EMBARGO ATÉ ÀS 18H30M
DO DIA 20 DE MARÇO DE 2011
“Escutar a Palavra do Senhor”
Catequese do 2º Domingo da Quaresma
Sé Patriarcal, 20 de Março de 2011
Introdução
1. Na primeira Catequese vimos que Deus, ao escolher para Si um
Povo, quis ser um Deus amigo, íntimo, a viver com esse Povo. Uma expressão
desse desejo de proximidade e de relação, é a Revelação. Revelar-se é dar a
outro acesso a uma intimidade pessoal que de outro modo não seria
conhecida. Ao revelar-se, Deus deseja ser conhecido, tanto quanto o pode ser,
por criaturas pecadoras. Abre os segredos do seu Ser íntimo, do seu desígnio
acerca do homem que criou. Deus revela-se e o próprio facto de o fazer é uma
manifestação de amor.
A principal expressão desta revelação é a sua Palavra: Deus fala ao seu
Povo. A Exortação Apostólica Post-Sinodal “Verbum Domini”, afirma logo no
início: “A novidade da revelação bíblica consiste no facto de Deus se dar a
conhecer no diálogo que deseja ter connosco”1. Um Deus que se exprime no
diálogo é um Deus comunhão. Deus está com os homens na verdade do seu
próprio mistério íntimo: Ele é comunhão de Pessoas. E a Palavra que dirige ao
seu Povo, em linguagem humana, é a Encarnação da Palavra eterna de Deus,
o Logos. Sempre que nos fala, convida-nos a entrar na sua intimidade, na
comunhão das pessoas divinas. A nossa caminhada neste mistério é tornarmonos capazes de, ao escutar as palavras dos Profetas, dos Evangelistas ou da
Igreja, escutarmos o próprio Logos eterno de Deus, que se nos tornou
acessível em Jesus Cristo. São João resume assim toda a aventura da
1
Verbum Domini (VD), nº 6
2
Palavra, na Igreja: “E o Verbo faz-se carne e habitou entre nós, e nós vimos a
sua Glória, glória que recebe de seu Pai, como Filho único, cheio de graça e de
verdade” (Jo. 1,14). Depois da Encarnação da Palavra eterna, em Jesus Cristo,
ouvir Deus é sempre ouvir o seu Filho, escutar Deus é sempre escutar Jesus
Cristo.
É por isso que a primeira resposta que Deus espera do seu Povo, é que
O escute, que acolha a sua Palavra. Antes de anunciar é preciso escutar.
Uma Palavra actual
2. A Exortação Apostólica diz-nos, logo no início, que a Bíblia não é uma
Palavra do passado, mas uma Palavra viva e actual2. Esta preocupação vem
ao encontro de uma dificuldade real dos cristãos de hoje frente à Palavra de
Deus. Qual é a perspectiva: Deus falou no passado e nós tentamos
compreender o que disse e tirar daí ensinamentos? Ou Deus fala hoje,
continua a interpelar-nos e a surpreender-nos com a Palavra que nos dirige? “A
fé cristã não é uma religião do Livro; o cristianismo é a religião da Palavra de
Deus, não de uma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo” 3.
Se o cristianismo fosse só “uma religião do Livro”, o esforço da Igreja
limitar-se-ia a analisar o texto para ver o que Deus disse ao seu Povo, nas
diversas etapas da sua história. Mas nós acreditamos que a Palavra de Deus é
actual, Ele continua a ser um Deus em diálogo com o seu Povo, a conduzi-lo
pela sua Palavra em cada momento e circunstância da história. Se acreditamos
que Deus continua a falar-nos, a atitude da Igreja tem de ser outra: a da
escuta, coração aberto para escutar agora o que Deus diz à Igreja, que é o seu
Povo.
Como é que Deus nos fala hoje
3. Para bem escutarmos a Palavra do Senhor, temos de ter uma
consciência clara dos modos como Deus fala hoje ao seu Povo e a cada um de
nós.
Ele fala-nos pelo seu Filho Jesus Cristo. Palavra eterna de Deus fez-se
Homem e ficou connosco. N’Ele, Deus diz-nos tudo e sempre o que tem para
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3
VD, nº 5
VD, nº 7
3
nos dizer. Na encarnação do Verbo “a Palavra não se exprime primariamente
num discurso, em conceitos ou regras; mas vemo-nos colocados diante da
própria Pessoa de Jesus. A sua história, única e singular, é a Palavra definitiva
que Deus diz à humanidade. Daqui se compreende por que motivo, no início do
ser cristão não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com
um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte”4.
Na escuta amorosa da Palavra que Deus dirige hoje ao seu Povo, é
essencial a relação com a Pessoa de Jesus nas suas diversas expressões: a
adoração, a celebração da Eucaristia, as suas palavras que nos foram
transmitidas pelos Evangelhos. Só na relação com Jesus Cristo se escuta a
Palavra do Pai. Cristo é, para todos os tempos, a Palavra do Pai.
Desde que esteja garantida esta relação de fé e de amor com a Pessoa
de Jesus, a Igreja pode escutar a Palavra de Deus através de outros meios e
caminhos. No Sínodo “falou-se justamente de uma sinfonia da Palavra, de uma
Palavra única que se exprime de diversos modos, um canto a várias vozes” 5. A
unidade desta sinfonia é a Pessoa de Jesus, Palavra eterna de Deus, a Quem
devo escutar numa relação de fé e de amor”. A própria expressão Palavra de
Deus indica a Pessoa de Jesus Cristo, Filho eterno do Pai que se fez
Homem”6.
Nesta sintonia de vozes, através das quais Deus nos fala por Jesus
Cristo, avulta a Sagrada Escritura que se tornou linguagem de Jesus Cristo. Só
n’Ele e por Ele a Escritura se torna Palavra de Deus hoje. Santo Ambrósio
afirmava que “o Corpo do Filho é a Escritura que nos foi transmitida”. “Deus
através de todas as palavras da Escritura diz só uma Palavra, o seu único
Verbo em que se diz inteiramente a Si Mesmo”. E Santo Agostinho afirmava:
“lembrai-vos de que o discurso de Deus que se desenvolve em todas as
Escrituras é um só, e um só é o Verbo, que se faz ouvir na boca de todos os
escritores sagrados”7.
Outras vozes que nos podem ajudar, hoje, a ouvir o que Deus nos diz
em Jesus Cristo, são a maneira como em todos os tempos a Igreja escutou o
Senhor, lendo as Escrituras. É a fé da Igreja, conduzida pelo Espírito, em todos
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VD, nº 11
VD, nº 7
6
Ibidem
7
VD., nº 18
5
4
os tempos, na escuta da Palavra de Deus. A Exortação Apostólica afirma-o
claramente: “Em última análise é a Tradição viva da Igreja que nos faz
compreender adequadamente a Sagrada Escritura como Palavra de Deus”8.
E, finalmente, podemos escutar o que Deus nos diz hoje em Jesus
Cristo, contemplando a Criação, se acreditarmos que, por Ele, foram feitas
todas as coisas (cf. Jo. 1,3), que Ele é o primogénito de toda a criação (cf. Col.
1,15) e que todas as coisas foram criadas por meio d’Ele e em vista d’Ele (cf.
Col. 1,16). É possível escutar o Criador, observando as criaturas. Aí a sinfonia
alarga-se à imensa beleza da variedade das criaturas. Como afirmava São
Boaventura “toda a criatura é Palavra de Deus porque proclama Deus”9.
Dialogar com Deus com as próprias Palavras de Deus
4. Escutar, hoje, a Palavra de Deus é aceitar entrar no diálogo para que
Ele nos convida e atrai e, portanto, mergulhar na experiência da comunhão que
se exprime, em Igreja, na relação com Jesus Cristo.
Entrar neste diálogo está acima das nossas forças humanas. Só o
Senhor pode pôr nos nossos lábios e no nosso coração as palavras que
havemos de responder à Palavra do Senhor. A nossa palavra com que
respondemos à Palavra de Deus é um dom do próprio Deus, suscitada em nós
pelo Espírito Santo. Se tentarmos responder a Deus só com as nossas
palavras humanas, nunca entraremos verdadeiramente nesse diálogo, talvez
nem cheguemos a escutar a voz do Senhor.
Voltamos à importância da Sagrada Escritura. Através dela, Deus não só
nos fala hoje pelo seu Filho Jesus Cristo, mas põe na nossa boca as palavras
com que devemos responder à Palavra viva de Deus, porque a Sagrada
Escritura tantas vezes sugere a resposta que Deus deseja. Cristo não é apenas
a Palavra definitiva mas é a resposta perfeita à Palavra eterna do Pai. No
seguimento de Jesus Cristo aprendemos a responder a Deus. Se aprendermos
a encontrar na Sagrada Escritura as nossas respostas à Palavra que Deus nos
dirige, interiorizamos a nossa aceitação dos textos sagrados como Palavra de
Deus, espontaneamente repetimo-los e memorizamo-los, de modo a
transformarem-se espontaneamente na nossa resposta a Deus que nos fala. A
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9
VD., nº 17
cf. VD., nº 8
5
Sagrada Escritura é como uma língua que se aprende e se torna parte de nós,
da nossa compreensão e da nossa expressão.
Escutamos e respondemos à Palavra de Deus, movidos pelo Espírito
Santo. Participamos mais uma vez, no dinamismo trinitário de comunhão das
Pessoas Divinas. O facto de Deus Pai nos falar, através do seu Filho, o seu
Verbo, acontece no Espírito de amor que brota da relação do Pai e do Filho.
Sempre que nos fala, pelo seu Filho, Deus comunica-nos o seu Espírito e só
Ele nos permite escutar e responder. “A Palavra de Deus exprime-se em
palavras humanas, graças à obra do Espírito Santo. A missão do Filho e do
Espírito Santo são inseparáveis e constituem uma única economia da
salvação”10. O Evangelista São João sublinha esta acção do Espírito Santo na
escuta da Palavra. É Ele que ensinará os discípulos, recordando-lhes tudo o
que o Senhor disse; é Ele que conduzirá os discípulos à plenitude da verdade
(cf. Jo. 14,26; 16,13).
Escutar a Palavra em Igreja
5. A Igreja, Povo do Senhor, é o verdadeiro interlocutor de Deus. É ao
seu Povo que o Senhor fala e se revela; é dele que espera uma resposta, é a
Igreja que é enviada a anunciar a Palavra, participando da própria missão do
seu Senhor.
O equilíbrio entre a escuta pessoal da Palavra, e o acolhimento que da
mesma Palavra faz a Igreja, é um equilíbrio difícil de conseguir. Depende,
fundamentalmente, da inserção de cada cristão na comunhão da Igreja, o que
o leva a rejeitar qualquer interpretação da Palavra que não coincida com a da
Igreja. De facto, ao longo dos séculos, sempre que cristãos, individualmente ou
em grupo, pretenderam escutar a Palavra sem estarem em comunhão com
toda a Igreja, correram o risco de escutarem o que gostariam de ouvir e não o
que Deus tem para lhes dizer.
A Exortação Apostólica recorda-nos que “a relação entre Cristo, Palavra
do Pai e a Igreja (…) é uma relação vital, na qual cada fiel é, pessoalmente,
convidado
a
entrar”11.
A
escuta
da
Palavra
tem
de
ser cultivada
simultaneamente com a vivência da Igreja como comunhão, com Jesus Cristo e
10
11
VD., nº 15
VD., nº 51
6
por Ele, com a Santíssima Trindade. “A contemporaneidade de Cristo com o
ser humano de cada época realiza-se no seu Corpo, que é a Igreja”12.
Ao longo dos séculos, apesar das dificuldades do tempo e da história, foi
a Igreja, esse “nós” que é o Povo do Senhor, que escutou bem a Palavra do
Senhor. “Mestra da escuta, a Esposa de Cristo repete, com fé, também hoje:
falai, Senhor, que a vossa Igreja vos escuta”13.
A escuta da Palavra, por cada cristão, faz-se aderindo à maneira como a
Igreja escuta a mesma Palavra, aprofunda-se rezando com a Igreja,
transforma-se em missão, anunciando-a com a Igreja e em nome da Igreja. É
preciso que em cada cristão que escuta a Palavra, seja a Igreja que a escuta.
Escuta da Palavra e Nova Evangelização
6. A renovação da evangelização tem o seu destino ligado ao modo
como toda a Igreja e cada cristão escutam, hoje, a Palavra do Senhor. “A Igreja
é uma comunidade que escuta e anuncia a Palavra do Senhor (…) só quem se
coloca primeiro à escuta da Palavra é que pode depois tornar-se anunciador”14.
É que a mensagem central da Palavra é a manifestação do infinito amor de
Deus pelos homens, expresso em Cristo, de modo especial na sua oferta
pascal. A evangelização é sempre o anúncio sincero e experimentado deste
infinito amor de Deus. A Nova Evangelização precisa do ardor e da comoção
de quem se sentiu tocado por essa Palavra que Deus nos diz hoje, sempre, em
cada dia da nossa vida.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
12
Ibidem
Ibidem
14
Ibidem
13
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II Catequese - "Escutar a Palavra do Senhor