PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Paulo Fernando Souto Maior Borges
Sobre o princípio democrático na fundamentação da atividade tributária
Uma proposta hermenêutica de utilização de seus desdobramentos no âmbito do
direito tributário
MESTRADO EM DIREITO DO ESTADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO – DIREITO TRIBUTÁRIO
SÃO PAULO
MARÇO DE 2008
13
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Paulo Fernando Souto Maior Borges
Sobre o princípio democrático na fundamentação da atividade tributária
Uma proposta hermenêutica de utilização de seus desdobramentos
no âmbito do direito tributário
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do título
de MESTRE em Direito do Estado – Área de
Concentração – Direito Tributário pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sob a orientação do Prof. Doutor Paulo de
Barros Carvalho
MESTRADO EM DIREITO DO ESTADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO – DIREITO TRIBUTÁRIO
SÃO PAULO
MARÇO DE 2008
BANCA EXAMINADORA:
________________________________
________________________________
________________________________
À Escola de Direito Público da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, que, pelas
lições de seus ilustres Professores, promove
reflexão aprofundada sobre os valores
fundamentais à manutenção e aprimoramento
do Regime Democrático – viga mestra do
Estado de Direito.
Não poderia deixar de manifestar os meus
sinceros agradecimentos àqueles que me
apoiaram ao longo do curso. A despeito de
usualmente feitos por um dever de gratidão,
são imprescindíveis e faço-os de coração:
Primeiramente, Àquele que tudo criou e que,
por todas as razões metafísicas, deve ser
sempre glorificado.
À minha família, especialmente, aos meus pais,
que sempre estiveram presentes nas diversas
etapas de minha vida pessoal e acadêmica,
apoiando e incentivando de forma constante o
meu desenvolvimento espiritual e profissional.
À Márcia Maria, a quem devo a lição de amor,
carinho,.serenidade.e.delicadeza.incondicionais
Aos meus ilustres Mestres, que nunca faltaram
na orientação de minha atividade intelectual, na
pessoa do Prof. Paulo de Barros de Carvalho,
que sempre me atendeu com pronta gentileza e
conselhos de absoluta propriedade.
Aos meus verdadeiros amigos - aqueles com
quem sempre pude compartilhar minhas
dúvidas e incertezas.
Aos colegas do Machado, Meyer, Sendacz e
Opice Advogados, Leonardo da Matta, Diego
Calandrelli, Diana Lobo, Adriano Gonzales, e
Ricardo Fernandes; aos sócios: Marcelo Fortes,
pela orientação e apoio constantes; Daniella
Zagari, Ivandro Sanchez e Celso Costa, pela
compreensão; e, por fim, à Dra. Raquel Novais,
que me proporcionou a aplicação da teoria
ministrada no curso, além de distinguir-se
como profissional que tenho como modelo na
advocacia, por executar com altivez e seriedade
diárias o seu ofício, seja perante os clientes,
seja perante os órgãos judicantes.
“Yo soy yo y mi circunstancia”
(José Ortega y Gasset)
“E se não ousarmos atacar problemas tão
complexos que o erro da solução seja quase
inevitável,
radicalmente,
não
haverá
progresso do conhecimento científico” (José
Souto Maior Borges, Ciência Feliz)
“Eu vim com a Nação Zumbi
Ao seu ouvido falar:
Quero ver a poeira subir
E muita fumaça no ar
Cheguei com meu universo
E aterriso no seu pensamento
Trago as luzes dos postes nos olhos
Rios e pontes no coração
Pernambuco embaixo dos pés
E minha mente na imensidão”
(“Mateus Enter” - Chico Science)
Open mind for a different view and nothing
else matters…” (“Nothing else matters” James Hetfield e Lars Ulrich)
RESUMO
CONSTITUCIONAL - TRIBUTÁRIO – PRINCÍPIO – DEMOCRÁTICO – NORMA
JURÍDICA - HERMENÊUTICA
O trabalho tem como objetivo precípuo a demonstração do Princípio Democrático
como norma jurídica fundante da atividade tributária estatal, por se tratar de norma de
habilitação ao exercício dos demais poderes constitucionalmente instituídos. Além disso, o
trabalho objetiva a possibilidade de adoção de um método hermenêutico de aplicação de
seus desdobramentos no âmbito do Direito Tributário.
ABSTRACT
CONSTITUCIONAL – TAX – PRINCIPLE – DEMOCRATIC – JURIDICAL – NORM HERMENEUTIC
The work has the main objective of demonstrate the democratic principle as the
fundamental juridical norm in the state tax activity, as a rule of competence to the exercise
of state power, and also to present an alternative of juridical interpretation and application
considering its developments in the brazilian constitutional text, based on its supremacy.
SUMÁRIO
RESUMO..............................................................................................................................7
ABSTRACT..........................................................................................................................8
PARTE I - NOÇÕES INTRODUTÓRIAS E PREMISSAS METODOLÓGICAS AO
DESENVOLVIMENTO DO RACIOCINIO...................................................................13
1.
Intróito e apresentação – As marcas da enunciação.................................................13
2.
Prólogo - Thomas Kuhn – a estrutura das revoluções científicas: a ciência em
prol da sociedade......................................................................................................22
3.
Para além do apenas dogmático...............................................................................24
4.
Apologia à Dogmática Jurídica (na sua acepção lata) e crítica à aplicação
equivocada da Dogmática Jurídica (na sua acepção estrita): os valores
juridicamente positivados.........................................................................................26
5.
Sistema da Ciência do Direito e Sistema de Direito Positivo...................................30
6.
Da metodologia científica utilizada na presente dissertação: do sistema jurídico à
norma jurídica...........................................................................................................31
7.
Do contrato social.....................................................................................................32
8.
A norma geral e abstrata como norma jurídica de previsão da conduta
convencionalmente prescrita e eventual sanção aplicável na hipótese do seu
não-cumprimento......................................................................................................35
9.
A norma individual e concreta como norma jurídica específica de imposição
da conduta convencionalmente prescrita e imputação da sanção, na hipótese
do não-cumprimento da norma geral e abstrata.......................................................39
PARTE II - UMA BREVE TEORIA DOS PRINCÍPIOS..............................................42
10.
A contraposição: “normas-princípio” versus “normas-regra”.................................42
11.
Da hierarquia entre “normas-princípio” e “normas-regra”......................................44
12.
Da suposta existência de uma hierarquia entre os princípios constitucionais
no ordenamento brasileiro........................................................................................45
13.
Da ponderação de princípios....................................................................................47
14.
Da norma hipotética fundamental de Kelsen – análise de suas implicações no
ordenamento jurídico positivo..................................................................................54
15.
Do "Princípio do Consentimento à Tributação".......................................................56
PARTE III - DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO COMO NORMA JURÍDICA
FUNDANTE NO ORDENAMENTO JURÍDICO E DO SISTEMA TRIBUTÁRIO
NACIONAL........................................................................................................................59
16.
Do Princípio Democrático como norma jurídica fundante de toda a atividade
jurídica "estatal" (norma jurídica de habilitação ao exercício do poder
estatal)......................................................................................................................59
16.a.)
Análise no nível semântico do ordenamento................................................59
16.a.1.) Análise do vocábulo “Princípio”..................................................................60
16.a.2.) Análise do vocábulo “Democrático”............................................................63
16.b.)
Análise no nível sintático do ordenamento..................................................65
16.b.1.) Evolução do tratamento normativo-constitucional do Princípio
Democrático.................................................................................................66
16.b.1.1.)
Constituição Política do Império do Brazil (1824)..........................67
16.b.1.2.)
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891)....69
16.b.1.3.)
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1934)....72
16.b.1.4.)
Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1937)..........................76
16.b.1.5.)
Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1946)..........................83
16.b.1.6.)
Os Atos Institucionais do Regime Militar e a Constituição da
República Federativa do Brasil (1967).............................................88
16.b.1.7.)
Emenda Constitucional n.º 1 (1969).................................................95
16.b.1.8.)
Constituição da República Federativa do Brasil (1988).................100
16.c.)
17.
Análise no nível pragmático do ordenamento............................................107
Do Princípio Democrático como norma jurídica fundante da atividade tributária
estatal (norma jurídica de habilitação ao poder de tributar)...............................................114
17.a.)
O Princípio Democrático e suas implicações com o Princípio da
Legalidade Geral........................................................................................115
17.b.)
O Princípio da Legalidade Tributária e a competência tributária do ente de
direito público interno................................................................................117
PARTE IV - PROPOSTA DE INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DOS
DESDOBRAMENTOS DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO NO ÂMBITO DO
DIREITO TRIBUTÁRIO................................................................................................126
18.
Contraposição conceitual entre “mens legis” e “mens legislatoris” e da
colocação do problema hermenêutico....................................................................126
19.
Retomada do prestígio da “mens legislatoris”.......................................................130
19.a.)
A “mens legislatoris” como resultado da atividade congressual e da
eficácia do Princípio Democrático.............................................................130
19.b.)
Necessidade de motivação dos atos emanados pelo Estado.......................132
19.c.)
Necessidade de motivação dos atos emanados pelo Poder Legislativo A “mens legislatoris” como requisito constitucional de validade do ato
legislativo objetivado – Os atos de enunciação como requisitos de
motivação do ato legislativo........................................................................................141
20.
Nova proposta hermenêutico-aplicativa.................................................................146
20.a.)
Da hermenêutica histórica agregada à análise dos atos de enunciação
legislativa....................................................................................................147
20.b.)
Da Dogmática Jurídica em sentido amplo..................................................157
20.b.1.) Necessário inter-relacionamento do Direito Tributário com os demais
ramos do Direito.........................................................................................158
20.b.2.) Exemplo de “abertura” do sistema tributário ao valores que, de início,
seriam extradogmáticos: do art. 110 do CTN............................................164
21.
Exemplos pragmáticos de utilização da teoria proposta........................................165
21.a.)
Das normas relativas à não-cumulatividade do Pis e da Cofins.................165
21.b.)
Do drawback para fornecimento no mercado interno................................172
21.c.)
Da declaração de inaptidão cadastral da pessoa jurídica............................174
PARTE V - DAS CONCLUSÕES...................................................................................176
22.
Conclusões..............................................................................................................176
BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................184
PARTE I
NOÇÕES INTRODUTÓRIAS E PREMISSAS METODOLÓGICAS AO
DESENVOLVIMENTO DO RACIOCÍNIO
1.
Intróito e apresentação – As marcas da enunciação1.
“Contar com a ajuda do desfavorável”2. Esse tem sido o paradoxo que tem
norteado os rumos da minha vida pessoal, e particularmente, da minha vida acadêmica nos
últimos tempos (conforme formação que me foi destinada), conduzindo-me, inclusive, ao
desafio de encarar um curso de Mestrado numa das mais conceituadas Universidades do
país, na área de Direito Tributário.
O brilhantismo e o alcance do pensamento jurídico da Escola Paulista de
Direito Tributário, pela inegável excelência doutrinária, têm ofuscado a produção
intelectual por parte das demais Escolas, que se intimidaram com o desenvolvimento
atribuído à Ciência do Direito Tributário, pela utilização da filosofia da linguagem.
Contudo, alguns novos estudiosos ditos lingüísticos - mais exagerados que
os grandes Mestres da Escola Analítica -, resolveram tomar parte neste processo de
desenvolvimento da Ciência Jurídica, com tal exacerbação, que lograram como resultado
uma mitigação do inter-relacionamento do Direito Tributário com os demais ramos
dogmáticos (Direito Constitucional, Direito Financeiro, Direito Administrativo, etc.). Tudo
sob o pretexto de uma insustentável concepção de rigor científico, que impediria a
realização de um corte mais amplo no objeto. A suposta maior profundidade pelo corte
mais estreito implica menor abrangência do objeto empírico (que é uno), e, portanto, a
desconsideração de partes importantes do mesmo.
1
Descrição do percurso de formação de sentido utilizado na presente dissertação (processo de enunciação),
conforme obra de Fiorin, José Luís. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São
Paulo: Ática, 2001.
2
Guitton, Jean. Le travail intellectuel. Aubier. Paris:1951. pp. 44 e seguintes.
13
Dessa circunstância, surge a necessidade de fomentar a atividade jurídica da
Escola dita “tradicional” (a doutrina publicista, constitucionalista), acomodada que estava
com o advento do novo método analítico, de modo a incitar o retorno ao pensar
cientificamente, e como de costume, sem quaisquer restrições quanto ao interrelacionamento do Direito Tributário com o demais ramos jurídico-dogmáticos; e até
mesmo num maior inter-relacionamento do próprio Direito3 com as demais ciências
extrajurídicas (para aqueles que se aventuram por vôos mais ousados, como por exemplo,
os estudiosos do chamado law and economics, tão disseminado nos países de primeiro
mundo).
Muito embora, o retorno ao pensar o óbvio, dessa feita, será intentado com a
utilização do valioso instrumental disponibilizado pela filosofia da linguagem, bem como,
pela adoção de uma nova proposta hermenêutica, que envolve o inevitável
interdisciplinamento do Direito Tributário com os demais ramos do Jurídico e a
necessidade de apreciação da motivação de todos os atos estatais, inclusive os legislativos.
Tudo isso, pretende-se, sem abdicar do rigor científico, do necessário fechamento operativo
(Luhmann), e como contrapartida, sem a incursão em maiores exageros doutrinários.
A idéia é simples, e já utilizada por alguns: analisar o objeto empírico
(Princípio Democrático como norma jurídica fundante da atividade tributária estatal e a
utilização de uma nova proposta de interpretação e aplicação, no âmbito do Direito
Tributário, dos seus desdobramentos) nos seus três níveis de linguagem (sintático,
semântico e pragmático), desbravando, assim, esta disciplina tão complexa e já tão
estudada, que é o Direito Tributário, embora, como dito, agregando um toque de
interdisciplinamento com as demais áreas do conhecimento jurídico, a saber, a Teoria Geral
do Direito, a Filosofia do Direito, o Direito Constitucional, o Direito Administrativo, o
Direito Financeiro, etc., e a adoção de novo critério de interpretação/aplicação do Direito,
3
Vide art. 110, do Código Tributário Nacional: “Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o
conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou
implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do
Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”
14
que leve necessariamente em conta a motivação do ato estatal. Saber quais o limites da
Dogmática Jurídica é condição per quam e sine qua non para o estudo interdisciplinar do
tributo.
Poderíamos ter optado por dissertar sobre um tema menos “constitucional” e
nitidamente mais “tributário”, ou ainda, por um tema econômica e profissionalmente mais
vantajoso, do ponto de vista advocatício (ex.: a incidência de determinado tributo sobre
específico setor da atividade econômica dos contribuintes), esclarecendo, porém, que não
condenamos aqueles que o fazem.
Contudo, por tratar-se de um curso de Mestrado, que, além de específico na
área de Direito Tributário, é antes disso, um Mestrado em Direito do Estado – afora o fato
de ser ministrado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que tem em vários de
seus Professores verdadeiros bastiões das liberdades individuais (ex.: Geraldo Ataliba, no
Direito Constitucional; Celso Antônio Bandeira de Mello, no Direito Administrativo; Paulo
de Barros Carvalho, Roque Carrazza, dentre outros, no Direito Tributário) -, decidimos
abordar um tema que nos parece mais relevante, no sentido de ser dotado de uma maior
abrangência normativa, e que, por isso, fosse ainda mais merecedor de uma nova análise.
A escolha decorreu, também, da adoção de um tema, digamos, “de maior
relevância”, como orientação pelo Prof. Paulo de Barros Carvalho, que, por sua vez, a
recebeu do ilustre Prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello. Este sempre orientava os seus
alunos pela opção por temas mais abrangentes.
Ademais, a idéia de abordar o Princípio Democrático começou a se delinear
com a intrigante lição dos Professores das disciplinas de Direito Tributário II e Direito
Constitucional Tributário a respeito do chamado “Princípio do Consentimento à
Tributação” (essa menção era comumente efetuada pelos Professores Roque Antonio
Carraza, José Artur de Lima Gonçalves, além de Estevão Horvath). Admirava-nos o fato de
defender-se com tanta veemência algo que nos parecia, ao menos no primeiro contato,
metajurídico.
15
Contudo, posteriormente pudemos perceber que o chamado “Princípio do
Consentimento à Tributação” poderia ser visto como uma variante de expressão do
Princípio Democrático, o qual, concluímos a posteriori, nos termos do art. 1º, parágrafo
único da Constituição Federal, dentre outros dispositivos, consistiria no fundamento para
todas as demais normas do ordenamento jurídico positivo.
De início, havíamos determinado o tema da dissertação como sendo “O
conceito constitucional de tributo”. Contudo, após perceber que quaisquer normas do
sistema de direito positivo advinham do exercício do poder estatal instituído pelo Princípio
Democrático, e que este possuía direta correlação com a atividade jurídica (e,
principalmente, tributária) do Estado, decidimos incluir uma parte introdutória no trabalho,
em que seria abordado o referido princípio. Essa introdução foi tomando corpo, ao ponto de
se tornar uma primeira parte de equivalente proporção à segunda no trabalho.
Contudo, diante da importância desta primeira parte, decidimos abordar,
nesse primeiro momento, apenas o Princípio Democrático, como fundamento de toda a
atividade tributária estatal, bem como, as implicações de alguns de seus desdobramentos no
âmbito do Direito Tributário.
Na segunda parte do trabalho, como conseqüência de conclusões originárias
da primeira, proporemos uma alternativa de interpretação/aplicação do Direito Tributário
que leve em consideração algunos quais, nada mais são que desdobramentos do próprio
Princípio Democrático.
Assim sendo, como forma de otimizar o pouco tempo de estudo de que
dispomos, e conforme ensinado pelo Professor João Maurício Adeodato nas aulas de
Metodologia da Pesquisa em Direito da Pós-graduação da Universidade Federal de
Pernambuco, aproveitamos algumas premissas anteriormente publicadas, para dissertar
sobre uma nova proposta de aplicação de algumas dentre as manifestações do Princípio
Democrático no âmbito tributário, e quiçá, noutro momento, após a finalização do Curso,
16
teremos chance de abordar as implicações do referido princípio na delimitação de um
conceito constitucional de tributo.
Com isso, “olhando o direito com os olhos de uma criança”, e contando com
a “ajuda do desfavorável” - a ausência de pré-conceitos (pré-concepções) na análise da
matéria (favorável), agregada à carência de um aprofundamento na análise da matéria
(desfavorável) -, chegamos ao produto final da nossa reflexão, manifestado pela presente
dissertação, que aborda o Princípio Democrático como norma jurídica fundante de toda a
atividade tributária estatal e a proposta de uma nova alternativa de interpretação/aplicação
dos seus desdobramentos no âmbito do Direito Tributário.
Essa nova abordagem, como dito, consiste também na realização de um
corte metodológico mais alargado, que resulte numa apreciação mais ampla: a abordagem
do Direito Tributário, como subsistema constitucional que é, como um capítulo do Direito
Financeiro e Administrativo, além da necessária consideração dos atos de enunciação
normativa como legitimadores do Princípio Democrático. Acreditamos ser essa não
somente uma alternativa a mais de análise, mas, sim, a alternativa de abordagem
constitucional mais adequada aos ditames democráticos, sem quaisquer concessões do
chamado "rigor científico"4.
Contudo, redirecionamos a atenção do leitor, primeiramente, para o quê de
mais importante no Sistema Tributário Nacional o Princípio Democrático tratou de
delimitar: a competência tributária dos entes de direito público interno e sua nítida
vinculação ao Princípio da Legalidade Tributária (art. 150, I CF).
A análise da competência tributária dos entes de direito público interno
(União, Estados, Distrito Federal e Municípios) - após assumida a premissa acima
estabelecida do Princípio Democrático como norma fundante do Sistema Tributário
4
O dito "rigor científico' consiste na adequação das conclusões obtidas como resultado da atividade científica,
às premissas adotadas como ponto de partida do trabalho. Contudo, acreditamos existir sempre um
determinado grau de indeterminação - p. ex. conceito de "verdade' o qual sempre será de difícil
caracterização, visto que, temos por esta, algo sempre transitório, e, portanto, em constante mutação;
17
Nacional - não se circunscreve apenas ao exame das suas implicações com o Princípio da
Legalidade Tributária.
Muito mais que isso, o Princípio Democrático, agregado a outros princípios
de ordem igualmente fundamental, como o Princípio Republicano, o Princípio Federativo e
o Princípio do Estado de Direito (CF, art. 1º, caput), pela disseminação de seus efeitos ao
longo de todo o sistema, e até mesmo pelo regime de participação ou representatividade
diretas que o caracterizam, impõem tratamento hermenêutico diferenciado por parte do
intérprete/aplicador à norma jurídica. Em que consiste essa diferenciação hermenêutica?
Relembremos a lição de Cossio: ao aplicar-se determinada norma jurídica,
estar-se-á aplicando o ordenamento jurídico como um todo.
Assim da conjugação do Princípio Democrático, e suas características
peculiares de participação e representatividade diretas; suas implicações com as normas
relativas ao delineamento da competência tributária (v. normas do Sistema Tributário
Nacional, que estabelecem as conformações de cada exação tributária prevista no Texto
Constitucional, e particularmente as limitações constitucionais ao poder de tributar); com
os Princípios Republicano e Federativo (art. 1º, caput, CF); além da interpretação
sistemática com os Princípios da Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e
Eficiência, constantes do art. 37, da CF; dentre outros de inafastável aplicação (v. art. 5º,
LIV, LV, etc.), citados estes apenas a título exemplificativo, e teremos os fundamentos
constitucionais da nossa proposta: a utilização das exposições de motivos do ato legislativo,
ou seus “considerandos”, justificativas de proposições e até mesmo dos anais congressuais
(isto é, todos os atos de enunciação legislativa indicativos da mens legislatoris) como
subsídios válidos à interpretação e aplicação da norma jurídica tributária, e não como atos
sem qualquer valor para a exegese do normativo.
Assim, com a pré-fixação de algumas premissas pela recorrência de alguns
textos anteriores, produzidos durante o curso, e algumas idéias já expostas em artigos
científicos, tentaremos realizar uma análise do Princípio Democrático, bem como, propor
18
uma nova alternativa de interpretação/aplicação, levando em conta, os seus desdobramentos
no âmbito do Direito Tributário positivo, como um capítulo que este é dos sobre-ramos do
Direito que lhe são mais próximos, dos quais é parte componente (Direito Constitucional,
Direito Administrativo e Direito Financeiro), para demonstrar que tal abordagem não
somente é possível, como também desejável5.
É legítimo optar pela "setorização" do conhecimento como uma necessidade
meramente didática e organizacional. A especialização, no plano da linguagem descritiva,
dá-se por uma necessidade de aprofundamento científico, como descrito acima, visto ser
mais factível saber-se mais sobre algo em específico, que saber algo sobre um número
maior de objetos. Já no plano da linguagem-objeto do direito positivo, a especialização
ocorre pelo intuito legislativo de regrar determinada matéria de forma isolada e
sistematizada, facilitando a comunicação com os legiferados (v. art. 7º, I, da Lei
Complementar n.º 956).
A subjetividade é uma característica inerente ao ser humano, e, portanto,
está presente em todos os campos do conhecimento. Por conseqüência, presente em toda
está em toda atividade científica. Esclarecemos, inicialmente, que entendemos por
subjetividade a capacidade de cada indivíduo chegar à conclusão não necessariamente igual
a que chegou outro, quando da análise de um mesmo suporte físico, ante a diversidade de
valores que informa a compleição cultural de cada um (inter-subjetividade).
Exemplificativamente, na medicina, em sua subdivisão da medicina
nutricional, temos discussões a respeito das mais variadas espécies ou gêneros alimentícios:
em sua maioria, ora são consideradas como benéficas, por colaborarem com o bom
funcionamento de um determinado órgão ou sistema; outrora são tomadas por maléficas,
5
Trabalhamos com uma teoria própria do direito que, ao reconhecer a impossibilidade de afastamento do
aspecto subjetivo, primamos sempre pela "melhor aplicação", em termos de Política Jurídica (In casu, Política
Fiscal), e que leve em conta os valores positivados - imanentes ao ordenamento -, que são mais relevantes à
sociedade no nosso espaço-tempo (ex.: isonomia, legalidade, redução das desigualdades sociais e regionais,
livre iniciativa, etc.).
6
“Art. 7o O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os
seguintes princípios:
I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto; (…)”
19
tendo em vista os "avanços" na pesquisa médica, que permitem identificar um desequilíbrio
quando do uso (desregrado ou não) dessa mesma espécie ou gênero alimentícios.
Assim também o é no Direito. Temos a prevalência da subjetividade no
objeto de estudo (o ordenamento jurídico), pois nem sempre é possível alcançar a
amplitude valorativa desejada pelo legislador - seja este o das normas gerais e abstratas,
seja o aplicador das normas individuais e concretas. Temos, ainda, o influxo da
subjetividade também no observador, visto que se torna difícil atribuir ao cientista uma
posição de absoluta imparcialidade na visualização do sistema jurídico, salientando-se que
a própria e suposta ausência de posição valorativa já se constitui numa posição valorativa
negativa e, portanto, parcial; e temos, por fim, influência da subjetividade na ciência do
direito, como produto da atividade do jurista, tão sujeito à parcialidade - esta última nada
mais é do que a subjetividade do sujeito do conhecimento formalizada através do produto
da sua atividade científica: livros, artigos, monografias, etc..
Assim, a metodologia científica assumida por determinado paradigma
teórico7 trabalha no sentido convencional de um conjunto de premissas e métodos de
abordagem para os adeptos daquela corrente científica subjetivamente convencionada,
demarcando assim o que pode ou não ser considerado como atividade científica “válida”
dentro daquele determinado “modelo” de conhecimento, e no que consistem os “avanços
científicos”, de acordo com aquele paradigma teórico.
Vejamos o exemplo de dois dos maiores juristas dos últimos tempos, e que
muito influenciaram a presente dissertação, pela assimilação das lições do Prof. Celso
Fernandes Campilongo, na disciplina de Teoria Geral do Direito: Hans Kelsen e Niklas
Luhmann. Apesar de se dedicarem ao estudo do mesmo objeto (ordenamento jurídico), o
fizeram de forma completamente distinta, a começar pelo método de aproximação, pois
Kelsen promoveu a análise do sistema a partir da sua partícula mínima, qual seja, a norma
jurídica, para daí, então rumar à descrição do sistema; enquanto Luhmann preferiu estudar
7
Sobre os paradigmas teóricos, v. Kühn, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Ed. Perspectiva. São
Paulo:2001.
20
o Direito pelo caminho inverso: partindo dos variados sistemas, no caso, do sistema
juridico à norma jurídica, o seu “código redutor de complexidades”. Tudo é caminho, como
ensinava Heidegger (Alles ist Weg).
Tomando o direito como um bem cultural8, obra humana que é9, este
necessariamente há de servir de instrumento, de ter uma função de modificação na vida dos
seus destinatários. Desse modo, assumimos como premissa essencial a ser desempenhada
para validade da atividade científica, por qualquer um, em qualquer campo do
conhecimento, a necessária atribuição de um fim valorativo a toda a sua empresa; ou,
colocando em melhores termos: é inafastável a consideração da existência de um fim
imanente a toda e qualquer atividade científica, e não menos no nosso campo específico de
investigação, qual seja, a análise do ordenamento jurídico.
Atente-se, ainda, que a teleologia não se apresenta apenas no âmbito da
linguagem descritiva da Ciência do Direito, mas, decorre da própria linguagem objeto do
direito positivo (art. 3º, CF), o que remata qualquer discussão em torno do tema. A doutrina
de Alfredo Augusto Becker é ainda mais clara quanto à sua existência, ínsita ao próprio
conceito de Estado:
“O Estado (Ser Social) é uma realidade, porém não é qualquer realidade
exterior ao homem e à sua atividade o Estado existe nos atos e pelos atos
dos indivíduos humanos que são seus criadores; e é nesta atividade contínua
e relacionada ao Bem comum que consiste a realidade do Estado10.
(...)
E esta atividade contínua e relacionada ao Bem Comum, que se sustenta e
se alimenta da inteligência e vontade dos homens, é uma relação: a relação
constitucional do Estado (Ser Social)11.”
8
Sobre a classificação dos objetos v. Husserl, Edmund, apud, Apostila do grupo de estudos do Prof. Paulo de
Barros Carvalho.
9
Carvalho, Paulo de Barros. Sobre os princípios constitucionais tributários, in Revista de Direito Tributário,
n.º 55, p. 144.
10
J. Dabin, L’Etat ou le Politique, Paris, 1957, n. 30 e J. Haesaert, Théorie Générale du Droit, Bruxelles,
1948, pp. 149-150 apud Becker, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª ed., p. 163, Lejus,
São Paulo: 2002.
21
Numa tentativa de refutar os ditos dogmáticos kelsenianos (aqueles
emocionalmente mais envolvidos, como se a ausência de análise valorativa por estes
pretendida não implicasse, consoante dito, numa análise valorativa em si!), como forma de
prestigiar o Princípio Democrático, e sua vontade popular representativa do Bem Comum,
tentaremos ao final propor a alternativa de interpretação e aplicação do Jurídico acima
aventada, baseada na importância do referido princípio e seus desdobramentos no
ordenamento jurídico.
Esperamos, todavia, contribuições críticas, pois só mediante testes cruciais
de refutação poder-se-á avaliar a idoneidade teórica da hipótese aventada. Se ela resistir a
esses testes, será uma boa hipótese, e poderá ser adotada até a sua substituição por outra de
maior abrangência no âmbito de explicação do fenômeno descrito: o Princípio Democrático
como norma de habilitação ao exercício dos demais poderes constitucionais (inclusive do
poder de tributar) e a adoção de uma nova alternativa de abordagem dos seus
desdobramentos no âmbito do Direito Tributário positivo, com base nessa premissa.
2.
Prólogo - Thomas Kuhn – a estrutura das revoluções científicas: a ciência em
prol da sociedade
Como afirmado em escritos anteriores12, um dos momentos de maior
efervescência na história da atividade científica, indubitavelmente foi o Círculo de Viena.
Filósofos e pensadores se encontravam, periodicamente, em torno de uma “stammtisch”
(mesa de debates em bares e cafés, muito comum nos países germânicos) para refletir sobre
as bases em que ocorre (ou deveria ocorrer, de acordo com o neopositivismo lógico) o
desenvolvimento da atividade científica, e para traçar os rumos daquilo que consideravam o
melhor método de pensar cientificamente.
11
Becker, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª ed., p. 163, Lejus, São Paulo: 2002.
Borges, Paulo Fernando Souto Maior. O caráter patrimonial das obrigações tributárias acessórias, in
Teoria geral da obrigação tributária – Estudos em homenagem ao Prof. José Souto Maior Borges.
Malheiros. São Paulo: 2005, p. 311.
12
22
O Círculo de Viena, como antecedente longínquo, informa boa parte da
doutrina nacional em Direito Tributário, que pela sua formação lógico-filosófica, tem no
pensamento de seus representantes (Gottlob Frege, Moritz Schlick, Ludwig Wittgenstein –
este último, apesar de não ter dele participado, exerceu grande influência sobre o Círculo -,
e até mesmo o próprio Kelsen teria participado de alguns debates) o principal fundamento
doutrinário para a atual Escola Paulista de Direito Tributário.
Esse movimento, tido como informador da atual doutrina da Escola Paulista
de Direito Tributário, teve o seu ápice na edição do manifesto “O ponto de vista científico
do Círculo de Viena”, publicado em Congresso na cidade de Praga, onde restou afirmada
como premissa maior que todas as demais a colocação da ciência em prol da humanidade13.
Como criticar uma doutrina que se encastela sob o manto de tão digna pretensão para com a
sociedade? Situação difícil essa, e de outro modo não poderia ser, advindo de tão
competentes pensadores.
Ocorre que, do originariamente pensado e desejado pelos principais
membros do Círculo de Viena, ao efetivamente praticado por uma parte mais fervorosa de
seus inúmeros discípulos, muitas vezes ocorrem distorções, desvirtuações da “essência” do
seu pensamento. A esse tipo de equívoco qualquer um de nós está sujeito quando da
reprodução do pensamento alheio. Essa vicissitude é mais sensível nas traduções de obras
alheias: “tradutor, traidor” – denuncia a velha parêmia.
Thomas Kuhn14 também desencadeou pela publicação do seu “A estrutura
das revoluções científicas” uma nova reflexão por parte dos filósofos sobre as bases em que
ocorre o desenvolvimento da atividade científica. Pregava Kuhn uma dinâmica diversa para
a evolução da atividade científica: o conhecimento se desenvolvia quando um paradigma
(modelo teórico) fosse acometido por anomalias (vícios resultantes da aplicação do
paradigma), ao ponto de resultar numa ou em várias crises (momentos de reflexão do
13
Carvalho, Paulo de Barros. O neopositivismo lógico e o círculo de Viena, in Apostila de Lógica da
disciplina de Filosofia do Direito – Lógica Jurídica, ministrada no curso de Mestrado em Direito Tributário da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
14
Kuhn, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Ed. Perspectiva. São Paulo:2001.
23
paradigma), que normalmente desembocariam no surgimento de um novo paradigma,
através de uma ruptura para com o modelo anterior (a revolução científica propriamente
dita).
O presente trabalho resulta da aplicação crítica da teoria de Thomas Kuhn à
Ciência Jurídica praticada por alguns adeptos mais fervorosos da chamada Dogmática
Jurídica em sentido estrito, que somente contribui para uma estagnação do Direito
Tributário em limites cientificamente pouco ambiciosos15.
3.
Para além do apenas dogmático.
Como dito, o raciocínio desenvolvido por Thomas Kuhn se aplica à atual
situação da doutrina elaborada por alguns estudiosos dogmáticos kelsenianos, que somente
incorrem em equívoco quando da interpretação da obra daquele jurista.
A posição desta doutrina equivoca-se quando se esquiva de enfrentar vários
problemas científicos por uma questão de exclusivo “corte epistemológico”. Ressalte-se
que tal anomalia somente ocorre por uma desvirtuação da Dogmática Jurídica do seu
sentido mais apropriado (que será abordado no próximo item).
Temos plena consciência da necessidade de a ciência desenvolver-se em
bases sólidas e com absoluta coerência entre suas premissas e conclusões (conforme
salientado pelo Círculo de Viena em seu manifesto), com os seus limites demarcados com
todo o rigor científico possível, sob pena de ingressarmos no labirinto do caos de sensações
kantiano16.
Contudo, a opção pelo rigor científico na análise da fenomenologia tributária
efetuada pelos ditos dogmáticos (aqueles que trabalham com uma acepção mais estrita) não
15
Em matéria de ciência, a ousadia é um método, já dizia, com suporte em Bachelard, José Souto Maior
Borges “A ciência não tem por meta qualquer verdade proposicional trivial e simplória, mas ambiciona, isso
sim, verdades relevantes”, no seu Ciência Feliz, sobre o mundo jurídico e outros mundos, 3ª ed., Quartier
Latin, São Paulo: 2007, p. 25.
24
pode descartar o imprescindível inter-relacionamento do Direito Tributário com os outros
ramos do Direito dos quais é parte indissociável, p. ex.: o Direito Constitucional, o Direito
Administrativo e o Direito Financeiro, inclusive, nesta ordem.
Como ressaltado no nosso trabalho sobre o caráter patrimonial das
obrigações tributárias acessórias, necessário direcionar a ciência para a sua melhor
utilização pragmática, dimensão da linguagem em que ela se torna mais rente à realidade
social, no dizer de Pontes de Miranda.
A filosofia da linguagem aplicada ao direito nos ensina que três são os níveis
de linguagem a serem utilizados para uma correta abordagem científica: o sintático (o interrelacionamento normativo), o semântico (o significado lingüístico do texto legislativo), e o
pragmático (em que termos ocorre, ou não, a observância dos preceitos pelos destinatários
normativos). Esses são, portanto, os níveis a serem considerados para efeitos de qualquer
estudo jurídico-filosófico, centrado na filosofia da linguagem, e que ora serão utilizados
para a análise do Princípio Democrático como norma jurídica fundante da atividade
tributária estatal, para, a posteriori, apresentarmos a proposta de uma alternativa para o
Direito Tributário estruturada sobre seus desdobramentos.
Reconhecemos a existência de um valor ínsito a qualquer atividade
científica em qualquer contexto espaço-temporal: o benefício da humanidade, conforme
consta do manifesto publicado pelos membros do Círculo de Viena, sendo este entendido
como a melhoria da condição de vida do ser humano. O “Bem Comum” ou “Bem Social”
de Becker, Dabin, e del Vecchio.
A esse respeito, vale salientar que a busca pelo bem-estar social, ou
benefício da humanidade, não consiste mera impressão de valor subjetivo, próprio do autor
do presente trabalho, mas, no caso do nosso sistema jurídico, de objetivo fundamental da
República Federativa do Brasil, nos termos do art. 3º, da CF:
16
Kant, Emmanuel. Crítica da Razão Pura. eBookLibris. Acrópolis. São Paulo: Junho, 2001.
25
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Do mesmo modo, entendemos que não há como alcançar qualquer benefício
sem a análise da pragmática (a regulação da conduta de acordo com os valores introduzidos
por intermédio das normas jurídicas como fim maior do direito), como ressaltado17.
O grande desafio consiste na seguinte questão: como exercer uma ciência
considerando toda à sua permeabilidade aos valores, sem com isso, afastar o rigor científico
e suas necessárias limitações epistemológicas e metodológicas? Um doutrinador conhecido
costuma dizer: o fato de um problema ser difícil só constitui mais um motivo para que seja
de imediato enfrentado (José Souto Maior Borges).
4.
Apologia da Dogmática Jurídica (na sua acepção lata) e crítica à aplicação
equivocada da Dogmática Jurídica (na sua acepção estrita): os valores juridicamente
positivados.
Kelsen foi um dos maiores juristas de todos os tempos. Na primeira metade
do século XX, Cossio denominou-o “o jurista de época contemporânea”. Sem a sua “Teoria
Pura do Direito” (Reine Rechtslehre) a ciência jurídica do último século estaria
descaracterizada.
Antes dele, o Direito não era reconhecido como uma ciência autônoma. Até
então a Ciência do Direito buscava, como visto, tentativas de explicação do seu objeto em
fundamentos exteriores ao Direito, extraídos de outras ciências, que não a Ciência Jurídica.
17
O direito como “ordem normativa da conduta humana” (ver Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. p. 5.
Martins Fontes. São Paulo:2003. Para analisar a questão do direito como valor, não podemos deixar de indicar
a obra de Reale, Miguel. Teoria tridimensional do direito, in Filosofia do direito. 9ª ed., Saraiva, São Paulo:
1992.
26
O Direito chegou inclusive a ser visualizado como um capítulo da Sociologia, e até como
um mínimo ético (Jellinek), reduzido assim a um capítulo da moral.
A “pureza” da teoria kelseniana foi necessária à configuração do Direito
como ciência, e nesse aspecto, muito bem cumpriu o seu dever a Dogmática Jurídica
oriunda da sua obra (na sua acepção estrita), visto que nos dias de hoje, não mais há
discussão quanto ao caráter científico do Direito, restando ultrapassadas as demais
concepções em contrário, como, por exemplo, a que chegou a vislumbrar o Direito como
um capítulo da Sociologia (Comte).
O mesmo podemos dizer em relação ao Direito Tributário, cuja autonomia
científica e dogmática, em relação aos demais ramos do Direito dos quais também é parte
componente (Direito Público, Direito Constitucional, Direito Administrativo, e Direito
Financeiro), é assentada na atualidade. Dizê-lo autônomo, nesse sentido, é o mesmo que
afirmar ser ele inconfundível com outras disciplinas jurídicas especializadas. Esse
significado nada tem a ver com uma pretensa autonomia didática do Direito Tributário.
Apesar das críticas intentadas aos que se equivocam no exame da sua teoria
(e a algumas poucas críticas da nossa parte – v. item 14), entendemos ser Kelsen um jurista
de muitos méritos. Foi, para muitos, o maior doutrinador jurídico do último século,
deixando-nos um legado de dificil superação. À Kelsen coube a sistematização da Teoria
do Direito com base em conceitos pré-existentes já no século XIX. Dizia Cossio, em bela
consígnia: “ir além de Kelsen, sem sair de Kelsen”. É o que se pretende com o presente
trabalho.
A necessidade de uma análise asséptica, no intuito de atribuir natureza
científica ao Direito, como toda atividade de ruptura (revolução científica), como dito,
levou a certos exageros por parte de alguns adeptos mais fervorosos da Dogmática Jurídica
(em sentido estrito), que somente dificultam uma correta operação do jurídico e seus
instrumentos de atuação (normas jurídicas).
27
A Teoria Pura de Kelsen, em face dessa necessidade de reconhecimento do
Direito como uma ciência autônoma, resultou na aplicação de um exagerado corte
metodológico por parte destes cientistas dogmáticos, que, no intuito de imprimirem um alto
grau de rigor científico às suas construções teóricas pela superlimitação do objeto de estudo
(sistema jurídico), desprezavam por completo quaisquer interações com outros sistemas
extrajurídicos, e, ainda pior, as relações do subsistema de direito tributário positivo com
outros subsistemas de direito positivo (Direito Constitucional, Direito Administrativo,
Direito Financeiro, etc.), algo que, em termos não só de Política Jurídica, mas, como se
verá adiante, também em termos jurídico-dogmáticos, é absolutamente equivocado, além de
não se confirmar no âmbito pragmático.
Sobre esse aspecto, vale ressaltar a lição de Lourival Vilanova, que já
disseminava, por intermédio de sua obra18, afirmação no sentido de que o mundo dos fatos
ingressa no Jurídico através da porteira aberta da hipótese normativa, e a descrição
constante do seu antecedente19. A hipótese normativa é um descritor deôntico. A
conseqüência normativa é um prescritor (estrutura bimembre da norma, como ensinou, ao
longo de sua obra, Vilanova).
Ou seja, o principal fomentador da doutrina divulgada pela Escola Paulista
de Direito Tributário prega uma consideração valorativa inerente ao Jurídico. De acordo
com Vilanova, o Direito leva necessariamente em consideração a realidade do mundo dos
fatos, e, com isso, toda a sua gama valorativa, principalmente pela sua análise pragmática.
Diversamente do sustentado pela doutrina dogmática (estrita), a análise
valorativa não só é possível, como também, é indispensável à uma correta aplicação do
Direito - que seja um mínimo comprometida com o benefício da humanidade -, sob pena de
18
Vilanova, Lourival. Estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. EDUC – RT. São Paulo:1977.
Coloca ainda Vilanova, no seu Estudos jurídicos e filosóficos, vol. 1. Política e direito: relação normativa,
p. 367 com bastante propriedade que: “sem um mínimo de notas selecionadas que perfaçam um esquema
conceptual relativamente a priori, em face dos possíveis factos ocorrentes, distinção nenhuma habilita o
sujeito cognoscente para separar o facto econômico do facto religioso, o facto político do facto econômico e
jurídico ou estético e militar” E ainda complementa: “O facto puro, seja ele de qualquer subespécie, é
resultado de um corte abstrato feito pelo conceito fundamental que desarticula o contínuo heterogêneo em
segmentações homogêneas, o que reconstrói o dado em porções racionalizadas”, p. 368.
19
28
invertermos o raciocínio mais adequado pela preponderância dos valores positivados,
como, por exemplo, da vontade popular positivada, que permeia todo o nosso Texto
Constitucional, e retrocedermos em cessão de espaço ao arbítrio – o que vai de encontro à
uma das principais razões de ser do Direito (regulação das condutas – Kelsen – de acordo
com o Bem Comum – Becker, Dabin, del Vecchio).
Demonstramos, por intermédio da análise sintática, a plena existência de
valores no sistema jurídico pela simples leitura da Constituição Federal, que inicia seu texto
assegurando o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bemestar, o desenvolvimento, a igualdade, e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social, etc.. Isso sem
mencionar que o preâmbulo é finalizado com a promulgação sob a proteção de Deus. Todos
esses valores são contemplados com plena aplicação pelo Supremo Tribunal Federal
(análise pragmática).
Para aqueles que negam força normativa ao preâmbulo, vale a ressalva que
faz cair por terra qualquer argumentação no sentido da desconsideração dos valores pelo
preâmbulo veiculados no sistema: ainda que sem força normativa por serem mencionados
no preâmbulo, essas prerrogativas dos destinatários da Constituição Federal encontram-se
positivadas e espraiadas ao longo de todo o seu texto, e não apenas na parte preambular20.
E não se pense com isso que se pretende reingressar na discussão do
Jusnaturalismo versus Positivismo, e nem muito menos, se intente desqualificar o presente
trabalho pela adoção de comentários pejorativos extrajurídicos. O que se pretende, é sim,
colocar à apreciação da comunidade acadêmica uma nova proposta de aplicação da
Dogmática Jurídica na sua acepção lata, que promova um maior inter-relacionamento do
Direito Tributário com os demais ramos jurídico-dogmáticos, e também, com a
consideração dos valores que à própria Dogmática Jurídica são imanentes (ressalve-se,
mais uma vez, que a própria escolha pela ausência de valores, constitui-se numa valoração
implícita). Tarefa que como dito anteriormente, apesar de difícil, é “deonticamente” viável.
20
Vide exemplificativamente CF, arts. 5º, 6º, 8º, 12, 14, 17 etc.
29
5.
Sistema da Ciência do Direito e Sistema de Direito Positivo.
Existem pelo menos duas alternativas metodológicas para se empreender um
trabalho jurídico: um primeiro caminho seria analisar o objeto do conhecimento da sua
partícula mínima que é a norma jurídica (desconsideradas suas partes constitutivas – as
proposições normativas, equivocadamente chamadas de fragmentos de normas) visando à
análise do seu conjunto que é o sistema de direito positivo (opção adotada por Kelsen). Ou
vice-versa, a partir do sistema de direito positivo (o todo) rumar à norma jurídica (a parte).
Esta opção é adotada, por exemplo, por Niklas Luhmann, em sua teoria dos sistemas
comunicacionais.
Achamos por bem iniciar conceituando o sistema de direito positivo como o
conjunto de normas vigentes num determinado espaço-tempo. Numa acepção de base
(acepção primeira, inicial), seria um “objeto formado de porções que se vinculam debaixo
de um princípio unitário ou como a composição de partes orientadas por um vetor
comum”21.
Tércio Sampaio Ferraz Jr. utiliza os termos “estrutura” para designar o
complexo de relações existente entre os entes aglutinados, e “repertório” para designar o
conjunto de seus elementos constitutivos (in casu, as normas jurídicas22). É a “forma das
formas” no dizer de Husserl. A estrutura mais elaborada dentre as formas lógicas.
Conforme demonstrado numa das melhores teorias a esse respeito, temos
uma linguagem-objeto, constitutiva do sistema de direito positivo, e uma metalinguagem da
Ciência do Direito23. O sistema de direito positivo funciona pois como linguagem-objeto
dos estudos empreendidos pela Ciência do Direito, que atua como metalinguagem
descritiva desse sistema (meta por se colocar além, como que em paralelo).
21
Carvalho, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 15ª ed., p. 131. Saraiva. São Paulo:2003.
Ferraz Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Atlas. São Paulo:2003.
23
. Carvalho, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 15ª ed., pp. 135 e seguintes. Saraiva. São
Paulo:2003
22
30
Ante o exposto, coloca-se o seguinte questionamento: existe sistema tanto na
Ciência do Direito quanto no direito positivo?
Alguns negam o caráter de sistema ao direito positivo, o que não constitui o
entendimento da melhor doutrina24, que acredita haver a necessidade de um mínimo de
organização (talvez daí o termo análogo ordenamento) para que os destinatários das normas
jurídicas possam compreender, por exemplo, a subordinação de uma norma-regra a uma
norma-princípio25, ou porque a competência da Justiça Federal é diversa da competência da
Justiça Estadual, conforme estabelecido pela própria Constituição.
De igual modo, não há como descrever um sistema como o é o jurídico, de
forma válida, sem que se o faça de modo sistemático, mesmo por razões estritamente
metodológicas.
Donde concluímos que, da relação existente entre as normas jurídicas
(relações sintáticas intra-normativas) o ordenamento apresenta-se sob a forma de um
sistema (daí as expressões “sistema de direito positivo”, “sistema jurídico”, “sistema
tributário nacional”, etc.). De modo similar, seja por razões metodológicas, seja por
correspondência da linguagem descritiva com o objeto empírico, a Ciência do Direito que o
descreve deve apresentar-se de forma sistemática.
6.
Da metodologia científica utilizada na presente dissertação: migração do
sistema jurídico à norma jurídica.
Escolhemos por opção metodológica a alternativa que leva do sistema
jurídico às normas que nele estão inseridas.
24
25
Idem.
Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed.. Almedina. Coimbra: 1991, pp. 171 e seguintes.
31
Partiremos, portanto, do sistema de direito positivo, esse restrito ao Texto da
Constituição Federal, acrescida da inevitável análise do Código Tributário Nacional (com
preliminar análise de textos constitucionais anteriormente vigentes, atos institucionais e
complementares, etc.), até normas jurídicas específicas, relativas ao nosso tema: o Princípio
Democrático como norma jurídica fundante da atividade tributária estatal e uma nova
proposta de interpretação/aplicação dos seus desdobramentos no âmbito tributário.
No mais, sempre que utilizadas as expressões abreviadas “sistema”, “sistema
de direito positivo”, “Direito” ou “Jurídico” o faremos como sinônimo de ordenamento
jurídico posto. Sempre que nos referirmos ao sistema da Ciência do Direito, utilizaremos a
expressão por extenso: sistema da Ciência do Direito, ou a expressão Ciência do Direito,
Ciência Jurídica, etc..
7.
Do contrato social.
A necessidade da consideração do benefício da humanidade como fim maior
de qualquer atividade científica - e portanto, também da atividade científica de
interpretação e aplicação do Jurídico -, somente se confirma quando “retornamos às
origens”26 e verificamos, dentre outras fontes, na doutrina dos filósofos iluministas, a razão
de ser do próprio Estado, o motivo de sua criação como bem cultural pelos homens.
Em sua conhecida obra “O contrato social”, o filósofo suíço Jean Jacques
Rousseau discorreu sobre as razões de ser do Estado27. Para Rousseau o Estado decorreria
da celebração de um contrato social, por intermédio do qual os indivíduos entram em
acordo para proteção dos seus direitos “naturais”, que passariam com o pacto a ser
jurídicos.
26
Expressão utilizada por José Souto Maior Borges. In O retorno ao aprisco, in O contraditório no processo
judicial – Uma visão dialética. Malheiros. São Paulo: 1996, p. 33 e seguintes.
27
Rousseau, Jean Jaques. Do contrato social, in Coleção “Os pensadores”, 1ª ed., vol. XXIV. Abril Cultural.
São Paulo: 1973.
32
Observe-se que não se pretende com a presente dissertação instaurar
qualquer discussão relativa aos chamados direitos naturais, mas, tão somente, colocar o
Direito com bem cultural, obra humana, e que, portanto, há de ter um fim valorativo ínsito
à regulação das condutas do homem em sociedade.
Assim, no dizer de Rousseau, o Estado é criado para a preservação desses
direitos naturais, sendo fundado em dois principais pilares: i) subordinação do indivíduo à
sociedade estatal; e ii) soberania da sociedade estatal sobre todo e qualquer cidadão, de
forma individuada. Dessa forma, o Estado nada mais seria que a unificação do todo social,
competente a representar a vontade única de um povo, ainda que tacitamente, voltada a um
Bem Comum.
Como visto da introdução, em sentido equivalente, é a obra de Becker28, que
citando del Vecchio e Dabin, afirma convergir a atividade política do Estado para um
“absoluto” (Bem Comum), o consenso valorativo manifestado por intermédio da norma
jurídica:
“Toda a Política converge para um ‘absoluto’ (Bem Comum ou Bem
Público temporal)29 autêntico ou falso30. O Estado pratica uma política
materialista ou espiritualista, coletivista ou personalista, etc.; inclusive no
caso em que, pretextando neutralidade entre as doutrinas, o Estado afirma
sua negativa em escolher o ‘absoluto’ (autêntico ou falso) sob pena de
condenar-se à inércia e a negar-se a si mesmo31.
Em cada Estado há uma concepção de mundo específica que predomina –
durante algum tempo – sobre as demais concepções. Esta concepção do
mundo predominante sobre as outras, quando se refere à finalidade da vida
social, determina o conteúdo do Bem Comum específico ao respectivo
Estado32.
(...)
Por isto é errado pensar que o Bem Comum seja de ‘essência sobrenatural’
ou que a teoria do Bem Comum seja uma teoria ‘católica’. O Bem Comum é
28
Becker, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª ed., pp. 164-165, Lejus, São Paulo: 2002.
del Vecchio, Giorgio. Toeria do Estado, trad., São Paulo, 1957 (Lo Stato Roma), 1953, p. 38 (cap. II, n.º 4,
a) apud Becker, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª ed., p. 164, Lejus, São Paulo: 2002.
30
J. Dabin, Théorie Générale du Droit, 2ª ed., Bruxelles, 1953, n. 143.
31
J. Dabin, Théorie Générale du Droit, Bruxelles, 1953, n. 141 e L’Etat ou le Politique. Paris, 1957, n.º 30.
32
G. Burdeau, Traité de Science Politique,, Paris, 1949, vol. I, ns. 37, 61 apud Becker, Alfredo Augusto.
Teoria geral do direito tributário. 3ª ed., p. 164, Lejus, São Paulo: 2002.
29
33
um reflexo da filosofia do homem; pode perfeitamente haver um ‘bem
comum’ marxista ou soviético que reflete ideologia marxista ou soviética.”
Portanto, como é da razão de ser do próprio Estado a proteção dos direitos
do indivíduo, ainda que equivocadamente colocados como direitos naturais por Rousseau,
ou, como mais acertadamente afirmou Becker, a promoção do Bem Comum, nada mais
coerente para o intérprete/aplicador dos preceitos jurídicos que buscar extrair da situação
que lhe é colocada sob análise aquela acepção do Direito que vise à proteção desses direitos
do indivíduo ou a promoção do referido Bem Comum (Bem Social), ainda que esse
conceito esteja permeado tanto pela subjetividade imanente ao ordenamento, quanto pela
decorrente da própria formação cultural do aplicador33.
A proteção desses direitos individuais implica no benefício para a
humanidade (Bem Comum ou Bem Social), como referimos acima. Esse benefício será
alcançado se, por intermédio da operacionalização do sistema, resultar uma aplicação com
base nos valores mais caros à sociedade estatal respectiva (maioria da sociedade, com
respeito às minorias), convencionados em determinado espaço-tempo (conceito de justiça).
A questão da legitimação ainda assim fica sem resposta. Como saber quais
valores seriam mais caros à sociedade em determinado espaço-tempo? Necessário o
consentimento social para aplicação de determinada interpretação normativa?
Em princípio, partimos da óbvia premissa que só há divergência onde não há
consenso sobre determinada interpretação jurídica adotada. Assim, na hipótese de
divergência levada ao conhecimento do Poder Judiciário, este, por intermédio do seu último
órgão a tomar conhecimento de determinada lide (normalmente o Supremo Tribunal
Federal), dirá qual o(s) sentido(s) convencionalmente aceito(s) [válido(s)] por aquela
determinada sociedade estatal, para a expressão de direito positivo (constitucional) em
questão.
33
A Constituição Federal de 1988 é permeada de dispositivos denotativos do que seria o Bem Comum para o
povo brasileiro (apenas para exemplificar, vide arts. 1º, 3º, 5º, 43, etc.).
34
Esse o órgão legitimado pelo nosso ordenamento para dizer quais valores
são mais caros ou mais repulsivos à nossa sociedade. Entretanto, continuaremos examinado
como ocorre a atuação do Supremo Tribunal Federal de forma mais acurada, ao longo da
presente dissertação.
8.
A norma geral e abstrata como norma jurídica de previsão da conduta
convencionalmente prescrita e eventual sanção aplicável na hipótese do seu nãocumprimento.
Como fruto daquilo que Rousseau denominou de contrato social, e da
criação do Estado (da promoção do Bem Comum por seu intermédio), temos a lei,
instrumento de superação do arbítrio estatal e de garantia dos direitos e liberdades
individuais. O modo usual de manifestação das leis para a sociedade legiferada no
ordenamento brasileiro é por intermédio das normas gerais e abstratas34.
As normas gerais e abstratas são veiculadas pelos textos legislativos
continentes das previsões de condutas que se esperam dos indivíduos e do próprio Estado,
com a descrição (jurídica) de determinada hipótese fática que, se ocorrida no mundo dos
fatos, há de resultar na instauração de determinada relação entre sujeitos-de-direito.
Para o Prof. Paulo de Barros Carvalho, normas gerais e abstratas,
principalmente aquelas introduzidas por intermédio da Constituição Federal, serviriam
como fundamento de validade de todas as demais normas jurídicas constantes do sistema35:
“As normas gerais e abstratas, principalmente as contidas na Lei Fundamental, exercem um
papel relevantíssimo, pois são o fundamento de validade de todas as demais, indicando os
rumos e os caminhos que as regras inferiores haverão de seguir (...)”
34
A respeito da corriqueira utilização da expressão “normas gerais e abstratas”, vale mencionar a crítica de
Norberto Bobbio em relação à imprecisão e insuficiência da doutrina que atribui às normas jurídicas as
características de generalidade e abstração, in Bobbio, Norberto. Contribución a la teoria del derecho. Soler.
Valencia: 1980, p. 293 e seguintes.
35
Carvalho, Paulo de Barros. O princípio da segurança jurídica em matéria tributária. in Revista de Direito
Tributário, n.º 61, p. 86
35
Para muitos, como Kelsen, essa previsão necessariamente há de vir
acompanhada da respectiva sanção para o caso do seu descumprimento, sem o quê, não há
que se falar em norma jurídica.
A teoria kelseniana, em sua versão originária36, diferencia entre norma
jurídica sancionatória (primária) e norma jurídica de previsão da conduta (secundária),
tendo sido invertida essa classificação quando da edição de sua obra póstuma37.
Contudo, o que se percebe da análise sintática, e até mesmo pragmática do
ordenamento, é que muitos são os preceitos que não possuem qualquer previsão de sanção
para a hipótese do seu descumprimento, consistindo esse, um dos questionamentos mais
antigos da Teoria Geral do Direito: há norma jurídica sem previsão de sanção específica?
Entendemos que, ainda que inexista sanção específica para determinado
descumprimento da conduta prevista na norma dita secundária, ainda assim, com base nos
fundamentos da própria teoria pura, se verificado um mínimo eficacial (eficácia como
confirmação da adequação da conduta, conforme normada), aí teremos uma norma jurídica,
por meio da previsão da conduta pela norma geral e abstrata e do pleno surtimento dos seus
efeitos de regulação da conduta.
Já Niklas Luhmann, conforme lecionado pelo Professor Celso Campilongo,
nas aulas de Teoria Geral do Direito, em sua teoria dos sistemas38, prega que o sistema
jurídico consiste em comunicação jurídica, produzindo comunicação jurídica, por
intermédio de comunicação jurídica, o que pode ser visto também como um processo
autopoiético, de acordo com a sua própria teoria.
Para o autor alemão, o que caracteriza as sociedades é a comunicação, que,
por sua vez, não se confunde com os seus integrantes; sendo neste ponto a sua teoria um
36
Kelsen, Hans. Teoria general del derecho y del estado. Imprensa Universitária. México: 1949, pp. 62-63.
Kelsen, Hans. Teoria geral das normas trad. da Allgemeine Theorie der Normen, Sérgio Antonio Fabris,
Porto Alegre, 1986, pp. 68 e seguintes.
38
Luhmann, Niklas. El derecho de la sociedad. Barcelona. Antrophos.
37
36
pouco mais sofisticada que a teoria kelseniana, por indicar uma distinção entre a) sujeito
cognoscente e b) objeto de conhecimento, no que não logrou êxito Kelsen ao tratar da
regulação da conduta humana, pois fê-lo sem maior apreciação dos operadores jurídicos.
Luhmann parte de alguns pontos básicos para o desenvolvimento da sua
teoria dos sistemas, dentre os quais, da análise do objeto feita de maneira segmentada:
visualiza uma subdivisão entre “sistema” e “ambiente”; “centro” e “periferia”; “atenienses”
e “estrangeiros”, etc.. Dessa diferenciação básica, temos a distribuição de competências
guardada em funções atribuídas pela comunicação jurídica (“com direitos” versus “sem
direitos”), bem como, a própria necessidade de regulação da conduta, por exemplo, do
“povo conquistado” pelo “povo conquistador”. Ressalte-se que, em tempos democráticos,
não há que falar-se em “povo conquistador” e “povo conquistado”, mas, sim, em
representantes do povo (no exercício da função estatal) editando as normas jurídicas, ao
menos em princípio, com base num programa aprovado pelos seus representados: a própria
sociedade. O parlamentar é o popular no Congresso.
Para Luhmann, da confusão assistemática característica do ambiente
(levando-se em conta a sua maior complexidade - e, portanto, ausência de sistematização em relação ao próprio sistema), decorre a distinção sistemática pela atribuição de
comunicação específica a determinado sistema: no caso do sistema jurídico, normas
jurídicas.
A comunicação jurídica é, portanto, menos complexa que o seu ambiente em
virtude da instituição do seu “redutor de complexidades”. Como o Direito tem por função a
regulação da conduta humana39, instituiu-se uma convenção e como resultado de um
procedimento regular (ato de legislação) obtém-se um produto que adquire a característica
de redução da complexidade na comunicação (jurídica) entre os elementos do sistema
(jurídico). Esse elemento é a norma jurídica.
39
Ressalte-se que, a função de regulação da conduta humana pelo direito é afirmação de Kelsen, e não de
Luhmann.
37
Assim como no sistema econômico temos a moeda como instrumento
redutor de complexidades (ao dispensar a necessidade de escambo, por exemplo), no
sistema jurídico, a norma jurídica tem um papel fundamental na operacionalização da sua
comunicação interna: por seu intermédio a comunicação jurídica se difunde, pela sua
principal função de “generalização congruente das expectativas normativas” – a norma
geral e abstrata como previsão estatal da conduta esperada dos indivíduos.
A nossa interpretação da sua obra conduz à conclusão de que Luhmann vê a
norma jurídica como elemento redutor (e não eliminador) de complexidades, em virtude da
possibilidade de múltiplas significações de um único texto legislativo. Para Luhmann, a
“generalização congruente de expectativas normativas” (decorrente da diminuição de
complexidades na comunicação jurídica, efetuada pela norma geral e abstrata), o que, a
nosso ver, consistiria na objetivação expressa da conduta pretendida pelo Estado e
convencionada pelos cidadãos em assembléia (a priori, constituinte, e a posteriori,
legislativa).
Assim, a norma jurídica teria como função o desempenho de uma
comunicação (jurídica), distinta das demais espécies comunicativas presentes nos demais
tipos de sistemas (econômico, político, sociológico, etc.).
Mas como distinguir a comunicação jurídica das demais espécies de
comunicação pertinentes aos sistemas alheios? A resposta é muito simples: sempre que o
código binário se refira àquilo que é lícito ou ilícito, legal ou ilegal, estaremos diante da
comunicação jurídica característica do sistema jurídico. Diferentemente do que ocorre, por
exemplo, no âmbito religioso em que é utilizado, dentre outros, o código binário
sacro/profano.
Como visto da obra de Luhmann, é com base nas previsões constantes das
normas gerais e abstratas que os indivíduos têm reguladas as suas condutas. É quase
pacífico esse entendimento na doutrina, com algumas críticas à caracterização como gerais
e abstratas (Bobbio). Da mesma forma, é com base no texto que serve de suporte à norma
38
geral e abstrata que o intérprete/aplicador instrumentaliza o ato de interpretação/aplicação
do Direito ao caso concreto, pondo, assim, a norma individual e concreta, analisada a
seguir.
9.
A norma individual e concreta como norma jurídica específica de imposição da
conduta convencionalmente prescrita e imputação da sanção, na hipótese do nãocumprimento da norma geral e abstrata.
Já ensinava Kelsen, em sua Teoria Pura, que o Direito é o único e exclusivo
meio produtor de Direito - somente a norma jurídica produz norma jurídica, por intermédio
de outras normas jurídicas. É o que parte da doutrina chama de “autopoiese normativa”40.
Em termos kelsenianos, o Direito regula sua própria criação.
Perfeita a lição do jurista checo, pois, como visto no tópico anterior, é com
base no disposto na norma geral e abstrata, decorrente dos textos legais a que estão sujeitos
os cidadãos, que é possível aplicar ao caso em concreto a norma individual e concreta.
Funcionaria a norma individual e concreta como ato de aplicação do previsto na norma
geral e abstrata ao caso concreto - como uma tentativa de objetivação estatal da
subjetividade decorrente das interpretações divergentes de um mesmo texto legislativo
pelos legiferados.
A aplicação da norma individual e concreta advém da estrutura lógica tão
conhecida pelos que se debruçam sobre a fenomenologia jurídico-normativa da norma geral
e abstrata, abordada no item anterior: dada a ocorrência de um fato F, previsto no
antecedente normativo de determinado texto legal, deve ser a relação R, prescrita no
conseqüente normativo do referido texto.
A transposição dessa estrutura para o campo tributário resultou na teoria da
regra-matriz tributária, no dizer de Paulo de Barros Carvalho41, ou ainda, na estrutura da
40
V. Gunther Teubner. O direito como sistema autopoiético. Trad. José Engrácia Antunes. Lisboa,
Gulbekian, além do próprio Niklas Luhmann. El derecho de la sociedad. Barcelona. Antrophos.
41
Carvalho, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 15ª ed., 241 e seguintes. Saraiva. São Paulo:2003.
39
regra jurídica tributária, no dizer de Souto Maior Borges42, como norma geral e abstrata a
fundar a aplicação do comando individual: dada a ocorrência de um fato jurídico-tributário,
composto por um verbo acrescido de um complemento (exs.: auferir renda, circular
mercadoria, importar bens, ser proprietário de imóvel, alienar bens imóveis, etc.), que
resultem numa atividade economicamente mensurável, em determinado espaço-tempo,
deve ser o dever de recolhimento de tributo aos cofres estatais, em razão da instauração da
relação tributária entre o sujeito ativo (Estado) e o sujeito passivo (contribuinte).
Mais uma vez, remetemos às notas apontadas pelo Prof. Paulo de Barros
Carvalho relativas a normas individuais e concretas43:
“(...) é naquelas individuais e concretas que o direito se efetiva, se
concretiza, se mostra como realidade normada, produto final do intenso e
penoso trabalho de positivação. É o preciso instante em que a linguagem do
direito toca o tecido social, ferindo a possibilidade da conduta
intersubjetiva.”
Vale salientar que, não necessariamente há de estar presente a imputação da
sanção na aplicação da norma individual e concreta (primeiro momento), mas, tão somente,
quando do seu descumprimento é que há de se falar em sanção, ou mesmo, em coerção
(segundo momento).
A questão relativa à sanção tem ainda repercussões outras, particularmente
no campo das obrigações acessórias e na sua possibilidade expressa de ser tomada como
tributo, na conformidade do art. 3º, do Código Tributário Nacional. Essa repercussão já
abordamos no nosso artigo intitulado “O caráter patrimonial das obrigações tributárias
acessórias”44. Naquele artigo defendemos conclusão no sentido de que, se adotada a
premissa de que toda a obrigação tributária tem por objeto a prestação de tributo, e se a
obrigação tributária acessória, quando do seu inadimplemento, converte-se em principal,
Borges, José Souto Maior. Teoria geral da isenção tributária. 3ª ed., p. 154. Malheiros, São Paulo:2001.
Carvalho, Paulo de Barros. O princípio da segurança jurídica em matéria tributária. in Revista de Direito
Tributário, n.º 61, p. 86.
44
Borges, Paulo Fernando Souto Maior. O caráter patrimonial das obrigações tributárias acessórias, in
Teoria geral da obrigação tributária – Estudos em homenagem ao Prof. José Souto Maior Borges.
Malheiros. São Paulo: 2005, p. 311.
42
43
40
nos termos do art. 113, §3º, podemos inferir que, em matéria tributária, no nosso
ordenamento, a prestação da sanção pecuniária coincide com a prestação tributária, e ambas
teriam natureza tributária.
Contudo, deixemos de lado a análise da questão relativa à sanção, por não
caracterizar o principal desiderato do presente trabalho45, para focarmos nossas atenções no
conceito da norma individual e concreta, como sendo aquela decorrente da aplicação do
disposto na norma geral e abstrata pelo ente jurisdicional competente. A norma individual
adquire grande importância no presente trabalho, que dentre outros aspectos denotativos da
sua relevância, tem na análise casuística por parte do Supremo Tribunal Federal o suprasumo da sua aplicação.
45
A respeito das sanções tributárias, recomenda-se a obra de Ângela Maria da Motta Pacheco. Sanções
tributárias e sanções penais tributárias. Max Limonad. São Paulo: 1997. Particularmente nos seus capítulos
II - em que faz um apanhado da teoria geral das sanções em Kelsen, Bobbio, Vernengo, Lourival Vilanova,
Aftalión, J. Vilanova, Ross, Tércio Sampaio e Reale -, e VI, em que trata da questão específica das sanções
tributárias.
41
PARTE II
UMA BREVE TEORIA DOS PRINCÍPIOS
10.
A contraposição: “normas-princípio” versus “normas-regra”.
A atividade científica no Direito faz com que o estudioso, constantemente,
se depare com os vocábulos “norma” e “princípio”, e os utilize, por muitas vezes, de forma
absolutamente indiscriminada, passando desapercebida a necessidade de diferenciação dos
dois institutos jurídicos.
Como visto nos itens anteriores, o sistema jurídico tem como elementos
componentes as normas jurídicas, o “código redutor de complexidades” utilizado na
comunicação jurídica, no dizer de Niklas Luhmann.
Ao nos depararmos com a contraposição conceitual das “normas-princípio”
e “normas-regra” (utilizando a nomenclatura de Canotilho46), concluímos que os princípios
nada mais são que, normas jurídicas.
Nesse sentido é a obra do Prof. Paulo de Barros Carvalho47, que se posiciona
pelos princípios como sendo normas jurídicas de introdução de valores de grande
importância no ordenamento:
“Toda vez que houver acordo, ou que um número expressivo de pessoas
reconhecerem que a norma N conduz um vector axiológico forte, cumprindo
papel de relevo para a compreensão de segmentos importantes do sistema
de proposições prescritivas, estaremos diante de um ‘princípio’. Quer isto
significar, por outros torneios, que ‘princípio’ é uma regra portadora de
núcleos significativos de grande magnitude, influenciando visivelmente a
orientação de cadeias normativas, às quais outorga caráter de unidade
46
Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed.. Almedina. Coimbra: 1991, pp. 171 e seguintes.
Carvalho, Paulo de Barros. Sobre os princípios constitucionais tributários, in Revista de Direito Tributário,
n.º 55, p. 148.
47
42
relativa, servindo de fator de agregação de outras regras do sistema de
direito positivo.”
Ao nomear determinadas normas jurídicas como princípios, e no caso
específico da Constituição Federal, também colocá-las em posição topográfica de destaque,
ao longo do texto (arts. 1º, 5º, no início do texto, além do início de Títulos e Capítulos –
ex.: arts. 37, 170, 19448, da CF) o legislador nada mais fez que atribuir a essas normasprincípio maior abrangência sintática e semântica que as chamadas normas-regra, embora
essa prevalência não necessariamente se verifique em todos os casos, onde, por muitas
vezes, o intérprete/aplicador opta pela aplicação da norma específica, ainda que de menor
hierarquia (e de forma equivocada), pela sua especialidade, ou ainda, pela denominação de
um valor como princípio, por menos relevante que pareça (como parece ser o chamado
“princípio da praticabilidade na tributação”).
Acresça-se à maior abrangência dos princípios, o estabelecimento pela
própria Constituição dos métodos de solução de conflitos normativos, que denotam um
maior alcance das normas-princípio em face às normas-regra, pois, na hipótese de
antinomia normativa entre ambos, imponível a aplicação do disposto em uma normaprincípio diante do contraposto sentido do veiculado por uma norma-regra, ou ainda, no
comando pela aplicação da lei mais benéfica a casos pretéritos (princípio da retroatividade
benéfica49), ainda que outra lei fosse vigente à época, etc..
48
Vale o comentário a respeito do art. 194, da CF, pois, a despeito de o Texto se referir a disposições gerais e
parágrafo único do referido dispositivo nominá-los como objetivos aplicáveis à seguridade social, o Supremo
Tribunal Federal atribui tratamento de princípios a estes dispositivos: “EMENTAS: 1. RECURSO.
Extraordinário. Inadmissibilidade. Reajuste de benefício previdenciário. Interpretação de legislação
infraconstitucional. Ofensa indireta à Constituição. Agravo regimental não provido. Não se tolera, em recurso
extraordinário, alegação de ofensa que, irradiando-se de má interpretação, aplicação, ou, até, inobservância de
normas infraconstitucionais, seria apenas indireta à Constituição da República. 2. PREVIDÊNCIA SOCIAL.
Reajuste de benefício de prestação continuada. Índices aplicados para atualização do salário-de-benefício.
Arts. 20, § 1º e 28, § 5º, da Lei nº 8.212/91. Princípios constitucionais da irredutibilidade do valor dos
benefícios (Art. 194, IV) e da preservação do valor real dos benefícios (Art. 201, § 4º). Não violação.
Precedentes. Agravo regimental improvido. Os índices de atualização dos salários-de-contribuição não se
aplicam ao reajuste dos benefícios previdenciários de prestação continuada. AI-AgR 590177/SC - SANTA
CATARINA, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Julgamento: 06/03/2007, Órgão Julgador: Segunda
Turma.”
49
Diniz, Maria Helena. Dicionário Jurídico. Vol. 3, 2ª ed., p. 845. Saraiva. São Paulo: 2005: “Direito Penal.
É aquele pelo qual as normas gerais retroagirão quando extinguirem ou reduzirem penas. Haverá
retroatividade da lei penal que decretar penas mais brandas do que a anterior, ou inocentar atos tidos como
43
Existem princípios denominados como fundamentais (ex.: art. 1º, 2º, 4º, etc.,
da Constituição Federal), e outros princípios específicos de determinada seção do texto
constitucional, como, por exemplo, os princípios gerais que regem a atividade econômica
(art. 170 e seguintes da Constituição Federal), ou os princípios especificamente tributários,
dentre os quais, tomamos como exemplos aqueles constantes dos incisos do art. 150, da
Constituição, que, em realidade, são transposições ao campo tributário dos direitos e
garantias individuais previstos no art. 5º do Texto Maior. Conseqüentemente,
especificações de princípios fundamentais genéricos.
A despeito da sua denominação como princípios “gerais” da atividade
econômica, ou sua especificidade, no caso das limitações constitucionais ao poder de
tributar, tanto os princípios constantes do art. 170 e seguintes, quanto os do art. 150, da
Constituição são princípios que explicitam os valores ditos fundamentais da República
Federativa do Brasil (art. 1º, CF), ou objetivos fundamentais (art. 3º, CF), ou ainda, direitos
e garantias fundamentais (art. 5º, CF), dentre os quais está o Princípio Democrático.
11.
Da hierarquia entre “normas-princípios” e “normas-regra”.
Diante da conclusão a que chegamos no item anterior, de que os princípios
são normas jurídicas com alcance inter-normativo (sintático) mais alargado que as simples
normas-regra, e ainda, que alguns princípios ditos fundamentais devem ter prevalência
sobre outros, simplesmente “gerais” ou “específicos”, por muito maiores razões, podemos
afirmar que há uma relação de prevalência entre as normas-princípio e as normas-regra.
A esse respeito, válida a lição de Kelsen pela visualização do sistema
jurídico como uma “hierarquia escalonada” - rara e notável demonstração de capacidade
descritiva do objeto científico50. Contudo, vale salientar que, a identificação do
ordenamento jurídico como uma pirâmide normativa, em que, no topo, estaria a
passíveis de pena. A norma que for favorável ao indivíduo só poderá ser aceita no âmbito do direito penal, em
virtude do primordial princípio nulla poena sine legis, em homenagem à humanitatis causa.”
50
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. Martins Fontes. São Paulo: 2003, p. 246.
44
Constituição, e na base, as normas jurídicas infraconstitucionais e infralegais, deve-se, em
verdade, a Adolf Merkl51.
Destarte, se no âmbito das normas gerais e abstratas as normas-princípio
possuem destaque no texto constitucional, como fundamentais e vinculantes para a
aplicação das normas-regra, no âmbito individual e concreto, o intérprete/aplicador deve
pautar o ato de interpretação/aplicação de forma a prestigiar sempre os princípios, como
garantias de ampla abrangência sintática que detêm os cidadãos/contribuintes, em oposição
ao arbítrio estatal, e em detrimento da aplicação das normas-regra, cuja utilização é maior
pelo Estado, pois lhe são mais favoráveis que as normas-princípio (que limitam sua
atuação), além de específicas.
Essa preferência pela aplicação da norma-princípio somente deve sofrer
restrição se da aplicação da norma-princípio, resultar ofensa a outros princípios, situação
que analisaremos no item 13 (Da ponderação de princípios).
12.
Da suposta hierarquia entre os princípios constitucionais no ordenamento
brasileiro.
Como já exposto nos itens anteriores, existe uma hierarquia estabelecida
pelo próprio Texto Constitucional entre alguns princípios, como por exemplo, entre os
princípios ditos fundamentais e os meramente gerais da atividade econômica ou os
específicos tributários (excetuados aqueles que são meras transposições ao campo
específico da atividade econômica, de outros princípios igualmente fundamentais).
Colocando de forma pouco diversa, afirma o Prof. Paulo de Barros Carvalho
com sua costumeira acuidade52: “Há ‘princípios’ e ‘sobreprincípios’, isto é, normas
jurídicas que portam valores importantes e outras que aparecem pela conjunção das
primeiras.”
51
Merkl, Adolf, Teoria general del derecho administrativo, Ed. Nacional, México:1978. pp. 208 e seguintes.
Carvalho, Paulo de Barros. O princípio da segurança jurídica em matéria tributária. in Revista de Direito
Tributário, n.º 61, p. 84.
52
45
Analisando essa cadeia normativa, muitos doutrinadores já escreveram a
respeito de qual seria o “protoprincípio” no nosso ordenamento jurídico, principalmente,
após o advento da Constituição Federal de 1988.
Acredita-se que o protoprincípio seria o Princípio da Legalidade, sem o qual,
não haveria como falar em Estado de Direito. Outros têm no Princípio da Justiça, muitas
vezes entendida esta como isonomia ou eqüidade, o princípio fundamental constante do
nosso ordenamento.
José Souto Maior Borges identifica e unifica na metalinguagem descritiva,
os princípios do art. 5º, I (isonomia) e II (legalidade), da CF53, ao sustentar uma hierarquia
semântica (relação de implicação) e axiológica (relação de valoração) entre os referidos
princípios fundamentais: assim como o princípio da isonomia condicionaria a legalidade, a
legalidade condicionaria a universalidade da jurisdição (aplicação da lei); e esta, por sua
vez, condicionaria o princípio do contraditório, o devido processo legal e a ampla defesa.
Como tudo é um, essa unificação decorreria de uma condensação de normas-princípio, que
resultaria no Princípio da Isonomia em face da Lei (ou no dizer do Professor
pernambucano, no Princípio da Legalidade-isônoma).
Percebe-se da obra de Geraldo Ataliba uma prevalência do Princípio
Republicano54, como fundamento de validade de todo o sistema jurídico, ao lado do
Princípio Federativo55. Da mesma forma, Paulo de Barros Carvalho manifesta por seus
escritos e exposições uma sobreposição do Princípio da Segurança Jurídica56.
53
Borges, José Souto Maior. Pro-dogmática: por uma hierarquização dos princípios constitucionais, in
Estudos em homenagem a Seabra Fagundes. Revista trimestral de direito público n.º 1/1993, p. 146. São
Paulo: 1993.
54
Ataliba, Geraldo. República e Constituição. 2ª edição, 3ª tiragem, p. 38. Malheiros. São Paulo: 2004.
55
Como bem descrito pelo Prof. Aires Fernandino Barreto sobre a orientação doutrinária de Geraldo Ataliba:
“Dizia o mestre que a exegese das regras da Constituição só pode ser procedida com plena observância das
diretrizes que estão contidas nos seus princípios. Advertia, ademais, que mesmo a interpretação dos
princípios deveria ser feita de modo a respeitar as mais relevantes diretrizes constitucionais. Em outras
palavras, a exegese tem que ser feita, sempre, em harmonia com a Federação, em harmonia com a
República, em harmonia com a autonomia municipal”. ISS na constituição e na lei. Dialética. São Paulo:
2003, p. 10.
56
Carvalho, Paulo de Barros. O princípio da segurança jurídica em matéria tributária. in Revista de Direito
46
Celso Antônio Bandeira de Mello redigiu notável monografia sobre o
conteúdo jurídico do princípio da igualdade57, que a despeito de curta na extensão, é imensa
na profundidade do trato do referido princípio.
Diferentemente dos autores supra-mencionados, além da hierarquia acima
defendida dos princípios ditos fundamentais sobre os meramente gerais, entendemos que,
de início, não há que se falar em supremacia de um princípio sobre os demais (ex.:
subordinação de um princípio fundamental sobre outro, também fundamental), senão,
diante de um caso concreto, cujo Direito (norma-princípio) a ser aplicado será decidido
com toda a carga de valoração decorrente da situação específica, como também, da própria
subjetividade do intérprete/aplicador. Contudo, a afirmativa encontra restrição apenas no
Princípio Democrático, como norma jurídica fundante que é de toda a atividade estatal,
incluída, principalmente, a atividade tributária.
Vejamos no próximo item como funciona essa subjetividade no ato de
interpretação/aplicação dos princípios ao caso concreto e quais os mecanismos utilizados
pelos operadores jurídicos legitimados para a objetivação do conteúdo normativo.
13.
Da “ponderação de princípios”.
Como visto do tópico precedente, de início, não há que se falar em
prevalência de um princípio constante do ordenamento sobre outro (de igual natureza) no
ordenamento jurídico, senão diante da análise do caso concreto, em que se decidirá, com
toda a interferência valorativa do contexto, aliada ao grau de subjetividade imprimido pelo
intérprete/aplicador, qual norma jurídica lhe é aplicável.
É a pragmática, a casuística, como resultado da aplicação de normas
jurídicas permeadas de valores aos casos em concreto, sobrepondo-se a toda a atividade
Tributário, n.º 61, p. 86: “A segurança jurídica é, por excelência, um sobre princípio.”
57
Bandeira de Mello, Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. Malheiros. São Paulo:
1978.
47
científica que delas não se utilize. A respeito da influência da subjetividade nos atos de
intepretação/aplicação, vale o parêntesis concernente à obra de Norberto Bobbio, que ao se
pronunciar sobre o dever de imparcialidade do juiz, já atentava para a carga de
subjetividade do aplicador da norma individual e concreta: “O preceito de imparcialidade é
necessário, porque a aplicação de uma norma ao caso concreto nunca é mecânica e requer
uma interpretação na qual intervém, em maior ou menor medida segundo os diferentes
tipos de lei, o juízo pessoal do juiz”. 58
Ou seja, diante de uma situação concreta, em que apresentada a dúvida sobre
se deva ser aplicado o princípio A ou o princípio B, é que o intérprete/aplicador refletirá
sobre as conseqüências e renúncias decorrentes da aplicação de um ou outro princípio,
antes de declarar em que sentido é o seu ato aplicativo (decisório).
Essa sistemática decorre da própria natureza lógico-dialética do Direito, que
tem como principal caractéristica a contraposição entre tese (princípio A), antítese
(princípio B) e síntese (interpretação prevalecente ou decisão, necessariamente aplicativa
de um ou outro princípio; ou mesmo dos dois princípios, de forma conjunta, sendo um
deles em acepção diversa e mitigada da pretendida pela parte). É a contraposição dialética
entre princípios.
Repita-se aqui um primeiro esclarecimento: a afirmação de que inexistiria
uma hierarquia entre princípios fundamentais foi feita com ressalva (“de início”), em razão
da conclusão expressada pelo tema do presente trabalho, que tem no Princípio Democrático
a norma jurídica fundante de toda a atividade tributária estatal.
Cabe, ainda, um segundo esclarecimento: a despeito do objeto principal do
presente trabalho resumir-se à demonstração do Princípio Democrático como norma
jurídica fundante de toda a atividade tributária estatal e à proposta de uma alternativa
intepretativa/aplicativa dos seus desdobramentos no âmbito do Direito Tributário,
58
Bobbio, Norberto. Teoria geral da política. A filosofia clássica e as lições dos clássicos. 11ª tiragem.
Campus.
48
entendemos que há um valor maior a ser tutelado no ordenamento, sem o qual, não há que
se falar sequer em democracia, qual seja, o direito à vida. Tanto é assim que o direito à vida
é disposto na Constituição Federal como a primeira garantia de ordem fundamental do
extenso rol do art. 5º da CF, constando, inclusive, do seu caput:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)”
Assim, a primazia sintática do valor “vida” sobre os demais valores
constantes do ordenamento decorre não somente de uma previsão normativo-constitucional,
mas, em maior grau, de uma inferência lógica, pois, onde não há vida, não há sociedade, e
conseqüentemente, inexiste Direito (ubi societas ibi jus59). Atente-se que há aí uma
primazia de ordem lógica de uma garantia sobre os princípios previstos no ordenamento,
ainda que ambos sejam de ordem fundamental.
Em princípio, o valor “vida” não é recepcionado pelo ordenamento como
uma norma-princípio, por intermédio da disposição constante do caput do art. 5º, da CF,
mas, sim, como uma garantia, de ordem fundamental. E na verdade, nem precisaria sê-lo,
por dois motivos: i) o direito à vida, como visto, é pressuposto lógico do próprio Direito,
como bem cultural que este é (obra humana, como dito na apresentação); ii) a previsão do
princípio fundamental pela dignidade da pessoa humana supre perfeitamente a necessidade
de guarida do direito fundamental à vida, sob a forma de princípio (art. 1º, III, CF). É o que
se depreende, inclusive, da leitura de recente decisão prolatada pela Ministra do Supremo
Tribunal Federal Carmén Lúcia Antunes Rocha, que deu provimento monocrático a recurso
de sua relatoria, ao fundamento da ocorrência de ofensa por parte da decisão atacada ao
direito à saúde, sendo este uma das manifestações do direito à vida, o qual, nos termos em
que expusemos acima, é amparado pelo ordenamento não só através da disposição
constante do art. 5º, caput, mas, também, pela previsão constante do art. 1º, III:
59
“Onde há sociedade, aí há direito”, de acordo com a tradução fornecida por Spalding, Tarsilo Orpheu.
Pequeno dicionário jurídico de citações latinas. p. 127. Saraiva, São Paulo: 1971.
49
“AI 588169/RJ - RIO DE JANEIRO
Data do julgamento 26/04/07
(...)
4. O direito à vida compreende o direito à saúde, para que seja possível dar
concretude ao viver digno. A Constituição da República assegura o direito à
dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III) e, em sua esteira, todos os
meios de acesso aos fatores e condições que permitam a sua efetivação. (...).
Esse princípio constitui, no sistema constitucional vigente, um dos
fundamentos mais expressivos sobre o qual se institui o Estado Democrático
de Direito (CF, art. 1º, III). (...)”
(Ministra CÁRMEN LÚCIA Relatora)
Vê-se da decisão da relatora, numa clara correlação com o tema do presente
trabalho, a decisão pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, constante do art. 1º, III,
da Constituição Federal, como sendo “um dos fundamentos mais expressivos” do Estado
Democrático de Direito.
Da análise de outra decisão da Suprema Corte, podemos perceber também a
afirmação pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como elemento basilar do
Estado Democrático de Direito:
“HC 91427 MC/BA – BAHIA
(...)
A depender da situação concreta em apreço, por conseguinte, (...) a
inobservância desses requisitos legais e constitucionais pode se configurar
como grave atentado contra a própria idéia de dignidade humana princípio fundamental da República Federativa do Brasil e elemento basilar
de um Estado democrático de Direito (CF, art. 1o, caput e III). (...)”
(RI/STF, art. 192). Brasília, 22 de maio de 2007. Ministro GILMAR
MENDES Relator
Da leitura das decisões do Supremo Tribunal Federal - órgão maior da
jurisdição constitucional pátria – percebemos o tratamento normativo atribuído ao Princípio
da Dignidade da Pessoa Humana, que pela previsão do art. 1º, III, da Constituição Federal,
funciona como fundamento constitucional do valor “vida”, que, como visto, é o principal
valor tutelado pelo nosso ordenamento jurídico.
50
Vale o comentário no sentido de que, em nítida ponderação de princípios
mencionada (v. item 13), decidiu o Tribunal pela prevalência do direito à vida, quando
contraposto ao Princípio da Livre Iniciativa:
“ADI 3512/ES - ESPÍRITO SANTO
Relator(a): Min. EROS GRAU
Julgamento: 15/02/2006 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
(...)
6. Na composição entre o princípio da livre iniciativa e o direito à vida há
de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. 7.
Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.
Depreende-se da decisão acima transcrita que, ao analisar o caso concreto, o
Tribunal optou por fazer prevalecer a norma jurídica assecuratória do valor “vida”, em
contraposição ao Princípio da Livre Iniciativa, rechaçando, assim, pretensão que
desestimulasse a colaboração com interesses legislativos concernentes à saúde da
população. De modo similar, decidiu o Tribunal, em outra ocasião, pelo direito à saúde
como sendo decorrente do próprio direito à vida, denotando, ainda mais, a sua ascendência
sobre os demais valores do ordenamento:
“RE-AgR 393175/RS - RIO GRANDE DO SUL
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO
Julgamento: 12/12/2006 Órgão Julgador: Segunda Turma
(...)
O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que
assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional
indissociável do direito à vida. (...)”
Como última observação relativa ao direito à vida, parece-nos procedente a
posição de José Souto Maior Borges, para quem o valor “vida” teria sido recepcionado pela
Constituição não apenas como direito fundamental (art. 5º, caput, da CF), mas, sim, como
um princípio, conforme previsão da sua parte relativa ao Meio Ambiente (art. 225, caput):
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondose ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações.”
51
E parece ter razão o Professor pernambucano, pois, em ponderação de
princípios efetuada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, o direito a um meio
ambiente equilibrado tem prevalecido, em relação ao Princípio da Livre Iniciativa:
“STA-AgR 171 / PR – PARANÁ
Relator(a): Min. ELLEN GRACIE
Julgamento: 12/12/2007
Órgão Julgador: Tribunal Pleno
Ementa AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE TUTELA
ANTECIPADA.
IMPORTAÇÃO
DE
PNEUMÁTICOS
USADOS.
MANIFESTO INTERESSE PÚBLICO. GRAVE LESÃO À ORDEM E À
SAÚDE PÚBLICAS. (...) 3. Ponderação entre as exigências para
preservação da saúde e do meio ambiente e o livre exercício da atividade
econômica (art. 170 da Constituição Federal). 4. Grave lesão à ordem
pública, diante do manifesto e inafastável interesse público à saúde e ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da Constituição
Federal). Precedentes. (...) 6. Agravo regimental improvido.”
“STA-AgR 118/RJ - RIO DE JANEIRO
Relator(a): Min. ELLEN GRACIE
Julgamento: 12/12/2007
Órgão Julgador: Tribunal Pleno
Ementa AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DE TUTELA
ANTECIPADA.
IMPORTAÇÃO
DE
PNEUMÁTICOS
USADOS.
MANIFESTO INTERESSE PÚBLICO. GRAVE LESÃO À ORDEM E À
SAÚDE PÚBLICAS. (...) 4. Ponderação entre as exigências para
preservação da saúde e do meio ambiente e o livre exercício da atividade
econômica (art. 170 da Constituição Federal). 5. Grave lesão à ordem
pública, diante do manifesto e inafastável interesse público à saúde e ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da Constituição
Federal). Precedentes. (...) 7. Agravo regimental improvido.”
Retornado à questão da hierarquia entre os princípios, em relação a eventual
questionamento sobre hipóteses de antinomia normativa entre outros princípios
fundamentais e o Princípio Democrático, cumpre esclarecer que, na realidade, há uma
hierarquia imanente ao ordenamento deste princípio em relação com os demais.
Veja-se, contudo, a conclusão de que inexiste um protoprincípio que
prevaleça sobre os demais (senão o próprio Princípio Democrático, no dizer da
52
Constituição mesmo, e conforme será demonstrado adiante) decorre também, da
inexistência de conceitos jurídicos absolutos. O exercício lógico-dialético acima referido e
comumente utilizado nas decisões do Supremo Tribunal Federal, prática que permeia toda a
atividade jurídica, e não somente as hipóteses de antinomia entre princípios, e é
denominada por Humberto Ávila, em citação de Rodriguez de Santiago, como “ponderação
de princípios”60.
Ao analisarmos a norma individual e concreta (item 9), afirmamos que o ato
de aplicação do Direito (do disposto em seus textos legislativos), consiste numa tentativa de
“objetivação da subjetividade” - característica inerente à natureza humana - resultante das
múltiplas possibilidades de interpretação dos textos legislativos. Essa objetivação tem seu
ápice na manifestação expressa do órgão competente, pela prevalência dos valores que
sejam convencionalmente mais relevantes em determinado espaço-tempo, e pela
desconsideração daqueles valores que sejam menos relevantes (ou até os contra-valores
mais repulsivos) àquela sociedade.
Assim, o intérprete/aplicador pode optar pela fundamentação do seu
raciocínio/decisão, com base em um ou mais valores, desde que positivados no
ordenamento (ex.: não pode o magistrado validar a cobrança de imposto sobre a
propriedade predial urbana, sobre imóvel rural, tendo em vista a ausência da previsão dessa
tributabilidade no ordenamento). Pode sim o magistrado decidir entre a aplicação da
capacidade contributiva ou da isonomia, por exemplo, em relação à viúva meeira, que tenha
como único bem de herança a casa em que mora em bairro nobre, sem contudo, dispor de
maiores recursos para arcar com o referido imposto predial que por ela seria devido sobre a
propriedade de imóvel.
Todavia, por mais que o intuito de afastar a subjetividade (via de
conseqüência, o arbítrio) seja dos mais nobres, a atividade jurídica remanesce permeada
(ainda que em menor proporção) de carga subjetiva, não somente, aquela decorrente do
60
Santiago, José M. Rodriguez de. La ponderación de bienes e interesses no derecho administrativo. Madrid,
Marcial Pons: 2000. apud Ávila, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios
jurídicos. 7ª ed., p. 143. Malheiros. São Paulo: 2007.
53
próprio suporte físico (textos legislativos), e suas inúmeras possibilidades interpretativas,
como também, aquela com da qual está impregnado o intérprete/aplicador.
Nesse sentido, não constitui exagero afirmar que o Direito funciona como
um instrumento mitigador da subjetividade humana na regulação das condutas (pelo seu
elemento “redutor” de complexidades – a norma jurídica – no dizer de Luhmann; e não “de
eliminação” das complexidades), de forma a afastar a imprevisibilidade, e via de
conseqüência, o arbítrio (garantia de segurança jurídica aos legiferados) e assegurar-lhes o
Bem Comum (Becker).
14.
Da norma hipotética fundamental de Kelsen – análise de suas implicações no
ordenamento jurídico positivo.
Apesar do grande feito de "isolar" o Direito das demais ciências, atribuindolhe, assim, cientificidade própria, a obra de Kelsen veicula alguns poucos traços que
poderiam ser taxados de metajurídicos: a necessidade de um fundamento externo ao próprio
Direito servindo como fundamento deste, como o é a norma hipotética fundamental (ponto
crucial e talvez o mais criticado da sua teoria) é um bom exemplo disso. Para alguns
críticos, a norma hipotética fundamental envolve, nela implícito, um jusnaturalismo oculto.
Além do fato de ser algo externo ao Direito, a norma hipotética fundamental
de Kelsen costuma receber outra crítica, que diz respeito à sua desnecessidade, à qual
aderimos. Explicamos.
Seria possível a Kelsen, apenas a título de exemplo, como alternativa mais
simples e adequada à sua teoria, colocar a Constituição como fundamento de validade de si
mesma, sem a necessidade de nenhum elemento externo ao próprio ordenamento, como nos
parece ser a norma hipotética fundamental. A norma fundamental não é posta, mas
54
pressuposta. Ao fim, Kelsen a nomeou “fictive norm” (norma fictícia)61.
Como então descrever esse ponto terminal de escalonamento normativo?
Poder-se-ia considerar que há aí um dualismo oculto: 1º) normas que necessitam de outras,
superiores, para fundar-lhes a validade (normas infraconstitucionais); e 2º) normas que não
necessitam de outras para a sua validação (normas constitucionais).
Divergindo da posição kelseniana, que tem no ponto principal da sua Teoria
Pura do Direito a norma fundamental como fundamento de validade das constituições,
Luhmann vê a constituição como um texto autológico, que prevê a si mesmo, devendo-se
tudo isso ao fato de a própria Constituição excetuar-se das regras do lex posteriori derogat
priori; pela auto-regulação da sua modificabilidade; e ainda pelo fato de ela mesma
proclamar-se, originária da vontade de Deus ou do povo, embora haja outras regras de
exceção, como por exemplo, a lex prior derogat posteriori (“cláusulas pétreas” versus
emendas constitucionais).
A despeito da posição dos ilustres juristas, propomos solução diversa, como
se depreende do tema do presente trabalho. Entendemos, que ao invés de escolher algum
fator “estranho” ao Jurídico, como vetor influenciador do mesmo (como o é a norma
hipotética fundamental de Kelsen), mais coerente seria apontar para um elemento interno
do sistema, inclusive no intuito de afastar todas as críticas pela adoção de um fator
metajurídico.
Nesse sentido, entendemos como norma jurídica de pleno destaque no
ordenamento, que pode fazer as vezes de elemento fundamentador de todas as demais
normas jurídicas constantes do ordenamento, o Princípio Democrático, constante do art. 1°,
caput e, principalmente do seu parágrafo único, da Constituição Federal, que estabelece que
todo poder emana do povo, restando, portanto, todos os demais poderes instituídos pela
Constituição subordinados à essa norma-princípio.
61
Kelsen, Hans. Teoria geral das normas trad. da Allgemeine Theorie der Normen, Sérgio Antonio Fabris,
Porto Alegre, 1986, pp. 68 e seguintes.
55
15.
Do "Princípio do Consentimento à Tributação".
Como adiantado na introdução do presente trabalho, a idéia de dissertar
sobre o Princípio Democrático se deve, em grande parte, às ponderações tidas em razão das
constantes menções feitas em sala de aula pelos ilustres Professores Roque Antonio
Carrazza, José Artur de Lima Gonçalves e Estevão Horvath, nas disciplinas de Direito
Tributário II e Direito Tributário Constitucional, ao chamado “Princípio do Consentimento
à Tributação”.
De início, causava-nos certa estranheza a menção à necessidade de
consentimento por parte dos legiferados, da norma que resultasse de texto que fora editado
pelo Parlamento ou emitido por qualquer outro órgão legislativo competente. Óbvio que
essas menções eram bem mais comuns nos casos de medidas provisórias, ato legislativo
cuja competência é monocrática (Presidente da República), em função não preponderante,
de acordo com o art. 62, da Constituição Federal – ato que nem sempre é editado com
estrita observância dos seus requisitos constitucionais de validade (relevância, urgência e
âmbito material passível de regulação por este instrumento legislativo).
Contudo, por vezes a crítica se referia também aos demais atos normativos,
provenientes do Congresso Nacional (Emendas Constitucionais, Leis Complementares,
Leis Ordinárias), das Assembléias Legislativas Estaduais (Leis Estaduais), das Câmaras
Municipais (Leis Municipais), dos Governadores de Estados e Distrito Federal, Prefeitos
(decretos regulamentares), e etc..
A estranheza se devia ao fato de se defender, com tanta veemência, eventual
afronta a um princípio que, dada a sua imprevisão expressa, sequer parecia presente no
ordenamento, e ainda que possível fosse defender a sua existência, essa sugeriria algo
metajurídico, ou seja, a consideração de algo externo ao ordenamento (consentimento dos
legiferados).
56
Evidente que, se assim fosse, teríamos, aí sim, o caos de sensações
kantiano62, ou uma manifestação do manicômio jurídico-tributário a que se referiu Becker63,
pois, a grande maioria, desconhecedora (ou insensível) da impossibilidade de atribuição de
bem-estar comum sem uma mínima parcela de sacrifício individual (na forma, por
exemplo, de submissão a uma ordem estatal e recolhimento de uma parcela tributária para
sua sustentação), não consentiria na instituição de qualquer tributo que fosse, o que
inviabilizaria a própria existência do Estado, inexistindo, assim, espaço para o
consentimento, se entendido de tal forma.
Parece-nos mais acertada a consideração do Princípio do Consentimento, de
forma mais “comedida”. Diferentemente daqueles que acreditam que qualquer relação entre
a norma jurídica e a conduta normada implique algo extrajurídico, entendemos, como
Kelsen, pela necessidade de um mínimo de eficácia essencial às normas jurídicas. Nesse
ponto, Kelsen parece ter razão: não há norma jurídica alí onde não exista esse mínimo
eficacial, pois inexiste qualquer regulação efetiva da conduta humana.
Assim sendo, a norma jurídica só se integra com a sua aplicação ao caso em
concreto, seja pela estrita obediência à conduta prevista pela conduta normada, seja pela
concretização da hipótese prevista mediante coerção estatal.
Em relação a esse ponto da obra kelseniana, vale ressaltar um aspecto
curioso dentre as principais características imputadas ao seu autor: de forma diversa
daquilo que é comumente ensinado nos bancos acadêmicos – a sua consideração como um
teórico da validade, pelo suposto fato de ele não ter levado muito em conta a eficácia da
norma jurídica64 –, Kelsen tem como ponto de partida essencial para sua Teoria Pura do
Direito a construção, da norma jurídica de sanção (primária), pelo efetivo descumprimento
da norma jurídica de conduta (secundária), o que infirma frontalmente tais ensinamentos. É
assim Kelsen, um estudioso, tanto da validade, quanto da eficácia das normas jurídicas.
62
Kant, Emmanuel. Crítica da Razão Pura. eBookLibris. Acrópolis. São Paulo: Junho, 2001.
Becker. Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. Lejus. São Paulo: 2002.
64
Nesse contexto, temos por "eficácia" a adequação da conduta à hipótese prevista na norma jurídica.
63
57
Vale salientar que, a posição relativa à norma jurídica sancionatória como
sendo primária, e a norma jurídica da previsão da conduta, como sendo secundária,
consoante exposto, foi a posteriori invertida na sua obra póstuma “Teoria Geral das
Normas”65. Porém, na análise da eficácia, sobrelevam os problemas da Sociologia Jurídica,
extradogmáticos, portanto.
Inobstante, percebe-se que a eficácia (social) da norma jurídica, como
relação de observância da conduta normada ao prescrito na norma jurídica, é ponto fulcral
da sua Teoria Pura do Direito, servindo, inclusive, de fundamento de validade do próprio
ordenamento jurídico.
Como já afirmado no tópico anterior, em relação à desnecessidade da
adoção da sua norma hipotética fundamental, afirmamos que, ao invés de mencionar
eventual afronta ao Princípio do Consentimento, ante as críticas que acompanham a sua
existência ou adoção, de maior pertinência, indicamos como fundamento das demais
normas jurídicas constantes do ordenamento o Princípio Democrático (art. 1°, parágrafo
único, da Constituição Federal), que estabelece que todo poder emana do povo, restando,
portanto, todos os demais poderes instituídos pela Constituição subordinados à essa normaprincípio. É o que passamos a demonstrar na terceira parte do presente trabalho.
65
Kelsen, Hans. Teoria geral das normas trad. da Allgemeine Theorie der Normen, Sérgio Antonio Fabris,
Porto Alegre, 1986.
58
PARTE III
DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO COMO NORMA JURÍDICA FUNDANTE NO
ORDENAMENTO JURÍDICO E DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL
16.
Do Princípio Democrático como norma jurídica fundante de toda a atividade
jurídica estatal (norma jurídica de habilitação ao poder estatal).
O principal objetivo do presente trabalho consiste na consideração do
Princípio Democrático como norma jurídica de habilitação (e fundamentação) ao exercício
do poder estatal para formulação das demais normas jurídicas constantes do ordenamento,
particularmente, aquelas relativas ao Sistema Tributário Nacional. Seus desdobramentos no
sistema são adequados a imprimir-lhe ainda maior eficácia, ao servirem de subsídio à
interpretação da norma jurídica, e em específico, da norma jurídica tributária, conforme
adiante será proposto.
A metodologia de demonstração da preponderância do referido princípio,
bem como da possibilidade de utilização dos seus desdobramentos na interpretação e
aplicação do direito tributário positivo, desenvolver-se-á pela incursão na análise da norma
jurídica instituidora do princípio, a qual, será empreendida nos três níveis recomendados
pela filosofia da linguagem: o nível semântico (relativo ao significado lingüístico do texto
legislativo), o nível sintático (concernente ao inter-relacionamento normativo) e o nível
pragmático (que examina em que termos ocorre, ou não, a observância dos preceitos pelos
destinatários normativos).
16.a.)
Análise no nível semântico do ordenamento.
Ingressemos, de início, na demonstração pelo nível mais facilmente
verificável da linguagem: o nível semântico da expressão “Princípio Democrático”, pela
análise da sua manifestação lingüística, resultante dos dispositivos do Texto Constitucional
que o introduzem (mormente, o Título I, art. 1º, caput e parágrafo único).
59
16.a.1.) Análise do vocábulo “Princípio”.
O vocábulo “princípio” advém do latim principium66, e possui múltiplas
acepções, se considerado de forma isolada, de acordo com o Dicionário Houaiss, disponível
na rede mundial de computadores:
“Acepções
■ substantivo masculino
1. o primeiro momento da existência (de algo), ou de uma ação ou processo; começo,
início
Ex.: <p. da vida na Terra> <no p. do casamento> <p. da exploração do petróleo nesse
país>
2. o que serve de base a alguma coisa; causa primeira, raiz, razão
3. ditame moral; regra, lei, preceito
Ex.: <foi educado sob p. rígidos> <não cede por uma questão de p.> <é um homem sem
princípios>
4. dito ou provérbio que estabelece norma ou regra
Ex.: faça o bem sem olhar a quem é um bom p.
5. proposição elementar e fundamental que serve de base a uma ordem de conhecimentos
Ex.: princípios da física, da matemática
5.1. Rubrica: física.
lei de caráter geral com papel fundamental no desenvolvimento de uma teoria e da qual
outras leis podem ser derivadas
6. proposição lógica fundamental sobre a qual se apóia o raciocínio
Ex.: partir de um p. falso
7. Rubrica: filosofia.
fonte ou causa de uma ação
8. Rubrica: filosofia.
proposição filosófica que serve de fundamento a uma dedução
princípios
■ substantivo masculino plural
9. livro que contém noções básicas e elementares de alguma matéria, ciência etc.;
elementos Ex.: <p. de estatística> <p. de lingüística geral>
10. instrução, educação; opiniões, convicções”
66
Etimologicamente, conforme consta do Dicionário Houaiss disponível na biblioteca do sítio Universo OnLine – UOL – http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=princ%EDpio&stype=k, o termo princípio deriva
do lat. principìum,ìi 'id.'; ver prim-, princip- e 1cap-; f.hist. sXIV principio, sXV prymçipyos.
60
Do Aurélio67, temos ainda as seguintes acepções, parte delas coincidentes
com a definição do Houaiss: “1. Momento ou local ou trecho em que algo tem origem;
começo (...) 2. Causa primária. 3. Elemento predominante na constituição de um corpo
orgânico (...) 5. P. ext. Base; (...) 8. Lóg. Na dedução, a proposição que lhe serve de base,
ainda que de modo provisório, e cuja verdade não é questionada.”
Do Caldas Aulete68, temos as seguintes definições, dentre outras: “(...)
origem começo (...) Causa primária (...) Preceito, regra, lei (...) regras fundamentais ou
gerais de qualquer ciência ou arte (...).”
Já Maria Helena Diniz, no seu Dicionário Jurídico69, fornece-nos acepções
especificamente jurídicas para o vocábulo, embora semelhantes àquelas atribuídas pelos
dicionários não jurídicos:
“1. Filosofia geral. a) Origem ou causa da ação (Pascal); causa primária;
b) o que contém ou faz compreender as propriedades ou caracteres
essenciais da coisa (Lalande); c) cada uma das proposições diretivas ou
características a que se subordina o desenvolvimento de uma ciência
(Leibniz, Descartes, Newton e Spencer); regras fundamentais de qualquer
ciência ou arte; d) norma de ação enunciada por uma fórmula (Fouilée); e)
fundamento; f) o que contém em si a razão de alguma coisa (Christian
Wolff); g) proposição geral que resulta da indução da experiência para
servir de premissa maior ao silogismo (Kant); h) aquilo do qual alguma
coisa procede na ordem da existência ou do conhecimento; i) lei empírica,
subtraída ao controle da experiência, que obedece a motivos de simples
comodidade (Poincaré); característica determinante; k) agente ou força
originadora ou atuante; 1) proposição inicial, obtida pelo conhecimento, da
qual se deduzem outras proposições científicas. 2. Nas linguagens jurídica e
comum, pode significar: a) preceito; norma de conduta; b) máxima; c)
opinião; maneira de ver; d) parecer; e) código de boa conduta através do
qual se dirigem as ações e a vida de uma pessoa; f) educação; g) doutrina
dominante; h) alicerce; base.”
67
Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3ª ed. Revista e
atualizada. Positivo. São Paulo: 2004.
68
Caldas Aulete. Dicionário Caldas Aulete. 3ª ed., vol. 4. Delta. São Paulo: 1978.
69
Diniz, Maria Helena. Dicionário Jurídico. Vol. 3, 2ª ed., p. 830. Saraiva. São Paulo: 2005.
61
Além das acepções ressaltadas adiante, salientamos, de logo, dentre as
apontadas pela ilustre Professora, o item h que define o princípio como sendo aquilo do
qual alguma coisa procede na ordem da existência ou do conhecimento. Não se faz difícil
presumir, conforme será demonstrado adiante, que os princípios também podem ser
definidos como normas jurídicas originárias, vinculativas da exegese de todas as normasregra constantes do ordenamento.
Focalizemos, a nossa análise nas acepções apontadas pelos léxicos que
temos como “principais” para o vocábulo “princípio” (aquelas que mais interessam ao
Jurídico): “o primeiro momento da existência (de algo), ou de uma ação ou processo;
começo, início; o que serve de base a alguma coisa (parágrafo acima); causa primeira, raiz,
razão; ditame moral; regra, lei, preceito; proposição elementar e fundamental que serve de
base a uma ordem de conhecimentos; proposição lógica fundamental sobre a qual se apóia
o raciocínio.” É portanto uma visão lógica originária sobre o significado normativo dos
princípios.
Como se depreende da leitura das acepções acima transcritas, sempre que
utilizada a expressão “princípio”, estaremos diante da necessidade do emissário da
mensagem de comunicar algo inicial, ou do seu intuito de atribuir caráter primordial àquilo
que se quer comunicar. Deseja o emissário que o objeto consignado como princípio seja
encarado pelo receptor da mensagem como sendo algo dotado de valor primordial, que
deve servir de base a todo o mais que se queira comunicado.
Especificamente, no caso dos princípios jurídicos, ao assim denominá-los, o
legislador claramente manifesta o seu intuito de prevalência de tais normas sobre as demais
normas-regra, como acima explanado, seja pela sua própria natureza principial inafastável e
de maior abrangência (p. ex.: princípio da segurança jurídica, ou para mencionarmos um
princípio expresso, o princípio da isonomia), seja pela vontade política constitucionalmente
exposta de caracterizar aquela norma como um princípio (p. ex.: princípio da soberania nas
relações internas ou o princípio da livre iniciativa).
62
Vale salientar que, conforme visto das acepções acima apontadas pelo
léxico, na conformidade do descrito no item 5 do presente trabalho, a denominação de
princípio ocorre tanto na linguagem-objeto do sistema de direito positivo (linguagem
objeto), como também é constante a sua ocorrência no sistema da ciência do direito
(metalinguagem), decorrendo o reconhecimento pelo intérprete de determinada norma
como sendo principial, nesse âmbito, pela adequação às notas estabelecidas pelo seu
paradigma teórico para o conceito de determinado instituto como sendo um princípio.
16.a.2.) Análise do vocábulo “democrático”.
Por sua vez, o vocábulo “democrático” deriva do substantivo “democracia”,
que resulta da conjugação de dois termos distintos: i) o prefixo demo-, que advém do grego
demos, que significa “povo”; e ii) o sufixo –cracia, derivado também do grego kratía (kráteia), que significa governo, poder, autoridade70. Conjugados formam, então, o termo
“democracia” que significa “governo do povo”. Da consulta ao dicionário temos a
confirmação71:
“1. governo do povo; governo em que o povo exerce a soberania; 2. sistema
político cujas ações atendem aos interesses populares; 3. governo no qual o
povo toma as decisões importantes a respeito das políticas públicas, não de
forma ocasional ou circunstancial, mas segundo princípios permanentes de
legalidade; 4. sistema político comprometido com a igualdade ou com a
distribuição equitativa de poder entre todos os cidadãos; 5. governo que
acata a vontade da maioria da população, embora respeitando os direitos e a
livre expressão das minorias; 6. Derivação: por extensão de sentido. país em
que prevalece um governo democrático Ex.: ele é cidadão de uma autêntica d.
7. Derivação: por extensão de sentido. força política comprometida com os
ideais democráticos Ex.: a d. venceu as eleições naquele país 8. Derivação:
sentido figurado. pensamento que preconiza a soberania popular Ex.: a d.
ganhou espaço na teoria política”
Por sua vez, conceitua o Aurélio:
70
Cunha, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. 2ª ed. Nova
Fronteira. Rio de Janeiro: 1986.
63
“1. Governo do povo; soberania popular; (...) 2. Doutrina ou regime
político baseado nos princípios da soberania popular e da distribuição
eqüitativa do poder, ou seja, regime de governo que se caracteriza, em
essência, pela liberdade do ato eleitoral, pela divisão dos poderes e pelo
controle da autoridade, i. e., dos poderes de decisão e de execução; (...) 3.
País cujo regime é democrático. 4. As classes populares; povo, proletariado.
(...).”
Vale atentar para a última definição da democracia atribuída pelo Aurélio,
como sendo sinônimo do próprio povo, numa acepção claramente extradogmática.
Também do Caldas Aulete72, algumas acepções para o vocábulo
“democracia”, dentre as quais, destacamos: “(...) a influência do povo no govêrno de um
Estado. Sociedade livre em que se prepondera a influência popular (...)”.
Já Maria Helena Diniz, no seu Dicionário Jurídico, aponta como
definições73:
“Ciência Política. Forma de governo em que há participação dos cidadãos.
2. Influência popular no governo através da livre escolha de governantes
pelo voto direto. 3. Doutrina democrática. 4. Povo. 5. Sistema que procura
igualar as liberdades públicas e implantar o regime de representação
política popular. 6. Estado político em que a soberania pertence à
totalidade dos cidadãos.”.
Dessa forma, temos um sentido lingüístico decorrente da comunicação
convencional entre os usuários da língua portuguesa atribuído à expressão “Princípio
Democrático” como sendo algo decorrente da necessária prevalência (predominância) da
idéia de um sistema jurídico em que primordialmente haja um governo instituído e regido
pelo poder que é oriundo do próprio povo, sendo este detentor de amplos poderes de
direção e/ou provocação da máquina estatal. Tal definição é suficiente.
71
. Definição constante do Dicionário Houaiss disponível na biblioteca do sítio Universo On-Line – UOL –
http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=democracia&stype=k.
72
Caldas Aulete. Dicionário Caldas Aulete. 3ª ed., vol. 2. Delta. São Paulo: 1978.
64
Analisado o Princípio Democrático no âmbito semântico do ordenamento - e
já num entrelaçamento sintático, rememorando que, de acordo com o art. 13, caput, da
Constituição, a língua portuguesa é o idioma nacional74, de modo que, a análise semântica
empreendida no âmbito da lingüística encontra pleno respaldo no direito constitucional
positivo – passemos à análise do princípio no nível sintático da linguagem objeto.
16.b.)
Análise no nível sintático do ordenamento.
Para analisarmos o Princípio Democrático sob o ponto de vista da sintaxe
normativa, conforme estrutura metodológica previamente estabelecida na introdução do
presente trabalho, é necessário analisar a sua fonte normativa primária, qual seja, a
Constituição Federal.
Todavia, além do Texto Constitucional vigente, faremos, primeiramente,
breve incursão nos seus antecedentes históricos, pela análise dos demais textos
constitucionais outrora em vigor. Tudo no intuito de acompanhar a evolução da norma
jurídica relativa ao Princípio Democrático nos textos constitucionais, até a atual concepção
introduzida pela Constituição Federal de 1988, que indica sua preponderância sobre as
demais normas jurídicas no atual ordenamento, além de demonstrarmos que, a despeito de
sempre presente no sistema, pela análise dos seus desdobramentos é que perceber-se-á a
sua efetiva eficácia jurídica e social (análise sintática e aplicação pragmática).
A análise histórico-legislativa será focada, sobretudo, na existência de
previsão constitucional pela possibilidade de realização de eleições diretas para os
principais agentes políticos (formuladores das políticas tributárias), tendo em vista o fato de
o Direito Tributário positivo resultar das normas jurídicas introduzidas pelos textos
legislativos emanados, principalmente, do Poder Legislativo, embora também o sejam, de
forma cada vez mais freqüente, de agentes dos demais poderes (principalmente o Poder
Executivo, por intermédio das medidas provisórias).
73
74
Diniz, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2ª ed., vol. 2. Saraiva. São Paulo: 2005.
CF: “Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil.”
65
Assim, a importância da incursão histórica, ainda que efetuada de forma
superficial, reside na análise da relação normativa existente entre os mecanismos de
elegibilidade dos principais agentes políticos versus o exercício da competência tributária
exercida por esses agentes.
16.b.1.) Evolução do tratamento normativo-constitucional ao Princípio
Democrático.
Como de conhecimento notório, o país tem um histórico de restrições
normativas ao Princípio Democrático, na amplitude da abrangência com que conhecido
atualmente (exercício direto do poder ou mediante representação, igualmente direta, para a
maioria dos agentes políticos).
Em relação às constituições anteriores, o conceito de democracia foi
instituído, em 1891, quase um século após a primeira Constituição (1824), de modo que,
em relação ao período imperial, mal há que se falar em restrição ao Princípio Democrático,
mas, quase numa ausência de sua contemplação pela Constituição.
De modo diverso, em outras constituições, como as de 1891, 1934, 1937, e a
de 1967, juntamente com a Emenda Constitucional de n.º 1, de 1969, a despeito da previsão
expressa do princípio, logo nos seus primeiros artigos, na realidade, tínhamos a instituição
de regimes muito pouco democráticos, não só pelas realização de eleições de forma
indireta, como também, no tocante à matéria tributária, pela iniciativa de leis (ou mesmo
pela própria competência para legislação), que muitas vezes se dava de forma autocrática.
Façamos, então, uma breve incursão no tratamento jurídico do valor
democracia, ao longo das nossas constituições. A abordagem será empreendida levando em
conta a evolução histórico-normativa do Princípio Democrático, sempre examinando a
existência de previsão constitucional de ampla participação popular no exercício do Poder
Público ou de sua representação direta pelos principais agentes políticos de governo, além
66
do respectivo sistema tributário, e a previsão de competência para iniciativa das leis
tributárias.
16.b.1.1.)
Constituição Política do Império do Brazil (1824).
Inicialmente, temos na Constituição do Império de 1824, uma idéia limitada,
rudimentar de democracia, pois, a despeito dessa assegurar aos cidadãos brasileiros o
direito de intervir nos negocios da sua Provincia, e que são immediatamente relativos a
seus interesses peculiares, nos termos do seu art. 71, esse poder era exercido pelas Câmaras
Distritais e pelos “Conselhos Geraes de Província”, os quais, eram compostos por
representantes das Províncias, eleitos do mesmo modo que os Representantes da Nação (de
forma indireta):
“Art. 72. Este direito será exercitado pelas Camara dos Districtos, e pelos
Conselhos, que com o titulo de - Conselho Geral da Província se devem
estabelecer em cada Provincia, aonde não, estiver collocada a Capital do
Imperio.
Art. 73. Cada um dos Conselhos Geraes constará de vinte e um Membros
nas Provincias mais populosas, como sejam Pará, Maranhão, Ceará,
Pernambuco, Bahia, Minas Geraes, S. Paulo, e Rio Grande do Sul; e nas
outras de treze Membros.
Art. 74. A sua Eleição se fará na mesma occasião, e da mesma maneira, que
se fizer a dos Representantes da Nação, e pelo tempo de cada Legislatura.”
O Texto Constitucional previa já no seu início (art. 11, do Título III - Dos
Poderes, e Representação Nacional), os entes políticos que eram tidos como representantes
da “Nação”:
“Art. 11. Os Representantes da Nação Brazileira são o Imperador, e a
Assembléa Geral.”
Contudo, além do Imperador não possuir legitimidade para representação
dos populares (em termos democráticos), os Deputados e Senadores da “Assembléa Geral”,
bem como, os membros dos “Conselhos Geraes das Provincias” também eram nomeados de
forma indireta, nos termos do art. 90 do Texto Constitucional:
67
“Art. 90. As nomeações dos Deputados, e Senadores para a Assembléa
Geral, e dos Membros dos Conselhos Geraes das Provincias, serão feitas
por Eleições indirectas, elegendo a massa dos Cidadãos activos em
Assembléas Parochiaes os Eleitores de Provincia, e estes os Representantes
da Nação, e Provincia.”
Assim, tínhamos eleições indiretas para deputados e senadores, além das
restrições eleitorais relativas a possibilidade exclusiva de voto para os homens
alfabetizados, com mais de 25 anos, cuja renda alcançasse determinado valor (eleições
censitárias), embora esse requisito de fruição dos direitos eleitorais não tivesse nenhuma
relação de correspondência com a capacidade contributiva do eleitor, para efeitos de
tributação.
A iniciativa das leis que dispusessem sobre impostos era privativa da
Câmara dos Deputados, nos termos do art. 36, os quais, como visto do art. 90, eram
indiretamente eleitos:
“Art. 36. É privativa da Camara dos Deputados a Iniciativa.
I. Sobre Impostos.”
Contudo, era o Imperador, como Chefe do Poder Executivo, que detinha a
competência para a expedição de decretos, instruções e regulamentos necessários ao
cumprimento das leis, e decretava a aplicação das rendas públicas destinadas pela
Assembléia, nos termos do art. 102:
“Art. 102. O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos
seus Ministros de Estado.
São suas principaes attribuições
(...)
XII. Expedir os Decretos, Instrucções, e Regulamentos adequados á boa
execução das Leis.
XIII. Decretar a applicação dos rendimentos destinados pela Assembléa aos
varios ramos da publica Administração.”
68
A Constituição Imperial possuía ainda alguns dispositivos ainda mais
característicos de um regime totalitário, como, por exemplo, os arts. 45 e 46, que
estabeleciam como condições para se tornar Senador o exercício de atividade externa que
assegurasse determinada importância em pecúnia (art. 45, IV), e ainda, a garantia do cargo
para os Príncipes da Casa Imperial (art. 46):
“Art. 45. Para ser Senador requer-se
I. Que seja Cidadão Brazileiro, e que esteja no gozo dos seus Direitos
Politicos.
II. Que tenha de idade quarenta annos para cima.
III. Que seja pessoa de saber, capacidade, e virtudes, com preferencia os
que tivirem feito serviços á Patria.
IV. Que tenha de rendimento annual por bens, industria, commercio, ou
Empregos, a somma de oitocentos mil réis.
Art. 46. Os Principes da Casa Imperial são Senadores por Direito, e terão
assento no Senado, logo que chegarem á idade de vinte e cinco annos.”
Havia grande concentração de Poder nas mãos do Imperador. Este, por
intermédio dos poderes que lhe foram constitucionalmente outorgados, podia suspender
magistrados, escolher livremente seus Ministros de Estado, assim como os Senadores, e
ainda, dissolver a Câmara dos Deputados, pela livre possibilidade de convocação e
adiamento de suas sessões, conforme apontado por José Afonso da Silva75.
Vê-se, então, do texto da Constituição Imperial, que a participação popular
direta no poder, ainda que por representação (igualmente direta), era inexistente, em
decorrência dos moldes constitucionais em que fundado o regime monárquico da época.
16.b.1.2.)
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil
(1891).
Já na primeira Constituição da República, não obstante a sua proclamação
ter decorrido de verdadeiro “golpe de Estado” das Forças Armadas, que atentaram contra o
Poder Imperial mediante revolução, tínhamos nos arts. 16, 28 e 30 a adoção do regime
75
Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. Malheiros, pp. 77-78. São Paulo: 1996.
69
democrático, com a inovação da previsão de eleições diretas para os representantes do
parlamento:
“Art. 16 - O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, com a
sanção do Presidente da República.
§ 1º - O Congresso Nacional compõe-se de dois ramos: a Câmara dos
Deputados e o Senado Federal.
§ 2º - A eleição para Senadores e Deputados far-se-á simultaneamente em
todo o País.
(...)
Art 28 - A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo
eleitos pelos Estados e pelo Distrito Federal, mediante o sufrágio direto,
garantida a representação da minoria.
(...)
Art 30 - O Senado compõe-se de cidadãos elegíveis nos termos do art. 26 e
maiores de 35 anos, em número de três Senadores por Estado e três pelo
Distrito Federal, eleitos pelo mesmo modo por que o forem os Deputados.”
A competência tributária era dividida entre União e Estados, nos termos,
principalmente, dos arts. 7º e 9º:
“Art 7º - É da competência exclusiva da União decretar:
1º ) impostos sobre a importação de procedência estrangeira;
2º ) direitos de entrada, saída e estadia de navios, sendo livre o comércio de
cabotagem às mercadorias nacionais, bem como às estrangeiras que já
tenham pago impostos de importação;
3º ) taxas de selo, salvo a restrição do art. 9º, § 1º, nº I;
4º ) taxas dos correios e telégrafos federais.
(...)
Art 9º - É da competência exclusiva dos Estados decretar impostos:
1º ) sobre a exportação de mercadorias de sua própria produção;
2º ) sobre Imóveis rurais e urbanos;
3º ) sobre transmissão de propriedade;
4º ) sobre indústrias e profissões.
§1º - Também compete exclusivamente aos Estados decretar:
1º ) taxas de selos quanto aos atos emanados de seus respectivos Governos e
negócios de sua economia;
2º ) contribuições concernentes aos seus telégrafos e correios.”
70
A iniciativa das leis de impostos era exclusiva da Câmara dos Deputados:
“Art. 29 - Compete à Câmara a iniciativa do adiamento da sessão
legislativa e de todas as leis de impostos, das leis de fixação das forças de
terra e mar, da discussão dos projetos oferecidos pelo Poder Executivo e a
declaração da procedência, ou improcedência da acusação contra o
Presidente da República, nos termos do art. 53, e contra os Ministros de
Estado nos crimes conexos com os do Presidente da República.”
Também para a Presidência e Vice-Presidência da República havia previsão
de eleições diretas:
“Art 47 - O Presidente e o Vice-Presidente da República serão eleitos por
sufrágio direto da Nação e maioria absoluta de votos.”
Em relação às eleições estaduais e municipais, pela adoção de um
federalismo com ampla descentralização, os próprios Estados poderiam decidir como
seriam suas eleições, na conformidade de cada Constituição, bem como, se seus
representantes seriam eleitos de forma direta ou indireta, nos termos do art. 63:
“Art 63 - Cada Estado reger-se-á pela Constituição e pelas leis que adotar
respeitados os princípios constitucionais da União.”
José Afonso da Silva, citando Amaro Cavalcanti, descrevera a Constituição
Republicana como resultante do texto da Constituição norte-americana completado com
algumas disposições das Constituições suíça e argentina76, complementando o raciocínio
alheio com a sua opinião: “Faltara-lhe, porém, vinculação com a realidade do país. Por
isso, não teve eficácia social, não regeu os fatos que previra, não fora cumprida”77.
Dessa forma, diferentemente da Constituição Imperial, a primeira
Constituição republicana adotou alguns dos princípios básicos do regime democrático
como modernamente conhecido, pela incorporação ao seu texto da previsão de eleições
76
Cavalcanti, Amaro. Anais da constituinte, tomo I, p. 160 apud Silva, José Afonso da. Curso de direito
constitucional positivo. Malheiros, p. 80. São Paulo: 1996.
77
Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. Malheiros, p. 80. São Paulo: 1996.
71
diretas para os principais agentes políticos, no âmbito federal, ressalvada a previsão de
regulamentação própria do sistema eletivo local pelos Estados federados, como resultado
da tendência descentralizadora tão fortalecida no período pós-Império, embora não tenha
tido aceitação (eficácia social), conforme acima indicado.
16.b.1.3.)
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil
(1934).
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934,
prosseguiu na outorga da representação popular por eleições diretas, também, a despeito de
se tratar de Constituição resultante de golpe institucional, dispunha sobre o Princípio
Democrático, desde o seu preâmbulo, que enunciava solenemente:
“Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em
Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um
regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça
e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL.”
Da mesma forma, dispôs também no seu art. 1º que mantinha como forma
de Governo a República federativa, sob o regime representativo:
“A Nação brasileira, constituída pela união perpétua e indissolúvel dos
Estados, do Distrito Federal e dos Territórios em Estados Unidos do Brasil,
mantém como forma de Governo, sob o regime representativo, a República
federativa proclamada em 15 de novembro de 1889.”
Contudo, a inovação veio no art. 2º, que passou a dispor sobre o Princípio
Democrático, na acepção que conhecemos atualmente, em termos mais próximos aos da
Constituição Federal de 1988, excetuada a possibilidade de participação popular direta e de
representação igualmente direta:
“Art 2º - Todos os poderes emanam do povo e em nome dele são exercidos”.
72
Como se vê da leitura do dispositivo acima transcrito, já no texto
constitucional de 1934, a definição constitucional do Princípio Democrático consistia no
reconhecimento jurídico de que todos os poderes emanavam do povo, muito embora a
exceção feita no parágrafo precedente comece a se justificar pela continuação dos seus
dispositivos: parte dos membros da Câmara dos Deputados (bem como o Presidente da
República - art. 52, §1º) seriam eleitos mediante sufrágio universal, enquanto outra parte
dos deputados era eleita de forma indireta, conforme disposto nos arts. 22, 23:
“Art 22 - O Poder Legislativo é exercido pela Câmara dos Deputados com a
colaboração do Senado Federal.
(...)
Art 23 - A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo,
eleitos mediante sistema proporcional e sufrágio universal, igual e direto, e
de representantes eleitos pelas organizações profissionais na forma que a lei
indicar.
(...)
Art 52 - O período presidencial durará um quadriênio, não podendo o
Presidente da República ser reeleito senão quatro anos depois de cessada a
sua função, qualquer que tenha sido a duração desta.
§ 1º - A eleição presidencial far-se-á em todo o território da República, por
sufrágio universal, direto, secreto e maioria de votos, cento e vinte dias
antes do término do quadriênio, ou sessenta dias depois de aberta a vaga, se
esta ocorrer dentro dos dois primeiros anos.”
Para os senadores, que exerciam em colaboração à Câmara dos Deputados o
Poder Legislativo, também havia previsão pela realização de eleições diretas:
“Art 89 - O Senado Federal compor-se-á de dois representantes de cada
Estado e o do Distrito Federal, eleitos mediante sufrágio universal, igual e
direto por oito anos, dentre brasileiros natos, alistados eleitores e maiores
de 35 anos.”
Como visto, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de
1934, instituiu sistemática de participação popular parcial no Poder, mediante
representação por eleições parcialmente diretas de alguns dos agentes políticos (no caso,
dos deputados) e direta, no caso dos senadores.
73
A iniciativa das leis fiscais era, em princípio, compartilhada entre o
Presidente da República e a Câmara dos Deputados (art. 41, caput):
“Art 41 - A iniciativa dos projetos de lei, guardado o disposto nos parágrafo
deste artigo, cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos
Deputados, ao Plenário do Senado Federal e ao Presidente da República;
nos casos em que o Senado colabora com a Câmara, também a qualquer dos
seus membros ou Comissões.
§ 1º - Compete exclusivamente à Câmara dos Deputados e ao Presidente da
República a iniciativa das leis de fixação das forças armadas e, em geral, de
todas as leis sobre matéria fiscal e financeira.”
Contudo o chefe do Executivo era competente para promulgar e publicar as
leis provenientes da Câmara dos Deputados (art. 40, parágrafo único):
“Art 40 - É da competência exclusiva do Poder Legislativo:
(...)
Parágrafo único - As leis, decretos e resoluções da competência exclusiva
do Poder Legislativo serão promulgados e mandados publicar pelo
Presidente da Câmara dos Deputados.”
Em relação às competências tributárias, no dizer de José Afonso da Silva, a
Constituição de 1934 “discriminou, com mais rigor, as rendas tributárias entre União,
Estados e Municípios, outorgando a estes base econômica em que se assentasse a
autonomia que lhes assegurava”78. Essa opinião se confirma pela análise dos arts. 6º, 8º, 10,
VII e 13:
“Art. 6º - Compete, também, privativamente à União:
I - decretar impostos:
a) sobre a importação de mercadorias de procedência estrangeira;
b) de consumo de quaisquer mercadorias, exceto os combustíveis de motor
de explosão;
c) de renda e proventos de qualquer natureza, excetuada a renda cedular de
imóveis;
d) de transferência de fundos para o exterior;
e) sobre atos emanados do seu Governo, negócios da sua economia e
instrumentos de contratos ou atos regulados por lei federal;
f) nos Territórios, ainda, os que a Constituição atribui aos Estados;
78
Op. cit., p. 83.
74
II - cobrar taxas telegráficas, postais e de outros serviços federais; de
entrada, saída e estadia de navios e aeronaves, sendo livre o comércio de
cabotagem às mercadorias nacionais, e às estrangeiras que já tenham pago
imposto de importação.
(...)
Art 8º - Também compete privativamente aos Estados:
I - decretar impostos sobre:
a) propriedade territorial, exceto a urbana;
b) transmissão de propriedade causa mortis ;
c) transmissão de propriedade imobiliária inter vivos , inclusive a sua
incorporação ao capital da sociedade;
d) consumo de combustíveis de motor de explosão;
e) vendas e consignações efetuadas por comerciantes e produtores, inclusive
os industriais, ficando isenta a primeira operação do pequeno produtor,
como tal definido na lei estadual;
f) exportação das mercadorias de sua produção até o máximo de dez por
cento ad valorem , vedados quaisquer adicionais;
g) indústrias e profissões;
h) atos emanados do seu governo e negócios da sua economia ou regulados
por lei estadual;
II - cobrar taxas de serviços estaduais.
(...)
Art 10 - Compete concorrentemente à União e aos Estados:
(...)
VII - criar outros impostos, além dos que lhes são atribuídos
privativamente.”
O Município foi dotado de competência tributária, passando a ter autonomia
legislativa para eleger seu Prefeito (guardados aqueles que fossem dotados de estâncias
hidrominerais), ainda que de forma indireta, e decretar seus impostos e taxas:
“Art 13 - Os Municípios serão organizados de forma que lhes fique
assegurada a autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse;
e especialmente:
I - a eletividade do Prefeito e dos Vereadores da Câmara Municipal,
podendo aquele ser eleito por esta;
II - a decretação dos seus impostos e taxas, a arrecadação e aplicação das
suas rendas;
(...)
§ 1º - O Prefeito poderá ser de nomeação do Governo do Estado no
Município da Capital e nas estâncias hidrominerais.
§ 2º - Além daqueles de que participam, ex vi dos arts. 8º, § 2º, e 10,
parágrafo único, e dos que lhes forem transferidos pelo Estado, pertencem
aos Municípios:
75
I - o imposto de licenças;
II - os impostos predial e territorial urbanos, cobrado o primeiro sob a
forma de décima ou de cédula de renda;
III - o imposto sobre diversões públicas;
IV - o imposto cedular sobre a renda de imóveis rurais;
V - as taxas sobre serviços municipais.”
Ocorreu uma grande ampliação dos direitos eleitorais, com a criação da
Justiça Eleitoral e a previsão de voto feminino, nos termos dos arts. 63, d, 82, e 108 e 109,
da Constituição:
“Art 63 - São órgãos do Poder Judiciário:
(...)
d) os Juízes e Tribunais eleitorais.
(...)
Art 82 - A Justiça Eleitoral terá por órgãos: o Tribunal Superior de Justiça
Eleitoral, na Capital da República; um Tribunal Regional na Capital de
cada Estado, na do Território do Acre e no Distrito Federal; e Juízes
singulares nas sedes e com as atribuições que a lei designar, além das
Juntas especiais admitidas no art. 83, § 3º.
(...)
Art 108 - São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de 18
anos, que se alistarem na forma da lei.
(...)
Art 109 - O alistamento e o voto são obrigatórios para os homens e para as
mulheres, quando estas exerçam função pública remunerada, sob as sanções
e salvas as exceções que a lei determinar.”
A despeito da aplicação do Direito Eleitoral, houve uma restrição do regime
representativo direto previsto pela Constituição da República, pois a Câmara dos
Deputados seria agora eleita de forma indireta, em representação das organizações
profissionais, e na forma em que a lei indicasse, além do retorno ao esquema de poder
centralizado.
16.b.1.4.)
Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1937).
A Carta de 1937 constitui um “capítulo à parte” na história constitucional do
Princípio Democrático, tendo em vista tratar-se de um dos momentos em que sua
76
abrangência foi em menor grau contemplada pelo ordenamento, diante do momento
revolucionário pelo qual passava a Nação.
Muito em parte, porque a Carta de 1937 foi decretada pelo então Presidente
da República, Getúlio Vargas (e não promulgada por uma Assembléia Constituinte), que de
acordo com alguns dos seus considerandos, já adiantava o regime normativo:
“(...) ATENDENDO às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz
política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de
desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários,
que, uma, notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de
classes, e da extremação, de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu
desenvolvimento natural, resolver-se em termos de violência, colocando a
Nação sob a funesta iminência da guerra civil; ATENDENDO ao estado de
apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia
mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e
permanente.”
Surpreendentemente, em seu art. 1º, a Carta de 1937 dispôs em relação ao
Princípio Democrático quase que em repetição ao Texto anterior, estabelecendo que todo o
poder emana do povo:
“Art 1º - O Brasil é uma República. O poder político emana do povo e é
exercido em nome dele e no interesse do seu bem-estar, da sua honra, da
sua independência e da sua prosperidade.”
Contudo, na Carta de 1937, eram facilmente perceptíveis as restrições ao
Princípio Democrático e à representação direta, como constava, por exemplo, da criação da
figura do decreto-lei, para instrumentalização dos desígnios exclusivos do Chefe do
Executivo, que por seu intermédio exercia poderes quase que ilimitados, na forma dos arts.
13 e 14, com peculiares efeitos sobre questões tributárias (art. 13, d):
“Art 13 O Presidente da República, nos períodos de recesso do Parlamento
ou de dissolução da Câmara dos Deputados, poderá, se o exigirem as
necessidades do Estado, expedir decretos-leis sobre as matérias de
competência legislativa da União, excetuadas as seguintes:
a) modificações à Constituição;
77
b) legislação eleitoral;
c) orçamento;
d) impostos;
e) instituição de monopólios;
f) moeda;
g) empréstimos públicos;
h) alienação e oneração de bens imóveis da União.
Parágrafo único - Os decretos-leis para serem expedidos dependem de
parecer do Conselho da Economia Nacional, nas matérias da sua
competência consultiva.”
Embora os vereadores pudessem ser eleitos pelo voto direto (art. 26, a), os
prefeitos eram nomeados pelos Governadores dos Estados, na forma do art. 27:
“Art 26 - Os Municípios serão organizados de forma a ser-lhes assegurada
autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse, e,
especialmente:
a) à escolha dos Vereadores pelo sufrágio direto dos munícipes alistados
eleitores na forma da lei;
(...)
Art 27 - O Prefeito será de livre nomeação do Governador do Estado.”
Por sua vez, em relação
aos Governadores Estaduais, somente
permaneceram no cargo aqueles cujo mandato foi “confirmado” pela Presidência da
República, nos termos do art. 176, caput, intervindo a Presidência no Estado do governante
cujo mandato não houvesse sido confirmado, nos termos do parágrafo único do mesmo
dispositivo:
“Art 176 - O mandato dos atuais Governadores dos Estados, uma vez
confirmado pelo Presidente da República dentro de trinta dias da data desta
Constituição, se entende prorrogado para o primeiro período de governo a
ser fixado nas Constituições estaduais. Esse período se contará da data
desta Constituição, não podendo em caso algum exceder o aqui fixado ao
Presidente da República.
Parágrafo único - O Presidente da República, decretará a intervenção nos
Estados cujos Governadores não tiverem o seu mandato confirmado. A
intervenção durará até a posse dos Governadores eleitos, que terminarão o
primeiro período de governo, fixado nas Constituições estaduais.”
78
O Poder Legislativo era composto não só por parlamentares, mas por um
Conselho da Economia Nacional e pelo próprio Presidente da República, conforme
dispunha o art. 38:
“Art. 38 - O Poder Legislativo é exercido pelo Parlamento Nacional com a
colaboração do Conselho da Economia Nacional e do Presidente da
República, daquele mediante parecer nas matérias da sua competência
consultiva e deste pela iniciativa e sanção dos projetos de lei e promulgação
dos decretos-leis autorizados nesta Constituição.
§ 1º - O Parlamento nacional compõe-se de duas Câmaras: a Câmara dos
Deputados e o Conselho Federal.”
Essa situação afrontava claramente o Princípio da Tripartição de Poderes (e
o Princípio Democrático), como atualmente disposto, pois foi incluído órgão diverso do
Parlamento, nas funções legislativas, com pouca (ou nenhuma) legitimação para o exercício
do poder de editar leis, em nome do povo.
As eleições para a Câmara Federal eram indiretas, nos termos do art. 46,
sendo eleitores os vereadores municipais e dez cidadãos por cada Município, estes sim,
eleitos de forma direta, nos termos do art. 47:
“Art 46 - A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo,
eleitos mediante sufrágio indireto.”
Art 47 - São eleitores os Vereadores às Câmaras Municipais e, em cada
Município, dez cidadãos eleitos por sufrágio direto no mesmo ato da eleição
da Câmara Municipal.”
E da mesma forma indireta eram designados os representantes do Conselho
Federal, órgão de representação dos Estados, equivalente ao atual Senado Federal:
“Art 50 - O Conselho Federal compõe-se de representantes dos Estados e
dez membros nomeados pelo Presidente da República. A duração do
mandato é de seis anos.
Parágrafo único - Cada Estado, pela sua Assembléia Legislativa, elegisrá
um representante. O Governador do Estado terá o direito de vetar o nome
escolhido pela Assembléia; em caso de veto, o nome vetado só se terá por
79
escolhido definitivamente se confirmada a eleição por dois terços de votos
da totalidade dos membros da Assembléia.”
Vê-se que metade dos representantes do Conselho Federal eram eleitos
indiretamente pelas Assembléias Legislativas Estaduais e a outra metade era composta por
membros nomeados pela Presidência da República. Vale salientar que esse Conselho era
presidido por Ministro de Estado nomeado pelo Presidente da República, conforme art. 56:
“Art 56 - O Conselho Federal será presidido por um Ministro de Estado,
indicado pelo Presidente da República.”
Além dos parlamentares e do próprio Presidente da República, o Poder
Legislativo era exercido com a “colaboração” do Conselho da Economia Nacional,
composto por cinco Seções, representativas de vários ramos da produção nacional:
“Art 57 - O Conselho da Economia Nacional compõe-se de representantes
dos vários ramos da produção nacional designados, dentre pessoas
qualificadas pela sua competência especial, pelas associações profissionais
ou sindicatos reconhecidos em lei, garantida a igualdade de representação
entre empregadores e empregados.
Parágrafo único - O Conselho da Economia Nacional se dividirá em cinco
Seções:
a) Seção da Indústria e do Artesanato;
b) Seção de Agricultura;
c) Seção do Comércio;
d) Seção dos Transportes;
e) Seção do Crédito.”
Deve-se ressaltar que o Conselho da Economia Nacional também era
presidido por Ministro de Estado indicado pelo Presidente da República, nos termos do art.
59, além de até 3 (três) membros para cada uma das Seções:
“Art 59 - A Presidência do Conselho da Economia Nacional caberá a um
Ministro de Estado, designado pelo Presidente da República.
§ 1º - Cabe, igualmente, ao Presidente da República designar, dentre
pessoas qualificadas pela sua competência especial, até três membros para
cada uma das Seções do Conselho da Economia Nacional.”
80
Saliente-se, também, que o processo legislativo sobre matéria tributária era
da competência do Governo central, de acordo com o art. 64, caput:
“Art 64 - A iniciativa dos projetos de lei cabe, em princípio, ao Governo.
Em todo caso, não serão admitidos como objeto de deliberação projetos ou
emendas de iniciativa de qualquer das Câmaras, desde que versem sobre
matéria tributária ou que de uns ou de outras resulte aumento de despesa.”
Ainda que houvesse previsão pela mitigação da iniciativa privativa da
Presidência (art. 64, §1º), o projeto apresentado pelos parlamentares tinha imediatamente
suspenso o seu trâmite, caso o Executivo manifestasse interesse de apresentar projeto
substitutivo sobre a mesma matéria, nos termos do art. 64, §2º:
“§ 2º - Qualquer projeto iniciado em uma das Câmaras terá suspenso o seu
andamento, desde que o Governo comunique o seu propósito de apresentar
projeto que regule o mesmo assunto. Se dentro de trinta dias não chegar à
Câmara a que for feita essa comunicação, o projeto do Governo, voltará a
constituir objeto de deliberação o iniciado no Parlamento.”
A competência tributária exclusiva do poder central (Poder Executivo - art.
20) era também mitigada nas hipóteses em que recaía sobre os demais entes federativos,
conforme disciplinada nos arts. 23, 26, b e 28:
“Art 20 - É da competência privativa da União:
I - decretar impostos:
a) sobre a importação de mercadorias de procedência estrangeira;
b) de consume de quaisquer mercadorias;
c) de renda e proventos de qualquer natureza;
d) de transferência de fundos para o exterior;
e) sobre atos emanados do seu governo, negócios da sua economia e
instrumentos ou contratos regulados por lei federal;
f) nos Territórios, os que a Constituição atribui aos Estados;
II - cobrar taxas telegráficas, postais e de outros serviços federais; de
entrada, saída e estadia de navios e aeronaves, sendo livre o comércio de
cabotagem às mercadorias nacionais e às estrangeiras que já tenham pago
imposto de importação.
(...)
Art 23 - É da competência exclusiva dos Estados:
I - a decretação de impostos sobre:
81
a) a propriedade territorial, exceto a urbana;
b) transmissão de propriedade causa mortis ;
c) transmissão da propriedade imóvel inter vivos, inclusive a sua
incorporação ao capital de sociedade;
d) vendas e consignações efetuadas por comerciantes e produtores, isenta a
primeira operação do pequeno produtor, como tal definido em lei estadual;
e) exportação de mercadorias de sua produção até o máximo de dez por
cento ad valorem , vedados quaisquer adicionais;
f) indústrias e profissões;
g) atos emanados de seu governo, e negócios da sua economia, ou regulados
por lei estadual;
II - cobrar taxas de serviços estaduais.
(...)
Art 26 - Os Municípios serão organizados de forma a ser-lhes assegurada
autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse, e,
especialmente:
(...)
b) a decretação dos impostos e taxas atribuídos à sua competência por esta
Constituição e pelas Constituições e leis dos Estados;
(...)
Art 28 - Além dos atribuídos a eles pelo art. 23, § 2, desta Constituição e
dos que lhes forem transferidos Pelo Estado, pertencem aos Municípios:
I - o imposto de licença;
II - o imposto predial e o territorial urbano;
III - os impostos sobre diversões públicas;
IV - as taxas sobre serviços municipais.”
Por fim, todos os projetos de lei que dissessem respeito à economia nacional
eram submetidos, nos termos do art. 65, à apreciação do Conselho da Economia Nacional,
órgão que, como visto, era fortemente influenciado pela Presidência, que nomeava boa
parte dos membros componentes de suas Seções:
“Art 65 - Todos os projetos de lei que interessem à economia nacional em
qualquer dos seus ramos, antes de sujeitos à deliberação do Parlamento,
serão remetidos à consulta do Conselho da Economia Nacional.”
Não bastassem as arbitrárias previsões constitucionais outorgadas pela
Carta, os parlamentares poderiam perder o mandato, caso verificadas algumas das hipóteses
previstas no parágrafo único do art. 43:
82
“Art. 43 - Só perante a sua respectiva Câmara responderão os membros do
Parlamento nacional pelas opiniões e votos que, emitirem no exercício de
suas funções; não estarão, porém, isentos da responsabilidade civil e
criminal por difamação, calúnia, injúria, ultraje à moral pública ou
provocação pública ao crime.
Parágrafo único - Em caso de manifestação contrária à existência ou
independência da Nação ou incitamento à subversão violenta da ordem
política ou social, pode qualquer das Câmaras, por maioria de votos,
declarar vago o lugar do Deputado ou membro do Conselho Federal, autor
da manifestação ou incitamento.”
Os mandatos parlamentares declarados vagos eram preenchidos por eleição
(indireta, como visto acima), ou nomeação:
“§ 3º - As vagas que ocorrerem serão preenchidas por eleição suplementar,
se se tratar da Câmara dos Deputados, e por eleição ou nomeação,
conforme o caso, em se tratando do Conselho Federal.”
Analisando a Constituição de 1937 alertou José Afonso da Silva para a
centralização de poder por ela instituída79:
“Houve ditadura pura e simples, como todo o poder executivo nas mãos do
Presidente da República, que legislava por via de decretos-leis que ele
próprio depois aplicava, como órgão do executivo.”
Como se vê da leitura dos seus dispositivos e dos comentários doutrinários,
a Carta de 1937 sinalizou verdadeiro “momento de crise” na evolução normativoconstitucional do Princípio Democrático, pela instalação do chamado “Estado Novo”, que
caracterizou, como visto, um incisivo golpe nas instituições democráticas, que vinham
sendo gradativamente fortalecidas pelas constituições anteriores (1891 e 1934).
16.b.1.5.)
Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1946).
A Constituição de 1946 restabeleceu parte da abrangência do Princípio
Democrático no ordenamento jurídico. Por seu intermédio, no que toca ao Direito
79
Op. cit., p. 84.
83
Tributário, instituiu-se no ordenamento, por exemplo, a progressividade na tributação, com
a fixação de alíquotas maiores para aqueles que detinham mais bens e receitas.
No seu preâmbulo, como nas outras Constituições do período pós-Império,
já constava menção ao Princípio Democrático, tanto pela representação do povo pelos
constituintes, quanto pelo fundamento da Constituinte como sendo a organização de um
regime democrático:
“Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de
Deus, em Assembléia Constituinte para organizar um regime democrático,
decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS
UNIDOS DO BRASIL”
Da mesma forma, dispunha em seu art. 1º, a título de disposições
preliminares sobre a origem de todo poder como sendo emanada do povo:
“Art 1º - Os Estados Unidos do Brasil mantêm, sob o regime representativo,
a Federação e a República.
Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido.”
Contudo, de modo diverso do que dispunha a Carta de 1937, a Constituição
de 1946 previa eleições segundo o sistema de representação proporcional para os
Deputados e segundo o princípio majoritário para os Senadores, nos termos dos seus arts.
37, 38, 56 e 60:
“Art 37 - O Poder Legislativo é exercício pelo Congresso Nacional, que se
compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Art 38 - A eleição para Deputados e Senadores far-se-á simultaneamente em
todo o País.
Art 56 - A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo,
eleitos, segundo o sistema de representação proporcional, pelos Estados,
pelo Distrito Federal e pelos Territórios.
Art 60 - O Senado Federal, compõe-se de representantes dos Estados e do
Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário.”
Por sufrágio direto seriam eleitos o Presidente e o Vice-Presidente da
84
República (art. 81) e Governadores Estaduais (art. 11 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias):
“Art. 81 - O Presidente e o Vice-Presidente da República serão eleitos
simultaneamente, em todo o País, cento e vinte dias antes do termo do
período presidencial.”
“Art. 11 - No primeiro domingo após cento e vinte dias contados da
promulgação deste Ato, proceder-se-á, em cada Estado, às eleições de
Governador e de Deputados às Assembléias Legislativas, as quais terão
inicialmente função constituinte.”
As eleições, contudo, permaneceram indiretas para os Prefeitos de Capitais;
dos Municípios que possuíssem estâncias hidrominerais naturais, quando beneficiadas pela
União; ou ainda, os Municípios que, por lei, fossem tidos como de excepcional importância
para a segurança nacional:
“Art 28 - A autonomia dos Municípios será assegurada:
I - pela eleição do Prefeito e dos Vereadores;
(...)
§ 1º - Poderão ser nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos
Territórios os Prefeitos das Capitais, bem como os dos Municípios onde
houver estâncias hidrominerais naturais, quando beneficiadas pelo Estado
ou pela União.
§ 2º - Serão nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territórios
os Prefeitos dos Municípios que a lei federal, mediante parecer do Conselho
de Segurança Nacional, declarar bases ou portos militares de excepcional
importância para a defesa externa do País.”
A iniciativa dos projetos de lei, particularmente os relativos à matéria
financeira, passou a ser exclusiva do Presidente da República e de qualquer membro de
qualquer uma das duas Casas Legislativas, nos termos do seu art. 67:
“Art 67 - A iniciativa das leis, ressalvados os casos de competência
exclusiva, cabe ao Presidente da República e a qualquer membro ou
Comissão da Câmara dos Deputados e do Senado Federal
§ 1º - Cabe à Câmara dos Deputados e ao Presidente da República a
iniciativa da lei de fixação das forças armadas e a de todas as leis sobre
matéria financeira. (...)”
85
As leis tributárias federais eram da competência do Congresso Nacional,
com a sanção do Presidente da República, nos termos do art. 65, II:
“Art 65 - Compete ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da
República:
(...)
II - votar os tributos próprios da União e regular a, arrecadação e a
distribuição das suas rendas.”
A competência tributária dos entes constitucionais foi também bastante
discriminada entre a União (arts. 15 e 16), Estados (art. 19) e Municípios (arts. 28 e 29),
além da competência geral (art. 30) de modo similar à Constituição anterior, de 1937:
“Art 15 - Compete à União decretar impostos sobre:
I - importação de mercadorias de procedência estrangeira;
II - consumo de mercadorias;
III - produção, comércio, distribuição e consumo, e bem assim importação e
exportação de lubrificantes e de combustíveis líquidos ou gasosos de
qualquer origem ou natureza, estendendo-se esse regime, no que for
aplicável, aos minerais do País e à energia elétrica;
IV - renda e proventos de qualquer natureza;
V - transferência de fundos para o exterior;
VI - negócios de sua economia, atos e instrumentos regulados por lei
federal.
(...)
Art 16 - Compete ainda à União decretar os impostos previstos no art. 19,
que devam ser cobrados pelos Territórios.
(...)
Art 19 - Compete aos Estados decretar impostos sobre:
I - propriedade territorial, exceto a urbana;
II - transmissão de propriedade causa mortis ;
III - transmissão de propriedade imobiliária inter vivos e sua incorporação
ao capital de sociedades;
IV - vendas e consignações efetuadas por comerciantes e produtores,
inclusive industriais, isenta, porém, a primeira operação do pequeno
produtor, conforme o definir a lei estadual;
V - exportação de mercadorias de sua produção para o estrangeiro, até o
máximo de cinco por cento ad valorem , vedados quaisquer adicionais;
VI - os atos regulados por lei estadual, os do serviço de sua Justiça e os
negócios de sua economia.
(...)
86
Art 28 - A autonomia dos Municípios será assegurada:
(...)
II - pela administração própria, no que concerne ao seu peculiar interesse e,
especialmente,
a) à decretação e arrecadação dos tributos de sua competência e à
aplicação das suas rendas;
Art 29 - Além da renda que lhes é atribuída por força dos §§ 2.O e 4.11 do
art. 15, e dos impostos que, no todo ou em parte, lhes forem transferidos
pelo Estado, pertencem aos Municípios os impostos:
I - predial e territorial, urbano;
II - de licença;
III - de indústrias e profissões;
IV - sobre diversões públicas;
V - sobre atos de sua economia ou assuntos de sua competência.
Art 30 - Compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios cobrar:
I - contribuição de melhoria, quando se verificar valorização do imóvel, em
conseqüência de obras públicas;
II - taxas;
III - quaisquer outras rendas que possam provir do exercício de suas
atribuições e da utilização de seus bens e serviços.
Parágrafo único - A contribuição de melhoria não poderá ser exigida em
limites superiores à despesa realizada, nem ao acréscimo de valor que da
obra decorrer para o imóvel beneficiado.”
Ao descrever a Constituição de 1946, José Afonso da Silva, apesar de tecerlhe críticas tópicas, elogia o processo de democratização que foi por ela instaurado:
“Voltou-se, assim, às fontes formais do passado, que nem sempre estiveram
conforme com a história real, o que constituiu o maior erro daquela Carta
Magna, que nasceu de costas para o futuro, fitando saudosamente regimes
anteriores, que provaram mal. Talvez isso explique o fato de não ter
conseguido realizar-se plenamente. Mas, assim mesmo, não deixou de
cumprir sua tarefa de redemocratização, propiciando condições para o
desenvolvimento do país durante os vinte anos que o regeu80.”
Como se vê, com a Constituição de 1946, restaurou-se a importância do
Poder Legislativo como sendo um poder bicameral, composto apenas pela Câmara dos
Deputados e Senado Federal, os quais, por sua vez, eram compostos por representantes
eleitos pelo povo, nos termos dos dispositivos acima elencados, o que ocorreu não só pela
80
Op. cit., p. 86.
87
elegibilidade direta dos seus membros, mas, também, pela legitimação do processo
legislativo, que não mais era de iniciativa preponderante do Presidente da República, mas,
sim, e em muito maior proporção, de qualquer representante do Poder Legislativo.
16.b.1.6.)
Atos Institucionais do Regime Militar81 e a Constituição da
República Federativa do Brasil (1967).
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, como, também,
de notório conhecimento, foi promulgada durante o regime militar, instaurado em 1964,
com a deposição do então Presidente João Goulart pelos comandantes das Forças Armadas,
que designaram o Marechal Castello Branco como primeiro governante do regime, cuja
gestão foi inicialmente marcada pela decretação dos chamados Atos Institucionais, que
caracterizam retrocesso na evolução normativo-constitucional do Princípio Democrático.
O Ato Institucional n.º 1, apesar de inicialmente ter mantido válida a
Constituição de 1946, com o funcionamento do Congresso Nacional, introduziu uma série
de medidas restritivas dos direitos políticos, como a realização de eleições indiretas e a
outorga de poderes quase que ilimitados para o Executivo, como, por exemplo, a iniciativa
exclusiva de projetos que criassem ou aumentassem a despesa pública.
Além da imposição de eleições indiretas, o Ato Institucional n.º 1 suspendeu
as imunidades dos deputados e senadores e outorgou poderes ao Comando Maior para
cassação e suspensão de mandatos políticos, em qualquer nível de governo. Foram
suspensas as garantias asseguradas aos juízes e servidores públicos. Tais medidas
resultaram no afastamento de vários juízes e parlamentares, sendo a maioria de oposição ao
regime. Governadores de alguns Estados foram também depostos (Pernambuco, Goiás e
Sergipe).
Em virtude das expressivas vitórias obtidas pela oposição nas eleições
81
Análise histórica levantada com base nas informações constantes do especial eleições 2002 do site
http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2002/eleicoes/historia-1964.shtml
88
estaduais de 1965, o Comando Maior decidiu adotar novas medidas restritivas, o que foi
instrumentalizado pela edição do Ato Institucional n.º 2, de 17 de outubro de 1965. Por
intermédio deste Ato extinguiu-se os partidos políticos criados durante o Estado Novo, e
estabeleceu-se que a eleição para Presidente e Vice-Presidente da República seria decidida
pela maioria absoluta do Congresso, em sessão pública e votação nominal, com o
desiderato de afastar o risco de repetição das derrotas decorrentes das eleições estaduais.
O intuito de afastar o risco de novas derrotas eleitorais ocasionou a edição
de novo Ato Institucional, de n.º 3, que previa eleições indiretas dos governadores dos
Estados, os quais seriam eleitos pelas respectivas Assembléias Estaduais, além da
conferência de amplos poderes ao Presidente da República, que passou a legislar por
intermédio de decretos-leis.
O Congresso havia sido fechado por um mês em outubro de 1966, em
seqüência às inúmeras cassações de mandato dos parlamentares. Todavia, com a edição do
Ato Institucional n.º 4, o Congresso Nacional foi novamente convocado para aprovar a
nova Constituição de 1967, por intermédio da qual foi mantida a supremacia do Poder
Executivo sobre os demais, pela ampla centralização do poder nas mãos do Presidente.
Mais uma vez recorremos à lição de José Afonso da Silva, que descreveu o
período revolucionário em contundente crítica82:
“A 24.1.1967, fora promulgada a nova constituição, o que veio a resumir as
alterações institucionais operadas na Constituição de 1946, que findava
após sofrer vinte e uma emendas regularmente aprovadas pelo Congresso
Nacional com base em seu art. 217 e o impacto de quatro Atos Institucionais
e trinta e sete Atos Complementares, que tornaram incompulsável o Direito
Constitucional positivo então vigente.”
Não obstante esses atos arbitrários praticados pelo regime militar, o
Princípio Democrático encontrava previsão expressa na Constituição de 1967, desde o seu
art. 1º, e na mesma redação da Constituição anterior de 1946:
82
Op. cit., p. 87.
89
“Art. 1º - O Brasil é uma República Federativa, constituída sob o regime
representativo, pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e
dos Territórios.
§ 1º - Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido.”
Além do art. 1º, havia também previsão específica pela realização de
eleições mediante sufrágio direto, no art. 143, apesar da ressalva para os casos de eleições
indiretas, previstos pela própria Constituição:
“Art 143 - O sufrágio é universal e o voto é direito e secreto, salvo nos
casos previstos nesta Constituição; fica assegurada a representação
proporcional dos Partidos Políticos, na forma que a lei estabelecer.”
Todavia, como visto no breve relato histórico do período posterior à
revolução militar de 1964, em realidade, a ressalva do texto pela realização de eleições
indiretas, já se dava para com o Presidente e Vice-Presidente da República, que eram
alçados ao Poder mediante votação do Colégio Eleitoral, nos termos dos arts. 76 e 79.
Como de conhecimento notório, o Colégio Eleitoral era majoritariamente controlado pelo
Executivo:
“Art 76 - O Presidente será eleito pelo sufrágio de um Colégio Eleitoral, em
sessão, pública e mediante votação nominal.
(...)
Art 79 - Substitui o Presidente, em caso de impedimento, e sucede-lhe, no de
vaga, o Vice-Presidente.
§ 1º - O Vice-Presidente, considerar-se-á eleito com o Presidente registrado
conjuntamente e para igual mandato, observadas as mesmas normas para a
eleição e a posse, no que couber.”
Vale ressaltar que o Vice-Presidente presidia o Congresso Nacional, nos
termos do §2º, do art. 79, o que denota forte influência do Executivo sobre o Legislativo:
“§ 2º - O Vice-Presidente exercerá as funções de Presidente do Congresso
Nacional, tendo somente voto de qualidade, além de outras atribuições que
lhe forem conferidas em lei complementar.”
90
Havia previsão específica para a realização de eleições diretas dos
integrantes do Poder Legislativo Federal, bem como dos Governadores Estaduais:
“Art. 29 - O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se
compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Art. 30 - A eleição para Deputados e Senadores far-se-á simultaneamente
em todo o País.
(...)
Art 41 - A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo,
eleitos por voto direto e secreto, em cada Estado e Território.
(...)
Art 43 - O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados, eleitos
pelo voto direto e secreto, segundo o principio majoritário.
Art 13 - Os Estados se organizam e se regem pelas Constituições e pelas leis
que adotarem, respeitados, dentre outros princípios estabelecidos nesta
Constituição, os seguintes:
(...)
§ 2º - A eleição do Governador e do Vice-Governador de Estado far-se-á
por sufrágio universal e voto direto e secreto.
Art 175 - A primeira eleição geral de Deputados e a parcial de Senadores,
assim como a dos Governadores e Vice-Governadores, realizar-se-ão a 15
de novembro de 1970.”
Em princípio, a iniciativa do processo legislativo era de qualquer membro
ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, do Presidente da República ou
dos Tribunais Federais (art. 59):
“Art 59 - A iniciativa das leis cabe a qualquer membro ou Comissão da
Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, ao Presidente da República,
e aos Tribunais Federais com jurisdição em todo o território nacional.
Parágrafo único - A discussão e votação dos projetos de iniciativa do
Presidente da República começarão na Câmara dos, Deputados, salvo o
disposto no § 3º do art. 54.”
Contudo, na prática, o Presidente legislava amplamente, fundado no art. 54,
§1º, e com sustentação da sua base no Congresso, que atuava sempre no intuito de protelar
a apreciação de projetos de lei, visando à sua aprovação tácita:
91
“Art 54 - O Presidente da República poderá enviar ao Congresso Nacional
projetos de lei sobre qualquer matéria, os quais, se assim o solicitar,
deverão ser apreciados dentro de quarenta e cinco dias, a contar do seu
recebimento na Câmara dos Deputados, e de igual prazo no Senado
Federal.
§ 1º - Esgotados esses prazos, sem deliberação, serão os projetos
considerados como aprovados.
§ 2º - A apreciação das emendas do Senado Federal pela Câmara dos
Deputados far-se-á no prazo de dez dias, findo o qual serão tidas como
aprovadas.”
Em relação às matérias tributárias, a iniciativa era exclusiva da Presidência
da República, nos termos do art. 60, I:
“Art 60 - É da competência exclusiva do Presidente da República a
Iniciativa das leis que:
I - disponham sobre matéria financeira;”
Os Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores eram eleitos de forma direta,
excetuados os Municípios que eram sede das capitais dos Estados, os que detinham
estâncias hidrominerais - que eram nomeados pelos Governadores, mediante aprovação
prévia das respectivas Assembléias Legislativas -, e aqueles que fossem tidos pela lei
federal como de interesse da segurança nacional – nos mesmos termos da Constituição de
1946, embora a nomeação dos Prefeitos, no segundo caso (segurança nacional), agora
coubesse ao Presidente da República (art. 16), respeitados os mandatos em curso, nos
termos do art. 176:
“Art 16 - A autonomia municipal será assegurada:
I - pela eleição direta de Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores realizada
simultaneamente em todo o Pais, dois anos antes das eleições gerais para
Governador, Câmara dos Deputados e Assembléia Legislativa;
(...)
§ 1º - Serão nomeados pelo Governador, com prévia aprovação:
a) da Assembléia Legislativa, os Prefeitos das Capitais dos Estados e dos
Municípios considerados estâncias hidrominerais em lei estadual;
b) do Presidente da República, os Prefeitos dos Municípios declarados de
interesse da segurança nacional, por lei de iniciativa do Poder Executivo.”
(...)
“Art 176 - É respeitado o mandato em curso dos Prefeitos cuja investidura
92
deixará de ser eletiva por força desta Constituição e, nas mesmas condições,
o dos eleitos a 15 de novembro de 1966.”
O Sistema Tributário era regulado de forma pormenorizadamente descritiva
ou, no dizer de José Afonso da Silva, foi reformulado, “em termos mais nítidos e rigorosos,
ampliando a técnica do federalismo cooperativo, consistente na participação de uma
entidade na receita da outra”83.
A discriminação era efetuada já no início do texto constitucional (no
Capítulo V, do Título I), estando a competência tributária dos entes regulada
principalmente nos arts. 18, 22, 23 e 24:
“Art 18 – O sistema tributário nacional compõe-se de impostos, taxas e
contribuições de melhoria e é regido pelo disposto neste Capítulo em leis
complementares, em resoluções do Senado e, nos limites das respectivas
competências, em leis federais, estaduais e municipais.
(...)
§ 4º - Somente a União, nos casos excepcionais definidos em lei
complementar, poderá instituir empréstimo compulsório.
§ 5º - Competem ao Distrito Federal e aos Estados não divididos em
Municípios, cumulativamente, os impostos atribuídos aos Estados e
Municípios; e à União, nos Territórios Federais, os impostos atribuídos aos
Estados e, se o Território não for dividido em Município, os impostos
municipais.
§ 6º - A União poderá, desde que não tenham base de cálculo e fato gerador
idênticos aos dos impostos previstos nesta Constituição, instituir outros
além daqueles a que se referem os arts. 22 e 23 e que não se contenham na
competência tributária privativa dos Estados, Distrito Federal e Municípios,
assim como transferir-lhes o exercício da competência residual em relação
a determinados impostos, cuja incidência seja definida em lei federal.
(...)
Art 22 - Compete à União decretar impostos sobre:
I - importação de produtos estrangeiros;
II - exportação, para o estrangeiro, de produtos nacionais ou
nacionalizados;
III - propriedade territorial, rural;
IV - rendas e proventos de qualquer natureza, salvo ajuda de custo e diárias
pagas pelos cofres públicos;
V - produtos industrializados;
VI - operações de crédito, câmbio, seguro, ou relativas a títulos ou valores
83
Op. cit., p. 88.
93
mobiliários;
VII - serviços de transporte e comunicações, salvo os de natureza
estritamente municipal;
VIII - produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de
lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos;
IX - produção, importação, distribuição ou consumo de energia elétrica;
X - extração, circulação, distribuição ou consumo de minerais do País.
(...)
Art 23 - Compete à União, na iminência. ou no caso de guerra externa.
instituir, temporariamente, impostos extraordinários compreendidos, ou
não, na sua competência, tributária, que serão suprimidos gradativamente,
cessadas; as causas que determinaram a cobrança.
Art 24 - Compete aos Estados e ao Distrito Federal decretar impostos
sobre:
I - transmissão, a qualquer título, de bens imóveis por natureza e acessão
física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como
sobre direitos à aquisição de imóveis;
II - operações relativas à circulação de mercadorias, realizadas por
produtores, industriais e comerciantes. (Redação dada pelo Ato
Complementar nº 40, de 1968)
(...)
Art 25 - Compete aos Municípios decretar impostos sobre: '
I - propriedade predial e territorial urbana;
II - serviços de qualquer natureza não compreendidos na competência
tributária da União ou dos Estados, definidos em lei complementar.”
Contudo, o caráter autocrático do regime militar pode ser percebido da
leitura de um único dispositivo do texto da Constituição de 1967, o seu art. 173:
“Art 173 - Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos
praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964,
assim como:
I - pelo Governo federal, com base nos Atos Institucionais nº 1, de 9 de abril
de 1964; nº 2, de 27 de outubro de 1965; nº 3, de 5 de fevereiro de 1966; e
nº 4, de 6 de dezembro de 1966, e nos Atos Complementares dos mesmos
Atos Institucionais;
II - as resoluções das Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores
que hajam cassado mandatos eletivos ou declarado o impedimento de
Governadores, Deputados, Prefeitos e Vereadores, fundados nos referidos
Atos institucionais;
III - os atos de natureza legislativa expedidos com base nos Atos
Institucionais e Complementares referidos no item I;
IV - as correções que, até 27 de outubro de 1965, hajam incidido, em
decorrência da desvalorização da moeda e elevação do custo de vida, sobre
94
vencimentos, ajuda de custo e subsídios de componentes de qualquer dos
Poderes da República.”
Como se depreende da leitura do seu texto, talvez esse tenha sido o
momento normativo de maior prejuízo para as instituições democráticas, que sofreram com
a Constituição de 1967 o maior ataque até então intentado contra a República, não somente
no âmbito sintático do ordenamento, mas, principalmente, no âmbito pragmático das ações
que foram praticadas sob a sua égide.
16.b.1.7.)
Emenda Constitucional n.º 1 (1969).
Diante das novas derrotas impostas ao regime militar nas eleições, a
Constituição de 1967 foi submetida a uma série de alterações implementadas pela Emenda
Constitucional n.º 1, de 17 de outubro de 1969. O número de alterações foi tão grande e
tamanho foi o grau de reforma no texto constitucional de 1967, que alguns autores, como
José Afonso da Silva84 e Lourival Vilanova85, se posicionam pela caracterização da Emenda
Constitucional de 1969 como sendo uma nova Constituição, e não apenas uma emenda à
Constituição anterior.
A despeito do período de extrema instabilidade institucional, a menção ao
Princípio Democrático no início do texto não foi alterada pela Emenda:
“Art. 1º O Brasil é uma República Federativa, constituída, sob o regime
representativo, pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e
dos Territórios.
§ 1º Todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido.”
84
Op. cit., p. 88: “Teórica e tecnicamente, não se trata de emenda, mas de nova constituição. A emenda só
serviu como mecanismo de outorga, uma vez que verdadeiramente se promulgou texto integralmente
reformulado, a começar pela denominação que se lhe deu: Constituição da República Federativa do Brasil,
enquanto a de 1967 se chamava apenas Constituição do Brasil”.
85
Lourival Vilanova chega a afirmar que a Emenda Constitucional de 1969 “recobriu com tal abrangência a
Constituição de 1967 e com tal força de poder constituinte originário, que até se pode falar da Constituição
de 1969, como se esta representasse originária decisão política sobre o modo de ser do Estado brasileiro” in
Vilanova, Lourival. Escritos jurídicos e filosóficos, vol. 1. A dimensão política nas funções do STF.
95
Os Estados organizavam-se de acordo com o legislado pelas respectivas
Constituições, permanecendo a eleição dos seus Governadores e Vice-Governadores sob a
forma direta:
“Art. 13. Os Estados organizar-se-ão e reger-se-ão pelas Constituições e
leis que adotarem, respeitados dentre outros princípios estabelecidos nessa
Constituição, os seguintes:
(...)
§ 2º A eleição do Governador e do Vice-Governador de Estado far-se-á por
sufrágio universal e voto direto e secreto.”
Da mesma forma direta seriam eleitos os Prefeitos, Vice-Prefeitos e
Vereadores:
“Art. 15. A autonomia municipal será assegurada:
I - pela eleição direta de Prefeito, Vice-Prefeito e vereadores realizada
simultaneamente em todo o País, em data diferente das eleições gerais para
senadores, deputados federais e deputados estaduais;”
O Poder Legislativo era exercido pelo Congresso Nacional, por intermédio
da Câmara de Deputados e Senadores, para os quais, apesar das restrições impostas pelo
regime, havia previsão de eleições diretas, nos termos dos arts. 27, 28, 39 e 41:
“Art. 27. O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se
compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Art. 28. A eleição para deputados e senadores far-se-á simultaneamente em
todo o País.
(...)
Art. 39. A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo,
eleitos, entre cidadãos maiores de vinte e um anos e no exercício dos
direitos políticos, por voto direto e secreto, em cada Estado e Território.
(...)
Art. 41. O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados, eleitos
pelo voto secreto e direto, dentre os cidadãos maiores de trinta e cinco anos,
no exercício de seus direitos políticos, segundo o princípio majoritário.
(...)”
Todavia, as eleições para a Presidência e Vice-Presidência da República
ocorreriam de forma indireta, pelo Colégio Eleitoral, mediante votação nominal:
96
“Art. 73. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República,
auxiliado pelos Ministros de Estado.
Art. 74. O Presidente será eleito, entre os brasileiros maiores de trinta e
cinco anos e no exercício dos direitos políticos, pelo sufrágio de um colégio
eleitoral, e sessão pública e mediante votação nominal.”
Interessante ressaltar a previsão no sentido da realização da posse do
Presidente perante o Supremo Tribunal Federal, na hipótese de não estar reunido o
Congresso Nacional, tamanha a instabilidade política das instituições, à época:
“Art. 76. O Presidente tomará posse em sessão do Congresso Nacional e, se
êste não estiver reunido, perante o Supremo Tribunal Federal, prestando
compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as
leis, promover o bem geral e sustentar a união, a integridade e a
independência do Brasil.”
A iniciativa das leis era, via de regra, comum aos membros do Parlamento e
ao Presidente da República, excetuada a competência privativa do Presidente da República
para legislar sobre as matérias constantes do art. 57, dentre elas, no primeiro inciso, a
matéria financeira:
“Art. 56. A iniciativa das leis cabe a qualquer membro ou comissão da
Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, ao Presidente da República e
aos Tribunais Federais com jurisdição em todo o território nacional.
Parágrafo único. A discussão e votação dos projetos de iniciativa do
Presidente da República terão início na Câmara dos Deputados, salvo o
disposto no § 2º do artigo 51.
Art. 57. É da competência exclusiva do Presidente da República a iniciativa
das leis que:
I - disponham sôbre matéria financeira;”
Essa competência exclusiva operacionalizava-se pela possibilidade de
expedição de decretos-leis (art. 55, II), com vigência imediata:
“Art. 55. O Presidente da República, em casos de urgência ou de interêsse
público relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir
decretos-leis sôbre as seguintes matérias:
97
I - segurança nacional;
II - finanças públicas, inclusive normas tributárias; e
III - criação de cargos públicos e fixação de vencimentos.
§ 1º Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o
aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se,
nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido por aprovado.”
A competência tributária restou estabelecida conforme o disposto nos arts.
18 (geral) e seus parágrafos, além dos arts. 21 e 22 (para a União), art. 23 (Estados e
Distrito Federal), e Municípios (art. 24):
“Art. 18. Além dos impostos previstos nesta Constituição, compete à União,
aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir:
I - taxas, arrecadadas em razão do exercício do poder de polícia ou pela
utilização efetiva ou potencial de serviços públicos específicos e divisíveis,
prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição; e
II - contribuição de melhoria, arrecadada dos proprietários de imóveis
beneficiados por obras públicas, que terá como limite total a despesa
realizada. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 1983)
(...)
§ 3º Sómente a União, nos casos excepcionais definidos em lei
complementar, poderá instituir empréstimo compulsório.
(...)
§ 5º A União poderá, desde que não tenham base de cálculo e fato gerador
idênticos aos dos previstos nesta Constituição instituir outros impostos,
além dos mencionados nos artigos 21 e 22 e que não sejam da competência
tributária privativa dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios,
assim como transferir-lhes o exercício da competência residual em relação
a impostos, cuja incidência seja definida em lei federal.
(...)
Art. 21. Compete à União instituir impôsto sôbre:
I - importação de produtos estrangeiros, facultado ao Poder Executivo, nas
condições e nos limites estabelecidos em lei, alterar-lhe as alíquotas ou as
bases de cálculo;
II - exportação, para o estrangeiro, de produtos nacionais ou
nacionalizados, observado o disposto no final do item anterior;
III - propriedade territorial rural;
IV - renda e proventos de qualquer natureza, salvo ajuda de custo e diárias
pagas pelos cofres públicos na forma da lei;
V - produtos industrializados, também observado o disposto no final do item
I;
VI - operações de crédito, câmbio e seguro ou relativas a títulos ou valôres
mobiliários;
VII - serviços de transporte e comunicações, salvo os de natureza
98
estritamente municipal;
VIII - produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de
lubrificantes e combustíveis líquidos ou gasosos e de energia elétrica,
impôsto que incidirá uma só vez sôbre qualquer dessas operações, excluída
a incidência de outro tributo sôbre elas; e
IX - a extração, a circulação, a distribuição ou o consumo dos minerais do
País enumerados em lei, impôsto que incidirá uma só vez sôbre qualquer
dessas operações, observado o disposto no final do item anterior.
X - transportes, salvo os de natureza estritamente municipal. (Incluído pela
Emenda Constitucional nº 27, de 1985) (Vigência)
§ 1º A União poderá instituir outros impostos, além dos mencionados nos
itens anteriores, desde que não tenham fato gerador ou base de cálculo
idênticos aos dos previstos nos artigos 23 e 24.
§ 2º A União pode instituir:
I - contribuições, nos têrmos do item I dêste artigo, tendo em vista
intervenção no domínio econômico e o interêsse da previdência social ou de
categorias profissionais; e
II - empréstimos compulsórios, nos casos especiais definidos em lei
complementar, aos quais se aplicarão as disposições constitucionais
relativas aos tributos e às normas gerais do direito tributário.
(...)
Art. 22. Compete à União, na iminência ou no caso de guerra externa,
instituir, temporàriamente, impostos extraordinários compreendidos, ou
não, em sua competência tributária, os quais serão suprimidos
gradativamente, cessadas as causas de sua criação.
Art. 23. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sôbre:
I - transmissão, a qualquer título, de bens imóveis por natureza e acessão
física e de direitos reais sôbre imóveis, exceto os de garantia, bem como
sôbre a cessão de direitos à sua aquisição; e
II - operações relativas à circulação de mercadorias, realizadas por
produtores, industriais e comerciantes, impostos que não serão cumulativos
e dos quais se abaterá nos têrmos do disposto em lei complementar, o
montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado. (Vide
Emenda Constitucional nº 17, de 1980)
III - propriedade de veículos automotores, vedada a cobrança de impostos
ou taxas incidentes sobre a utilização de veículos. (Incluído pela Emenda
Constitucional nº 27, de 1985) (Vigência)
(...)
Art. 24. Compete aos municípios instituir impôsto sôbre:
I - propriedade predial e territorial urbana; e
II - serviços de qualquer natureza não compreendidos na competência
tributária da União ou dos Estados, definidos em lei complementar.”
Além da competência privativa do Presidente prevista no dispositivo acima
transcrito, e da possibilidade de expedição de decretos-leis, o Poder Executivo gozava
99
ainda da prerrogativa de envio de projetos de lei ao Congresso para votação em caráter de
urgência, os quais, caso não apreciados dentro do prazo de 40 dias, eram tidos como
aprovados (o que, como visto, comumente ocorria pela utilização de subterfúgios
protelatórios pela base governista no Parlamento):
“Art. 51. O Presidente da República poderá enviar ao Congresso Nacional
projetos de lei sôbre qualquer matéria, os quais, se o solicitar, serão
apreciados dentro de quarenta e cinco dias, a contar do seu recebimento na
Câmara dos Deputados, e de igual prazo no Senado Federal.
§ 1º A solicitação do prazo mencionado nêste artigo poderá ser feita depois
da remessa do projeto e em qualquer fase de seu andamento.
§ 2º Se o Presidente da República julgar urgente o projeto, poderá solicitar
que a sua apreciação seja feita em sessão conjunta do Congresso Nacional,
dentro do prazo de quarenta dias.
§ 3º Na falta de deliberação dentro dos prazos estipulados nêste artigo e
parágrafos anteriores, considerar-se-ão aprovados os projetos.
§ 4º A apreciação das emendas do Senado Federal pela Câmara dos
Deputados far-se-á, nos casos previstos nêste artigo e em seu § 1º, no prazo
de dez dias; findo êste, serão tidas por aprovadas, se não tiver havido
deliberação. (...)”
A Emenda Constitucional n.º 1 foi sucedida por vários Atos Institucionais de
igual teor emitidos pelo regime militar, que perdurou por quase três décadas, caracterizando
o momento de maior crise normativo-institucional do Princípio Democrático.
16.b.1.8.)
Constituição da República Federativa do Brasil (1988).
O reforço normativo-constitucional do Princípio Democrático ocorreu,
assim, do ponto de vista sociológico, de um momento pós-regime militar, de ausência de
exercício do poder de forma direta pelos legiferados e de pouca representação direta dos
mesmos, que ocasionou graves restrições aos direitos e garantias fundamentais dos
cidadãos, que já clamavam por mudanças, desde a instituição do regime autoritário , em
1964.
Passados vinte e um anos, desde a instauração do Regime Militar, diante da
favorável conjuntura política, foi enviada ao Congresso Nacional a Mensagem Presidencial
100
n.º 330, de 18 de junho de 1985, pelo então Presidente da República, José Sarney,
propondo a alteração da Constituição anterior. Essa proposta resultou na Emenda
Constitucional n.º 26/85, pela qual restou convocada a instalação de uma nova Assembléia
Nacional Constituinte.
A convocação dessa Assembléia Constituinte culminou na promulgação, em
05 de outubro de 1988, da atualmente vigente Constituição Federal da República Federativa
do Brasil.
Vale ressaltar, que desde a sua instalação, a Assembléia Constituinte foi
composta por deputados e senadores eleitos pelo voto direto (ainda que não para a
específica função constituinte, mas, meramente, legislativa) da população, que, à época,
clamava pela retorno total das eleições diretas, inclusive para a ordem central de Governo
(Presidência da República), o que, certamente, influenciou na pressão popular pela decisão
para realização de nova eleição para definição dos parlamentares constituintes, o que
acabou por não se concretizar.
Ainda que os parlamentares constituintes não tenham sido eleitos para o fim
específico de instalação da Assembléia Constituinte, percebe-se que, a nossa Constituição
Federal, desde a sua origem, já possuía como vetor principal à formulação e conseqüente
validação das normas jurídicas que estavam por vir, o mecanismo de representação popular
direta, característico dos regimes democráticos (no sentido de contemplação pragmática do
valor democracia). Assim, fez-se consignar expressamente do Texto Constitucional, logo
do seu início (art. 1º), a previsão do Princípio Democrático a reger o Estado de Direito:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...).”
Vê-se do próprio Texto que foi opção do legislador constituinte denominar o
Título I da Constituição Federal como sendo “Dos Princípios Fundamentais”, dentre os
quais estão em ainda maior destaque, por constarem do caput do art. 1º, os Princípios
101
Republicano, Federativo, o Princípio da Indissolubilidade da União dos Estados,
Municípios e Distrito Federal - que, de certa forma, não deixa de ser uma manifestação do
nosso federalismo -, e também, o Princípio Democrático, como diferença específica a
regular o nosso Estado de Direito.
No mesmo sentido é a lição do Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho86:
“Certamente a intenção do constituinte ao referir-se a Estado Democrático
de Direito foi a de mostrar que ele não pretende que o Brasil seja regido por
leis formais que violem eventualmente os princípios fundamentais da
democracia.”
Assim, além do destaque que quis atribuir o legislador constituinte ao
Princípio Democrático pela sua qualificação como princípio fundamental; pela sua situação
topográfica no Texto Constitucional (art. 1º, parágrafo único); estabeleceu ainda disposição
expressa do Estado de Direito em que se constituiu a República Federativa como sendo um
Estado Democrático.
Ademais, no inciso V, do art. 1º, fez constar a previsão do valor “pluralismo
político” como um dos fundamentos da República Federativa:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
V - o pluralismo político.”
Não bastassem as cinco notas acima mencionadas, indicativas da
prevalência que quis atribuir o legislador constituinte ao Princípio Democrático, ainda no
parágrafo único do mesmo art. 1º da Constituição encontramos a explicitação da
conformação constitucional atribuída ao princípio – o tratamento próprio que lhe é
atribuído pelo nosso ordenamento:
86
Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Comentários à constituição brasileira de 1988. Vol. I. Arts. 1º a 103.
Saraiva. São Paulo: 2000, p. 18.
102
“Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
Insere-se no parágrafo único do art. 1º, a definição constitucional do
Princípio
Democrático,
caracterizado
pelo
exercício
de
todos
os
poderes
constitucionalmente instituídos, de forma direta (direitos e garantias individuais, ação
popular, mandado de segurança, plebiscito, referendo, etc.) ou mediante representação, que
na maioria dos casos dos agentes políticos criados pela Constituição, também ocorre de
forma direta (membros do Poder Legislativo e Executivo – arts. 27, 28 e 29, 45, 46 e 47, e
76 a 82, da CF).
A esse respeito, vale a ressalva que, mesmo no caso dos representantes não
eleitos, tomando, por exemplo os membros do Poder Judiciário (arts. 92 a 126, CF), os
cargos em comissão (ex.: art. 84, da CF), etc., estes, a despeito de não serem representantes
“diretos” da população, são nomeados pelos representantes diretos, mediante autorização
do próprio Texto Constitucional, com base em critérios que atribuem cada vez maior
relevância aos ditames democráticos (realização de concurso técnico de provas e títulos,
com a participação de entidades civis, na maioria dos casos87; notório saber jurídico e
reputação ilibada; representação política; etc.);
No mais, o destaque atribuído ao Princípio Democrático pela parte que é
dotada de força normativa da Constituição Federal vem a ser agregado ao disposto no seu
87
CF: “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da
Magistratura, observados os seguintes princípios:
I - ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e
títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em
direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação;
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
(...)
c) aferição do merecimento conforme o desempenho e pelos critérios objetivos de produtividade e presteza no
exercício da jurisdição e pela freqüência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de
aperfeiçoamento; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”
(...)
IV previsão de cursos oficiais de preparação, aperfeiçoamento e promoção de magistrados, constituindo etapa
obrigatória do processo de vitaliciamento a participação em curso oficial ou reconhecido por escola nacional
de formação e aperfeiçoamento de magistrados; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
(...)”
103
preâmbulo:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bemestar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na
harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a
solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.”
Frise-se que, do início do preâmbulo dá-se ainda maior destaque ao
Princípio Democrático pela inserção das expressões: “Nós, representantes do povo
brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado
Democrático, (...)”, isto é, os deputados e senadores constituintes, ao proclamarem a
Constituição Federal, o fazem na qualidade de representantes do povo brasileiro, no intuito
de instituir um Estado Democrático de Direito.
Assim, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Princípio
Democrático ganhou absoluto destaque no ordenamento jurídico nacional, como resultado
do acolhimento pelo sistema de uma forte reivindicação social por uma maior participação
popular no exercício do Poder (ubi socíetas ibi jus88), que retornou, depois do seu advento,
a ser Público, no sentido de diretamente exercido pelos populares ou por seus
representantes diretamente eleitos.
Assim, analisando sintaticamente a ordem jurídica, enumeramos, pois,
alguns, dentre os principais fundamentos de ordem constitucional, pelos quais
demonstramos quis o legislador constituinte atribuir preponderância ao Princípio
Democrático em relação às demais normas jurídicas constantes do nosso ordenamento:
1) A adoção do valor democracia pelo Texto Constitucional, sob a forma de princípio, já
denota a sua importância normativa, pela natureza de norma-princípio;
88
“Onde há sociedade, aí há direito”, de acordo com a tradução fornecida por Spalding, Tarsilo Orpheu.
Pequeno dicionário jurídico de citações latinas. p. 127. Saraiva, São Paulo: 1971.
104
2) Sendo norma-princípio, por óbvio, há de prevalecer sobre normas-regra;
3) Não bastasse a sua natureza principial, o legislador constituinte decidiu por denominar o
Princípio Democrático como princípio fundamental89;
4) Sendo atribuído o caráter de fundamental ao Princípio Democrático, este há de
prevalecer não só sobre normas-regra, como também, sobre as demais normas-princípio, de
ordem meramente geral (ou não-fundamental);
5) Ainda que contraposto a outros princípios de ordem fundamental, no exercício da
ponderação de princípios acima mencionado, o Princípio Democrático, em realidade, lhes
serve de fundamento, numa relação de subordinação lógica, para com os demais princípios
fundamentais;
6) A localização topográfica do Princípio Democrático e a sua disseminação pelos seus
desdobramentos no Texto Constitucional (preâmbulo, art. 1º, caput e parágrafo único, arts.
27, 28 e 29, 45,46 e 47, e 76 a 82 da CF, dentre outros), denotam a sua importância
normativa, pela inauguração do “principal” diploma jurídico-normativo com os seus
ditames, e ainda, pelo espraiamento dos seus desdobramentos ao longo do referido texto;
7) A caracterização do Estado de Direito em que se constitui a República Federativa do
Brasil como sendo um Estado Democrático;
8) O pluralismo político como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, de
acordo com o inciso V, do art. 1º;
9) A vinculação de todo o poder constitucionalmente instituído ao Princípio Democrático,
definido pelo parágrafo único do art. 1º, ou seja, todo o poder como sendo emanado do
povo e a forma do seu exercício de modo direto por este ou por seus representantes
eleitos90;
10) As previsões constitucionais de exercício do poder de forma direta, mediante a outorga
de direitos subjetivos de ordem pública (mandado de segurança, ação popular, plebiscito,
89
Mendonça, Cristiane. O princípio constitucional democrático e o voto secreto nas casas legislativas.
Dissertação de Mestrado em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
1996: “Encartada entre os Princípios Fundamentais, a norma que estatui o Estado Democrático de Direito
sobressai como princípio pela importância do comando nela contido”.
90
Queiroz, José Guilherme Carneiro. O princípio democrático, o dinamismo social e as cláusulas pétreas.
Dissertação de Mestrado em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
2006: “O sentido maior dos regimes democráticos, sejam eles diretos ou representativos, reside na
importância do povo, titular do poder, que pode e deve, sempre que julgar necessário, e verificado os
procedimentos determinados, mudar as suas leis sem que signifique, este ato, uma quebra institucional que
faça surgir a instabilidade no seio da comunidade”.
105
referendo, leis de iniciativa popular, etc. - arts. 5º, LXIX, LXXIII, art. 14, I, II, e III, dentre
outros);
11) A previsão pelo exercício do poder mediante representação, que, como visto na maioria
dos casos, também ocorre de forma direta (membros do Poder Legislativo e Executivo –
arts. 27, 28 e 29, 45,46 e 47, e 76 a 82 da CF);
12) Mesmo no caso de representantes não eleitos, por exemplo, os membros do Poder
Judiciário (arts. 92 a 126, CF), e os cargos em comissão (ex.: art. 84, da CF), estes são
nomeados pelos representantes diretos, mediante autorização da Constituição Federal, hoje,
com base em critérios ainda mais democráticos (realização de concurso técnico de provas e
títulos, na maioria dos casos; notório saber jurídico e reputação ilibada; representação
política; etc.);
13) E, por último, a previsão pela proclamação da Constituição Federal pelos constituintes,
na qualidade de representantes do povo brasileiro, e no intuito de instituir um Estado
Democrático de Direito.
Esses são alguns dos fundamentos os quais acreditamos sejam mais que
suficientes à consideração por parte do intérprete/aplicador do Princípio Democrático como
sendo prevalecente em relação aos demais princípios constitucionais, por servir-lhes de
fundamento de validade, e assim, pela necessidade de aplicação dos mesmos, sempre em
relação de subordinação para com o referido princípio.
Essa relação de subordinação, obviamente, estará sujeita a todos os critérios
de subjetividade descritos na segunda parte do presente trabalho, podendo, inclusive, vir a
ser entendida de forma válida a tese ora defendida, como inclinando-se pela aplicação do
chamado “Princípio do Consentimento à Tributação” a que se referem os ilustres
Professores Roque Carrazza e José Artur de Lima Gonçalves, dentre outros, a despeito de
não consistir objetivo do presente trabalho analisar as implicações dessa escolha.
Com essa proposta, abrem-se, ao menos, duas vias de interpretação possíveis
ao intérprete/aplicador, i) a primeira pela visualização das normas constantes do
ordenamento, relativas ao Princípio Democrático, como sendo limitadoras do exercício do
106
poder estatal e denotativas do chamado Princípio do Consentimento (até mesmo com algum
fundamento na obra de Kelsen, pelo mínimo eficacial); ou ii) a consideração do
consentimento como sendo algo decorrente da própria sistemática de representação
popular, mesmo porque, o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus
representantes eleitos.
Contudo, acreditamos que, pela simples ciência da necessidade de adoção do
Princípio Democrático como sobreprincípio em relação aos demais, independentemente da
utilização da alternativa do chamado Princípio do Consentimento ou pela desconsideração
da possibilidade de questionamento dos atos legislativos e de governo por parte dos
legiferados pelo não consentimento, ante a assunção dos cargos públicos mediante
procedimento previamente estabelecido pela Constituição, já teremos afastadas diversas
possibilidade de interpretação/aplicação pela total desconsideração da premissa básica e
essencial a qualquer análise do Jurídico, conforme proposta pelo presente trabalho (o
Princípio Democrático como norma jurídica fundante de toda atividade tributária estatal e a
necessidade de consideração dos seus desdobramentos no ato de interpretação/aplicação da
norma jurídica tributária).
16.c.)
Análise no nível pragmático do ordenamento.
De acordo com a lição de Kelsen, o sistema jurídico sujeita os legiferados à
regulação das suas respectivas condutas de acordo com o previamente disposto na
respectiva ordem normativa, a qual se apresenta numa forma vertical escalonada91. Dessa
forma, o sistema jurídico vincula igualmente a atuação dos órgãos que a ele estão
vinculados. Da verificação dessa atuação, teremos a análise no âmbito pragmático, sendonos permitida também a identificação do grau de eficácia que o sistema exerce sobre as
respectivas condutas.
Prosseguindo no desenvolvimento do raciocínio do sistema escalonado,
Adolf Merkl costumava remeter a visualização do ordenamento jurídico à uma estrutura
91
Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. Martins Fontes. São Paulo: 2003, p. 246.
107
piramidal,
estando
a
Constituição
no
cume,
e
os
demais
atos
normativos
infraconstitucionais na sua base92.
Assim, aplicando as lições da melhor Teoria Geral do Direito ao estudo do
ordenamento jurídico brasileiro, temos que a Constituição Federal insere-se no topo da
pirâmide normativa a que estão sujeitas as condutas dos cidadãos e do próprio Estado. As
normas constitucionais subordinam, portanto, todas as demais normas jurídicas constantes
do nosso ordenamento (relação sintática jurídica).
Da
premissa
acima
estabelecida,
surge
a
necessidade
para
o
intérprete/aplicador, bem como, para o cidadão comum (visando a condução dos seus atos,
tendo em vista a inequívoca subordinação dos mesmos ao Texto Constitucional), de saber o
que pode ser entendido como Constituição, ou seja, qual a interpretação válida para
determinado dispositivo constitucional, para que possa aplicar a alternativa de interpretação
que seja admitida pelo ordenamento como consistente.
Adiantando parte da nossa proposta de aplicação hermenêutica, que será
adiante explanada (item 20), o caminho para solução desse questionamento é a própria
Constituição que haverá de nos indicar, pela dicção do seu art. 102, caput:
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda
da Constituição, cabendo-lhe:
(...)”
Como se depreende da leitura do referido dispositivo, compete ao Supremo
Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição Federal, ou seja, este é o órgão
legitimado pelo legislador constituinte para dizer, em última análise, o que é que se deve
entender como Constituição; qual o significado e alcance das normas constitucionais; qual
interpretação do Texto Constitucional pode ser tida, ao menos, a priori, como válida para o
ordenamento.
92
Merkl, Adolf, Teoria general del derecho administrativo, Ed. Nacional, México:1978. pp. 208 e seguintes.
108
Vale aqui a honrosa menção à solidez institucional do Supremo Tribunal
Federal: mesmo em tempos de crise institucional do próprio Princípio Democrático, e do
próprio Estado, a previsão constitucional pela existência da Corte sempre esteve presente
em todos os textos, e atuante o Tribunal, em todos os períodos da nossa história, como
órgão de legitimação judicial último. Essa solidez institucional já havia sido sinalizada por
Lourival Vilanova93:
“A persistência do Supremo Tribunal Federal é de ordem institucional.
Quero dizer: é concreção histórica, que não se descontinua em sua
integridade institucional diante da descontinuidade das sucessivas
Constituições. Por isso, não se trata de simples criação legislativa do
constituinte originário, que venha dispondo do arbítrio de instituí-lo ou não.
Cada poder constituinte que sobreveio, como suporte de fato, não
juridicamente qualificado por qualquer ordenamento jurídico prévio,
positivando nova Constituição Federal, foi condicionado pela tradição
histórica: foi este um limite extraconstitucional, a demonstrar que histórica
e sociologicamente inexiste ilimitação ao pretendido poder absoluto do
legislador constituinte. Limita-o e contextua-o a circunstância social,
política, econômica, ideológica: limita-o à textura histórica em que ele
irremediavelmente se encontra.”
Ao dispor sobre o papel do Supremo Tribunal Federal, vê-se tratar a
Constituição Federal de papel dos mais importantes, dentre os desempenhados pelas
instituições democráticas, quando dispõe sobre a jurisdição constitucional a ser efetivada
pela Corte94. Estabelece a Constituição que, na hipótese de divergência de interpretações, o
Supremo Tribunal Federal exercerá, via de regra, as funções de Minerva, na decisão quanto
à interpretação constitucional que aceitará como válida, dentre as hipóteses que lhe serão
submetidas. E a sua decisão terá caráter definitivo (terminativo).
93
Vilanova, Lourival. Escritos jurídicos e filosóficos, Vol. 01, in A dimensão política nas funções do STF.
Axis Mvndi. São Paulo: p. 377.
94
A esse respeito, vale mencionar a doutrina do Min. Gilmar Ferreira Mendes, que ao abordar a temática das
especificidades do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, afirma que ao Tribunal são
submetidas quase que todas as lides cujas matérias sejam dotadas de um mínimo de relevância: “Ao ampliar,
de forma marcante, a legitimação para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103),
a Constituição de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso,
permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes fossem submetidas ao
Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas..” in Moreira Alves e o
controle de constitucionalidade no Brasil. Celso Bastos Editor, São Paulo: 2000, p. 15.
109
E assim vem decidindo o próprio Supremo Tribunal Federal, em
reconhecimento da importância constitucional da sua competência jurisdicional:
“A DEFESA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA REPRESENTA O
ENCARGO MAIS RELEVANTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. - O
Supremo Tribunal Federal - que é o guardião da Constituição, por expressa
delegação do Poder Constituinte - não pode renunciar ao exercício desse
encargo, pois, se a Suprema Corte falhar no desempenho da gravíssima
atribuição que lhe foi outorgada, a integridade do sistema político, a
proteção das liberdades públicas, a estabilidade do ordenamento normativo
do Estado, a segurança das relações jurídicas e a legitimidade das
instituições da República restarão profundamente comprometidas. O
inaceitável desprezo pela Constituição não pode converter-se em prática
governamental consentida. Ao menos, enquanto houver um Poder Judiciário
independente e consciente de sua alta responsabilidade política, social e
jurídico-institucional.” (ADI-MC 2010 – DF, Relator Min. Celso de Mello)
Contudo, suas decisões não resolvem um problema sério decorrente da
aplicação pragmática da sistemática normativa de análise da constitucionalidade de
determinado ato normativo adotada pela Constituição, qual seja, a ausência de um controle
de constitucionalidade prévio, conforme será melhor explanado adiante (item 18), com a
manifestação prévia do Pretório Excelso sobre a interpretação válida para o aquele ato.
De início, nos contentaremos com a simples conclusão decorrente da leitura
da própria Constituição Federal, que proclama ser o Supremo Tribunal Federal o órgão
constitucionalmente legitimado para dizer qual a interpretação cabível, no exercício dessa
competência jurisdicional. A mais consistente e congruente diante do sistema
constitucional.
Assim sendo, no exercício da sua jurisdição constitucional, o Supremo
Tribunal Federal é quem demonstrará o alcance normativo-constitucional do Princípio
Democrático. Analisemos, portanto, suas decisões e os amplos efeitos jurídicos por elas
atribuído ao Princípio Democrático, como fundamento que é do Estado de Direito:
“AI 520479/RS - RIO GRANDE DO SUL
(...)
110
2. O princípio constitucional-penal da individualização da pena deve ser
observado também na fase de execução, pena de vulneração de princípios
constitucionais fundamentais, como o democrático e o social.”
(Relator Min. CEZAR PELUSO)
Como se vê, mesmo nas suas decisões monocráticas, proclama o Tribunal
ser o Princípio Democrático um princípio fundamental, abarcando outros subprincípios de
ordem constitucional. Isso pode ser percebido também da análise das decisões de mérito do
seu Tribunal Pleno, as quais declaram não somente a outorga do mandato eletivo pela
população para fins de legislação, como também, a título exemplificativo, o legítimo direito
das minorias parlamentares de fiscalização do cumprimento das normas constitucionais, o
que denota a ampla abrangência que vem sendo atribuída ao Princípio Democrático pelo
Pretório:
“MS 24831/DF - DISTRITO FEDERAL
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO
Julgamento: 22/06/2005 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
(...)
EMENTA: COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO - DIREITO DE
OPOSIÇÃO - PRERROGATIVA DAS MINORIAS PARLAMENTARES EXPRESSÃO DO POSTULADO DEMOCRÁTICO - DIREITO
IMPREGNADO DE ESTATURA CONSTITUCIONAL - INSTAURAÇÃO DE
INQUÉRITO PARLAMENTAR E COMPOSIÇÃO DA RESPECTIVA CPI TEMA QUE EXTRAVASA OS LIMITES "INTERNA CORPORIS" DAS
CASAS
LEGISLATIVAS
VIABILIDADE
DO
CONTROLE
JURISDICIONAL - IMPOSSIBILIDADE DE A MAIORIA PARLAMENTAR
FRUSTRAR, NO ÂMBITO DO CONGRESSO NACIONAL, O EXERCÍCIO,
PELAS MINORIAS LEGISLATIVAS, DO DIREITO CONSTITUCIONAL À
INVESTIGAÇÃO PARLAMENTAR (CF, ART. 58, § 3º) - MANDADO DE
SEGURANÇA CONCEDIDO. CRIAÇÃO DE COMISSÃO PARLAMENTAR
DE INQUÉRITO: REQUISITOS CONSTITUCIONAIS. - O Parlamento
recebeu dos cidadãos, não só o poder de representação política e a
competência para legislar, mas, também, o mandato para fiscalizar os
órgãos e agentes do Estado, respeitados, nesse processo de fiscalização, os
limites materiais e as exigências formais estabelecidas pela Constituição
Federal. - O direito de investigar - que a Constituição da República atribuiu
ao Congresso Nacional e às Casas que o compõem (art. 58, § 3º) - tem, no
inquérito parlamentar, o instrumento mais expressivo de concretização
desse relevantíssimo encargo constitucional, que traduz atribuição inerente
à própria essência da instituição parlamentar.
(...)
111
O ESTATUTO CONSTITUCIONAL DAS MINORIAS PARLAMENTARES: A
PARTICIPAÇÃO ATIVA, NO CONGRESSO NACIONAL, DOS GRUPOS
MINORITÁRIOS, A QUEM ASSISTE O DIREITO DE FISCALIZAR O
EXERCÍCIO DO PODER. - A prerrogativa institucional de investigar,
deferida ao Parlamento (especialmente aos grupos minoritários que atuam
no âmbito dos corpos legislativos), não pode ser comprometida pelo bloco
majoritário existente no Congresso Nacional e que, por efeito de sua
intencional recusa em indicar membros para determinada comissão de
inquérito parlamentar (ainda que fundada em razões de estrita conveniência
político-partidária), culmine por frustrar e nulificar, de modo inaceitável e
arbitrário, o exercício, pelo Legislativo (e pelas minorias que o integram),
do poder constitucional de fiscalização e de investigação do comportamento
dos órgãos, agentes e instituições do Estado, notadamente daqueles que se
estruturam na esfera orgânica do Poder Executivo. - Existe, no sistema
político-jurídico brasileiro, um verdadeiro estatuto constitucional das
minorias parlamentares, cujas prerrogativas - notadamente aquelas
pertinentes ao direito de investigar - devem ser preservadas pelo Poder
Judiciário, a quem incumbe proclamar o alto significado que assume, para
o regime democrático, a essencialidade da proteção jurisdicional a ser
dispensada ao direito de oposição, analisado na perspectiva da prática
republicana das instituições parlamentares.”
Arrebata, ainda, o Ministro relator Celso de Mello, finalizando o seu
raciocínio com a afirmação de que a previsão da instituição da República num Estado
Democrático de Direito não pode possuir uma conotação meramente retórica, devendo,
sim, produzir efeitos práticos na consecução dos fins colimados pelas normas
constitucionais que o instituem:
“A CONCEPÇÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO DE DIREITO REFLETE
UMA REALIDADE DENSA DE SIGNIFICAÇÃO E PLENA DE
POTENCIALIDADE CONCRETIZADORA DOS DIREITOS E DAS
LIBERDADES PÚBLICAS. - O Estado de Direito, concebido e estruturado
em bases democráticas, mais do que simples figura conceitual ou mera
proposição doutrinária, reflete, em nosso sistema jurídico, uma realidade
constitucional densa de significação e plena de potencialidade
concretizadora dos direitos e das liberdades públicas. - A opção do
legislador constituinte pela concepção democrática do Estado de Direito
não pode esgotar-se numa simples proclamação retórica. A opção pelo
Estado democrático de direito, por isso mesmo, há de ter conseqüências
efetivas no plano de nossa organização política, na esfera das relações
institucionais entre os poderes da República e no âmbito da formulação de
uma teoria das liberdades públicas e do próprio regime democrático. Em
uma palavra: ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos
112
princípios superiores consagrados pela Constituição da República. - O
direito de oposição, especialmente aquele reconhecido às minorias
legislativas, para que não se transforme numa promessa constitucional
inconseqüente, há de ser aparelhado com instrumentos de atuação que
viabilizem a sua prática efetiva e concreta.(...)”
Atente-se para o final da ementa acima transcrita, que reflete claramente a
preocupação do legislador individual (Supremo Tribunal Federal) com a prática efetiva e
concreta do direito de oposição das minorias parlamentares no regime democrático, numa
atribuição de amplos efeitos, inclusive, de ordem pragmática, ao Princípio Democrático.
Já decidiu também o Supremo Tribunal Federal que o Poder Executivo nos
regimes democráticos encontra-se sujeito à fiscalização do Poder Legislativo, da mesma
forma que no julgado acima citado, afirmando ser a fiscalização do Poder Executivo pelo
Poder Legislativo atividade plenamente compatível com o postulado do Princípio
Democrático:
“ADI-MC 775/RS - RIO GRANDE DO SUL
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO
EMENTA: GOVERNADOR E VICE-GOVERNADOR DO ESTADO AFASTAMENTO DO PAÍS POR QUALQUER TEMPO - NECESSIDADE
DE AUTORIZAÇÃO DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA, SOB PENA DE
PERDA DO CARGO - ALEGADA OFENSA AO POSTULADO DA
SEPARAÇÃO DE PODERES - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. A
FISCALIZAÇÃO
PARLAMENTAR
COMO
INSTRUMENTO
CONSTITUCIONAL DE CONTROLE DO PODER EXECUTIVO:
GOVERNADOR DE ESTADO E AUSÊNCIA DO TERRITÓRIO
NACIONAL. - O Poder Executivo, nos regimes democráticos, há de ser um
poder constitucionalmente sujeito à fiscalização parlamentar e
permanentemente exposto ao controle político-administrativo do Poder
Legislativo. - A necessidade de ampla fiscalização parlamentar das
atividades do Executivo - a partir do controle exercido sobre o próprio
Chefe desse Poder do Estado - traduz exigência plenamente compatível com
o postulado do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, "caput") e com
as conseqüências político-jurídicas que derivam da consagração
constitucional do princípio republicano e da separação de poderes.”
Da análise de outras decisões, extraímos, que o Supremo Tribunal Federal
coloca até mesmo o sobreprincípio da Segurança Jurídica, no dizer de Paulo de Barros
113
Carvalho, como um subprincípio do Estado Democrático de Direito:
“MS 26117/DF - DISTRITO FEDERAL
(...) o decurso do tempo para a apreciação de questões pelo Tribunal de
Contas da União investe contra a segurança jurídica, enquanto subprincípio
do Estado Democrático de Direito.” (Ministro Eros Grau – Relator)
Percebe-se da leitura das decisões do Supremo Tribunal Federal singular
característica que somente comprova a nossa premissa: muito mais que mencionar eventual
afronta ao Princípio Democrático de forma direta, aprecia-se a lesão ao Estado
Democrático de Direito, às instituições democráticas, e às demais normas jurídicas que são
desdobramentos do referido princípio. Isso ocorre, também, em virtude de outros fatores, já
explanados ao longo desta dissertação, dentre os quais, citamos, a título meramente
exemplificativo: o Princípio Democrático, como visto nas decisões, é fundamento de todo o
Estado de Direito, e assim sendo, serve de base a todas as normas jurídicas que o
estruturam, sendo, portanto, mais comum, a ofensa direta a ditas normas que ao próprio
princípio.
Assim, além de todos os fundamentos acima apontados a comprovarem a
supremacia do Princípio Democrático sobre os demais, temos também toda uma construção
jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal a corroborar da tese pela supremacia do
referido princípio sobre as demais normas jurídicas do sistema, o que robustece, de forma
ainda mais sólida, a tese ora sustentada, pois tal decisão não é meramente opinativa
(doutrinária), mas, sim, jurisdicional.
17.
Do Princípio Democrático como norma jurídica fundante da atividade
tributária estatal (Norma de habilitação ao poder de tributar)
Vimos no item anterior a indicação de alguns fundamentos jurídicocientíficos, os quais acreditamos sejam suficientes para a caracterização do Princípio
Democrático como norma jurídica fundante de toda a atividade jurídica estatal.
114
Demonstrar-se-á, em seqüência, a irrefutável correlação do Princípio
Democrático e suas formas de representação com o Princípio da Legalidade, o qual, por sua
vez, serve de fundamento ao Princípio da Legalidade Tributária, que possui ampla conexão
com a outorga das competências fiscais aos entes tributantes. Senão, vejamos.
17.a.)
O Princípio Democrático e suas implicações com o Princípio da
Legalidade.
Por servir o Princípio Democrático de fundamento à atividade jurídica
estatal, e sendo a atividade tributária apenas parte da atividade do Estado, os mesmos
fundamentos utilizados para a demonstração do referido princípio como fundamento da
atuação estatal, por muito maiores razões, servem agora para demonstração do Princípio
Democrático como fundamento de toda a atividade jurídica tributária estatal (argumento a
fortiori).
Recordemos quais são esses fundamentos gerais:
1) A adoção do valor “democracia” pela Constituição sob a forma de norma-princípio;
2) A prevalência de normas-princípio sobre normas-regra;
3) A caracterização pelo legislador constituinte do Princípio Democrático como um
princípio fundamental;
4) Sendo o Princípio Democrático de ordem fundamental, prevalece, também, sobre os
demais princípios não-fundamentais;
5) A subordinação lógica dos demais princípios fundamentais ao Princípio Democrático;
6) A topografia do Princípio Democrático no Texto Constitucional e os seus
desdobramentos (preâmbulo, art. 1º, caput, e parágrafo único, arts. 27, 28 e 29, 45,46 e 47,
e 76 a 82 da CF, dentre outros);
7) A caracterização da forma estatal em que se constitui a República como sendo um
Estado Democrático de Direito;
8) O pluralismo político como um dos fundamentos da República (art. 1º, V);
9) A vinculação de todos os poderes constitucionalmente instituídos ao Princípio
115
Democrático - todo o poder como sendo emanado do povo e a forma do seu exercício de
modo direto por este ou por seus representantes diretamente eleitos (art. 1º, parágrafo
único);
10) As previsões constitucionais de exercício de alguns dos poderes constituídos de forma
direta (arts. 5º, LXIX, LXXIII, art. 14, I, II, e III, etc.);
11) A previsão pelo exercício do poder mediante representação, que, na maioria dos casos,
também é direta (membros do Poder Legislativo e Executivo – preâmbulo, art. 1º, caput, e
parágrafo único, arts. 27, 28 e 29, 45, 46 e 47, e 76 a 82 da CF);
12) Mesmo no caso de representantes não-eleitos, estes são nomeados pelos representantes
diretos da população, pela utilização de critérios que contemplam o Princípio Democrático
com maior efetividade (ex.: concurso público de provas e títulos para os membros do Poder
Judiciário e do Ministério Público);
13) E, por fim, a proclamação da Constituição Federal pelos constituintes, na qualidade de
representantes do povo brasileiro que foram, e no intuito de instituir um Estado
Democrático de Direito, constante do preâmbulo.
Principalmente dos itens 6, 8, 10 e 11 acima, percebemos que o Princípio
Democrático possui implicações bastante estreitas com o Princípio da Legalidade, pois, no
caso específico do sistema jurídico brasileiro (relações sintáticas), na Constituição Federal
de 1988, o Princípio Democrático adquiriu como características predominantes, a
diferenciá-lo das constituições anteriores, um incremento das previsões constitucionais de
participação popular e representação diretas na formulação do processo das leis que
regulam a conduta dos cidadãos.
Assim, o Princípio Democrático tem no Princípio da Legalidade
estabelecido no art. 5º, II, da Constituição Federal, não somente o dever de estabelecer a
necessidade da regulação das condutas dos cidadãos por intermédio da lei, mas, muito mais
que isso, um verdadeiro instrumento de afastamento do arbítrio estatal e promoção do Bem
Comum (Alfredo Augusto Becker).
116
17.b.)
O Princípio da Legalidade Tributária e a competência tributária do
ente de direito público interno.
Não bastassem os fundamentos indicados no subitem anterior, cabe a
advertência no sentido de que, uma das formas mais comumente verificadas de práticas
arbitrárias por parte do Estado ocorre pelo exercício deturpado da sua competência
tributária, na expropriação descomedida dos recursos dos seus cidadãos-contribuintes.
Ao abordarmos o tratamento constitucional do Princípio Democrático, em
relação aos seus desdobramentos concernentes à matéria tributária, temos ainda outros
tantos fundamentos a confirmar o exposto na presente dissertação. A começar pela análise
do Princípio da Legalidade Tributária, constante do art. 150, I, do Texto Constitucional, e
tão caro aos contribuintes, tendo em vista a irrefutável vinculação do legislador tributário à
lei (constitucional e infraconstitucional), quando da instituição de qualquer exação, e ainda,
do Executivo, quando da sua fiscalização e cobrança:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é
vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;”
O Princípio específico da Legalidade Tributária nada mais representa que a
transposição do Princípio da Legalidade (geral), constante do art. 5º, II, da Constituição
Federal para o campo tributário:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude de lei;”
Portanto, como a instituição, a fiscalização e a cobrança dos tributos dá-se
dentro dos estritos limites da legalidade, ressalvadas as hipóteses constitucionais de
117
exceção à aplicação do Princípio da Legalidade (ex: possibilidade de majoração ou redução
do tributo - art. 97, II e IV, do CTN), somente atendido o referido princípio poderia, de
início, o Supremo Tribunal Federal referendar a instituição de qualquer cobrança
(apreciados, obviamente, os demais requisitos legais à sua instituição e a competência
jurisdicional do próprio Tribunal para dizer se o tributo foi constitucionalmente instituído
ou não).
Ao analisar qualquer hipótese envolvendo o Princípio da Legalidade
Tributária estará o Supremo Tribunal Federal, em realidade, decidindo se o ente de direito
público interno age dentro dos limites de sua própria competência tributária, aquela que lhe
é constitucionalmente atribuída.
Desse modo, cabe afirmar que a importância do Princípio da Legalidade
para o Direito Tributário está intimamente ligada ao estudo da competência fiscal do ente
tributante, visto ser essa resultante da própria constituição e da lei.
Vale o parêntesis no sentido de que a doutrina constitucional atualmente
mais em voga95, ao dissertar sobre as principais funções das constituições nos Estados
modernos, visualiza três desideratos que mais comumente aparecem nos textos em todo o
mundo: 1) a estruturação do Estado, com sua respectiva subdivisão (tripartição de poderes)
e colocação dos principais órgãos de atuação estatal; 2) o estabelecimento de limites à
atuação estatal, no intuito de proteger os cidadãos-legiferados; 3) arrolamento de direitos e
garantias individuais fundamentais à sociedade, num alargamento da proteção aos que estão
sob a égide constitucional.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho também vê como função da Constituição a
outorga dos direitos e garantias fundamentais aos cidadãos, embora não desconheça um
novo caráter dirigente ao Texto96:
95
. Moraes, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. Atlas. São Paulo: 2001, p. 34-35.
Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Comentários à constituição brasileira de 1988. Vol. I. Arts. 1º a 103.
Saraiva. São Paulo: 2000, p. 4.
96
118
“Persiste a idéia de que a Constituição tem por função assegurar direitos
fundamentais, sejam eles políticos, sejam econômicos e sociais. É verdade
que, para promover alguns destes últimos, são previstos programas de ação
governamental, que já orientam, nalguns pontos, a atuação dos governos
sucessivos.”
Assim sendo, como que num movimento cíclico, a sociedade por intermédio
de seus constituintes põe a Constituição, que, por sua vez, estabelece o que é o Estado, e
para com este, apesar de se confundir com a própria sociedade, visto que fruto da mesma
(Sociologia Jurídica), é reconhecido um histórico de arbitrariedades na atuação dos
detentores do poder para com os cidadãos, de modo que se faz necessária a inserção de
limites à sua atuação, em instância constitucional.
Como em matéria de ciência a unificação deve ser privilegiada como
método orientador, das funções constitucionais ora aventadas, visualizamos apenas uma
dentre elas: a própria estruturação de funcionamento do Estado, visto que, a terceira função
(estabelecimento de direitos e garantias individuais) resumir-se-ia à segunda (limites
estatais), pois as limitações à atuação do Estado são postas pelo rol de direitos e garantias
outorgados aos cidadãos. E mais, essa conclusão se resume à primeira função (estruturação
do funcionamento do Estado), já que este é estruturado em momento simultâneo às suas
limitações, ou seja, sua “estrutura” não é posteriormente limitada pelos direitos e garantias,
mas já nasce delimitada pelo disposto no texto constitucional, inclusive, pelo rol de
direitos.
Ora, nos termos da própria Constituição, o Princípio da Legalidade
estabelece que ninguém poderá fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de
lei (art. 5º, II). Assim, o que não está legalmente proibido, é legalmente autorizado,
conforme notório brocardo, e numa aplicação da teoria da interdefinibilidade de modais
deônticos97. Ressalvando-se que esse princípio lógico submete-se a um critério de
demarcação: ele só se aplica no campo das condutas a) contingentes; não porém, no campo
das condutas b) necessárias; e c) impossíveis (modais aléticos).
97
V. apostila da disciplina de Lógica Jurídica ministrada pelo Prof. Paulo de Barros Carvalho na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
119
Assim, ali onde não existir a atuação estatal, onde o Estado não estiver
obrigado a atuar em exclusividade, e conseqüentemente, o cidadão não estiver impedido de
atuar livremente, será lícita qualquer atuação privada (CF, Art. 5º, II).
Neste sentido, temos como uma das principais funções da Constituição
Federal, a salvaguarda dos cidadãos às restrições ao exercício de suas liberdades.
Ao analisar as hipóteses juridicamente possíveis de exação dos cidadãos
pelo Estado, Geraldo Ataliba98 indicou quatro hipóteses taxativamente possíveis: a) multa;
b) obrigação convencional; c) indenização por dano; d) tributo. Tomamos como verdadeira
tal proposição descritiva, por total conformidade com o texto constitucional. Cremos serem
essas portanto as únicas hipóteses em que o cidadão pode ser coagido à conduta de levar
dinheiro aos cofres públicos - todas são instituídas por lei ou contrato público em lei
fundamentado.
Sendo a atuação tributária uma restrição legal (constitucional) à liberdade do
cidadão, em razão da necessidade de custeio da própria máquina estatal, esta deve
necessariamente ser instrumentalizada pelo Estado nos estritos termos da Constituição
Federal, que estabelece limites rígidos à sua atuação nesse campo, visando o afastamento
da ocorrência de eventuais constrições indevidas ao patrimônio dos contribuintes. Toda
atribuição de competência implica (i) autorização e (ii) proibição99.
Contudo, o sistema tributário nacional, como conjunto de normas-princípio e
normas-regra concernentes à atividade tributária, visa não somente proteger o cidadãocontribuinte de ilegalidades no exercício da tributação, como também proteger o próprio
Estado, ao estabelecer prerrogativas e limites da sua correta atuação na instituição das
exações tributárias.
98
Ataliba, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª ed., 5ª tiragem, p. 36. Malheiros. São Paulo: 2004.
Forsthoff, Ernst. Tratado de derecho administrativo. Instituto de Estudos Políticos, Madri, 1958, n.º 573:
“Toda atribución de competencia representa al mismo tiempo una autorización y una limitación. La
autorización para el cumplimiento de la función asignada; y la limitación, precisamente a esta función”.
99
120
Toda essa atividade, podemos concluir do exposto nos itens anteriores,
deriva da eficácia técnica, inerente ao ordenamento jurídico, do próprio Princípio
Democrático.
Muito se escreveu sobre o Princípio da Legalidade em matéria tributária e
suas implicações com a competência tributária. Por não consistir objetivo precípuo do
presente trabalho, não pretendemos cansar os leitores com a repetição de tão bem colocados
argumentos científicos a respeito da matéria, de maneira que remetemos a atenção para os
textos pertinentes100.
Contudo, apenas numa síntese daquilo que é pertinente ao desenvolvimento
do nosso tema, afirmamos que a atividade tributária do Estado resulta da eficácia do
Princípio Democrático e decorre da análise dos seguintes atos jurídicos – característicos da
formação da lei tributária (em sentido amplo), no ordenamento jurídico brasileiro:
1º)
A população elege os seus representantes no Congresso Nacional, os quais, a
posteriori, funcionarão na instalação da Assembléia Nacional Constituinte (ainda que não
tenham sido eleitos para o fim específico de elaboração da Constituição101, com implicações
100
Ataliba, Geraldo. Hipótese de incidência tributária, 5ª ed., Malheiros. São Paulo: 1992, pp. 53-54; Coelho,
Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro, 2ª ed. Forense. Rio de Janeiro: 1999, pp. 118 e
seguintes; e ainda, Carrazza, Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário, 12ª ed..Malheiros. São
Paulo: 1999, pp. 167 e seguintes.
101
Como bem acentuado pelo Prof. Fábio Konder Comparato, a Assembléia Nacional Constituinte instalada
para a elaboração do Texto, não foi eleita para esse fim específico: “Em 5 de outubro próximo, a Constituição
Federal completará 20 anos de vigência. É mais do que tempo de se reconhecer o que, até hoje, poucos têm
tido a coragem de declarar: ela carece de legitimidade democrática. A Constituição de 1988 foi elaborada
não por uma Assembléia especialmente criada para esse fim, mas por um órgão político já existente, o
Congresso Nacional. O texto abre-se com a declaração solene: "Nós, representantes do povo brasileiro,
reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático etc.". Em um Estado
democrático, a soberania pertence ao povo, que não pode delegar o seu uso a ninguém. A aprovação de uma
nova Constituição é o primeiro e principal atributo da soberania. Mas o povo brasileiro não foi chamado a
dizer se aceitava o documento composto em seu nome e por sua conta. Aproveitando-se desse vício de
origem, o Congresso atribuiu a si próprio todo o poder de reforma constitucional. Com base nessa espúria
prerrogativa, ele já emendou a Constituição, até a data em que escrevo estas linhas, 62 vezes (uma média de
três emendas por ano). Sempre em nome do povo. Mas este não tem nem sequer direito de apresentar
propostas de emenda constitucional. Trata-se, como se vê, de um soberano de opereta, ou, se preferirem, do
rei Momo de um permanente carnaval político.” Jornal Folha de São Paulo. Coluna Opinião. Edição do dia 03
de
março
de
2008
constante
do
sítio
eletrônico
do
Portal
Universo
on-line
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0303200809.htm.
121
na questão da legimitação constituinte);
2º)
Os parlamentares constituintes elaboram o Texto Constitucional de 1988 não só
“legitimados” pelo mandato legislativo que lhes fora então conferido pelo povo (ainda que
parcialmente, pois não legitimados como constituintes), mas, também, quando da
elaboração da parte do Texto relativa ao Sistema Tributário Nacional (não somente o Título
VI da CF, como todas as demais normas constitucionais tributárias – ex.: art. 43, §2º, III;
demais disposições do Título VIII; art. 195 e seguintes; etc.), promovem a audiência de
várias autoridades acadêmicas em Direito Tributário, dentre Professores, especialistas, e
representantes dos diversos setores da atividade econômica que compõem a base tributável
(participação popular - análise pragmática);
3º)
Ao elaborarem o Texto do Sistema Tributário Nacional, os constituintes
estabeleceram o que a linguagem doutrinária denomina “Estatuto do Contribuinte”, o qual,
a despeito das suas inúmeras emendas, dispôs originariamente sobre quais seriam os
tributos; quais entes seriam legitimados para a instituição de quais dentre os tributos
constitucionalmente possíveis de instituição; e em que moldes se daria essa instituição
(agente, matéria e procedimento);
4º)
Para aqueles que encaram os atos jurídicos praticados em momento prévio à
elaboração da Constituição como sendo extradogmáticos: fundados nas disposições
constitucionais vigentes em momento posterior à sua promulgação (ou vigência), que o
legislador infraconstitucional (ordinário, e eleito de forma direta pela sociedade) procede à
formulação dos atos normativos tributários, limitado pelos moldes previamente
estabelecidos pelo legislador constitucional; na competência que lhe é outorgada pela
própria Constituição (v. também arts. 6º e seguintes do CTN);
5º)
Se por algum motivo os destinatários da norma jurídica tributária formulada pelo
legislador eleito não se conformarem com algum aspecto ilícito na sua instituição (agente,
matéria ou forma prevista na Constituição), ou o próprio Estado não concordar com a
negativa do contribuinte em cumprir determinada prestação ou eventual equívoco no seu
recolhimento, ambos hão de buscar amparo no Poder Judiciário, que por intermédio do
Supremo Tribunal Federal decidirá a lide, em última instância, e eventuais ofensas à
Constituição Federal (levando em consideração que todo o ordenamento jurídico-tributário
decorre da Constituição).
122
E assim também o faz o Supremo Tribunal Federal, em relação às lides
submetidas à sua apreciação. Por exemplo, ao apreciar a legitimidade da contribuição à
seguridade social sobre a remuneração dos servidores ativos e inativos, inicialmente, se
pronunciou o Tribunal pela transgressão à integridade da ordem democrática, por parte da
Presidência da República, na regulação de matéria que já tenha sido objeto de deliberação
por projeto de lei, na mesma sessão legislativa, incorrendo, assim, em vício procedimental
ao instituir a exação pretendida via medida provisória rejeitada na mesma sessão:
“ADI-MC 2010/DF - DISTRITO FEDERAL
(...)
EMENTA: SERVIDORES PÚBLICOS FEDERAIS - CONTRIBUIÇÃO DE
SEGURIDADE SOCIAL - LEI Nº 9.783/99 - ARGÜIÇÃO DE
INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL DESSE DIPLOMA
LEGISLATIVO - RELEVÂNCIA JURÍDICA DA TESE PERTINENTE À
NÃO-INCIDÊNCIA DA CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL
SOBRE SERVIDORES INATIVOS E PENSIONISTAS DA UNIÃO
FEDERAL (CF, ART. 40, CAPUT, E RESPECTIVO § 12, C/C O ART. 195,
II, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 20/98) - ALÍQUOTAS
PROGRESSIVAS - ESCALA DE PROGRESSIVIDADE DOS ADICIONAIS
TEMPORÁRIOS (ART. 2º DA LEI Nº 9.783/99) - ALEGAÇÃO DE OFENSA
AO PRINCÍPIO QUE VEDA A TRIBUTAÇÃO CONFISCATÓRIA (CF,
ART. 150, IV) E DE DESCARACTERIZAÇÃO DA FUNÇÃO
CONSTITUCIONAL INERENTE À CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE
SOCIAL - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA - MEDIDA CAUTELAR
DEFERIDA EM PARTE. PRINCÍPIO DA IRREPETIBILIDADE DOS
PROJETOS REJEITADOS NA MESMA SESSÃO LEGISLATIVA (CF, ART.
67) - MEDIDA PROVISÓRIA REJEITADA PELO CONGRESSO
NACIONAL - POSSIBILIDADE DE APRESENTAÇÃO DE PROJETO DE
LEI, PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, NO INÍCIO DO ANO
SEGUINTE ÀQUELE EM QUE SE DEU A REJEIÇÃO PARLAMENTAR
DA MEDIDA PROVISÓRIA.
(...)
- O Presidente da República, no entanto, sob pena de ofensa ao princípio da
separação de poderes e de transgressão à integridade da ordem
democrática, não pode valer-se de medida provisória para disciplinar
matéria que já tenha sido objeto de projeto de lei anteriormente rejeitado na
mesma sessão legislativa (RTJ 166/890, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI).
Também pelas mesmas razões, o Chefe do Poder Executivo da União não
pode reeditar medida provisória que veicule matéria constante de outra
medida provisória anteriormente rejeitada pelo Congresso Nacional” (RTJ
146/707-708, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
123
Prossegue ainda o ilustre Ministro Celso de Mello explicitando o
entendimento de que a própria supremacia da ordem constitucional decorre dos valores
democráticos que a informam, descabendo falar-se sequer em razões de Estado para
legitimação da agressão a tais valores:
“RAZÕES DE ESTADO NÃO PODEM SER INVOCADAS PARA
LEGITIMAR O DESRESPEITO À SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA. - A invocação das razões de Estado - além de deslegitimar-se
como fundamento idôneo de justificação de medidas legislativas representa, por efeito das gravíssimas conseqüências provocadas por seu
eventual acolhimento, uma ameaça inadmissível às liberdades públicas, à
supremacia da ordem constitucional e aos valores democráticos que a
informam, culminando por introduzir, no sistema de direito positivo, um
preocupante fator de ruptura e de desestabilização político-jurídica. Nada
compensa a ruptura da ordem constitucional. Nada recompõe os
gravíssimos efeitos que derivam do gesto de infidelidade ao texto da Lei
Fundamental. A defesa da Constituição não se expõe, nem deve submeter-se,
a qualquer juízo de oportunidade ou de conveniência, muito menos a
avaliações discricionárias fundadas em razões de pragmatismo
governamental. A relação do Poder e de seus agentes, com a Constituição,
há de ser, necessariamente, uma relação de respeito. Se, em determinado
momento histórico, circunstâncias de fato ou de direito reclamarem a
alteração da Constituição, em ordem a conferir-lhe um sentido de maior
contemporaneidade, para ajustá-la, desse modo, às novas exigências
ditadas por necessidades políticas, sociais ou econômicas, impor-se-á a
prévia modificação do texto da Lei Fundamental, com estrita observância
das limitações e do processo de reforma estabelecidos na própria Carta
Política.”
Ao afirmar que a invocação das razões de Estado representa ameaça
inadmissível às liberdades públicas, à supremacia da ordem constitucional e aos valores
democráticos que a informam e o eventual acolhimento dessas razões finda por introduzir,
no sistema de direito positivo, um preocupante fator de ruptura e de desestabilização
político-jurídica, o Pretório Excelso coloca o Princípio Democrático no seu devido lugar na
hierarquia estabelecida pela Constituição: como um princípio fundamental, basilar ao
Estado de Direito.
124
Como se depreende das suas decisões, o tratamento normativoconstitucional atribuído pelo Supremo Tribunal Federal ao Princípio Democrático somente
vem a corroborar o exposto no presente trabalho, pela prevalência do referido princípio em
relação a todos as demais normas-princípio e normas-regra constantes do ordenamento
jurídico brasileiro, principalmente pela característica deste servir-lhes de fundamento de
validade.
Afirmada a prevalência do Princípio Democrático sobre as demais normas
jurídicas, passemos a dissertar sobre o segundo objetivo do presente trabalho:
demonstração da possibilidade de utilização dos seus desdobramentos numa nova proposta
hermeneutico-aplicativa.
125
PARTE IV
PROPOSTA DE INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DOS DESDOBRAMENTOS
DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO NO ÂMBITO DO DIREITO TRIBUTÁRIO
18.
Da contraposição conceitual: “mens legis” versus “mens legislatoris” e da
colocação do problema hermenêutico.
Demonstrada a prevalência do Princípio Democrático na atividade jurídica
tributária estatal (Parte III), e tendo em vista a necessidade de consideração dessa conclusão
para qualquer atividade interpretativa/aplicativa, passemos ao objetivo secundário do
presente trabalho, qual seja: a utilização de uma proposta hermenêutica alternativa, que
utilize como método os subsídios que nos são fornecidos pelos desdobramentos do
Princípio Democrático para o ato de aplicação/interpretação do Jurídico.
Como adiantado no item 16.c, as decisões de mérito do Supremo Tribunal
Federal, nos termos do art. 102, caput, da Constituição Federal, nos fornecem um norte para
interpretação e aplicação das normas jurídicas, na necessidade de regulação de conduta
análoga àquela já decidida pela Corte, em hipótese semelhante.
Contudo, as interpretações constitucionais tidas como válidas pelo Tribunal
- mesmo nos casos de ações diretas, em que são preexcluídas todas as instâncias inferiores,
encurtando-se o processo - somente vem a ser conhecida pelos jurisdicionados (pela
ocorrência dos julgamentos e publicação de suas decisões) após transcorrido lapso de
tempo considerável da efetiva ocorrência da conduta ou da publicação do ato normativo em
questão pelo ente legislativo competente, em parte, pela ausência de previsão para
realização de um controle de constitucionalidade prévio, conforme assentado pelo Min.
Celso de Mello, em citação de Gilmar Ferreira Mendes constante do voto proferido em
relatoria da ADI n.º 432:
126
“Assinale-se que o nosso direito positivo não admite o controle preventivo
de constitucionalidade ‘in abstracto’ tal como ocorre, desde 1956, no
sistema germânico de jurisdição constitucional, em que – consoante registra
GILMAR FERREIRA MENDES (‘Controle de Constitucionalidade –
Aspectos Jurídicos e Políticos’, p. 161, 1990, Saraiva) ‘O
Bundesverfassungsgericht considera que o controle de normas pressupõe a
existência de ato legislativo formal, afigurando-se, incompatível, por isso,
com qualquer modalidade ou mecanismo de índole preventiva. Dessarte,
antes da publicação da norma, não há que se cuidar de controle de
constitucionalidade”
Como se vê do próprio posicionamento da Corte, não é admitido o controle
constitucional prévio no sistema jurídico brasileiro, que requer a publicação de ato
legislativo formal para, mediante provocação, desencadear o controle.
Assim, os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal são a suma
manifestação da mens legis aplicada ao caso concreto, e somente com base no conteúdo
deles decorrentes é que os sujeitos-de-direito envolvidos na lide terão acesso a única
interpretação constitucionalmente válida para determinado texto legislativo, no sentido de
que terão o maior grau possível de segurança jurídica, caso pautadas suas condutas com
base naquilo que pelo Tribunal foi decidido.
Saliente-se que essa interpretação atribuída pelo Supremo Tribunal Federal
atribui alguma segurança jurídica às partes envolvidas no caso concreto, sem, contudo,
vincular a atuação da Corte para casos análogos no futuro, cujo exame, mais uma vez,
dependerá das próprias circunstâncias casuísticas.
Contudo, a impossibilidade de um posicionamento prévio à ocorrência das
condutas, por parte do Supremo Tribunal Federal, bem como, a necessidade de uma análise
casuística (com todos as peculiaridades específico), resulta nas mais diversas agressões ao
Princípio da Segurança Jurídica, pois, a todo instante surgem questionamentos em relação à
interpretação
que
deverá
ser
atribuída
a
determinado
dispositivo
legislativo
(constitucional), diante das múltiplas possibilidades de significações lingüísticas dele
decorrentes.
127
Alguns exemplos colhidos da análise pragmática do ordenamento tributário
confirmam tal assertiva, a saber: art. 195, I, b, seria a receita bruta equivalente ao
faturamento, para efeito de tributação das contribuições sociais? Para efeito de tributação
dessas contribuições, devem ser incluídas na receita bruta as receitas não operacionais?; ou,
em relação ao art. 155, II, incide o tributo nas operações de arrendamento mercantil, em
que não haja a aquisição do bem ao final do contrato? Em relação ao crédito-prêmio de IPI,
possui o referido benefício caráter setorial (art. 41, ADCT)? Qual o alcance da Resolução
71/05 do Senado Federal em relação às decisões futuras do judiciário sobre o crédito? Em
relação aos insumos isentos, estes conferem direito a crédito de IPI ou apenas os não
tributados e os tributados à alíquota zero (art. 153, IV, §3º, II)?
Além disso, mesmo nesses momentos de completa insegurança jurídica, pela
ausência de definição pelo Supremo Tribunal Federal da interpretação válida em definitivo
para a hipótese específica, no caso de determinado texto legislativo instituidor de um
tributo, este não deixa de surtir efeitos econômicos (até mesmo pela presunção de
constitucionalidade das leis) nas respectivas esferas patrimoniais dos contribuintes e do
fisco, as quais, por razões de lógica empresarial e eficiência administrativa, usualmente,
passam a ser reguladas pela adoção da interpretação que simplesmente lhes seja
economicamente mais favorável – interpretações, portanto, intrinsecamente discrepantes.
Esse comportamento divergente decorre da interpretação que cada uma das
partes interessadas na aplicação de determinada norma jurídica atribui ao texto normativoconstitucional (ou infraconstitucional), na persecução de um sentido válido a ser atribuído
ao referido texto legislativo.
O conceito da mens legis ganhou força doutrinária e jurisprudencial pela
aplicação equivocada do seu conceito contraposto da mens legislatoris, cuja desvirtuação
no entendimento da sua correta acepção levou alguns estudiosos, como Aliomar Baleeiro, a
declarar a impossibilidade de “psicanalisar” a vontade do legislador. Correta a assertiva de
Baleeiro se adotada a mens legislatoris na concepção do desejo mental pessoal
128
(psicológico) do legislador. Caso adotado o melhor entendimento pela mens legislatoris,
como ora propomos, entendida como sendo o intuito legal (constitucional) do órgão ou
agente legislativo, devidamente objetivado, por intermédio dos atos de enunciação
legislativa (exposições de motivos, justificativas de propostas, considerandos, anais
congressuais, razões de veto, etc.), não há que se falar em psicanálise do legislador.
Como se vê da situação acima exposta, tem-se a abertura da possibilidade de
atribuição de inúmeros sentidos a cada texto normativo, ante a subjetividade daqueles que
serão responsáveis pela sua interpretação/aplicação (partes interessadas e órgãos
judicantes). Contudo, apenas uma interpretação será tida como válida ao final (mens legis
propriamente dita), e normalmente, como visto, esta interpretação é aquela atribuída pelo
Supremo Tribunal Federal (guardados os filtros normativos e jurisprudenciais de restrição
do conhecimento da ação ou recurso e a possibilidade de aplicação imediata de sua
jurisprudência, mesmo pelas instâncias inferiores, ainda que em caráter não definitivo).
Assim sendo, desde i) a expedição da norma jurídica, e o momento de
regulação da conduta; até ii) a apreciação da validade da interpretação que se está
atribuindo a determinado texto legislativo (constitucional) pelo Supremo Tribunal Federal,
remanesce uma lacuna temporal de relativa incerteza (insegurança jurídica102) quanto à
correta interpretação a ser adotada em relação ao referido texto legislativo, que, mesmo
assim, não deixa de submeter a sociedade ao pleno surtimento de seus efeitos, sejam eles
tidos ou não por inconstitucionais, a posteriori, pela Corte, inclusive pela regra geral de
vigência dos atos normativos (LICC, art. 1º, do Decreto-lei n.º 4.657/42103), bem como pela
presunção de constitucionalidade das leis.
Note-se que a insegurança jurídica decorrente desse período de incerteza
quanto à correta interpretação constitucional da norma jurídica, tem levado o Supremo
Tribunal Federal a, cada vez mais, fazer uso de instrumental decisório de limitação
102
Anota Paulo Ayres Barreto que “É exigência do próprio sistema que toda solução de controvérsia, por
intermédio de ato jurisdicional, encerre uma conduta certa.” Imposto sobre a renda e preços de
transferência. Dialética. São Paulo: 2001, p. 42.
129
temporal dos efeitos de seus julgados104, em reconhecimento da necessidade de mitigação
dos respectivos efeitos de suas decisões, diante das ruinosas conseqüências que decorreriam
da prolação de julgado sem quaisquer cautelas temporais.
Como então solucionar problema tão sério, e de conseqüências ainda mais
preocupantes? É o que pretendemos com a nossa proposta de interpretação e aplicação, que
visa a contornar (ou ao menos mitigar) a indefinição resultante da incerteza jurídica que até
o momento reina no sistema jurídico, durante esse interregno.
19.
Retomada do prestígio da "mens legislatoris"
19.a.)
Da “mens legislatoris” como resultado da deliberação congressual e
da eficácia do Princípio Democrático
A solução proposta pelo presente trabalho visa adotar um novo método
interpretativo/aplicativo do Jurídico, que parta, necessariamente, da consideração do
Princípio Democrático como norma jurídica fundante da atividade tributária estatal e da
utilização de alguns de seus desdobramentos no sistema jurídico tributário para elucidação
de um sentido normativo mais próximo àquele que deva ser referendado, a posteriori, pelo
Supremo Tribunal Federal como legítimo. Digamos, uma “interpretação democrática do
Direito Tributário”.
A adoção dessa premissa inicial deve ser agregada à consideração da mens
legislatoris, não como usualmente conhecida e criticada105, como sendo a vontade que tinha
103
“Art. 1o Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de
oficialmente publicada.”
104
V. por exemplo o art. 27 da Lei n.º 9.868/99: “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o
Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela
declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que
venha a ser fixado.”
105
Eros Grau chega a afirmar com uma verve bem humorada que “A única virtude da teoria da vontade do
legislador está em que ela conduz a uma proposta de exercício de ciência cooperativa entre advogado,
psicólogo e kardecista – porque, se o legislador estiver morto, para captarmos a sua vontade deveremos
contar com o auxílio de um kardecista.” apud França, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato
administrativo. Malheiros. São Paulo: 2007.
130
o político, o parlamentar, o membro do Poder Legislativo – como fruto do desejo mental
(íntimo, não formalizado) da pessoa do legislador, como já adiantado no item anterior.
Diferentemente, propugnamos deva ser encarada a mens legislatoris como
uma manifestação da eficácia do Princípio Democrático, como uma imposição do próprio
ordenamento (motivação do ato legislativo/normativo), resultante da aplicação de seus
desdobramentos jurídicos.
Desse modo, acreditamos seja mais coerente a utilização do conceito de
mens legislatoris como sendo aquela finalidade expressa constante da exposição de motivos
dos atos legislativos (normativos), dos seus considerandos, das justificativas das
proposições, dos próprios anais legislativos do respectivo órgão emissor da norma, etc..
Tudo em atendimento à necessidade de atribuição de um amplo alcance inter-normativo
(sintático) ao Princípio Democrático (eficácia técnica e jurídica), tendo em vista que todos
os poderes dele emanam.
Ao menos um dentre esses atos sempre haverá de estar presente no processo
de formação das leis (maior objetividade), e, portanto, disponível para consulta do
interprete/aplicador106, diferentemente da utilização da mens legis, que advém
exclusivamente da capacidade de atribuição pelo intérprete/aplicador daquele sentido do
texto legislativo que lhe seja mais vantajoso (maior subjetividade).
106
A esse respeito, vale a anotação de que, como ato legislativo mais comumente utilizado para regulação das
condutas no nosso sistema, temos em todas as Medidas Provisórias editadas a partir da Emenda
Constitucional n.º 32/01, a disponibilização das respectivas exposições de motivos que ensejaram as suas
edições, no site do planalto www.planalto.gov.br. Ademais, como bem lecionado por Philipp Heck: “No
essencial, as condições para essa investigação são até particularmente favoráveis: muitas vezes, o fim da lei
é explicado antecipadamente na literatura e na imprensa judicial; outras vezes, reúnem-se comissões
preliminares destinadas a estudar a posição dos interesses; em regra, o projeto é acompanhado da exposição
dos motivos; a discussão no parlamento e eventualmente nas comissões põe em relevo, por vezes com notável
agudeza, os interesses causais. Tudo isto falta, é certo, em muitos casos, mas não é razão para renunciar à
investigação dos interesses causais quando possível (...) A única coisa que podemos esperar dum legislador
que inclua os trabalhos preparatórios no elemento histórico, é que torne acessíveis esses trabalhos. E isso
hoje é corrente.(...) Ora, a publicação completa o acto legislativo e é, por isso, a expressão necessária da
vontade legislativa (perfeicção do acto de comando contido na lei).” Heck, Philipp. Interpretação da lei e
jurisprudência dos interesses, in Coleção Stvdivm – Temas Filosóficos, jurídicos e sociais. Livraria
Acadêmica. Saraiva e Cia. Editores. São Paulo: 1947, p. 69, 83 e 86.
131
Saliente-se que a proposta de interpretação/aplicação ora sugerida concorda
com Philipp Heck, Professor da Universidade de Tübingen, que em sua obra intitulada
“Interpretação da Lei e Jurisprudência de Interesses” (cujo acesso nos foi gentilmente
franqueado pelo colega Fabrício Serafini) propõe, ainda que em nomenclatura não tão
adequada, uma investigação histórica dos interesses107:
“Esse estudo levará á conclusão de que a forma de interpretação das leis
que melhor satisfaz os interesses práticos é constituída pela investigação
histórica dos interesses. É uma interpretação histórica – adopta os métodos
da investigação histórica – mas não exclusivamente subjetiva: deve
procurar sim os pensamentos exteriorizados ou revelados por meio do ato
legislativo, mas a sua ação retrospectiva deve ir mais longe, até os
interesses determinantes da lei, aos interesses causais. Além disso, não
exclui a criação judicial do Direito, antes supõe o seu contínuo
desenvolvimento jurisprudencial. Se a toda essa atividade de determinação
do Direito se quiser chamar interpretação, essa será histórico-teleológica.”
A proposta de Heck é bastante semelhante à alternativa ora sugerida,
dissentindo apenas pela utilização conjunta da análise dos atos de enunciação legislativa
com a hermenêutica histórica, pregada por José Souto Maior Borges, além do maior interrelacionamento do Direito Tributário com outros ramos dogmáticos (cf. adiante).
Caso adotada a presente proposta pelo Supremo Tribunal Federal, os
legiferados (não só os contribuintes, como também o Estado) terão um subsídio a mais a
determinar o regramento das suas condutas, e mitigada estará a possibilidade de inúmeras
interpretações ao texto legislativo, pois, ao menos uma delas já será de conhecimento geral
(aquela decorrente das razões do ato legislativo). Vejamos, portanto seus demais
fundamentos.
19.b.)
Necessidade de motivação dos atos emanados pelo Estado.
No regime constitucional antecedente a 1988, muito se discutia sobre a
efetiva necessidade de motivação dos atos estatais, mesmo dos atos administrativos,
107
Heck, Philipp. Interpretação da lei e jurisprudência dos interesses, in Coleção Stvdivm – Temas
132
fazendo-se uma distinção entre a necessidade de motivação dos atos vinculados e a
desnecessidade de motivação dos atos discricionários108. Porém, todo ato de aplicação do
Direito pode ser tido como discricionário e vinculado. Assim, este dualismo é equivocado.
A diferença entre um e outro – discricionário e vinculado – não é de essência, mas de
graduação. Um ato sem nenhuma vinculação seria extrajurídico (político).
Com o advento da Constituição de 1988, a necessidade de motivação dos
atos estatais adquiriu ampla difusão na sua utilização por parte dos operadores jurídicos, em
virtude dos diversos dispositivos constitucionais que lhes atribuíam competência para tal
aplicação (Princípios Republicano, da Legalidade, Moralidade, Publicidade, Devido
Processo Legal, Contraditório, etc.).
Como exposto acima, foi com base no Princípio Democrático que os
deputados e senadores constituintes (ainda que não eleitos para este fim) elaboraram o
Texto Constitucional de 1988, pela outorga de poder que lhes fora conferida pelo próprio
povo, para exercício dos respectivos mandatos, que, em princípio, tinham função
meramente legislativa, e a posteriori, foram “complementados” com a função constituinte.
Imbuídos, assim, do poder constituinte originário (sem mencionarmos a
questão relativa à sua legitimidade), os constituintes elaboraram o Texto da Constituição
Federal de 1988, e estabeleceram como sobreprincípio a prevalecer sobre os demais
princípios constantes do nosso ordenamento o Princípio Democrático (art. 1º, caput e
parágrafo único, da Constituição Federal).
Como uma das formas possíveis de se atribuir amplo alcance ao Princípio
Democrático, estabeleceram os constituintes a previsão de eleições diretas para os
principais agentes políticos da República (membros do Poder Legislativo e Executivo –
arts. 27, 28 e 29, 45, 46 e 47, e 76 a 82 da CF), além de terem vinculado toda a competência
tributária ao Princípio da Reserva Legal (art. 150, I, CF).
Filosóficos, jurídicos e sociais. Livraria Acadêmica. Saraiva e Cia. Editores. São Paulo: 1947, p. 19.
108
Conforme bem descrito por Cintra, Antonio Carlos de Araújo. Motivo e motivação do ato administrativo.
RT. São Paulo:1979, pp. 121-126.
133
Com base na competência tributária estabelecida pelo legislador
constituinte, as pessoas constitucionais investidas da competência para legislar
estabeleceram, por intermédio de seus órgãos legislativos (Congresso Nacional,
Assembléias Legislativas Estaduais, Câmaras de Vereadores Municipais), determinadas
exações tributárias, na conformidade das respectivas previsões constitucionais (arts. 153 a
156, CF).
Por sua vez, o Poder Executivo procede à fiscalização e cobrança do tributo,
normalmente, com base no entendimento que lhe seja mais favorável (vantajoso
economicamente, inclusive, por uma questão de eficiência administrativa, como visto).
Contudo, e imprescindivelmente, sempre o fará fundado no veículo introdutor da referida
exação. Assim também o faz o contribuinte, embora em contraposta interpretação que,
igualmente, lhe é economicamente mais favorável, por razões de lógica empresarial - valor
devidamente amparado pelo Texto Constitucional (v. arts. 1º, IV e 170, parágrafo único).
O fato de a atividade de ambos ser pautada com base em previsão constante
do texto legislativo decorre da própria vinculação de todos os legiferados à legalidade,
conforme estabelecida não só pelo art. 5º, caput, e em decorrência do Princípio
Republicano (art. 1º), mas, especificamente, no caso da Administração Pública, pelo art. 37,
da CF:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos
princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 19, de 1998)”
Todavia, a despeito da previsão do dispositivo do art. 37 acima transcrito
não se apresentar de forma constitucionalmente expressa, decorrendo de construção
doutrinária e jurisprudencial, a necessidade de motivação dos atos estatais somente veio a
ter maior aplicação com o advento da Lei n.º 9.784/99, onde percebe-se a sua imposição
por vários momentos, a começar pelo art. 2º, e vários dos seus incisos, do art. 50, etc.:
134
“Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios
da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade,
moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse
público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre
outros, os critérios de:
I - atuação conforme a lei e o Direito;
II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial
de poderes ou competências, salvo autorização em lei;
(...)
VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações,
restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias
ao atendimento do interesse público;
VII - indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a
decisão;
VIII – observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos
administrados;
IX - adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de
certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;
X - garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações
finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de
que possam resultar sanções e nas situações de litígio;
(...)
XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta
o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa
de nova interpretação.”
No art. 50 temos a necessidade de motivação dos atos administrativos, ainda
de forma mais clara:
“CAPÍTULO XII
DA MOTIVAÇÃO
Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos
fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:
I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;
II - imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;
(...)
V - decidam recursos administrativos;
VI - decorram de reexame de ofício;
VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou
discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais;
VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato
administrativo.
135
§ 1o A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir
em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres,
informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante
do ato.
(...)
§ 3o A motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou de
decisões orais constará da respectiva ata ou de termo escrito.”
Da leitura dos dispositivos da Lei n.º 9.784/99 acima transcritos,
percebemos
claramente
a
preocupação
do
legislador
infraconstitucional,
em
complementação ao já disposto na Constituição, em atribuir maior evidência ao comando
pela necessidade de motivação das decisões e atos administrativos, assegurando aos
administrados, dentre outras garantias constitucionais, o pleno exercício do contraditório e
da ampla defesa.
Vale mencionar, também, que, de acordo com a própria Lei, suas
disposições se aplicam também aos Poderes Legislativo e Judiciário, no tocante ao
desempenho de suas funções atípicas (administrativas), nos termos do art. 1º, §1º:
“Art. 1o Esta Lei estabelece normas básicas sobre o processo
administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta,
visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor
cumprimento dos fins da Administração.
§ 1o Os preceitos desta Lei também se aplicam aos órgãos dos Poderes
Legislativo e Judiciário da União, quando no desempenho de função
administrativa.”
Entretanto, a previsão constante do art. 1º, §1º, incorre em equívoco quando
da restrição relativa ao âmbito material de validade dos atos sujeitos à imposição de
motivação, em razão da impossibilidade constitucional de limitação, por lei, da necessidade
de motivação apenas aos atos de gestão administrativa dos Poderes Legislativo e Judiciário.
Pregamos, nesse aspecto, a necessidade de motivação também dos atos legislativos.
Primeiramente, porque, em relação ao Poder Judiciário, a necessidade de
motivação decorre da leitura do art. 93, IX e X, da CF, que estabelece, expressamente, a
motivação das decisões judiciais e administrativas emanadas pelo Poder Judiciário:
136
“Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal,
disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes
princípios:
(...)
IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e
fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei
limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus
advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito
à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à
informação; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 45, de 2004)
X as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão
pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de
seus membros; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”
Contudo, a necessidade de motivação dos demais atos estatais, e não
somente os provenientes do Poder Judiciário, decorre não só dos Princípios da Legalidade e
Moralidade, constantes do art. 37, mas principalmente do próprio Princípio Republicano,
constante do art. 1º, caput, bem como de outros princípios e garantias fundamentais do
ordenamento (Contraditório, Ampla Defesa, Publicidade, etc.).
Embora a necessidade de motivação seja um tanto mais controversa no
tocante ao Poder Legislativo, entendemos também estar o legislador a ela vinculado, por
uma questão de legitimação mesmo do seu mandato representativo, e em uma aplicação
ampla dos ditames introduzidos pelo Princípio Democrático (ex.: Princípios Republicano,
da Legalidade, Moralidade, Publicidade, Contraditório, Ampla Defesa, etc.). Ademais, não
há como negar a necessidade de motivação dos atos legislativos, inclusive, por uma questão
de respeito ao Princípio da Isonomia, que deve nortear também a relação entre os Poderes
da República (Legislativo, Executivo e Judiciário).
Atente-se que o Supremo Tribunal Federal vem decidindo, de forma quase
pacífica, pela necessidade de motivação dos atos estatais, seja em relação ao Judiciário, seja
em relação ao Executivo, atentando que, por muitas vezes, os fundamentos utilizados nas
decisões se aplicam também aos atos emanados do Legislativo, por simples adequação
lógica:
137
“RE 235487/RO – RONDÔNIA
Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO
Julgamento: 15/06/2000 Órgão Julgador: Primeira Turma
EMENTA: ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MAGISTRADO.
PROMOÇÃO POR ANTIGUIDADE. RECUSA. INDISPENSABILIDADE
DE FUNDAMENTAÇÃO. ART. 93, X, DA CF. Nulidade irremediável do
ato, por não haver sido indicada, nem mesmo na ata do julgamento, a razão
pela qual o recorrente teve o seu nome preterido no concurso para
promoção por antiguidade. Recurso provido.”
“HC 68571/DF - DISTRITO FEDERAL
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO
Julgamento: 01/10/1991 Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA
Ementa - AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO DO ATO JUDICIAL INOCORRENCIA - OBSERVÂNCIA DO ART. 93, IX, DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL (...)- A ofensa ao dever constitucional de fundamentar as
decisões judiciais gera a nulidade do julgamento efetuado por qualquer
órgão do Poder Judiciário. Os magistrados e Tribunais estão vinculados, no
desempenho da função jurisdicional, a essa imposição fixada pela Lei
Fundamental da Republica. A exigência de motivação dos atos decisórios
constitui fator de limitação do arbítrio do Estado e de tutela dos direitos das
partes que integram a relação processual. A decisão ora impugnada
apresenta-se suficientemente motivada. A analise de sua estrutura formal
evidencia, de modo destacado, a exposição dos motivos de fato e de direito
que conduziram a prolação desse ato decisório. (...).”
“MS 25295/DF - DISTRITO FEDERAL
Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA
Julgamento: 20/04/2005 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE
SEGURANÇA. MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. UNIÃO FEDERAL.
DECRETAÇÃO DE ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA NO SISTEMA
ÚNICO DE SAÚDE NO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. (...). Ordem
deferida, por unanimidade. (...) Ressalvas do relator quanto ao fundamento
do deferimento da ordem: (i) ato sem expressa motivação e fixação de prazo
para as medidas adotadas pelo governo federal; (...)”
“ADI-MC 325/DF - DISTRITO FEDERAL
Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES
Julgamento: 17/08/1990 Órgão Julgador: TRIBUNAL PLENO
Ementa - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO
N. 99.300, DE 15.6.1990, QUE REGULOU A DISPONIBILIDADE DE
SERVIDORES PUBLICOS, COM VENCIMENTOS PROPORCIONAIS, E
DO DECRETO N. 99.307, DA MESMA DATA, QUE DECLAROU
DESNECESSARIOS CARGOS E EMPREGOS DO QUADRO E TABELA
138
PERMANENTES DOS EXTINTOS MINISTERIOS DA FAZENDA E DO
DESENVOLVIMENTO, DA INDUSTRIA E DO COMERCIO E
COORDENAÇÃO DA PRESIDENCIA DA REPUBLICA. (...) 3. NOS
TERMOS EM QUE DEDUZIDOS, NA INICIAL, NÃO SE MOSTRAM
RELEVANTES, 'PRIMA FACIE', OS FUNDAMENTOS DA AÇÃO, NO
PONTO EM QUE SUSTENTAM HAVER O DECRETO N. 99.307
VIOLADO OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA IMPESSOALIDADE,
DA MORALIDADE E DA MOTIVAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO. (...)
DECISÃO DO RELATOR REFERENDADA PELO PLENÁRIO.”
Desse último julgado percebe-se, inclusive, não discordar o Tribunal da
necessidade de motivação dos atos administrativos normativos, a despeito do julgamento
pela improcedência do pedido, ante a prejudicialidade da questão em lide anterior, além da
impossibilidade jurisprudencial de controle de legalidade de decreto pela jurisdição
constitucional do Pretório.
Vemos, portanto, da própria jurisprudência do Tribunal ser clara a
necessidade de motivação dos atos emandos pelo Poder Judiciário e pelo Poder Executivo,
ainda que, a conclusão seja mais freqüente em relação ao atos de caráter nitidamente
normativo.
A doutrina administrativista não discorda da necessidade de fundamentação
dos atos estatais, indicando a existência de uma correlação entre a motivação e o Estado
Democrático de Direito109:
“No arbítrio não há qualquer espaço para o dever de motivação dos atos
jurídicos do Estado, uma vez que a legitimação da decisão se faz mediante
sua mera imposição material. Logo é manifesta a correlação entre a
necessidade de fundamentação dos atos estatais e o Estado Democrático de
Direito, no qual a legitimidade da decisão pressupõe a oportunidade ao seu
destinatário de compreendê-la e contestá-la.”
Em aplicação da doutrina acima transcrita, percebemos que a necessidade de
motivação do ato legislativo permite não só a compreensão do alcance do texto legislativo
109
Andrade, José Carlos Vieira de. O dever de fundamentação expressa dos actos administrativos, p. 15.
Coimbra. Almedina:2002 apud França, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo.
Coleção temas de direito administrativo, n.º 18, p. 93.
139
por parte dos legiferados, como também, a possibilidade de contestação da sua legitimidade
perante o Poder Judiciário.
Cabe a ponderação no sentido de que não desconhece o autor a possibilidade
de eventual hesitação do Poder Judiciário em aplicar a proposta ora sugerida num caso
concreto, pelo receio de uma suposta interferência sobre o Poder Legislativo, em
malferimento ao Princípio da Tripartição de Poderes.
Contudo, e a bem da verdade, cumpre esclarecer que não há falar em
violação à Tripartição de Poderes, mas, sim, em exercício da sistemática constitucional de
de freios e contrapesos (harmonia entre os Poderes – art. 2º, CF), pela aplicação de outros
princípios constitucionais (como visto, os Princípios Republicano, Federativo, Moralidade,
Legalidade, etc.).
É decorrência do sistema de freios e contrapesos que, da mesma forma com
que há um certo controle do Poder Judiciário sobre todos os atos provenientes do Poder
Executivo e Legislativo, estes também promovem, por intermédio de vários dentre seus
órgãos, um certo controle sobre o Poder Judiciário (ex.: fiscalização das contas dos
Tribunais Judiciários pelos Tribunais de Contas, nomeação dos Ministros de Tribunais
Superiores pelo Presidente da República, etc.), conforme se depreende dos próprios
julgados da Corte:
“ADI 2911/ES - ESPÍRITO SANTO
Relator(a): Min. CARLOS BRITTO
Julgamento: 10/08/2006 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
EMENTA:
CONSTITUCIONAL.
AÇÃO
DIRETA
DE
INCONSTITUCIONALIDADE.
IMPUGNAÇÃO
DA
EXPRESSÃO
"PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA", CONTIDA NOS §§ 1º E 2º
DO ART. 57 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Os
dispositivos impugnados contemplam a possibilidade de a Assembléia
Legislativa capixaba convocar o Presidente do Tribunal de Justiça para
prestar, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado,
importando crime de responsabilidade a ausência injustificada desse Chefe
de Poder. Ao fazê-lo, porém, o art. 57 da Constituição capixaba não seguiu
o paradigma da Constituição Federal, extrapolando as fronteiras do
140
esquema de freios e contrapesos -- cuja aplicabilidade é sempre estrita ou
materialmente inelástica -- e maculando o Princípio da Separação de
Poderes. Ação julgada parcialmente procedente para declarar a
inconstitucionalidade da expressão "Presidente do Tribunal de Justiça",
inserta no § 2º e no caput do art. 57 da Constituição do Estado do Espírito
Santo.”
Muito mais do que uma simples categoria perceptível da análise do direito
constitucional positivo, a sistemática de freios e contrapesos decorre da própria noção de
Tripartição de Poderes (elemento de Teoria Geral do Direito). Todavia, como em termos
dogmáticos o que importa ao estudo jurídico de determinado instituto é o seu tratamento
normativo, da análise da tripartição, conforme disposta no ordenamento constitucional
impõe-se a igualdade no tratamento aos Poderes da Federação.
Assim sendo, vejamos com maior profundidade o porquê da necessidade de
motivação também dos atos legislativos, assim como ocorre com os demais atos estatais,
provenientes do Poder Executivo e do Poder Judiciário.
19.c.)
Necessidade de motivação dos atos emanados pelo Poder Legislativo A “mens legislatoris” como requisito constitucional de validade do ato
legislativo objetivado – Os atos de enunciação como requisitos de
motivação do ato legislativo.
Como visto do item anterior, a necessidade de motivação dos atos estatais
decorre da própria eficácia do Princípio Democrático, que, ao surtir seus efeitos ao longo
do sistema jurídico, impõe a necessidade de exposição dos atos de enunciação
(procedimento de formação do ato normativo) do ato enunciado (veículo introdutor da
norma jurídica tributária), inclusive, em relação ao processo legislativo.
Assim sendo, propomos a utilização de um conceito alternativo para a mens
legislatoris, sendo esta entendida não como um desejo íntimo do legislador, mas como um
requisito constitucional de validade do ato legislativo (normativo), sua fundamentação
devidamente objetivada, pela forma que melhor aprouver ao legislador na persecução do
141
fim constitucionalmente delimitado de atribuir publicidade à motivação, seja por
intermédio das exposições de motivos, seja pelos considerandos legislativos, seja pelas
justificativas de proposições, seja pelos anais legislativos, etc.. Algum dentre esses
elementos há de espelhar as discussões travadas a respeito de determinado projeto de lei e o
entendimento congressual prevalecente, que fez com fosse aprovada ou rejeitada
determinada parte do texto originalmente proposto, as razões do veto parcial, etc..
Veja-se que não é outra a conclusão resultante da verificação efetuada por
José Afonso da Silva, na sua obra “Processo Constitucional de Formação de Leis”110, onde
assinala a vontade do legislador como sendo objetivada na proposição do projeto de lei, até
que seja aprovado por uma das Câmaras, momento a partir do qual deixará de ser
considerado como um ato denotativo da vontade do parlamentar, para denotar a vontade
(finalidade que se deseja atribuir à norma jurídica) do próprio parlamento:
“Ficou dito que, entre interesses contrastantes, o titular do poder de
iniciativa realiza uma escolha daqueles que quer ver tutelados por lei.
É essa escolha que predetermina o ato de apresentação do projeto de lei,
como objeto do poder de iniciativa. Por onde se vê que a apresentação do
projeto, propulsor do procedimento legislativo, constitui um ato
procedimental, regido pela escolha em relação à matéria e interesses a
serem regulamentados. Pois bem: ao exercer o poder de iniciativa, o titular
pretende exatamente isso: que a matéria e os interesses configurados no
projeto apresentado recebam regulamentação legislativa na forma
específica indicada na proposta; que, enfim, se promulgue uma lei,
regulando aquela dada matéria e os interesses ligados a ela na forma
pretendida e contida na proposição.
Resulta daí que a vontade do proponente, manifestada através do projeto de
lei apresentado, continua a ser vontade do proponente até que a sua
aprovação, por uma das Câmaras, impeça que assim possa ainda ser
considerado.”
Remetemos, também, a atenção para a obra sobre técnica legislativa do Prof.
Mayr Godoy, que se pronuncia pela exposição de motivos como elemento aclarador do
direito a ser aplicado pelos legiferados, na regulação das suas condutas111:
110
Silva, José Afonso da. Processo constitucional de formação das leis. 2ª ed., 2ª tiragem, Malheiros. São
Paulo: 2007, p.188.
111
Godoy, Mayr. Técnica constituinte e técnica legislativa. Leud. São Paulo: 1987, p. 168.
142
“A anexação da exposição de motivos ao projeto encaminha o debate
parlamentar, podendo ir adiante dele, integrando-se à futura lei, como
documento aclarador do direito (...)”
Atente-se que vários são os documentos legislativos sobre os quais pode se
debruçar o intérprete/aplicador na persecução do sentido normativo que quis atribuir o ente
legislativo ao texto de lei, destacando o Prof. Mayr Godoy alguns dentre eles (a justificativa
do projeto, a mensagem do Executivo, os pareceres das comissões, as justificativas
parlamentares, as emendas, as razões de veto, etc.).
Outra não é a opinião de Philipp Heck, que descrevendo a sua Investigação
Histórica de Interesses afirma de forma bastante esclarecedora112:
“A investigação histórica dos interesses é aconselhada pela simples
consideração de que todos os interesses da comunidade que foram causa da
lei e nesta devem achar proteção, são desse modo mais seguramente
garantidos.
(...) É quase evidente que a comunidade jurídica tem um grande interesse
em conseguir, por meio da lei, os resultados que pretendia, e não outros,
diferentes ou até opostos. A comunidade jurídica também quer, com a lei,
obter determinados efeitos. Se estes efeitos se não produzem, os interesses
legislativos são prejudicados. E a consciência comum reage mais vivamente
quando a frustração de efeito da lei resulta da ação consciente dos
tribunais, instituídos para sua garantia. Tudo isso é evidente. (...)
Frustração da lei pela interpretação não histórica – é igualmente certo que
o juiz, abandonando a interpretação histórica, compromete inevitavelmente
o êxito da lei. (...)
Assim compreendida, a investigação tem objecto real: não procura a
vontade psicológica, mas, correspondentemente à determinação da vontade
normativa na vida corrente (...) os interesses causais.”
Prosseguindo no desenvolvimento do raciocínio, afirma Heck de forma
ainda mais contundente113:
112
Heck, Philipp. Interpretação da lei e jurisprudência dos interesses, in Coleção Stvdivm – Temas
Filosóficos, jurídicos e sociais. Livraria Acadêmica. Saraiva e Cia. Editores. São Paulo: 1947, p. 66-71.
143
“É simplesmente notório que as leis não caem do céu, nem são o efeito das
forças naturais (...), mas resultam dum esforço humano. É certo que nem
sempre se pode conhecer a situação na sua totalidade, mas isso não é razão
para a desprezar quando é possível conhecê-la.(...)”
Vale ressaltar que, a despeito da inexistência de dispositivo expresso
determinando a motivação dos atos legislativos, como visto, duma análise sistemática do
nosso ordenamento, extrai-se essa imposição constitucional, como uma decorrência de
várias outras normas-princípio, como por exemplo, aquelas constantes dos arts. 1º, caput
(Princípio Republicano), 5º, II, LIV, LV (Legalidade, Contraditório, e Ampla Defesa), 37,
caput (Legalidade Administrativa, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência),
dentre outras.
Boa parte da doutrina administrativista também concorda com o ponto de
vista ora exposto, pela necessidade de motivação do ato legislativo, indicando, inclusive,
sirva sua fundamentação à interpretação dos respectivos atos114:
“A motivação do ato legislativo é, evidentemente, bem diversa daquela
constante no ato administrativo. O regime jurídico do ato legislativo já
outorga uma ampla publicidade no processo de sua expedição, permitindo a
participação dos cidadãos mediante seus representantes115.
Aí, a fundamentação do ato legislativo serve exclusivamente para fornecer
elementos para a interpretação de seu conteúdo116.
Raciocínio similar deve ser empregado para os atos normativos, nos quais a
motivação se consubstancia em seus considerandos. Inclusive, o controle de
constitucionalidade das leis e atos normativos não aprecia os respectivos
motivos, embora a Administração possa ser compelida a explicar as razões
de atos normativos que impliquem intervenção no domínio econômico.
Envolvendo-se matéria tributária, há controvérsia quanto à obrigatoriedade
113
Op. cit., pp. 80Andrade, José Carlos Vieira de. O dever de fundamentação expressa dos actos administrativos, p. 15.
Coimbra. Almedina:2002 apud França, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo.
Coleção temas de direito administrativo, n.º 18, p. 93 e 94.
115
Araújo, Florisvaldo Dutra, Motivação e controle do ato administrativo. pp. 20-23, Ed. Del Rey, Belo
Horizonte: 1992; e Gomes Filho, Antonio Magalhães, A motivação das decisões penais, pp. 77-78. RT. São
Paulo: 2001, apud França, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo. Coleção temas
de direito administrativo, n.º 18, p. 93 e 94.
116
Andrade, José Carlos Vieira de. O dever de fundamentação expressa dos actos administrativos, p. 15.
Coimbra. Almedina:2002 apud França, Vladimir da Rocha. Estrutura e motivação do ato administrativo.
Coleção temas de direito administrativo, n.º 18, p. 93.
114
144
de sua fundamentação quando envolve a alteração de alíquotas117. Mas a lei
pode eventualmente exigir fundamentação expressa desses provimentos.”
Atente-se para a parte final da transcrição doutrinária, que menciona decisão
do STF (RE n.º 222.330-CE) em que supostamente teria se decidido pela desnecessidade de
exposição de motivos pela Administração, quando da majoração de alíquota do IPI. Na
realidade, decidiu o tribunal pela existência de motivação do ato no processo administrativo
que resultou na majoração da alíquota, conforme transcrição de sua ementa:
“RE 222330/CE – CEARÁ
Relator(a): Min. MOREIRA ALVES
Julgamento: 20/04/1999 Órgão Julgador: Primeira Turma
II - A motivação do decreto que alterou as alíquotas encontra-se no
procedimento administrativo de sua formação, mesmo porque os motivos do
decreto não vêm nele próprio. (...).”
Em relação aos atos provenientes do Poder Executivo e do Poder Judiciário,
como visto, estes vem sendo motivados de acordo com as interpretações que os referidos
Poderes resolvam adotar, as quais, ainda que vinculadas ao Texto Constitucional e/ou
legislativo, encontram na atual concepção da mens legis a sua legitimidade jurídica (numa
mens legis, digamos, inicial e particular de cada ente).
Já no tocante ao Poder Legislativo, costuma-se afirmar, com bastante
freqüência nos bancos acadêmicos, que não cabe ao intérprete/aplicador adivinhar o intuito
do Poder Legislativo na edição de determinado texto legislativo; buscar a chamada mens
legislatoris.
Contudo, tomando por base a premissa assumida na primeira parte do
presente trabalho do Princípio Democrático como norma jurídica fundante da atividade
jurídica, e por conseqüência, da atividade tributária estatal, bem como, a concepção da
mens legislatoris como resultado da imposição constitucional de motivação do ato
legislativo, na conformidade da doutrina e dos dispositivos constitucionais aventados,
propomos a presente alternativa de interpretação e aplicação, fundada, inclusive, com base
117
A favor REsp 40.719, contra RE 222.330-CE.
145
na jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal – órgão legitimado para jurisdição
constitucional última.
20.
Nova proposta de interpretação/aplicação no Direito Tributário dos
desdobramentos do Princípio Democrático, como norma jurídica fundante da
atividade (tributária) estatal
Além da demonstração do Princípio Democrático como norma jurídica
fundante da atividade tributária estatal - não somente pela sua prevalência sobre as demais
normas constantes do ordenamento, mas, principalmente, pelas suas implicações diretas na
questão da competência tributária -, consiste objetivo secundário do presente trabalho a
propositura de uma nova alternativa hermenêutica, decorrente da consideração da premissa
inicial de prevalência do Princípio Democrático, sobretudo pela utilização dos seus
desdobramentos no sistema jurídico como subsídios ao ato de interpretação/aplicação do
Direito Tributário positivo.
Essa nova proposta consistirá na utilização de dois elementos (fases não
necessariamente ordenadas) no ato de interpretação/aplicação do Jurídico, conforme
descritos adiante.
Primeiramente, na utilização da hermenêutica histórica, como método de
interpretação (não absoluto), agregada à inovação pela consideração do disposto nos atos de
enunciação legislativa/normativa (as exposições de motivos, considerandos, justificativas
de proposições, anais congressuais, etc.) como subsídios ao ato de interpretação/aplicação
do Direito Tributário. Essa metodologia caracterizaria o primeiro e mais inovador, dos dois
elementos componentes da nossa proposta de interpretação/aplicação do Jurídico.
O segundo e preponderante elemento proposto, é caracterizado pela própria
Dogmática Jurídica, sendo esta entendida, contudo, numa acepção mais ampla, com um
maior interdisciplinamento do Direito Tributário positivo com os demais ramos do qual é
derivado (Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Financeiro, etc.),
146
conjugado aos métodos tradicionais de interpretação do ordenamento, tais como o
sistemático e o finalístico, ou seja, levando-se em conta o próprio fim do Estado (Bem
Comum), conforme já adiantamos nos itens 3 e 4, e ora será sintetizado no item 20.b.
Vale salientar que, a proposta do presente trabalho restringe-se apenas a uma
maior abrangência da Dogmática Jurídica agregada à utilização dos atos de enunciação
como elementos de influência na análise normativa do texto legislativo, e não pela
consideração desses atos como únicos elementos vinculantes de interpretação/aplicação do
Direito Tributário, a influenciar-lhes de forma isolada, é dizer, excludente de outras
perspectivas hermenêuticas.
Vejamos, portanto, a síntese da nossa proposta de interpretação/aplicação
dos desdobramentos do Princípio Democrático no âmbito do Direito Tributário positivo.
20.a.)
Da hermenêutica histórica agregada à utilização da análise dos atos
de enunciação118 legislativa.
Como parte introdutória do primeiro critério a ser utilizado em nossa
proposta de interpretação/aplicação dos desdobramentos do Princípio Democrático no
âmbito do Direito Tributário, quase que num dever de gratidão – científica, bairrista e
sentimental - fazemos menção à necessidade de adoção, inicialmente, por parte do
intérprete/aplicador do método indicado por José Souto Maior Borges como sendo dos
mais adequados à verificação do alcance da norma jurídica: a hermenêutica histórica.
Ensina Souto Maior Borges que a hermenêutica histórica constitui método
diverso de interpretação da hermenêutica histórico-evolutiva, pois ao invés de analisar a
evolução de determinada categoria legal ou conceito científico ao longo do tempo, a
118
A respeito do processo de enunciação, vide também Moussalém, Tárek Moysés Moussalem. Fontes do
direito tributário. Max Limonad. São Paulo: 2001. Já em relação ao processo legislativo, vide Silva, José
Afonso da. Processo Constitucional de Formação das Leis. 2ª ed., 2ª tiragem. Malheiros. São Paulo:2007.
147
hermenêutica histórica nada mais faz que dar o passo atrás, o retorno à origem119.
Atente-se que, o método interpretativo do Prof. Souto Maior Borges deriva
da obra de Lourival Vilanova, a quem remete a leitura120, após afirmar em conclusão do
seu raciocínio:
“Trata-se de uma escavação conceitual; ir ao fundo dos fundamentos das
categorias científicas.
(...)
A hermenêutica histórica corresponde, pela volta ao passado, à uma ruptura
epistemológica fundamental. É radical porque vai à raiz do conhecimento
dos fenômenos normativos que o jurista pretende descrever e explicar.
Paradoxalmente, a suprema prudência do jurista postula um ato de
radicalização: ser radical é ir à raiz das coisas – como nô-lo ensinava
Marx.”
De acordo com o Professor Souto Maior Borges, a análise contextual
sugerida pelo elemento histórico não só permeia a criação das normas jurídicas (no
âmbito da linguagem-objeto), mas, também, deve influenciar a interpretação dessas
normas pelo jurista (metalinguagem descritiva).
Não obstante a inovação estabelecida com a hermenêutica histórica, como se
dá sua aplicação no âmbito do Direito Tributário?
Exemplifica Souto Maior Borges com o tratamento doutrinário no passado
atribuído ao fato gerador, indicando que, embora se trate de expressão reconhecidamente
ambígua nos dias de hoje - pela menção ao fato concretamente ocorrido (elemento
extranormativo) -, sem a teoria anterior, não se poderia chegar às conclusões vigentes
119
Borges, José Souto Maior. Teoria geral das isenções tributárias. 3ª ed., p. 134. Malheiros, São
Paulo:2001.
120
“Por isso ela opera um corte metodológico numa seriação de fatos históricos a serem
considerados:’corta-se a corrente do suceder histórico e a partir de um elo tem-se o ponto inicial ou ponto de
origem do ordenamento jurídico-positivo’ (Lourival Vilanova, Lógica Jurídica, p. 72)
Substitua-se a expressão ‘ordenamento jurídico-positivo’ por ‘instituto jurídico-positivo’ e aplicar-se-á,
como luva, essa lição à hermenêutica histórica, preconizada no presente estudo, até porque, noutro tópico,
Vilanova é explícito: ‘a pré-história e a história de um instituto de direito, ou de todo um ordenamento, são
problemas importantes para compreender-se o direito em suas projeções características, num dado tempo e
numa dada cultura’ (op. cit., p. 70)”.
148
sobre o fato jurídico tributário; à identificação da obrigação tributária; à determinação do
sujeito passivo da obrigação tributária; à fixação dos conceitos de incidência, não
incidência e isenção; à determinação do regime jurídico da obrigação tributária; à
distinção dos tributos in genere e à distinção dos impostos in specie; à classificação dos
impostos em diretos e indiretos; à eleição do critério para interpretação da lei tributária;
à determinação dos casos concretos de evasão; ao estabelecimento dos princípios de
atuação da discriminação constitucional de rendas com a definição da competência
impositiva e determinação dos casos de invasão de competência e de bitributação121, etc.
E mais: não seria possível alcançar a distinção superveniente entre “hipótese de
incidência tributária” e “fato concreto ocorrido”
A despeito da entusiástica adesão ao novo método, esclarece o Prof. Souto
Maior Borges em acertada ressalva:
“Propõe-se um novo método de exegese para as normas tributárias. E não o
único correto e verdadeiro. Não aspira, a hermenêutica histórica, substituir
os outros métodos exegéticos, mas pretende conviver com eles como um
instrumental valioso para o progresso da ciência do Direito Tributário.”
A referida ressalva se aplica, de igual modo, à proposta ora sugerida, pois
não pretende o autor a utilização isolada do método ora aventado, mas, sim, a sua
conjugação a outros critérios de interpretação/aplicação do Jurídico de equivalente valor
científico/normativo (ex.: métodos sistemático, finalístico, etc.).
Assim, empreende a hermenêutica histórica uma análise das circunstâncias
em que surgiu determinado texto normativo ou determinada teoria científica, sem,
contudo, examinar a evolução do conceito normativo ou da respectiva teoria, ao longo
do tempo (análise histórico-evolutiva). Esse, portanto, o método da hermenêutica
histórica.
121
Falcão, Amílcar de Araújo. O fato gerador da obrigação tributária, 1ª ed., p. 22. Financeiras, Rio de
149
Para não incorrermos em tautologia da obra dos ilustres Professores
pernambucanos, acreditamos propor verdadeira inovação ao sugerirmos a utilização da
hermenêutica histórica agregada à utilização dos atos de enunciação legislativa, como
sendo de extrema relevância à uma interpretação/aplicação do Direito Tributário
positivo, que seja mais adequada aos ditames do Princípio Democrático, conforme
abordamos no item 19, pela consideração dos seus desdobramentos intra-sistêmicos.
Veja-se que, a despeito da crítica pela impossibilidade de “psicanálise do
legislador”, a opinião doutrinária do ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Aliomar
Baleeiro, é no sentido do método proposto como sendo de valor inestimável, caso
adotado em conjunto com outros métodos como o sistemático e o finalístico, exatamente
como sugerido pelo presente trabalho122:
“De certo, os trabalhos preparatórios de elaboração da lei não são
decisivos. Decisivo por si só, sem consulta aos demais métodos de
interpretação, não é nenhum meio técnico de hermenêutica. (...)
Condena-se, não há dúvida, o abuso de aceitar-se como argumento de valor
absoluto e com caráter de interpretação autêntica, apenas o trabalho
preparatório, sobretudo, determinada peça, como, p. ex., o projeto
primitivo, a opinião de um parlamentar, a justificação da emenda
vencedora.
Mas os materiais legislativos, hoje como no passado, conservam valor
inestimável. Se documentam e revelam, por sua multiplicidade e
concordância entre si, os elementos decisivos para o processo teleológico e
sistemático.”
No mesmo sentido é a doutrina de Ezio Vanoni, que afirma que os atos
formalizadores do processo legislativo contribuem para o alcance interpretativo do
intuito estatal predominante na formação do texto legal123:
“Os trabalhos preparatórios permitem reconstituir o processo formativo da
vontade do Estado manifestada em forma de lei, e portanto, contribuem
para dar uma visão exata dessa vontade no momento da promulgação da
lei.”
Janeiro:1964.
122
Baleeiro, Aliomar. Clínica fiscal. Livraria Progresso Editora. Salvador, Bahia: 1958, p. 40.
123
Vanoni, Ezio. Natureza e interpretação das leis tributárias. p. 214.
150
Importante mencionar que o próprio Supremo Tribunal Federal já se
pronunciou sobre a alternativa proposta pelo presente trabalho, e decidiu pelos debates
parlamentares como sendo expressivos elementos de útil indagação das circunstâncias
que motivaram a elaboração de determinada norma inscrita na Constituição,
atribuindo-lhes efeitos para interpretação do alcance normativode norma constitucional:
“DEBATES
PARLAMENTARES
E
INTERPRETAÇÃO
DA
CONSTITUIÇÃO. - O argumento histórico, no processo de interpretação
constitucional, não se reveste de caráter absoluto. Qualifica-se, no entanto,
como expressivo elemento de útil indagação das circunstâncias que
motivaram a elaboração de determinada norma inscrita na Constituição,
permitindo o conhecimento das razões que levaram o constituinte a acolher
ou a rejeitar as propostas que lhe foram submetidas. Doutrina. - O registro
histórico dos debates parlamentares, em torno da proposta que resultou na
Emenda Constitucional nº 20/98 (PEC nº 33/95), revela-se extremamente
importante na constatação de que a única base constitucional - que poderia
viabilizar a cobrança, relativamente aos inativos e aos pensionistas da
União, da contribuição de seguridade social - foi conscientemente excluída
do texto, por iniciativa dos próprios Líderes dos Partidos Políticos que dão
sustentação parlamentar ao Governo, na Câmara dos Deputados
(Comunicado Parlamentar publicado no Diário da Câmara dos Deputados,
p. 04110, edição de 12/2/98). O destaque supressivo, patrocinado por esses
Líderes partidários, excluiu, do Substitutivo aprovado pelo Senado Federal
(PEC nº 33/95), a cláusula destinada a introduzir, no texto da Constituição,
a necessária previsão de cobrança, aos pensionistas e aos servidores
inativos, da contribuição de seguridade social.” (ADI-MC 2010/DF
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Julgamento: 30/09/1999, Órgão
Julgador: Tribunal Pleno)
Como visto do julgado acima, ao apreciar a primeira tentativa de instituição
das contribuições sociais sobre a remuneração paga aos servidores inativos, pronunciou-se
o Tribunal pela importância dos atos de enunciação normativa, como o são os debates
parlamentares que ocasionaram a exclusão de parte do texto da proposta que resultou na
Emenda Constitucional n.º 20/98, no processo de formação de sentido normativo, ainda que
não de forma absoluta, exatamente como ora proposto pelo presente trabalho.
151
Da leitura do acórdão acima transcrito, percebe-se que a proposta de
interpretação/aplicação dos desdobramentos do Princípio Democrático (no caso, dos
debates parlamentares), muito mais do que mera criação doutrinária do autor, caracteriza
técnica de decisão já utilizada pelo Pretório Excelso, que corrobora entendimento pela
relevância desses atos de enunciação legislativa na análise normativa.
Em outra decisão, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os considerandos
de atos estatais não possuem caráter normativo, caracterizando simples motivação do ato,
não sendo passíveis, assim, de controle quanto à sua constitucionalidade, advertindo-se que
se tratava de simples deliberação infralegal. Veja-se que, do ponto de vista extradogmático,
caso quisesse o Tribunal aplicar o mesmo fundamento à análise de ato normativo passível
de controle, incorreria em patente contradição, pois, se os considerandos configuram a
motivação do ato, esta nada mais seria que a manifestação da sua adequação ao direito
positivo, sendo passível, portanto, de apreciação pela Corte, caso versasse sobre matéria
constitucional:
“ADI-AgR 2071/SP - SÃO PAULO
Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES
Julgamento: 03/10/2001
Órgão Julgador: Tribunal Pleno
EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DE ATO ADMINISTRATIVO
DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA DE SÃO PAULO,
CONSISTENTE EM DELIBERAÇÃO SOBRE O PROSSEGUIMENTO DE
CONCURSO PÚBLICO DE PROVAS E TÍTULOS PARA OUTORGA DAS
DELEGAÇÕES DE NOTAS E DE REGISTRO. INADMISSIBILIDADE DA
A.D.I., POR NÃO SE TRATAR DE ATO NORMATIVO (ART. 102, I, "A",
DA C.F.). SEGUIMENTO NEGADO PELO RELATOR. AGRAVO
IMPROVIDO PELO PLENÁRIO. DECISÃO UNÂNIME. 1. O ato
impugnado na presente A.D.I. é mera deliberação administrativa, sem
nenhum caráter normativo, não passando seus "consideranda" de simples
motivação. Se esse ato é inconstitucional ou ilegal, é questão que se não
pode resolver no âmbito de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade,
perante esta Corte, pois nesta só se há de impugnar ato normativo (federal
ou estadual), nos termos do art. 102, I, "a", da Constituição Federal. 2.
Afora isso, o controle de constitucionalidade ou legalidade de ato
administrativo é feito, nas instâncias próprias, pelo sistema difuso. 3.
Agravo improvido.”
152
O Tribunal firmou também entendimento no sentido de que meros
considerandos não possuem eficácia normativa, e nem integram o conteúdo da norma
jurídica, a despeito dos considerandos apreciados pela Corte no caso específico
corresponderem à fundamentação de ato normativo infralegal (portarias), no dizer do
próprio relator, de caráter exclusivamente interno, e deixaram de ser apreciados em
controle de constitucionalidade, ante a impossibilidade do controle preventivo de atos
normativos, sem caráter legislativo formal:
“ADI 432/DF - DISTRITO FEDERAL
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO
Órgão Julgador: Tribunal Pleno
Ementa
ADIN
PORTARIAS
MINISTERIAIS
SERVIÇOS
DE
TELECOMUNICAÇÕES - SERVIÇO DE RADIOCOMUNICAÇÃO MOVEL
TERRESTRE RESTRITO CELULAR - SERVIÇO MOVEL CELULAR - ATOS
ADMINISTRATIVOS SEM CONTEUDO NORMATIVO - INEXISTÊNCIA
DA INCONSTITUCIONALIDADE POTENCIAL - A QUESTÃO DOS
"CONSIDERANDA" DO ATO ESTATAL E O JUÍZO DE
CONSTITUCIONALIDADE - AÇÃO DIRETA NÃO CONHECIDA. – (...) A
expectativa de comportamentos inconstitucionais, materializada pela
possibilidade de a Administração Pública, em atendimento a prescrições
ordinatórias destinadas a seus agentes, vir a produzir atos eivados de
inconstitucionalidade, não justifica que, com base nela, se venha a
aparelhar, perante o Supremo Tribunal Federal, a ação direta, cujo
pressuposto de atuação e a existência, efetiva e atual, de atos estatais
dotados de conteúdo normativo. - Meros "consideranda", que correspondem
a motivação do ato administrativo, não lhe integram o conteúdo e nem se
revestem de eficácia normativa. Eventuais vícios que se possam verificar
nos motivos do ato estatal não contagiam as normas nele veiculadas. O
juízo de constitucionalidade não incide sobre os motivos subjacentes a
formulação do ato estatal.”
Como visto, necessário ponderação na interpretação daquilo que foi
decidido pelo Pretório no julgado acima, pois, em realidade, não se conheceu da ação direta
pela natureza formal do ato (portaria - ato infralegal), que sequer havia sido editada pelo
Ministro das Telecomunicações (impossibilidade de controle de constitucionalidade de ato
vindouro).
153
Veja-se, em outro caso, que ao apreciar o Tribunal a aplicação de isenção
outorgada pela União de tributo estadual (ICMS) na importação de bem destinado ao ativo
fixo, sob a égide da Constituição de 1967, e Emenda Constitucional n.º 1/69, foi
reconhecido o direito adquirido do contribuinte ao benefício, em grande parte, pelo
acolhimento das razões dispostas na exposição de motivos interministerial posteriormente
aprovada pela Presidência da República, em franca manifestação jurisprudencial de
prestígio ao intuito prévio do poder normativo (exposição de motivos):
“RE 277372/SP - SÃO PAULO
Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO
Julgamento: 19/09/2000
Órgão Julgador: Primeira Turma
EMENTA: TRIBUTÁRIO. IMPORTAÇÃO DE BENS DESTINADOS AO
ATIVO FIXO. ISENÇÃO DE TRIBUTOS FEDERAIS (DL Nº 2.324/87) E,
CONSEQÜENTEMENTE, DE TRIBUTOS ESTADUAIS. ART. 1º, § 4º, VI,
DO DL Nº 406/68. INCIDÊNCIA DO ART. 41, §§ 1º E 2º, DO ADCT/88.
ALEGADA AFRONTA AOS ARTS. 151, III, DA PARTE PERMANENTE, E
34 E 41 DA PARTE TRANSITÓRIA DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. O
regime isentivo, de natureza setorial, teve sua vigência assegurada no
primeiro dispositivo constitucional transitório até outubro/90. Direito
adquirido acertadamente reconhecido pelo acórdão, em face da norma
contida no segundo dispositivo mencionado, tendo em vista tratar-se de
incentivo especificamente concedido por meio de exposição de motivos
interministerial aprovada pelo Presidente da República. Jurisprudência
assentada por ambas as Turmas desta Corte. Recurso não conhecido.”
Também com base na exposição de motivos de ato interministerial
posteriormente aprovado pelo Presidente da República restou não conhecido o RE 140896.
Da mesma forma, quando da apreciação da inconstitucionalidade de lei que
introduzia contribuição previdenciária para os servidores ativos e inativos do Distrito
Federal, pronunciou-se também o Tribunal pela consideração do disposto na exposição de
motivos do ato legislativo que a instituiu, a qual, agregada as informações prestadas pelo
Governador, foram suficientes ao não acolhimento do pleito.
154
“ADI-MC 2034/DF - DISTRITO FEDERAL
Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES
Julgamento: 09/02/2000
Órgão Julgador: Tribunal Pleno
EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL E PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI Nº 232, DE 13 DE
JULHO DE 1999, DO DISTRITO FEDERAL, QUE DISPÕE SOBRE A
ALÍQUOTA DA CONTRIBUIÇÃO PARA A PREVIDÊNCIA SOCIAL DOS
SERVIDORES PÚBLICOS ATIVOS E INATIVOS, E DOS PENSIONISTAS
DOS PODERES DO DISTRITO FEDERAL, SUAS AUTARQUIAS E
FUNDAÇÕES PÚBLICAS, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS. ALEGAÇÃO
DE VIOLAÇÃO AOS ARTS. 40, 149, PARÁGRAFO ÚNICO, 201, § 1º, E
150, IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MEDIDA CAUTELAR (ART. 170,
§ 1º, DO R.I.S.T.F.) 1. A Exposição de Motivos, que acompanhou o Projeto
de Lei, e as informações prestadas pelo Sr. Governador do Distrito Federal,
com os documentos que os instruíram, abalam, consideravelmente, os
fundamentos deduzidos na inicial, cuja relevância, portanto, resta, assim,
afetada. Na verdade, não conseguiu a autora demonstrar que a Lei em
questão tenha deixado de observar "critérios que preservem o equilíbrio
financeiro e atuarial", pois não ofereceu elementos seguros para uma
avaliação a respeito. E com os argumentos trazidos pelo Sr. Governador, é
de se presumir, por ora, a constitucionalidade da Lei, que visa, segundo
parece, restabelecer o equilíbrio necessário às finanças da previdência
social dos servidores do Distrito Federal, em proveito dos já aposentados e
dos que ainda vierem a se aposentar. 2. Também não se vislumbra, até aqui,
caráter de confisco na fixação da alíquota unificada de 11%. Ademais, uma
medida liminar somente deve ser concedida, em A.D.I., quando sopesados
os riscos que possam advir, seja da suspensão da Lei, seja de sua não
suspensão. No caso, são maiores os riscos da suspensão da Lei, em face dos
prejuízos que poderá trazer para todo o sistema de previdência social do
Distrito Federal, em detrimento de todos os seus beneficiários, atuais e
futuros. 3. Medida Cautelar indeferida.”
Percebe-se dos julgados acima uma tendência de utilização, pela
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, da proposta de interpretação/aplicação dos
desdobramentos do Princípio Democrático, no âmbito do Direito Tributário, conforme ora
exposto no presente trabalho.
Caso seja intensificada essa simples tendência, com a consideração pela
Corte da hermenêutica histórica, agregada à uma maior utilização da mens legislatoris,
como acima explanada (resultado da eficácia dos desdobramentos do Princípio
Democrático no ordenamento), criar-se-á um ambiente normativo mais estável para os
155
legiferados, que poderão pautar suas condutas não só com base no entendimento do
Judiciário sobre a matéria específica, como também, pela manifestação da finalidade
legislativa pretendida pelo legislador com determinado texto, atribuindo-se, assim, maior
segurança às relações entre os sujeitos-de-direito.
Por fim, não poderíamos deixar de mencionar a clássica obra sobre
Hermenêutica Jurídica de Carlos Maximiliano124, cujas categorias ora utilizamos, apenas na
tentativa de melhor sintetizar e comunicar a respeito da proposta de interpretação/aplicação
ora sugerida.
Ao dissertar sobre os métodos de hermenêutica e aplicação do Direito,
Maximiliano referiu-se, inicialmente com um certo sarcasmo, ao método da escolástica (ou
dogmática), como sendo decorrente do sistema tradicional, primitivo de Hermenêutica, ao
que se obstina jungir o Direito aos textos rígidos e aplicá-lo hoje de acordo com a vontade,
verificada ou presumida de um legislador sepultado.
Contudo, em seqüência, afirmou que em toda a escola teórica há um fundo
de verdade. Procurar o pensamento do autor de um dispositivo constitui um meio de
esclarecer o sentido deste; o erro consiste em generalizar o processo, fazer do que é
simplesmente um dentre muitos recursos da Hermenêutica – o objetivo único, o alvo
geral.125
A ponderação de Carlos Maximiliano é plenamente acolhida na presente
dissertação, que procura não limitar a atividade do julgador, pela conexão do método
escolástico com o método finalístico, conforme se depreende da sua descrição específica
para a atividade teleológica de interpretação126, em que:
“Levam-se em conta os esforços empregados para atingir determinado
escopo, e inspirados pelos desígnios, anelos e receios que agitavam o país,
124
Maximiliano, Cláudio. Hermenêutica e aplicação do direito. 9ª ed., 1ª tiragem. Forense. Rio de Janeiro:
1979.
125
Op. cit., p. 44.
126
Op. cit., p. 152.
156
ou o mundo, quando a norma surgiu. O fim inspirou o dispositivo; deve, por
isso mesmo, também servir para lhe limitar o conteúdo; retifica e completa
os caracteres na hipótese legal e auxilia a precisar quais as espécies que na
mesma se enquadram.”
Da sua descrição das regras que servem para completar a doutrina acerca do
emprego do elemento teleológico, temos a correspondência de parte da proposta de
interpretação/aplicação sugerida, com esse método interpretativo127:
“Algumas regras servem para completar a doutrina acerca do emprego do
elemento teleológico; eis as principais:
a) As leis conformes no seu fim devem ter idêntica execução e não podem
ser entendidas de modo que produzam decisões diferentes sobre o mesmo
objeto.
b) Se o fim decorre de uma série de leis, cada uma há de ser, quanto
possível, compreendida de maneira que corresponda ao objetivo resultante
do conjunto.
c) Cumpre atribuir ao texto um sentido tal que resulte haver a lei regulado a
espécie a favor, e não em prejuízo de quem ela evidentemente visa a
proteger.
d) Os títulos, as epígrafes, o preâmbulo e as exposições de motivos da lei
auxiliam a reconhecer o fim primitivo da mesma.”
Assim, na tentativa de enquadrar a proposta de interpretação/aplicação ora
sugerida às categorias indicadas por Carlos Maximiliano, havemos de colocar o nosso
método como sendo mais aproximado dos seus critérios escolástico e finalístico. Não o
fazemos, contudo, de modo absoluto e excludente de outros métodos que, a depender das
circunstâncias do caso em concreto, possam ser utilizados em complemento (ex.: método
sistemático).
20.b.)
Dogmática Jurídica em sentido amplo.
Já adiantamos que não se pretende utilizar o método da hermenêutica
histórica agregada aos atos de enunciação normativa como excludente dos demais métodos
interpretativos/aplicativos das normas jurídicas, mas, sim, preconiza-se sua utilização como
um critério a mais, a fornecer um grau maior de objetividade aos legiferados,
157
principalmente no momento de pré-definição pelo Supremo Tribunal Federal da
interpretação que será tida como válida para determinado dispositivo constitucional.
Como segundo elemento hermenêutico, e não menos importante, temos a
Dogmática Jurídica em sentido amplo (v. item 4), que, de forma diversa do atualmente
pregado pelos dogmáticos mais radicais, necessariamente leva em conta outros ramos do
direito positivo, principalmente aqueles dos quais o Direito Tributário é subramo (Direito
Constitucional, Direito Financeiro e Direito Administrativo, etc.), para interpretação dos
seus ditames. Senão, vejamos.
20.b.1.) Necessário inter-relacionamento do Direito Tributário com os
demais ramos do Direito.
Como visto do item 4, antes de Kelsen o Direito não era reconhecido como
uma ciência autônoma, visto que chegou a ser identificado como simples capítulo da
Sociologia, e até como um mínimo ético por Jellinek, reduzido a um capítulo da moral. O
mesmo ocorreu com o Direito Tributário, cuja autonomia em termos científicos para com
os demais ramos do Direito, hoje em dia, é também, no geral reconhecida.
A lição de Lourival Vilanova que afirmava que o mundo dos fatos ingressa
no Jurídico através da porteira aberta da hipótese normativa, e a descrição constante do seu
antecedente, somente ajuda a comprovar a existência de uma interação entre o Direito e os
demais saberes científicos, mostrando-nos, também que uma análise valorativa é inevitável
à uma correta interpretação/aplicação do Direito.
Isso porque os valores permeiam todo o Texto Constitucional, como, p. ex.,
pelas previsões dos direitos sociais e individuais, da liberdade, da segurança, do bem-estar,
do desenvolvimento, da igualdade, e da justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social, etc..
127
Op. cit., p. 156.
158
Assim, além da hermenêutica histórica agregada à consideração da mens
legislatoris, conforme exposta (atos de enunciação como elementos viabilizadores da
legitimação do processo legislativo), pretendemos sugerir, como segundo aspecto da nossa
alternativa de interpretação/aplicação, um maior inter-relacionamento não só do Direito
com os demais saberes, mas, principalmente, do Direito Tributário com os ramos do direito
positivo dos quais é parte (Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito
Financeiro, etc.), e ainda, dos demais ramos que lhe parecem menos próximos (Direito
Civil, Direito Comercial, etc.).
Essa proposta, tem função interpretativa bipartida, a depender do ramo com
o qual se pretenda relacionado o Direito Tributário: se integrado com os ramos de “Direito
Público” dos quais é parte componente (Direito Constitucional, Direito Administrativo,
Direito Financeiro, etc.), há de se levar em conta sua vinculação ao conteúdo dos mesmos,
por atuarem como sobre-ramos continentes do Direito Tributário (ex.: destinação das
contribuições sociais como elemento determinante da sua legitimidade – matérias de direito
financeiro). Se integrado com os ramos que lhe são menos afetos (Direito Civil, Comercial,
etc.), necessariamente haverá de se respeitar, no âmbito tributário os conceitos
historicamente convencionados para os respectivos institutos jurídicos (ex.: faturamento,
para efeito de determinação da base de cálculo das contribuições para a seguridade social).
Alfredo Becker, em citação de Vittorio Berliri, já apontava, à sua época,
tendência do legislador tributário de desvirtuação dos conceitos jurídicos oriundos de
outros ramos do Direito128:
“Recomenda Luigi Vittorio Berliri o abandono, de uma vez para sempre, do
arbitrário expediente de atribuir ao legislador tributário (como se fosse um
outro legislador e, ainda por cúmulo, ignorante do direito) uma linguagem
sua própria que atribuiria a palavra ou expressão que tem um bem preciso e
conhecido significado jurídico, um esquisito significado novo de Direito
Tributário.”
128
Berliri, Luigi Vittorio. L’imposta di ricchezza mobile. Milano: 1949, p. 322. apud Becker, Alfredo
Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª ed., pp. 123-124, Lejus, São Paulo: 2002.
159
E conclui Becker com a sua verve habitual129:
“O costume de aceitar como coisa ‘óbvia’ o pseudoprincípio de que a regra
jurídica tributária teria finalidade diversa das regras jurídicas do direito
privado, tem gerado múltiplas confusões e doutrinas contraditórias. A
‘obviedade’, com que costuma ser aceito este pseudoprincípio, vê o
finalismo da regra jurídica tributária como se fosse uma espécie de divisor
de águas: a incidência da regra jurídica tributária cairia de um lado; a
incidência da regra jurídica do direito privado cairia do outro lado; e o
incidir deste lado seria diferente do incidir daquele outro lado.”
A simples consulta ao texto constitucional confirma a procedência da
doutrina do jurista gaúcho. A Constituição Federal ao instituir o Sistema Tributário
Nacional, não o fez somente pelas normas introduzidas pelos artigos constantes do Título
VI, Capítulo I, mas também por várias outras normas decorrentes de outros artigos
introdutores, como conseqüência do inter-relacionamento dos subsistemas jurídicos
positivos (vide, p. ex.: arts. 43, §2º, III, 177, §4º, dentre outros).
Noutro exemplo, para instituição e cobrança de contribuições à seguridade
social incidentes sobre a folha de salários, necessária a análise da presença de critérios
oriundos do Direito do Trabalho, como os requisitos necessários para uma caracterização
de uma relação como sendo empregatícia (habitualidade, onerosidade, subordinação, etc.),
conceitos estes que não pode o Direito Tributário desvirtuar, sob pena de incursão em grave
ofensa ao Princípio da Segurança Jurídica.
Assim, ao interpretar o Sistema Constitucional Tributário de forma
“sistemática”, o operador deve necessariamente levar em conta todo o contexto normativoconstitucional (e infraconstitucional), e não apenas a parte isolada do Sistema Tributário
Nacional, ou apenas a parte da Constituição dita tributária, tendo em vista que os
dispositivos alí inseridos relacionam-se com todo o texto constitucional (cânone
hermenêutico da totalidade do sistema jurídico de Alfredo Augusto Becker).
129
Becker, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª ed., pp. 125, Lejus, São Paulo: 2002.
160
Também da análise das contribuições sociais previstas no art. 149 da
Constituição Federal - cuja finalidade tem grande importância na delimitação do seu regime
jurídico-constitucional, percebemos, claramente, a interação entre o Direito Tributário, o
Direito Constitucional e o Direito Financeiro, pois, ainda que contrapostas ao art. 4º, II do
Código Tributário Nacional - que estabelece ser irrelevante para identificação da natureza
jurídica do tributo a destinação legal do seu produto -, temos patente que, com o advento da
Constituição Federal de 1988, em sentido diametralmente oposto, a efetiva destinação
(constitucional) do produto (elemento, em princípio, de Direito Financeiro) deve
necessariamente ser analisada pelo intérprete/aplicador.
Denunciou Roque Carrazza, que a competência tributária para instituição
das taxas em decorrência de serviços públicos, necessariamente decorre da competência
“administrativa” do ente político, constante dos arts. 21 a 32, CF 130. Ou seja, não adianta
determinado ente político que não a União (a título de exemplo, o Estado-membro),
pretender impor tributação mediante taxas sobre serviço postal, pois está esse serviço fora
do âmbito das suas competências131, sendo-lhe, por isso constitucionalmente vedada a
instituição da exação. Para chegar à tal conclusão, o ilustre Professor demonstra ter
efetuado análise da competência administrativa da União Federal (elemento de Direito
Administrativo
Constitucional),
o
que
corrobora
da
nossa
teoria,
quanto
à
imprescindibilidade do inter-relacionamento.
Do mesmo modo, afirma Luciano Amaro pela existência de um necessário
relacionamento do Direito Tributário com outros ramos do Direito132:
“Dado o caráter relativo da autonomia de qualquer ramo do direito, sempre
que se estuda essa questão têm de ser referidos os entrelaçamentos que
existem entre os vários setores do ordenamento jurídico. Obviamente, disso
não escapa o direito tributário, que se vale das construções elaboradas por
outros segmentos do direito, para, sobre elas, estruturar as relações
tributárias.”
130
Carrazza, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. Malheiros. São Paulo: 2003.
Como sabido por todos o serviço postal é de competência privativa da União (art. 22, V), exercido
atualmente pela ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (empresa pública federal).
132
Amaro, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. Saraiva. São Paulo: 1997, p. 11.
131
161
A intenção dos ilustres Professores coincide com a do presente trabalho:
denotar a impropriedade de uma análise dogmática do Direito Tributário desconsiderandose suas relações com o Direito Constitucional, o Direito Administrativo e o Direito
Financeiro, a título de exemplos (sobre-ramos continentes do Direito Tributário), sob o
pretexto de um corte metodológico mais estreito.
Veja-se que não há que se falar em inter-relacionamento sem que efetuado
um corte epistemológico, no nível da linguagem descritiva, ou um corte normativo, no
nível da linguagem-objeto, pois, para definir se determinado instituto foge ao âmbito de
regulação do Direito Tributário positivo, necessária uma noção prévia de quais os seus
limites e quais os limites do ramo dogmático continente do referido instituto que se
pretende aplicar.
Como visto dos itens 10 a 15, em todo sistema constitucional moderno, temse, em razão do princípio da hierarquia, uma sobreposição das normas constitucionais para
com as demais normas do sistema jurídico (escalonamento hierárquico das normas de
Kelsen).
A Constituição Federal (normas superiores) determina até certo ponto o
conteúdo e o procedimento de formação das normas que lhe são inferiores, o que já
denotaria como característica própria do sistema, um relacionamento de subordinação das
normas constitucionais para com as normas infraconstitucionais.
A título meramente ilustrativo, quando da elaboração da monografia relativa
à disciplina de Teoria Geral do Direito, lecionada pelo Prof. Celso Campilongo, dada a
preponderância programática da teoria dos sistemas de Luhmann, procuramos visualizar no
nosso objeto de estudo não apenas os seus acoplamentos estruturais inter-sistêmicos, mas,
também, os seus acoplamentos estruturais intra-sistêmicos, ou seja, os acoplamentos
estruturais existentes entre os subsistemas constitucionais do Direito Tributário e do Direito
Financeiro (destinação constitucional do produto).
162
Além da questão da destinação do produto das contribuições constantes do
art. 149, da CF, constatamos, também que o Título VI foi denominado como "Da tributação
e do orçamento", donde percebe-se, de logo, a conexão da matéria tributária ao lado da
matéria financeira. É a contraposição inafastável “receita versus despesa” (Direito
Financeiro). Prosseguindo na análise, verifica-se também a subdivisão desse Título VI em
dois capítulos: "Do sistema tributário nacional" e "Das finanças públicas", denotando ainda
mais a indissociabilidade das duas matérias.
Assim, da simples análise do ordenamento, concluímos que o Direito
Tributário, em realidade, é apenas parte do Direito Financeiro, que tem seu conteúdo mais
abrangente, pois não cuida apenas das receitas estatais decorrentes da atividade
arrecadatória, mas, também de todas as demais receitas correntes (financeiras, comerciais,
etc.)133. Não é por outro motivo que, os debates em torno da Reforma Tributária
inevitavelmente resvalam na distribuição das receitas entre os entes tributantes.
Dessa forma, sempre que o texto constitucional instituir determinada
contribuição, seja ela para o financiamento da seguridade social, de intervenção no domínio
econômico ou de interesse de categorias profissionais, a destinação do produto de sua
arrecadação deverá ser confirmada no âmbito pragmático, sob pena de invalidação da sua
instituição por ofensa ao Princípio Democrático, e todos os seus desdobramentos
conferentes da legitimação do nosso regime representativo – ex.: Princípios Republicano,
Moralidade, Publicidade, etc..
Esse raciocínio é possível por uma aplicação dos acoplamentos estruturais
de Luhmann, transpostos do nível inter-sistêmico, existente entre os diversos sistemas
comunicacionais, ao nível intra-sistêmico, onde se atritam o Direito Financeiro, como
subsistema constitucional, e o seu sub-ramo, o Direito Tributário.
133
Borges, José Souto Maior Borges. Introdução ao direito financeiro. Max Limonad, São Paulo:1998, pp.
117-118.
163
20.b.2.) Exemplos de “abertura” do sistema tributário a valores que, de início,
seriam extradogmáticos : do art. 110 do CTN.
A teoria dos sistemas de Luhmann afirma sofrer o sistema jurídico a
interferência de valores extrasistêmicos, por intermédio dos acoplamentos estruturais com
os demais sistemas comunicacionais.
No caso específico do Direito Tributário positivo, podemos extrair, em igual
sentido, alguns dispositivos que determinam somente possa ser analisada determinada
norma jurídica se interpretada/aplicada com o exame do alcance de valores alheios,
oriundos de outros subsistemas jurídicos (arts. 3º, 20, II, 21, 24, II, 29, etc., todos do CTN).
Dentre esses dispositivos, destaca-se o art. 110 do Código Tributário
Nacional, que desautoriza o legislador tributário a alterar conceitos de direito privado
utilizados pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis
Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal, para definir ou limitar competências
tributárias:
“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o
alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados,
expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições
dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos
Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”
Depreende-se da leitura não apenas a possibilidade de adoção de conceitos
de direito privado pelo legislador, numa patente “intrusão assistemática” (Luhmann),
relativamente ao sistema de Direito Tributário positivo, mas, também, uma impossibilidade
desse legislador de alterar esses conceitos, quando postos pelas Leis Fundamentais dos
entes tributantes.
Vale salientar que a menção restrita às Constituições e Leis Orgânicas não
abarca outras espécies legislativas pela presunção do legislador complementar, no sentido
de que, matéria relativa a direito privado, com implicações na competência tributária dos
164
entes de direito público interno, necessariamente haveria de estar prevista, à época do
Código Tributário Nacional, nas Constituições Federal e Estaduais, bem como nas Leis
Orgânicas, tendo em vista também que, com o advento da Constituição Federal de 1988,
tais conceitos necessariamente hão de estar presentes nos referidos Textos, excetuada
disposição em contrário por ela mesma veiculada (p. ex.: art. 146, III, a e b).
Assim, o próprio sistema jurídico prevê hipóteses de inter-relacionamento
entre os seus diversos subsistemas, a despeito do seu oposto art. 109, também do CTN, que
dispõe não servirem os princípios jurídicos de direito privado, na sua acepção própria, para
definição dos efeitos pretendidos pelo legislador tributário, que, a nosso ver, implica em
contradição instituída pelo próprio sistema.
No caso do art. 110, do Código Tributário Nacional, esse viabiliza a relação
entre o subsistema do Direito Tributário, com os subsistemas de Direito Privado, cujo
instituto a legislação fiscal aproveite, num reconhecimento do legislador complementar da
necessidade de inter-relacionamento do Direito Tributário com outros ramos do Direito.
21.
Exemplos pragmáticos de utilização da teoria proposta.
Passamos a demonstrar a plena aplicabilidade das conclusões obtidas pelo
presente estudo ao Direito Tributário positivo, pela menção a alguns exemplos práticos em
que se utilizou ou que pode vir a ser utilizada a proposta de interpretação/aplicação ora
sugerida.
Tendo sido esposado que a presente proposta de intepretação das normas
jurídicas no âmbito do Direito Tributário é não apenas desejável, como também, é
plenamente viável, pois já utilizada, inclusive, pelo próprio Supremo Tribunal Federal,
(ainda que com alguma reserva acertadamente fundada, em função da necessidade de
utilização dos atos de enunciação do processo legislativo conjugados a outros métodos,
como o sistemático), passamos agora à indicação de alguns exemplos colhidos da
pragmática, em que a possibilidade ou a efetiva utilização da proposta se mostra patente.
165
Selecionamos, assim, por simples amostragem, alguns exemplos que
resultam da utilização dos diferentes métodos de interpretação somados à proposta
hermenêutica ora sugerida – sistemática mais condizente com os ditames do Princípio
Democrático (questão da legimitação), como norma jurídica fundante do ordenamento
jurídico.
21.a.) Da análise das normas relativas à não-cumulatividade do Pis e da Cofins.
Citamos, de início, como exemplo de plena adequação da teoria
interpretativa/aplicativa ora proposta à questão da não-cumulatividade da contribuição ao
PIS (Programa de Integração Social) e da COFINS (Contribuição para o financiamento da
Seguridade Social), instituídas, em definitivo, pelas Leis n.ºs 10.637/02 e 10.833/03.
No tocante ao PIS, a não-cumulatividade foi inicialmente instituída pela
Medida Provisória n.º 66/02, que dispôs em sua ementa134, no título da primeira parte135, e
nos arts. 1º, 2º e 3º136, descritivamente, como seria a não-cumulatividade da contribuição.
134
“Dispõe sobre a não cumulatividade na cobrança da contribuição para os Programas de Integração Social
(PIS) e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), nos casos que especifica; sobre os
procedimentos para desconsideração de atos ou negócios jurídicos, para fins tributários; sobre o pagamento e
o parcelamento de débitos tributários federais, a compensação de créditos fiscais, a declaração de inaptidão de
inscrição de pessoas jurídicas, a legislação aduaneira, e dá outras providências.”
135
“COBRANÇA NÃO CUMULATIVA DO PIS E DO PASEP”.
136
Art. 1º A contribuição para o PIS/Pasep tem como fato gerador o faturamento mensal, assim entendido o
total das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação
contábil.
§ 1º Para efeito do disposto neste artigo, o total das receitas compreende a receita bruta da venda de bens e
serviços nas operações em conta própria ou alheia e todas as demais receitas auferidas pela pessoa jurídica.
§ 2º A base de cálculo da contribuição para o PIS/Pasep é o valor do faturamento, conforme definido no
caput.
§ 3º Não integram a base de cálculo a que se refere o artigo, as receitas:
I - decorrentes de saídas isentas da contribuição ou sujeitas a alíquota zero;
II - não-operacionais, decorrentes da venda de ativo imobilizado;
III - auferidas pela pessoa jurídica revendedora, na revenda de mercadorias em relação às quais a contribuição
seja exigida da empresa vendedora, na condição de substituta tributária;
IV - de venda dos produtos de que tratam as Leis nº 9.990, de 21 de julho de 2000, nº 10.147, de 21 de
dezembro de 2000, e nº 10.485, de 3 de julho de 2002, ou quaisquer outras submetidas à incidência
monofásica da contribuição;
V - referentes a:
a) vendas canceladas e aos descontos incondicionais concedidos;
166
A Medida Provisória n.º 66/02 foi objeto de conversão na Lei n.º 10.637/02,
que alterou significativamente o regime de créditos a serem deduzidos da base de cálculo,
b) reversões de provisões e recuperações de créditos baixados como perda, que não representem ingresso de
novas receitas, o resultado positivo da avaliação de investimentos pelo valor do patrimônio líquido e os lucros
e dividendos derivados de investimentos avaliados pelo custo de aquisição, que tenham sido computados
como receita.
Art. 2º Para determinação do valor da contribuição para o PIS/Pasep aplicar-se-á, sobre a base de cálculo
apurada conforme o disposto no art. 1º, a alíquota de 1,65% (um inteiro e sessenta e cinco centésimos por
cento).
Art. 3° Do valor apurado na forma do art. 2º a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação
a:
I - bens adquiridos para revenda, exceto em relação às mercadorias e aos produtos referidos nos incisos III e
IV do § 3º do art. 1º;
II - bens e serviços utilizados como insumo na fabricação de produtos destinados à venda ou na prestação de
serviços, inclusive combustíveis e lubrificantes;
III - energia elétrica consumida nos estabelecimentos da pessoa jurídica;
IV - aluguéis de prédios, máquinas e equipamentos, pagos a pessoa jurídica, utilizados nas atividades da
empresa;
V - despesas financeiras decorrentes de empréstimos e financiamentos de pessoa jurídica, exceto de optante
pelo Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de
Pequeno Porte ( SIMPLES);
VI - máquinas e equipamentos adquiridos para utilização na fabricação de produtos destinados à venda, bem
assim a outros bens incorporados ao ativo imobilizado;
VII - edificações e benfeitorias em imóveis de terceiros, quando o custo, inclusive de mão-de-obra, tenha sido
suportado pela locatária;
VIII - bens recebidos em devolução, cuja receita de venda tenha integrado faturamento do mês ou de mês
anterior, e tributada conforme o disposto nesta Medida Provisória.
§ 1º O crédito será determinado mediante a aplicação da alíquota prevista no art. 2º sobre o valor:
I - dos itens mencionados nos incisos I e II, adquiridos no mês;
II - dos itens mencionados nos incisos III a V, incorridos no mês;
III - dos encargos de depreciação e amortização dos bens mencionados nos incisos VI e VII, incorridos no
mês;
IV - dos bens mencionados no inciso VIII, devolvidos no mês.
§ 2º Não dará direito a crédito o valor de mão-de-obra paga a pessoa física.
§ 3º O direito ao crédito aplica-se, exclusivamente, em relação:
I - aos bens e serviços adquiridos de pessoa jurídica domiciliada no País;
II - aos custos e despesas incorridos, pagos ou creditados a pessoa jurídica domiciliada no País;
III - aos bens e serviços adquiridos e aos custos e despesas incorridos a partir do mês em que se iniciar a
aplicação do disposto nesta Medida Provisória.
§ 4º O crédito não aproveitado em determinado mês poderá sê-lo nos meses subseqüentes.
§ 5º Sem prejuízo do aproveitamento dos créditos apurados na forma deste artigo, as pessoas jurídicas que
produzam mercadorias de origem animal ou vegetal classificadas nos capítulos 2 a 4, 8 a 11, e nos códigos
0504.00,07.10, 07.12 a 07.14, 15.07 a 15.13, 15.17 e 2209.00.00, todos da Nomenclatura Comum do
Mercosul, destinados à alimentação humana ou animal, poderão deduzir da contribuição para o PIS/Pasep,
devida em cada período de apuração, crédito presumido, calculado sobre o valor dos bens e serviços referidos
no inciso II do caput, adquiridos, no mesmo período, de pessoas físicas residentes no País.
§ 6º Relativamente ao crédito presumido referido no § 5º:
I - seu montante será determinado mediante aplicação, sobre o valor das mencionadas aquisições, de alíquota
correspondente a setenta por cento daquela constante do art. 2º;
II - o valor das aquisições não poderá ser superior ao que vier a ser fixado, por espécie de bem ou serviço,
pela Secretaria da Receita Federal.
167
bem como, a sistemática de alíquotas a que passariam a estar sujeitos determinados setores
da economia.
Das alterações referidas, percebe-se que a não-cumulatividade da
contribuição, seja de acordo com o instrumento legislativo autocrático, seja de acordo com
a lei, muito pouco tem que ver com a sistemática constitucional tão conhecida dos
contribuintes, referente ao recolhimento dos impostos não-cumulativos (IPI e ICMS), além
de, numa interpretação sistemática, não atender aos ditames do art. 195, §12137, da CF. Em
realidade, denominou o legislador como “não-cumulatividade” das contribuições ao PIS
algo bastante diverso: um método de outorga de alguns créditos a serem deduzidos da base
de cálculo do tributo devido.
Contudo, não somente nesse ponto o ato legislado merece ressalvas. Da
Exposição de Motivos elaborada pelo Ministro de Estado da Fazenda e encaminhada pelo
Presidente da República como motivação de sua Medida Provisória, consta da nota de nº. 3,
observação a respeito da manutenção da carga tributária nos mesmos patamares em que
anteriormente estavam submetidos os contribuintes:
“MF 00211 EM MPV PIS PASEP
Brasília, 29 de agosto de 2002.
Excelentíssimo Senhor Presidente da República
Tenho a honra de submeter à apreciação de Vossa Excelência a proposta de
edição de Medida Provisória que dispõe sobre a não cumulatividade na
cobrança da contribuição para os Programas de Integração Social (PIS) e
de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), nos casos que
137
“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos
da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: (Redação
dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
(...)
b) a receita ou o faturamento; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
(...)
IV - do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar. (Incluído pela Emenda
Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
(…)
§ 12. A lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos
incisos I, b; e IV do caput, serão não-cumulativas. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de
19.12.2003)”
168
especifica; sobre os procedimentos para desconsideração de atos ou
negócios jurídicos, para fins tributários; sobre o pagamento e o
parcelamento de débitos tributários federais, a compensação de créditos
fiscais, a declaração de inaptidão de inscrição de pessoas jurídica, a
legislação aduaneira, e dá outras providências.
2. A proposta, de plano, dá curso a uma ampla reestruturação na cobrança
das contribuições sociais incidentes sobre o faturamento. Após a instituição
da cobrança monofásica em vários setores da economia, o que se pretende,
na forma desta Medida Provisória, é, gradualmente, proceder-se à
introdução da cobrança em regime de valor agregado – inicialmente com o
PIS/Pasep para, posteriormente, alcançar a Contribuição para o
Financiamento da Seguridade Social (Cofins).
3. O modelo ora proposto traduz demanda pela modernização do sistema
tributário brasileiro sem, entretanto, pôr em risco o equilíbrio das contas
públicas, na estrita observância da Lei de Responsabilidade Fiscal. Com
efeito, constitui premissa básica do modelo a manutenção da carga
tributária correspondente ao que hoje se arrecada em virtude da cobrança
do PIS/Pasep. (...)”
Contudo, a despeito da concessão dos créditos, em regime supostamente
não-cumulativo, como sabido, a Medida Provisória n.º 66/02, por intermédio do seu art.
2º138, aumentou a alíquota da contribuição ao Pis anteriormente prevista no art. 1º da
Medida Provisória n.º 2.158-35/01139, o que resultou, por mais que as intenções
governamentais se manifestassem em sentido contrário, numa majoração da carga tributária
a que estavam sujeitos os contribuintes.
Em aplicação de nossa proposta de interpretação/aplicação, a majoração
promovida pela instituição da nova sistemática de tributação, pretensamente nãocumulativa, dentre outros aspectos, como a própria ofensa ao art. 195, §12, da CF, numa
análise sistemática, mas também, e, principalmente, por contrariar a própria motivação do
ato legislativo, poderia ser tida por ilegítima pelo intérprete/aplicador, em função da ofensa
ao intuito declarado do ente legislativo, quando da indevida majoração da carga tributária a
que passaram a se sujeitar os contribuintes.
138
“Art. 2º Para determinação do valor da contribuição para o PIS/Pasep aplicar-se-á, sobre a base de cálculo
apurada conforme o disposto no art. 1º, a alíquota de 1,65% (um inteiro e sessenta e cinco centésimos por
cento).”
139
“Art. 1o A alíquota da contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio
do Servidor Público - PIS/PASEP, devida pelas pessoas jurídicas a que se refere o § 1o do art. 22 da Lei no
169
Vale mencionar que essa posição vem sendo acatada pelo próprio Poder
Judiciário, que em caso envolvendo empresa prestadora de serviços tributada sobre o lucro
real (cujo principal insumo é a mão-de-obra) assegurou-lhe, pela análise da mens
legislatoris, o direito de manutenção do regime cumulativo de recolhimento das
contribuições, em reconhecimento da ilegitimidade da majoração decorrente do novo texto
legislativo, que, a despeito de assegurar a apropriação de alguns créditos, elevou a alíquota
conjunta do PIS e da COFINS de 3,65% para 9,25%, em ofensa à razoabilidade, à
capacidade contributiva, à isonomia e à livre concorrência:
“Classe: AC - APELAÇÃO CIVEL
Processo: 2004.71.08.010633-8
Data da Decisão: 20/03/2007
Orgão Julgador: SEGUNDA TURMA
LEANDRO PAULSEN
PROSSEGUINDO NO JULGAMENTO, A TURMA, POR UNANIMIDADE,
DECIDIU DAR PARCIAL PROVIMENTO À APELAÇÃO.
TRIBUTÁRIO.
PIS.
COFINS.
REGIME
NÃO-CUMULATIVO.
PRESTADORA DE SERVIÇOS. DUPLICAÇÃO DA CARGA TRIBUTÁRIA.
PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE, DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA,
DA ISONOMIA E DA LIVRE CONCORRÊNCIA
A questão não é de inconstitucionalidade em tese das leis que estabeleceram
os regimes não-cumulativos do PIS e da COFINS, mas da sua aplicação a
caso concreto quando os seus efeitos implicam violação a princípios
constitucionais.
Pretendesse o legislador simplesmente aumentar as contribuições sobre o
faturamento/receita, teria elevado as alíquotas anteriormente estabelecidas
pelo art. 1º da MP 2.158-3/01 (0,65%) e pelo art. 8º da Lei 9.718/98 (3%).
Não foi esta, contudo, a intenção. O estabelecimento dos regimes nãocumulativos visou, isto sim, a melhor distribuir a carga tributária ao longo
da cadeia econômica de produção e comercialização de cada produto. Daí a
elevação da alíquota associada à possibilidade de apuração de créditos
compensáveis para a apuração do valor efetivamente devido.
No caso específico da Autora, que tem por objetivo social principal a
prestação de serviços, a submissão ao novo regime não-cumulativo implicou
um aumento de mais de 100% no ônus tributário decorrente da incidência
do PIS e da COFINS. Isso porque, como empresa prestadora de serviços, os
créditos que pode apurar não são significativos.
O acréscimo do ônus tributário, não corresponde a aumento da capacidade
8.212, de 24 de julho de 1991, fica reduzida para sessenta e cinco centésimos por cento em relação aos fatos
geradores ocorridos a partir de 1o de fevereiro de 1999.”
170
contributiva da Autora, que não teve alteração.
Implica, ainda, tratamento relativamente aos demais contribuintes, sujeitos
ou ao regime comum ou ao regime não-cumulativo em atividade econômica
em que a apuração de créditos é significativa.
O critério de discriminação (regime de tributação pelo Imposto de Renda, se
pelo lucro real ou não), no caso concreto, mostra-se falho e incapaz de
levar ao resultado pretendido de distribuição do ônus tributário ao longo de
uma cadeia de produção e circulação, comprometendo a própria função do
regime não-cumulativo, o que evidencia violação não apenas à isonomia
como à razoabilidade.
Por fim, também cria obstáculos à livre concorrência, porquanto empresas
dedicadas à mesma atividade que a Autora continuam submetidas ao regime
comum, não tendo sido oneradas pelo advento do regime não-cumulativo.
Direito da autora de permanecer recolhendo as contribuições pelo regime
comum (cumulativo) relativamente às suas receitas provindas da prestação
de serviços e de compensar os valores pagos a maior.”
Vê-se que, além da ofensa aos princípios da razoabilidade, capacidade
contributiva, isonomia e livre concorrência, constantes do dispositivo, o Poder Judiciário
também fundamentou sua decisão numa interpretação sistemática e finalística, em razão da
ofensa ao fim pretendido pelo legislador constitucional de instituição, pelos referidos
instrumentos legislativos, não de seu fim declarado (um verdadeiro regime nãocumulativo), mas de um simples regime de outorga de alguns créditos para operações
específicas. Tal regime implicou, inclusive, a majoração desarrazoada da carga tributária
em agressão à “premissa básica do modelo de manutenção da carga tributária
correspondente ao que hoje se arrecada” (Exposição de Motivos da Medida Provisória n.º
66/02), que serviu de finalidade à edição do ato legislativo de introdução do suposto regime
não-cumulativo ao PIS.
Saliente-se, por fim, que os fundamentos para regulamentação do suposto
regime não-cumulativo do PIS são os mesmos utilizados para sua instituição em relação ao
COFINS (v. Exposição de Motivos 197-A/2003-MF140).
140
“EM No 197-A/2003 – MF, Brasília, 30 de outubro de 2003, Excelentíssimo Senhor Presidente da
República,
1. Tenho a honra de submeter à apreciação de Vossa Excelência a proposta de Medida Provisória, que dispõe,
entre outros, sobre os seguintes temas:
· a instituição da não-cumulatividade na cobrança da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social
- COFINS, nos casos que especifica;
(...)
171
21.b.) Do drawback para fornecimento no mercado interno.
Recentemente
divulgou-se
na
imprensa
controvérsia
envolvendo
contribuintes e Fisco, relativa à aplicação ou não do benefício de drawback para
fornecimento no mercado interno às empresas privadas.
Em breve síntese, consiste o benefício do drawback para fornecimento no
mercado interno num regime de suspensão dos tributos incidentes sobre a importação de
mercadoria a ser exportada após beneficiamento, ou destinada à fabricação,
complementação ou acondicionamento de outra a ser exportada, conforme previsão do art.
5º da Lei n.º 8.032/90, na redação dada pela Lei n.º 10.184/01:
“Art. 5o O regime aduaneiro especial de que trata o inciso II do art. 78 do
Decreto-Lei no 37, de 18 de novembro de 1966, poderá ser aplicado à
importação de matérias-primas, produtos intermediários e componentes
destinados à fabricação, no País, de máquinas e equipamentos a serem
fornecidos no mercado interno, em decorrência de licitação internacional,
contra pagamento em moeda conversível proveniente de financiamento
concedido por instituição financeira internacional, da qual o Brasil
participe, ou por entidade governamental estrangeira ou, ainda, pelo Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, com recursos
captados no exterior. (Redação dada pela Lei nº 10.184, de 2001)”
Em razão de um caso específico de fraude envolvendo determinado
contribuinte que supostamente fez mal uso do benefício, voltou-se em arbítrio o Fisco (e a
SECEX) contra todos os demais projetos de contribuintes que se utilizaram do drawback,
nesta modalidade, sob o pretexto de que o benefício somente poderia ser adotado por
empresas públicas, tendo em vista o emprego pela lei da expressão “licitação
internacional”.
1.1. O principal objetivo das medidas ora propostas é o de estimular a eficiência econômica, gerando
condições para um crescimento mais acelerado da economia brasileira nos próximos anos. Neste sentido, a
instituição da Cofins não-cumulativa visa corrigir distorções relevantes decorrentes da cobrança cumulativa
do tributo, como por exemplo a indução a uma verticalização artificial das empresas, em detrimento da
172
Para esclarecer quais seriam os destinatários legais do benefício, adveio o
art. 3º da Medida Provisória n.º 418/08
“Art. 3º Para efeito de interpretação do art. 5o da Lei no 8.032, de 12 de
abril de 1990, licitação internacional é aquela promovida tanto por pessoas
jurídicas de direito público como por pessoas jurídicas de direito privado do
setor público e do setor privado.
§ 1º Na licitação internacional de que trata o caput, as pessoas jurídicas de
direito público e as de direito privado do setor público deverão observar as
normas e procedimentos previstos na legislação específica, e as pessoas
jurídicas de direito privado do setor privado, as normas e procedimentos
das entidades financiadoras.
§ 2º Na ausência de normas e procedimentos específicos das entidades
financiadoras, as pessoas jurídicas de direito privado do setor privado
observarão aqueles previstos na legislação brasileira, no que couber.
§ 3º O Poder Executivo regulamentará, por decreto, no prazo de sessenta
dias contados da entrada em vigor desta Medida Provisória, as normas e
procedimentos específicos a serem observados nas licitações internacionais
promovidas por pessoas jurídicas de direito privado do setor privado a
partir de 1o de maio de 2008, nos termos do § 2o.”
Percebe-se da leitura do caput do art. 3º, da Medida Provisória n.º 418/08
que não apenas as empresas públicas, mas, também, as empresas privadas podem realizar
as licitações internacionais a que se refere o art. 5º, da Lei n.º 8.032/90, podendo, também,
usufruírem do referido benefício de suspensão dos tributos nas importações de mercadoria
destinada à fabricação, complementação ou acondicionamento de outras mercadorias a
serem posteriormente exportadas.
Caso a literalidade do art. 3º, da Medida Provisória, n.º 418/08 não seja
suficiente ao convencimento do intérprete/aplicador, da leitura da nota 12 de sua Exposição
de Motivos extrai-se o intuito expresso do legislador de aplicação do benefício não apenas
às empresas públicas, mas, também, às empresas particulares, colocando-se uma pá-de-cal
em qualquer interpretação que disponha em sentido diverso:
distribuição da produção por um número maior de empresas mais eficientes – em particular empresas de
pequeno e médio porte, que usualmente são mais intensivas em mão de obra.”
173
“12. Para fins de dirimir dúvidas surgidas na interpretação do art. 5º da Lei
nº 8.032, de 12 de abril de 1990, incluiu-se dispositivo interpretativo
relativamente à expressão “licitação internacional” constante no referido
artigo. Impende acrescentar que tais dúvidas têm acarretado impactos na
política comercial brasileira, o que se pretende solucionar por intermédio
da redação do art. 3º da presente medida.”
Demonstra-se, da transcrição acima, que serve a Exposição de Motivos da
Medida Provisória n.º 418/08 de elemento decisivo à correta interpretação/aplicação do
Direito a ser aplicado ao caso concreto, caracterizando subsídio de imprescindível
relevância ao alcance da norma isentiva, conforme defendido no presente trabalho.
21.c.) Da declaração de inaptidão cadastral da pessoa jurídica.
Como último exemplo de aplicação pragmática da teoria hermenêutica ora
sugerida, e demonstrando que a alternativa proposta não se aplica apenas às questões
relativas ao recolhimento do tributo (ou seja, às obrigações tributárias principais), mas
também às obrigações tributárias acessórias, temos o exemplo das razões do veto à
supressão da impossibilidade de declaração de inaptidão cadastral pela Administração
Fazendária Federal, constante do projeto de lei de conversão da Medida Provisória n.º
351/07 na Lei n.º 11.488/07, em cujo texto final restou vetada a disposição constante do art.
15 da referida Lei, que alterava o art. 81 da Lei n.º 9.430/96, de maneira a impossibilitar a
Secretaria da Receita Federal a declarar inapta a inscrição cadastral da pessoa jurídica que
não apresente declaração anual de imposto sobre a renda por um ou mais exercícios ou que
não seja localizada no endereço informado ao Fisco, ou ainda, que não exista de fato.
Vejamos a atual redação do art. 81, caput, da Lei n.º 9.430/96:
“Art. 81. Poderá, ainda, ser declarada inapta, nos termos e condições
definidos em ato do Ministro da Fazenda, a inscrição da pessoa jurídica que
deixar de apresentar a declaração anual de imposto de renda em um ou
mais exercícios e não for localizada no endereço informado à Secretaria da
Receita Federal, bem como daquela que não exista de fato.”
Conforme disposto nas razões do veto presidencial, elaborado com base em
174
pronunciamento do Ministério da Fazenda, tal dispositivo foi retirado do projeto de
conversão da Lei n.º 11.488/07, pela impossibilidade de supressão de competências
administrativas que visam a coibir práticas de evasão fiscal:
“Razões do veto
A nova redação dada pelo art. 15 do Projeto de Lei de Conversão ao art. 81
da Lei no 9.430, de 1996, retira a possibilidade de ser declarada inapta, nos
termos e condições definidos em ato do Ministro da Fazenda, a inscrição de
pessoa jurídica que deixar de apresentar declaração anual de imposto de
renda em um ou mais exercícios. Assim, estamos diante da supressão de um
instrumento da Administração Pública, que visa a coibir possíveis atos de
sonegação fiscal, razão pela qual recomendamos veto ao dispositivo.”
Percebe-se das razões de veto constantes da Mensagem n.º 376, de 15 de
junho de 2007, acima transcritas qual a motivação que deu ensejo à exclusão do dispositivo
constante do projeto de lei de conversão da Medida Provisória n.º 351/07 na Lei n.º
11.488/07 por parte do Presidente da República, que na qualidade de representante maior
da União (principal interessada na manutenção dos instrumentos necessários ao exercício
da sua competência fiscalizatória), e ouvido o seu Ministro da Fazenda, entendeu por vetar
o dispositivo que mitigava sua capacidade de sanção à sonegação.
Assim, percebe-se das razões de veto da Presidência da República, a
manifestação objetivada da motivação que conduziu o Poder Executivo a vetar a disposição
que mitigava-lhe parte da sua competência fiscalizatória, devendo a norma remanescente
do processo legislativo ser sempre interpretada com base nessas premissas governamentais.
Nos três exemplos citados, caso haja uma mínima presunção de que os atos
de enunciação legislativa exercerão um papel preponderante na atividade do aplicador
(Poder Judiciário), quando da apreciação da questão, tanto os contribuintes, quanto o Fisco
conviverão num ambiente normativo mais estável e de maior previsibilidade do Direito que
será aplicado ao caso específico, cuja regulação da conduta esteja pendente de definição.
E os exemplos se multiplicam, inclusive, no campo da chamada
175
extrafiscalidade, das imunidades, isenções, tributação ambiental, manipulação de alíquotas
do II, IE, IPI e IOF pelo Executivo, etc., que, necessariamente, são (ou se não o são,
deveriam ser), como visto no transcorrer do presente trabalho, devidamente motivadas
pelos entes legislativos que emitem as disposições que lhes são pertinentes, principalmente,
por uma questão de atribuição de legitimidade ao ato normativo. Ou, no plano dogmático,
em obediência aos ditames resultantes do Princípio Democrático, como norma jurídica
fundante da atividade tributária estatal141.
141
Como última anotação, espera-se com o presente trabalho, em última instância, uma reflexão inclusive
quanto à legitimidade dos atos legislativos monocráticos (Medidas Provisórias, Decretos Executivos, etc.),
que cada vez mais servem de instrumento à regulação das condutas dos legiferados, numa corrupção da
sistemática legislativa colegiada, e em patente afronta aos ditames estabelecidos pelo Princípio Democrático.
176
PARTE V
DAS CONCLUSÕES
22.
Conclusões.
1)
Tomando o direito como um bem cultural, resultado da obra humana, o
ordenamento jurídico há de servir de instrumento para regulação das condutas, direcionadas
ao Bem Comum (Becker), e de ter uma função modificadora na vida dos seus destinatários
(o “absoluto” de del Vecchio). Assim é premissa essencial também, para a validade da
atividade científica que o descreve (o Direito), a necessária imputação de um fim valorativo
como resultado; ou, colocando em melhores termos: é inafastável a consideração da
existência de um fim imanente a toda e qualquer atividade dogmática e científica.
2)
No caso específico do ordenamento brasileiro, essa finalística não se apresenta
apenas no âmbito da linguagem descritiva (Ciência do Direito), mas, decorre da própria
linguagem-objeto do direito positivo (v. p. ex.: art. 3º, da Constituição Federal e todos os
seus incisos142).
3)
Ao nomear determinadas normas jurídicas como princípios, e, no caso da
Constituição Federal, também colocá-las em posição topográfica de destaque, ao longo do
texto (arts. 1º, 5º, no início do texto, e precedendo-o somente os princípios e objetivos
fundamentais da República, além do início de Títulos e Capítulos – ex.: arts. 37, 170,
194143, da CF) o legislador atribui a essas normas-princípio maior abrangência semântica e
sintática que as chamadas normas-regra.
142
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação.”
177
4)
Existem princípios denominados fundamentais (ex.: art. 1º, 2º, 4º, etc., da
Constituição Federal) e outros princípios específicos de determinada seção do texto
constitucional, como, por exemplo, os princípios gerais que regem a atividade econômica
(art. 170 e seguintes da Constituição Federal).
5)
Os princípios constitucionais tributários, dentre os quais, os do art. 150, são
transposições, ao campo tributário, dos direitos e garantias individuais previstos no art. 5º
do Texto.
6)
Da lição de Kelsen, temos que o ordenamento apresenta-se como uma estrutura de
normas jurídicas de “hierarquia escalonada”. Adolf Merkl, visualiza o ordenamento
jurídico como uma pirâmide normativa, em que, no topo, estaria a Constituição, e, na base,
as normas jurídicas infraconstitucionais e infralegais. Dessa doutrina, podemos extrair uma
hierarquia entre as normas-princípio e as normas-regra; uma hierarquia das normasprincípio que são fundamentais diante de normas-princípio, meramente gerais.
7)
Dessa hierarquia dos princípios ditos fundamentais sobre os meramente gerais,
contudo, não há que se falar em supremacia de um princípio de igual ordem sobre outro,
senão, diante de um caso concreto (ponderação de princípios), cujo Direito (normaprincípio) a ser aplicado em prevalência do outro será decidido pelo aplicador com toda a
carga de valoração decorrente da situação específica e de sua subjetividade. Todavia, essa
afirmativa encontra restrição apenas no Princípio Democrático, como norma jurídica
fundante que é de toda a atividade estatal, incluída, principalmente, a atividade tributária,
sendo esta norma-princípio de hierarquia superior a todas as demais.
8)
A despeito de visualizarmos o Princípio Democrático como norma jurídica fundante
de toda a atividade tributária estatal, entendemos que há um valor maior a ser tutelado no
ordenamento: o direito à vida, o qual, de início, não seria veiculado pelo ordenamento sob a
forma de uma norma-princípio (art. 5º, caput, da CF), mas, sim, como uma garantia, de
ordem fundamental. E nem precisaria sê-lo, tendo em vista que i) o direito à vida é
178
pressuposto lógico do próprio Direito, como bem cultural (obra humana); e ii) a previsão do
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana supre perfeitamente a necessidade
de guarida do valor, sob a forma de princípio (art. 1º, III, CF).
9)
O ato de aplicação do Direito consiste numa tentativa de “objetivação da
subjetividade”, como característica inerente à natureza humana, que resulta nas múltiplas
possibilidades de interpretação dos textos legislativos. Essa objetivação tem seu ápice
(estabilização) na manifestação expressa do órgão competente (nos termos do art. 102,
caput da CF, o Supremo Tribunal Federal), pela prevalência dos valores que sejam
convencionalmente mais relevantes à determinada sociedade num dado espaço-tempo, e
pela condenação daqueles contra-valores que lhe sejam mais repulsivos.
10)
Sempre que utilizada a expressão “princípio”, estaremos diante da necessidade do
emissário da mensagem de comunicar algo inicial, ou do seu intuito de atribuir um caráter
primordial àquilo que se quer comunicar. Deseja o emissário que o objeto consignado como
princípio seja encarado pelo receptor da mensagem como sendo algo primordial, que deve
servir de base a todo o mais que seja comunicado.
11)
Dessa forma, temos um sentido lingüístico, decorrente da comunicação
convencional, entre os usuários da língua portuguesa, atribuído à expressão “Princípio
Democrático” como algo decorrente da necessária prevalência (predominância) da idéia de
um sistema jurídico em que primordialmente haja um governo instituído e regido pelo
poder que é oriundo do próprio povo, sendo este detentor de amplos poderes de direção
e/ou provocação da máquina estatal.
12)
Da análise histórico-legislativa do Princípio Democrático, com a possibilidade de
realização de eleições diretas para os principais agentes políticos (formuladores das
políticas tributárias), ante o fato de o Direito Tributário positivo resultar, principalmente,
das normas jurídicas introduzidas pelos textos emanados do Poder Legislativo, percebe-se a
relação existente entre o mecanismo de elegibilidade e a competência tributária dos entes
(ex.: preponderância de Decretos-leis nos regimes autocráticos).
179
13)
Analisando sintaticamente a CF/88, enumeramos alguns fundamentos pelos quais
demonstra-se que pretendeu o constituinte atribuir um predomínio ao Princípio
Democrático: i) a adoção do valor “democracia” sob a forma de norma-princípio; ii) pela
sua natureza, o Princípio Democrático prevalece sobre as normas-regra; iii) sua
caracterização como um princípio de ordem fundamental; iv) e da fundamentalidade, sua
prevalência também sobre as demais normas-princípio, de ordem meramente geral (ou nãofundamental); v) mesmo contraposto a outros princípios de ordem fundamental, no
exercício da ponderação de princípios, o Princípio Democrático lhes serve de fundamento;
vi) sua destacada topografia e seus inúmeros desdobramentos no Texto Constitucional
(preâmbulo, art. 1º, caput e parágrafo único, arts. 27, 28 e 29, 45, 46 e 47, e 76 a 82 da CF,
dentre outros); vii) a caracterização do Estado de Direito em que se forma a República
Federativa do Brasil como sendo um Estado Democrático; viii) o pluralismo político como
fundamento da República Federativa do Brasil, de acordo com o inciso V, do art. 1º; ix) a
vinculação de todo o poder, constitucionalmente instituído, ao Princípio Democrático,
conforme definido pelo parágrafo único, do art. 1º, ou seja, como sendo emanado do povo,
ou por este exercido de modo direto ou representação direta; x) as previsões constitucionais
de exercício do poder de forma direta (mandado de segurança, ação popular, plebiscito,
referendo, leis de iniciativa popular, etc. - arts. 5º, LXIX, LXXIII, art. 14, I, II, e III, dentre
outros); xi) as previsões específicas de exercício do poder mediante representação
(membros do Poder Legislativo e Executivo – arts. 27, 28 e 29, 45, 46 e 47, e 76 a 82 da
CF); xii) mesmo no caso de representantes não eleitos, por exemplo, os membros do Poder
Judiciário (arts. 92 a 126, CF), cargos comissionados (ex.: art. 84, da CF), etc., estes são
nomeados pelos representantes diretos, por autorização do Texto, com base em critérios de
caráter democrático (concurso técnico de provas e títulos; notório saber jurídico e reputação
ilibada; representação política; etc.); xiii) e, por fim, a previsão pela proclamação da
Constituição Federal pelos constituintes, na qualidade de representantes do povo e no
intuito de instituir um Estado Democrático de Direito.
14)
Das decisões do Supremo Tribunal Federal, percebe-se o tratamento destinado ao
sobreprincípio da Segurança Jurídica, como subprincípio do Estado Democrático.
180
15)
Ao abordarmos os desdobramentos do Princípio Democrático concernentes à
matéria tributária, temos outros fundamentos a confirmar sua preponderância, a começar
pela análise do Princípio da Legalidade Tributária (art. 150, I, CF), tendo em vista a
vinculação do legislador tributário à lei, quando da instituição de qualquer exação, e
também do Poder Executivo, quando da fiscalização e cobrança do tributo. A atividade
tributária resulta da eficácia do Princípio Democrático e decorre dos atos jurídicos
característicos da formação da lei tributária (em sentido amplo), no ordenamento jurídico
brasileiro: 1º) a população elege os seus representantes congressistas, os quais funcionaram
como constituintes (ainda que não eleitos para este fim); 2º) os constituintes elaboram o
Texto Constitucional relativo ao Sistema Tributário Nacional de 1988, não só
“legitimados” pelo mandato conferido pelo povo, mas, também, promovem a audiência de
vários técnicos, Professores, especialistas, e representantes dos vários setores da atividade
econômica, em ampla participação popular - análise pragmática; 3º) ao elaborarem o
Sistema Tributário Nacional, os constituintes estabeleceram, p. ex., o “Estatuto do
Contribuinte”, que a despeito das inúmeras emendas, dispôs originariamente sobre quais
seriam os tributos; quais entes seriam legitimados para sua instituição; quais seriam os
tributos possíveis de instituição; e em que moldes esta e daria (agente, matéria e
procedimento); 4º) fundados nas disposições constitucionais vigentes em momento
posterior à promulgação, o legislador ordinário, eleito de forma direta, procede à
formulação das leis tributárias, limitado pelos moldes estabelecidos pela CF; e 5º) se os
destinatários da norma jurídica tributária formulada pelo legislador não se conformarem
com algum aspecto da sua instituição (agente, matéria ou forma previstos na CF), ou se o
próprio ente tributante não concorda com a forma de recolhimento praticada pelo
contribuinte, este há de buscar o Poder Judiciário, que, por intermédio do Supremo
Tribunal Federal, decidirá a lide, em última instância, e eventuais ofensas ao Texto
Constitucional (levando em consideração que todo o ordenamento tributário dele decorre).
16)
O Supremo Tribunal Federal coloca a própria supremacia da ordem constitucional
como sendo decorrente dos valores democráticos que a informam, não havendo que se falar
sequer em razões de Estado para legitimação de eventual agressão a tais valores.
181
17)
Os pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal representam a suma
manifestação da mens legis aplicada ao caso concreto, e somente com base no conteúdo dos
mesmos é que os sujeitos-de-direito terão acesso à única interpretação constitucionalmente
válida para determinada hipótese (maior grau possível de segurança jurídica). Contudo, as
interpretações tidas como válidas pelo Tribunal - mesmo nas ações diretas, em que são
preexcluídas todas as instâncias inferiores - somente vêm a ser realizadas após transcorrido
grande lapso de tempo da ocorrência da conduta ou da publicação do ato normativo em
questão, o que resulta numa insegurança jurídica, pois a todo instante surgem
questionamentos em relação à interpretação que deverá ser atribuída a determinado
dispositivo, diante das múltiplas significações lingüísticas dele decorrentes. Essa
insegurança decorre, em parte, da ausência de um controle prévio de constitucionalidade e
da multiplicidade de interpretações possíveis a serem atribuídas ao Texto Constitucional.
Saliente-se, ainda, que essa interpretação atribuída pela Corte não vincula a sua atuação em
casos futuros.
18)
Transposta essa insegurança jurídica ao âmbito tributário, pela demora da decisão
definitiva a ser emitida pelo Supremo Tribunal Federal, indicando a interpretação válida
para a hipótese específica, no caso de texto legislativo instituidor de tributo, este não deixa
de surtir efeitos econômicos (mesmo pela presunção de constitucionalidade das leis), nas
respectivas esferas patrimoniais dos contribuintes e do fisco. Assim, por razões de
eficiência administrativa e lógica empresarial, as respectivas condutas (tanto a fiscal,
quanto a do contribuinte) usualmente, passam a ser reguladas pela adoção da interpretação
que simplesmente lhes seja economicamente mais favorável – interpretações, portanto,
intrinsecamente discrepantes (“mens legis particular”).
19)
A solução proposta surge desse problema, e visa à adoção de novo método
interpretativo/aplicativo, que parte da premissa do Princípio Democrático como norma
jurídica fundante da atividade tributária estatal e da utilização de seus desdobramentos no
sistema tributário para elucidação de um sentido normativo mais próximo àquele que deve
ser referendado, a posteriori, pelo Supremo Tribunal Federal como legítimo. A adoção
182
dessa premissa inicial deve ser agregada à consideração da mens legislatoris, não como
usualmente conhecida e criticada, mas como a vontade do Poder Legislativo devidamente
objetivada, como motivação do ato de legislar (manifestação da eficácia do Princípio
Democrático e imposição do próprio ordenamento). Propõe-se a utilização das exposições
de motivos dos atos legislativos (normativos); dos seus considerandos; das justificativas
das proposições; dos anais legislativos; das razões de veto, etc., como elementos
denotativos da motivação do legislador, que há de ser observada até mesmo por uma
questão de legitimidade, como forma de atribuir amplo alcance ao Princípio Democrático.
20)
Caso acolhida a proposta pelo Supremo Tribunal Federal, os contribuintes e o Fisco
terão o incremento de um subsídio (ainda mais seguro) a determinar o regramento das suas
condutas, e mitigada estará a possibilidade de inúmeras interpretações ao texto legislativo,
pois, ao menos uma porção delas já será de conhecimento geral como não aceitas pela
Corte (aquelas contrárias à motivação do ato legislativo), bem como, uma delas será tida
por válida (aquela tida por contemplativa da motivação legislativa).
21)
Essa proposta decorre da irrefutável necessidade de motivação dos atos estatais,
sejam eles provenientes do Poder Judiciário, do Poder Executivo, ou do Poder Legislativo,
em decorrência dos Princípios da Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade,
Eficiência (art. 37, CF), mas, principalmente, dos Princípios Democrático e Republicano
(art. 1º, caput, e parágrafo único). Veja-se ainda que tal posição observa outros princípios e
garantias fundamentais do ordenamento (Contraditório, Ampla Defesa, etc.). Eventual
hesitação do Poder Judiciário em aplicá-la, por receio de suposta interferência no Poder
Legislativo, em realidade, não malfere a Tripartição de Poderes, mas, sim, exercita o
sistema constitucional de freios e contrapesos (harmonia entre os Poderes, art. 2º, da CF).
22)
A hermenêutica histórica, com a verificação das circunstâncias em que foi originado
determinado conceito ou instituto jurídico, agregada à inovação da utilização dos atos de
enunciação legislativa (normativa) e à uma Dogmática Jurídica numa acepção mais ampla
parece-nos uma das formas mais adequadas de interpretação/aplicação do Direito
Tributário; interpretação que contempla os ditames do Princípio Democrático.
183
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