PENSO ASSIM
MARCO ALEXANDRE DE SOUZA SERRA
Mitologias sobre a idade penal
A grande questão
é que, no Brasil,
muito mais do
que algozes,
as crianças e
adolescentes
são as principais
vítimas de
um sistema
social injusto e
absolutamente
leniente com
as muito mais
relevantes mortes
contra eles
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praticadas
A discussão sobre a redução da idade penal supõe, em primeiro lugar, desfazer alguns
mitos. O primeiro é que os adolescentes estão entre os principais responsáveis pela
criminalidade violenta. Dados recentes apontam para uma participação de crianças e
adolescentes em crimes inferior a 1%. Esse percentual, se projetado sobre fatos violentos,
acaba ainda mais reduzido, pois é certo que a parte mais relevante das infrações praticadas
por adolescentes corresponde aos crimes de furto e tráfico de drogas.
Outra falácia diz respeito ao fato de que os adolescentes não são responsabilizados
pelas infrações que cometem. Sempre o foram no Brasil. Existe a previsão legal de
imposição de sanções equivalentes às criminais - inclusive privação de liberdade -, que
o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) qualifica pelo eufemismo de
medidas socioeducativas. Não raramente há casos em que a prática de um mesmo fato
por um adolescente pode levar a experiências de institucionalização carcerária mais
drásticas e longas do que se praticadas por um adulto. É importante observar que a
peculiar condição da criança e do adolescente leva-os 3 perceber a dimensão do tempo
de maneira diferente. Um mesmo período aparenta durabilidade muito maior do que
significaria para alguém mais velho.
A possibilidade de sanção punitiva, no Brasil, se aplica a meninos e meninas com
12 anos completos ou mais, enquanto países muito próximos ao nosso, geográfica ou
culturalmente, só concebem a implementação de medidas da mesma natureza a partir dos
14 ou dos 16 anos, casos da Alemanha e Argentina. Assim, fica difícil aceitar o argumento
segundo o qual haveria um grande número de países em que a imputabilidade penal
fica estabelecida aquém dos 18 anos. Mesmo nos países onde e quando assim se sucede,
a responsabilização pelo cometimento de crimes e atos a ele equiparados não é mais
rigorosa e nem começa mais cedo, cronologicamente, do que no Brasil.
Do ponto de vista do ordenamento jurídico em vigor, a Constituição Federal
concebeu a idade penal mínima como cláusula insuscetível de revogação pelo Congresso
Nacional. Mesmo os entendimentos contrários não podem dar as costas para o fato de
que, no plano internacional, o Brasil é signatário de convenções e tratados versando
sobre a proteção dos direitos humanos, a exemplo da Convenção da ONU sobre Direitos
da Criança, que estabelecem a privação de liberdade de crianças e adolescentes, quando
admissível, ocorra "como último recurso; com a "duração mais breve possível", e,
finalmente, "separada dos adultos".
Hoje, para ser considerado válido e aplicável, mais do que se adaptar à Constituição Federal,
todo o material legislativo brasileiro, especialmente no âmbito da proteção dos direitos
fundamentais das pessoas, precisa estar alinhado aos instrumentos internacionais dos quais o
Brasil é signatário, e desse modo acabam integrando a ordem jurídica interna.
A grande questão é que a prioridade concebida pela nossa Constituição deve debruçar os
olhos para o fato de que no Brasil, muito mais do que algozes, as crianças e adolescentes são
as principais vítimas de um sistema social injusto e absolutamente leniente com as muito mais
relevantes mortes contra eles praticadas.
Marco Alexandre de Souza Serra é Mestre em Direito das Relações Sociais pela
Universidade Federal do Paraná e doutorando em Direito Penal pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. É advogado criminal e professor da Escola de Direito da PUC/PR
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Maio 2015
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Mitologias sobre a idade penal