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Universidad de Oslo
presente aproximação à temática “ética e literatura” destina-se a
deliberar sobre o impacto da ética, no seu sentido católico-doutrinário, no momento crucial do desenvolvimento da prosa narrativa
lusófona, que representa o Barroco literário. O problema em relação à obra
escolhida, o Compêndio narrativo do peregrino da América (doravante
denominado Compêndio) de Nuno Marques Pereira, não consta de não
haver nela elementos éticos, porque tem, literalmente, centenas de páginas
de diálogos de ordem filosófico-moral. Não se trata, pois, neste caso, de
identificar as qualidades éticas duma obra literária. O problema será o de
identificar e reconhecer as qualidades literárias duma obra filosófica-doutrinal.
Há na literatura portuguesa de Quinhentos e de Seiscentos uma forte
tradição lírica, épica e pastoril. Mantem-se vigorosa a novela de cavalaria,
encontram-se também exemplos da picaresca e da novela exemplar, de inspiração cervantesca (cf. Sletsjøe 2000). Face à diversidade e à riqueza da
literatura contemporânea espanhola, a prosa narrativa do Barroco português (ainda é difícil falar de uma literatura brasileira) caracteriza-se antes de
tudo pela sua força artística limitada e pelo seu número limitado. O material a ser apresentado aqui faz parte de um estudo mais extenso intitulado
A
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Variantes do alegórico na literatura barroca lusófona, e que, por sua vez,
entra num projecto sobre a chamada “prosa ética” do Barroco português.
Os outros textos a serem estudados nesse projecto são, entre os mais
pertinentes, o Predestinado Peregrino e seu Irmão Precito (1685) de Padre
Alexandre de Gusmão, A Preciosa. Allegoria Moral (1731) de Sóror Maria
do Céu1 e o anónimo Obras do Fradinho da Mão Furada, obra atribuída, ao
longo da história literária dos últimos três séculos, a vários autores eclesiásticos seiscentistas mais a um dramaturgo judeu, que foi queimado publicamente em 1739 (cf. Sletsjøe 1997). São todas obras hoje em dia pouco
estudadas e quase ignoradas, de acordo, aliás, com a prosa de ficção da
época na sua totalidade. A nossa intenção ao abordar a problemática indicada no título do estudo referido, é focar o elemento alegórico da prosa
narrativa barroca de língua portuguesa, atribuindo, por agora, maior
importância à obra de Nuno Marques Pereira. A apresentação actual não
pode entrar na descrição, e na discussão, da complexidade alegórica desta
obra em si,2 embora represente ela, em nosso entender – e aí discordamos
de muitos outros – um factor decisivo e subtil do texto de Marques Pereira:
Na prosa moralista da época, de que é o Compêndio de Nuno Marques
Pereira um representante de primeira ordem, a presença do alegórico tem
um papel fundamental, na medida em que representa um elo de ligação
entre doutrina e estética.3
A ambição literária
Sabemos muito pouco sobre a vida do autor Nuno Marques Pereira. A sua
obra encontra-se, a saber, classificada entre os textos da chamada “literatura jesuítica” da história literária brasileira. As informações de que dispomos são tanto incertas como divergentes.4 O facto de todos os autores que
fazem parte do nosso corpo de estudo da prosa ética lusa, serem religiosos
(freiras, frades, padres ou antigos seminaristas) não é acidental; a cultura
intelectual do fim do século XVII e, até, a do começo do século seguinte,
continuava a ser exclusivamente eclesiástica. Era também uma cultura
“atrasada”, em relação às correntes culturais de outros paises europeus,
como a Itália, a Espanha e a França. Neste quadro, a cultura lusa ocidental,
a da colônia americana, representou, devido sobretudo à distância geográfica, “um atraso de segundo grau”. É neste quadro que se coloca o nosso
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Compêndio, escrito no Brasil, editado em Lisboa, por um autor que, do
ponto de vista cultural e social, fez parte tanto do reino como da colónia.
Escreve Wilson Martins sobre a situação cultural lusa da época: “Mas, é
preciso aceitar a idéia de que o século XVII mental ainda não estava encerrado nos meados do século XVIII para compreender que a terceira edição
do Peregrino da América, aparecido em 1725 e reimpresso três anos mais
tarde, pudesse surgir em 1752 [...].” (Martins 1978:361) E quanto à data
de edição da obra, avisa que “é, apesar da data, um livro do século XVII”.
(Op.cit.:209)
Dentro do grupo de textos mencionados, tanto a intenção autoral ao
recorrer ao modo alegórico como o funcionamento alegórico em si podem
variar de obra para obra; umas são alegorias completas e outras, como é o
caso do Compêndio, introduzem a dimensão alegórica só de vez em quando
no decorrer da história relatada. Têm, no entanto, características comuns
no plano da acção. Entre elas, a mais importante é a de representarem
todas a luta entre o Bem e o Mal tanto no plano universal, no individual do
dia a dia terrestre, como no plano íntimo, o da consciência. No Compêndio
de Nuno Marques Pereira o protagonista, o Peregrino da América, entra,
nas suas andanças brasileiras, de vez em quando numa paisagem alegórica
para depois sair dela, o que é também o caso do protagonista-soldado das
Obras do Fradinho da Mão Furada. Estas paisagens alegóricas distinguem-se do mundo “real” – o que, no caso do Compêndio, é a descrição da vida
brasileira da época – por criarem uma realidade tanto física como mental à
parte, o que acontece, sobretudo, na segunda parte da obra. Nesta última
parte, impressa só em 1939,5 o impacto do alegórico é muito maior, o que,
na nossa opinião, mostra a progressiva ambição artística de Nuno Marques
Pereira em se tornando autor duma obra de ficção.
Ao começar o seu estudo sobre um outro autor dedicado ao pensamento ético, o inglês William Langland – um autor que, como Nuno
Marques Pereira, combinava o desejo de narrar com o de ensinar e despertar os seus leitores para estes, no fim, se salvarem – B. J. Harwood tem estas
reflexões:
When William Langland begins to write the poem we know as Piers
Plowman, does he think of himself as beginning a process of discovery?
Or does he think of himself as acting primarily on a moral duty to say
what he knows? Does he begin with what he considers an adequate idea
of contemporary corruption, notwithstanding a possible doubt about his
authority to denounce it? Or does he represent in his poem the desire for
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a change in himself? (Britton J. Harwood: Piers Plowman and the Problem of Belief, pg. 3)
As perguntas referidas podem ser válidas também no caso de Nuno Marques Pereira no momento em que, pena na mão, aborda a sua longa peregrinação literária e confissional por terras brasileiras e por escritos de origem variada. Faz isso seguindo, de longe, a trilha literária do clérigo inglês
trecentista embora, provavelmente, o conhecesse só por via de sucessores
intermediários nacionais e estrangeiros. Como Piers Plowman e, mais
tarde, a obra seiscentista inglesa de John Bunyan, Pilgrim´s Progress, e
ainda a obra seiscentista portuguesa, o já mencionado Predestinado Peregrino e seu Irmão Precito do Padre Alexandre de Gusmão, o Compêndio é
uma obra didáctica. É-o sob todos os aspectos, não obstante os exercícios
de humilitas repetidos dos avisos aos leitores, das dedicatórias à Virgem, e
proferidas até, como que compulsoriamente, pela maioria das figuras que
nela vão falar. É uma obra didáctica cujo autor também se esforça, se bem
que mal sucedido, segundo a opinião da maioria dos críticos literários, de
vários modos, como veremos adiante, por lhe conferir as qualidades artísticas duma obra de ficção.6 A crítica literária, e sobretudo a brasileira das
últimas duas gerações, tem estimado pouco a obra de Nuno Marques
Pereira; importa-lhe, ao que parece, negar à obra qualquer posição significativa no cânon nacional, focando tão-somente o seu carácter formal antiquado.7 Enquanto obra didáctica recorre, claro está, à doutrinação católica
tridentina; enquanto obra de ficsão recorre, como as outras obras mencionadas, sobretudo à alegoria medieval, adaptando esta ao seu projecto
narrativo de Setecentos:
[...] por isso vos ofereço este meu Peregrino, para que [...] o ampareis com
vossos patrocínio [sic.]: pois só em vós confio, como tão grande intercessora e medianeira para com vosso filho, o meu Senhor Jesus Cristo, que
sendo para seu santo serviço, e bem das almas, o deixe correr, e andar
peregrinando na estampa como coisa vossa, que vos dedico, e ofereço. (Da
dedicação à Senhora da Vitória, assinada pelo autor, I:22)8
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Uma psicomaquia ficcionalizada
As obras referidas representam variações literárias dum topos predilecto do
Barroco, o da peregrinação da alma no mundo, tratado, com mais ou
menos intensidade dramática, como psicomaquia. A tal luta da alma – e
pela alma – transformou-se, nas obras referidas, em narrativas alegóricas ou
semi-alegóricas decorridas dentro de paisagens diferentes. Como tais, são
exemplos da alegoria moral e didáctica, pois têm o intuito de ensinar e
divertir, ou seja a dupla intenção didáctica e recreativa.9 A intencionalidade recreativa do Compêndio de Marques Pereira não é percebido com
facilidade por um leitor moderno, pois é, na sua totalidade, uma obra literária de carácter ficcional limitado. A intenção recreativa do autor é, no
entanto, indiscutível, e vai de mãos dadas com o intento didáctico da composição alegórica. Explica-a o autor desta maneira ao “discreto e pio leitor”
no prólogo à primeira parte:
E se repares no estilo, por ser em parte parabólico, tenho exemplo de muitos Autores espirituais, que usaram desta frase, e gênero de escrever: e o
mesmo. Cristo Senhor nosso tratando sólida doutrina com os homens,
para melhor os persuadir, o praticou, e ainda hoje, com maior razão nos
tempos presentes, para convencer ao gosto dos tediosos de lerem, e ouvirem
ler os livros espirituais, são necessários todos estes acepipes, e vindas. E se
não, vede o que se estila, e pratica nos banquetes de agora, oferecendo-se
nas mesas aos convidados no primeiro prato várias saladas, para mais
agrado e gosto do paladar. Isto, que sucede nos banquetes do corpo, vos
quis praticar neste banquete da alma.(I:25-6)10
Dá-se mais ênfase ainda ao elemento recreativo no prólogo do segundo
tomo, onde se gaba Marques Pereira da excelente recepção que teve o primeiro tomo e diz: “Por supores, com razão, que foi todo o meu desígnio
escrever matéria útil, estilo claro, idéia deleitável.” A seguir faz referência a
outros autores que influenciaram a obra, entre eles Alexandre de Gusmão e
António Vieira. Também menciona Cervantes, como exemplo de autores
profanos “que usaram de muitas humanidades, e moralidades, debaixo das
quais mostraram doutrina muito importante ao bom regime, e governo
político”. (II:34)
Enquanto estruturas narrativas as obras portuguesas já mencionadas são
mais ou menos complexas, embora a narrativa linear veiculada por um
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narrador heterodiegético seja a forma mais corrente – salvo na obra de
Nuno Marques Pereira. Vamos, portanto, primeiro focar a estrutura narrativa da obra, começando por examinar mais de perto o narrador Peregrino
– as suas intenções, as suas qualidades e o seu projecto comunicador.
A estrutura narrativa
Já na introdução do Compêndio, o Peregrino é apresentado como narrador
em primeira pessoa e a sua localização geográfica é descrita detalhadamente. A narrativa começa retrospectivamente em frente da igreja Mãe de
Deus em Salvador da Bahia, onde ele encontra pela primeira vez o Ancião
que se tornará o seu interlocutor e “guia espiritual”:
[...] avistei um venerável ancião, que dirigia seus passos para o mesmo
lugar, onde eu estava. Vinha ele vestido à cortesã, barba crescida, e muito
branca; cabelos próprios até os ombros; com um báculo na mão; e no alto
dele um relógio do Sol, e outro de horas, que em um cordel o prendia, e
lhe servia de prumo, quando dele usava. (I:35-6)
Apresenta-se então o narrador: “Eu, senhor, (lhe respondi) sou peregrino,
e trato de minha salvação.” (I:36). “A utilização da palavra peregrino
parece assumir apenas o sentido prático de deslocação no espaço, indicando o acto de viajar de um lado para outro.” As palavras são as de Sara
Manuela Augusto, autora duma tese de mestrado de 1995, até agora o
único estudo científico encontrado sobre a obra de Nuno Marques Pereira
(Augusto 1995:14-15). A constatação faz parte da discussão em que entra
a autora sobre a naturalidade muito discutida do autor Nuno Marques
Pereira. Cita-se o seguinte trecho do texto, tirado da página 188 do
segundo tomo da edição de 1939: “Appellido-me por Peregrino da América, porque tenho tomado por empresa andar nesta peregrinação para ver,
e observar, e escrever o que tem succedido, e succede neste Estado do Brasil, para dar a saber aos mais, que de presente existem, e ficar por lembrança para os que de futuro vierem.”
A obra tem, obviamente, uma perspectiva didáctica dupla – a de descrever o status quo do Brasil de então do ponto de vista geográfico-económico,
social, cultural e moral, e a de descrever para ensinar o melhor caminho a
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andar para a salvação. A nosso ver, este último aspecto não só domina o
texto do ponto de vista “quantitativo”, como é, sem a mínima dúvida, a
perspectiva primária do narrador. Recorramos, por isso, à auto-introdução
acima citada, que faz o Peregrino em frente do Ancião na segunda página
do tomo I. As palavras proferidas (“Eu, senhor, sou peregrino e trato da
minha salvação”) resumem também a temática da obra, seja qual for a
situação narrativa ou dramática. O Ancião responde-lhe: “Sabei que é este
mundo estrada de peregrinos, e não lugar, nem habitação de moradores;
porque a verdadeira pátria é o céu [...].” (I:37) Esta lição será constantemente repetida e variada ao longo da obra, proferida não somente pelo
ancião, mas também por numerosas outras figuras de carácter diferente
que também servem de guias espirituais e instrutores religiosos ao Peregrino e aos seus companheiros ocasionais.
A conversa que se segue sobre assuntos teológicos e morais culmina com
um convite da parte do Ancião para que o Peregrino lhe conte a sua história: “Resta agora que me deis notícia de vossa peregrinação.” Isso leva o
Peregrino a abordar também a sua própria capacidade de jovem narrador:
Tão obrigado, e satisfeito (lhe disse) me considero, que por dívida tenho
não faltar ao que me pedis: e mais ainda, quando vos vejo tão douto,
como ensinado do tempo, e com tão largas experiências, que estas se não
podem adquirir, senão depois de muitos anos. Por cuja razão levo seguro
abonador à minha narração, ainda que me reconheço pouco verboso; e
menos elegante no estilo. (I:42)
A narração retrospectiva do Peregrino começa (embora isso de facto aconteça só a partir do capítulo V) com o relato da sua ida às Minas do Ouro –
o “centro do vício” da colónia – e continua, sempre na forma de diálogo,
abrindo o Ancião frequentemente um capítulo novo com uma pergunta
ligada àquilo que foi narrado no capítulo anterior. Há capítulos, contudo,
onde a presença do Ancião mal ou não se nota, e onde o diálogo se refere a,
ou é travado com, outros agentes, como “o morador” e “o sacristão”,
havendo assim histórias intercaladas onde entram outros personagens. Um
bom exemplo disso são os episódios exemplificantes e até dramáticos dos
dez mandamentos (que representam a crítica aos moradores e aos governadores da colónia). Esta é a situação narrativa corrente até ao capítulo
XXVIII – o último do primeiro tomo. Termina o capítulo com o prolongado aviso espiritual da parte do Ancião, aviso que serve de recapitulação
das lições e dos capítulos prévios.
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Nos casos conhecidos e relatados em “segunda mão”, na forma de diálogo dentro do diálogo, o Peregrino cede a palavra a narradores temporários e torna-se, de passagem, um narrador homodiegético. A presença destas histórias intercaladas – estrutura narrativa aliás tão típica da ficção da
época – tem, no entanto, uma explicação lógica, se bem que o sucesso
artístico na maioria dos casos tenha sido disputado. Por outro lado, o Peregrino, já ao iniciar a sua narração, preocupa-se com suas limitações artísticas, como acabamos de observar. A mesma modéstia dá a conhecer da
parte da própria pátria ao terminar o primeiro capítulo:
Não me começarei a inculcar pelo solar de meu nascimento, ou alabanças da minha pátria [...]. Não me eximindo porém, quando no fio da
história passar por ela, de publicar suas excelências, que algumas
incluem em si, como notoriamente se sabe. E assim, só tratarei agora do
que faz ao nosso intento,... (I:42)
O “fim” do Compêndio
Deter-nos-emos por um momento no capítulo final, por representar este
em toda a história receptiva “activa” da obra também o ponto final do
texto, e onde o interlocutor-mór, o Ancião, entrando em actividade outra
vez, na véspera da sua partida e, depois da prolongada escuta, dando quase
à maneira de sermão os seus últimos conselhos morais e espirituais (em
onze páginas seguidas), termina proferindo estas palavras:
Também vos advirto, que se não tomardes os meus conselhos e avisos, perdereis três coisas: tempo, saúde e salvação. Tempo, porque não achareis
mais; saúde, porque enfermareis no pecado; salvação, porque vos deixareis ir ao inferno [...]. E por última conclusão de tudo quanto vos tenho
dito, vos peço pela sagrada Paixão e Morte de JESU Cristo, que cuideis
muito de vagar nisto que vos aviso, enquanto de vós me despeço, por me
ser preciso ir assistir a outro lugar, prometendo-vos, que, se Deus vos dilatar a vida, tornarei a buscar-vos, para continuarmos a segunda parte
deste compêndio, quando tenhamos a dita de ser aprovado o que nele
temos escrito. (I:444)
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Vários dias já passaram quando, afinal, o Ancião confessa ao Peregrino a
sua identidade verdadeira, a do tempo bem empregado: “E assim conhecei
agora, que eu sou o tempo bem empregado. De mim têm falado vários
autores sagrados e humanos; e que existo no mundo, desde o primeiro
século em que Deus me fez e toda esta máquina do Universo.” (I:433)
Ao concluir, conta o Peregrino:
E sem mais esperar resposta, da minha presença desapareceu o tempo. E
agora acabo eu de entender, (continuou o peregrino) que falta o tempo a
quem o busca: o qual, como mensageiro de Deus e ministro da fortuna,
decretou faltar-me quando eu mais o desejava. E por esta razão, ferrarei
agora as velas do meu discurso e narração, suspendendo a pena desta
escrita, e lançarei âncora no mar da esperança, até que torne a chegar o
tempo bem empregado, para continuarmos a segunda parte deste compêndio, que vos prometemos se Deus for servido. (I:444-5)
A declaração, e sobretudo a autoconsciência narrativa não só duma história contada, como também da autoria dum compêndio escrito, não harmonizam com a posição do Peregrino enquanto narrador estilisticamente preocupado do primeiro capítulo. A informação dada entre parênteses “continuou o peregrino” dá a entender uma mudança na qualidade do narrador
– do narrador autodiegético do relato corrente até aí, a um narrador heterodiegético até a este momento despercebido: “Sujeitando-me em tudo
quanto tenho escrito neste livro, com rendida vontade, à correção da Santa
Madre Igreja de Roma. E hei por não dito, tudo aquilo que não for conforme aos divinos preceitos e a nossa Santa Fé Católica. SÓ A DEUS SE
DEVE A GLÓRIA.” (I:444-5). Este último parágrafo faz pensar em palavras finais duma voz autoral. Mesmo assim, estas palavras encontram-se
dentro da narração e, consequentemente, dentro da ficção.
Não é somente a mudança na posição narrativa que merece a nossa
atenção, pois tem precedentes na prosa narrativa barroca;11 mais importante parece-nos a passagem do oral (e do visual, sobretudo nas partes alegóricas) ao escrito. Até a este momento, o relato do Peregrino, seja ele contado por boca própria ou recontado por boca alheia, tem feito parte dum
diálogo travado com o dialogante/ouvinte/orientador-Ancião. As últimas
palavras deste diálogo (mais o diálogo que o encaixa) referem-se ao relato
como “compêndio” (quem assim o caracteriza é o Ancião) e da necessidade
de “suspender a pena desta escrita” (palavras do Peregrino). Se bem que a
palavra “pena” possa ser interpretada também como “esforço” ou “fadiga”
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da missão cumprida, será lógico interpretá-la, neste contexto, como instrumento destinado a escrever. A advertência que fazem os dois duma possível continuação da história – e dos problemas que encontrarão em cumpri-lo – é, no entanto, prática corrente na literatura da época.
A estrutura narrativa no Compêndio de Marques Pereira pode não ser
simples, mas é, mesmo assim, consistente até a este último parágrafo do
primeiro tomo. Será que o autor, depois de tantas páginas escritas, deu um
passo em falso? Outra opção pode ser que se valeu (como também o fez,
dentro da literatura contemporânea lusa, Gaspar Pires de Rebelo, inspirado pelas novelas espanholas) de um novo ideal narrativo, duma nova
prosa à procura da sua própria forma estilística e artística. – A revelação da
identidade do Ancião é por si só um sinal de familiaridade da parte de
Nuno Marques Pereira com as Novelas Exemplares do autor seiscentista
português, embora nesse último caso “o tempo bem empregado” não se
encontre alegorizado.12
Ao abrir o segundo tomo, o da continuação anunciada, mas durante
dois séculos não publicada, o Ancião torna a buscar o Peregrino, um mês
depois de o ter deixado para dar uma volta pelas cortes da Europa:
E como me lembrasse do que vos havia prometido, quando nos apartamos, [...] e como vos deixei em casa do Padre Capelão, no ponto em que
íeis tratando da vossa peregrinação: tomara agora que fizeras o favor de
continuares o mais que vos aconteceu na vossa viagem até o presente [...].
(II:49)
O leitor vai, portanto, ouvir o resto da história até ao momento do encontro inicial no primeiro capítulo. Com o capítulo III inicia-se a longa
sequência de cunho alegórico muito marcado, e que, como já apontámos,
realça muito a ficcionalidade da narrativa. Esta sequência, que continua
até ao capítulo XIII e que representa as experiências alegóricas do próprio
protagonista-Peregrino, é interrompido somente por uma digressão sobre
notícias internacionais ou, mais precisamente, pela informação dada ao
Peregrino pelo Ancião, sobre o terremoto de Palermo em um de Setembro
do ano 1726 (cap. X) e, ultimamente, pela história de dois jovens que
encontra o Peregrino no caminho, ao sair do terreno alegórico. Os jovens
acompanham-no até ao Templo da Enfermidade e à casa da Santa Doutrina (cap. XV), onde o Peregrino fica a filosofar sobre a condição humana
(caps. XVII e XVIII) e sobre os quatro Novíssimos do homem: a Morte
(cap. XIX), o Juízo (cap. XX), o Inferno (cap. XXI) e o Paraíso (cap. XXII).
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Termina o segundo tomo no capítulo XXII, e à mesma maneira do primeiro: com o Ancião querendo mais uma vez ausentar-se por algum
tempo. Promete, no entanto, voltar a procurar o Peregrino para comporem
juntos mais um tomo do compêndio:
E logo da minha presença se ausentou, deixando-me na futura esperança
de o tornar a ver; por conhecer, que para o Tempo não pode haver prerrogativa que o detenha, nem persuadição que o dilate. E por agora dobrarei aqui a folha desta escrita, até que suceda tornar outra vez o Tempo
bem empregado, para continuarmos na terceira parte deste livro, quando
assim o permita Deus. (II:317)
Uma obra orientada para o futuro?
Se é verdade que se cria com a narração encaixada dum diálogo, dedicado
aos assuntos da alma entre o Peregrino e o Ancião, um ambiente alegórico,
podemos constatar que nem todos os acontecimentos ou encontros de que
tem experiência primária e secundária o protagonista Peregrino cabem
dentro desse decurso alegórico. O texto de Nuno Marques Pereira é, portanto, até neste aspecto um texto híbrido – como também o é o anónimo
Obras do Fradinho da Mão Furada, obra contemporânea ou, mais provavelmente, seiscentista. (Esta última tem, não obstante o facto de combinar
o diálogo doutrinal, o picaresco e o alegórico, uma forma mais acabada.
Por ser também um texto altamente irónico, é uma obra muito divertida.)
Voltemos ao Compêndio e às palavras autorais13 do já citado proémio
“Ao Leitor” do primeiro tomo:
A este propósito me lembra, que estando eu em casa de um amigo lendo o
Báculo Pastoral, entrou um destes loucos Peripatéticos, desvanecido com
presunções de discreto; e sabendo do título do livro, me disse, que nenhum
homem de juízo se ocupava em ler livro tão vulgar. E ouvindo eu, se não
blasfêmia, proposição tão mal soante, lhe perguntei: pois que livro se há
de ler? E logo me respondeu ufano: Góngora, Quevedo, Criticon: [...]
Novelas, e Comédias, porque estes livros ensinam a falar. Pois eu
entendo, Senhor, (lhe disse) que esses livros, e outros semelhantes ensinam
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a falar, para pecar; e este, e outros espirituais ensinam a obrar, para salvar.
Não é para este, a quem ofereço o meu Peregrino da América, senão
para vós, querido e amado leitor: e vos peço, quando nele acheis alguma
coisa que vos agrade, louveis a Deus, que por mão de uma humilde criatura vos quis dar prato de que gostásseis; para que em recíproca união
vamos a gozar da Bem-aventurança em presença de Deus. Vale. (I:26-7)
A preocupação com a parte artística e estética da composição literária notase, aliás, ainda mais na longa sequência alegórica do tomo II, nos encontros que tem o Peregrino com a Mestra da Poesia, entre outras, e vai, na
obra inteira, de mãos dadas com a intenção, ou a obrigação, didáctica,
como começámos por constatar. As reflexões apresentadas pelo narradorprotagonista ao terminar o primeiro e depois o segundo volume narrativos, fazem ver um narrador que tem mais confiança em si mesmo e na sua
capacidade artística. Será que esta autoconfiança remete também para o
autor inicialmente tão desconfiado a respeito da literatura? Será que a
mesma autoconfiança, para voltar à pergunta do estudioso inglês citado
logo no início, produziu nele uma mudança, “a change in himself ” – artística? E: se conseguiu transformar o seu projecto ético em literatura, fê-lo
não obstante a diversidade genérica do seu Compêndio, ou devido à mesma?
Quem não tiver, em princípio, uma opinião muito negativa do texto e
da diversidade formal por que é constituído, tem duas opções: Pode considerá-lo uma relíquia de géneros e épocas literários ultrapassados já há
muito, e como tal uma obra representativa sobretudo da cultura lusófona
colonial dum determinado momento histórico,14 como um exemplo da
“deslocação” de que fala Jon Whitman (1987).15 Alternativamente pode
ver, precisamente na hibridez genérica do Compêndio – cem anos depois de
sair, no país vizinho, o Quixote, obra evidentemente duma qualidade artística muito superior – paradoxalmente um exemplo, ou um esboço, da
prosa narrativa vindoura da literatura lusófona. Optaremos – depois de
muito reflectir sobra as suas setecentas páginas prolongadas de diálogo
doutrinal, de alegoria religiosa e profana, de manual de viagem e de história literária, de crítica social e de louvor da opulência da terra brasílica –
por esta última alternativa. Reconhecemos neste esforço artístico autoral,
baseado na justaposição estilisticamente pouco acabada dum diálogo de
cunho renascentista e a alegoria medieval, e que se adapta, explicitamente,
à realidade setecentista, por mais paradoxal que pareça a conclusão, também um sinal de modernidade.
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Notas
1 Referimo-nos à versão crítica publicada por Ana Hatherly (1990).
2 Uma análise específica do elemento alegórico da obra será publicada em outro estudo
intitulado “A alegoria paralelística do Compêndio narrativo do peregrino da América de
Nuno Marques Pereira”.
3 Entre os exemplos de prosa doutrinal propriamente dita – textos que têm um nível de
ficcionalização limitado – que muito influenciaram o Compêndio, encontram-se várias
obras dialogadas, como os Diálogos das Grandezas do Brasil (escritos em 1618, provavelmente por Ambrósio Fernandes Brandão, e publicados em 1930 pela Academia Brasileira de Letras), os Diálogos (1589) de Frei Amador Arrais e a Imagem da Vida Cristã
(1566 e 1572) de Frei Heitor Pinto. A obra de Pinto foi um grande êxito; em 32 anos
publicaram-se 10 edições. É constituída por 11 diálogos e caracterizada pelo Autor no
seu Prólogo da primeira parte “como estátua e imagem da vida cristã, repartida em diálogos como em membros duma figura”, (Pinto 1952:2-3). O primeiro diálogo, o “Diálogo da Verdadeira Filosofia”, que tem como interlocutores “um filósofo, um seu companheiro e um ermitão” abre desta maneira, não muito diferente da abertura do Compêndio: “Indo praticando pelos sinceirais de Coimbra ao longo do Mondego dois amigos, que saíram da cidade, um deles dado muito ao estudo da humanidade [...] encontraram com um ermitão, homem religioso e letrado [...]. “ (Ibid., pg. 7) Como no caso
da obra de Nuno Marques Pereira, o tópico da obra de Frei Heitor Pinto, esta “obraprima de ascética cristã”, como é caracterizada por António Cirurgião, é a vida como
viagem, a indicação do caminho que melhor poderá conduzir o homem ao paraíso, seu
último fim e “pátria natural”: “Há na Imagem da Vida Cristã dois tipos de viagem: a do
autor, escondido por detrás dos vários alter-egos, em disputationes escolásticas com as
diversas personagens que vai encontrando pelo caminho, desde Portugal à Itália, com
passagem por Espanha e por França; e a viagem do cristão, na sua qualidade de peregrino da eternidade – uma viagem de carácter geográfico e outra de carácter escatológico.” (Cirurgião 1997:136, nota 9)
4 Barbosa Machado descreve-o, em 1752 na sua Bibliotheca Lusitana, como “instruído na
lição da História Sagrada, e profana” (Machado 1966:505). Raimundo de Menezes da
Academia Paulista de Letras, que parece ter informação mais detalhada, escreve: “N. Na
Vila de Cairu, distante 14 léguas da Baía de Todos os Santos (Barbosa Machado), ignorando-se a data [...]. Rodolfo Garcia mostra-se incerto a respeito de todos esses vagos
informes, acreditando até que esse escritor não tenha nascido no Brasil. [...] Não chegou
a bacharelar-se em Direito, embora haja cursado a Universidade de Coimbra. Não é
muito certo que tenha seguido a carreira eclesiástica, sendo Garcia de acordo que residiu
na Bahia, em 1691. Teria estado na Vila de Camamu, tendo fugido por causa de crimes
que praticou. F., em Lisboa, a 9 de dezembro de 1728 (segundo Barbuda).” (Menezes
1978: 527)
5 A segunda parte da obra foi editada postumamente, impressa pela primeira vez pela
Academia Brasileira de Letras em 1939– duzentos anos depois de escrita. Não se pode
ter a certeza de o autor tê-la composta na altura de terminar e editar a primeira parte,
nem se podem conhecer as razões (pessoais ou económicas) porque ficou inédita a
segunda. Tampouco se conhece o ano da morte do autor; Augusto (1995) opta pela opinião de o autor ter morrido só depois de 1733, enquanto os editores da edição da Academia Brasileira de 1988 dizem em nota à dedicação à Senhora da Vitória, assinada pelo
autor, que “Evidentemente já a tinha composta Nuno Marques Pereira em 1725. [...]
Porque então não mandou à imprensa o resto da obra? Seguramente porque já não vivia
o autor [...].” (I:446, nota 3)
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ANNE SLETSJØE
6 Quanto ao referido crítico e historiador literário brasileiro Wilson Martins (1978),
autor da volumosa História da Inteligência Brasileira, onde dedica várias páginas à descrição do Compêndio, é interessante fazer duas observações: A orientação inclui erros
factuais com respeito à distribuição do texto entre a) protagonista/narrador e b) autor
(pg. 314), e também com respeito à distinção entre protagonista e outra figura secundária (Peregrino/Pastrano, pg. 320). Cf. também nota 13. Falta, ainda, o que é mais
grave, a apreciação do impacto alegórico do segundo tomo.
7 Escreve Wilson Martins sobre a obra, referindo-a à obra de Alexandre de Gusmão:
“Tudo isso é enquadrado pela penosa alegoria que, vinda do Predestinado Peregrino, prolonga-se no Peregrino da América. [...] No cap. XXVIII, que é o último, o Ancião [...]
promete uma segunda parte que só em 1929 foi publicada e já não pode esconder considerável dispnéia literária. Foi esse, também, como se sabe, o destino do Roman de la
Rose, ainda que se possa responsabilizar a dupla autoria pela maior parte da sua queda de
pressão. Mas, que o Peregrino da América estenda ao século XVIII um gênero e uma
´forma mentis´ que encontraram no 13.o o seu clima próprio, é índice espantoso de
falsa sobrevivência; é também verdade, entretanto, que a intrusão do fato brasileiro restitui-lhe, pelo menos em parte, uma certa atualidade intelectual.” (Martins 1978: 320)
A Raimundo de Menezes (1978:527) interessa sobretudo a questão genérica: ”[...] não
é de modo algum um conto ou uma novela [...]. Não se pode dizer que o livro de Marques Pereira haja iniciado o gênero romanesco ou novelístico no Brasil. É, porém, uma
ficção, como são também os Diálogos da Grandeza do Brasil.” Quem escreve mais favoravelmente sobre o Compêndio é Celso Pedro Luft (1987:275): “Narrativa alegórica de
forma de uma viagem, com intuitos morais, estrutura-se em forma dialogada: conversa
entre o peregrino e um ancião (símbolo da experiência e da sabedoria). [...] Esse
romance alegórico tem aspectos literários positivos, como o movimento e o colorido, e
a riqueza e dutilidade da prosa. Apesar da adesão ao barroco, a sua linguagem tende a
maior comunicabilidade e simplicidade.”
8 As citações referem-se à edição de 1988 da Academia Brasileira, ortograficamente
modernizada. Os algarismos romanos I e II representam o primeiro e segundo tomos
respectivamente.
9 Dizem as palavras finais do proémio da obra de Alexandre de Gusmão: “O que nos
importa, he caminhar para a nossa patria, saber os caminhos, & procurar a entrada, para
o que nos servirá de guia e exemplo da historia, ou parabola seguinte.” No prólogo da
obra da religiosa portuguesa, que aliás já no título se descreve como “allegoria moral”,
comenta o comentador anónimo tanto o estilo como a intenção autoral: “Das refferidas
pallavras do Apostolo S. Paulo, escriptas a seu discípulo Timotheo parece fez fundamento a insigne Authora desta maravilhoza obra, para moralizar com discreta allegoria
taõ varonil empreza, pois vaticinando o Santo que veria tempo, em que se desse mais
credito ao fingimento das fabulas, que as doutrinas solidas [...] e para que a liçaõ delle
fosse a todos de proveyto lhe traçou com sutil idéa o agradavel estillo desta moral alegoria por que recreando aos que lecem, juntamente lhes fosse util, encubrindo com o dourado disfarce de sua varia erudiçõ este saudavel remedio às enfermidades do espirito,
para que as almas, preciosas joyas da graça, livrandosse de todo o perigo, naõ chegasses
a experimentar o eterno estrago.” (Hatherly 1990:LXXVIII)
10 Cf. as palavras finais anónimas do A quem ler do Fradinho: ”De cinco folhetos te dou
esta beberagem. Se te não souber bem, suspende no primeiro a tua direcção, que te não
vai nisso nada. Calunia e murmura quanto quiseres, pois és livre e senhor do teu alvedrio, e são baldadas as desculpas com tentações maliciosas.”
11 Até na distinção entre prólogos assinados pelo autor, e narrações encarregadas a um
narrador homo-, auto- ou heterodiegético, podemos observar casos, irregulares aos nossos olhos modernos, como por exemplo nas sátiras de Quevedo.
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DO DIÁLOGO MORAL À EXPERIÊNCIA ALEGÓRICA
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12 Cf. a quinta das Novelas Exemplares (1650) de Gaspar Pires de Rebelo. A novela de
Rebelo tem, além do mais, uma estrutura narrativa paralela à do Compêndio, na medida
em que a história do pícaro-protagonista, Peralvilho de Córdova, se encontra encaixada
no diálogo que este tem com o seu interlocutor, um velho nobre.
13 O comentário de Wilson Martins ao trecho citado é este: ”Entretanto, para compreender em suas exactas perspectivas esse aparente elogio, algo arcáico, da condição de poeta
e da virtuosidade literária, é preciso lembrar que Pastrano condenava a literatura cultista, não por ser cultista, mas por ser literatura. Depois de citar o Pe. Antônio Vieira
logo nas primeiras linhas, continua ele, no proêmio ´Ao leitor´ [...].” (Martins
1978:314) Como já foi observado (cf. nota 6), Martins confunde a figura Pastrano, que
num episódio alegórico do tomo I tem uma conversa com Desengano sobre o que
necessita um homem para ser bom poeta. Desengano responde-lhe: “Primeiramente
[...] é necessário ser muito lido em toda a lição das Letras Divinas e humanas; conhecer
todos os signos e planetas celestes; saber as fábulas dos antigos e suas origens. E para ser
universal, deve entender todas as ciências, artes e ofícios: e depois disso, estar muito presente nas regras e preceitos da arte poética [...].” (I:404) Não distinguir entre a voz autoral do proémio e as vozes dos agentes da história, só pode significar que Martins não
considera o Compêndio de Nuno Marques Pereira, na sua totalidade textual, uma obra
de ficção.
14 É a tomada de posição de Wilson Martins no capítulo intitulado “Uma cultura frustrada”: “Nuno Marques Pereira [...] embora termine o Peregrino da América em 1725, é,
na verdade, um autor do século XVII, e o seu livro a projeção paradigmática do pensamento nostálgico que, percorrendo-o de ponta a ponta, é ao mesmo tempo, a sua causa
e a conseqüência da sua frustração cultural.” (Martins 1978:167-8)
15 Whitman (1987:259) abre o seu artigo sobre a crise da alegoria das duas partes do
Roman de la Rose afirmando: “In recent years it has become so customary to talk about
crises in the designs of language that to call attention to a crisis seems almost to reassure
us with a norm. In one sense, the problem I would like to consider here is a familiar crisis of this kind. It concerns the development of pressure in a literary work when its
effort to coordinate one point of reference with another begins to break down. Expressed in such general terms, the problem of dislocations in the design of a text applies at
least potentially to nearly any work or genre that seeks to correlate disparate materials
while recognizing their diversity. The problem has a particular force, though, when it
affects the technique of allegorical writing, which makes the interplay between one conceptual framework and another the very principle of its organization.”
Bibliografia
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completas de A. José da Silva, vol. IV), Lisboa. (1958)
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Marques Pereira: dos maus caminhos da terra aos bons caminhos do céu, Tese de
mestrado, (fotocopiada), Lisboa, Universide de Lisboa
Cirurgião, A. (1997): Novas leituras de clássicos portugueses, Lisboa, Edições Colibri
Gusmão, A. de (1685): Predestinado Peregrino e seu Irmão Precito, Lisboa (microfilme da
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Machado, D. B. ( [1752] 1966): Bibliotheca Lusitana, tomo III, Coimbra, Atlântida
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Martins, W. (1978): História da Inteligência Brasileira, vol. I, São Paulo, Editora Cultrix
Menezes, R. de ([1969] 1978): Dicionário Literário Brasileiro, Rio de Janeiro & São Paulo,
Livros Técnicos e Científicos
Pereira, N. M. ([1725] 1988): Compêndio narrativo do peregrino da América, 7.a edição,
Rio de Janeiro, Coleção Afrânio Peixoto vols. 7 (tomo I) e 8 (tomo II), da Academia
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Pinto, Frei H. ( [1566 & 1572] 1952): Imagem da Vida Cristã, Lisboa, Livraria Sá da
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Whitman, J. (1987): “Dislocations: The crisis of allegory in the Romance of the Rose” em
Languages of the Unsayable. The Play of Negativity in Literature and Literary Theory,
Budick, S. & Iser, W. (1987) (eds.), Stanford, Stanford University Press
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