HISTÓRIA E QUÍMICA:
UMA PROPOSTA INTERDISCIPLINAR PARA O ENSINO
DA REVOLUÇÃO FRANCESA NO ENSINO MÉDIO
Rafael Vieira da Cal
Muito se tem discutido sobre as divisões artificiais criadas entre os campos do conhecimento criadas pelo pensamento científico do século XIX. As transformações iniciadas por
Marc Bloch e Lucien Febvre com Annales, com o deslocamento das investigações dos historia-
dores do campo político para as esferas social e econômica, e ampliadas ao longo do século XX,
apontam, a partir da década de 1970 para novas relações entre história e as narrativas literárias, a
antropologia e a psicologia, entre outros campos do conhecimento.
Na mesma linha, o ensino tem sido discutido e rediscutido nas últimas décadas. A idéia de ensino cristalizada em uma relação fortemente hierarquizada entre professor e aluno,
cede cada vez mais espaço a uma relação baseada na troca, no respeito aos saberes dos educandos. Nas palavras de Paulo Freire, cabe sempre ressaltar que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”. Tal fato não
significa que todos os ambientes de aprendizagem funcionam da mesma maneira ou seguem os
mesmos preceitos fundamentais, mas, minimamente, há um movimento nesse sentido.
Dessa forma, faz-se necessária a análise do ensino de história especificamente. A
despeito dos problemas enfrentados por professores em todos os níveis escolares, tais como tempo e condições físicas, a história, como disciplina, devido as suas possibilidades narrativas e
dramáticas, apresenta uma gama de atrativos para a prática docente. Entretanto, o que podemos
perceber muitas vezes é nem sempre o interesse e disposição do professor encontram eco na disposição e interesse dos alunos.
Entendemos que, na parte que nos cabe, como docentes, o problema é gerado pela estagnação de certas fórmulas de ensino. Temas que podem ser considerados clássicos, como a
Revolução Francesa, tendem a sofrer ainda mais com essa estagnação. Isso pois, a solução mais
rápida para o problema do ensino de temas como esse, comumente com tempo insuficiente para
tanto, é a reprodução de velhas fórmulas e a simples transferência de conteúdo.
Assim, propomos uma abordagem não-convencional de temas clássicos da História,
como forma de criar um choque, uma situação inusitada que desperte em qualquer pessoa, pelo
menos, um sentimento de curiosidade. Para isso, estabelecemos uma relação, no mínimo, impen-
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sável entre a História e a Química. Mais especificamente, entre a Revolução Francesa (seus antecedentes relacionados à questão social) e a tabela periódica dos elementos.
A crise social na França pré-revolucionária
Diferentemente de todas as revoluções que a precederam e a seguiram, a Revolução
Francesa foi uma revolução social de massa. Para compreendê-la, devemos, antes de tudo, compreender que o conflito existente entre as novas forças sociais em ascensão e a estrutura oficial e
os interesses estabelecidos do Antigo Regime são mais agudos na França do que em qualquer
outro lugar. Segundo Hobsbawm, “na França, elas [tentativas de reformas] fracassaram mais
rapidamente do que em outras partes, pois a resistência dos interesses estabelecidos era mais
efetiva”.
“O Terceiro Estado carrega o Clero e a Nobreza” (1788)
Gozando de privilégios, entre eles a isenção de impostos e o direito de receber tributos feudais, a nobreza tinha seu poder social consolidado na França. Representando pouco mais
de 1% da população francesa (cerca de 400 mil, em um universo de 23 milhões de habitantes), a
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despeito das tentativas reais de diminuir seu poder e sua presença nas esferas políticas, os nobres
invadiram e ocuparam os principais postos oficiais. Devemos ressaltar ainda que o clero gozava
de privilégios ainda maiores, considerando seu alto poder de organização que lhe rendia, por
exemplo, isenções ainda maiores de impostos. Hobsbawm nos fala sobre essa “resistência dos
interesses estabelecidos”:
“Por volta da década de 1780, eram necessários quatro graus de nobreza até para comprar uma patente
no Exército, todos os bispos eram nobres e até mesmo as intendências, a pedra angular da administração real, tinham sido retomadas por eles.”
O que podemos observar é uma tendência de corrosão do Estado francês a partir desse movimento. Assim, criava-se uma, para dizer de forma amena, antipatia muito forte de outros
setores em relação à nobreza. Não somente a burguesia ficava insatisfeita, mas também setores
mais frágeis da própria nobreza e, obviamente, o campesinato.
Sobre o campesinato, é fundamental considerarmos a opressão e o controle do clero e
da nobreza sobre essa parcela da população, resultando, muitas vezes, em ações violentas. Não é
difícil, todavia, apontar e compreender outros elementos que geraram sua insatisfação. Em primeiro lugar, a maior parte não tinha terra ou as tinha em quantidade insuficiente. Os que as tinham, ainda encontravam outro problema: o atraso técnico. Junte-se a isso o dízimo, as taxas, os
tributos feudais e a inflação, que corroia o que sobrava ao camponês, e temos um quadro de crise
pronto a explodir. Se, ainda não satisfeitos, apontarmos as más safras de 1788 e 1789 e um inverno muito rigoroso, temos um quadro caótico.
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“Os famintos e o penhorista”, dos Irmãos Leseur.
Cabe lembrar também que não apenas os pobres do campo enfrentavam as intempéries. Hobsbawm aponta para o fato de que “as más safras também faziam sofrer os pobres das
cidades, cujo custo de vida – o pão era principal alimento – podia duplicar”. Além disso, ele afirma que se por um lado os pobres do campo enfrentavam banditismo e distúrbios, “os pobres
das cidades ficavam duplamente desesperados, já que o trabalho cessava no exato momento em
que o custo de vida subia vertiginosamente.”
No que diz respeito à burguesia, a crise social francesa (associada à econômica) serve como um terreno fértil as suas aspirações políticas. Sendo impedida (ou limitada) de ocupar
postos oficiais, devido à fome da nobreza, a burguesia via-se ainda mais órfã de um Estado que
agisse em seu benefício, como na Inglaterra, com uma política interna e externa que fosse guiada
pelos interesses da expansão capitalista. Podemos somar a isso a pesada carga tributária francesa
que incidia sobre o grupo.
Dessa maneira, temos estabelecido um quadro de grave crise social. O que poderia
ter se tornado uma série de agitações localizadas ou uma simples revolta, ganha corpo e configura-se uma revolução. A idéia de libertação da nobreza e da opressão se fortalece e encontra res-
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paldo no ideal liberal difundido pela burguesia. Se não estamos falando de democracia, ao menos, estamos falando do rompimento de algumas barreiras, que merecem uma análise mais ampla, que não cabe aqui. O Abade Sieyes referiu-se ao Terceiro Estado como “o homem forte e
robusto que tem um dos braços ainda acorrentado”. Pois essas eram condições fundamentais que
impulsionariam esse homem a romper as correntes.
Como apontar esses elementos na tabela periódica?
O Rei, na tabela periódica, é representado pelo Hidrogênio (H), assinalado em azul.
O hidrogênio é o elemento número 1, ocupa um lugar de destaque na tabela periódica e somente
é encontrado na natureza ligado a outro elemento (ou a outro átomo dele mesmo). Podemos esta-
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belecer uma analogia com a situação do rei na França: um elemento de destaque na sociedade
que, todavia, precisava estabelecer ligações com outros setores da sociedade.
O Clero, Estado altamente privilegiado dentro do quadro social francês, pode ser associado aos gases nobres, assinalado em verde na tabela periódica. Poderíamos dizer que esses
elementos evitam o contato com os outros elementos. Os gases nobres são elementos químicos
estáveis e ocorrem na natureza em menor escala que outros elementos, bem como o clero, fundamental para a manutenção da sociedade do antigo regime apesar de seu tamanho reduzido.
A Nobreza, representada por metais, ametais e semi-metais, assinalados em vermelho
na tabela periódica, tem características bastante heterogêneas, assim como os elementos que a
representam. São desde metais até ametais, como na nobreza temos desde nobres tradicionais até
a nobreza togada, que estabelecem ligações com o monarca, assim como os elementos químicos
acima se ligam ao hidrogênio.
Em cinza temos assinalados outros metais, também bastante heterogêneos, os “elementos de transição”, representando o Terceiro Estado. Os lantanídeos e os actinídeos, assinalados em amarelo e laranja, respectivamente, também estão incluídos dentro da parte assinalada
em cinza e, assim, sendo incluídos dentro do grupo considerado como Terceiro Estado. São considerados elementos químicos com alta condutividade térmica e elétrica. Podemos dizer que o
Terceiro Estado possuía alta condutividade térmica, responsável pelo aquecimento das tensões
sociais francesas. Outro destaque importante a se fazer: lantanídeos e actinídeos apesar de estarem dentro da tabela periódica são apresentados fora do seu espaço original, por uma questão de
formato. Representando, respectivamente, sans-cullotes e camponeses, cabe fazer a seguinte analogia: estão incluídos no Terceiro Estado, porém excluídos das principais decisões ou destaque
no comando do processo revolucionário.
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Texto de Apoio
Que é o Terceiro Estado?
Que é o Terceiro Estado? Tudo. Que tem sido até agora na ordem política? Nada.
Que deseja? Vir a ser alguma coisa...
O Terceiro Estado forma em todos os setores os dezenove/vinte avos, com a diferença de que ele é encarregado de tudo o que existe de verdadeiramente penoso, de todos os trabalhos que a ordem privilegiada se recusa a cumprir. Os lugares lucrativos e honoríficos são ocupados pelos membros da ordem privilegiada...
Quem, portanto, ousaria dizer que o Terceiro Estado não tem em si tudo o que é necessário para formar uma nação completa? Ele é o homem forte e robusto que tem um dos braços
ainda acorrentado. Se suprimíssemos a ordem privilegiada, a nação não seria algo de menos e
sim alguma coisa mais. Assim, que é o Terceiro Estado? Tudo, mas um tudo livre e florescente.
Nada pode caminhar sem ele, tudo iria infinitamente melhor sem os outros...
Uma espécie de confraternidade faz com que os nobres dêem preferência a si mesmos para tudo, em relação ao resto da nação. A usurpação é completa, eles verdadeiramente reinam...
É a Corte que tem reinado e não o monarca. É a Corte que faz e desfaz, convoca e
demite os ministros, cria e distribui lugares etc. Também o povo acostumou-se a separar nos seus
murmúrios o monarca dos impulsionadores do poder. Ele sempre encarou o rei como um homem
tão enganado e de tal maneira indefeso em meio a uma Corte ativa e todo-poderosa, que jamais
pensou em culpá-lo de todo o mal que se faz em seu nome.
SIEYÈS, E. J. Que é o Terceiro Estado? 1789
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Bibliografia
BERUTTI, Flávio, FARIA, Ricardo, MARQUES, Adhemar. História Contemporânea através de
textos. São Paulo: Contexto.
BURKE, Edmund Burke. Reflexões sobre a Revolução em França. Brasília: UNB.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
HAMPSON, Norman. A sociedade Francesa no final do Antigo Regime.
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
USBERCO, João, SALVADOR, Edgard. Química geral. São Paulo: Saraiva.
Iconografia
Imagens extraídas de historianamao.blogspot.com
Filmografia
Casanova e a Revolução, de Ettore Scola (1982).
Danton, o Processo da Revolução, de Andrzej Wajda (1982).
A Marselhesa, de Jean Renoir (1938).
A Revolução Francesa, minissérie comemorativa ao bicentenário da revolução, de Robert Enrico
e Richard Heffron (1989).
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