Morin, Edgar. 2000. O Paradigma Perdido: a natureza
humana. Portugal.
Segunda Parte
(P. 51-90)
A Hominização (a antropossociogênese)
1a) Hominização = “(...) morfogênese complexa e multidimensional
resultante de interferências genéticas, ecológicas, cerebrais, sociais e
culturais.” ( P. 55)
1b) “Todos estes traços são essenciais, mas são sobretudo, no que diz respeito a
esta evolução, essenciais uns aos outros.” (P. 56)
1c) “(...) a hominização é um jogo de interferências que pressupõe
acontecimentos, eliminações, seleções, integrações, migrações, falhanços,
sucessos, desastres, inovações, desorganizações, reorganizações.” ( P. 56)
1d) A hominização não é unicamente aquilo que aparece, é também o que
desaparece, é a extinção das espécies que foram triunfadoras (...).” (P. 56)
1e) “Não é uma espécie que evolui dos primeiros hominídeos ao Homo sapiens; é
durante um período muito longo em que o meio natural se modifica ao
retardador e em que se mutiplicam indivíduos e grupos sociais de uma forma
invariável (...).” (P. 56)
2a) “Pelo final da era terciária, a seca faz recuar a floresta e a savana alarga-se
sobre vastas extensões. Os primeiros hominídeos, cujos fósseis se encontram
nas regiões que foram secas, são primatas africanos, que foram
abandonados pelas árvores e que abandonaram as árvores, e que se
implantaram na savana.” (P. 57)
2b) “Deste modo, as pressões ecológica e demográfica, os antagonismos
estruturais próprios da sociedade complexa dos antropóides, concorreram
para favorecer o exílio definitivo de um grupo mutante a que o bipedismo
ia permitir transpor os problemas fundamentais da sobrevivência na
savana de uma maneira original em relação aos babuínos. Desta forma, a
hominização inicia-se por uma desgraça ecológica, um desvio genético,
uma dissidência sociológica, quer dizer, também, por uma modificação na
auto-reprodução do ecossistema (floresta transformando-se em savana),
por uma modificação na auto-reprodução genética dum primata evoluído
(mutação), por uma modificação no decurso de uma auto-reprodução
sociológica, quer dizer, pela cisão de um grupo juvenil que fundou uma
colônia extraterritorial.” (P. 57-58)
2c) “A progressiva substituição da selva protetora e nutritiva pela savana
agressiva e cruel estimula e orienta o processo de hominização. A savana
cria condições de plena utilização das aptidões bípedes, bímanas e
cerebrais, a partir das necessidades e dos perigos que acarreta.” (P. 58)
2d) “É possível que, no início, tenham sido os pesados “australopitecos
robustos” que, monopolizando os alimentos vegetais pouco abundantes,
obrigassem os mutantes gráceis omnívoros a virar-se ainda mais para a
alimentaçao animal (...). Mas, de repente, é sobre estes seres gráceis que
vão atuar as pressões seletivas, em benefício de tudo o que desenvolva a
agilidade, a técnica, isto é, os caracteres cada vez mais hominídeos.” (P.
59)
2e) “Vão desenvolver-se no pequeno caçador-caçado todas as características
anatômicas, e todas as aptidões (...). A oponência do polegar ao indicador
vai acentuar-se (...), permitindo a força e a precisão na preensão dos
objetos apanhados ou manejados, e sobretudo a força e a precisão na
transformação desses objetos.” (P. 59)
3a) “A caça deve ser considerada como um fenômeno humano total; ela não
vai unicamente atualizar e exaltar aptidões que eram fracamente utilizadas
nem suscitar novas aptidões; ela não vai unicamente transformar a relação
com o ambiente; vai transformar a relação de homem a homem, de homem
a mulher, de adulto a jovem. Mais ainda: os seus próprios
desenvolvimentos, correlativamente às transformações operadas, vão
transformar o indivíduo, a sociedade, a espécie.” (p. 61)
3b) “A caça na savana torna o hominídeo hábil e habilitado: faz dele
intérprete de um grande número de estímulos sensoriais ambíguos e
fracos, que passam a constituir sinais, indicações, mensagens, e o reconhecedor transforma-se em conhecedor.” (P. 61)
3c) “A caça intensifica e complexifica a dialética pé-mão-cérebroutensílio, que, por sua vez, intensifica e complexifica a caça.” (P. 62)
4a) “(...) dado que dispomos de uma base complexa (a sociedade avançada
dos primatas), dado que podemos calcular as consequências da
transferência ecológica dessa sociedade para a savana, dado que podemos
tentar relacionar os índices de complexidade cerebral, dado que podemos
imaginar as restrições e as aberturas que a organização coletiva da caça
determina sobre a sociedade, dado, finalmente, como se verá, que já antes
do sapiens emerge necessariamente uma sociedade cuja complexidade
implica uma cultura, podemos tentar desenhar uma figura em movimento:
a linha sociológica de formação e desenvolvimento de uma sociedade
hominídea (paleossociedade).” (P. 63-64)
5a) “A sociedade dos primatas mantinha machos e fêmeas no mesmo espaço e
os jovens só se afastavam para a periferia próxima. A sociedade hominídea
vai separar ecológica, econômica e culturalmente os sexos, que passam a
constituir duas quase-sociedades dentro de uma.” ( P. 64)
5b) “Enquanto a caça conduz os homens cada vez mais longe, a maternidade
retém as mulheres nos abrigos (...). Mantendo-se sedentárias, as mulheres
vão dedicar-se à busca e à colheita de vegetais, provendo as necessidades
do grupo quanto a este componente alimentar. “ (P. 64-65)
5c) (P. 66)
HOMENS → Caça → Nômades → Exploradores → Caçadores
MULHERES → Colheita → Sedentárias → Rotineiras → Pacíficas
6a) “(...) os laços da ação coletiva e os das regras
de repartição (da caça) misturam-se aos laços
de amizade, numa rede muito densa de
solidariedade “entre homens”.” (P. 65)
7a) “(...) a classe masculina adulta estende a sua
dominação geral e o seu poder organizador sobre o
conjunto da sociedade, onde as outras categorias
biossociais não se podem auto-organizar em classes. É
uma sociedade de classe, em que só existe uma única
classe biossocial, que reina sobre as camadas
biossociais.” (P. 68)
8a) “A paleossociedade é, ao mesmo tempo, mais
coletivizada, menos hierarquizada, mas mais dominada
na sua organização masculina, muito mais complexa na
diferenciação masculina-feminina. A sociedade
hominídea conserva, mas modificado, o princípio de
dominação-hierarquia da sociedade primática. Mas
introduz a novidade de um princípio
cooperativo/socialista de organização.” (P. 67)
9a) “(...) a “classe“ dos jovens não está completada: ainda muito ligada ao
universo das mães no início da adolescência, já muito ligada à classe dos
adultos no decurso ou no final da adolescência. Os homens jovens, sob a
dependência dos mais velhos, só podem escolher entre exclusão ou
submissão: não lhes é permitida uma marginalidade institucional.” (P. 68)
9b) “A classe adolescente é anulada antes mesmo de nascer; (...) durante mais
tempo que os antropóides jovens, os hominídeos jovens brincam,
exploram, são atraídos pela novidade. Assimilando o saber e o saber-fazer
dos adultos, podem introduzir modificações, aperfeiçoamentos, inovações.”
(p. 69)
9c) “(...) a semi-socialização dos jovens, as suas relações com os
adultos, permitem que a sociedade beneficie diretamente das
inovações e das descobertas. Por outro lado, conservam-se cada
vez mais na idade adulta vários traços da adolescência, como a
amizade, o gosto pela brincadeira, o gosto pela novidade,
inclusivamente a aptidão inventiva, e a juvenilização passa a ser um
fenômeno antropológico.” (P. 69)
10a) “A sociedade hominídea, (...), constitui a sua economia
organizando e tecnologizando as suas duas praxis ecológicas da
caça e da colheita, que se transformam em práticas econômicas.
Tanto uma como outra, são diferenciadas pela primeira divisão do
trabalho que estabelece a clivagem socioeconômica entre homens e
mulheres.” (P. 69)
10b) “A prática da caça já está altamente organizada: ao modo coletivo
da “produção”, isto é, da procura da caça, acrescentam-se regras
coletivas de repartição, isto é, de distribuição e de consumo.” (P.
69)
11a) “(...) a economia emerge com as regras de auto-organização da
sociedade ligadas à praxis ecológica.” (p. 70)
11b) “(...) pode-se ver que o fundamento inicial da economia não é a
“produção” dos recursos, que é pré-econômica, mas sim a
organização da relação ecológico-social segundo um modo
autoprodutor de complexidade social.” (P. 70)
12a) “(...) foi o hominídeo que criou a
linguagem.” (P. 74)
13a) “(...) a linguagem constitui o primeiro sistema
discursivo altamente complexo que emergiu para além
da própria organização biótica, e abre o caminho a uma
prodigiosa complexidade antropológica, cerebral,
individual, social que ainda está longe de ser esgotada
ou saturada...”. (P. 73)
13b) “Torna-se também imprescindível portador cultural do
conjunto dos saberes e dos saber-fazer da sociedade. A
partir de então, enreda-se uma nucleação cultural
integrada no sistema social.” (p. 74)
14a) “(...) a cultura constitui um sistema generativo de alta
complexidade, sem o qual essa alta complexidade ruiria
para dar lugar a um nível organizacional mais baixo.” (P.
75)
14b) “(...) a cultura deve ser transmitida, ensinada,
aprendida, quer dizer, reproduzida em cada novo
indivíduo no seu período de aprendizagem (learning),
para se poder auto-perpetuar e para perpetuar a alta
complexidade social.” (P. 75)
15a) “(...) mas sim sobre uma primeira complexidade pré-cultural que é a da
sociedade dos primatas e que foi desenvolvida pela sociedade dos
primeiros hominídeos.” (P. 76)
15b) “A cultura não começa por ser a infra-estrutura da sociedade, ela passa a
ser a infra-estrutura da alta complexidade social, o núcleo gerador da alta
complexidade hominídea “humana”.” (p. 76)
15c) “(...) a cultura constitui para a sociedade um centro epigenético dotado
de relativa autonomia, como o próprio cérebro de que ela não se pode
dissociar, e contém em si mesma informação organizacional que vai ser
mais rica (...). (...) a cultura é indispensável para produzir homem, isto é,
um indivíduo altamente complexo numa sociedade altamente complexa, a
partir de um bípede cuja cabeça vai dilatar-se cada vez mais.” (P. 77)
16a) “(...) se o desenvolvimento da paleocultura exerce uma pressão
muito grande a favor da cerebralização, inversamente a
cerebralização traz um prêmio de desenvolvimento à complexidade
sociocultural.” (P. 81)
16b) “(...) o prolongamento da infância está ligado à sociedade de uma
forma multidimensional: permite integrar as estruturas
socioculturais fundamentais nos cérebros e as estruturas
fundamentais dos cérebros nas estruturas socioculturais, permite o
desenvolvimento simultaneamente intelectual e afetivo do
indivíduo.” (P. 81)
16c) “O prolongamento da infância, que favorece a complexidade
social, também é favorecido por esta.” (P. 81)
16d) “(...) o atraso do desenvolvimento ontogenético (causado pela
juvenilização) tende a manter no adulto traços infantis ou juvenis,
ou mesmo a deixar o processo inacabado.” (P. 82)
16e) “O adulto é inacabado cerebralmente no sentido em que, passado o
período da infância e da juventude, o cérebro pode continuar a aprender,
procurar novas adaptações, adquirir novas estratégias, novos saber-fazer. A
juvenilização da espécie é uma juvenilização cerebral, quer dizer, a
potencialidade de uma inteligência e de uma sensibilidade jovem no adulto
e até no velho.” (P. 83)
16f) “Torna-se bem evidente que o grande cérebro do sapiens só pode advir,
medrar, triunfar, após a formação de uma cultura já complexa (...).”(P. 86)
16g) “(...) o término da hominização é ao mesmo tempo um começo. O
homem que se completa em Homo sapiens é uma espécie juvenil e infantil;
o seu cérebro genial é débil sem o aparelho cultural; todas as suas aptidões
têm necessidade de ser alimentadas ao biberão. A hominização termina
numa falta de acabamento definitiva, radical e criadora, do homem.” (P.
89)
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