Entrevista com Bárbara Heliodora
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Aos 89 anos, ela está em plena atividade. Vai três vezes por semana ao teatro,
publica crítica de teatro em o globo, tem um livro no prelo, Caminhos do
teatro ocidental (Leya/Solar do Rosário, 2013). Professora Emérita pela unirio, agraciada pela República Francesa com a Ordre des Arts e des Lettres,
condecorada com a Medalha João do Rio pela Academia Brasileira de Letras.
Foi membro do Prêmio Molière e do Prêmio Mambembe, diretora do Serviço
Nacional de Teatro (1964-1966), fundadora do Círculo Independente de Críticos Teatrais (rj-sp)... impossível elencar tudo o que fez e o que faz Barbara
Heliodora. Ah, e que tradutora! De Shakespeare, traduziu todas as peças: Teatro
Completo volumes 1 e 2, Nova Aguilar; infelizmente, o volume 3, ainda não foi
publicado. E traduziu dezessete sonetos. Vamos torcer para que traduza mais.
De Tchekhov, traduziu A gaivota (Edusp, 2000) e O cerejal (Edusp, 2001). De
Beaumarchais, As bodas de Fígaro (Edusp, 2001). De Oscar Wilde, traduziu
Contos e também Histórias de Fadas (Nova Fronteira, 1992; 1994) e ganhou
um Jabuti. E, também, todas premiados com o Prêmio ibeu de melhor tradução: Eugene O’Neill (A mais sólida mansão), Bernard Shaw (Meu querido
mentiroso), Lee Blessing (Um passeio no bosque), Paul Zindel (Os efeitos dos
raios gama sobre as margaridas do campo) e William Luce (A filha de Lúcifer).
Escreveu livros importantíssimos sobre Shakespeare: A expressão dramática do
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Entrevista
homem político em Shakespeare (Paz e terra, 1978), sua tese de doutoramento;
Falando de Shakespeare (Perspectiva, 1997); Reflexões Shakespeareanas (Lacerda, 2004). Para resumir, ela respira teatro. Augusto e eu fomos até sua casa,
no Beco do Boticário, no Cosme Velho, Rio de Janeiro, conversar sobre teatro, sobre Shakespeare, sobre tradução. Ficamos por quase duas horas até que
chegou mais gente para entrevistá-la. Ela não pára. Saímos de lá encantados.
A. Considerando o seu conhecimento de Shakespeare, fale um pouco sobre
Macbeth, Ricardo III e a existência do Mal.
BH: Para Shakespeare o mal é um dado permanente e, principalmente nas tragédias, ele mostra ações nas quais podemos perceber como o homem enfrenta
o mal. O que é que acontece quando o homem se vê diante do mal, que está
presente, de forma mais ou menos intensa, em todas as peças. Assim como a
morte está presente em praticamente todas as peças, mesmo nas comédias. A
ameaça da morte está na Comédia dos erros, em Trabalhos de amor perdido....
Do mesmo modo, há personagens cômicos nas tragédias e personagens sérios
nas comédias, porque na vida tudo é misturado. Por isso, podemos afirmar que
ele tem sempre consciência de todo o panorama à sua volta.
A. No livro Falando de Shakespeare, a senhora fala no amor, no bem e no
mal. Como é que seria o amor entre o casal Macbeth?
BH: Shakespeare ama o ser humano em qualquer circunstância. Não é um
amor piegas; o que Shakespeare considera nesse grande amor à humanidade,
é que a pessoa tenha, como diz Lady Macbeth, “the milk of human kindness”,
o “leite da bondade humana”.
A. Como fica Ricardo III?
BH: Ele personifica o pior dos reis, que também é a pior das pessoas. No final
do Henrique vi, ele diz: “I have no brother, I am like no brother;/ And this word
‘love,’ which greybeards call divine,/ Be resident in men like one another/ And
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not in me: I am myself alone.” (Henry vi, part 3, act 5, scene 6). Creio que, para
Shakespeare, “Eu sou eu sozinho” era a coisa mais condenável que existe, pois
significa não ter a solidariedade humana, jamais pensar no bem do outro ou
zelar por ele. Isso é que é o básico de tudo. Você ter “the milk of human kindness”, solidariedade humana, é o fundamental no que Shakespeare julga ser
o bem. E a frase “I am myself alone” é o que é mal, é não ter amor ao outro.
A. Seria o irmão que trai o irmão?
BH: É o mau que só pensa em sua ambição. Macbeth, por exemplo, Shakespeare condena em vários níveis... mas Shakespeare não é moralizante. Shakespeare não chega e diz: Viu como ele é mau? Não tem isso; Macbeth mata o rei,
e isso tem consequências, representa uma quebra da ordem política; Macbeth
mata um primo, o que é uma quebra da ordem familiar; e mata seu hospede,
a quem devia abrigar. O rei Duncan é rei, primo e hóspede de Macbeth. A
obrigação de Macbeth era proteger o hóspede e não matá-lo... Então, nesses
três níveis, Shakespeare mostra a quebra da ordem natural.
A. O que significa no Hamlet o fantasma do pai que retorna? É o morto que
desencadeia o processo dramatúrgico da peça?
BH: É, eu acho que Shakespeare escreve em uma época na qual os fantasmas
eram comuns; o próprio novo rei, Jaime i, filho de Mary Stuart, era um famoso
expert do assunto, e já havia publicado obras de demonologia. Muita coisa ainda não explicada era controlada por fantasmas. No “Hamlet”, Horacio indaga
do rei morto porque está voltando, pois só haviam três razões para o fantasma
aparecer: a primeira era ter algum conhecimento de algum bem que possa ser
trazido a ele e traga graças a quem o traz; o segundo é saber ele de um mal a
ser feito à pátria, que é forçoso exorcizar; e o terceiro saber de algum tesouro
escondido na terra que precisa ser encontrado. Só o morto poderia contar a
Hamlet o acontecido.
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A. O fantasma é realmente o pai ?
BH: É. Mas, de certa maneira, o fantasma do pai é uma concretização do que
o Hamlet já pensava do tio porque no primeiro monólogo do Hamlet, ele fala
do tio com bem pouca simpatia, reclamando do casamento às pressas, quando
ele ainda não sabe que o pai foi assassinado. Há, na peça, igualmente, uma impossibilidade de a notícia do assassinato chegar ao Hamlet por qualquer outro
meio, já que Claudius, nesse primeiro crime, não depende de ninguém e encontra o irmão em um ponto isolado onde ia para refletir. A gente (e a plateia)
sente o quanto Hamlet já acha aquele tio uma força negativa. Shakespeare também não teria outra maneira de informar Hamlet do assassinato do pai a não
ser pelo fantasma. Mas, o fantasma é algo que aquele público aceitava como
perfeitamente viável e ainda serve como uma concretização dessas suspeitas ou
desconfianças que Hamlet já nutria em relação ao tio desde o início da peça.
A. Pensando nos destinos dos personagens, a causalidade da vida daqueles
personagens, e esses elementos que aparecem....
BH: Em todas as peças, o desenvolvimento é sempre gerado por causa e efeito,
ou seja, cada ação tem consequências. Uma das grandes ironias do texto de
Hamlet é que quando Rosencrantz ou Guildenstern — um dos dois, eu nunca
sei quando é um e quando é o outro — depois da comédia, fala sobre as consequências da morte de um rei, dizendo: “A majestade/ Não sucumbe sozinha;
mas arrasta/ Como um golfo o que a cerca; e como a roda/ Posta no cume da
montanha altíssima,/ A cujos raios mil menores coisas/ São presas e encaixadas;
se ela cai/ Cada pequeno objeto, em consequência,/ Segue a ruidosa ruína. O
Brado dela/ Faz reboar a voz universal.”
Como Rosencrantz é um bajulador do rei, ele está sugerindo que seria
terrível se Hamlet fizesse algo contra o rei. O que ele não sabe é que esse processo já estava em curso, desde quando o rei Claudius matou o irmão Hamlet,
lá atrás, antes do inicio da peça; “a majestade não morre sozinha” quer dizer
que quando Claudius matou o irmão, na realidade ele detonou tudo que está
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acontecendo. Rosencrantz não sabe disso, não sabe que Claudius matou o irmão, mas o público sabe e pode ligar as idéias. Toda ação tem consequência,
e a consequência da ação de Claudius é a peça.
L. Vou mudar de assunto. Que espetáculos memoráveis de peças de Shakespeare você viu em Londres, em Stratford? Muitos?
BH: Vi vários. Vi um Júlio César que me impressionou muito porque foi feito
sem intervalo. Demorou duas horas e vinte minutos, se não me engano; essa
ideia da causa e efeito se tornou evidente na ação, uma coisa implacável — a
peça é muito bem construída. Foi fantástica. Eu vi várias coisas boas; recentemente, o Lear do Ian Mckellen, um fantástico Much Ado About Nothing,
com Derek Jacobi; Jeremy Irons em uma divertida comédia de Aphra Behn, a
primeira autora dramática profissional. Vi um incrível Rosencrantz and Guildenstern are dead, de Tom Stoppard. Vi uma Tempestade, dirigida pelo brasileiro Ron Daniels, muito boa, e outra do Peter Brook, em Paris, tradução do
Carrière. Vi uma Megera Domada, em Stratford, com o Peter O’Toole fazendo o Petrucchio, e de bons Hamlets, vi três: Richard Burton, Ralph Fiennes e
Kenneth Branagh. Em compensação, vi um horrível, dirigido pelo Peter Hall.
O Much Ado About Nothing era muito bonito; o próprio teatro é do século
xviii, de maneira que o espetáculo, todo em tons sépia e marfim, combinava com o ambiente do teatro. O cenário era composto por telas transparentes
que entravam e saiam, era um espetáculo realmente delicioso. Muito, muito
bom! Esses bons atores ingleses sabem dominar o verso, aproveitar a sonoridade, falando claro, o que é ótimo. No Hamlet do Kenneth Brannagh, ele estava
muito bem, a direção não me pareceu particularmente feliz, mas tinha uma
idéia fantástica, a Ofélia louca estava vestida com a roupa do pai assassinado.
A camisa manchada de sangue, o sapato maior que o pé e ela, louca, foi muito bonito. Eu vi o Richard Burton, em 1953, fazendo o Hamlet — ele tinha
uma voz extraordinária. A Ofelia era a Claire Bloom. E a mãe (que eu não me
lembro quem foi) parecia talvez um pouquinho mais moça do que o Hamlet.
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L. Você viu Olivier no teatro?
BH: Vi. Eu vi o Oliver fazer o Hotspur na segunda parte do Henrique IV com
o Ralph Richardson fazendo o Falstaff. Ainda era uma das famosas montagens
que eles fizeram durante a guerra. Na Segunda Guerra Mundial, o Olivier tinha entrado para aviação naval; o Richardson, não sei se chegou a entrar para
as forças armadas; mas o Olivier foi tirado das forças armadas para montar uma
companhia teatral e trabalhar a moral do público. Eles fizeram montagens
maravilhosas, que ficaram na história. E eu vi esse Henrique IV em 1946. Anos
depois eu o vi fazendo o Beckett. Ele fazia o rei, e o Anthony Quinn fazia o
Beckett; a certa altura da carreira da peça, saiu o Anthony Quinn e entrou o
Arthur Bennett pra fazer o rei e o Olivier passou a fazer o Beckett. E um crítico
disse: “Ah, agora sim estou vendo como que é o papel.”
L. E o John Gielgud, você viu?
BH: O Gielgud eu vi aqui no Brasil, em um espetáculo de trechos de Shakespeare, com Irene Worth. E o vi em Londres fazer uma comédia horrível; foi constrangedor porque eu tinha sido convidada, por intermédio da Claude Vincent,
uma amiga dele. A história foi assim: ouvira dizer que Gielgud vinha ao Rio,
e desde que soube que ia viajar fiquei pedindo uma entrevista com ele, mas
ninguém arranjou; o British Counncil não conseguiu e nem o Arts Council
de Londres. Mas eu me dava muito com a Claude, uma anglo-egipcia amicíssima dele, que pegou o telefone, falou com “Dear John” e fomos convidados
para assistir a peça que ele estava estreando e tomar um drinque com ele depois, no camarim. A peça era um fracasso, e ele elegantemente declarou um
“I have laid an egg”, que é a expressão teatral clássica para definir um desastre.
Mas o papo foi muito agradável, e eu ainda pude perguntar a ele se vinha ao
Brasil, quando, etc.
L. E o Richardson?
BH: Eu vi mais um outro espetáculo de Gielgud, ele e Richardson fazendo
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Pinter. É muito interessante porque eu vi os dois juntos e 25 anos mais tarde,
vi a peça novamente, em outra produção. As duas maravilhosas.
L. E o encontro com o cineasta Grigorii Kosintsev...
BH: Foi em um congresso de Shakespeare, no Canadá. Estava no mesmo painel que o Grigorii Kosintsev, um diretor russo que dirigiu um Hamlet e um
Lear fantásticos, no cinema. E a minha única objeção ao Hamlet do Kosintsev
foi o Hamlet sair da sala onde morrem todos e ir para fora do palácio, e morrer
com a visão do mar, onde começou a peça. Morre ali sozinho, creio que isso
é um engano, que é importante o Hamlet morrer no meio daquilo tudo, de
toda a matança, pois ele morre, na realidade, chefe de estado. Ele morre rei e
deixa a coroa para o Fortinbrás. Hamlet diz: — “Mas auguro que a eleição será
de Fortinbrás. Dou-lhe o meu voto, embora na agonia.” Depois de uns vários
dias no Congresso, já tenho um pouco mais de intimidade com o Kosintsev,
não resisti e perguntei para ele porque ele tinha feito isso e ele respondeu porque a morte é a liberdade. Eu não perguntei mais nada porque não quis perguntar se isso era uma coisa pessoal ou não. Nesse congresso, eu vi uma coisa
fantástica — a première no hemisfério ocidental do Rei Lear de Kosintsev. E,
como o filme era falado em russo, nas cópias para o público anglo-saxônico,
as legendas eram de William Shakespeare! Não paravam de aplaudir. O Lear
é ainda melhor que o Hamlet, que já é fantástico.
A. Queria pensar as traduções, quais traduções deram mais trabalho, quais
você teve mais prazer.
BH: Todas (risos). Todas deram trabalho. Eu acho que talvez Lear e Antônio e
Cleópatra tenham sido as mais difíceis. Porque a linguagem é maravilhosa em
todas as duas, então, a gente já começa apavorado... quer dizer, para enfrentar
aquilo, é um terror, eu acho que foram as mais difíceis. A mais rápida foi Romeu e Julieta porque o Moacyr Góes ia montar e já iam começar os ensaios e
eu traduzi, literalmente, um ato por semana. Nunca mais fiz nada nem com279
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parável a isso. Ia traduzindo enquanto ensinava e fazia crítica, nunca parei de
trabalhar para fazer só a tradução... Quando me perguntam quanto tempo eu
demorava para fazer uma tradução, não tenho a menor ideia porque foi sempre
entremeado com outras atividades.
L. Ouvi sobre um projeto de traduzir os sonetos...
BH: Ah, isso é uma vaga ideia de traduzir um conjunto de sonetos, fazer uma
publicação de, talvez, cinquenta sonetos, mas são tão difíceis, eu não sei se vou
ter coragem realmente... Os sonetos são difíceis por uma razão muito simples:
o inglês é uma língua muito mais compacta do que o português. Então, para
manter as dez sílabas em quatorze versos, é muito difícil. É um problema você
conseguir encaixar em português as mesmas ideias. Em certas passagens, eu
simplesmente não vejo a mínima possibilidade de conseguir. Alguns sonetos
são de uma complexidade de ideias que, para traduzir aquilo, seriam necessárias muito mais palavras em português — isso é um problema.
A. Então, os sonetos seriam complexos para época também?
BH: Na época, eles eram muito populares. Estava muito em moda os sonneteers. Há várias sequências de sonetos famosas. Até hoje há uma disputa sobre
se os sonetos são autobiográficos ou se são mera ficção. Ninguém sabe — ninguém sabe e ninguém nunca vai saber. O que acontece é que com o inglês
moderno, a partir de 1500, principalmente, passando por todo o período elisabetano, os ingleses estavam fascinados com o que a língua deles podia fazer de
beleza. Eles tinham, inclusive, um hábito que atrapalha, e muito, na tradução
de Shakespeare — adoravam trocadilhos. É uma coisa horrível de traduzir. Em
uns 90% do casos, não tem solução. Você tem que optar por um dos sentidos
e abdicar do outro porque você não vai encontrar nada comparável em português. Lá, uma vez ou outra, se encontra alguma coisa mais ou menos equivalente em português que se pode usar, mas, de modo geral, os trocadilhos não
tem solução: é abdicar de um dos sentidos e pronto. Eu, pelo menos, não vi
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ninguém conseguir outra solução senão essa.
A. E a linguagem dos sonetos, do verso no teatro, e da prosa no teatro...
BH: As peças do período mais lírico, como Romeu e Julieta, principalmente,
tem uma linguagem bem semelhante à dos sonetos. Romeu e Julieta é de 1596
e, por volta de 1590, Shakespeare já estava escrevendo sonetos. Há um editor
dos sonetos que diz mais ou menos o seguinte: “Só se sabe duas coisas a respeito dos sonetos. Uma: que Shakespeare começou a escrever mais ou menos
em 1590. Duas: que ele escreveu os sonetos. O resto é tudo bobagem.” Ou seja,
sobre os sonetos, só o que se sabe é que foram escritos e que foram escritos mais
ou menos nessa data. Mais nada. O resto, outros dados concretos, não há, e é
claro que por isso há dezenas ou centenas de interpretações.
A. Voltando aos trocadilhos, como trazer isso para o século XXI?
BH: A minha postura em relação à tradução é a seguinte: a tradução melhor
que a gente pode fazer é encontrar o melhor equivalente na língua alvo. Melhor do que isso é impossível. Eu vou dar um exemplo: eu traduzi uma peça
do Thorton Wilder que se chama The Skin of Our Teeth, em inglês. A peça
estava toda traduzida, menos o título. Se eu traduzisse “pela pele dos dentes”,
ninguém iria entender; Por um triz é o equivalente. Nessa mesma peça me
aconteceu algo terrível — é a história de uma família, o pai se chama Anthropos porque é o próprio homem, a mãe tem um filho chamado Henry, que na
verdade, é Caim, e uma filha, e a empregada que se chama Sabina - a eterna
outra mulher, do Raptos das Sabinas. Tudo se passa nos Estados Unidos, na
déacada de 1940. O primeiro ato se passa na Idade do Gelo, com todo mundo
vestido moderno. O segundo ato se passa em Coney Island, acontece um concurso de beleza e é o dilúvio. E o terceiro ato é a guerra, qualquer guerra. E na
guerra, naturalmente, Henry é o inimigo; quando acaba a guerra, ele volta pra
casa e, em conversa com a Sabina, ela diz: “You want to be loved”. E ele responde: “I don’t want to be loved, I want to be hated”, ao que ela retruca: “That
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is second best”. Tudo bem até o “second best”, porque “o segundo melhor”
não é “second best”. Então, a peça toda estava pronta já há uns dois meses e
não havia jeito de eu traduzir “second best”... quando, no meio de uma noite,
acordei com a ideia: “quem não tem cão, caça com gato”, que é exatamente
a ideia do que é “second best”. “Quem não tem cão, caça com gato” é muito
longo, mas “quem não tem cão...” é suficiente e fica a ideia de second best. Mas
é isso que eu digo, tem que ser o equivalente mais próximo.
L. E a tradução dos nomes dos personagens? E os nomes de reis?
BH: No Shakespeare eu só traduzi nomes quando eles são alegóricos - Mrs.
Quickly, que eu coloquei Já Passada, por exemplo. Eu traduzi os artesãos em
Sonho de uma noite de verão, porque achei que ficaria mais divertido; mas, fora
disso, eu não mexo nos nomes de Shakespeare, não — é bobagem. Para os reis,
adoto o modo como eles são conhecidos no Brasil. Quando já é consagrado,
você não tem opção.
A. Ao fazer uma crítica pensando no espetáculo: muda alguma coisa se a
peça é contemporânea ou é uma peça de Shakespeare ?
BH: Não muda, basicamente é um espetáculo e eu tenho que avaliar o espetáculo que foi feito. Eu acho que a única coisa que muda um pouco, é que eu
tenho mais boa vontade, vamos dizer assim, com um espetáculo que a gente
sente que tentaram, mesmo que não tenham conseguido, mas que tentaram,
que a coisa é séria, que foi feito um esforço, então, eu acho que isso já merece
um aplauso. Compreende? O que eu tenho horror é do desleixo, é dos que
“tiram de letra”, do “olha, faz assim mesmo” — isso é horrível. De maneira
que eu sempre digo que o que se propõe como entretenimento tem que, pelo
menos, entreter. Então, o teatro começou bom e ele tem que ser fluente, divertido, muito bem feito. A pessoa pagou para ir lá se divertir e não para ver
uma coisa mal feita.
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L. Em uma critica recente, em agosto de 2012, você falou sobre como uma
boa montagem pode resgatar um texto não tão bom.
BH: Você está exagerando, não dá para resgatar. A produção de que você fala
é a da Dorotéia, do Nelson Rodrigues; a cenografia era deslumbrante, os figurinos diabolicamente acertados, os atores muito bons, mas o texto continuou
horrível, porque nada pode realmente salvá-lo. Mas a produção era ótima.
L: Do que foi montado de Shakespeare no Brasil, do que você gostou mais?
Do Galpão?
BH: O Galpão! O Romeu e Julieta do Galpão é lindo. Lindo, lindo, lindo! E
pegou o espírito da peça. Eu acho que foi uma — é uma coisa comovente de
captação do espírito de uma peça. E é muito pitoresco. E é a única cena do
balcão ao contrário, porque Romeu ficava em cima da capota do automóvel
- então o balcão está embaixo e Julieta estava embaixo e dentro do carro, e
Romeu na capota. O espírito da peça estava lá. Foi realmente excepcional, e
agora, como está sendo encenado em Londres novamente, no World Shakespeare festival de 2012, junto com as Olimpíadas, parece que está atraindo multidões. O Grupo refez o espetáculo para ir pra Londres.
L: E o Lear do Raul Cortez, você gostou? E o do Sérgio Brito?
BH: É muito interessante, era bom. Tinha coisas interessantes, mas era muito
desigual. As filhas eram muito ruins. O Raul estava bem. Na montagem do
Lear do Sérgio Brito, o Lear não estava bem porque a direção errou. A única
pessoa que eu achei muito bem foi Paulo Goulart fazendo Kent.
L: E o Hamlet na montagem com o Sérgio Cardoso?
BH: O Sérgio Cardoso no Hamlet... o Hoffman Harnish dirigiu — bom, o
Hamlet alemão, do Goethe é histérico, é romântico ao extremo. Mas Hoffman pegou um elenco jovem, inexperiente, a única solução era fazer muito
romântico. Com aquela idade e aquela inexperiência, você não pode fazer
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um Hamlet contido, aprofundado. E funcionou muito bem com essa linha
romanticamente exagerada. Tinha gente que ia todo dia — uma loucura! Eu
conheci uma moça que literalmente foi todos os dias: 30 e poucos espetáculos, foi a todos. E várias pessoas foram várias vezes, era um espetáculo, para
a época, apaixonante. O teatro andava muito ruim por aqui e, de repente, o
Hamlet foi uma revelação.
L: Outro Shakespeare que marcou época no Brasil...
BH: O Otelo da Tônia era digno, não era memorável, mas era correto.
L. Qual a dificuldade e os desafios de se montar Shakespeare no Brasil?
BH: Acho que as montagens de Shakespeare têm sido ruins. Tenho a impressão
que alguns diretores não querem fazer Shakespeare, acham que fazer Shakespeare não é bastante importante. Tem que ser um espetáculo e precisam mexer na peça e aí destroem tudo. O público, é claro, não pode ver aquilo como
Shakespeare. Um mau espetáculo prejudica o conhecimento de Shakespeare.
E acho que, infelizmente, tem havido vários maus espetáculos. Foi feito um
Antonio e Cleópatra que pegava a fala maravilhosa do Enobarbus no segundo
ato, que é em Roma para os romanos. Bem, tiraram a fala do contexto e começavam o espetáculo com aquela fala, em uma péssima tradução; porém, fora
do contexto, a fala não dizia nada. Depois, vinha a peça, aos pedaços, recortada, não sobrava nada. No fim, a plateia não podia compreender o que era,
do que se tratava.
L. Para se montar Shakespeare no Brasil, o que precisa ser preservado?
BH: Acho que para fazer Shakespeare é simplesmente querer realmentre fazer
aquela peça, e não o nome de autor; é preciso saber o que ela diz, como evolui,
e com todos os atores tendo uma noção muito clara do que dizem. Quando se
estuda a obra realmente, ela pede o estilo do espetáculo, sem que seja necessário inventar enfeites e gracinhas. O texto embala o ator. Mas todos têm de
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saber claramente o que estão querendo fazer, que pode ter vários caminhos mas
tem de contar a história, e contá-la de modo que ela chegue clara à plateia.
L. Com a perspectiva de termos um teatro Globe com palco elisabetano em
Minas Gerais, em Rio Acima, que peças poderiam ser montadas beneficiando-se desse palco?
BH: O palco elisabetano pode ser usado para toda espécie de texto; se for necessário pôr uma mesa e algumas cadeiras a certo momento, não há problemas, depois se tira; os atores usavam material cênico no tempo de Shakespeare.
Quem falar que só os ingleses sabem fazer Shakeapere, eu respondo que estilo
é fazer o que a peça pede, e em uma boa tradução, com um bom diretor, não
há dificuldade, desde que se queira, realmente, montar aquela peça, e não inventar meios de destruí-la.
L. Um palco elisabetano ajudaria a entender melhor a dinâmica do texto
shakesperiano, o entra e sai contínuo, os apartes, os monólogos, as convenções do palco avental, próximo à platéia e a luz do dia?
BH: Eu creio que sim, porque os textos foram quase todos escritos para esse
palco, e fazendo nele o espetáculo, vai ficar fácil vem como o espetáculo fica
fluido e fluente nesse tipo de espaço cênico.
A. Como é pensar o teatro no Brasil?
BH: Às vezes cansa. Vou a 3 ou 4 espetáculos por semana. Nesses últimos anos,
esses 2 anos, a dramaturgia brasileira parece que tomou fôlego: está apresentando coisas muito interessantes. Ainda na década de 1960, apareceu uma lei
chamada lei do 2 por 1 - um espetáculo de texto brasileiro para cada dois de
estrangeiros de uma companhia. Só que naquele momento, já não havia mais
companhias estáveis... então, como estrear com uma peça nacional? Então, a
solução era a seguinte: se formava a companhia, estreava domingo de manhã
com uma peça infantil, de maneira que o texto brasileiro pra estreia já era um
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infantil de manhã. Qualquer um servia. E aí fazia um espetáculo estrangeiro,
outro estrangeiro. Na hora de fazer o segundo espetáculo brasileiro, a companhia se dissolvia e aí começava outra companhia. Na realidade, não havia autores. Eu acho que não era só culpa de quem estava fazendo teatro, não. Não
aparecia um numero suficiente de textos interessantes para ser feito. Quando
aparecia um autor, apareceram as peças... O Silveira Sampaio veio depois do
Nelson, depois apareceu o Millôr, e o Guilherme Figueiredo... Eventualmente, aparecia um pessoal assim.
Mas agora não. De repente, está havendo um movimento aqui. Uma coisa
que é importante é que naquele tempo, 80%, 90% das peças eram de autores
estrangeiros. Hoje em dia, não. O percentual de textos nacionais hoje é muito
mais alto. A gente vê realmente uma presença sólida de dramaturgia brasileira.
E isso eu acho que é um progresso muito grande.
Apesar de eu achar que é importante continuar importando coisas boas.
Não qualquer coisa. Coisas boas. Não vamos ser isolacionistas e dizer que não
vale a pena conhecer o que está sendo feito lá fora porque não é verdade. Todo
mundo deve conhecer o trabalho do outro. De maneira que para nós é enriquecedor conhecer coisas que estão acontecendo. Basta ver a importância que
foi da presença do Brecht para o aparecimento da geração do Guarnieri. Tudo
isso foi um produto de uma influência muito forte de Brecht. De maneira que
então as coisas novas são importantes também de outros países.
L. Que autores novos brasileiros você destacaria?
BH: João Bilac está fazendo um porção de coisas. Essa última peça dele, eu
gostei muito: Popcorn. Tem o Rodrigo Nogueira, ah, tem uma porção. Tem o
Newton Moreno, o Bosco Brasil, Luís Alberto de Abreu, Sérgio Roveri, Mário
Viana, Alcides Nogueira, Samir Yazbek, Celso Cruz, Mário Bortolotto...Tem
muita gente. Isso é que importa. E eles estão escrevendo regularmente. Isso
também é ótimo. O Mauro Rasi fez uma carreria maravilhosa. Acho uma pena
o Miguel Falabella ter deixado de escrever peças de 3 atos. A partilha é ótima.
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