GOVERNO DO ESTADO E CIVILIDADE EM MAQUIAVEL
Michelly Pereira de Sousa Cordão
Para Maquiavel, a obediência às leis exigiria dos indivíduos o domínio sobre
suas emoções e seus desejos e interesses particulares. Na falta deste último, um Estado
regido por leis republicanas e que prezasse pela liberdade dos cidadãos, tornar-se-ia
insustentável. Donde, a urgência da aparição de um príncipe capaz de requerer a
obediência dos súditos através do carisma, da força e, sobretudo, da representação que
constrói para si enquanto uma persona com poderes especiais para restabelecer a ordem
social. O homem maquiaveliano possui uma natureza má com tendência à prática da
corrupção e, portanto, é a incorporação de uma “segunda natureza”, resultante de uma
educação canalizada para a construção do “bom cidadão”, que faz dele um indivíduo
apto a obedecer às normas de conduta e às leis públicas. Segundo Maquiavel, um
Estado em que os homens agem mais de acordo com seus interesses privados precisa
não de um governo republicano, mas de um príncipe forte que faça uso de instrumentos
adequados a tal circunstância, a exemplo da violência privada, para manter o equilíbrio
social.
Dessa maneira, O príncipe seria uma espécie de orientação política para os
governantes das cidades italianas em que prevaleciam os vícios e a falta de autocontrole
entre os indivíduos. Os Discursos, por seu lado, representariam o interesse do escritor
florentino em apresentar a República como forma de governo por excelência, mas que
permanecia como um ideal pelo fato de não haver na península itálica, sobretudo em
Florença, um “domínio de si”. Cidade que era constituída por ideias republicanas,
fundamentadas no modelo político da Roma antiga e na sua constituição criada no séc.
XIV e que, no entanto, tinha habitantes que adotavam um comportamento público
inadequado àquele que se esperava de um “bom cidadão”. O resultado disso era uma
dissociação entre as ideias políticas defendidas pelos contemporâneos de Maquiavel e a
“realidade” que aí se configurava. Realidade que acabava sendo mais propícia para a
obediência a um príncipe do que a leis oficiais que favorecessem igualmente uma
coletividade.
É nesse contexto que se visualizava na região da península itálica, sobretudo em
Florença, uma proliferação de manuais educativos que visavam regular o
comportamento dos indivíduos de modo a torná-los providos de civilidade. Giovanni
della Casa, por exemplo, em seu Galateo ou dos costumes (1558) expõe preceitos
educativos endereçados a uma elite vinculada à corte. Sua intenção era apresentar lições
para a domesticação dos costumes, o exercício das boas maneiras e dos modos e das
palavras convenientes no trato com os outros. Mais importante do que as virtudes da
justiça, da força, da generosidade, da liberalidade, entre outras, era o comportamento
moderado dos indivíduos na relação uns com os outros. O convívio social pacífico
exigia bons modos dos indivíduos, cujos costumes rudes gerariam apenas ódio e
desprezo alheios. Polir os modos revelava um respeito ao prazer alheio, àqueles com
quem se relaciona. Segundo Norbert Elias, em O processo civilizador (1939), os
costumes e hábitos rudes que prevaleciam no medievo tornavam os espaços de
convivência social instável e ameaçado. O que Elias chama de “processo civilizador”
constitui a pacificação das condutas e o controle dos afetos, tendo sido responsável por
uma radical transformação na economia psíquica dos indivíduos entre os sécs. XII e
XVII.
Os tratados de civilidade italianos são aqui analisados, portanto, como
representações de uma formação social em que o domínio de si e o controle dos afetos
possuíam um caráter frágil, o que tornava inviável a constituição de uma república de
fato e, ao mesmo tempo, necessária a aparição de um príncipe dotado de poderes com os
quais pudesse exercer uma pacificação social e, assim, conferir um mínimo de
estabilidade à vida política. Maquiavel, por sua vez, demonstra a fragilidade do poder
dos príncipes nas cidades italianas, cuja ordem social era constantemente ameaçada ora
por estados estrangeiros, ora pelos conflitos internos entre os indivíduos, que tinham um
baixo grau de autocoerção. Ao final de O príncipe, Maquiavel se refere à chegada do
“salvador” tão esperado por todos, com tônicas de idealização, construindo-o a partir da
referência a elementos que lembram a própria imagem de Jesus Cristo. Sua intenção era
colocá-lo como um “messias” que iria redimir os italianos da presença estrangeira e de
seus próprios vícios.
Maquiavel narra experiências que apontam para o caráter arriscado e volúvel da
posição dos soberanos, fossem antigos ou modernos, muitos dos quais não conseguiam
controlar as ameaças constantes que emperravam a durabilidade de sua dominação. Para
Elias, em seu estudo da formação do Estado moderno francês, ter-se-ia aí um problema
de distribuição de poder, uma vez que a conservação de um único indivíduo na posição
de rei ou soberano dependeria de um equilíbrio de forças dos grupos que compunham a
sociedade a que chama de corte. É em função da dificuldade de conservar o poder em
meio à existência de indivíduos que agiam mais movidos pelas emoções e pelas paixões
do que por coerções sociais e, menos ainda, por autocoerções, que Maquiavel descreve
modos de comportamento a serem incorporados pelo príncipe em sua vida pública. O
príncipe deveria modelar seus hábitos e costumes considerando as expectativas de seus
séquitos, visto que o “parecer ser” se sobrepõe ao “ser” para que, desse modo,
conseguisse exercer uma dominação mais estável e duradoura.
Portanto, o trabalho analisa Maquiavel enquanto um indivíduo circunscrito numa
experiência social particular em que a ausência do controle dos afetos dificultava a
instituição de um governo republicano, bem como, a conservação do poder pelos
príncipes. Observou-se que a “civilização” (“autoregulação”) não predominava na vida
social narrada por Maquiavel que, com efeito, descreve um mundo instável governado
pelas paixões humanas e desprovido de pacificação social. Dessa forma, entende-se que
escreveu um manual de orientação política, O príncipe, com o objetivo de propor
ensinamentos para que os príncipes constituíssem um poder duradouro e estável numa
configuração social em que os súditos agiam impulsionados mais por suas emoções do
que por regras sociais ou leis oficiais.
Por esse motivo, este trabalho promove um diálogo entre as obras políticas de
Maquiavel, especialmente O príncipe e os Discursos sobre a primeira década de Tito
Lívio, e alguns tratados de civilidade italianos a fim de analisar a estrutura política da
Florença maquiaveliana na relação com o comportamento social daqueles que
constituíam esta cidade. Por fim, saliente-se que o diálogo que temos estabelecido com
Norbert Elias tem contribuído para a construção de uma leitura sobre as representações
de Maquiavel, visto que permite que consideremos a relação entre a política praticada
por aqueles que possuíam o poder em Florença e os hábitos e costumes dos indivíduos
que compunham a cidade. O que tem permitido uma análise do governo estatal como
sendo intrinsecamente vinculado a um processo de internalização das regras sociais, que
gera uma autocoerção, pelos indivíduos ou de sua ausência.
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