamente curtos13, existem computadores e
periféricos (hardwares) que variam de marca, tamanho e qualidade, torna-se
quase impossível uma padronização.
Nesse cenário, é necessário utilizar de forma diferenciada os equipamentos
modernos e antigos, explorando-os de forma adequada para cada tarefa segundo
suas capacidades. E mais: é necessário avaliar o nível de utilização dos servidores
sobre os sistemas de software, para que se elimine o retrabalho, conseguindo
otimizar o tempo.
Da mesma forma, objetivando a efetividade das decisões judiciais em
um breve espaço de tempo, é fundamental avaliar a forma de elaboração dos
documentos (ofícios, citações, intimações, etc.) e rotinas de trabalho, para saber
se existe padronização ou não.
Por fim, de grande relevância é o levantamento da percepção e satisfação
dos jurisdicionados (usuários: partes e advogados) em relação à prestação
jurisdicional, para que, a partir dos dados obtidos, valorizem-se os pontos fortes
detectados e implementem-se melhorias para afastar os pontos fracos.
No Guia, detalham-se os objetivos desejados no diagnóstico de cada aspecto
e apresentam-se, em anexo, formulários específicos para facilitar a abordagem do
gestor, quando das entrevistas.
13
A média é de que a cada seis meses há mudanças no padrão tecnológico.
Revista ENM
387
3.2. Análise do diagnóstico
A análise do diagnóstico, elaborado com a aplicação dos formulários e
métodos propostos detalhadamente no Guia, será insuficiente se não conseguir
extrair uma conclusão capaz de detalhar os problemas, visualizar possíveis
soluções e estabelecer prioridades, objetivos específicos e metas.
Nessa etapa, os objetivos são: analisar os dados coletados na fase do
diagnóstico, identificar as oportunidades de melhorias e propor alternativas para
a solução dos pontos fracos identificados.
Para tanto, sugere-se realização de reunião com os servidores da secretaria
para apresentação do diagnóstico e discussão, ocasião em que deve ser aplicada
a técnica do brainstorming14.
3.3. Planos de ação
Consiste no planejamento/detalhamento das ações que serão implantadas,
com o objetivo de promover a melhoria da dinâmica organizacional da secretaria.
Deve-se definir “o que” precisa ser feito, “quando” deverá ser realizado,
“quem” será responsável pela execução da ação planejada e os recursos necessários (“como”).
Para cada ação a ser desenvolvida, deverá ser elaborado um plano pela equipe
e identificado o responsável15, a fim de que todos tomem ciência, sintam-se
corresponsáveis, motivem-se, contribuam com o servidor responsável e, acima
de tudo, saibam claramente que, apesar de ser uma decisão tomada em conjunto
(etapa de análise), é imperativo da alta direção (magistrado).
No Guia, apresenta-se, nos anexos, um modelo e um exemplo de plano de
ação, para que aqueles que nunca tenham tido contato com esse documento
possam visualizar a sua forma de construção.
3.4. Acompanhamento
O acompanhamento deverá ser realizado através dos indicadores de
desempenho definidos nos planos de ação.
O gestor deverá levantar periodicamente o andamento dos planos de
Técnica também denominada de “tempestade de ideias”, que consiste na reunião de pessoas, que são
estimuladas a produzir, sem qualquer crítica ou censura, o maior número de ideias sobre um assunto ou
problema.
15
Os planos de ação podem ter responsáveis diferentes. Não confundir “responsável” com “gestor”, pois este
rege todo o processo e o primeiro, um plano de ação definido.
14
388
Revista ENM
ação, observando os prazos estabelecidos para o alcance de cada meta,
utilizando-se para tanto dos formulários de acompanhamento, apresentados
nos anexos do Guia.
A metodologia a ser adotada na aplicação dos formulários de acompanhamento
é a mesma da fase de diagnóstico, ou seja, o gestor do projeto realizará entrevistas
e/ou aplicará questionários e, posteriormente, analisará os resultados junto com
a equipe responsável.
Destaca-se que pode haver a necessidade de realização de ajustes de prazos,
metas e outros, de acordo com o andamento dos trabalhos, o que será de
competência do gestor do projeto (responsável).
3.5. Boas práticas
Em termos de gestão judiciária, principalmente após a Associação dos
Magistrados Brasileiros – AMB e o Supremo Tribunal Federal – STF terem
lançado luzes sobre a questão, muitas práticas louváveis foram introduzidas, seja
pela realização anual do Prêmio “Innovare”, seja pela participação de muitos
magistrados na pós-graduação, já mencionada, oferecida pela Fundação Getúlio
Vargas – FGV.
Assim, é possível afirmar que muitas das ideias ali surgidas ajudaram a
melhorar a prestação jurisdicional brasileira, promovendo, silenciosamente,
uma revolução.
Contudo, pensa-se ser possível acelerar esse processo, ordenando as boas
práticas e oferecendo-as para aplicação imediata, já que muito do que deve ser
modificado já tem solução testada e aprovada.
Ressalte-se que, para otimização da gestão, é imprescindível focar
primeiramente no diagnóstico dos problemas e subsequente construção dos
planos de ação, pois só assim o magistrado poderá saber o que necessita melhorar
e, portanto, lançar mão das propostas oferecidas como boas práticas.
Por tudo isso, é que no Guia apresentado pelo Núcleo de Poder Judiciário
do TJMA trabalhou-se também na compilação de boas práticas levadas a
efeito por magistrados e servidores do Judiciário maranhense, dentre as quais
destacamos, a título de ilustração: sistema de rodízios entre os servidores na
realização das atividades, metas de produtividade e acompanhamento das
secretarias, reuniões periódicas, adequação do layout, relatório mensal de
gastos, controle de cumprimento dos mandados, sistema aberto de marcação
de audiência, entre outras.
Revista ENM
389
Enfim, após o magistrado identificar seus problemas e ordenar suas ações
em um plano de ação, poderá lançar mão de soluções apresentadas que, por já
terem sido testadas, podem ser prontamente utilizadas e solucionar a deficiência
detectada e/ou melhorar os serviços prestados.
4. Considerações finais
No planejamento estratégico corporativo (em cima) ou no funcional
(embaixo), é imprescindível, respectivamente, que haja motivação verdadeira
da alta direção dos tribunais no propósito da mudança de paradigmas, para
conseguir a adesão de todos ao processo e participação, e que o magistrado
conduza diretamente o processo, exercendo sua liderança. Só assim o
planejamento corporativo terá êxito e continuidade, independente da pessoa do
gestor, bem como sucesso, no caso do planejamento funcional.
Com a edição da Resolução no 70 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ,
os defensores do planejamento estratégico corporativo no Poder Judiciário
brasileiro ganharam um grande aliado. Todavia, essa disposição do CNJ deve ser
utilizada com cautela e parcimônia por aqueles que estão à frente do processo de
implantação de uma administração estratégica.
Nenhuma proposta de planejamento corporativo resiste à falta de
compromisso da mesa diretora dos tribunais, pois é dela que emanarão as
determinações às chefias, para que cumpram as deliberações do comitê gestor,
objetivando a execução do planejado.
Portanto, só a deliberação normatizada pelo CNJ não será suficiente, se a
vontade não for verdadeira. É necessário que o CNJ conquiste corações, para
que os tribunais se sintam motivados a aderir à proposta.
Para essa conquista, recomenda-se que o processo de debate e discussão seja
ampliado, para tornar-se mais participativo e, portanto, criar corresponsabilidades.
Antes, contudo, os magistrados deverão manter contato com a matéria, a partir
de palestras conceituais e motivacionais. Afinal, o ser humano precisa conhecer
o “objeto”, para que este passe a fazer parte do “rol de desejos”. Sem conhecê-lo,
o ser humano o rejeita por medo do desconhecido. Isso é natural.
Caso contrário, por conta de uma eventual rejeição “não declarada”, os
planejamentos estratégicos construídos podem se transformar em peças de
ficção, porque não conseguirão produzir as modificações reais desejadas. No
máximo, alguns conseguirão atingir, a duras penas, as metas nacionais fixadas
para dezembro de 2009, mas, de fato, todo o mais continuará “como dantes”.
390
Revista ENM
No que concerne ao planejamento estratégico funcional, o ponto de destaque
é a liderança.
Querer dar uma dinâmica diferente aos trabalhos desenvolvidos pelos
servidores nos gabinetes e secretarias judiciais exige que o magistrado lidere o
processo de planejamento sem se valer de “atravessadores”.
Em outras palavras: o magistrado não pode delegar essa tarefa a outro servidor,
pois sua participação é indispensável, enquanto líder da unidade de trabalho.
Como regra, os magistrados sabem descrever a rotina das secretarias, mas,
quase que invariavelmente, não sabem com detalhes como se processa, não
conhecem como funcionam de fato os sistemas de trabalho informatizados.
Outra regra, bastante comum, é que os magistrados, por mais bem
relacionados com os servidores que sejam, não conhecem suas sugestões para
melhoria das rotinas, e não têm conseguido avaliar a capacidade de produção
de cada servidor, o que lhe possibilitaria aquilatar o nível de competência
individualmente e concluir se numericamente o quadro de servidores é ou não
suficiente.
Ora, se os magistrados não conseguem visualizar esses detalhes, como
proceder no momento de cobrar resultados, já que para tanto é condição sine qua
non conhecer as partes e o todo? Logo o magistrado-gestor deve se assenhorar
desse conteúdo, participando diretamente de todo processo.
Ademais, se liderar, além de dirigir, é motivar, comunicar, guiar e inspirar
pessoas, sua execução não prescinde do diálogo permanente e atento, a ser
travado pelo líder com os liderados, num trabalho de aproximação, valorização
e reconhecimento.
Nenhuma proposta de planejamento funcional resiste à falta de envolvimento
dos liderados quanto à proposta de mudança, pois é deles que nascerão as
soluções aos problemas apresentados; e nenhum envolvimento será conseguido
se a liderança representada pelo magistrado não for exercida, já que não sentirão
confiança na concretização das propostas feitas.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
CódigoCivilde2002ivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 19 jul. 2009.
A reforma do Poder Judiciário no Estado do Rio de Janeiro. Org.: Fundação Getúlio Vargas. Editora FGV: Rio
de Janeiro, 2005.
A reforma silenciosa da Justiça. Org.: Centro de Justiça e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da
Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2006.
MAXIMIANO, Antonio César Amaru. Teoria Geral da Administração: Da revolução urbana à revolução
digital. Atlas S/A: São Paulo, 2004.
Revista ENM
391
Gestão
Poder Judiciário: uma
nova construção
institucional
Maria Tereza Aina Sadek
Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo
Professora da Universidade de São Paulo
Diretora de Pesquisas do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais
O sistema de justiça brasileiro vem se transformando. Traços novos têm
imprimido mudanças na feição do Judiciário. A instituição judicial de hoje
apresenta alterações que guardam distância de suas características do passado.
Muitas dessas mudanças ainda não provocaram todos os seus efeitos e muitas
vezes sequer têm sido percebidas por observadores menos atentos. Mas seus
impactos já modificaram a instituição. São novos instrumentos, novos valores,
novos órgãos, novas atuações. Todos esses fatores somados e combinados têm
incutido na instituição elementos que a impelem na direção de uma nova
construção institucional.
Reações às inovações têm sido abundantes, tanto por parte dos integrantes
da instituição, quanto dos demais operadores do Direito, do Poder Executivo,
de facções da classe política, de setores da mídia e da população. Essas
manifestações, contudo, não têm tido força suficiente para paralisar o processo
de mudanças. Ele tem se desenvolvido, ora em movimentos mais rápidos, ora
em passos mais lentos, mas de toda forma deixando para trás a configuração
que predominava no passado, aquela que poderia ser resumida na imagem de
uma máquina pesada e imune a toda e qualquer alteração.
Dificilmente se encontrará outra instituição que tenha se transformado
tanto e em tão pouco espaço de tempo. Isto não significa que os já clássicos e
reiterados problemas tenham sido resolvidos. Mas, sim, que se assiste à quebra
de padrões assentados no imobilismo e protegidos por uma armadura que
392
Revista ENM
impedia que críticas, reclamos e demandas por mudanças encontrassem eco e
abrigo no interior da instituição. A gravidade e a longevidade dos problemas
dificultam o reconhecimento de que o quadro vem se modificando. Igualmente
problemático é assimilar inovações, especialmente porque elas têm provocado
efeitos, tanto na esfera pública como na privada.
Este artigo tem por intenção caracterizar o Judiciário brasileiro, acentuando
fases distintas no processo de mudança. A inicial começa com a Constituição
de 1988, que modificou a engenharia institucional do País. As seguintes
decorrem do processo de consolidação da democracia no País e da Emenda
Constitucional n.45, que determinou a reforma do Judiciário.
1. O Judiciário como Poder de Estado
O Judiciário em democracias presidencialistas é um poder de Estado. A
base de seu desenho institucional é a tripartição do poder. Trata-se não apenas
de separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, mas das
possibilidades de controle mútuo e de atuação em uma mesma arena política.
Tocqueville captou com argúcia o caráter específico deste tipo de arranjo
institucional ao enfatizar a singularidade dos juízes e do Judiciário nos Estados
Unidos da América. Após sua viagem àquele país , o político e também
analista constatou que o juiz norte-americano, em contraste com o europeu,
especialmente o francês, revestia-se de imenso poder político. Escreveu ele: “a
causa reside num só fato: os americanos reconheceram nos juízes o direito de
fundamentar seus veredictos na Constituição mais do que nas leis. Em outras
palavras, permitiram-lhes não aplicar leis que lhes pareçam inconstitucionais”.
Com efeito, o modelo democrático presidencialista funda-se na construção
do Judiciário como uma instituição com atributos de poder. O âmago deste
poder é a possibilidade de exercer o controle da constitucionalidade das leis e
dos atos normativos emanados dos demais poderes. Trata-se, certamente, de
uma virtualidade intrínseca ao modelo. Como tal, pode ou não ser inteiramente
concretizada; pode levar um tempo maior ou menor para se desenvolver e se
manifestar; pode encontrar resistências maiores ou menores.
Nos Estados Unidos da América, por exemplo, um claro ponto de inflexão
na construção do Judiciário como instituição com poder real e não apenas
formal ocorreu durante a presidência de Marshall na Corte Suprema. Ou seja,
a força política do Poder Judiciário e em decorrência dos magistrados não
nasceu imediatamente após a promulgação do texto constitucional em 1787.
Revista ENM
393
Mas o primeiro grande passo nesta direção deu-se anos depois, em 1803,
no caso Marbury versus Madison. Desde então, o processo se desencadeou,
podendo-se sustentar que a Suprema Corte passou de fato a controlar a
constitucionalidade das leis, fossem elas federais ou estaduais. A partir do final
da Guerra da Secessão (1861-63) a participação de juízes na arena pública –
uma possibilidade – converteu-se, cada vez mais, em um fenômeno concreto.
Para ilustrar, bastaria recordar a atuação da Suprema Corte em alguns dos
eventos mais marcantes da história política e social norte-americana: seu apoio
à segregação racial, negando a cidadania para os negros na primeira metade do
século XIX; sua intervenção em 1905 invalidando leis sociais que objetivavam
limitar a jornada de trabalho; sua oposição ao New Deal do Presidente
Roosevelt; sua decisão favorável à pílula anticoncepcional e ao aborto.
Esse fenômeno não se restringiu aos Estados Unidos. Todos os países que
se inspiraram no mesmo modelo institucional, de alguma forma importaram
também na possibilidade de participação do Judiciário e de seus integrantes na
arena pública. Tais parâmetros têm validade, ainda que do ponto de vista da
prática, na maior parte das vezes, se tratasse mais de uma virtualidade latente
do que de um fato real, manifesto.
Assim, apesar de os países da América Latina terem adotado o
presidencialismo, a instabilidade política, quase crônica, de um lado, e a
acentuada força do Executivo, de outro, dificultaram durante um longo
período o desenvolvimento das potencialidades de protagonismo judicial
implícitas no sistema presidencialista. Para o argumento aqui exposto, todavia,
tais circunstâncias são menos importantes do que o destaque na faculdade de
atuação política de magistrados como um componente intrínseco do modelo
institucional democrático-presidencialista.
Muitas vezes se contesta esta proeminência do Judiciário e dos juízes
recorrendo-se a Montesquieu. Segundo esta interpretação o magistrado teria
por paradigma não apenas a imparcialidade e a neutralidade, mas, sobretudo, a
distância da vida política. A rigor, o juiz alheio ao dia a dia, que só se pronuncia
nos autos, ou “boca da lei”, qualidades tão centrais na tese de Montesquieu, era
um argumento a favor da separação das funções de governo e da importância do
império da lei. Ademais, correspondia a uma realidade que pouco se assemelha
ao mundo da contemporaneidade. Tratava-se, no século XVIII, de propugnar
pela liberdade e de combater o despotismo, um regime sem leis e sem regras, no
qual “cada um tem medo de todos os demais”, como caracterizava o pensador
394
Revista ENM
francês. A república, dizia ele, fosse ela democrática ou aristocrática, qualificavase pelo respeito às leis. Nesse regime, além do executivo e do legislativo,
argumentava Montesquieu, há um terceiro poder, distinto dos demais, o poder
de julgar. O poder judicial sendo essencialmente o intérprete das leis deveria ter
pouca iniciativa e expressão. Não é caracterizado como o poder de pessoas, mas
o poder das leis. O modelo ideal de juiz é o de um ser anódino porque aplicador
da lei, livre de qualquer vontade ou do risco de discricionariedade. Desta forma,
o objetivo central é a construção do Estado de Direito, no qual a justiça e os
juízes não poderiam estar comprometidos nem com o poder político nem com
os poderes privados. O compromisso deveria ser e só poderia ser com a Lei.
A Lei igual para todos. A luta básica era, pois, para a efetivação dos direitos
individuais civis, garantidores da liberdade. A condição para a liberdade estaria
no respeito à Lei, na prevalência da Lei sobre o arbítrio. Daí a necessidade de um
juiz afastado dos interesses e das forças sociais. Apenas personalizando “a boca
fria da lei”, ele poderia ser o aplicador imparcial e neutro da Lei.
O império da Lei no continente europeu não implicou necessariamente
na criação de um regime republicano. O combate central era contra o
“despotismo”, contra o poder arbitrário, contra o poder concentrado em
uma única pessoa, contra o poder sem limites. Daí o empenho na direção
da constituição de uma democracia parlamentar, fosse ela monárquica ou
republicana. O Parlamento transforma-se na expressão da soberania popular.
Na construção deste modelo, há a separação das funções executiva, legislativa
e judicial. Mas o poder de fato está no Parlamento. Nele se consubstancia a
vontade popular e dele nasce o governo, o Executivo. O Judiciário, a despeito
de representar um serviço público fundamental, de atuar segundo a “letra
fria da lei”, não é um poder de Estado, não tem a atribuição de controlar a
constitucionalidade de leis e atos normativos do Executivo ou do Legislativo.
A gradativa ampliação dos direitos, ou a ampliação da cidadania, implicou
em ganhos no processo de democratização das sociedades e em alterações
no perfil e no escopo de atuação das instituições. O Estado liberal clássico
cedeu espaço para o Estado interventor, para o poder público responsável
pela concretização dos direitos sociais. Essa mudança afetou não apenas o
Executivo e o Legislativo, mas também o Judiciário.
Tais alterações ocorreram tanto nas democracias presidencialistas como nas
parlamentaristas. Nestas, ainda que o Judiciário não seja um poder de Estado,
o processo de protagonismo judicial também vem se dando. Apenas para
Revista ENM
395
exemplificar, conviria recordar que até mesmo na Inglaterra, o país que mais
relutou em admitir a interferência judicial, a participação de juízes na agenda
pública nos últimos anos tem sido expressiva. Nas democracias presidencialistas
o fenômeno tem ocorrido com muito maior intensidade e extensão. Em tese,
nesses sistemas a margem de atuação do Judiciário é mais ampla e flexível. E este
papel tem, de fato, sido desempenhado pela maior parte dos Judiciários.
2. Brasil: A Constituição de 1988 e o Judiciário como Poder de
Estado
A Constituição de 1988 representa o ponto culminante do processo
de redemocratização do País. O texto constitucional consagrou o modelo
democrático-presidencialista, atribuindo, pois, ao Judiciário a configuração de
um poder de Estado. Ademais, a Lei Maior reconheceu uma ampla gama de
direitos: direitos civis, políticos e sociais, direitos individuais e supraindividuais.
A confluência desses dois aspectos – a constituição do Judiciário como poder
de Estado e a consagração dos direitos – projetou o Poder Judiciário para o
centro da vida política e social.
Ressalte-se que a Constituição de 1988 concedeu ao Poder Judiciário a
prerrogativa de controle da constitucionalidade das leis e atos normativos e
competência legal para obrigar o Poder Executivo a implementar políticas
públicas sempre que este for omisso no campo dos chamados “direitos
sociais”. Em outras palavras, há no texto legal a imposição de claros limites
à discricionariedade dos chefes do executivo, a quem cabe a responsabilidade
pela oferta e gestão de bens como educação e saúde, por exemplo. Magistrados,
segundo este modelo, são concebidos como corresponsáveis por políticas
públicas, e têm o dever de se pronunciar sobre temas de interesse geral.
Com a Constituição de 1988 as fronteiras entre o juiz, o Direito e a política
se modificaram. Não são mais barreiras intransponíveis, mas espaços que, com
frequência, se interpenetram. A interconexão interferiu na configuração da
instituição e do magistrado e exigiu a construção de uma nova identidade.
Essa nova feição do Judiciário não se restringe aos traços definidores da
instituição e de seus integrantes. Ela também tem se revelado nos aspectos
passíveis de apreensão a partir de uma perspectiva quantitativa: no número de
magistrados; no número de processos; no número de decisões. Com efeito, após
a Constituição de 1988 todos esses números tornaram-se superlativos, cresceram
de forma exponencial, tornando visíveis mudanças de grande magnitude.
396
Revista ENM
3. A Emenda 45: novos parâmetros
Em 8 de dezembro de 2004 foi aprovada a Emenda Constitucional n. 45, após
longa e por vezes conflituosa tramitação. Idas e vindas, diferentes propostas e
relatórios antagônicos, somados à longevidade do que se convencionou chamar
de crise do Judiciário, levavam ao ceticismo, à descrença de algo que viria a ser
concretizado na direção de alterar o sistema de justiça. Daí o inequívoco valor
simbólico da reforma.
Para além do aspecto simbólico, o conjunto de modificações aprovado
desenhou um novo quadro institucional, não apenas para o poder Judiciário,
mas também para as demais instituições do sistema de justiça. Houve
alterações formais tanto nos parâmetros das instituições, como na prestação
jurisdicional.
Entre as medidas voltadas para as instituições destacam-se a criação do
Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público;
a instituição de medidas que preveem que as decisões administrativas dos
tribunais serão públicas, consentindo o acompanhamento das deliberações
por parte de qualquer cidadão; alteração no procedimento de escolha dos
membros dos órgãos especiais (metade pelos desembargadores mais antigos
e metade por desembargadores eleitos por seus pares); exigência de um
mínimo de três anos de atividades jurídicas prévias aos candidatos a postos
no Judiciário e no Ministério Público; imposição de quarentena para os
integrantes dessas instituições após seu afastamento das funções, seja por
aposentadoria ou por outro tipo de desligamento; adoção de critérios
objetivos para substituir os de natureza subjetiva no sistema de promoções
de magistrados, vedando a promoção de juiz que, injustificadamente, retiver
autos em seu poder além do prazo legal; extinção dos Tribunais de Alçada;
ampliação das competências da Justiça do Trabalho; exigência de distribuição
imediata dos processos.
No que diz respeito à prestação jurisdicional, algumas medidas devem
ser destacadas. Em primeiro lugar a inclusão, como direito fundamental dos
cidadãos, da celeridade processual. Este princípio se operacionaliza na instituição
da súmula vinculante e da repercussão geral do recurso extraordinário. A EC 45
também conferiu à Defensoria Pública autonomia, a capacidade para elaborar
sua própria proposta orçamentária, a possibilidade de estabelecer diretrizes
de atuação mais condizentes com o atendimento da demanda social, sem a
interferência dos demais órgãos da Administração Pública.
Revista ENM
397
Além desses aspectos, a Emenda Constitucional 45 abriu espaço para a
efetivação de alterações como a súmula vinculante, o sistema de repercussão
geral, a lei dos recursos repetitivos, o critério da transcendência. Esses
expedientes têm potencial de modificar o perfil dos tribunais, de atuar sobre
o volume de processos e de aumentar o controle das cortes sobre sua agenda.
4. O quadro legal e o protagonismo judicial
Nos últimos anos, tornou-se incontestável a presença do Judiciário e das
demais instituições do sistema de Justiça na arena política. É constante a
participação de ministros dos tribunais superiores, de juízes, assim como do
Procurador Geral da República, de procuradores e promotores, nos principais
eventos que têm marcado a história do País.
Tal presença, como salientamos, encontra seu principal fundamento
na Constituição de 1988. A essa base, entretanto, devem ser acrescidos e
combinados outros aspectos que dão ensejo ao protagonismo desses atores
políticos judiciais. Entre eles saliente-se o grau de institucionalização do
Judiciário e do Ministério Público, características pessoais dos integrantes
dessas instituições, a força relativa das demais instituições, especialmente o
Legislativo e o Executivo.
A pauta de temas que tem passado por apreciação judicial tem sido das
mais expressivas. Muitas das questões que alteraram a vida política, social,
cultural e econômica do País nos últimos tempos tiveram a chancela do
Judiciário. Foi dessa forma que foi liberada a pesquisa com células-tronco;
que foi proibido o cigarro em avião; que foi proibido o nepotismo nos três
poderes; que se tornou gratuita a distribuição do coquetel contra o vírus da
Aids; que se regulamentou o direito de greve dos servidores públicos; que
se regulou a demarcação de reservas indígenas; que os partidos políticos
tornaram-se detentores dos mandatos de seus eleitos. Enfim, a lista de feitos
do protagonismo judicial é extensa e é ampliada constantemente.
Esse protagonismo, como não poderia deixar de ser, provoca debates,
reações, censuras e aplausos. Parlamentares não têm poupado críticas ao
ativismo judicial. No ano de 2008, por exemplo, foram vários os momentos
marcados pelo enfrentamento entre as duas instituições. Para recordar,
vale uma lista com algumas dessas situações. A súmula contra o nepotismo
provocou reações de deputados e senadores que empregavam parentes.
Assistiu-se a várias manobras para adiar o cumprimento da súmula. Senadores
398
Revista ENM
e deputados federais também se antepuseram à resolução do Tribunal Superior
Eleitoral sobre a fidelidade partidária. Talvez, nenhuma das questões tenha
suscitado tanto desconforto quanto a decisão sobre o que ficou conhecido
como “lista suja”.
As decisões judiciais não ficaram, pois, sem respostas por parte do
Legislativo. Caracterizou-se a atuação do Judiciário como de intromissão em
assuntos políticos, próprios do Legislativo. A ofensiva apareceu não apenas em
críticas públicas, mas também em propostas. A proposta de mandato para os
ministros do Supremo Tribunal Federal e o estabelecimento de prazos para a
Justiça Eleitoral julgar processos contra políticos estão entre essas investidas.
O Executivo igualmente tem reagido. O ministro da Justiça, Tarso Genro,
por exemplo, sistematicamente tem expressado críticas ao que denomina
“judicialização” da política. Assim, afirmou que a inércia do Legislativo está
abrindo espaço cada vez maior para a regulação do Judiciário, e que isto ameaça
o equilíbrio entre os poderes. Segundo ele, “há hoje no Brasil uma radicalização
da estatização da política em função dos poderes que o Judiciário tem avocado
para si. E essa é a mais complexa e difícil questão de ser resolvida. Por uma
questão muito simples: quando o Poder Judiciário resolve, não tem instância
para recorrer. Podemos estar perante um fenômeno novo no processo político
brasileiro: uma hiperconcentração de poder e legitimidade no Judiciário e um
esvaziamento dos demais poderes, que pode ser absolutamente problemático”.
Para concluir chegou inclusive a alertar para o perigo do que comparou à
“instauração de um jacobinismo do Poder Judiciário atípico”.
A despeito da procedência maior ou menor dos argumentos e
contraargumentos, o fato inconteste é que o Judiciário tem crescido como
poder, ocupado espaços na arena pública, se constituído em um protagonista
central. Ademais, deve ser sublinhado que o confronto entre as instituições não
é só de valores. Neste embate estão em jogo tanto as forças relativas de cada uma
delas e de seus integrantes, como também a distribuição de poder no interior de
cada uma delas, a manutenção de privilégios e a efetivação de projetos políticos.
5. Novas linhas da atuação
Do ponto de vista formal, desde os anos 1980 ampliou-se consideravelmente
o âmbito de atuação do Poder Judiciário e de todas as demais instituições do
sistema de justiça. Na prática, contudo, nem todas as instituições responderam da
mesma forma ou com o mesmo ímpeto. Mesmo quando se considera uma única
Revista ENM
399
instituição, é notável a diferença não só entre os ramos, os órgãos, nas distintas
unidades da federação e regiões, mas também nas sucessivas presidências.
Um indicador visível do alargamento no âmbito de atuação do Poder
Judiciário é o rol de temas que passaram a ser apreciados. Nos últimos anos,
meio ambiente, ecologia e questões ligadas à natureza, por exemplo, ganharam
um peso maior na pauta do STF, dos demais tribunais e varas. A inovação
aparece não só no crescimento proporcional desses assuntos, mas também
na forma como ministros e juízes tomam suas decisões. Muitas vezes, não se
limitam ao exame da jurisprudência e a estudos, mas vão até as áreas envolvidas
nas disputas e solicitam laudos para órgãos especializados.
A lista de temas além de extensa envolve questões sensíveis e polêmicas, tais
como habeas corpus; uso de algemas; registro de candidatos a cargo eletivos;
nepotismo; lei seca; lei de imprensa; cotas nas universidades; “mensalão”;
interrupção de gravidez de feto anencéfalo; união homoafetiva; transposição
do Rio São Francisco; poder de investigação do Ministério Público; escuta
telefônica etc.. O processo de tomada de decisões expõe e confronta princípios
como, por exemplo, prevalência do estado ou do cidadão; de coletividades ou
de indivíduos; do fisco ou do contribuinte; do direito formal ou do garantismo;
dos direitos dos índios ou da soberania nacional, entre outros.
O embate, todavia, não se restringe aos princípios. Instituições, grupos,
corporações, interesses, imiscuem-se em categorias filosóficas, jurídicas e
sociológicas. Assim, apresentam-se em lados opostos Igrejas versus cientistas;
entidades médicas em desacordo com entidades religiosas; setores do
Judiciário e elite da advocacia em confronto com juízes de primeiro grau,
integrantes do Ministério Público, membros da Polícia; índios, organizações
não governamentais, Ministério Público e governo federal contra fazendeiros,
deputados e governo estadual; etc.
A relevância das questões e sua potencialidade de gerar impactos na esfera
pública, na sobrevivência de corporações e na área privada canalizam a atenção
para as decisões judiciais e especialmente para o seu órgão de cúpula, o Supremo
Tribunal Federal. Quaisquer que sejam as decisões, inclusive a deliberação de
adiar uma decisão ou sua prontidão, como também o receio de que possa vir
a atuar, têm potencial de produzir efeitos notáveis. Não por acaso o espaço
na mídia tem sido significativo. Tal fenômeno não se circunscreve ao STF.
Magistrados em geral converteram-se em manchetes, recebendo destaque em
todos os veículos de comunicação.
400
Revista ENM
Esse quadro marcado pela presença do Judiciário na arena pública não é
novo. A novidade está na ampliação das linhas de atuação, em sua robustez,
em sua profusão de cores e contrastes. A constitucionalização de ampla gama
de direitos e de uma diversidade de temas, como salientamos, deu ensejo a
uma atuação abrangente e vigorosa por parte do Judiciário e especialmente de
sua Corte Suprema.
Ao desenho institucional, ou às determinações da Constituição de 1988,
às novas linhas de atuação devem ser acrescentadas variáveis relacionadas às
características de seus integrantes para explicar a presença do Poder Judiciário e
seu peso na correlação de forças na arena pública. O perfil de seus magistrados
faz diferença. Em outras palavras, a par dos fortes incentivos para uma
atuação política de destaque propiciada pelos parâmetros institucionais, traços
individuais contam. Ou seja, a atuação real do STF, por exemplo, reflete de
forma inequívoca se o grupo é mais ou menos homogêneo, do ponto de vista
doutrinário e ideológico; se predominam comportamentos mais ou menos
reservados, atitudes mais ou menos agressivas, mais ou menos sensíveis a
problemas sociais; se há liderança interna; enfim, a forma como se manifestam
atributos individuais e sua interação no grupo.
O desempenho do Supremo nas diferentes presidências é um exemplo do
significado das características individuais, de como elas impõem peculiaridades,
de como podem acelerar ou retardar processos de construção institucional.
Diferenças em estilo implicam, naturalmente, diferenças nas reações tanto
internas como externas. Quanto maior a exposição, maiores os riscos, mais
contundentes as objeções. Sob a liderança do Ministro Gilmar Mendes a
visibilidade da instituição foi ampliada, além de ter sido injetado um maior
dinamismo e um alargamento na pauta de atuações do CNJ.
As ações empreendidas pelo CNJ têm provocado impactos não apenas
no interior do próprio Judiciário, mas também em outras instituições e
na sociedade. Bastaria mencionar a proibição do nepotismo. No que diz
respeito ao Judiciário, várias medidas vêm alterando a instituição. Entre elas,
as resoluções relativas à proibição de nepotismo; à fixação do teto salarial; à
questão das férias; à obrigatoriedade de envio de dados e à uniformização na
sistematização das informações; à determinação de que os tribunais sigam um
plano plurianual, estabelecendo cronograma de gastos por períodos de cinco
anos; à obrigação de que os juízes enviem trimestralmente relatório com dados
das prisões temporárias.
Revista ENM
401
Do ponto de vista da transparência e do conhecimento da instituição, o salto
de qualidade tem sido notável. Hoje, as informações além de apresentarem um
maior grau de fidedignidade, são mais abrangentes e permitem diagnósticos.
Sabe-se, com base em dados, não apenas o volume de processos entrados e
julgados, mas onde estão os gargalos, quais os principais litigantes, quais as
matérias e, mais importante, os efeitos de alterações introduzidas nos sistema
processual e na estrutura do Judiciário.
Ademais, o CNJ implementou uma nova linha de atuação no início de 2009.
Com o objetivo de equacionar os problemas mais graves do sistema prisional,
decidiu promover mutirões carcerários e inspeções nos tribunais estaduais e
varas. Segundo se pode aferir dos relatórios apresentados trata-se de uma ação
que tem revelado quadros absolutamente dramáticos e constrangedores.
Dramáticos ao desvendar descumprimentos da lei, que ferem a dignidade
das pessoas e os direitos humanos mais básicos, como por exemplo, presídios
superlotados, com presos amontoados e sem triagem por tipo de delito;
indivíduos presos que já cumpriram pena; presos provisórios por mais de
4, 5 anos; presos sem processo; doentes sem assistência médica; container
transformado em celas, sem água e sanitário, etc..
A burla da lei se estende ao campo processual e administrativo. Constataramse casos de policiais que diziam aos juízes quais presos deveriam permanecer
encarcerados, independentemente de condenação ou denúncia do Ministério
Público. Revelou-se que policiais requisitados pelo Tribunal de Justiça faziam
segurança na residência dos desembargadores e, em alguns casos, auxiliavam
em tarefas domésticas. Também se encontrou indícios de que magistrados
fraudavam a distribuição de processos para favorecer empresários. Foi
verificada a existência de processos parados, casos de nepotismo, pagamento
de salário para funcionários fantasmas.
Um outro aspecto igualmente significativo da atuação do CNJ é sua
contribuição para um melhor gerenciamento de varas e tribunais. Como
reconheceu explicitamente o então Ministro Corregedor Nacional, Gilson
Dipp, em entrevista ao jornal o Estado de S.Paulo, em 6/6/2009: “A má
gestão é um acontecimento recorrente no Judiciário, má gestão no sentido de
má aplicação das verbas públicas, de concentração de cargos de confiança em
demasia, principalmente localizados nos tribunais”.
Este aspecto certamente interfere na qualidade da prestação jurisdicional,
respondendo em boa medida pela morosidade no processo de tomada de
402
Revista ENM
decisões. Como se sabe, a gestão orçamentária é um componente fundamental
do desempenho de qualquer organização. Com o Judiciário não haveria
motivos para ser diferente. Mesmo consentindo que desvios e improbidades
não constituam a regra, uma gestão adequada pode contribuir positivamente
para o seu desempenho. A gravidade da situação é reconhecida por ampla
maioria dos juízes. Pesquisa neste sentido foi feita pela Associação dos
Magistrados Brasileiros. Segundo resultados da investigação, praticamente a
totalidade dos juízes ouvidos (99%) não sabia dizer o valor do orçamento
destinado à unidade em que atua. Os dirigentes da AMB reconhecem que
não há como uma Vara funcionar de forma rápida e eficiente se o próprio
juiz que a administra não consegue distribuir de forma correta seus recursos,
já que desconhece o montante de dinheiro repassado. O Desembargador
Mozart Valadares, então presidente da AMB admite: “Precisamos discutir a
gestão orçamentária para melhorar a aplicação desses recursos em benefício da
sociedade”. Esta pesquisa mostrou ainda deficiências na estrutura das unidades
judiciárias. A maioria não conta com profissionais qualificados, equipamentos
e tecnologia para dar agilidade ao andamento no volume de processos. A
desproporção entre o número de processos em tramitação e o número de
computadores e profissionais é acentuada. De acordo com os dados, a situação
é mais crítica nas regiões Norte e Nordeste.
Racionalizar e alterar procedimentos internos são iniciativas capazes de
produzir efeitos extremamente positivos no desempenho do Judiciário.
Uma investigação sobre este aspecto foi desenvolvida pelo Centro Brasileiro
de Estudos e Pesquisas Judiciais e pela Escola de Direito de São Paulo da
Fundação Getúlio Vargas, com o apoio institucional da Secretaria de Reforma
do Judiciário, em 2007. O trabalho mostra como a burocracia judicial e, mais
diretamente, os cartórios judiciais, interferem no tempo de tramitação dos
processos. As conclusões do estudo são claras a este respeito. São elas: “os
cartórios judiciais produzem grande impacto na morosidade do processo e
no acesso à justiça; paradoxalmente, o cartório é “invisível” como ator do
sistema de justiça; a organização e o funcionamento dos cartórios judiciais são
precários”. Ou seja, foi constatado que a estrutura organizacional das varas e
cartórios representa uma variável importante no desempenho do Judiciário,
afetando diretamente os tempos desde o início até o final (isto é, da petição
inicial até a execução), tanto no rito sumário como no ordinário. Nos locais
em que o relacionamento pessoal, o ambiente de trabalho, a organização e a
Revista ENM
403
distribuição de tarefas são avaliados como negativos, o tempo dos processos
judiciais é consideravelmente maior. Em contrapartida, quando há iniciativas
para inovar a gestão e o funcionamento do cartório, verificou-se uma menor
morosidade, um incremento significativo no desempenho.
Acentue-se que estes aspectos entraram muito recentemente na pauta
de preocupações de magistrados. A rigor, nem os cursos de Direito, nem
as Escolas de Magistratura costumavam reservar espaços em sua grade de
disciplinas para questões relacionadas à gestão administrativa e financeira.
Apesar desta deficiência no ensino, exigia-se do juiz “algo” muito além de sua
formação como bacharel, ou seja, que ele também fosse um administrador.
Esta expectativa até poderia ser razoável quando a complexidade era menor e o
número de processos acentuadamente inferior. Certamente deixou de ser com
a progressiva complexidade e com a extraordinária multiplicação na demanda
pelos serviços do Judiciário. O volume crescente de processos, contudo, não
foi acompanhado de alterações na infraestrutura física e de pessoal, nem
na mesma dimensão nem tampouco seguiu as inovações tecnológicas que
marcaram os últimos anos. Essa situação era, ou melhor ainda é, agravada
pela quase absoluta ausência de critérios objetivos e de transparência para a
distribuição dos recursos materiais e de pessoal.
Esse quadro, reconhecidamente anômalo, vem sendo alterado. Alguns
passos já foram dados. O mais importante entre eles é, sem dúvida, a
possibilidade de se elaborar diagnósticos com base em informações. Tornouse factível, por exemplo, saber onde é maior a carência de magistrados, de
profissionais qualificados, de equipamentos, etc.. E com base nestes dados
eleger prioridades, suprir necessidades e elaborar planos de gestão.
Neste sentido, não haveria como deixar de valorizar as iniciativas que
contribuem para um retrato mais realista do Judiciário. O significado destas
ações se reflete em políticas de gestão, de melhor aproveitamento dos recursos,
de valorização de aspectos inovadores e de rejeição a práticas que ferem a
moralidade, a probidade ou que comprometam a celeridade, a imparcialidade,
o acesso à justiça. A base desse conjunto de iniciativas é a coragem de desvendar
mazelas, de aplicar punições, de contrariar interesses.
As inspeções do CNJ têm descoberto situações de certo modo sabidas
pelos operadores do Direito e também pela população em geral, mas jamais
explicitadas em toda a sua dimensão e especialmente por um órgão do próprio
Judiciário. Os relatórios permitem conhecer o que se passa em tribunais, varas,
404
Revista ENM
presídios, secretarias, cartórios. Os problemas são relatados e, em função do
diagnóstico, são propostas recomendações. Do ponto de vista da cidadania
trata-se de uma verdadeira revolução. Um desvendar com alto potencial de
provocar modificações a curto, a médio e a longo prazo.
Por outro lado, no planejamento estratégico, foram estabelecidas metas,
como prazo para envio de dados e identificação e julgamento de todos os
processos distribuídos até 2005.
Os dados sistematizados e o desempenho do CNJ permitem afirmar
que sua atuação tem sido relevante, alterando aspectos até então intocáveis.
Ao comprovar desvios, chegou a aplicar punições, até mesmo a determinar
aposentadoria compulsória – pena disciplinar máxima prevista pela legislação.
No que se refere às práticas de desrespeito à lei, tornou-se evidente a ineficiência
ou na melhor das hipóteses a limitação das corregedorias, mesmo porque,
quando ativas, são muito mais voltadas para o primeiro grau. O trabalho
do CNJ permitiu constatar que muitas irregularidades persistiam, tais como
nepotismo, paralisia de processos, corrupção, desperdício de dinheiro do
contribuinte. Na maioria desses casos, quando chegou a haver punição, a força
do corporativismo superou a do interesse público. Não raras vezes, o tipo de
punição era incompatível com a gravidade da irregularidade.
6. Considerações finais
Os últimos anos presenciaram uma transformação espetacular no
posicionamento do Judiciário na agenda pública, na participação de
magistrados e associações representativas nos debates, na liderança de
experiências inovadoras e também na quantidade e na qualidade dos dados
permitindo um retrato mais acurado da instituição. Independentemente de
juízos de valor, o que se sublinha é que o Judiciário de hoje não é o Judiciário
de anos passados.
As mudanças são apreciáveis e podem ser percebidas dos mais variados ângulos.
Com efeito, do ponto de vista demográfico, o número de juízes
cresceu enormemente e essa ampliação provocou efeitos na composição da
magistratura: diferenças na estrutura demográfica e na morfologia sociológica.
Além dos aspectos quantitativos, demográficos e sociológicos, que por si só
já significariam uma extraordinária transformação, há também mudanças
comportamentais e políticas igualmente sem precedentes. Como as pesquisas
realizadas pela AMB indicam, já não se pode falar que os juízes compõem
Revista ENM
405
um grupo homogêneo e menos ainda que defendam posições de louvor à
instituição e ao seu desempenho, responsabilizando apenas a legislação ou
a falta de recursos materiais e humanos pelas deficiências na distribuição de
justiça no País. São crescentes os percentuais de magistrados, em todas as
instâncias, que sustentam avaliações críticas tanto em relação ao desempenho
do Judiciário como ao seu próprio, e às outras instituições.
O modelo de juiz estritamente “boca da lei” parece pertencer a tempos
pretéritos ou, na melhor das hipóteses, está confinado a um número muito
reduzido de magistrados, estando em vias de extinção. Gilmar Mendes,
quando presidente do STF, referindo-se à questão da fidelidade partidária,
encarregou-se de pronunciar seu epitáfio: “o STF não se posiciona apenas
em relação à letra fria da lei (...) era uma mudança de partido a toda hora,
na diplomação, antes da posse, de forma exagerada, para não falarmos do
fenômeno do mensalão, que poderia supor uma mudança remunerada. É nesse
contexto que o Supremo Tribunal Federal faz a revisão da jurisprudência. Não
é uma leitura literal pura do texto constitucional. É um diálogo sério com a
sociedade e com a realidade”. (Folha de S.Paulo, 4/11/2008)
Nada indica que o protagonismo judicial seja um fenômeno passageiro
ou que venha a perder fôlego nos próximos anos. As falas de ministros,
desembargadores e juízes, como também os dados quantitativos confirmam
impulsos na direção da tendência de um desempenho pró-ativo do Judiciário.
De um outro ângulo, verifica-se que a chamada “judicialização dos
conflitos” tem revelado possuir uma face acentuadamente dilemática. Bastaria
citar as decisões judiciais que envolvem a questão do direito à saúde, por
exemplo. O incontestável direito à universalização dos serviços públicos de
saúde, quando reclamado no Judiciário, tem provocado questionamentos,
contrapondo: políticas coletivas e casos individuais; recursos públicos finitos
versus direito à vida; decisão majoritária sobre alocação de recursos e decisão
judicial; privilégio concedido a alguns jurisdicionados versus igualdade ou
saúde de outros. Nesse tipo de questão acaba-se, muitas vezes, obtendo-se o
oposto do que se pretende. Isto é, ao invés de garantia da igualdade, é gerada
uma situação de privilégio para aqueles que possuem acesso qualificado à
justiça. Além disso, a alteração na distribuição de recursos resultante da decisão
judicial fere a que foi definida majoritariamente, transformando demandas
individuais em empecilhos para a concretização de políticas sociais, que
são, em princípio, de âmbito coletivo. É claro que não existe solução ótima
406
Revista ENM
e menos ainda fácil. O problema é grave e vem se acentuando. Mas, vem
crescendo, conjuntamente, a consciência de que as respostas não se encontram
nos parâmetros tradicionais.
No âmbito das inovações processuais, seus efeitos têm se tornado cada
vez mais significativos, tanto do ponto de vista quantitativo (número de
processos) como em suas potencialidades de alterar o perfil dos tribunais
superiores. A queda no volume de processos no STF, por exemplo, sinaliza
a tendência da cúpula do Judiciário de se transformar efetivamente em
Corte Constitucional, diminuindo seu papel de última instância recursal.
Ademais, a pauta do STF reforça a assertiva sobre a progressiva importância
da dimensão referente à presença pública do Judiciário. A lista de temas
é polêmica e quaisquer que sejam as decisões que venham a ser tomadas
certamente provocarão impactos econômicos, sociais e políticos. Além desses
efeitos, não se pode descartar a potencialidade de conflitos institucionais,
particularmente com o Executivo e o Legislativo.
Contribuindo para este novo posicionamento do Judiciário na vida
pública, a maior entidade representativa dos juízes – AMB – converteu-se
em ator político relevante, tendo participado ativamente de todos os embates
que de alguma forma dizem respeito ao sistema de justiça e à vida coletiva.
Iniciativas e comportamentos marcados pela defesa de interesses corporativos
já não ocupam todo o espaço de atuação da associação. Ao contrário, o modelo
tradicional tem convivido e até tem sido subordinado por interferências
públicas de natureza republicana, como, por exemplo, as campanhas lideradas
pela AMB, em apoio às decisões do CNJ de combate ao nepotismo e à
impunidade, ou a campanha por eleições limpas e contra a corrupção.
Práticas inovadoras empreendidas em varas e tribunais devem
igualmente ser somadas ao conjunto de mudanças dos últimos tempos.
O Prêmio Innovare tem contemplado experiências criativas e eficazes,
com potencialidade de serem aplicadas em outras varas ou tribunais.
Essas práticas demonstram como muitas das soluções não dependem de
mudanças legislativas, mas daquilo que Victor Nunes Leal caracterizou
como vontade política.
Atentar para a série de mudanças em curso não significa que a crise de
distribuição de justiça tenha sido resolvida. Ao contrário, o que se salienta
é que alguns passos vêm sendo dados. Contudo, a dimensão superlativa
do problema impõe a urgência de mais e novas soluções. Soluções que
Revista ENM
407
transcendam o voluntarismo e a insistência em expedientes já testados e que
se mostraram de baixa eficiência.
A experiência e os dados ensinam que não se trata, por exemplo, de
aumentar a carga de trabalho de magistrados. Os juízes brasileiros têm hoje
um volume de trabalho muitas vezes superior ao de seus colegas em outros
países. Seria absolutamente irreal acreditar que haveria condições de acrescê-lo
ainda mais. Ou que esforços isolados, individuais, teriam condições de sanar o
problema. Além disso, é sabido que “o mais do mesmo” é apenas um paliativo,
que não impediria que o problema voltasse a tomar, a médio e a longo prazo,
se não a mesma dimensão, uma ainda maior.
Ademais, parece claro que não se pode esperar por condições mais
favoráveis para enfrentar o problema. Por um lado, nada indica que mudanças
legislativas, que alterem códigos, constituam prioridade para o Parlamento ou
que venham a ser aprovadas a curto ou a médio prazo. Por outro, dificilmente
se terá um acréscimo no aporte de recursos financeiros, físicos e de pessoal
compatíveis com as necessidades. Face a esses constrangimentos, não se pode
aguardar, nem trabalhar nos padrões anteriores, anacrônicos face ao volume
de demandas. É imperioso que se busque saídas, mesmo reconhecendo que se
está longe do ideal.
A estratégia de atuação deve levar em conta diferentes ângulos do
problema. Uma saída já prevista legalmente, mas ainda muito pouco utilizada,
diz respeito às ações coletivas. Estas deveriam receber muito mais atenção e
receptividade, porque extrapolam problemas individuais. Outro expediente
a ser considerado com maior tenacidade refere-se aos procedimentos
conciliatórios. Os ganhos advindos de um maior estímulo à conciliação,
tanto pré-processual como durante o processo, expressam-se não apenas nas
possibilidades mais efetivas de pacificação, mas também no tempo e no índice
de congestionamento de varas e tribunais. É necessário igualmente avanços na
geração de novos sistemas de gestão, aí incluídos o plano administrativo nos
cartórios e serventias judiciárias. A informatização, ferramenta importante,
deve ser estendida para a gestão e o processamento das ações. A otimização
dos recursos tem relação direta com a melhoria na prestação jurisdicional, com
uma justiça mais rápida e eficiente.
Sem respostas incisivas, o colapso do sistema é certo. Igualmente
seguros são os efeitos corrosivos de tal desenlace, para a democracia e para a
convivência pacífica.
408
Revista ENM
Referências Bibliográficas
ARANTES, Rogério Bastos. (1997). Judiciário e Política no Brasil. São Paulo: Sumaré/FAPSP/EDUC.
BAUM. L.A. (1987) A Suprema Corte Americana, Rio de Janeiro, Forense.
BERMUDES, Sérgio (1999). “The Administration of Justice in Brazil” in A.S. Zuckerman (ed), Civil
Justice in Crisis: Comparative Perspectives of Civil Proceedings, Oxford: Oxford University Press.
BOBBIO, Norberto (1992) A era dos direitos. Rio de Janeiro: Ed. Campus.
BONAVIDES, Paulo (1992), Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Malheiros Editores.
CAMPILONGO, Celso (1989) “Magistratura, sistema jurídico e sistema político. In: FARIA, J. E.
(org) Direito e justiça: a função social do Judiciário. São Paulo: Ática.
------------------------------(1994) “O Judiciário e a democracia no Brasil”, Revista da USP, São Paulo,
n. 21: 116-125, mar-maio.
CAPPELLETI, Mauro (1989), The Judicial Power in Comparative Perspective, Oxford, Oxford
University Press.
CAPPELLETI, Mauro (1993), Juízes Legisladores?, Porto Alegre, Sergio Antônio Fabris editores.
CAPPELLETTI, MAURO (1990) “Constitucionalismo moderno e o papel do Poder Judiciário na
sociedade contemporânea” Revista de Processo, n. 60: 110-117, out-dez.
-----------------------------------(1991) “O acesso à justiça e a função do jurista em nossa época”. Revista
de Processo, n. 61: 144-160, jan-mar.
CAPPELLETTI, Mauro e BRYANT, Garth (eds). (1978) Access to Justice. Milan/Alphenaandenrij,
Dott Giuffrè/Sijthoff and Noordhoff
CARVALHO, José Murilo. (1996). “Cidadania: tipos e percursos” in Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, vol. 9, n. 18.
CASTRO, Marcus Faro de. (1991). “Equidade e Jurisdição Constitucional: notas sobre a determinação
normativa dos direitos constitucionais” in Revista de Informação Legislativa, 28, n. 111, jul/set.
-----------------------------------(1997) “O Supremo Tribunal Federal e a judicialização da política”.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 12, n. 34: 147-156, jun.
CEJA, Centro de Estúdios de Justicia de las Américas (2005). Reporte sobre la Justicia en las Américas
2004-2005, Santiago, Chile.
CEPEJ, European Commission for the Efficiency of Justice (2006). European Judicial Systems
CITTADINO, Gisele (1999), Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva, Rio de Janeiro, Lumen Juris.
DALLARI, Dalmo de Abreu (1985) “O Poder Judiciário como instrumento de realização da justiça”
in O Poder Judiciário e a Nova Constituição. Porto Alegre: AJURIS.
DWORKIN, Ronald (1977), Taking Rights Seriously, Cambridge, Harvard University Press.
FALCÃO NETO, Joaquim de Arruda.1980. “Cultura Jurídica e Democracia: a favor da democratização
do Judiciário” in LAMOUNIER et alli (org) Direito, Cidadania e Participação. São Paulo: T. A.
Queiroz.
FARIA, José Eduardo. (1989).(org) Direito e Justiça – A Função social do Judiciário. São Paulo: Ed.
Ática.
------------------------------.(1991).Justiça e Conflito, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais.
-------------------------------.(1994). “O Desafio do Judiciário”. Revista USP, Dossiê Judiciário, n. 21.
------------------------------.(1995). O Poder Judiciário no Brasil: Paradoxos, Desafios e Alternativas.
Brasília: Conselho da Justiça Federal.
FARIA, J. E. e LIMA LOPES, J.R. (1989). “Pela democratização do Judiciário”, in FARIA (org) 1989.
FERRAZ JR., Tércio S. (1994). “O Judiciário frente à divisão dos Poderes: um princípio em
decadência?”. Revista USP, n. 21.
FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves (1994). “O Poder Judiciário na Constituição de 1988:
Judicialização da Política e Politização da Justiça” in Revista de Direito Administrativo, vol. 198.
FRANKFURTER, Felix (1939), Law and Politics, in: Archibald MacLeish &E. F. Prichard Jr., New
York, Harcourt, Brace & Company.
GARAPON, Antoine. (1999) O juiz e a democracia. Rio de Janeiro: Revan.
JUNQUEIRA, Eliane Botelho. (1994). A sociologia do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
---------------------------------et al.(1997). Juizes: Retrato em preto e branco. Rio de Janeiro: Letra Capital.
KANT DE LIMA, Roberto. (1983). “Por uma Antropologia do Direito, no Brasil” in J.Falcão (org)
Pesquisa Científica e Direito, Recife: Ed. Massangana.
KOERNER, Andrei. (1994). O Poder Judiciário Federal no sistema político da primeira república.
Revista USP, Dossiê Judiciário, n. 21.
Revista ENM
409
LAMOUNIER, Bolivar. (1992). “Redemocratização e estudo das Instituições Políticas no Brasil”, in
Sérgio Micelli (org), Temas e Problemas da pesquisa em Ciências Sociais, São Paulo: Editora Sumaré.
LIPJHART, Arend. (1991) Presidencialismo e Democracia Majoritária in LAMOUNIER (Org) A
Opção Parlamentarista. São Paulo: Ed. Sumaré.
LOPES, José Reinaldo Lima. (1989). “A função política do poder Judiciário” in FARIA (org) 1989.
-------------------------------------(1994). Justiça e Poder Judiciário ou a Virtude confronta a instituição.
Revista USP, Dossiê Judiciário, n. 21.
MENDES, Gilmar Ferreira (1996), Jurisdição Constitucional: O Controle Abstrato de Normas no Brasil
e na Alemanha, Rio de Janeiro, Saraiva, 1996.
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA BRASIL (2004). Diagnóstico do Poder Judiciário
MIRANDA ROSA, F. A (1996) Sociologia do Direito: o fenômeno jurídico como fato social. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor.
MORAES FILHO, Evaristo (1986) A ordem social no novo texto constitucional. São Paulo: LTR.
OLIVEIRA, L e ADEODATO, João Maurício. (1996). O Estado da Arte da Pesquisa Jurídica e SócioJurídica no Brasil, Conselho da Justiça Federal, Brasília.
PASARA, Luis. (2004). Em busca de uma justicia distinta – Experiências de reforma en America Latina,
Lima: Consorcio Justicia Viva.
PINHEIRO, Armando Castelar (org) (2003). Reforma do Judiciário – Problemas, Desafios, Perspectivas
Book Link
PIOVESAN, Flávia (1995) A atual dimensão dos direitos difusos da Constituição de 1988. In
PIOVESAN et al (orgs) Direito, cidadania e justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais.
PREMIO INNOVARE – A REFORMA SILENCIOSA DA JUSTIÇA (2005), org: Centro de Justiça
e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro
RAWLS, JOHN (1981) Uma teoria da justiça. Brasília: Editora UNB.
REALE, Miguel (1995) Por uma constituição brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais.
RENAULT, Sergio R.T. e BOTTINI, P (org) (2005). Reforma do Judiciário. São Paulo: Ed. Saraiva.
SADEK, Maria Tereza (org). (1995). O Judiciário em debate. São Paulo: IDESP/Sumaré.
------------------------------(1999). O Sistema de Justiça. São Paulo: Editora Sumaré.
----------------------------(org). (2000). Justiça e Cidadania no Brasil. São Paulo: Editora Sumaré.
---------------------------------(2004) “El Poder Judicial y la Magistratura como actores politicos” in
El Brasil de Lula: diputados y Magistrados, Rodrigues, L e Sadek, Buenos Aires: Ediciones La Crujíia
---------------------------------(2004 b) “Judiciário: mudanças e reformas” in Estudos Avançados 51,
vol.18, n. 51, maio/agosto.
--------------------------------(2005) “Efetividade de direitos e acesso à Justiça” in RENAULT, S. e
BOTTINI, P. (org) Reforma do Judiciário, São Paulo: Saraiva.
--------------------------------(2006), (coord.) Magistrados: uma imagem em movimento, Rio de Janeiro:
Ed. FGV; AMB.
SANTOS, Boaventura de Sousa (1996), Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas, Lisboa, Edições
Afrontamentos.
SHAPIRO, Martin M. (1964), Law and politics in the Supreme Court, New York, Free Press.
SHAPIRO, Martin M. (1983), “Whiter Political Jurisprudence: a Symposium”, The Western Political
Quarterly, 36.
SHAPIRO, Martin M. (1986), Courts: A Comparative And Political Analysis, Chicago, The University
of Chicago Press.
SILVA, José Afonso (1990) “Defesa da Constituição” in Revista do Tribunal de Contas do Estado de São
Paulo, n. 61, pag 39-46
SILVA, José Afonso (1997), Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Malheiros Editores.
SLOTNICK, Elliot E. (1991). “Judicial Politics”, in Willian Crotty (ed) Political Science: Looking to
the future, vol. IV, cap. 3. Evanston, Illinois, North – Western University Press.
SMITH, Rogers M. (1988), “Political Jurisprudence, the ‘new institutionalism’, and the future of
public law”, American Political Science Review, 82, p.105.
STONE, Alec (1997), The Birth of Judicial Politics in France, Oxford, Oxford University Press.
SWEET, Alec Stone (2000), Governing With Judges : Constitutional Politics in Europe, Oxford, Oxford
University Press.
TATE, Neal & Torbjörn (eds.) (1995), The Global Expansion of Judicial Power, New York University
Press.
410
Revista ENM
TAYLOR, Matthew (2006) “Beyond Judicial Reform – Courts as Political Actors in Latin America” in
Latin American Review, vol. 41, n.2, june.
TOCQUEVILLE, Aléxis de (1977), A democracia na América. 2a ed. Belo Horizonte, Itatiaia, Edusp´.
UNGER, Roberto Mangabeira (1996), What Should Legal Analysis Become?, London, Verso.
VIEIRA, Oscar Vilhena (1994), Supremo Tribunal Federal – Jurisprudência Política, São Paulo, Editora
Revista dos Tribunais.
WEBER, Max (1986), Sociologie du Droit, trad. Jacques Gorsclaude, Paris, PUF.
WERNECK VIANA, Luiz & al. (1999), A judicialização da Política e daRelações Sociais no Brasil, Rio
de Janeiro, Revan
WERNECK VIANA, Luiz (2008), “O Terceiro Poder na Carta de 1988 e a Tradição Republicana:
mudança e conservação”, in Oliven, Ridenti, Brandão (orgs) A Constituição de 1988 na vida brasileira,
São Paulo, Aderaldo & Rothschild. Anpocs.
WOLKMER, Antonio Carlos (1998), História do Direito no Brasil, Rio de Janeiro, Forense.
Revista ENM
411
Gestão
PROPOSTA ORÇAMENTÁRIA
DO PODER JUDICIÁRIO
Luis Felipe Salomão
Ministro do Superior Tribunal de Justiça
“Os juristas saudosistas reverenciam uma antiga ideia: a de que o direito
se autopurifica. Tal imagem concebe duas formas ou estágios do mesmo sistema
jurídico: a forma mais nobre latente na menos nobre, o direito contemporâneo,
impuro, que gradualmente se transforma na sua própria ambição mais pura, a
duras penas, sem dúvida, tanto com deslizes quanto com ganhos, nunca atingindo
a pureza final, mas aprimorando-se sempre em relação à geração anterior.”
(Ronald Dworkin)
1. Introdução
O texto pretende examinar o tema relacionado à participação da
magistratura na elaboração e execução do orçamento do Poder Judiciário,
destacando os aspectos político e técnico da questão central.
Com efeito, após uma rápida análise histórica, tanto em relação ao orçamento
público como ao próprio desenvolvimento da matéria no que tange ao Judiciário,
propõe-se uma apreciação de direito comparado, para, logo em seguida,
alcançarem-se algumas conclusões quanto à necessidade de “transparência” e
“participação” no tema referente à elaboração da proposta orçamentária.
A propósito, vem a calhar a narrativa contida na simbólica obra-prima de
Ibsen.
Em “Um inimigo do povo”, apesar de escrito em 1922, a obra do consagrado
dramaturgo norueguês é de impressionante atualidade. O personagem que
domina o enredo e prende a atenção do leitor é o Dr. Tomas Stockmann. Ele
ajudou a fundar um balneário que se transformou em sensação para turistas,
trazendo prosperidade ao lugarejo onde vivia. De repente, descobre-se que as
412
Revista ENM
águas da estação, porque mal captadas, eram perigosas, daí que cada morador
pretendeu elevadas indenizações decorrentes do sistema de canalização.
Quando o Dr. Tomas avisa que irá denunciar a situação, há uma trama que
estabelece solidariedade entre o Prefeito da Cidade (irmão do Dr. Stockmann),
a imprensa e os acionistas. Eles desejavam impor os custos aos contribuintes e
fazer com que todos identificassem no Dr. Stockmann o “inimigo do povo”.
A trama de Ibsen serve como fio condutor ao tema aqui tratado.
O conflito entre o interesse “público X privado”, entre a “verdade X
mentira”, é sintetizado pelo gênio do dramaturgo: “E quando formos homens
livres e distintos, que é o que faremos então? Vocês escorraçarão os lobos para
além das montanhas”.
2. Síntese histórica brevíssima sobre o orçamento público e sua
finalidade atual
A história do orçamento público remonta à Inglaterra (1217), quando o
Rei João, na Carta Magna, expressou que “nenhum tributo ao auxílio será
instituído no reino, senão pelo seu Conselho Comum”.
Em duas palavras, está aí o germe do “planejamento/controle”.
A pressão por regras claras e transparentes quanto a receitas e despesas
públicas permeou as lutas da sociedade nas Revoluções Francesa e Americana
(século XVII) e também na Inconfidência Mineira do Brasil (século XVIII).
Mas foi só a partir do final do século XIX que os orçamentos públicos
passaram a ter a feição atual, com o princípio da anualidade, sua votação
antes do início do exercício, inclusão de todas as previsões financeiras e a nãovinculação da receita às despesas específicas.
A partir da metade do século XX, foi estabelecida uma significativa
diferença entre as práticas orçamentárias norte-americana e europeia. Os EUA
conferem amplos poderes ao Legislativo nessa matéria, enquanto os europeus
prestigiam o Executivo (Cabinet) – e, em ocorrendo qualquer desconfiança, há
a troca do governo no regime parlamentarista.
No Brasil, a Constituição Imperial de 1824, estabelecia que o Ministro da
Fazenda era o responsável pela elaboração e encaminhamento à Assembleia
Geral dos Orçamentos e de todas as “despesas” e “receitas públicas”.
A Constituição de 1891, que se seguiu à proclamação da República,
transferiu ao Congresso a atribuição da elaboração orçamentária, englobando
os Poderes da Nova República.
Revista ENM
413
Com a Constituição outorgada de 1934, no entanto, perde espaço o Parlamento
e volta a reinar absoluto o Executivo – que elaborava e decretava o orçamento.
Diante da redemocratização – Constituição de 1946 –, houve nova alteração:
o Executivo elaborava proposta orçamentária, que depois era discutida e votada
nas duas Casas do Congresso.
Durante o período de ditadura, é desnecessário qualquer outro comentário
sobre o tratamento do tema.
Contudo, com o advento da Constituição de 1988, a matéria passou a ser
apreciada com ênfase e de maneira detalhada1. O Congresso volta a ter papel
destacado.
3. O planejamento como decisão política
A decisão de planejar, coordenar as ações e controlar despesas e investimentos
públicos é essencialmente política.
Vale dizer, depende de coragem e determinação do administrador público,
pois significa imprimir qualidade ao gasto das receitas, de sorte a que sua
conformação atenda, essencialmente, aos anseios sociais. O planejamento e
controle implicam amarras, sadias, ao administrador.
Nosso país não tem uma tradição de planejamento da atividade pública,
tampouco uma vivência grande na elaboração de orçamentos públicos.
A partir de 19402, ocorrem as primeiras tentativas de controle e planos de
metas na administração brasileira3. Sobretudo o “Plano de Metas” (1956/61) pode
ser considerado a grande e pioneira experiência de planejamento público no Brasil.
Até esse momento (em torno de 1961), havia no País uma forte atuação
de movimentos sociais que impulsionavam o planejamento das políticas
públicas. No entanto, a partir de 1970, em plena ditadura, com o fim do
“milagre econômico”, surge a crise fiscal que dele decorre e, com esse malogro,
a escassez de recursos públicos transforma-se na tônica do momento4.
O que se denominou “crise da administração pública” tinha suas raízes
profundas5 na:
Artigos 165 a 169 da CF/88.
“O planejamento no Brasil – Observações sobre o plano de metas”, Ministro Celso Lafer, 1987.
3
Relatório Simonsen: Diagnóstico da Comissão Mista Brasil-EUA (1951); Plano Saute (1948).
4
Foi para buscar o equilíbrio fiscal que o Brasil recorreu a organismos multilaterais de financiamento, como
o BID e Banco Mundial.
5
“Transparência e controle social como paradigmas para gestão pública no Estado Moderno”, Milton
Coelho Neto (RT, 2002).
1
2
414
Revista ENM
a) baixa capacidade e pouca experiência dos órgãos públicos em planejamento,
com consequências na elaboração do deficiente orçamento público;
b) deficiência e falta de controle na política de recursos humanos (pouca
motivação dos servidores);
c) ausência de recursos tecnológicos adequados.
Para superar essa situação de defasagem, que se perdura desde então,
afigura-se necessária uma severa reforma do Estado, que já vem sendo aplicada
em países desenvolvidos. A partir daí, espera-se uma guinada nas políticas
públicas que visem a transformações econômicas e sociais.
A par do indispensável planejamento, conjugado com procedimentos de
ordenamento e controle da despesa pública, a estratégia para a saída da crise, a
permitir melhor gerenciamento das contas públicas, passa por algumas receitas
básicas.
Não só os países em desenvolvimento, mas também as superpotências,
deparam com a “ferrugem” da máquina estatal.
Nos Estados Unidos, entre 1993 e 1996, foi implantado o programa
“Reinventando o Governo: funcionar melhor e custar menos”. Parte-se de
um modelo de gestão com três características básicas: clareza na definição de
objetivos; indicadores de desempenho definidos; sistema de responsabilidade
partilhada.
Nos processos de modernização da administração pública, em quase
todos os países que tiveram sucesso, não foi possível a empreitada sem que
houvesse interação com a sociedade. Em outras palavras, é fundamental
que haja transparência e responsabilidade compartilhada, com medidas
tais como:
a) publicidade de Governo (publicação de orçamentos, balanços, de maneira
clara e transparente);
b) prestação de contas das ações públicas;
c) participação da sociedade na elaboração da proposta pública de orçamento.
A intenção do legislador brasileiro de rumar nessa trilha é patente (artigos
o
9 , § 4o, 32, § 4o, 45, 48, 49 e 67 da Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei
Complementar 101/2000 e artigos 2o, II, XIII, 4o, III, “f ” e § 3o, 40 e 44 do
Estatuto da Cidade – Lei 10.257/2001).
A responsabilidade compartilhada, ademais, não deve ser vista como
evento isolado ou descontínuo: a participação popular é processo dialético de
avaliação e inovação.
Revista ENM
415
O controle social da administração pública, por certo, não exclui os demais
controles, antes os estimula a atuar6.
4. Brevíssimo histórico sobre as formas administrativas do
Judiciário e a evolução quanto à elaboração do seu orçamento
Dos tempos em que os juízes eram os sacerdotes, passando pela fase que das
sentenças surgiam as leis (dos quais o Código de Hamurabi, exposto no Museu do
Louvre, é ainda um exemplo), a imbricação entre religião e direito, o formalismo
do direito arcaico, o direito grego e depois o romano, saltando pela idade média
(o direito feudal), até os dias atuais do direito contemporâneo, a administração da
Justiça passou por enormes transformações. Notadamente, quando o poder deixa
de ser exercido pelos monarcas e passa a existir a ideia de nação e Estado.
Os três grandes sistemas jurídicos modernos, como se sabe, são: o da civil
law (sistema continental ou romano/germânico), em contrapartida ao sistema
da common law (preponderância para os precedentes) e o sistema soviético
(regime socialista).
As fórmulas, portanto, de administração da Justiça são especialmente
variáveis de acordo com o sistema jurídico adotado pelo país e ainda levando
em conta, sobretudo, a forma de Estado e de Governo.
Partindo para o exame histórico da situação peculiar do Brasil, é necessária
a leitura da obra primorosa do magistrado gaúcho Lenine Nequete7, que
conta um pouco da trajetória acerca do funcionamento do Poder Judiciário
no nosso país.
Lembra o Ministro Carlos Mário da Silva Velloso (STF), na apresentação do
trabalho do historiador e magistrado, que a trajetória do Judiciário brasileiro,
desde o Brasil-Colônia, foi longa e penosa. Ele afirma:
(...) essa trajetória sempre foi ascendente. É dizer, a Justiça brasileira,
a partir do descobrimento, a partir, mais exatamente, de 1530,
quando Martins Afonso de Souza foi investido, pelo Rei de Portugal,
de poderes de jurisdição administrativa e judiciária, até os nossos
dias, é uma história de sucessos, de conquistas, com a ampliação – o
que, aliás, é a tônica do constitucionalismo contemporâneo – das
atribuições do Judiciário brasileiro.
6
7
J. Habernas fala em tornar mais real a democracia formal.
O Poder Judiciário no Brasil, quatro volumes, STF, 2000.
416
Revista ENM
Nesse caminho da Justiça brasileira, há uma nota interessante que merece
ser assinalada e que diz respeito diretamente ao tema aqui tratado. Ela está
indelevelmente marcada no regimento que criou a Relação do Rio de Janeiro
(alvará de 13 de outubro de 1751):
Art. 104. Haverá um cofre de duas chaves, em que se receba todo o
dinheiro, que sou servido aplicar para as despesas da Relação; e deste
se fará receita ao Tesoureiro das mesmas despesas, que será o GuardaMor, enquanto eu não mandar o contrário; e das ditas chaves terá
uma o Juiz, que o Governador nomear, e outra o sobredito Tesoureiro,
que de três em três anos dará conta, tomando-lha o Contador, que o
mesmo Governador nomear, e armando-lha o Escrivão desta receita,
que será o Escrivão mais antigo das apelações e agravos.
Tanto quanto no Brasil-Colônia, passando pelo Império, até chegar
à proclamação da República, a atividade judicial era apêndice da função
administrativa, sem qualquer autonomia – especialmente no que tange à ausência
total de orçamento próprio: é que existia o Poder Moderador (na verdade, poder
único), que apagava a existência dos Poderes Legislativo e Judiciário.
Mas foi desenganadamente a partir da República que a magistratura foi
sendo reconhecida, desde o primeiro momento, como integrante de um dos
Poderes do Estado e, paulatinamente, ganhando independência e consolidando
garantias (não dos juízes, mas dos jurisdicionados).
Desde a Constituição de 1891 até a atual de 1988, procurou-se preservar a
intangibilidade do Poder Judiciário.
Mas em tempo algum houve regras tão claras quanto à transparência e ao
engajamento da magistratura no funcionamento da máquina judiciária como
atualmente existe.
No tocante à transparência dos atos judiciais e administrativos e também à
garantia de autonomia administrativa e financeira, vale mencionar os artigos
93, IX e X, e 99 da Constituição/888.
“Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da
Magistratura, observados os seguintes princípios:
IX. todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas
as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às
próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito
à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação
dada pela Emenda Constitucional no 45, de 2004)
8
Revista ENM
417
Cumpre lembrar, por oportuno, o Princípio Kantiano de transparência,
que faz suspeitar como injusto tudo aquilo que não possa, de algum modo,
tornar-se público9.
Por outro lado, há ainda tribunais que criaram ouvidorias, que, quando
atuantes, conferem transparência e servem de canal de contato entre o cidadãojurisdicionado e a administração judiciária.
No tocante à autonomia administrativa e financeira, nesse mesmo passo,
há também muito ainda por fazer.
À falta de um percentual fixo das receitas líquidas do Estado, que deveria ser
estabelecido no texto constitucional, o que ocorre é que a grande maioria dos
tribunais necessita da famosa “suplementação de verba”, uma porta escancarada
para a “troca de favores” e condescendências administrativas mediante práticas
intoleráveis e incompatíveis com a ética que deve nortear o administrador público.
Para ilustrar a questão, eis os números do orçamento de 2009 em âmbito federal:
– Poder Executivo: R$1.548.391.426.868,00 (97,59%);
– Poder Judiciário: R$30.734.402.593,00 (1,94%);
– Poder Legislativo: R$7.559.144.527,00 (0,48%).
E a Lei da Responsabilidade Fiscal ainda estabelece o índice de 6%
para o limite de gastos com pessoal do Judiciário (art. 20, II, “b”, da Lei
Complementar 101/2002)10.
X. as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as
disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros; (Redação dada pela
Emenda Constitucional no 45, de 2004)
Art. 99. Ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira.
§ 1o - Os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados conjuntamente
com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias.
§ 2o - O encaminhamento da proposta, ouvidos os outros tribunais interessados, compete:
I - no âmbito da União, aos Presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com a
aprovação dos respectivos tribunais;
II - no âmbito dos Estados e no do Distrito Federal e Territórios, aos Presidentes dos Tribunais de Justiça,
com a aprovação dos respectivos tribunais.
§ 3o Se os órgãos referidos no § 2o não encaminharem as respectivas propostas orçamentárias dentro do prazo
estabelecido na lei de diretrizes orçamentárias, o Poder Executivo considerará, para fins de consolidação da
proposta orçamentária anual, os valores aprovados na lei orçamentária vigente, ajustados de acordo com os
limites estipulados na forma do § 1o deste artigo. (Incluído pela Emenda Constitucional no 45, de 2004)
§ 4o Se as propostas orçamentárias de que trata este artigo forem encaminhadas em desacordo com os
limites estipulados na forma do § 1o, o Poder Executivo procederá aos ajustes necessários para fins de
consolidação da proposta orçamentária anual. (Incluído pela Emenda Constitucional no 45, de 2004)
§ 5o Durante a execução orçamentária do exercício, não poderá haver a realização de despesas ou a
assunção de obrigações que extrapolem os limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, exceto
se previamente autorizadas, mediante a abertura de créditos suplementares ou especiais. (Incluído pela
Emenda Constitucional no 45, de 2004)
9
Kant, “Zum Ewigen Frieden”, Volume: XI, Werkausgabe, Frankfurt Aum Main, 1988, p. 250.
10
A propósito da origem da LRF como imposição do FMI e sua inspiração na legislação semelhante do
418
Revista ENM
A Suprema Corte já teve a oportunidade de ressaltar a importância da
autonomia financeira do Poder Judiciário ao apreciar a Questão de Ordem no
Agravo Regimental no Mandado de Segurança 21.291-8/RJ, Relator Ministro
Celso de Mello, quando deixou consignado:
O autogoverno da Magistratura tem, na autonomia do Poder
Judiciário, o seu fundamento essencial, que se revela verdadeira pedra
angular, suporte imprescindível à asseguração da independência
político-institucional dos Juízos e dos Tribunais.
O legislador constituinte, dando consequência à sua clara
opção política – verdadeira decisão fundamental concernente à
independência da Magistratura – instituiu, no art. 168 de nossa
Carta Política, uma típica garantia instrumental, assecuratória da
autonomia financeira do Poder Judiciário.
A norma inscrita no art. 168 da Constituição reveste-se de caráter
tutelar, concebida que foi para impedir o Executivo de causar, em
desfavor do Judiciário, do Legislativo e do Ministério Público, um
estado de subordinação financeira que comprometesse, pela gestão
arbitrária do orçamento – ou, até mesmo, pela injusta recusa de
liberar os recursos nele consignados –, a própria independência
político-jurídica daquelas Instituições.
Em termos de direito comparado, buscando análise apenas em dois
paradigmas (norte-americano e europeu), assevere-se que, nos EUA, tanto
a elaboração como a destinação do orçamento do Judiciário tem ampla
participação popular. Inclusive, em alguns estados, o custeio dos tribunais é
proveniente de uma combinação de recursos públicos e privados.
Em relação à Europa, houve uma proposta da Associação Europeia de
Magistrados para a Democracia e as Liberdades (MEDEL) para o “Estatuto
Europeu da Magistratura”, estando assim redigidos os artigos 3.2, 3.3 e 3.4:
3.2. Na sua composição, metade, pelo menos, do Conselho deve
ser constituída por magistrados eleitos pelos seus pares segundo a
regra da representação proporcional. O Conselho incluirá, ainda,
personalidades designadas pelo parlamento. Todos os seus membros
devem ser nomeados por tempo determinado.
Estado Unitário da Nova Zelândia, vale conferir “Aspectos Constitucionais da LRF”, Jessé Torres, Revista
da EMERJ, v. 4, no 15, 2001, p. 63.
Revista ENM
419
3.3. O parlamento vota o orçamento da Justiça sob proposta do
Conselho Superior da Magistratura e do Governo.
O Conselho deve dispor de orçamento próprio para executar as suas
atribuições.
3.4. As reuniões do Conselho devem ser públicas, salvo nos casos
referidos no ponto 8.2., § 2o, que podem ser à porta fechada.
As actas, decisões, relatórios, pareceres e recomendações, bem como
o orçamento e as contas devem ser publicados. As decisões relativas
ao recrutamento, à colocação e à disciplina dos magistrados devem
ser fundamentadas e passíveis de recurso contencioso para um
Tribunal Supremo.
Anualmente, o Conselho deve apresentar ao Parlamento o relatório
da sua actividade e do estado de justiça.
5. A posição de Dalmo Dallari
Convém transcrever trecho da obra “O Poder dos Juízes”11, em que Dalmo
Dallari bem analisa a questão:
É necessária a mudança de atitude do Judiciário no relacionamento
com os demais ramos do governo, saindo da acomodação em que tem
vivido até hoje, para que possa promover seu próprio aperfeiçoamento.
Embora definido na Constituição como um dos Poderes da República,
desde 1891, o Judiciário tem sido submisso ao Executivo, acomodandose numa posição secundária, em troca de cortesias ou de vantagens para
os seus dirigentes. Inúmeras vezes a acomodação do Poder Judiciário
tem sido assegurada graças à concessão de edifícios suntuosos para os
tribunais, outras vezes pela tolerância quanto a vícios administrativos,
que até agora permanecem fora de qualquer controle.
A maior evidência da acomodação está no orçamento, tanto
no plano federal quanto no estadual. O Judiciário elabora sua
proposta orçamentária, prevendo o aumento do número de juízes,
a ampliação e modernização de seu equipamento material e outras
coisas que ajudariam a melhorar seu desempenho. Essa proposta
sofre cortes substanciais no Executivo, que prepara o projeto geral
de lei orçamentária, e, às vezes, também no Legislativo, que emenda
11
O Poder dos Juízes, Editora Saraiva, 3 ed. 2007, p. 145-146.
420
Revista ENM
e vota o projeto. E o Judiciário aceita passivamente esses cortes,
como se não fosse um dos Poderes do mesmo nível dos demais.
Existe aí um paradoxo, pois a elaboração de uma proposta
orçamentária prevendo inovações importantes autoriza a suposição
de que os órgãos dirigentes dos tribunais estão conscientes de seu
atraso e querem a modernização. Entretanto, a passividade com
que recebem os cortes orçamentários dá a impressão de que ficam
felizes por terem a possibilidade de transferir a responsabilidade,
mantendo as coisas como estão e alegando que a culpa é dos outros
Poderes, que lhes negam os recursos.
A alegação de que o Poder Judiciário é um Poder desarmado e sem
a possibilidade de impor sua vontade é absolutamente inaceitável.
Com efeito, basta lembrar que foi o lobby do Judiciário que impediu
a criação de um Tribunal Constitucional no Brasil, como também
bloqueou todas as propostas de criação de um órgão de controle
das atividades administrativas dos tribunais. Quanto a este ponto,
a resistência só foi superada em 2004, com a aprovação da Emenda
Constitucional n. 45. Assim, portanto, é fundamental que o
Judiciário deixe de alegar que “o inferno são os outros” e passe a agir
como um Poder.
Reconhecendo publicamente suas deficiências e dando publicidade
às suas propostas de modernização, o Judiciário terá a seu lado a
opinião pública. Desse modo ele estará agindo na condição que lhe
é assegurada pela Constituição, ou seja, como um dos Poderes da
República. E, sendo reconhecido e respeitado como tal, o Judiciário
passará a ter a força necessária para defender com eficiência sua
própria melhoria.
6. A elaboração da proposta orçamentária do Poder
Judiciário com a participação dos juízes
O ciclo orçamentário desdobra-se em quatro etapas:
a) elaboração das propostas;
b) aprovação das mesmas propostas, agora consolidadas e convertidas em lei;
c) execução;
d) controle (durante e após o exercício).
No Rio de Janeiro, em 2002 e 2003, houve a solicitação da Associação dos
Revista ENM
421
Magistrados do Estado do Rio de Janeiro – AMAERJ para que os magistrados
pudessem participar da proposta orçamentária e da elaboração do plano bienal.
Em 2008, o empenho em ouvir os magistrados no que diz respeito à
elaboração do orçamento do Poder Judiciário também se verificou em outros
Estados da Federação, como, por exemplo, em Pernambuco e Espírito Santo12.
Apesar dessas louváveis iniciativas, a realidade nacional é, infelizmente,
bem diversa.
Na “1a Pesquisa sobre Condições de Trabalho dos Juízes”, realizada pela
Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB no ínício de 2009, constatouse que 99% dos juízes desconhecem o percentual do orçamento repassado às
respectivas varas, circunstância a impedir a solução dos diversos problemas
enfrentados pelos magistrados e a melhoria na entrega da prestação jurisdicional13.
A falta de transparência na discussão do orçamento prejudica não somente
os juízes de primeira instância – que lidam mais diretamente com as dificuldades
vividas no dia a dia para prestar adequadamente a jurisdição, tendo em vista
o grande número de processos e a escassez de pessoal, de estrutura física
adequada e de equipamentos –, mas principalmente os jurisdicionados.
A proposta é uma só: melhores condições de trabalho para um atendimento
adequado ao cidadão, usuário do sistema judicial.
No entanto, não se olvida aqui o fato geral, aplicável ao Judiciário, de que
“quando algum governante decide abrir espaço para a cidadania participar
das decisões públicas, a burocracia como grupo faz tudo para coagir uma
real participação. Daí a necessidade de atuar com muita sabedoria política
para assegurar a preservação dos mecanismos que institucionalizam a
participação”14.
7. Conclusão
Em tempos atuais de globalização econômica, o mercado passa a ser
colocado como instância máxima de regulação social.
O fenômeno denominado de “novo capitalismo” desconhece fronteiras
jurídicas entre as nações e permite o trânsito de capitais sem qualquer controle
governamental.
12
http://www.tjpe.gov.br/noticias_ascomSY/ver_noticia.asp?id=5405&argumento=magistrados
http://www.tj.es.gov.br/cfmx/portal/Novo/noticias.cfm?Cd=577
13
Boletim AMB Informa, Edição 114, de 15 de fevereiro a 15 de março de 2009.
14
Enrique Saraiva, Cadernos de Estudos da EPAB/FGV, dezembro/98.
422
Revista ENM
A transnacionalização dos mercados, no dizer do professor José Eduardo
Faria, coloca o Judiciário em uma encruzilhada, um Poder em busca de uma
identidade funcional.
Em relação ao orçamento do Poder Judiciário, em regra, verifica-se um
quadro bastante complexo, a demonstrar que não houve preparo adequado
para resolver os grandes problemas de estrutura do Poder.
A transparência administrativa é exigência dos nossos tempos.
O momento, ademais, é de participação.
A magistratura quer estar engajada e atuante, contribuindo para identificar
os pontos em que haja possibilidade de melhorar a sua atividade-fim.
A participação ordenada, transparente e qualificada de magistrados na
elaboração da proposta orçamentária de certo lhe conferirá maior teor de
aptidão para responder aos reptos do novo século, em matéria de eficiência no
desempenho da jurisdição, afastando a concentração de poderes e superando
a compartimentação que caracterizam a cultura administrativa da elaboração
orçamentária. Será mais um encargo, dentre tantos outros que integram o
cotidiano do juiz. Mas, afinal, esta é a responsabilidade do Judiciário, a que
decerto corresponderão a vocação e o compromisso a que a toga nos conclama.
Revista ENM
423
Artigos Gerais
A função de controle
como fundamento do
Estado democrático de
direito
Lucas Rocha Furtado
Mestre em Direito Público pela UNB e Doutorando em
Direito pela Universidade de Salamanca/Espanha
Procurador-Geral do Ministério Publico junto ao
Tribunal de Contas da União
Professor da Unb
O que se pretende com as reflexões contidas neste estudo é destacar, em
primeiro lugar, a importância da função de controle para o Estado Democrático
de Direito e o papel do princípio da eficiência como resultado da evolução
desse controle. Num segundo momento, são feitas considerações acerca da
“jurisdição de contas” e a autonomia financeira do Judiciário, bem como é
analisada a extensão da revisão judicial das decisões do Tribunal de Contas da
União. Na parte final do estudo, aborda-se o controle externo judicial sobre
os atos do Poder Executivo e como esse controle deve ser exercido quando
a questão objeto de revisão judicial estiver pendente de decisão no âmbito
administrativo.
1. A função de controle do Estado e Democracia
A necessidade de que toda e qualquer atividade desenvolvida pelo Estado
esteja sujeita a diferentes níveis ou mecanismos de controle se faz presente desde
que se concebeu o Estado de Direito. Nos estudos de Montesquieu sobre a
separação (ou distribuição) dos poderes ou funções do Estado, a importância e
a necessidade de controle resultam evidentes. De fato, é perfeitamente correto
afirmar que a essência da teoria da separação dos Poderes se sustenta na ideia
de que nenhum Poder do Estado deve assumir atribuições que não possam ser,
de algum modo, controladas por outro Poder.
424
Revista ENM
Alice Gonzáles Borges, referindo-se a Montesquieu, anota que nos idos do
século XVIII o ilustre pensador sentenciava: “temos a experiência eterna de
que todo homem que tem em mãos o poder é sempre levado a abusar dele,
e assim irá seguindo, até que encontre algum limite. E, quem o diria, até a
própria virtude precisa de limites”1
Após a Segunda Guerra, com a transição do Estado Liberal para o Estado
Social, o poder público assume definitivamente o papel de promotor e
garantidor do desenvolvimento econômico e social. É fato que para assegurar
a concretização dos direitos sociais o Estado teve que ampliar suas estruturas
administrativas necessárias ao desempenho das atividades públicas. A evolução
das tarefas executivas do Estado, decorrente das novas e crescentes demandas da
sociedade, resultou, de modo paralelo, na necessidade de serem desenvolvidas
novas e diferentes formas para o controle dessas atividades.
Controle político, controle judicial, controle administrativo, controle de
mérito, de legalidade, de resultados etc., enfim, diversos modelos e sistemas
têm sido utilizados pelas democracias modernas para o acompanhamento e
a fiscalização da atividade administrativa do Estado.
Não só as formas de controle se diversificaram, mas também a sua
qualidade. Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o novo quadro
político para as democracias modernas que se apresenta no segundo pósguerra despertou uma “renovada consciência cidadã e, com ela, reclamos de
legitimidade, que ficaram abafados por quase um século” 2.
Sob essa perspectiva, continua o autor, as demandas passam “... a ter uma
ancoragem mais profunda na ética, crescendo as exigências, não apenas de
probidade como, inovadoramente, de qualidade na gestão da coisa pública,
enriquecendo os conceitos correspondentes de controle de gestão financeiroorçamentária”.3(grifado no original)
Nesse contexto de novas exigências no qual se insere a gestão pública
também são colocados novos desafios à função de controle, a qual deve dispor
de mecanismos adequados de fiscalização a fim de conferir legitimidade
democrática à administração das finanças do Estado.
BORGES, Alice Gonzales. “O controle jurisdicional da administração pública”. Revista de Direito
Administrativo, Rio de Janeiro, v. 192, p. 49-60, abr./jun. 1993, p.51
2
“O Parlamento e a Sociedade como Destinatários do Trabalho dos Tribunais de Contas”, in: SOUZA,
Alfredo José de et al. O novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. e
ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 110.
3
Idem.
1
Revista ENM
425
As mudanças são necessárias, como alerta Diogo de Figueiredo Moreira
Neto, porque a administração pública não mais se submete apenas “... ao
tradicional crivo de legalidade, em que se demandava apenas a qualidade
de eficácia, mas, ainda em acréscimo, aos da licitude e da legitimidade,
justificando-se, respectivamente, perante as demandas, pela eficiência e
pela moralidade administrativas, que despontam como novos princípios
constitucionais”.4 (grifado no original)
Destaca-se, por exemplo, a observância ao princípio da eficiência na gestão
de recursos públicos (CF, art. 37, caput). É importante ressaltar que este
princípio representa um dever haurido do texto constitucional e não mera
opção que possa deixar de ser adotada pela Administração. O administrador
não pode optar por ser ineficiente. Se determinada solução se apresenta como
ineficiente, ou seja, se a relação custo-benefício da decisão for desvantajosa
quando comparada a alternativas igualmente lícitas, não possui o administrador
qualquer liberdade ou poder para adotá-la.
Não é correto afirmar que o dever de eficiência circunscreve-se ao campo
de discricionariedade da Administração, razão por que se for demonstrado
que a adoção de determinada solução fere o princípio da eficiência, ela não
deve ser considerada inoportuna ou inconveniente, mas sim ilegítima.
Assim, se os resultados da gestão pública, à luz de um patamar aceitável
de eficiência, forem absurdos, não há que se falar em mera conveniência
administrativa. O administrador se sujeita ao dever de eficiência imposto pelo
art. 37 da Constituição Federal e caso ocorra violação grosseira desse dever,
os atos praticados devem ser anulados, e quem o praticou, caso não apresente
razões plausíveis que justifiquem a gestão calamitosa, deve ser punido.
Não resta dúvida de que a fraude, a malversação, o desvio ou a prática de
atos ilegais e ilegítimos merecem a reprovação da sociedade e a severa punição
por parte dos órgãos de controle. Idêntica reprovação não tem sido verificada,
até o momento, especialmente nos meios jurídicos, nas situações em que o
gestor não é eficiente. Do ponto de vista prático, todavia, se a creche não
foi construída, se o hospital não foi reformado ou se seus equipamentos não
funcionam, se a estrada está esburacada, se a campanha de vacinação infantil
não alcançou seus objetivos porque o gestor desviou os recursos públicos ou
porque adotou soluções absurdamente ineficientes ou ineficazes, o resultado é
4
Idem, p. 111.
426
Revista ENM
o mesmo. A população sofre as mesmas consequências em qualquer das duas
situações, quer ocorra fraude, quer se verifique ineficiência.
Advirta-se, no entanto, que não se trata de buscar mecanismos de punição para
o gestor público que não tenha adotada a solução mais eficiente. Claro está que
nem sempre é possível indicar a solução ótima para cada caso. Trata-se, a rigor,
de defender a tese de que o aludido princípio impõe ao administrador público o
dever constitucional de evitar soluções absurdamente contrárias à racionalidade
administrativa e que a sua inobservância importa em nulidade do ato.
Em Estados modernos, dos quais se esperam resultados que justifiquem e
legitimem a sua própria existência, é imprescindível que se proceda ao controle
da eficiência como aspecto do controle de legitimidade, a ser desempenhado
pelo Poder Judiciário em parceria com os tribunais de Contas.
2. O controle externo parlamentar
Esclareça-se, desde logo, que a menção ao “controle externo” refere-se
ao critério de classificação doutrinário que leva em consideração o órgão
responsável pelo exercício do controle. Se o controle sobre determinado ato é
feito pela mesma unidade administrativa ou pelo mesmo Poder que praticou
o ato, ter-se-á o controle interno. O controle externo, por sua vez, é feito por
Poder ou unidade administrativa (órgão ou entidade) distintos daquele de
onde o ato ou atividade foram emanados. Se o Poder Legislativo, por exemplo,
é chamado a atuar em relação à determinada atividade ou a certo ato praticado
no âmbito do Poder Executivo ou do Poder Judiciário ter-se-á hipótese de
controle externo.
Interessa ao presente estudo, neste momento, analisar o controle financeiro
da Administração Pública exercido pelo Congresso Nacional, com o auxílio
do Tribunal de Contas da União5, conforme previsto nos artigos 70 e 71 da
Constituição Federal.
Feitas essas breves considerações acerca do controle externo Parlamentar,
5
O titular do controle externo da atividade financeira do Estado é o Congresso Nacional, de acordo com
o disposto no art. 70 da CF. Neste dispositivo, quando é dito que esse controle será exercido com o auxílio
do Tribunal de Contas da União não se pode extrair daí que exista subordinação do TCU em relação ao
Congresso Nacional. É que o termo “auxílio” está ali previsto para indicar o caminho para o exercício do
controle externo. Vale dizer, portanto, que somente por intermédio do TCU pode o Congresso Nacional
exercer as atribuições indicadas na Constituição Federal (art. 71) relacionadas ao exercício do controle
financeiro da atividade administrativa do Estado. Controle externo é atividade eminentemente jurídica, e
não política. Esta é a razão pela qual os mecanismos para o exercício do controle financeiro são conferidos
ao TCU, órgão dotado de autonomia administrativa, financeira e funcional, e não ao Congresso Nacional.
Revista ENM
427
cabe, então, cotejá-lo com um dos princípios que igualmente marcam o Estado
Democrático de Direito: a independência e autonomia do Poder Judiciário6.
Conforme leciona Clèmerson Merlin Clève, citado por José Maurício
Conti7, “a independência do Judiciário é assegurada seja em virtude da (i)
autonomia institucional, seja, ainda, em virtude da (ii) autonomia funcional
concedida à magistratura”.
O referido autor esclarece que8:
A autonomia institucional, por sua vez, desdobra-se nos princípios
do autogoverno, da auto-administração, da inicialidade legislativa
e da auto-administração financeira; já a autonomia funcional,
nas garantias da Magistratura de Vitaliciedade, inamovibilidade
e irredutibilidade de vencimentos, bem como nas vedações a que
estão sujeitos os Juízes.
Claro está que a fiscalização a cargo do Tribunal de Contas da União,
nos termos das competências que lhe foram asseguradas pela Constituição
(auditorias, inspeções, atos sujeitos a registro, julgamento de contas etc.)
coaduna-se perfeitamente com o postulado da independência Judiciário, até
porque a atuação do TCU não se presta ao controle da função jurisdicional
do Estado9. Cabe a este órgão de controle externo cuidar da gestão financeira,
orçamentária, patrimonial, contábil e operacional do poder público.
O Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, ao discorrer
sobre o vínculo do controle externo com o princípio republicano, faz as
seguintes ponderações:
Afirma José Maurício Conti que, no Brasil, “a autonomia financeira do Poder Judiciário exige compatibilidade
entre as receitas que lhe são destinadas e as necessárias para cumprir adequadamente as atribuições que a
Constituição lhe destina. Pressupõe ainda a capacidade para elaborar sua proposta orçamentária nos
termos do art. 99 da CF, bem como a observância dos valores que lhe foram destinados no orçamento,
sem a possibilidade de redução durante sua execução. Os recursos que cabem ao Poder Judiciário devem ser
entregues tempestivamente, na forma do art. 168 da CF, devendo ter liberdade para administrá-los, observadas
as disposições constitucionais”. A Autonomia Financeira do Poder Judiciário, São Paulo: MP Ed., 2006, p. 145.
7
Idem.
8
Idem, p. 92.
9
Fredie Diddier Jr., ao tratar da impossibilidade de controle externo da atividade jurisdicional, afirma que
essa função estatal “tem por característica marcante produzir a última decisão sobre a situação concreta
deduzida em juízo: aplica-se o Direito a essa situação, sem que se possa submeter essa decisão ao controle
de nenhum outro poder. A jurisdição somente é controlada pela própria jurisdição. A jurisdição, como se
sabe, controla a função legislativa (controle de constitucionalidade e preenchimento de lacunas) e a função
administrativa (controle dos atos administrativos), mas não é controlada por nenhum dos outros poderes. À
jurisdição cabe dar a última palavra, a solução final ao problema apresentado” (in Curso de Direito Processual
Civil, volume 1, 11a Ed., JusPODIVM, São Paulo: 2009, p.75/76).
6
428
Revista ENM
Tão elevado prestígio conferido ao controle externo e a quem dele mais
se ocupa, funcionalmente, é reflexo direto do princípio republicano.
Pois, numa República, impõe-se responsabilidade jurídica pessoal a
todo aquele que tenha por competência (e consequente dever) cuidar
de tudo que é de todos, assim do prisma da decisão como do prisma
da gestão. E tal responsabilidade implica o compromisso da melhor
decisão e da melhor administração possíveis. Donde a exposição de
todos eles (os que decidem sobre a “res publica” e os que a gerenciam)
à comprovação do estrito cumprimento dos princípios constitucionais
e preceitos legais que lhes sejam especificamente exigidos. A começar,
naturalmente, pela prestação de contas das sobreditas gestões
orçamentária, financeira, patrimonial, contábil e operacional.10
O Tribunal de Contas da União, no exercício de suas competências
constitucionais exclusivas, desempenha função típica do Poder Legislativo de
controle externo, dispondo de autonomia funcional, insusceptível, pois, de ser
obstada por qualquer outra forma de controle.
Certo é que a possibilidade de que todos os atos praticados pelo Estado possam
ser controlados, seja por meio de mecanismos internos, seja por meio de órgãos
ou de instrumentos externos, constitui corolário do princípio democrático.
É descabido, portanto, aos administradores públicos, de todos os Poderes da
República, considerarem ameaça ou invasão ao seu âmbito de atuação o fato de
os seus atos serem objeto de questionamento na esfera administrativa ou fora
dela (mediante controle externo) sob a ótica da sua conformação ao Direito.
Questão recorrente quando se analisa as competências do Poder Judiciário
e dos Tribunais de Contas refere-se ao alcance da revisão judicial das decisões
proferidas por estes últimos. Para este mister, é preciso compreender a natureza
das deliberações das Cortes de Contas e a acepção do termo jurisdição.
Tradicionalmente, dizia-se que o administrador atua no limites da lei
para realizar o interesse público, ao passo que o papel precípuo do juiz seria
o de aplicar o Direito ao caso concreto. Não há necessidade de exame muito
aprofundado para se perceber que essas afirmações não se sustentam. Acaso ao
juiz é dado – em seu processo de aplicação do Direito – agir fora deste, além dos
“O Regime Constitucional dos Tribunais de Contas”, in: SOUZA, Alfredo José de et al. O novo Tribunal
de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2005.
10
Revista ENM
429
limites da norma jurídica em exame? Ou, ao contrário, no processo conduzido
pelo juiz de aplicação do Direito pode ele ferir o interesse público? Em relação ao
administrador, ao contrário, há como defender que ele adota soluções para casos
concretos sem aplicar o Direito? Tanto o juiz quanto o administrador público
atuam nos limites do Direito e com vistas à realização do interesse público.
No caso do TCU, suas decisões muito mais se aproximam dos atos
judiciais do que dos tradicionais atos administrativos. Prova disso é que a
Constituição assegurou aos seus ministros as garantias e prerrogativas próprias
dos magistrados (CF, art. 73, § 3o). Ademais, ao proferir suas decisões, o TCU
o faz no âmbito da sua jurisdição de controle (O Tribunal de Contas da União
(...) tem sede no Distrito Federal, quadro próprio e jurisdição em todo o
território nacional – CF, art. 73, caput).
A esse respeito, Cretella Júnior11 afirma que “o emprego do verbo ‘julgar’ e dos
substantivos ‘julgamento’ e ‘jurisdição’, em dispositivos constitucionais, induziu,
primeiro, os membros dos tribunais de Contas – ministros e conselheiros – ao erro,
imaginando que os vocábulos tinham sido empregados com o mesmo sentido que
têm na nomenclatura técnica do direito processual”. Fala ainda o autor que “os
constituintes cometem erro e que o cientista do direito (...) vai buscar, nos cultores
dos vários ramos do direito, a acepção correta dos vocábulos”.
Antes de qualquer consideração acerca da opinião do autor, cumpre-nos
examinar alguns conceitos de jurisdição.
Cândido Dinamarco12 afirma que “jurisdição é atividade pública e
exclusiva com a qual o Estado substitui a atividade das pessoas interessadas e
propicia a pacificação de pessoas ou grupos em conflito mediante a atuação
da vontade do direito em casos concretos”. Galeno Lacerda, citado por Athos
Gusmão Carneiro13, define o instituto como “a atividade pela qual o Estado,
com eficácia vinculativa plena, elimina a lide, declarando e/ou realizando o
direito concreto”. Se formos buscar conceito comum ou vulgar de jurisdição,
podemos utilizar a fórmula apresentada no Dicionário Aurélio14: “Poder
atribuído a uma autoridade para fazer cumprir determinada categoria de leis e
punir quem as infrinja em determinada área”.
11
Natureza das Decisões do Tribunal de Contas. RDA. N. 166, out./dez. 1986, p. 9 apud Benjamin Zymler,
p. 429.
12
Fundamentos do Processo Civil Moderno, Vol. I, São Paulo: Malheiros, 4. ed. 2001, p. 115.
13
In Jurisdição e Competência, 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
14
In Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2. ed. Revista e Ampliada, Ed. Nova Fronteira.
430
Revista ENM
Em todos os conceitos de jurisdição é possível identificar alguns elementos
comuns. O primeiro reside no fato de que se trata de atividade estatal; o
segundo, de que se trata de atividade por meio da qual se aplica o direito ao
caso concreto. O conceito apresentado por Galeno Lacerda acrescenta, além
desses dois elementos, outra característica à jurisdição, a coisa julgada.
Ao se examinar os dois primeiros elementos (de que se trata de atividade
estatal com vista à aplicação do direito a situações concretas), não resta
dúvida de que o conceito de jurisdição alcança a atividade desenvolvida pelo
TCU. O único elemento do conceito que não se mostra aplicável à atividade
desenvolvida pelo TCU diz respeito à imutabilidade das suas decisões. Este
elemento, relacionado à coisa julgada, é, no entanto, acidental e somente parte
da doutrina o adota.
Consoante preconiza Fredie Didier Jr.15, a coisa julgada é “situação
jurídica que diz respeito exclusivamente às decisões jurisdicionais”. Segundo
afirma, mesmo no campo da jurisdição propriamente dita, a coisa julgada
não é qualidade ou efeito imprescindível: “é uma opção política do Estado;
nada impede que o legislador, em certas hipóteses, retire de certas decisões
a aptidão de ficar submetida à coisa julgada; ao fazer isso, não lhes tiraria
a ‘jurisdicionalidade’. A coisa julgada é situação posterior à decisão, não
podendo dela ser sua característica ou elemento de existência”.
Vê-se, portanto, que o conceito de jurisdição não se mostra tão estranho
à atividade dos Tribunais de Contas quanto poderia supor quem, de forma
desavisada, lesse as palavras de Cretella Junior acerca do tema.
As palavras do referido autor refletem a visão que imperava entre os
‘cientistas’ do direito processual – e que ainda impera em alguns círculos
jurídicos – que negavam, a partir de premissas totalmente equivocadas, a
existência do processo administrativo. Esta visão, mais do que qualquer outra
coisa, reflete o desconhecimento acerca do moderno Direito administrativo
e das distinções entre o exercício das atividades judicial e administrativa.
De acordo com essa visão equivocada do Direito administrativo, a atividade
administrativa se desenvolvia por meio de atos administrativos isolados
e desordenados. Atualmente, a atividade administrativa é exercida como
decorrência de decisões produzidas em processos administrativos, sujeitos ao
devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa. O ato administrativo
15
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, PODIVM, 11. ed., São Paulo: 2009, p. 76.
Revista ENM
431
continua a ser meio básico para o Estado exercer sua função executiva. Esta
função se torna mais democrática, mais transparente e legítima quando o ato
administrativo passa ser considerado o resultado do processo administrativo e
não fenômeno isolado.
O TCU exerce jurisdição administrativa e, no desempenho dessa tarefa,
julga as contas dos gestores públicos.
Não se reconhece às decisões do TCU – é evidente – natureza judicial
em razão de dois aspectos básicos: 1. Não integram os tribunais de Contas
o Poder Judiciário; e 2. As decisões proferidas pelos tribunais de Contas
se regem por normas de Direito administrativo e constitucional, não pelo
Direito processual.
A possibilidade de o TCU agir de ofício – na instauração e na condução de
processos – constitui particularidade estranha ao processo judicial, e impede
qualquer tentativa de enquadramento das decisões dos tribunais de Contas
como decisões judiciais. Razões decorrentes do ordenamento jurídico vigente,
e não do voluntarismo jurídico de alguns, impedem que se confira autoridade
de coisa julgada judicial às decisões do TCU. Esta circunstância não impede
que se reconheça (1) que o TCU exerce jurisdição, (2) que o TCU julga contas
e (3) que as decisões do TCU se pautam pelo processo administrativo.
Deve-se reconhecer, ademais, que a estatura constitucional das decisões
proferidas pelas cortes de Contas – cuja natureza executiva decorre de
dispositivo constitucional expresso (CF, art. 71, § 3o) – impossibilita a
equiparação destas decisões, especialmente daquelas que julgam contas, a
meros atos administrativos.
Ainda que sujeitas ao controle judicial, as decisões dos tribunais de Contas
justificam a adoção de controle judicial menos invasivo, devendo o Poder
Judiciário promover a sua anulação somente em casos de aplicação absurda
do Direito ou por falhas formais do processo, de que seria exemplo a não
observância do contraditório ou da ampla defesa. Admitir que matérias de fato
ou de direito examinadas por tribunais de Contas possam ser completamente
reexaminadas, em todos os seus aspectos, pelo Poder Judiciário, além de
importar em absoluta quebra de racionalidade do sistema – afinal qual a
utilidade desses tribunais se tudo o que eles decidissem pudesse ser revisto pelo
Poder Judiciário? –, transferiria para o Judiciário a competência para julgar
contas, competência exclusiva dos tribunais de Contas.
A constatação de que as decisões proferidas pelos tribunais de Contas, não
432
Revista ENM
obstante sua natureza administrativa16, encontram-se em patamar jurídico mais
elevado que os demais atos administrativos foi feita pelo STF no julgamento do
MS 24.544/DF17. Nesta ocasião, o STF reconheceu executoriedade18 à decisão
do TCU, em razão das particularidades presentes no processo conduzido
no âmbito do Tribunal ‘de colorido quase jurisdicional’ – na expressão de
Sepúlveda Pertence (MS-23550/DF) –, executoriedade não reconhecida à
Administração Pública.
Se a Constituição institui órgão de controle externo a quem incumbe a
função de fiscalizar a Administração Pública, atribuindo-lhe, inclusive, poderes
sancionatórios, é evidente que as decisões deste órgão não estão no mesmo
nível dos atos administrativos ordinários. O TCU deve ter a palavra final sobre
a Administração Pública, com a ressalva de que a questão sempre poderá se
submetida ao Poder Judiciário. A revisão judicial, todavia, deve circunscreverse aos casos de afronta ao devido processo legal ou quando a decisão do TCU
for absurdamente contrária ao direito. Nestas hipóteses, a decisão judicial
deve tão-somente anular aquela proferida pelo Tribunal de Contas, devendo o
processo ser restituído a este último para nova manifestação.
3. Controle externo judicial
Dentre os diferentes mecanismos de controle previstos em nosso texto
constitucional, o controle judicial ganha importância especial. A Constituição
Federal de 1988 (art. 5o, XXXV), ao dispor em seu capítulo sobre os direitos
e garantias fundamentais, afirma que a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direitos, elevando o controle ou tutela judicial à
categoria de princípio básico do Estado moderno.
O que se espera do Estado moderno e democrático é racionalidade e
equilíbrio no exercício de todas as suas funções. Nos momentos em que o
sistema democrático fraqueja – situação que não raro se verifica em países da
16
A natureza administrativa da atuação do TCU não lhe faculta a possibilidade de descumprir decisão
proferida em instância judicial e amparada pelo manto da coisa julgada. No Julgamento do MS no 23.758/
DF (Informativo STF no 302), o eg. STF firmou o entendimento de que se a decisão judicial baseara-se em
premissas errôneas, deve ser ela desconstituída por meio de ação rescisória, e não mediante deliberação do
TCU (conforme artigo publicado no citado Informativo STF no 302).
17
No julgamento deste Mandado de Segurança, o STF considerou legítima determinação feita pelo TCU
a fim de que a Câmara dos Deputados promovesse desconto em contracheque de servidor, mesmo contra a
vontade deste, prerrogativa que o STF negou aos órgãos da Administração Pública.
18
A executoriedade, no caso, tratava de saber se poderia ser promovido o desconto em folha de débito
apontado pelo TCU e atribuído ao servidor público.
Revista ENM
433
nossa América Latina –, a atividade judiciária deve ser exercida de forma mais
invasiva em relação à atividade administrativa. Nestas ocasiões, que devem ser
consideradas exceção, o Poder Judiciário passa a ser a única barreira ou instância
capaz de assegurar à população o exercício dos seus direitos fundamentais
básicos. Daí porque nestas ocasiões se justifica que o Poder Judiciário assuma
postura mais rigorosa no exercício da sua função de controlar a atividade do
Poder Executivo, porque este carece de qualquer legitimidade democrática.
Em períodos de normalidade democrática, como o que felizmente vivemos,
em que se reconhece legitimidade no exercício de todas as funções do Estado,
deve ser buscado novo equilíbrio para os mecanismos de controle recíprocos
existentes entre os Poderes e não se justifica a exacerbação ou o excesso de
interferência de um Poder em relação aos demais.
Com o objetivo de testar o raciocínio desenvolvido pode ser apresentado
julgado do Superior Tribunal de Justiça (RESP 218270/RS; 1a Turma; DJU
de 18.10.99) em que se reitera a tese corrente de que não há necessidade de
esgotamento da via administrativa para a propositura da ação judicial. Neste
julgado foi afirmado que o reconhecimento do pedido do interessado em
recurso administrativo provocou a perda do objeto da ação judicial proposta –
o que é evidente –, e, ademais, condenou a União – que ao decidir o recurso
administrativo reconheceu o direito do interessado – a pagar honorários ao
advogado do particular19.
É patente a falta de racionalidade deste julgado que reflete o entendimento
vigente no Brasil. Se no caso em exame existe a possibilidade de a própria
Administração Pública reconhecer o direito do indivíduo que aguarda decisão
19
A ementa do acórdão mencionado apresenta a seguinte redação:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – RECURSO ADMINISTRATIVO – RECONHECIMENTO DO PEDIDO – PERDA DO OBJETO DA AÇÃO JUDICIAL – HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
O ingresso em juízo prescinde de prévio esgotamento da via administrativa. Reconhecido o pedido na
esfera administrativa, a ação a ele referente perde o objeto, sendo a União responsável pela verba honorária.
Recurso improvido. (RESP 218270/RS, PRIMEIRA TURMA, DJU de 11.10.1999)
Em igual sentido:
RMS – CONSTITUCIONAL – ADMINISTRATIVO – PROCESSUAL CIVIL – PRELIMINAR – CARÊNCIA DO DIREITO DE AÇÃO QUANTO AO SEGUNDO IMPETRANTE – ESGOTAMENTO
DAS VIAS ADMINISTRATIVAS – DESNECESSIDADE – GRATIFICAÇÃO DE REPRESENTAÇÃO – EXTENSÃO AOS INATIVOS – NATUREZA PRO LABORE FACIENDO – INEXISTÊNCIA
DE LINEARIDADE E GENERALIDADE
I - Após a proclamação da Constituição Federal de 1988, o exaurimento da via administrativa é mera faculdade da parte interessada, não consubstanciando condição sine qua non para impetrar-se mandado de
segurança. (ROMS 4289/MS; QUINTA TURMA, DJU de 4.6.2001).
434
Revista ENM
de recurso pendente na instância administrativa, com efeito suspensivo, qual
o interesse do particular de agir na via judicial? Onde está o direito subjetivo
violado ou ameaçado de lesão? Não há, com a devida vênia, sequer lide que
justifique a propositura de ação judicial. Isto resta demonstrado de forma cabal
quando a ação judicial “perde seu objeto” face ao reconhecimento do direito
do particular pela própria Administração Pública que lhe deu provimento no
recurso administrativo.
A rigor, a ação judicial aqui referida não perdeu seu objeto; ela nunca
teve objeto. O julgado proferido pelo eg. STJ põe em risco o equilíbrio entre
os Poderes e suscita inúmeras questões acerca do controle judicial sobre a
atividade administrativa do Estado.
A fim de que os particulares possam suscitar o controle judicial sobre a
atuação da Administração Pública, deve-se buscar, inicialmente, o objeto da
proteção, o bem jurídico a ser amparado pelo Judiciário. A que bem jurídico
se refere a Constituição quando estabelece que lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito? Igualmente relevante a regra
disposta no art. 6o do Código de Processo Civil quando afirma que ninguém
poderá pleitear em nome próprio direito alheio, ressalvadas as hipóteses previstas
em lei. Ora, se os indivíduos somente podem acessar o Poder Judiciário para
pleitear direitos próprios, é necessário que este direito tenha-se concretizado,
que ele esteja materializado, ou esteja sendo ameaçado, a fim de ser legitimada
a propositura de ações judiciais.
É ponto pacífico que o direito a que se refere a Constituição Federal e o
Código de Processo Civil é o direito subjetivo, entendido como aquele que
surge da aplicação da norma positivada a situações concretas gerando para
determinado indivíduo a legitimidade de exigir, pela via judicial, inclusive,
que outrem seja obrigado a fazer ou deixar de fazer algo.
O direito subjetivo, instituto desenvolvido originariamente no âmbito do
Direito Civil, surge a partir do momento em que o ordenamento jurídico
reconhece a determinado indivíduo o poder de fazer valer sua vontade contra
terceiro, impondo-lhe obrigações e podendo utilizar-se da tutela judicial
para tal mister. Na relação Administração Pública – administrado, o direito
subjetivo pode aperfeiçoar-se tanto em favor de um quanto do outro.
A tutela judicial referida pelo texto constitucional (art. 5o, XXXV) compreende,
todavia, tão-somente os direitos que preencham os requisitos necessários à sua
caracterização como direitos subjetivos, individuais ou coletivos. Essa conclusão
Revista ENM
435
decorre do fato de que, não obstante tenha havido por parte da Constituição Federal
a preocupação com a proteção dos direitos coletivos, difusos ou não, a forma como
é feita esta proteção depende de lei – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa
do consumidor (CF, art. 5o, XXXII). Ou seja, o princípio da inafastabilidade da
apreciação judicial, previsto no art. 5o, XXXV, da Constituição Federal, legitima
o particular a acessar o Judiciário para a defesa de direitos subjetivos e não para a
impugnação de atos ilegais ou ilegítimos. Para esta tarefa, a Constituição Federal
prevê arsenal específico de instrumentos jurídicos (ação popular, ação civil pública,
ação de improbidade, habeas corpus etc.).
Com efeito, o objeto básico merecedor de proteção pelo princípio do
controle judicial é o direito individual subjetivo. Este é o bem jurídico tutelado
pelo princípio da inafastabilidade da apreciação judicial. Não que os demais
direitos ou interesses não sejam objeto de proteção jurídica, ou que sua violação
não possa reclamar a necessária interferência judicial. A proteção desses outros
direitos ou interesses, todavia, bem como o controle a ser realizado sobre eles pelo
Poder Judiciário, deve-se realizar na forma definida pela própria Constituição
Federal ou pela lei. A inafastabilidade da apreciação judicial, como princípio
básico do Estado Democrático de Direito, visa proteger, de forma especial, os
direitos subjetivos dos cidadãos lesados ou ameaçados de lesão.
Desse modo, a possibilidade de acesso ao Poder Judiciário deve ser
franqueada aos particulares sempre que decisão, ou omissão, administrativa
ferir ou puser em risco (ameaça de lesão) direitos subjetivos, e é inconstitucional
qualquer regra que estabeleça limitações ou impedimentos ao livre acesso ao
Poder Judiciário.
Assim, se a Administração Pública não observa as regras procedimentais,
ou se extrapola o tempo razoável para a produção de uma manifestação
conclusiva, seria legítimo arguir-se a violação de direito subjetivo e estaria o
particular legitimado à propositura da ação judicial destinada a coibir o ilícito,
inclusive por meio de medidas judiciais cautelares.
Fixadas essas premissas, se a eventual lesão, ou a ameaça de lesão, de direito
decorrer de ato proferido em processo administrativo, enquanto houver a
possibilidade de discussão no âmbito deste processo, deve ser tida como invasiva,
e, portanto, ilegítima a interferência judicial. Sempre, e enquanto a lesão, ou
a ameaça de lesão, a direito puder ser questionada na esfera administrativa,
e enquanto esse questionamento fizer sustar referida lesão, bem como sua
ameaça, a interferência judicial irá ferir a autonomia do Poder Executivo, e, em
436
Revista ENM
consequência, a harmonia entre os Poderes. Se decisão proferida em processo
administrativo for contrária ao interesse de particular, que entende ser titular
de direito subjetivo, e couber recurso com efeito suspensivo contra esta decisão,
não há que se falar em violação de direito subjetivo.
A tese que aqui se defende não busca implantar, no Brasil, o sistema francês
do contencioso administrativo. Neste, as matérias decididas pela instância
administrativa não podem ser controladas ou revistas pela instância judicial. Não
é esta a ideia. Busca-se, ao contrário, definir o momento em que a interferência
administrativa importa em violação de direito subjetivo individual ou coletivo e,
somente então, legitimar a necessária e pronta atuação judicial.
A fixação do momento em que se legitima a atuação judicial não atenta
contra a autonomia do Poder Judiciário, ou sequer impede o exercício do
necessário controle judicial sobre a Administração Pública. Ao contrário,
definido esse limite temporal, a interferência judicial poderá ocorrer de forma
mais equilibrada e racional.
Admitida, ao contrário, a possibilidade de o Poder Judiciário interferir
na instância administrativa, a qualquer momento, independentemente de
violação ou ameaça de lesão a direito subjetivo, ou ainda no curso de processo
administrativo que observe o devido processo legal, compromete a capacidade
do próprio Judiciário de atender, a tempo e a contento, a sociedade.
O livre acesso ao Judiciário deve ser igualmente examinado sob a ótica do
interesse de agir, da preclusão de direitos e da própria racionalidade da atuação
do Estado.
Acerca do interesse de agir, Antônio Carlos Cintra, Ada Grinover e
Cândido Dinamarco20 tecem a seguintes considerações:
Essa condição da ação assenta-se na premissa de que, tendo embora
o Estado o interesse no exercício da jurisdição, não lhe convém
acionar o aparato judiciário sem que dessa atividade se possa
extrair algum resultado útil. É preciso, pois, sob esse prisma, que,
em cada caso concreto, a prestação jurisdicional solicitada seja
necessária e adequada. Repousa a necessidade da tutela jurisdicional
na impossibilidade de obter a satisfação do alegado direito sem
a intercessão do Estado – ou porque a parte contrária se nega a
satisfazê-lo (...).
20
Teoria Geral do Processo, 11. ed. Editora Malheiros. São Paulo. 1995. P. 258.
Revista ENM
437
Visto que o ordenamento jurídico-administrativo põe à disposição do
particular meios hábeis para fazer sustar as interferências estatais que afetem
seus interesses, na hipótese de tratar de processo administrativo sancionador ou
restritivo de direito, ou de exigir que se conclua o processo como requisito ao
reconhecimento do direito do particular, no caso dos processos ampliativos de
direito, não é razoável arguir-se a imediata interferência judicial como caminho
necessário à satisfação dos interesses juridicamente tutelados dos particulares.
Se a atuação do particular perante a própria Administração for suficiente
para afastar a ameaça de lesão a direito – no caso de processos restritivos de
direitos ou punitivos – ou de viabilizar o reconhecimento desse direito – na
eventualidade do processo ampliativo de direito – não há que se falar em
interesse de agir em juízo.
Não é estranha ao ordenamento jurídico pátrio a hipótese de carência de
ação para demanda judicial quando em relação à decisão impugnada existe
recurso administrativo com efeito suspensivo. Trata-se aqui da redação do
artigo 5o, inciso I, da Lei do Mandado de Segurança (Lei 1.533/51).
Não obstante a previsão legal expressa para a via mandamental, não há
razão para que o mesmo raciocínio deixe de ser aplicado às ações judiciais em
geral, pois que, como já foi dito, enquanto a pretensão do particular estiver
sob a apreciação da Administração Pública em processo administrativo, sob
efeito suspensivo, não decorrerá violação (ou ameaça de violação) a direito
subjetivo, razão pela qual o interessado não estará legitimado, por flagrante
ausência de interesse de agir, a se socorrer das vias judiciais.
Neste caso, a ausência de interesse de agir não se verifica apenas na via estreita
do mandado de segurança, visto que a concessão de efeito suspensivo a recurso
administrativo impede a exequibilidade e operatividade do ato questionado,
afastando-se, dessa maneira, a utilidade do provimento jurisdicional.
Questão distinta consiste em saber se o particular está obrigado a esgotar a
instância administrativa sob pena de, em não o fazendo, ocorrer preclusão do direito.
Veja-se o exemplo de cidadão regularmente intimado de decisão proferida
pela Administração tributária que lhe impôs o pagamento de determinado
tributo. É certo que este cidadão dispõe de instrumentos legais que o permitem
impugnar administrativamente, com efeito suspensivo, o lançamento
tributário que, em seu sentir, fira a legislação. Desse modo, se o cidadão se vale
da faculdade de peticionar na instância administrativa (direito expressamente
reconhecido pela Constituição Federal que em seu art. 5o, XXXIV, ‘a’, que
438
Revista ENM
dispõe que são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas o
direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade
ou abuso de poder), a lesão ou a própria ameaça de lesão ao seu direito por parte
do poder público deixa de existir.
A dúvida consiste em saber se ocorreria preclusão caso o particular optasse
por não promover a impugnação pela via administrativa (ou mesmo tivesse
que esgotá-la) e preferisse se socorrer diretamente da instância judicial.
Toma-se como exemplo a Lei das Licitações e Contratos (Lei no 8.666/93).
Em seu art. 42, § 1o, é fixado o prazo de cinco dias úteis anteriores à data
final para apresentação de propostas para que os licitantes possam impugnar
cláusulas do edital, sob pena de se operar decadência. No ponto, a não
utilização da prerrogativa de impugnar o edital no âmbito administrativo
impediria o exame da matéria na via judicial?
No STJ, a questão não é totalmente pacífica. A tese majoritária é no
sentido de que a não impugnação do edital perante a própria Administração
Pública não impede o particular de se socorrer da via judicial21, tese que se
afigura acertada.
A exigência de esgotamento da via administrativa como condição para
a propositura de ações judiciais implica violação ao princípio do controle
judicial da Administração Pública.
21
A esse respeito, ver a decisão do STJ no MS 5655/DF; PRIMEIRA SEÇÃO; DJU de 31.8.1998:
Ementa : DIREITO ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. CLÁUSULA EDITALÍCIA REDIGIDA SEM
A DEVIDA CLAREZA. INTERPRETAÇÃO PELO JUDICIÁRIO, INDEPENDENTEMENTE DE
IMPUGNAÇÃO PELOS PARTICIPANTES. POSSIBILIDADE.
No procedimento licitatório, as cláusulas editalícias hão de ser redigidas com a mais lídima clareza e
precisão, de modo a evitar perplexidades e possibilitar a observância pelo universo de participantes.
A caducidade do direito à impugnação (ou do pedido de esclarecimentos) de qualquer norma do Edital
opera, apenas, perante a Administração, eis que, o sistema de jurisdição única consignado na Constituição
da República impede que se subtraia da apreciação do Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito. Até
mesmo após abertos os envelopes (e ultrapassada a primeira fase), ainda é possível aos licitantes propor as
medidas judiciais adequadas à satisfação do direito pretensamente lesado pela Administração.
Consoante o magistério dos doutrinadores, a inscrição (da empresa proponente) no cadastro de contribuintes
destina-se a permitir a imediata apuração de sua situação frente ao Fisco.
Decorre, daí, que se o concorrente não está sujeito à tributação estadual e municipal, em face das atividades
que exerce, o registro cadastral constitui exigência que extrapola o objetivo da legislação de regência.
A cláusula do Edital que, “in casu”, se afirma descumprida (5.5.1), entremeada da expressão “se for o caso”,
só pode ser interpretada no sentido de que, a prova da inscrição cadastral (perante as fazendas estadual e
municipal) somente se faz necessária se o proponente for destas (Fazendas) contribuintes, porquanto a
lei somente admite a previsão de exigência se ela for qualificável, em juízo lógico, como indispensável à
consecução do fim.
“In hiphotesi”, a impetrante, ao apresentar, com a sua proposta, certidões negativas de “débitos” para com
as Fazendas estadual e municipal ofereceu prova bastante “a permitir o conhecimento de sua situação frente
aos Fiscos”, ficando cumprida a cláusula editalícia, ainda que legal se considerasse a exigência.
Mandado de segurança concedido. Decisão unânime.
Revista ENM
439
Ainda em relação à Lei de Licitações e Contratos, cita-se o exemplo de
licitante desclassificado pela comissão de licitação. A própria lei, em seu art.
109, admite recurso com efeito suspensivo, o que equivale a dizer que, enquanto
este recurso não for decidido, o processo licitatório não terá seguimento. É
certo que se o recurso contra o ato de desclassificação for mantido, o licitante
terá todo o interesse de propor a necessária ação judicial. Todavia, se o licitante
não se utilizou dos instrumentos que o próprio processo administrativo lhe
pôs à disposição, não parece correto afirmar que se verificou a preclusão da
faculdade do licitante de questionar a invalidação da decisão administrativa
na via judicial.
Definir que somente quando a atuação da Administração ferir ou ameaçar
direito subjetivo estará o particular legitimado a propor ação judicial contra
ato da Administração Pública não restringe ou limita a atividade de controle
exercida pelo Poder Judiciário em relação ao Poder Executivo. Evita-se, ao
contrário, a banalização na propositura de ações precipitadas e, muitas
vezes, desnecessárias, haja vista, não raro, o provimento final por parte da
Administração Pública ser favorável ao particular.
A exacerbação na utilização da via judicial tem criado sérias dificuldades ao
bom funcionamento do Poder Judiciário no Brasil. É necessário fixar critérios
que definam a intensidade e, sobretudo, o momento em que será exercida
a tutela judicial da atividade administrativa. O estudo do direito subjetivo
constitui o primeiro e mais importante critério legitimador da intervenção
judicial sobre a atividade estatal de administrar.
O Estado é uno, e suas funções devem ser desempenhadas de modo
harmônico. A defesa da tese da reserva da administração, que decorre
diretamente da separação de poderes e cuja validade pressupõe a normalidade
democrática, impõe maior respeito à atividade administrativa do Estado e a
fixação de limites às interferências judiciais sobre a atividade administrativa. A
adoção dessa tese tornará o sistema brasileiro de controle judicial da atividade
administrativa mais racional e mais efetivo.
4. Conclusão
É dever de todos os que administram recursos públicos sujeitarem-se aos
mecanismos de fiscalização previstos na Constituição Federal, sem que disso
decorra interferência indevida entre poderes da República. Ao contrário, faz
parte do próprio sistema de freios e contrapesos. O exercício de potestades
440
Revista ENM
públicas sem o corresponde controle somente é possível em regimes ditatoriais
e é incompatível com o princípio do Estado Democrático de Direito.
A sujeição de todas as atividades desenvolvidas pela Administração Pública
a controle, nela incluída a atividade administrativa do Judiciário, constitui
garantia básica dos cidadãos, além de ser consequência direta e necessária
da adoção da teoria da separação dos poderes. O controle é instrumento
para a melhoria dos serviços prestados pelo Estado, razão por que a sujeição
dos agentes públicos a diferentes mecanismos de controle contribui para a
melhoria das tarefas por eles desenvolvidas.
A revisão judicial das deliberações do TCU está circunscrita a questões que
digam respeito à não-observância do devido processo legal ou à orientação
manifestamente contrária ao Direito. Nestas hipóteses, caberá ao Judiciário a
anulação da decisão hostilizada, não havendo espaço para o Poder Judiciário
substituir-se ao TCU em relação às competências que a Constituição Federal
lhe atribuiu com exclusividade.
O esgotamento da via administrativa não é condição necessária ao acesso
ao Poder Judiciário. Todavia, enquanto a existência de processo administrativo
fizer sustar violação (ou ameaça) de direito subjetivo do particular, pela
interposição de recurso administrativo com efeito suspensivo, não se deve
admitir o acesso judicial, diante da ausência de interesse de agir daquele que
questiona ato da Administração.
Essa conclusão, é importante que se diga, não afasta a possibilidade de o Poder
Judiciário intervir nas decisões administrativas, mas apenas define o momento em
que a intervenção judicial na atividade administrativa se torna legítima.
Referências Bibliográficas
BORGES, Alice Gonzales. “O controle jurisdicional da administração pública”. Revista de Direito
Administrativo, Rio de Janeiro, v. 192, p. 49-60, abr./jun. 1993.
CARNEIRO. Athos Gusmão. Jurisdição e Competência, 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
CONTI, José Maurício. A Autonomia Financeira do Poder Judiciário, São Paulo: MP Ed., 2006.
COSTA, Luiz Bernardo Dias. Tribunal de Contas: evolução e principais atribuições no Estado Democrático de
Direito. Belo Horizonte: Fórum, 2006.
CRETELLA JÚNIOR, José. Dicionário de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, JusPodivm, 11. ed. 2009.
DINAMARCO, Cândido. Fundamentos do Processo Civil Moderno, Vol. I, São Paulo: Malheiros, 4. ed.
2001.
SOUZA, Alfredo José de et al. O novo Tribunal de Contas: órgão protetor dos direitos fundamentais. 3. ed.
rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2005.
ZYMLER, Benjamim. Direito administrativo e controle. Belo Horizonte: Fórum, 2005.
Revista ENM
441
Artigos Gerais
A responsabilidade do Juiz
na condução racional
do processo
José Renato Nalini
Desembargador do TJSP
Doutor e Mestre pela USP
Autor de A Rebelião da Toga
Docente universitário
Presidente da Academia Paulista de Letras
I. O sujeito juiz numa sociedade fragmentada
A cidadania continua à espera de uma resposta do Judiciário, ao persistente
e intensificado reclamo por uma prestação jurisdicional mais célere e eficiente.
Embora a eficiência pudesse englobar também a celeridade, é importante
enfatizar os dois atributos. Só com a conjugação de ambos a justiça atenderá aos
fins para os quais preordenada. Não que haja consenso a respeito da viabilidade
nessa conciliação. A cultura tradicional sempre contrapôs a presteza à segurança.
Como se uma decisão em prazo razoável não pudesse consistir em resposta segura.
Com a segurança possível a um mister humano e falível.
Insistir em segurança jurídica parece rigor excessivo numa era em que
a regra é a insegurança. As ameaças contra o planeta deixaram de ser mera
potencialidade nefasta. Converteram-se em risco concreto de se inviabilizar
continuidade da vida. Para compreender o mundo de hoje é preciso um novo
paradigma. É a proposta de muitos pensadores, dentre os quais Alain Touraine,
que enxerga o quadro angustiante de uma decomposição da sociedade e o
recrudescimento da violência de mil faces. Sua visão é pessimista: “Já não
cremos mais no progresso; estamos angustiados pela decomposição das cidades
442
Revista ENM
e das zonas rurais, pela violência social como também pelas guerras santas”1.
O fenômeno da globalização ou da mundialização tornou inviável o
reerguimento da organização social. Cumpre invocar a responsabilidade
individual.
“É num apelo cada vez mais radical e apaixonado ao indivíduo,
e não mais à sociedade, que procuramos a força capaz de resistir
a todas as violências. É neste universo individualista, muito
diversificado, que muitos procuram e encontram um “sentido” que
não encontramos mais nas instituições sociais e políticas – e que é o
único em condições de produzir exigências e esperanças capazes de
suscitar uma outra concepção da vida política”2.
A falência da representação, a crise de credibilidade do Estado, a
instantaneidade nas comunicações, tudo levou ao ressurgimento do
individualismo. Se há uma face cruel nesse fenômeno – a exacerbação do “eu”,
o narcisismo, o consumismo irrefreável – existe um contraponto positivo.
O indivíduo-juiz pode ser um fator de renovação da Justiça. Aquilo que é
mais difícil aos tribunais, colegiados afeiçoados a parâmetros burocratizados
e formalistas, hierarquizados na estrutura, avessos à criatividade, não é missão
impossível para a pessoa do julgador.
O juiz é um indivíduo. E “o indivíduo enquanto moderno escapa, portanto,
aos determinismos sociais, na medida em que é um sujeito autocriador”3. O
indivíduo social é rotulado pela posição que a sociedade lhe reservou. O
indivíduo moderno experimenta e afirma sua liberdade e pode repelir as
pressões. Tem consciência de poder eleger entre o bem e o mal. No momento
em que a fragmentação da sociedade impacta o convívio e o mercado procura
apoderar-se da conduta de todos, o ser pensante se vê impulsionado a buscar
no interior de si mesmo sua unidade como sujeito. Um ser capaz de adquirir
e de exprimir uma consciência de si mesmo autofundada. Uma consciência
apta a identificar o papel da Justiça numa sociedade desigual, complexa e
reivindicante. Isto é o que se propõe ao juiz brasileiro. Apenas isso, empresa
viável para quem dispuser de boa vontade. Não se pretende que o juiz se
autoproclame um demiurgo ou um herói. “O sujeito não é um sinônimo do eu. O
TOURAINE, Alain, Um novo paradigma. Para compreender o mundo de hoje, Petrópolis, Vozes, 2006, p.23.
TOURAINE, Alain, op.cit., idem, p.25.
3
TOURAINE, Alain, op.cit., idem, p.103.
1
2
Revista ENM
443
eu é o conjunto mutante e sempre fragmentado com o qual nos identificamos,
embora conscientes de que ele não tem nenhuma unidade duradoura”4. A
persona juiz encontra no individualismo centrado numa consciência ética
todas as ferramentas para converter a missão humana de produzir justiça em
uma atuação efetiva e eficiente. Por isso, eficaz.
2. De que racionalidade se fala?
O Direito sempre alentou a pretensão de ser Ciência, equiparada às
Ciências Naturais ou Exatas.
A ciência moderna é fruto de uma mentalidade que vem de longe.
Tal mentalidade tem a ver com o século XVII, que introduziu na
cultura ocidental o mito da razão que funda a confiança no progresso
indefinido do homem e na possibilidade de sua autoliberação. A
este esforço se une ainda a certeza de que não existem outros valores
absolutos alternativos à razão mesma5.
O ser humano se vangloria de ser o único, na escala animal, provido de
razão. A racionalidade está no centro do pensamento ocidental desde a época
pré-socrática. Ela pressupõe a autonomia da vontade e a liberdade de escolha.
“Como conceber a criatividade humana ou como pensar a ética num mundo
determinista? Esta questão traduz uma tensão profunda no interior de nossa
tradição, que se pretende, ao mesmo tempo, promotora de um saber objetivo
e afirmação do ideal humanista de responsabilidade e de liberdade”6. Se as
ciências conduzissem a uma concepção determinista da natureza, enquanto o
ideal democrático se baseia na liberdade, o homem estaria numa encruzilhada
melancólica. Isso impõe a busca “de uma nova racionalidade que não mais
identifica ciência e certeza, probabilidade e ignorância”7. E pensar que
Descartes foi movido pelo desafio de alcançar a certeza. Viveu ele uma era
trágica, o “século XVII, um século de instabilidade política e de guerras de
religião. Era em nome de dogmas, de certezas religiosas, que os católicos e
os protestantes se matavam uns aos outros. Descartes pôs-se em busca de um
outro tipo de certeza, uma certeza que todos os humanos, independentemente
TOURAINE, Alain, op.cit., idem, p.114.
TEIXEIRA, Evilazio Borges, Aventura Pós-Moderna e sua Sombra, São Paulo, Paulus, 2005, p.15.
6
PRIGOGINE, Ilyia, O Fim das Certezas. Tempo, Caos e as Leis da Natureza, São Paulo, Editora UNESP,
1996, p.14.
7
PRIGOGINE, Ilya, op.cit., idem, ibidem.
4
5
444
Revista ENM
de sua religião, pudessem compartilhar. Foi isso que o levou a fazer de seu
famoso cogito o ponto de partida de sua filosofia e a exigir que a ciência fosse
fundada nas matemáticas, o único caminho garantido para a certeza”8.
A ciência perdeu sua arrogância ao se constatar a impossibilidade de se
chegar à certeza definitiva. Hoje, “as ciências participam da construção da
sociedade de amanhã, com todas as suas contradições e suas incertezas.
Elas não podem renunciar à esperança, elas que, nos termos de Peter Scott,
exprimem da maneira mais direta que ‘o mundo, o nosso mundo, trabalha
sem cessar para estender as fronteiras do que pode ser conhecido e do que
pode ser fonte de valor, para transcender o que é dado, para imaginar um
mundo novo e melhor”9.
Mundo novo e melhor que o juiz tem condições de ajudar a edificar
na categoria de artífice qualificado de porções – ainda que homeopáticas – do
que se convencionou chamar justo concreto.
Mas não conte ele com a contribuição efetiva da racionalidade. Não que ela
deixe de ser relevante para quem se proponha a fazer justiça. Inegável que as
múltiplas e conflitantes concepções de justiça só poderiam aspirar algum consenso,
houvesse concordância a respeito dos diversos padrões de racionalidade.
“Aparentemente, para saber o que é a justiça devemos primeiramente
aprender o que a racionalidade exige de nós na prática. Entretanto,
alguém que tente descobrir isso imediatamente encontra o fato
de que as discussões sobre a natureza da racionalidade em geral e
sobre a racionalidade prática em particular são aparentemente tão
múltiplas, diversas e difíceis de tratar e de tão difícil solução quanto
as discussões sobre a justiça”10.
Se nem se sabe exatamente o que seja a racionalidade, como se ancorar nela para
resolver os problemas postos à apreciação da Justiça? Não se alcança um acordo
sobre o tema. “Discordâncias fundamentais sobre o caráter da racionalidade são
necessariamente difíceis de resolver. Pois já ao proceder inicialmente de uma
maneira, e não de outra, ao abordar uma questão em disputa, aqueles que assim
procedem terão suposto que estes procedimentos particulares são o que é racional
PRIGOGINE, Ilya. op.cit., idem, p.195.
PRIGOGINE, Ilya. op.cit., idem, p.196, a citar SCOTT, Peter, Knowledge, Culture and the Modern
University, Congres ter gelegenheid van her 75 de lustrum van de Rijksuniversiteit Groningen, 184.
10
MacIntyre, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade?, São Paulo, Loyola, 1991, p.12.
8
9
Revista ENM
445
seguir”11. Um dos signos da contemporaneidade é habitar ela uma cultura na
qual a regra é a inaptidão de se alcançar conclusões comuns e racionalmente
justificáveis sobre a natureza da justiça e da racionalidade prática. Inaptidão
que convive com a apaixonada defesa de “convicções rivais e conflitantes não
embasadas na justificação racional”12.
Compreende-se, contudo, a ênfase no discurso da racionalidade. Pode-se
falar numa racionalidade no sentido corrente em economia. Ser racional é
classificar de maneira coerente os fins últimos, deliberar de forma guiada por
princípios como adotar os meios mais eficazes para atingir os próprios fins,
escolher a alternativa mais propícia à promoção de tais fins e organizar as
atividades de modo que a maioria desses fins venha a ser atendida.
Antes de insistir na racionalidade, portanto, é mais conveniente se ater ao
que significa Justiça. Aqui também se poderia optar por inúmeras formulações.
Mas “o que quer que o termo Justiça nomeie, é certo que nomeia uma virtude;
e, independentemente do mais que o bom raciocínio prático possa exigir, é
certo que requer certas virtudes daqueles que o exibem”13.
Esta a chave para uma proposta de aperfeiçoamento da jurisdição a partir
das virtudes do indivíduo mais qualificado a implementá-lo. É de virtude que se
necessita, não de racionalidade, ao menos como ela nos foi legada pela tradição
cartesiana14. Ante a sedutora consistência das argumentações conflitantes, o que se
logra atingir é uma inconclusividade que abandona o sujeito às suas preferências
pré-racionais. Pré-racionais são as reais influências a que está submetido o
julgador ao apreciar uma pretensão. Os fatores emocionais da decisão judicial
merecem análise cada vez mais atenta15. Diante de uma lei ambígua e produzida
para responder a uma questão pontual, de um volume absurdo de demandas
e da convivência de inúmeras e antagônicas posições igualmente defensáveis
quanto a um único tema, é de ser repensada a responsabilidade do juiz. O seu
compromisso de conduzir o processo racionalmente só poderá resultar de uma
consciência ética suficientemente alavancada por sólida formação. Esse o ponto a
merecer atenção e investimento.
MacIntyre, Alasdair. op.cit., idem, p.14.
MacIntyre, Alasdair. op.cit., idem, p.16.
13
MacIngyre, Alasdair. op.cit., idem, p.35.
14
Consultar NALINI, José Renato, A Rebelião da Toga, 2. ed., Campinas, Millennium, 2008, p.147 – O
Juiz e o irracionalismo na Ciência do Direito.
15
Consultar PRADO, Lídia Reis de Almeida, O Juiz e a Emoção. Aspectos da Lógica da Decisão Judicial, 2.
ed., Campinas, Millennium, 2003.
11
12
446
Revista ENM
3. Fazer justiça hoje
O que significa fazer justiça na contemporaneidade? O papel da Justiça,
como equipamento estatal encarregado de solucionar conflitos, é considerado
imprescindível. Hoje ela atua sob as circunstâncias desta era. “As circunstâncias
da justiça refletem as condições históricas sob as quais as sociedades democráticas
contemporâneas existem. Isso inclui o que poderíamos chamar de circunstâncias
objetivas de escassez moderada de bens e a necessidade de cooperação social
para que todos tenham um padrão de vida decente”16. No moderno Estado
Democrático a cidadania afirma doutrinas abrangentes distintas ou até
irreconciliáveis. Isso é o que Rawls chama de pluralismo razoável17.
Ainda que se não obtenha consenso generalizado sobre a maior parte dos
temas, o que não é próprio da sociedade humana, esta é levada a admitir
concordância sobre alguns parâmetros. Dentre eles, aqueles fornecidos por um
pacto fundante que além de limitar o poder, estabelecer as competências, enunciar
direitos e garantias fundamentais, explicita princípios gerais sobre a convivência.
A Constituição contempla a missão de o Estado fazer justiça e impõe a
ele a proveja de alguns requisitos. Consagra a separação e a harmonia entre
poderes, a inafastabilidade do controle jurisdicional e obriga o equipamento
estatal encarregado de dirimir controvérsias a submeter-se ao princípio da
eficiência. O que significa eficiência?
Além da capacidade de obter resultados, eficiência remete à aptidão de se
conseguir o máximo de proveito com o menor dispêndio de tempo, energia,
dinheiro e meios. Eficiência é qualidade exigível a toda Administração Pública,
inclusive o Poder Judiciário.
Quanto a este, enfatiza-se a questão da celeridade. Ante a inafastável
constatação de que a morosidade do Judiciário é um dos vícios que ninguém
ousa negar, cuidou o constituinte de atacá-lo de forma expressiva. A preocupação
com a demora no trâmite está presente na nova Carta e foi reforçada com a
Emenda Constitucional 45/200418. Chegou o constituinte derivado a inserir
um novo direito fundamental à já alentada enunciação do artigo 5o, agora
destinado a assegurar a todos, no âmbito judicial e administrativo, “a razoável
duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”19.
RAWLS, John, Justiça como equidade. Uma reformulação, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p.118.
RAWLS, John, op.cit., idem, ibidem.
18
Sobre as causas da lentidão, examinar NALINI, José Renato. A Rebelião da Toga, citada, onde o tema é
desenvolvido com maior amplitude.
19
Inciso LXXVIII do artigo 5o da Constituição da República, introduzido pela Emenda Constitucional
45/2004.
16
17
Revista ENM
447
A nacionalidade espera que seus juízes saibam interpretar a insistência
em uma justiça rápida como um chamado à criatividade para a adoção de
estratégias de aceleração na outorga da resposta judicial. Essa a racionalidade
com que os magistrados têm de se preocupar ao aceitar o desafio de fazer a
justiça contemporânea.
4. Ponto de partida
Para posicionar-se ante as expectativas do destinatário de sua função, encarada
para efeito de eficiência mais como serviço público do que na clássica acepção de
expressão de soberania estatal, o juiz deverá desarmar-se de alguns preconceitos.
Haverá de encarar a profunda transformação da sociedade e observar como foi
que outras instituições reagiram a ela para subsistir. O que era o universo das comunicações há algumas décadas? E o das instituições financeiras? E a arte do comércio?
Houve necessidade de readaptação de todos esses setores. Tiveram de se
adequar aos novos instrumentos em pleno voo. Sobreviveram. Transformados,
mutilados, mas muito mais fortes.
Essa fase de mutações já cessou? Vive-se uma era de estabilidade? Ninguém
se ilude: “vive-se, neste instante, uma das mais radicais metamorfoses
tecnológicas da história: a acarretada pelos avanços fulminantes em informática
e telecomunicações, dois domínios, diga-se de passagem, essenciais para
permitir a expansão da capacidade humana de gerir sistemas complexos”20.
Em vez de assustar, este tsunami é instigante. Desperta o profissional que foi
treinado a exercitar a inércia a um comportamento proativo.
Inspirar-se em outras experiências não é demasia. Ao contrário, pode
ser aprendizado. O primeiro preconceito a ser vencido, portanto, é o da
autossuficiência. Natural que o ser humano chamado a ser juiz e recrutado
para servir ao Judiciário pela porta larga, mas árdua, do concurso público, venha
a se sentir uma criatura especial. Ultrapassou um certame severo, enfrentou
uma barreira de obstáculos que exigiu estudos, concentração, memorização
de um acervo enciclopédico de informações. Toda a legislação, a doutrina e a
jurisprudência era lícito presumir que ele dominasse.
A aprovação, a nomeação e a posse podem ser seguidas por uma tendência
à elevação da autoestima. A partir do exercício, o juiz passa a produzir
jurisprudência e poderia acreditar-se dispensado de estudar. Ao contrário,
20
RICUPERO, Rubens, O Brasil e o Dilema da Globalização, São Paulo, Editora Senac, 2001, p.98/99.
448
Revista ENM
precisa imbuir-se de humildade que o leve a aprender mais a cada dia. Um
só dia em que nada se aprenda é um dia perdido. Quem não mergulha num
projeto consistente de educação contínua não está apenas parado. Está a
regredir em movimento uniformemente acelerado. A ciência não descansa e
o conhecimento é o moto contínuo imprescindível ao crescimento pessoal.
Não é apenas o saber. É o saber aplicado: o que extrair do conhecimento novo
para aperfeiçoar o exercício de sua função? Como se pode fazer melhor aquilo
que já se faz bem? Como fazer mais com menos? Os desafios não cessam e o juiz
precisa ter mente irrequieta para nunca estar satisfeito com a sua performance.
A insatisfação deve gerar o compromisso de busca permanente por novas
práticas com a finalidade de otimizar seu desempenho. Audácia, coragem e ousadia
para adotar estratégias com transparência, equidade no tratamento de todos os
parceiros21 e reavaliação periódica para alterar ou corrigir rumos se for necessário.
Uma outra postura relevante é estar aberto à interação. Saber ouvir a voz do
povo, mas também outras vozes. O Judiciário não é uma ilha sem comunicação
com o continente das misérias. Misérias materiais mas, principalmente,
misérias morais. Ele é um repositório de aflições, uma enorme UTI social para
onde convergem as falhas de caráter, as promessas descumpridas, os acordos
quebrados, os contratos não honrados.
Por que se critica a Justiça brasileira? É sempre destituído de razão
aquele que a acusa de lentidão, de hermetismo, de refém da burocracia, de
anacronismo e patente ineficiência?
Em lugar da cultura do brio ferido, convém exercitar um modelo novo
de contraditório. Por que não se colocar o criticado no lugar do crítico e
tentar enxergar sua motivação, entender suas razões? O mea culpa, quando
necessário, não é heresia para um juiz empenhado em expurgar a sua instituição
de qualquer mácula ou pecadilho.
Há uma generalizada prevenção da magistratura quanto ao papel da mídia.
Ela procura refletir a opinião pública ou de alguns setores relevantes quando
noticia o insólito. Seria ingênuo acreditar que a imprensa se propusesse a
desempenhar a função de defensora do Judiciário. O seu papel é explorar as
21
Em lugar de fazer referência às partes, advogados, Ministério Público, servidores, peritos, testemunhas,
mídia, autoridades de outros poderes, todas as pessoas com as quais o juiz se relaciona em sua missão,
utilizo-me da expressão parceiros, como análoga ao verbete “stakeholders”, de uso corrente na linguagem
empresarial. Na verdade, se justiça é virtude, há um contingente imenso de indivíduos e instituições
interessados em concretizá-la. Por isso podem ser chamados parceiros.
Revista ENM
449
mazelas da sociedade. Ela vive disso e para isso. Mas não se recusa a uma
divulgação discreta das boas práticas. Estas podem se multiplicar se o juiz se
compenetrar de sua capacidade pessoal de fazer a diferença.
O empresariado foi um setor sob a alça de mira das transformações.
Não tem por si o Erário. Subordina-se a uma outra competência. Se não
prospera, perece. No Brasil desigual, complexo e composto de muitas ilhas
antropológicas22, enfrentou e continua a enfrentar o que Jorge Queiroz chama
de armadilhas. Dentre elas, indica:
I) desrespeito aos princípios gerais da interdependência da
humanidade; II) inobservância do equilíbrio entre racionalidade
econômica e responsabilidade social; III) corrupção; IV) ganância sem
limites; V) crimes político-empresariais-financeiros; VI) impunidade;
VII) lenta e antiquada legislação processual; VIII) ditadura fiscal –
irracionalidade e voracidade arrecadatória dos governantes de todas
as esferas; IX) excesso de burocracia; X) transferência nefasta de
riquezas do setor produtivo para o improdutivo; XI) legislação por
conveniência – medidas provisórias; XII) promoção de necessidades
induzidas; do consumismo exacerbado de produtos supérfluos; XIII)
miopia e ineficácia gerencial; XIV) ambiente judicial ineficiente para
atuar com empresas em crise23.
De forma ainda mais incisiva, o funcionamento do Judiciário brasileiro é
cotejado com o de outros Estados-nação:
“Estudos comparados evidenciam que é melhor possuir tribunais
bons e leis ruins, do que leis boas e tribunais ruins, sendo poucos
os países com ambos de boa qualidade. No Brasil não estamos no
melhor dos mundos, pois temos tribunais na sua maioria ineficientes
22
Mercê de sua colonização, de sua dimensão, do cadinho etnológico e de outras causas, o Brasil parece um
arquipélago antropológico formado por ilhas pré-históricas, antigas, pré-medievais, medievais, modernas e
pós-modernas. Todas flutuando no mesmo mar de incertezas e partilhando de um só tempo e um só espaço.
Esse o ambiente que o juiz vai enfrentar ao exercer a jurisdição.
23
QUEIROZ, Jorge, Turnaround Corporativo – Navegando em períodos de turbulência, Florianópolis, IBGTIBRADD, 2004, p. 36. Interessante observar que a própria noção de turnaround pode servir de reflexão
para os juízes proativos. “A expressão turnaround, que em português significa ‘mudar o curso ou direção’
ou ‘reverter a crise’, é uma terminologia muito utilizada no meio empresarial público e privado para fazer
referência às ações preditivas, preventivas ou corretivas tomadas por uma empresa ou seus ‘stakeholders’
para lograr obter uma correção de rumo e melhoria de performance ou por uma empresa em crise ou
insolvente, tanto na esfera não judicial como na judicial’ (op.cit., p.77). Nada impede que o juiz brasileiro
promova o turnaround de sua Vara, de sua unidade judicial, de seu Juizado, de sua turma julgadora, enfim,
do espaço que lhe foi destinado a atuar. Como? Isso dependerá de sua criatividade e ousadia.
450
Revista ENM
e leis com eficácia aquém do necessário para criar um ambiente
institucional que proporcione eficiência e segurança jurídica a todos
os interessados na recuperação de empresas”24.
Mas da mesma depreciação se extrai a alternativa: é melhor ter tribunais bons.
Proposta que deve inspirar o juiz a suprir, com sua proficiência, a inadequação
do quadro normativo que lhe é oferecido como ferramenta de trabalho.
Se o juiz estiver com os olhos abertos, mente descontaminada de
preconceitos, provido de vontade de converter sua atuação em nicho de
eficiência, encontrará fórmulas de operar a mudança de paradigma25 sem a
qual o Judiciário continuará imerso em crise. Essa postura não é mais do que
imergir na ética judicial, hoje reforçada com a edição de um Código de Ética
da Magistratura Nacional, cuja observância é objeto de explícita exortação do
Conselho Nacional de Justiça26.
5. Propostas concretas
Propõe-se, a seguir, um conjunto de singelas indicações para um
protagonismo transformador do juiz brasileiro, rumo à condução adequada
do processo. Mera enunciação desprovida de pretensão de exaurimento das
inúmeras possibilidades de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional com o
intuito de atender ao princípio da eficiência. Reafirma o autor a sua condição
de diletante apenas convicto de que o juiz é o ator principal dessa revolução
silenciosa27 que é a mudança no dia a dia do foro.
Incita-se o entusiasta a acrescentar possibilidades de um trato conseqüente
ao processo, pois infinitas as vias abertas a quem queira partilhar da gigantesca
obra de edificação de uma nova doutrina judicial processual.
QUEIROZ, Jorge. op.cit., idem, p.38.
Mudança de paradigma é expressão criada pelo historiador e filósofo Thomas Kuhn em 1962. JOSÉ
EDUARDO CAMPOS DE OLIVEIRA FARIA observa que um paradigma está em crise quando não mais
consegue fornecer orientações, diretrizes e normas capazes de nortear o trabalho científico. Sem condições
de fornecer soluções, os paradigmas vigentes revelam-se como fonte de problemas e incongruências e
transformam o universo que lhes corresponde em sistema de erros (FARIA, José Eduardo. A crise do direito
numa sociedade em mudança, Brasília, Editora da UNB, 1988, p.13).
26
Código de Ética da Magistratura Nacional, aprovado na 68a Sessão Ordinária do Conselho nacional de
Justiça, do dia 6 de agosto de 2008, nos autos do Processo no 200820000007337.
27
O Prêmio Innovare – O Judiciário do Século XXI, tem contemplado as boas práticas resultantes de um
protagonismo individual e coletivo dos integrantes da Magistratura. A coletânea editada em 2006 pelo
Centro de Justiça e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, Rio de
Janeiro, 2006, sob o título “A Reforma Silenciosa da Justiça” é uma fonte categorizada de consulta para
inspirar os juízes investidos dessa intenção de participar de um projeto que não exclui, mas necessita da
atuação de muitos agentes.
24
25
Revista ENM
451
5.1 Garimpar o ordenamento
De tanto criticar o processo, na sua tendência de se converter em finalidade
e abandonar o relevante papel de instrumento da Justiça, pode-se olvidar que
o alcance da lei está condicionado ao intérprete. Nem tudo na codificação é
burocrático, formalista e procrastinador. O Código de Processo Civil oferece
condições para uma utilização afinada com o princípio da eficiência. Basta
garimpar a lei e se encontrarão dispositivos de otimização.
Um dos mais importantes é o artigo 244, já considerado a mais bela regra
do atual Direito Processual: “Quando a lei prescrever determinada forma,
sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado
de outro modo, lhe alcançar a finalidade”28. Preceito que deveria servir
para fechar a fábrica de nulidades que assola a processualística nacional. A
receita é o aproveitamento máximo dos atos processuais, só rechaçados se
evidenciado, de forma inconteste, o prejuízo que influencie o direito material
e se reflita na decisão da causa29. Reflexo dessa norma encontra-se também
na fungibilidade recursal ou das ações possessórias30. É a consagração de que
o conteúdo vale mais do que a forma, algo que a cultura mais conservadora
custa a assimilar.
Mas há outros preceitos moralizadores que podem contribuir para com
práticas saudáveis no processo. A litigância de má-fé e a protelação, por
exemplo, são coibíveis se houver um zeloso condutor do processo31.
O artigo 262 do CPC precisa estar insculpido na consciência do juiz
que se resigna com as demandas paralisadas e desconsidera a regra saudável
do impulso oficial. Incumbe ao juiz fazer com que o processo não perca
a sua conotação com movimento rumo a um objetivo. Processo tem início
subordinado à iniciativa da parte, mas a sua continuidade depende apenas
do juiz. Assim é que incumbe ao magistrado determinar a realização de atos
urgentes, a fim de evitar dano irreparável32 e conhecer de ofício, em qualquer
tempo e grau de jurisdição, de algumas das causas de extinção do processo33.
A faculdade de antecipar a tutela é providência especificamente destinada a
STJ-RT. 683/183, in Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. THEOTÔNIO NEGRÃO
e JOSÉ ROBERTO FERREIRA GOUVÊA, 41. ed, São Paulo, Saraiva, 2009, p.369.
29
STJ, RSTJ 119/621, in CPC citado, idem, ibidem.
30
Artigos 496 e 920 do CPC.
31
Artigos 16 a 18, 35, 538 parágrafo único, 599, inciso II, 600 e 601, 740 parágrafo único, 746, § 3o do
CPC, entre outros.
32
Artigo 266 do CPC.
33
Artigo 267, § 3o, do CPC.
28
452
Revista ENM
conferir celeridade ao processo34. Assim como a observância dos prazos – que
é dever legal do juiz brasileiro 35– e a obrigação de decidir de plano, ou seja,
imediatamente, a impugnação ao valor da causa ou a controvérsia sobre a
natureza da demanda36. O dever de conciliar37a todo tempo está no CPC e é
tão relevante, que a ele se conferirá particular atenção.
Uma previsão de grande alcance no intuito de acelerar a prestação
jurisdicional está no artigo 285-A do CPC. Se a matéria controvertida for
unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total
improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação
e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.
Preceito análogo está no artigo 557 do mesmo Codex, destinado ao relator
no julgamento colegiado e que está a clamar por mais intensa implementação.
Também com o objetivo de conferir maior presteza ao trâmite processual, o
CPC tem norma cogente para que o juiz conheça diretamente do pedido quando
a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não
houver necessidade de produzir prova em audiência ou quando ocorrer a revelia38.
Outro preceito que confere poder acrescido ao juiz está no artigo 335 do
CPC, que lhe faculta aplicar as regras de experiência comum, propiciadas pela
observação do que normalmente acontece e ainda as regras de experiência
técnica. É uma evidência cristalina de que o magistrado não precisa ser
formalista, mas um solucionador de problemas. As questões concretas submetidas
ao juiz não precisam, necessariamente, ser revestidas com a blindagem técnicojurídica, se puderem ser enfrentadas com o senso comum. O juiz tem de ser um
décideur, alguém que resolva uma questão aflitiva. Não um técnico burocrata
e insensível às angústias sofridas pelo seu semelhante.
Sua liberdade intelectual está presente em todo o ordenamento. O princípio
da livre apreciação da prova ou da sadia crítica é garantido legal, doutrinária e
jurisprudencialmente39.
Com a finalidade de mais adequada realização do justo concreto, o
Código de Processo propicia ao juiz a salutar iniciativa da inspeção
Artigo 273 do CPC.
Artigo 35, inciso II, da LOMAN – Lei Complementar Federal no 35, de 14.3.1979.
36
Artigo 277, § 4o, do CPC.
37
Artigos 125, inciso IV, 277, § 1o, 331, caput, 447 a 449, Lei dos Juizados Especiais 22 a 26, etc.
38
Artigo 330 do CPC.
39
Artigos 386, 420, parágrafo único, 427 e 437 do CPC.
34
35
Revista ENM
453
judicial40. Quanta vez o olhar atento do julgador é fundamental para
proferir a melhor decisão.
Ao exercer o poder de polícia em audiência, o julgador deve zelar para que
ela seja – de fato – a oportunidade de se atingir a verdade objetiva e coibir
práticas írritas à deontologia profissional. Para abreviar a apreciação e precisar
os lindes da causa, imperativo que o juiz se utilize do preceito do artigo 451 do
CPC. Não é mera recomendação, mas determinação do legislador que delimita
a discussão e racionaliza a duração instrutória41.
O legislador permite ao juiz decidir de forma concisa, de maneira a evitar
desnecessário excesso palavrório, uma das causas de disfunção da justiça42. A
efetividade do julgamento impõe ao julgador a determinação de providências
que assegurem o resultado prático da pretensão procedente43.
Um dos motivos de longevidade das demandas é o recurso oficial, que sujeita
ao duplo grau de jurisdição sentenças proferidas contra o Poder Público. Mas
as exceções abertas à regra nem sempre são observadas pelo juiz. Se merecerem
redobrada atenção, muitas as decisões que se subtrairão ao comando de
remessa e a prestação jurisdicional poderá ganhar presteza44.
A uniformização de jurisprudência é um instituto pouco utilizado e
poderia reduzir a reiteração de recursos45. Assim como a elaboração de súmulas
nos tribunais locais46. Ao juiz de primeiro grau incumbe também verificar se o
apelo é admissível, à luz do efeito obstativo do recebimento da apelação ou da
súmula impeditiva de recursos47.
O polêmico agravo pode ser decidido rapidamente se o relator elaborar o
voto e o submeter à primeira sessão de julgamento, pois obviará a necessidade
de ser processado. Mas surtirá efeitos desde logo se lhe for concedida a
Artigo 440 e ss do CPC.
O artigo 451 dispõe: Ao iniciar a instrução, o juiz, ouvidas as partes, fixará os pontos controvertidos sobre
que incidirá a prova. Embora se afirme que o dispositivo foi implicitamente revogado pela Lei 8.952/94,
que deu nova redação ao artigo 331 e seus parágrafos do CPC (RT. 744/222, JTJ. 195/203), existe acórdão
declarando que a fixação dos pontos controvertidos pode ser feita no início da instrução, especialmente
porque, se realizada por ocasião do saneamento, “pode gerar discussão sobre prejulgamento e também
sobre cerc