EDIT
ORIAL
EDITORIAL
Interface - Comunicação, Saúde, Educação vem, com este número 19 e suas 274 páginas,
expressar a força do campo interdisciplinar de conhecimento e práticas em que se conformou a
Saúde Coletiva brasileira. Em nosso caso, destacando sua articulação com as Humanidades,
especialmente a Educação e a Comunicação. Ao mesmo tempo, verificamos um crescente interesse
de pesquisadores de distintas áreas das Ciências Humanas por temas que envolvem a Saúde e / ou
a formação dos profissionais de Saúde.
O expressivo crescimento da demanda de textos para publicação em nossa revista tem exigido
um grande trabalho do corpo editorial de Interface. Tal fato tem nos desafiado a aprimorar nossa
prática editorial para que a quantidade não comprometa a qualidade. Estamos nos referindo, aqui,
não só à qualidade do que publicamos, como, também, à qualidade da relação com nossos
colaboradores-autores. Compreendemos que o trabalho editorial não se limita à publicação ou
rejeição de um artigo; sua essência está, sobretudo, no caráter pedagógico e cooperativo do
processo editorial-científico, promovendo o diálogo entre autores, editores e assessores-consultores
da revista. Com a finalidade de aprimorar a qualidade do processo editorial, aumentamos o nosso
corpo de editores no último ano e ampliamos a responsabilidade dos editores-associados com a
avaliação e julgamento dos trabalhos submetidos à publicação.
A diversidade de campos temáticos e recortes teórico-metodológicos apresentados neste
número 19 de Interface reflete, em boa medida, os comentários que abrem este editorial.
No Dossiê sobre o Estado, o público e o privado, três diferentes abordagens desta temática
trazem aos leitores recortes distintos e complementares da dialética e complexa relação “públicoprivado”. Giovanni Aciole examina tais esferas buscando superar a leitura dicotômica usualmente
feita, enquanto Fausto Santos e Emerson Merhy examinam criticamente a regulação pública na
saúde. Maria e Marco Andreazzi, em conjunto com Diana Carvalho, apresentam proposta
metodológica de análise e gestão de conflito na relação público-privado no setor saúde.
Charles Tesser abre a seção Artigos discutindo criticamente o processo de medicalização social
no Brasil, com base na visão illicheana e ancorando-se nas concepções epistemológicas de Fleck –
análise essa que terá continuidade no próximo fascículo de Interface. Questões epistemológicas
também estão presentes na revisão crítica realizada por Ildeberto de Almeida sobre a análise de
acidentes de trabalho, na qual aponta a emergência de um novo paradigma.
A formação universitária e a questão curricular comparecem em três artigos: um deles focaliza as
relações que médicos egressos da residência em Obstetrícia/Ginecologia estabelecem com a
realidade de saúde-doença no Brasil; outro discute as concepções de professores e alunos sobre o
papel da comunicação no exercício da prática médica, apontando a necessidade de se contemplar
esse campo de conhecimento em projetos pedagógicos de cursos de Medicina; e o terceiro analisa
a presença de temas sobre Educação em Saúde no currículo de cursos de Pedagogia.
A comunicação também é objeto de estudo em investigação sobre o papel do discurso da mídia
impressa na construção de imagens e sentidos acerca de questões que envolvem a saúde de
trabalhadores; e em outro artigo que defende a emergência do virtual em projetos de inclusão social
e de formação de pessoas com necessidades especiais.
A Educação em Saúde, tema nuclear da revista, presente em todos os fascículos, comparece em
vários outros artigos da presente edição, tratando da problemática da saúde bucal na terceira idade.
Outros textos discutem estratégias de Educação em Saúde em diferentes contextos e espaços das
práticas de atenção à saúde.
A diversidade temática deste número se completa com a resenha sobre humanização do parto e
os vários resumos de teses e dissertações.
Por fim, mas não menos importante, temos o instigante texto de Ana Alcídia Moraes, discutindo as
possibilidades de uso da carta na pesquisa qualitativa; e, ainda, a expressão criativa de André
Nunes, em nossa seção Criação, com “Pêlos pelos fora da ordem”.
Esperamos que nossos leitores estabeleçam um diálogo profícuo com os colaboradores desta
edição, instigando-os a novas reflexões e futuros debates.
Os editores
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.7, jan/jun 2006
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EDIT
ORIAL
EDITORIAL
Interface - Comunicação, Saúde, Educação, in this 19th issue of 274 pages, expresses the power of
the Brazilian Collective Health interdisciplinary field of knowledge and its practices, in our case
highlighting its articulation with the Humanities, especially Education and Communication. At the
same time, we are witnessing a rising interest among researchers from the different areas of the
Humanities in themes involving Health or Healthcare worker training.
The substantial growth of demand for publishing articles in our journal has required a lot of effort
from Interface’s editorial staff and has driven us to improve our editorial practices, to ensure that
quantity does not jeopardize quality. We refer not only to the quality of what we publish but also of our
relationship with our collaborators and authors. We believe that editorial work is not limited to merely
publishing or turning down an article. To the contrary, its essence lies in the pedagogical and
cooperative nature of the editorial-scientific process, fostering a dialogue between the journal’s
authors, editors, advisors and consultants. To improve the quality of our editorial process, we have
increased our body of editors during the last year and expanded the responsibilities of our associated
editors, through the review and evaluation of the works submitted for publication.
The diversity of themes and of theoretical and methodological angles found in this 19th issue of
Interface largely reflects the opening comments of this editorial.
In the Dossier on the “State and the public and private elements”, three different approaches to the
theme provide our readers with different but complementary viewpoints of the complex and dialectic
“public vs. private” relation. Giovanni Aciole examines these spheres trying to overcome the usual
dichotomic interpretation, whereas Fausto Santos and Emerson Merhy critically examine public
regulation of healthcare.
Together with Diana Carvalho, Maria and Marco Andreazzi present a methodological proposal for
analyzing and managing conflict within the public vs. private relation in the healthcare field.
Charles Tesser opens the Articles section critically discussing Brazil’s social medicalization
process, based on an Illichean view whose underpinnings are the epistemological ideas of Fleck –
an analysis that will extend into Interface’s next issue. Epistemological issues are also found in
Ildeberto de Almeida’s critical review of the analysis of occupational accidents, in which he sees a
new paradigm emerging.
Higher education and the issue of curriculums appear in three articles. One of them focuses on
the relations between physicians that have just completed their residency in Obstetrics & Gynecology
and the reality of health and illness in Brazil; another discusses the ideas of professors and students
on the role of communication within medical practice, indicating a need for taking this field of
knowledge into account in the pedagogical structure of Medical courses; and the third one analyzes
the presence of the Education and Health themes in the curriculums of Teaching courses.
Communication is also the focus of a study investigating the role of the discourse of print media
on the construction of the images and meanings associated with occupational health issues, as well
as of another article that defends the emergence of the virtual element in projects of social inclusion
and for training people with special needs.
Health Education, the journal’s core subject, found in all its issues, appears in several of this
issue’s articles, on the problematics of mouth healthcare among senior citizens. Other texts discuss
Health Education strategies within the different contexts and arenas of healthcare practices.
A review of the humanization of childbirth and several abstracts of theses and dissertations
complement the diversity of this issue.
Last but not least, we have Ana Alcídia Moraes’s instigating text on the possibility of using letters
for qualitative research, as well as the creative expression of André Nunes in our Creation section,
with his “By the out of order people, out of order hair”.
We hope our readers establish a useful dialogue with this issue’s collaborators, encouraging
them to search for new reflections and future debates.
The Editors
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.8, jan/jun 2006
Uma abor
dagem da antinomia
abordagem
‘público x priv
ado’: descortinando relações
privado’:
para a saúde coletiva*
dossiê
Giovanni Gurgel Aciole da Silva 1
ACIOLE, G. G. An approach of the ‘public x private’ antinomy: revealing relationships for public health.
Educ., v.10, n.19, p.7-24, jan/jun 2006.
Interface - Comunic., Saúde, Educ.
This paper proposes to reveal the difference between what we recognize as public and what we understand as
private, beyond manicheisms or simplifications of common sense. It is a very important task for anyone
involved in making public health policies viable, given the coexistence of two health systems in our country: the
SUS (the government’s Single Healthcare System) and Supplementary Healthcare. To understand the meanings
ascribed to the terms ‘public’ and ‘private’, this article addresses the interfaces between both, based on a
historical-critical recovery of elements articulated along two major dimensions of modernity, the economic one
and the political one. By recovering the construction of the Babel of meanings and senses that are applied as
adjectives to the elements in question, it concludes that there is more of an interpenetration relation between
them than the dichotomic, opposing character that we generally ascribe to them.
KEYWORDS: public health. health system. SUS (BR).
Propõe-se descortinar a diferença entre o que reconhecemos como público e o que entendemos como privado,
além dos maniqueísmos ou simplificações do senso comum. Tarefa particularmente importante para todos os
que se debruçam na viabilização das políticas de saúde, e haja vista a convivência de dois sistemas de atenção à
saúde em nosso país: o SUS e a Saúde Suplementar. Para compreender os significados emprestados aos termos
‘público e privado’, abordam-se as interfaces existentes entre ambos, a partir da recuperação histórico-crítica de
elementos, articulados em duas macrodimensões da modernidade: a econômica e a política. Ao resgatar a
construção da babel de significados e sentidos com que são adjetivados os dois termos, conclui-se haver mais
uma relação de interpenetração entre ambos do que a tendência dicotômica e de oposição em que comumente
os colocamos.
PALAVRAS-CHAVE: saúde pública. sistema de saúde. SUS (BR).
*
Elaborado a partir de Aciole (2003).
Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Departamento de Medicina, Universidade Federal de São Carlos, SP.
<[email protected]>
1
1
Rodovia Washington Luís, km 235
São Carlos - SP
Brasil - 13.565-905
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.7-24, jan/jun 2006
7
ACIOLE, G. G.
Introdução
A estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS) - um conjunto de ações e
serviços embasado nas premissas de universalidade, integralidade,
resolutividade e humanização; racionalização de recursos com gestão
integrada, planejamento ascendente, hierarquização e regionalização;
abrangência nacional com descentralização ao nível local e coresponsabilização de todas as esferas de governo; e abertura à participação
comunitária, institucionalizada na forma de conselhos setoriais - tem
produzido uma forte ampliação das demandas e uma reorganização da
oferta de serviços ao buscar responder, em boa medida, à dinâmica das
demandas sociais.
O dinamismo interno à sociedade, que eclodiu desde a década de 1980
em cenários reivindicatórios do conjunto dos direitos de cidadania, fez
sobressair, entretanto, além da luta por mais saúde, a questão dos
consumidores. Assim é que o Congresso Nacional aprovou, no mesmo ano
(1990), a Lei Orgânica do SUS e o Código de Defesa do Consumidor. Desde
1991, portanto um ano depois do nascimento legal do SUS, desenrola-se o
processo de regulamentação dos Planos e Seguros Privados de Assistência à
Saúde, que acaba por fazer o Congresso Nacional aprovar a Lei 9.656, em
03 de junho de 1998 (Carvalho, 2003) e vai levar à criação da Agência
Nacional de Saúde Suplementar em 2000. Este processo de reorganização
resolve a omissão da própria Constituição Federal de 1988 e da Lei
Orgânica da Saúde de 1990, que sequer mencionaram a necessidade de
regulação deste setor, e acaba colocando o tema do mercado privado de
saúde na agenda governamental (Bahia, 2001).
A nova dinâmica social produzida pela legislação trará à tona, daí em
diante, a falsa estabilidade e o forte caráter fetichista existente na
‘assistência à saúde’ dos planos privados. Este setor vai mergulhar numa
agenda de conflitos e reclamos relativos às disputas de interesses do
governo, das operadoras, dos prestadores e usuários/consumidores.
Cenário muito influenciado pela mobilização social que passa a exigir outro
tratamento para a questão do sistema privado de atenção à saúde e, para o
qual, torna relevante a inexistência, ou insuficiência, de legislação
reguladora (Aciole, 2004).
Entretanto, durante a trajetória dos 14 anos do SUS e do Código de
Defesa do Consumidor, tem se aprofundado a crise de ajuste estrutural da
economia do país às novas injunções do capitalismo mundial, com reflexos
na ordenação das políticas públicas. Nesse processo, setores vitais, como a
saúde e a educação, assistiram a adoção de políticas segmentadas, focais e
compensatórias, que restringem o escopo de ação do Estado a um mínimo –
a uma cesta básica de procedimentos – enquanto se alargam as bases de
atuação do mercado privado. Situação esta reveladora de uma certa tensão
e crise nos caminhos de consolidação de um modelo amplo, eficiente e
universal de assistência à saúde, e que alimenta o dinamismo e a tensão
interna à sociedade civil.
O recorte liberal (ou neoliberal, como prefere a maioria) coloca, de
maneira evidente, que tamanho deve ter o público para que não atrapalhe
o privado: o agente público deve atuar perante a ausência do agente
8
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.7-24, jan/jun 2006
UMA ABORDAGEM DA ANTINOMIA ‘PÚBLICO X PRIVADO’...
Alusão ao livro de
Ítalo Calvino “As
cidades invisíveis”, em
que narra o encontro
fictício entre Marco
Pólo e o imperador
Gengis Khan, que pede
ao mercador que
descreva seu império.
Entre as cidades
descritas por Marco
Pólo, encontra-se
Ercília, onde os
moradores têm o
estranho hábito de
marcar com fitas
coloridas suas relações
sociais e afetivas.
Assim, de cada casa
parte uma profusão de
fitas de cores variadas
marcando simbólica,
mas publicamente,
cada tipo de relação
existente. Pensemos na
vida cotidiana atual: se
as cores de Ercília
fossem adotadas, qual
grau ou carga de
publicização a vida
suporta? Há algum
grau de privatização
que devemos e
podemos considerar
como valor intrínseco
para o que é tornado
público?
2
privado, ou se ausentar para não atrapalhar a harmonia imanente às
relações privadas. O Estado deve, quando muito, regulamentar o mercado,
mas não a ponto de impedir que este viceje e se consolide. Onde as
condições de mercado sejam ausentes ou insuficientes, aí deve estar o
Estado em ações corretivas ou compensatórias. Ou ainda, o Estado deve
restringir-se a um conjunto de funções específicas, mas genéricas o
suficiente, para ficar longe de concorrer com o setor privado. Neste
processo, Estado e Mercado, enquanto setores emblemáticos da dualidade
público/privado, acabam sendo reconhecidos como entidades antagônicas,
separadas, distintas, embora permaneçam ligados pela trama social em que
se estabelecem e que, simultaneamente, os estabelece.
De fato, os profetas e apóstolos da supremacia do mercado centram-se
na defesa de que uma mão invisível contribuirá para a auto-regulação e se
encarregará de produzir a justa e equânime distribuição de riqueza. O
projeto liberal se utiliza deste reconhecimento para alimentar reafirmações
da supremacia do mercado sobre o Estado, ressaltando para este o papel de
obstáculo às condições gerais de desenvolvimento econômico enquanto
lugar da ineficiência, do desperdício, da inoperância, de empecilho da
plenitude daquele. É principalmente por esta razão que o Estado deve ser
reformado de modo a se adequar à nova realidade afirmada na (e pela)
supremacia do mercado em geral. Um discurso que anda na contramão do
que foi proposto pela Reforma Sanitária, que defendeu constituir uma
sólida política pública ancorada no agente Estado, sob a ação de governos
comprometidos com a mudança das condições médico-sanitárias da
população brasileira.
Os dias atuais têm trazido à tona o caráter da relação – complementar,
suplementar, parceria - que teria o setor privado com o público, e viceversa. No Brasil, trava-se uma luta política essencial em torno da
consolidação de projetos cujo cerne passa pela afirmativa singular do papel
do Estado, e de sua configuração, que se vislumbra um contexto ideológico
em que se reconhecem distintos modelos de espaço público, somente
invisível se nela não colocarmos as cores de Ercília2 (Costa, 2002). Na saúde,
em particular, a discussão passa pelo aprofundamento das raízes que foram
conformando dois sistemas de atenção, um estatal, outro privado, e dos
vínculos entre eles.
Neste contexto ideológico, temos cotidianamente afirmada uma
distância praticamente intransponível, posta na afirmação da diferença
entre ser usuário do sistema público versus ser consumidor dos planos de
saúde do sistema privado, revelada à luz das estratégias e ações com que as
corporações profissionais e os movimentos sociais, por exemplo, disputam
projetos e modos de organizar a assistência à saúde e à doença. No caso da
saúde, esta clivagem tem recebido sustentação ideológica que separa
“usuários” de “consumidores”, e que se estrutura com base em pares de
opostos: preventivo x curativo, rede básica x hospital, ações coletivas x ação
individual, saúde pública x medicina, liberdade de escolha versus controle e
agilidade e eficiência versus burocracia, descaso, filas e regulação.
A esta separação se acoplam clichês que afirmam o predomínio de valores
positivos e negativos para um ou outro sistema, respectivamente. Em
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.7-24, jan/jun 2006
9
ACIOLE, G. G.
função disso, os sistemas público e privado ocupam nichos em que
apresentam incompatibilidade de gênios, ou seja, o que é público não pode
e nem deve se confundir com o que é privado, e vice-versa.
Incompatibilidade que se embaralha com a sobrecapa ideológica que os
cerca, pois, o que temos no senso comum a respeito, é a vinculação de
‘público’ a atividade de governo, e ‘privado’ como sinônimo de iniciativa
individual, particular. Não parece ser outra a visão predominante da saúde
pública, por exemplo: setor que tem tratado a denominação de pública
como sinônima de estatal; e utiliza esta sinonímia nas estruturações
técnico/políticas do projeto de um sistema nacional de saúde (Elias, 1999).
Estas questões nos levam a problematizar a babel de significados e
sentidos que envolvem o par ‘público - privado’ e que os têm adjetivado e
marcado profundamente perante o senso comum numa posição de
antinomia, para, enfim, compreender as dimensões política e econômica
que tornam possível aprofundar o conhecimento da natureza das relações
entre ambos.
A polissemia de ‘público’ e sua antinomia em relação a ‘privado’
O termo público pode ser tomado como referência a tudo que pode ser
visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Segundo Arendt
(1999), sermos vistos e ouvidos por outros é importante pelo fato de que
todos vêem e ouvem de ângulos diferentes: e esta é a base conceitual que
opera a construção do ‘comum’, do compartilhamento; é nesta diversidade
que ocorre a manifestação da realidade do mundo de maneira fidedigna.
Por sua vez, o cruzamento de posições e de diversos pontos de vistas,
divergentes e complementares, requer mecanismos de eleição, legitimação
e representatividade do que constitui o interesse maior de todos, a despeito
de que cada um tenha os seus próprios.
Por esta conotação com a coisa comum, um dos significados atribuídos
ao termo refere-se à noção de coletivo que, por sua vez, remete à idéia de
espaço aberto, no qual circula um número indefinido de sujeitos, de
indivíduos. Assim, vamos denominar de públicos os eventos acessíveis a
qualquer um, assim como falamos de locais públicos ou prédios públicos,
fama ou renome públicos. Contudo, já se verifica desde aí a sua vinculação
com privado: em todos estes espaços vai estar sempre presente a noção
oposta, de privado, particular, individual.
Quando nos referimos ao público de um espetáculo, de um jogo de
futebol, por exemplo, a idéia imediatamente posta faz alusão ao coletivo de
expectadores, de assistentes daquele evento, composto, porém, por
assistentes privados, isto é, por particulares. Na expressão recepção pública
manifesta-se a noção de reconhecimento público, de acontecimento
coletivo, novamente apropriada por um elemento particular: o agente
privado que a promoveu e os indivíduos privados que a ela compareceram.
Por sua vez, renome público, isto é, caráter público do nome ou da fama,
dá sustentação a um conjunto de destaques pessoais que perseguem, ou
possuem, os candidatos a celebridades, e cuja obtenção tem sido a tônica da
sociedade atual, mas é oriunda de outras épocas de onde provém a
atribuição de valor intangível para a fama e o renome (Habermas, 1984).
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.7-24, jan/jun 2006
UMA ABORDAGEM DA ANTINOMIA ‘PÚBLICO X PRIVADO’...
À expressão prédio público, por sua vez, vincula-se uma dupla idéia: pela
primeira se reconhece aquele prédio como um lugar acessível a todos,
portanto, disponível para todos os que o buscarem; pela segunda pode se
referir a prédios que, paradoxalmente, nem precisam estar liberados a
freqüência pública, mas simplesmente abrigam instituições do Estado. Este
é o poder público, que deve o atributo a sua tarefa de promover o bem
público, o bem comum a todos os cidadãos, criando e conservando os locais
tanto para o seu poder quanto para a sua tarefa.
Em serviço público ou saúde pública sobrepõe-se, imediatamente, a
idéia de pertencimento coletivo, como uma dobra: é de todos e não é de
ninguém, em particular. Todos gozam da sensação de que a possuem, ou
podem acessar seus serviços, mas ninguém pode reclamar sua posse
privada, embora a gozem individualmente. Desse modo, a noção do
pertencimento coletivo está também na privacidade do acesso e usufruto
de serviços e ações concretas compartilhadas por todos, simultaneamente,
mas vivida na singularidade particular. Aqui, mais uma vez, público carrega
consigo privado!
O termo público parece, portanto, semear polissemias. Público vincula-se
ao bem comum, ao interesse coletivo, à noção de pertencimento geral,
universal, enquanto privado praticamente significa o interesse particular, o
individual. O domínio comunal é coisa pública: o poço e a praça do mercado
são para uso comum, são bens publicamente acessíveis, comuns, coletivos;
oposta existe a esfera do particular, do particularizado, separado, privativo.
O âmbito do que é setor público contrapõe-se ao que é privado, ou seja, “o
particular é a liberação do próprio cerne do domínio fundiário e da
esfera pública” (Habermas, 1984, p.78).
Com base na noção de coletivo manifesta-se outro significado para
público: opinião pública. Esta se refere a um modo de manifestação da
vontade coletiva e ao exercício de uma opinião crítica constituída por um
público pensante de sujeitos privados, que recebe grande mediação pela
mídia e pela publicidade. Segundo Habermas (1984), na sua evolução, a
opinião pública, dotada de função crítica, vai se consolidar como o público
formador de opinião, que vai produzir o pensamento que se coloniza como
senso comum. Para esse autor, o sujeito da opinião pública é o público
formador de opinião, uma função crítica que o mundo da vida operaria
sobre o sistema político e econômico e, que, no fim, termina por se referir à
publicidade, isto é, o conhecimento por um número não limitado de
indivíduos.
A opinião pública cumpre uma importante função política: a
consolidação do pensamento burguês e a colonização deste espaço pelos
formadores de opinião, pelos formadores do senso comum. Estes são o
público que lê, pensa, se manifesta e consolida uma imagem do mundo
comum à semelhança do que lê e ouve. Esta é uma ação fundamental desde
a queda dos regimes absolutistas e a ascensão da nova classe burguesa na
sua luta pela hegemonia política e conquista do poder, que praticamente
obriga “todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, (...) a
abraçar a chamada civilização, isto é, a se tornarem burguesas” (Marx
& Engels, 1998 [1848], p.44).
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.7-24, jan/jun 2006
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ACIOLE, G. G.
A formação de uma opinião pública, coletivo de sujeitos privados, vai se
colocar, para Habermas (1984), como um elemento separador entre o
Estado e a Sociedade, ou seja, entre uma esfera do público e uma esfera do
privado. Por intermédio da opinião pública, a primeira intermedeia o
Estado e as necessidades da sociedade; à segunda corresponde o setor de
trocas de mercadorias e o trabalho social, incluída a família com sua esfera
íntima. Além disso, no setor privado também está abrangida a ‘esfera
pública’, pois ela é uma esfera de pessoas privadas. Segundo aquele autor,
verifica-se uma dialética em que temos, de um lado, a socialização do
Estado, e de outro, a estatização progressiva da sociedade. Entre ambos
surge, contudo, uma esfera social repolitizada, que foge à distinção entre
público e privado: a opinião pública.
Para Gramsci (2000, p.265), a opinião pública “está estreitamente
ligada à hegemonia política, ou seja, é o ponto de contato entre a
‘sociedade civil’ e a ‘sociedade política’, entre o consenso e a força”. Desta
condição, deriva que o Estado “quando quer iniciar uma ação pouco
popular, cria preventivamente a opinião pública adequada”, isto é,
organiza e centraliza alguns elementos da sociedade civil na direção dos
interesses que quer ver colocados. Como o conteúdo político da vontade
política tornada opinião pública pode ser discordante, “existe luta pelo
monopólio dos órgãos da opinião pública – jornais, partidos, parlamento
– de modo que uma só força modele a opinião e a vontade política
nacional, desagregando os que discordam numa nuvem de poeira
individual e inorgânica”. Na disputa pelo predomínio de uma opinião
pública em que prevaleça uma só força, se constitui uma luta surda, em
que a obtenção do consenso acerca do que constitui interesse público,
importância pública não precisa ser, necessariamente, a opinião ou a
vontade da maioria, e não tem um caráter permanente, sendo tão volátil e
inconstante quanto a dinâmica interna da sociedade, dividida em vários
grupos sociais.
A opinião pública deságua no âmbito das mídias, condição que alterou
profundamente o seu significado: de uma função política tornou-se
atributo de quem desperta a opinião pública – o publicitário. Essa
transformação acontece pela apropriação, por um indivíduo ou um grupo,
das condições materiais de despertar a opinião pública, por intermédio dos
meios de comunicação de massa, TV, rádio e jornais. A ponto de que já não
é mais despertada, é produzida com base nos interesses manifestos e/ou
ocultos, mas essencialmente particulares, que movem a produção da
comunicação e a difusão de informações nas sociedades capitalistas do
mundo todo. E aqui, mais uma vez, não se pode fugir da abdução de
público no privado, mesmo quando falamos de uma expressão tão enfática:
opinião pública!
Ao termo privado, em oposição à polissemia de público, sincronicamente
a opinião pública, foi associada a idéia de mercado: lugar dos produtores
particulares, desprovidos da função ou da dimensão pública (estatal).
Privado significa, pois, estar excluído, desprovido do aparelho de Estado.
Ora, fora do aparelho de Estado está o mercado, e privado vai ganhar
associação a mercado. Privado assume, deste modo, um forte vínculo com a
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.7-24, jan/jun 2006
UMA ABORDAGEM DA ANTINOMIA ‘PÚBLICO X PRIVADO’...
produção e circulação de mercadorias e serviços, como o espaço em que
operam produtores e consumidores, individuais e/ou coletivos, atuando em
seus interesses mais imediatos e diretos. O mercado é visto como um
território em que, deixados livres, os homens são iguais, e prescindem de
um poder regulador, pois, suas relações de produção e consumo caminham
para o equilíbrio. E quanto mais equilíbrio menos se tornam dependentes
de uma força exterior, pois se isto vier a ocorrer, o dissenso e o conflito
serão o preço a pagar. Sob tal ótica, o mercado é o templo da liberdade!
No sentido oposto, público se reforça como sinônimo de estatal,
atributo que se refere ao funcionamento, regulamentado e de acordo com
competências, de um aparelho munido do monopólio da utilização legítima
da força, ao mesmo tempo em que provido e legitimado pela
representatividade que assume para regular a vida coletiva e cotidiana.
Público se refere ao Estado formado, cujas funções ampliadas e
diversificadas requerem a utilização de uma força- tarefa específica,
legisladores e técnicos investidos de um papel que os torna servidores
públicos. Assim denominados porque, enquanto servidores do Estado,
ocupam uma função pública, suas atividades são públicas, e também são
chamados de públicos os prédios e estabelecimentos da autoridade. Do
outro lado, há pessoas privadas, cargos privados, negócios privados e casas
privadas – o verdadeiro cerne do mercado.
Para Sorj (2000), esta oposição constitui uma das antinomias mais
comuns da sociedade atual. O senso comum tem associado a esses termos
significados que marcam distinção de duas esferas de atividades. Duas
palavras, dois significados opostos, duas esferas de produção! O autor
aponta que as tradições anglo-saxônica e européia constroem diferentes
significados para estas duas esferas. Na primeira, o espaço público se
constitui com base no indivíduo como portador dos interesses grupais que
delega para os governos agirem enquanto serviços públicos ou serviços
civis, portando-se segundo normas universais acordadas de antemão. Na
segunda, as corporações e o Estado são os representantes do bem comum e
do interesse público. A tradição européia considera que o indivíduo e o
Estado republicano representam a nação, herdeira dos valores da tradição
francesa guiada pela igualdade, fraternidade e liberdade; mas aqui o Estado
assume a guarda dos valores comuns e adquire um poder tutelar sobre as
ações individuais, dado que estas podem colocar em risco os valores
republicanos.
Um problema comum a ambas, segundo Sorj, é que não reconhecem
outras instituições fundamentais na realidade social, baseadas em
princípios de ordem moral e institucional de outra natureza que não a
individual e a estatal, integradas à sociedade, como a família, transformada
pela modernidade e pelo modelo capitalista; ou de ordem política militante,
como as minorias raciais e sexuais. Esta é uma questão que, segundo ele,
deve ser anotada, pois constitui a pedra angular como alternativa ao
movimento pendular que vão estabelecer, entre si, Estado e mercado.
Por outro lado, da constituição do público na perspectiva individualista,
decorrem duas características: de um lado, inexiste a oposição Estado/
indivíduo, com espaço para diversos tipos de associações e instituições
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.7-24, jan/jun 2006
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ACIOLE, G. G.
intermediárias, cujo limite é apenas a liberdade individual; de outro lado, o
problema reside em como construir um denominador comum, ou seja, os
valores que permitam fundar a solidariedade e a identidade coletiva.
Para concluir, embora o termo público receba uma forte conotação que o
liga a coisa comum, ao coletivo, numa suposta primazia sobre o privado, o
particular, o individual, ou vice-versa, propomos o abandono de tal
tendência, e até mesmo a demarcação nítida e separatória entre ambos.
Antes, consideramos uma simplificação colocá-los em polaridade de opostos.
Vista sob este ângulo, a relação público/privado não pode, e não deve, ser
resolvida por saídas simplistas. Enfim, é fundamental desfazer a confusão
de se considerar estatal como sinônimo de público; bem como deixar de
ver o privado como o não-estatal. A força de público reside, a nosso ver, na
relevância para compreender privado, e vice-versa, num mundo que
reivindica contínua reinterpretação e constantemente aponta relações de
interpenetração. É necessário, ainda, refletir sobre a existência de trânsitos
entre estes dois setores, não exatamente distinguidos pela clientela que
atendem ou servem, ou pela valoração ideológica que os marcam (Aciole,
2004; 1999).
Devemos investigar esta antinomia, sob a premissa fundamental e, mais
do que isso, necessária, de que a referência à coisa pública não deixa de ser
uma interpelação do privado, numa relação dialética. Afinal, como propõe
Grau (1998), podemos admitir uma dimensão pública para a privacidade
no campo pessoal, que deve ser defendida, assim como para a concorrência
no campo econômico, que deve ser limitada. E esta relação precisa ser
tomada em um duplo de possibilidades: tanto na dimensão econômica que
estabelece o privado como o lugar da produção, quanto na dimensão
política, quase correlata, que atribui ao público, representado pelo Estado,
o lugar da política. Sendo, ambas, uma construção da modernidade.
A dimensão político-econômica na relação ‘público/privado’
O revelador dos vínculos político-econômicos entre público e privado, dados
pelo modo de produção capitalista, é Karl Marx (1996), que os ampliou e
foi além dos limites que Adam Smith e David Ricardo haviam alcançado. O
vínculo político, segundo ele, é representado pela solução corporativoinstitucional chamada “Estado” e sua dimensão pública, que adiante
exploraremos. O vínculo econômico, surgido em função do modo de
produção capitalista, integrará dois mecanismos para sua realização: um
público - o tempo de trabalho socialmente necessário, disponível na mão de
todos, e um privado – a acumulação do capital, que o novo modo de
produção exigirá que seja restrito a poucos.
Segundo a visão marxista, o mercado é o elemento constituinte das
relações sociais do novo modo de produção, como lugar de circulação e
troca do capital: nele se colocam, de um lado, os compradores da força de
trabalho, isto é, os proprietários do capital e, do outro lado, os vendedores,
que só dispunham de sua força de trabalho, que se constitui em típica
mercadoria, o principal produto a ser obtido no mercado.
É por intermédio da sua força de trabalho que os indivíduos,
organizados socialmente de modos historicamente determinados,
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UMA ABORDAGEM DA ANTINOMIA ‘PÚBLICO X PRIVADO’...
produzem objetos, produzem a si mesmos e produzem a sobrevivência da
espécie. A equação entre consumo de força de trabalho num determinado
período de tempo é que realiza o valor dos produtos do trabalho humano.
Este tempo, que a força de trabalho utiliza na produção, é definido pela
organização da sociedade construída historicamente segundo seus
interesses e necessidades: por conta disso, pode-se falar em tempo de
trabalho socialmente necessário como definidor de valor dos produtos. O
valor sugere a generalização do trabalho humano como mercadoria, no que
tem sido o motor do desenvolvimento da sociedade moderna e do
capitalismo.
Marx (1996) acrescenta que o fator ‘equivalente’ se constitui no
mecanismo que possibilita a apropriação privada do processo de trabalho
coletivo realizado por sujeitos individuais. Ao dissecar este mecanismo,
acaba por construir uma conceituação revolucionária, e moderna, para o
conceito de propriedade, que não constitui mais parte fixa e firmemente
localizada no mundo, adquirida por seu detentor de uma maneira ou de
outra; ao contrário, passa a ter no próprio homem a sua origem, mais
precisamente no corpo e na propriedade de força deste corpo, a que ele
denominou de ‘força de trabalho’.
Da capacidade da força de trabalho em produzir um excedente além do
necessário para a obtenção das condições de sobrevivência, e da capacidade
do capital em remunerar a compra desta força sempre mais próxima do
limite de atendimento das necessidades materiais de sobrevivência do
trabalhador, resulta a expropriação deste excedente, que constitui a maisvalia: unidade essencial que era capturada pelo capital em sua forma de
conversão do trabalho! Trabalho convertido em capital constituía
capacidade de adquirir trabalho que era capturado pelo capital. Gênese de
relação contraditória sobre a qual, contudo, se assenta a possibilidade de
apropriação privada do produto coletivo.
Em sua crítica a Marx, Arendt (1999) aponta o viés evolucionista que o
fez tomar a sociedade moderna como superior em relação às que lhe
antecederam, no nível elementar da questão da propriedade, que estabelece
a separação entre público e privado. De fato, talvez mais preocupada com as
fronteiras entre o público e o privado do que aquele autor, contrapõe que o
pensador e militante alemão tomara uma dimensão do trabalho - o labor,
envolvido na sobrevivência e na relação de transformação da natureza
hostil - como sinônima integral daquele. Ao questionar este aspecto, a
filósofa alemã vai buscar nos gregos o vínculo existente entre posse privada
e vida pública, ressaltando que a dimensão envolvida com a sobrevivência
estava restrita à esfera privada, e era inteiramente ausente de dimensão
pública. Esta, no entanto, se mantém presa por uma relação de
interdependência, pois, para gozar da vida em público, o indivíduo não
podia estar expropriado da posse de bens privados, entre estes, o lar privado
e a liberdade. A diferença entre privado e público repousa, portanto, na
distinção entre o que deve ser exibido e o que deve ser ocultado, e esta
distinção, por sua vez, reside na supremacia do que era considerado público
- a polis, sobre o que é privado - a oikos; embora fosse a propriedade desta
última, com suas terras e escravos, que assegurasse a possibilidade de
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presença na primeira.
A vida pública era uma prática coletiva exercida pelos homens livres e,
portanto, proprietários, num imediatismo sem mediações, num exercício
de individualidades sem representações, com duas atividades: a ação
(práxis) e o discurso (lexis), e representava a própria realização do
humano. No mundo moderno, estas esferas diferem muito menos entre si:
a política se tornou uma função da sociedade, e a ação, o discurso e o
pensamento são superestruturas assentadas no interesse social, perante o
qual a sociedade moderna impõe regras aos seus membros, tomados em
igualdade, e espera, de cada um, certo tipo de comportamento geral.
Embora, como Marx, aponte o fato de que a sociedade moderna esteja
voltada para as necessidades do homem, a pensadora alemã também
discorda de que, no caso moderno, estas necessidades estejam orientadas
pelo fato de que o trabalho passou a ocupar lugar central na nova
sociedade, assumindo a esfera de preocupação pública, haja vista que é de
sua exploração que se constrói e reproduz o capital. Neste particular,
adverte-nos, pouco importa se uma nação se compõe de homens iguais ou
desiguais, pois a sociedade contemporânea exige que os seus membros ajam
como se fossem membros de uma enorme família dotada apenas de uma
opinião e de um único interesse. E mais, a sociedade equaliza sempre e em
quaisquer circunstâncias, exibindo como signo moderno a igualdade,
elemento intrínseco que amalgama o social. A vitória da igualdade no
mundo moderno é, para ela, fruto do reconhecimento jurídico e político de
que a sociedade conquistou a esfera pública, e que a distinção e a diferença
reduziram-se a questões privadas do indivíduo.
Considerando que as divergências entre Arendt e Marx possam decorrer
do fato de que observaram a realidade por meio de perspectivas diferentes,
Wagner (2002) salienta que nenhum dos dois jamais acreditou nas leis do
mercado como solução absoluta para os problemas do homem moderno,
pois, segundo ela, não se pode confiar que o mercado se move sempre para
o equilíbrio e seja capaz, por si próprio, de solucionar os problemas atuais
da sociedade. Na medida em que se aprofundam os mecanismos de
acumulação do capital via transformação produtiva, que enaltece o advento
de tempo livre como conquista do homem do próximo século - só que um
tempo livre desacompanhado dos meios de subsistência - e produz uma
sensação de perda da durabilidade do mundo comum, tal afirmativa se
insere na convicção de que o problema do mundo do trabalho é um
problema político, tanto quanto econômico.
Além disso, há que se considerar a transição do conceito de ‘econômico’,
que até o século XVII estava ligado ao círculo das tarefas do domicílio, do
pater familiae, e que passa a se orientar pelo mercado. Segundo Habermas
(1984), isso vai se dar porque as atividades e relações de dependência, até
então confinadas ao âmbito da economia doméstica, ultrapassam o limiar
do orçamento doméstico. Ao fazê-lo, surgem à luz da esfera pública, ou
seja, são publicizadas. O desenvolvimento da esfera pública vai ocorrer
intrinsecamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo e da
modernidade, e acompanhará as transformações advindas da organização
do Estado moderno e das mudanças trazidas à vida política e à organização
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da sociedade, onde é uma esfera quase exclusivamente burguesa.
Para Habermas (1984), a evolução do modelo liberal de trocas da etapa
mercantil do capitalismo, pela conjugação da concentração do capital e da
organização de grandes empresas, produzirá relações verticais de
concorrência imperfeita, preços independentes, e poder social em mãos
privadas, gerando crises reveladoras da estrutura antagônica de sociedade e
tornará urgente a necessidade de um elemento coercitivo forte, o Estado,
dotado de representatividade e poder de eleger os interesses coletivos como
seu alvo e sua função, que se transformam em polícia e burocracia no
Estado moderno. Com tal representatividade, o Estado é visto como um
espaço interno que estabelece critérios e valores norteadores das práticas de
livre comércio; os destinatários de seu poder, as pessoas privadas
submetidas a ela, constituem um público.
Assim investido, o Estado intervém profundamente no intercâmbio de
mercadorias e no trabalho social, por meio de leis e de medidas
administrativas, vinculadas aos interesses dominantes que buscam
perturbações mínimas nas condições ideais de funcionamento da produção
econômica, o que imprime uma ambigüidade peculiar às relações de
regulação e organização do espaço: admitem ser regulamentados tanto
quanto querem ser deixados livres em suas iniciativas. Além disso, a
ambigüidade do intervencionismo estatal no mercado tende a estar ligada
aos interesses da sociedade burguesa, e ao mesmo tempo, deverá se
constituir de forma separada daquela. Esta ambivalência peculiar acaba por
se alocar em sítios específicos: a regulamentação pública ao Estado e a
iniciativa privada ao mercado. Estado e Sociedade civil constituirão, enfim,
duas esferas distintas: pública e privada. Resistindo ao intervencionismo, a
sociedade civil e burguesa se constitui em contrapeso à autoridade do
Estado; este, por seu turno, vai se ancorar num interesse privado, próprio
daqueles que controlam o exercício do poder estatal, que se consolida como
algo tangenciável apenas pelos que lhe são subordinados, isto é, as pessoas
privadas excluídas da participação no poder público.
A regulamentação, por sua vez, vai ser exercida como uma função
atribuída a um grupo específico: os legisladores. A solução dada para a vida
em comum nas sociedades capitalistas ocidentais passa pela separação entre
a sociedade – a polis – e os espaços institucionais que vão se corporificando
em grandes estruturas. Assim, os parlamentos modernos, embora
adquiram ares de representação para a polis, na verdade, sequer parecem
reais para a maioria dos cidadãos comuns (Bobbio, 1997). Sob esta dupla
via, desenrola-se a elaboração de mecanismos muito sutis de dominação e
controle na produção e reprodução das condições materiais de
reprodutibilidade, mais tarde denominados por Gramsci (2000) de
hegemonia.
Modernamente, segundo Arendt (1999), o que chamamos de sociedade
pode ser considerado um conjunto de famílias economicamente
organizadas de modo a constituírem uma única família sobre-humana, cuja
forma política de organização é denominada nação, e cujos negócios diários
devem ser atendidos por uma administração doméstica nacional e
gigantesca; condição que talvez dificulte nossa compreensão da divisão
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entre as esferas pública e privada, ou seja, entre a esfera da polis e a esfera
da família. Entretanto, embora tenha avançado a diluição entre uma e
outra, a sociedade atual não conseguiu fazer desaparecer a intrínseca relação
entre pertencer a um lar privado, exercer a liberdade política e possuir
condições de acesso e consumo dos serviços e bens da sociedade capitalista,
como razões de modernidade.
Não obstante, a modernidade vai desmaterializar a questão da
propriedade como condição imanente para a vida pública, sob a ótica do
estabelecimento da cidadania realizada pela outorga do reconhecimento de
uma pletora de direitos. Tipificados como direitos civis, direitos políticos e
direitos sociais, e relacionados a períodos históricos do desenvolvimento da
sociedade capitalista e da complexidade das relações sociais no seu bojo,
caracterizam respostas específicas do Estado às demandas políticas e coletivas
em períodos históricos definidos (Marshall, 1967 apud Donnangelo, 1976).
Sob esta dupla transformação, a emersão do social aprofunda a diluição
entre as classes sociais (segundo a ótica marxista, marcadas pela posição
ocupada no modo de produção capitalista), pelo afrouxamento das
fronteiras demarcatórias entre elas. Isto é, o ‘social’ se constitui como um
espaço de interpenetração do público e do privado, justaposto ao
desenvolvimento da sociedade capitalista e do aprofundamento da divisão
social em classes.
A formação do ‘social’ produz uma decomposição da esfera pública, na
alteração de suas funções políticas, pela mudança estrutural das relações
entre esfera pública e setor privado. Esta mudança vai caracterizar a atual
relação moderna entre esfera pública e privada, na qual ocorre uma
interpenetração, isto é, uma parte da esfera privada vai se tornando pública,
ao passo que o público, no fundo, se coloca a serviço dos interesses privados
que o dominam. Esta separação é colocada em questão quando as forças
sociais conquistam competências de autoridade pública, o que é resultado da
constitucionalização de uma esfera pública politicamente ativa, isto é, pela
transferência de competências públicas para entidades privadas, com base na
emergência da questão social mediada pela afirmação de direitos (Habermas,
1984).
A modernidade, inaugurada no XIX, vai ser marcada pela emergência de
uma cultura de classe média, na qual imperam necessidades hedonistas e
sensualistas, socialmente produzidas no cuidado com o corpo e a entrega aos
prazeres culturais, a que se associa uma preocupação hipocondríaca com a
saúde, e para a qual a resposta da prática médica vai ser sobejamente
adequada (Gay, 2002; Rosen, 1994). Contudo, tanto quanto a consolidação
e o predomínio do modo burguês de produção, o desenvolvimento do
capitalismo, em suas diversas etapas, constitui também uma história
marcada pelo desenrolar de sucessivas crises, que fizeram aflorar a luta
organizada dos principais afetados pela recessão e escassez econômica: os
trabalhadores (Hobsbawm, 2002a; 2002b).
Os direitos sociais, especialmente dirigidos às classes e aos segmentos
sociais desfavorecidos no contexto de crise, eram uma resposta do novo
Estado, que incorporou novas funções a fim de manter o modo de produção
equilibrado. Esta intenção preservadora pressupunha a extensão de sua base
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de legitimação, que seria obtida pela participação de outros contingentes
populacionais no processo de usufruto do produto comum. Tal participação
implicava uma socialização do produto comum, ou de parcelas, por meio da
ação do Estado no controle e regulação da atividade de mercado, no sentido
de orientar a produção e disciplinar o esforço coletivo de consumir como
política pública, ou seja, parece apontar a necessidade de ‘domesticação’ do
ímpeto capitalista (Boron, 1994).
O aparecimento do ‘social’ permite, portanto, reconhecer a tradução que
as grandes massas conseguem fazer aos antagonismos econômicos
tornados conflitos políticos. À medida que o conjunto de não-proprietários
assume dimensão e tamanho, emerge a questão da pobreza como uma
questão social, e como problema para a ação estatal, isto é, parte da esfera
privada da sociedade é tornada publicamente relevante. O processo de
substituição de poder público pelo poder social revela o fracasso da
desvinculação da esfera pública frente aos interesses privados, pois as
próprias condições em que deveria ocorrer a privatização dos interesses
foram trazidas para a disputa dos interesses organizados. Este fato dissolve
o setor como aquele no qual as pessoas privadas reunidas num público
(coletivo) regulam entre si as questões gerais de seu intercâmbio, ou seja, a
visão liberal da esfera pública.
A estes efeitos, certamente, correspondeu o desenvolvimento de
mecanismos de assistência, tanto pública quanto privada, mais aquela do
que esta. Tal intervenção se configurou em praticamente todas as
sociedades capitalistas européias em formação. Particularmente na
Inglaterra, nas várias etapas do desenvolvimento capitalista, a assistência à
pobreza implicou, inclusive, a assistência médica, e revela o caráter de
tutela da sociedade sobre tais massas (Rosen, 1994; Donnangelo, 1976).
Tutela que é, também, uma reação ao temor latente gerado pela presença
de grupos altamente móveis, e vistos como perigosos à sociedade, ou
mesmo reação aos períodos cíclicos de crises e rupturas, que põem em risco
a estabilidade institucional, e que podem ser apontadas em períodos bem
datados.
Tais intervenções cumprem um duplo papel – de um lado, vão ao
encontro dos interesses dos economicamente mais fracos, de outro,
também servem para repeli-los, mas, acima de tudo, demonstram o
interesse na manutenção do equilíbrio do sistema, que não pode ser
assegurado unicamente por intermédio do mercado livre. Como exemplo,
as formulações de Keynes (1996) no pós-guerra apontavam como
principais defeitos da sociedade econômica a incapacidade de proporcionar o
pleno emprego, e a arbitrária e desigual distribuição de riqueza e das
rendas. E propunham a intervenção estatal sobre a atividade econômica,
pela adoção de um sistema de tributação e pela fixação de uma taxa de
juros; também não excluíam a adoção de outras medidas para que os
investimentos assegurassem o pleno emprego. No entanto, reconheciam
que isso não implicava a exclusão de ajustes e fórmulas de toda espécie, que
permitissem ao Estado cooperar com a iniciativa privada: pressuposto que
tem sido recuperado em certas formulações de governos atuais, o que não
revela o caráter burguês de suas origens.
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As formulações keynesianas, cujo conjunto de políticas sociais resultou
no chamado Estado de Bem-Estar, colocaram, segundo Heilbroner (1996),
a ampliação das funções do Estado – em que este assume um caráter de
organismo planejador, regulador da liberdade de mercado – na seqüência
do esgotamento da visão liberal mais ortodoxa. Analisando esta etapa do
desenvolvimento capitalista, Boron (2002; 1994) considera que essa
experiência social e econômica levou a um efeito contraditório: tanto a
classe burguesa não pode sobreviver sem o auxílio da hipertrofia do Estado
– aliás, como o demonstra o funcionamento real do capitalismo maduro e a
despeito das negativas que fazem seus profetas ultraliberais – quanto a
classe operária tampouco está disposta a reverter os avanços sociais
conquistados, em sua secular luta contra a burguesia, e que se cristalizam
no chamado Estado benfeitor. Já Oliveira (2000), por exemplo, considera
que a esfera pública burguesa, tanto na perspectiva ‘habermasiana’, de
espaço de sujeitos privados em relação ao Estado, quanto ‘marxista’, de
lugar de concorrência dos capitais, foi processada pelo Estado de Bem-Estar
para uma forma não-burguesa. Neste caso, o Estado de Bem-Estar configura
uma regulação de fora, tanto sobre os sujeitos privados, quanto sobre o
mercado da força de trabalho, provocando profundas modificações (quer
internas, quer externas) na classe operária.
Em suma, ser permanente foco de tensões é um elemento característico
da natureza da relação entre as duas esferas, a pública e a privada; relação
que foi se tornando cada vez mais problemática à medida que avança a
massa de não-proprietários, de excluídos, que vão perseguir, por meio de
intervenções públicas no setor privado, o êxito contra a tendência à
concentração de capital, e fazer com que a sua participação se revele.
Aumentando e diminuindo ciclicamente ao longo da história, irá
produzindo focos de reivindicações a que o Estado procurará dar resposta,
embora preso aos interesses de equilíbrio do sistema e da manutenção de
sua própria legitimação. O tamanho da porosidade com que se deixa
penetrar pela massa de proprietários e não-proprietários é que vai dar a
condição de legitimidade e de publicidade com que este ‘interesse público’
vai ser identificado, e que tipo de constituição vai lograr obter, assim como
a própria avaliação que vai receber na forma de opinião pública (Habermas,
1984).
Considerações finais
Reunidos os traços emblemáticos da vinculação político/econômica que
recobre a antinomia ‘público x privado, podemos apontar algumas
conclusões e possibilidades de uso. O primeiro ponto a ressaltar é o de que
a exploração desta antinomia, com base em uma abordagem crítica,
apresenta uma dupla importância teórico/prática: é central para a
compreensão da política, constituída no processo histórico das sociedades
ocidentais, e é basilar para a compreensão das relações sistêmicas entre os
agentes econômicos, públicos ou privados, na produção e oferta de bens e
serviços. Chão fecundo em que se mesclam, em ciclo, os campos da política
e da economia.
Uma outra significação decorre de que, tomando-se por base as idéias de
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coletivo, de pertencimento comum, e de opinião pública, podemos
emprestar a um bem, serviço ou indivíduo uma força de significação ímpar,
quando lhe ressaltamos uma atribuição de caráter público, ou de
importância para o coletivo (Habermas, 1984). Esta significação dá lugar,
força e valor intangível a bens, como a saúde, que adquire importância
pública, coletiva, mas não leva, necessariamente, à supremacia do elemento
estatal.
Tomada como questão social e como um sistema organizado de serviços
e ações, a Saúde apresenta inegável duplicidade, tanto conceitual quanto
operacional, na qual interagem tanto o indivíduo quanto o coletivo, tanto
o Estado quanto o mercado, tanto a dimensão pública quanto a privada.
Esta característica a tem feito objeto de uma intensa disputa de interesses
ideológicos, especialmente nas dimensões econômica e política. Disputa
que, no caso brasileiro, vai constituindo uma cultura própria para cada um
dos dois termos (público e privado) à medida que vão sendo estruturados
dois sistemas de saúde: um público (estatal) e outro privado.
Disputa que pode ser reveladora, por sua vez, da complexidade que cerca
as relações subjacentes ao binômio Estado/Mercado. Estes setores
representam o chão concreto em que se disputam os projetos societários
que organizam os distintos modos – público e privado – da oferta, produção
e o acesso de bens como a saúde. Neles, as forças em disputa buscam
vincular suas práticas a pólos que utilizam como elemento estrutural o
binômio ‘medicina x saúde pública’. Tal polarização tem dificultado o
necessário diálogo entre elas e tem conduzido a uma falsa dicotomia que
separa público de privado: o primeiro associado às práticas de saúde pública;
o segundo, às da medicina hegemônica (Aciole, 2003).
Em grande medida, esta dicotomia constrói um movimento pendular
entre distintos modos - universais ou restritos - de organização da oferta
dos produtos, serviços e ações para contingentes populacionais, cujo
tamanho variará em função da amplitude e das noções que ganhem público
e privado; e de que decorre a amplitude dos acessos permitidos por estas
mesmas noções. Diferenciados em sua natureza política e suplementares/
complementares em evidente vinculação econômica, cada um destes
subsistemas vai produzindo no senso comum uma oscilante opinião
pública, de base dicotômica, em favor de um ou de outro modo de se
prestar assistência ou cuidar da vida dos indivíduos e grupos.
Finalmente, voltemos nossa atenção para o país em que vivemos, que
apresenta uma situação de intensa concentração de renda, a ponto de
distinguirmos duas nações num mesmo território: híbrido que já recebeu a
denominação de Belíndia. A respeito do Brasil, tem-se como paradigmático
o modo com que se entrelaçaram nossas condições de emancipação política,
a superação das bases coloniais de nossa economia (Furtado, 2000; Prado
Jr., 1990), e o aprofundamento dos mecanismos de dependência em relação
aos mercados europeu (particularmente, o inglês) e norte-americano
(Fausto, 2002). Ou ainda, se quisermos delinear o desenvolvimento
econômico-político da nação brasileira em seus contornos mais específicos,
destaquemos a característica que ‘condenou’ as novas terras descobertas: o
longo tempo de exploração colonial, marcha sugadora de riquezas mais do
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que formadora de um novo país, e que durou quase quatro séculos (Prado
Jr., 2000). Tanta durabilidade parece ter condenado o desenvolvimento
social e o processo de identificação/definição dos projetos das classes sociais
brasileiras a adotarem um modelo de desenvolvimento cujos contornos
foram identificados na forma da chamada ‘via colonial’ (Chasin, 2000).
Tais características revelam os traços particulares que assumiu o
desenvolvimento capitalista em nosso país: resultado do conjunto de
interesses econômicos e políticos dos segmentos dominantes nas suas
relações de classe com as demais frações componentes da tessitura social.
Representam, ainda, o recurso ao viés patrimonialista no qual o próprio
Estado corporativo se constitui e é o agente impulsionador do
desenvolvimento à brasileira (Faoro, 2000; Sorj, 2000).
Estas condições tornam muito atual a abordagem marxista para
compreensão crítica desse estado de coisas, e que nos convidam a refletir
sobre algumas questões candentes: Como pensar e viver, neste cenário, as
relações entre o público e o privado? Qual o tamanho do espaço do ‘público’
e do ‘privado’? Afinal, o que é ‘público’? E ‘privado’? Repensar
continuamente estas questões, tanto quanto procurar respondê-las, é
fundamental para estabelecermos mais clareza na lide cotidiana a que nos
entregamos apara a consolidação de um sistema de saúde verdadeiramente
público e para o público, que dialogue com a totalidade social e seus
contraditórios.
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.7-24, jan/jun 2006
23
ACIOLE, G. G.
ACIOLE, G. G. Un abordaje de la antinomia publico-privado: revelando relaciones para la
Salud Colectiva . Interface - Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10, n.19, p.7-24, jan/jun
2006.
Este trabajo plantea la diferenciación entre lo que reconocemos como ‘publico’ y como
‘privado’, más allá de las simplificaciones y maniqueísmos del sentido común.
Diferenciación muy importante para todos ustedes que, como nosotros, estamos
envueltos en la implantación de políticas de salud verdaderamente públicas, e
considerando la existencia de dos sistemas en nuestro país: el SUS (Sistema Único de
Salud) e el Sistema Suplementar de Salud. Para esta diferenciación, nuestro artículo
aborda las interfaces existentes entre los términos ‘público’ y ‘privado’ y parte de la
recuperación histórico-crítica de los elementos articulados en dos macrodimensiones de
la modernidad: la dimensión económica y la dimensión política. Después de tal trayecto,
este trabajo revela existir una relación de interpenetración entre ambos más que la
tendencia dicotómica y de oposición en que comúnmente los colocamos.
PALABRAS CLAVE: salud pública. sistema de salud. SUS (BR).
Recebido em: 12/05/05. Aprovado em: 14/09/05.
24
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.7-24, jan/jun 2006
A rregulação
egulação pública da saúde no Estado
br
asileiro – uma revisão*
brasileiro
Fausto Pereira dos Santos 1
Emerson Elias Merhy 2
SANTOS, F. P.; MERHY, E. E. Public regulation of the health care system in Brazil - a review. Interface Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10, n.19, p.25-41, jan/jun 2006.
Aiming at analyzing the public regulation of the health care system in Brazil, this essay concerns the area of
Healthcare Management and Policies. Taking regulation to mean the capacity to intervene in the offer of
services, changing or orienting their execution, the paper discusses its historical evolution, its determinants, the
different regulation strategies used, their objectives, the actors involved, and, in particular, the instruments
created by the government, one of the actors. The study is based on a review of the subject, debating
conceptual issues and the tools used in the regulatory process in the healthcare field, its reach and limitations.
KEY WORDS: health policy. SUS (BR). health planning. health service.
O estudo se inscreve na Gestão e Políticas de Saúde, objetivando analisar a regulação pública da saúde no Brasil.
Entendendo a regulação como a capacidade de intervir nos processos de prestação de serviços, alterando ou
orientando a sua execução, discute a sua evolução histórica, seus determinantes, as diferentes estratégias de
regulamentação utilizadas, seus objetivos, os atores envolvidos e, em particular, os instrumentos criados pelo
ator governo. O estudo se apóia em revisão sobre o tema, discutindo aspectos conceituais e ferramentas
utilizadas no processo regulatório em saúde, seus alcances e limites.
PALAVRAS-CHAVE: política de saúde. SUS (BR). planejamento em saúde. serviços de saúde.
*
Elaborado a partir de Santos (2006).
1
Diretor Presidente, Agência Nacional de Saúde Suplementar, Rio de Janeiro, RJ. <[email protected]>
Professor visitante, Pós-Graduação da Clínica Médica, Universidade Federal do Rio de Janeiro; professor voluntário, Departamento de
Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. <[email protected]>
2
1
Rua Augusto Severo, 84, 9º andar
Glória - Rio de Janeiro, RJ
Brasil - 20.021-040
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.25-41, jan/jun 2006
25
SANTOS, F. P.; MERHY, E. E.
Introdução
A teoria econômica clássica atribui a “lei da oferta e da demanda”, em um
mercado de livre competição, à determinação das quantidades e dos preços
da produção. Quando não estão dadas as perfeitas condições de competição,
ocorrem as “falhas de mercado”. Na ocorrência destas “falhas de mercado”,
deveria se dar a intervenção do Estado na economia (Castro, 2002;
Donaldson & Gerard, 1993; MCGuire et al., 1992).
Donaldson & Gerard (1993) identificam as seguintes características da
competição perfeita: racionalidade, inexistência de externalidades, perfeito
conhecimento do mercado por parte do consumidor, consumidores agindo
livremente em seu benefício, numerosos e pequenos produtores sem poder
de mercado. Estes mesmos autores identificam que, na saúde, nenhuma
das condições de perfeita competição está presente, e, neste caso, se
justificaria uma ação mais intensa do Estado. As principais falhas de
mercado identificadas são: ocorrência de riscos e incerteza; “risco moral”;
externalidades; distribuição desigual da informação; existência de barreiras
(Castro, 2002).
Na teoria econômica a regulação poderia ser caracterizada como a
intervenção estatal para corrigir “falhas de mercado”, utilizando
instrumentos como incentivos financeiros e de comando e controle. A
categoria regulação encontra-se largamente utilizada na Administração
Pública, nas Ciências Sociais e na Economia. Segundo Boyer (1990, p.181),
seria a “conjunção dos mecanismos que viabilizam a reprodução do
conjunto do sistema, em função do estado das estruturas econômicas e
das formas sociais”. No setor saúde, este termo, além de se referir aos
macroprocessos de regulamentação, também define os mecanismos
utilizados na formatação e no direcionamento da assistência à saúde
propriamente dita (Andreazzi, 2004).
O ato de regular em saúde é constitutivo do campo de prestação de
serviços, sendo exercido pelos diversos atores ou instituições que provêem
ou contratam serviços de saúde. O conceito, as práticas e finalidades da
regulação em saúde ainda são objeto de debate, existindo compreensões
distintas do tema, além de sofrerem variações ao longo dos anos e
conforme o entendimento dos atores sociais em foco.
Magalhães Jr. (2006, p.40) apresenta a questão da seguinte forma:
O termo regulação tem sido utilizado no âmbito da saúde com
um sentido mais amplo do que a mera regulamentação dos
mercados, estando relacionado a uma função desempenhada
pelos sistemas de saúde em geral, mesmo nos majoritariamente
públicos, não sendo apenas uma função de regulação mais
clássica das relações de mercado na saúde, como uma das
maneiras de correção das chamadas imperfeições de mercado.
Pela diversidade dos sistemas de saúde e abrangência da função
de Estado na saúde, o termo assume claramente uma
característica polissêmica.
D’Intignano & Ulman (2001) citados por Magalhães Jr. (2006) analisam as
26
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.25-41, jan/jun 2006
A REGULAÇÃO PÚBLICA DA SAÚDE NO ESTADO...
políticas de regulação, partindo da idéia de que as políticas de saúde buscam
um equilíbrio entre três objetivos: 1) o realismo macroeconômico, que
impõe a cobertura de despesas pelas receitas e um sistema que não
prejudique o emprego e a produção; 2) a eficiência microeconômica, que
exige um nível satisfatório de prestação de serviços, um sistema com bom
desempenho, produtividade das estruturas de prestação de serviços e
eliminação de desperdícios; e 3) a eqüidade social, que deve se traduzir no
acesso aos cuidados e a uma repartição geográfica eqüitativa dos meios.
A regulação no Sistema de Saúde brasileiro
A regulação da saúde pelo Estado brasileiro tem a sua importância dada
pelo modelo de prestação de serviços adotado ao longo do tempo. Entendese, aqui, o processo de regulação como a intervenção de um terceiro entre a
demanda do usuário e a prestação efetiva do ato de saúde pelos serviços de
saúde. A regulação já se fazia presente nas Caixas de Aposentadorias e
Pensões (CAPs) e nos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), na
medida que foram estabelecidas regras para a utilização de serviços e
medicamentos, bem como ofertados serviços de saúde para seus
beneficiários, estabelecendo regras de utilização. Nos IAPs, como o modelo
adotado foi o da compra de serviços, em detrimento da sua prestação direta
pela Instituição, essas ações se intensificaram. Todas se caracterizam como
regulação dos serviços de saúde.
Com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em
1966, esse processo se acelerou e a assistência médica prestada pelo Estado
passou a ocorrer basicamente pela aquisição de serviços privados. Como o
INPS necessitava de uma enorme rede de prestadores espalhada por todo o
país, o processo de formação dessa rede poderia ser caracterizado como o
primeiro e mais importante mecanismo regulatório praticado pela
Instituição. Os critérios utilizados, bem como o perfil da rede credenciada,
definiram inicialmente o tipo de assistência a ser praticado a partir daí.
Portanto, esse modelo adotava um modo de regulação, junto aos seus
prestadores, nos mais variados formatos: regulação comercial,
administrativa, financeira e assistencial. A relação comercial e de
pagamento com os seus credenciados definiu a relação e o padrão
assistencial. Ao se optar pelo pagamento por procedimentos via Unidades
de Serviços (US), direcionou-se toda a rede prestadora para uma lógica de
produção de atos isolados e de maior custo. A operação administrativa
oriunda desse formato comercial seria outro aspecto regulatório definidor
da assistência. Os mecanismos e fluxos de controle e avaliação definidos
passaram a induzir fortemente o tipo de assistência prestada pela rede
credenciada. As revisões administrativas, glosas, autorizações definiram o
que podia ou não ser feito e padronizaram a operação dos prestadores.
Outro aspecto foi a regulação financeira, que ocorreu fundamentalmente
pelas restrições orçamentárias e a definição dos valores em uma tabela de
remuneração. A capacidade de pagamento e a majoração ou não de valores
de procedimentos definiram quais ações seriam feitas em maior ou menor
quantidade e que acesso seria permitido aos usuários do sistema.
Nesse momento inicial, a regulação da assistência propriamente dita foi
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.25-41, jan/jun 2006
27
SANTOS, F. P.; MERHY, E. E.
o aspecto mais relegado na construção e consolidação de um marco
regulatório para a assistência à saúde no Brasil. Os mecanismos instituídos
inicialmente guardam pequena relação com os aspectos qualitativos dos
serviços prestados, com a regulação do acesso e critérios de elegibilidade
para a execução de ações de saúde.
Importante destacar que esse processo se aprofundou muito com a
expansão dos serviços privados de saúde contratados pelo Instituto
Nacional de Assistência Médica (INAMPS), em 1978, que atuava junto aos
prestadores privados contratados pelo sistema previdenciário, buscando
controlar principalmente a produção e os gastos na assistência médica aos
segurados. Este modelo de regulação centrava-se no controle sobre os
gastos do setor, apoiados em uma excessiva normatização, imposição de
regras e fluxos. No caso específico do INAMPS, o processo regulatório foi
tanto mais intenso quanto maior era a crise financeira da instituição. Um
exemplo desta prática restritiva foi a Portaria nº 3.042/82, que limitava os
exames por percentuais das consultas, objetivando o controle da prestação
de serviços (Brasil, 1982). O Sistema de Controle e Avaliação do INAMPS
cresceu proporcionalmente ao aumento da demanda por assistência médica
e, principalmente, do número de prestadores desses serviços. Este modelo
de regulação caracterizou-se pelo seu alto grau de centralização,
verticalização das ações, decisões e normalização centrais, e pela dualidade
advinda de diferentes culturas institucionais e de mando, que se expressa
com a fragmentação da ação do Estado no sentido de promover a saúde da
população. Essa situação, em geral, é evidenciada, de um lado, pelos
métodos utilizados de planejamento normativo, administração paramétrica
e controle, avaliação contábil-financeira; e de outro lado, pelos métodos de
organização dos serviços e avaliação com base em programas verticais de
saúde pública (Merhy, 1992).
Etapa importante no processo regulatório desenvolvido consistiu no
desenvolvimento, no INAMPS, dos tradicionais sistemas de controle,
avaliação e auditoria. No processo de descentralização para as Secretarias
Estaduais e Municipais de Saúde, esses serviços foram incorporados na
mesma lógica de sua constituição original. As ações desenvolvidas
ocorreram de forma bastante normalizada e tinham como objetivo o
acompanhamento da relação econômica estabelecida com os prestadores
credenciados, particularmente no tocante à correção das faturas
apresentadas.
Este trabalho se propõe a discutir o projeto de regulação pública na
saúde, no estado brasileiro, após a implantação do SUS, nos seus múltiplos
aspectos: conceituais, históricos, seus determinantes, o processo de
formulação, suas estratégias de regulamentação, os atores que atuam no
processo de regulação e, em particular, os instrumentos criados pelo ator
governo para facilitar o processo regulatório.
A distinção das diferentes conceituações
A regulação pode ser entendida como a capacidade de intervir nos processos
de prestação de serviços, alterando ou orientando a sua execução. Essa
intervenção pode ser feita por intermédio de mecanismos indutores,
28
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.25-41, jan/jun 2006
A REGULAÇÃO PÚBLICA DA SAÚDE NO ESTADO...
normalizadores, regulamentadores ou restritores. A intervenção entre a
demanda e a prestação direta dos serviços, nos seus diversos aspectos, pode
ser caracterizada como mecanismo de regulação. A demanda, assim como a
prestação de serviços, podem se organizar das mais variadas formas e travar
o seu relacionamento nos mais diversos campos. Assim sendo, as
possibilidades de intervenção, ou seja, de regulação, também são
extremamente diversificadas.
A primeira distinção a ser feita é entre os termos regulação e
regulamentação. A regulação será entendida, aqui, como um conceito
principal, que expressa a intencionalidade do ator ao exercer a sua
capacidade, o seu poder instituído ou em disputa. Regulamentar será
compreendido como o ato de normalizar em regras essa mesma
intencionalidade. Portanto, o processo de regulamentação estará
subordinado ao processo principal de regular.
Na prática, os dois termos têm sido utilizados sem muito rigor, apesar
de regulamentação ser utilizada mais no sentido do processo de produção
de atos para regulamentar, seguido de um posterior processo políticoadministrativo de regulação de relações e contratualidades entre atores
com interesses conflitantes.
Observamos, também, que o processo regulatório pode se dar tanto do
ponto de vista do acesso cotidiano das pessoas (a microrregulação), quanto
no aspecto das definições das políticas mais gerais das instituições, o que
podemos chamar de macrorregulação. Esta última consiste nos mecanismos
mais estratégicos de gestão: o estabelecimento de planos estratégicos; de
projetos prioritários; de relação com o controle social; as definições
orçamentárias maiores; a relação com as outras políticas sociais que
interferem com produção ou não de saúde nas populações; a política de
recursos humanos e o estabelecimento de regras para as relações com o
setor privado na saúde, que é sempre um ator importante.
O processo de regulação se insere dentro de um cenário de disputas, de
interesses conflitantes, que determinam o seu formato e alcance. A
macrorregulação pode se estabelecer em bases sociais públicas, como as
defendidas pela reforma sanitária brasileira e inscrita nos postulados legais
do SUS; em bases corporativas ou tecnocráticas e/ou apoiadas nos interesses
dos mercados privados. Podemos afirmar que não existe sistema sem
regulação, a diferença se estabelece sobre as premissas e disputas que
orientam a regulação existente. Neste sentido, podemos ter um modelo de
estímulo e expansão do setor privado, conforme conduzido à época dos
IAPs, INPS e INAMPS, ou um modelo pautado pela égide do público,
conforme preconizado pela Reforma Sanitária e a legislação que a
institucionalizou - Constituição e Lei Orgânica (Brasil, 1990a; 1988;
Oliveira & Teixeira, 1986).
A microrregulação ou regulação assistencial traduz o cotidiano da
operação do sistema, as regras gerais estabelecidas na macrorregulação.
Consiste em articular e conjugar as respostas potenciais do sistema, para o
conjunto dinâmico das demandas das populações, operacionalizando o
acesso aos serviços. Além disto, implica avaliar o que foi planejado nos
vários recortes da assistência, ou seja, dotar a gestão de uma inteligência
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.25-41, jan/jun 2006
29
SANTOS, F. P.; MERHY, E. E.
reguladora operacional. Em um sistema assistencialmente regulado, o
usuário, ao adentrar a rede de serviços, passa a ser direcionado pelo sistema
(Magalhães, 2002).
Importante destacar que, apesar de conter vários dos atributos do
processo de gestão, a regulação é um dos seus componentes, não o seu
todo. Esta polêmica dificultou, em algum momento, a institucionalização
dessa discussão no âmbito dos gestores do SUS, pois poderia sugerir a
substituição das gestões e dos gestores pelos reguladores, principalmente
nos aspectos da regulação assistencial.
Outras noções importantes que foram o núcleo central dos
instrumentos desenvolvidos no extinto INAMPS são:
- A noção de “controle”, que pode ser tomado como o acompanhamento
permanente do processo de execução de uma ação, buscando sua
conformidade com o que foi prescrito, e se o que está sendo realizado
aproxima-se de um parâmetro, de um limite prefixado, ou se estão
ocorrendo distorções. O controle pode ser prévio, concomitante ou a
posteriori do processo em acompanhamento.
- A noção de avaliação como um processo de determinação, sistemática e
objetiva, da relevância, efetividade, eficiência e impacto de atividades
fundamentadas em seus objetivos. É um processo organizacional para
implementação de atividades e para colaborar no planejamento, na
programação e tomada de decisão. Consiste, ainda, em um modo de
aprendizagem pela experiência, levando a um melhor planejamento (OMS,
1989). Contandriopoulos et al. (1997, p.31) destacam que a avaliação
“consiste fundamentalmente em fazer um julgamento de valor a respeito
de uma intervenção ou sobre qualquer um de seus componentes com o
objetivo de ajudar na tomada de decisões”. Assim, a avaliação pode se
constituir em uma ferramenta ligada ao processo decisório, ao
planejamento e à gestão, destinada a melhorar desempenhos, rever e
redirecionar ações.
- A auditoria é um conjunto de técnicas destinadas a avaliar processos e
resultados e a aplicação de recursos financeiros, mediante a confrontação
entre uma situação encontrada com determinados critérios técnicos,
operacionais ou legais. A finalidade da auditoria é comprovar a legalidade e
legitimidade dos atos e fatos e avaliar os resultados alcançados quanto aos
aspectos de eficiência, eficácia e efetividade da gerência ou gestão
orçamentária, financeira, patrimonial, operacional, contábil e finalística de
unidades ou sistemas (Brasil, 2001).
Importante destacar que o conjunto das atividades desenvolvidas não
conseguiu consubstanciar esses conceitos em atividades rotineiras dos
serviços de saúde.
Os sujeitos e atores da regulação
Neste contexto de disputas, torna-se importante compreender quais são os
atores implicados e os interesses em cena, que definem os pressupostos e
mecanismos adotados na regulação. Iremos nos apoiar em Matus (1987,
p.754), que conceitua ator social como uma “personalidade, uma
organização ou um agrupamento humano que, de forma estável ou
30
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.25-41, jan/jun 2006
A REGULAÇÃO PÚBLICA DA SAÚDE NO ESTADO...
transitória, tem capacidade de acumular força, desenvolver interesses e
necessidades, e atuar produzindo fatos na situação”. Segundo Cecílio
(2004), o conceito de ator social, em Matus, aproxima-se do conceito de
“forças sociais”, isto é, movimentos que representam e organizam uma
parte da população em torno de objetivos comuns. O que caracteriza e
diferencia uma força social de um grupo social, estrato social ou de uma
multidão desorganizada é sua constituição como organização estável, com
capacidade permanente de acumulação de força e produção de eventos
mediante a aplicação dessa força (Merhy et al., 2004; Campos, 1992).
Neste entendimento, o ator social, dentro de dado contexto histórico,
busca regular os serviços de saúde segundo os interesses da sua
representação, ou seja, procura direcionar a produção da saúde para os seus
macroobjetivos. Os interesses e as disputas colocados entre os atores sociais
se fazem dentro de dado contexto histórico e político. Os atores regulados
respondem a esta regulação de maneiras distintas.
No contexto dos IAPs, a regulação se pautava pela compra de serviços em
detrimento da oferta de serviços próprios, modelo este que se aprofundou
no estado brasileiro nas décadas seguintes, já que os atores “reguladores”,
dentro do Estado, se confundiam com os entes “regulados”. O movimento
da “Reforma Sanitária”, que se constituiu como um movimento político em
torno da remodelação do sistema de atenção à saúde, tendo a compreensão
da saúde como um direito do cidadão e dever do Estado, possibilitou a
construção de um novo ator político, ou de uma nova identidade simbólica.
A luta pela democratização da saúde envolveu profissionais e intelectuais da
área da saúde e um movimento social organizado. Todo esse movimento
em torno do projeto contra-hegemônico, desde a década de 1970, confluiu
na realização da VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, que se
consubstanciou posteriormente, em 1988, no texto constitucional e na Lei
Orgânica que deram o arcabouço jurídico para esse projeto e pautaram
novos princípios e diretrizes da regulação pública (Malta, 2001; Paim,
1997; Brasil, 1988).
Isto não significou que o processo regulatório levado a cabo pelo Estado
brasileiro tenha sofrido uma guinada significativa, instantânea, e que os
novos pressupostos ocuparam o centro da pauta. Os interesses dos
“regulados” e a dinâmica dos reguladores perpetuam até os dias de hoje,
em maior ou menor monta, no processo regulatório em curso.
A regulação na legislação
A legislação que se seguiu ao processo constituinte recolocou os temas do
controle, avaliação, auditoria e regulação, que aparecem como constitutivos
do processo de definição do arcabouço legal do SUS. Segundo a Constituição
de 1988, no seu Artigo 197: “São de relevância pública as ações e
serviços de saúde, cabendo ao poder público dispor, nos temos da lei,
sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua
execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por
pessoa física ou jurídica de direito privado” (Brasil, 1988).
A Lei nº 8.080 define competências em cada esfera de gestão e
estabelece o Sistema Nacional de Auditoria (Brasil, 1990a).
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.25-41, jan/jun 2006
31
SANTOS, F. P.; MERHY, E. E.
O processo de regulamentação da relação entre os entes federados foi
consubstanciado na edição das Normas Operacionais (NOB 01/91, NOB 01/
92, NOB 01/93, NOB 01/96 e na NOAS 01/2002). Todas as NOBs, de
forma mais ou menos elaborada, trataram do processo de regulação nos
seus vários componentes, notadamente os de controle e avaliação. A
principal tentativa sempre foi a de definir os papéis dos níveis de gestão no
processo regulatório.
Na Norma Operacional Básica - NOB/91 equipararam-se prestadores
públicos e privados, por meio do mesmo mecanismo de repasse de recursos,
estabelecendo que o repasse de recursos do orçamento do INAMPS aos
estados e municípios, para custeio da atenção hospitalar e ambulatorial, se
daria via convênios e pagamentos por produção, além de determinar
critérios de acompanhamento, controle e avaliação das ações cobertas por
este mecanismo de financiamento. Assim, o primeiro grande ato normativo
já expunha que o mecanismo regulatório praticado no momento anterior
não sofreria solução de continuidade e sim, se expandiria para o setor
público. Atribuiu ao INAMPS o controle e fiscalização da execução
orçamentária e financeira (Levcovitz, 2001; Brasil, 1991).
Na NOB 92, definiram-se competências, segundo as quais os municípios
responderiam pelo controle e avaliação sobre os serviços assistenciais, ao
passo que aos estados caberia avaliar serviços periodicamente e realizar o
“controle municipal”. A NOB 92 fazia a recomendação genérica que a
avaliação verificasse a eficiência, a eficácia e a efetividade dos serviços, o
cumprimento das metas e resultados. A União analisaria e corrigiria o
desenvolvimento do controle e da avaliação assistencial no sistema de saúde
nacional de forma pedagógica e por meio da cooperação técnica com os
estados e municípios. Nesta norma, manteve-se o controle e a fiscalização
da execução orçamentária pelo INAMPS, estabelecidos na NOB 91. Definiuse, também, a criação de um Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA) e
conformou-se um novo sistema para as internações, o Sistema de
Informação Hospitalar (SIH) que, na verdade, sistematizou o que já vinha
sendo feito com as Autorizações de Internação Hospitalar (AIH) (Brasil,
1992).
Neste período inicial de implantação do SUS as ações de controle e
avaliação efetivas permaneceram centralizadas no INAMPS e/ou nas
estruturas estaduais descentralizados na ocasião do SUDS, com participação
marginal dos municípios, que se restringiam ao repasse de dados
quantitativos da produção hospitalar e ambulatorial. Nos Estados,
permaneceram praticamente inalteradas as rotinas e fluxos definidos
anteriormente pelo INAMPS.
Somente por meio da NOB 93 – que pressupunha diferentes
modalidades de assunção da gestão por parte de estados e municípios –,
avançou-se na transferência de recursos de forma automática, prevista
originalmente pelo legislador ao editar a Lei 8.080/90 (Brasil, 1990a). O
mecanismo do repasse fundo a fundo para os municípios habilitados na
gestão semiplena foi regulamentado pelo decreto 1.232/94. A partir daí,
uma parcela do processo de gestão, inclusive a capacidade regulatória, foi
transferida para os gestores estaduais e municipais.
32
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.25-41, jan/jun 2006
A REGULAÇÃO PÚBLICA DA SAÚDE NO ESTADO...
Para se habilitar às condições de gestão parcial e semiplena, os estados e
municípios tinham de comprovar, entre outros pré-requisitos: a
constituição de Serviços de Controle, Avaliação e Auditoria, com médicos
designados para a autorização de AIH e de procedimentos ambulatoriais de
alto custo, capacidade técnica de operar o SIA, o SIH e central de controle de
leitos (Brasil, 1993a).
Com a NOB 93, cerca de 140 municípios passaram à condição de
gestores locais, recebendo o teto financeiro global para a realização de
todas as ações de saúde, inclusive, a regulação do privado. Neste contexto,
os gestores do Sistema Único de Saúde tomaram como tarefa o
desenvolvimento e aperfeiçoamento de instrumentos de gestão, destinados
a organizar as funções de controle, regulação e avaliação.
Outro impulso no processo de descentralização de regulação foi a
extinção do INAMPS, em 1993, e a criação do Sistema Nacional de Auditoria
(SNA), regulamentado em 1995 (Brasil, 1995). As principais atribuições
definidas para o SNA foram: o controle da execução segundo padrões
estabelecidos; a avaliação de estrutura, processos e resultados; a auditoria
da regularidade dos serviços mediante o exame analítico e pericial e,
também, o controle dos consórcios intermunicipais.
A NOB 96 continha as condições de gestão avançada e plena do sistema
para os estados e para os municípios, a Plena da Atenção Básica e Plena do
Sistema. Implantou novas formas de financiamento como: o Piso da
Atenção Básica, incentivos ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde,
Programa de Saúde da Família, dentre outros (Brasil, 1996). Todos os
recursos passaram a ser transferidos fundo a fundo segundo as exigências
de habilitação. Assim, paulatinamente, parte dos recursos deixou de ser
transferida de forma vinculada à produção de procedimentos e os recursos
passam a ser repassados vinculados à base populacional e/ou à série
histórica. A criação, em 1999, do Fundo de Ações Estratégicas e
Compensação (FAEC) – sob gestão da esfera federal, para custear ações e
programas específicos do Ministério da Saúde, além de algumas ações de
alta complexidade –, significou uma interrupção do processo contínuo de
descentralização iniciado com a NOB 93, e manteve no órgão federal uma
série de mecanismos regulatórios, para os serviços de alta complexidade ou
para aquelas ações consideradas estratégicas. Os recursos do FAEC passaram
a ser transferidos fundo a fundo, vinculados a pagamento de prestadores,
ou o governo federal fazia o pagamento, como no caso dos transplantes. Na
verdade, isto significou uma nova centralização da capacidade regulatória
da União e recolocou em cena atores que, no processo que estava em
andamento, haviam perdido grande parte de sua capacidade de intervenção.
O principal avanço da NOB 96 consistiu na inclusão de mais de quatro
mil municípios na gestão de algum nível (básica ou do sistema), trazendo a
questão da regulação para a agenda dos municípios.
Outro passo na regulação foi a norma operacional de assistência à saúde,
NOAS 01/2002, que buscou a regionalização da assistência, remetendo aos
estados a competência de organizar o fluxo da assistência intermunicipal. A
NOAS definiu mecanismos para a reorganização dos fluxos de referência e
contra-referência e introduziu o conceito de “regulação assistencial”, ou a
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.25-41, jan/jun 2006
33
SANTOS, F. P.; MERHY, E. E.
“regulação do acesso às urgências, consultas etc.”. Estabeleceu o
fortalecimento das funções de controle e avaliação dos gestores do SUS;
avaliação da qualidade dos serviços produzidos; satisfação do usuário;
resultados e impactos sobre a saúde da população, bem como a exigência,
aos estados e municípios, de elaborar os Planos de Controle, Regulação e
Avaliação (Brasil, 2002a). As dificuldades para a sua implantação estavam
colocadas em algumas de suas prescrições e em alguns de seus
pressupostos. A NOAS e suas portarias regulamentadoras tentaram fazer o
enquadramento das diversas situações em modelos, pressupondo uma forte
atividade de regulação dos Estados, e acabou por freiar o processo de
descentralização para o âmbito municipal. Além disso, a proposta de
regulação restringia-se à assistência de média e alta complexidade,
mantendo a separação entre “controle, regulação e avaliação” e “auditoria”.
Pressupõe a regulação enquanto atividade específica, limitando o seu
potencial de intervenção e separando-a das atividades de controle e
avaliação.
A ação reguladora do Estado lançou mão de novos instrumentos a partir
do final da década de 1990: a regulamentação dos planos de saúde por
meio da Lei 9.656/98, com a posterior criação da Agência Nacional de
Saúde Suplementar – ANS (Lei 9.961/00) e a criação da Agência Nacional
de Vigilância Sanitária – ANVISA (Brasil, 1999). A ANS foi criada como
órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades da
assistência suplementar à saúde (Brasil, 1998; Brasil, 2000). Importante
destacar que, na saúde suplementar, está pautada a relação de mais de
quarenta milhões de usuários de planos de saúde, mediante compra de
alguma modalidade de serviço de assistência à saúde.
Os principais instrumentos da regulação pública
Passaremos a analisar mais detalhadamente os instrumentos que têm
possibilitado a regulação pública do SUS, suas possibilidades, avanços e
limites. Dentre os instrumentos e mecanismos utilizados no processo
regulatório destacamos: o financiamento, a definição de rede prestadora, os
contratos de prestação de serviços, o cadastro de unidades prestadoras de
serviços de saúde, a programação assistencial, as Autorizações das
Internações Hospitalares (AIH) e Autorizações para Procedimentos de Alta
Complexidade (APAC), as bases de dados nacionais, as centrais
informatizadas de leitos, a auditoria analítica e operacional, o
acompanhamento dos orçamentos públicos em saúde, avaliação e
monitoramento das ações de atenção à saúde, dentre outros.
Destaca-se que o principal mecanismo indutor de ações e serviços de
saúde é o financiamento por meio de seu instrumento mais visível, a tabela
de procedimentos. Este procedimento tem sido operado pelo nível federal
ao longo dos tempos, como principal mecanismo de indução da prestação
de serviços de saúde. Desde os primórdios do INAMPS, a tabela de
procedimentos tem sido o formato adotado para remunerar prestadores e
gestores pelos serviços prestados. Sua capacidade de indução ocorre tanto
pela listagem dos procedimentos a serem executados quanto pelos valores
estabelecidos.
34
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.25-41, jan/jun 2006
A REGULAÇÃO PÚBLICA DA SAÚDE NO ESTADO...
A definição de rede prestadora que, pela Constituição brasileira pode ser
pública ou complementarmente privada, tem um alto poder de regulação
sobre o perfil da assistência prestada. O sistema de saúde brasileiro,
historicamente, ao priorizar uma rede majoritariamente privada, definiu
um padrão de relação mercantil na conformação de sua assistência. A
conformação dessa rede se deu, inicialmente, por mecanismos de
credenciamento, adotando critérios pouco claros, fortemente influenciados
por interesses políticos e econômicos (Oliveira & Teixeira, 1986). Esta
relação tem suas raízes na história da previdência social brasileira,
persistindo, ainda, no SUS, traços dos contratos do extinto INAMPS, ou
mesmo situações carentes de qualquer formalização, apesar das exigências
legais. Após a Constituição e definição do SUS e do caráter complementar
do setor privado regido pelo direito publico, impôs-se a necessidade da
contratação por meio do processo licitatório.
Os contratos de prestação de serviços são um outro instrumento que
contribui para o incremento da regulação do gestor, uma vez que são
previstas regras claras de obrigações e deveres entre as partes nos contratos
firmados, inclusive a subordinação dos serviços contratados à regulação do
gestor. A necessidade e a diretriz geral de contratação de serviços de saúde
é dada pela Constituição de 1988: “As Instituições privadas poderão
participar do Sistema Único de Saúde, segundo diretrizes deste, mediante
contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades
filantrópicas e as sem fins lucrativos” (Brasil, 1988).
No esforço de contratação dos prestadores de serviços, em outubro de
1993, o Ministério da Saúde emitiu a Portaria 1.286/93, que estabeleceu
parâmetros para contratualização, pelos gestores locais e municipais, das
suas redes prestadoras de serviços de saúde (Brasil, 1993b). No entanto,
este processo tem-se desenvolvido de forma extremamente lenta e desigual
pelos estados e municípios. Em 2003, o MS lançou um novo documento
(Manual de Contratualização) buscando reorientar e acelerar esse processo.
Nele, está previsto que o interesse público e a identificação de necessidades
assistenciais devem pautar o processo de compra de serviços na rede
privada, que deve seguir a legislação, as normas administrativas específicas
e os fluxos de aprovação, quando a disponibilidade da rede pública for
insuficiente para o atendimento da população, definidos nas Comissões
Intergestores Bipartite (organismos de discussão e pactuação, em cada um
dos Estados, compostos de representação dos Secretários Municipais de
Saúde e das Secretarias Estaduais de Saúde respectivas). Este processo deve
ser seguido do acompanhamento do faturamento, quantidade e qualidade
dos serviços prestados (Brasil, 2003). A contratação deve ser tomada como
instrumento necessário para o controle e qualificação da assistência.
O cadastro de unidades prestadoras de serviços de saúde - completo e
atualizado - é requisito básico para programar a contratação de serviços
assistenciais e para realizar o controle da regularidade dos faturamentos. As
atualizações constantes dos cadastros dos estabelecimentos de saúde da
área a ser regulada (CNES) são instrumentos imprescindíveis para a
regulação assistencial. O CNES pode e deve ser cada vez mais usado pelos
demais subsistemas como base cadastral atualizada, inclusive para a
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SANTOS, F. P.; MERHY, E. E.
regulação do setor privado, uma vez que a Agência Nacional de Saúde
Suplementar tem exigido o registro dos estabelecimentos privados no CNES
para o seu registro no órgão. Com isto, o sistema passa a ter cadastro
atualizado dos estabelecimentos, possibilitando a gestão e regulação do
setor público conveniado e, mais recentemente, do privado.
A programação assistencial que se reflete nas fichas de programação
orçamentária (FPO) dos Estabelecimentos de Saúde é outro instrumento
para adequar a oferta de serviços às necessidades dos usuários.
As bases de dados nacionais constituem instrumentos essenciais ao
exercício das funções de controle, avaliação e auditoria. A alimentação
permanente e regular dessas bases é fundamental para o seu
aperfeiçoamento, bem como para o seu uso no processo de monitoramento
e avaliação do Sistema. Diversos são os subsistemas de informação que
podem ser usados neste processo, dentre eles destacamos: o Sistema de
Informação Ambulatorial (SIA), o Sistema de Informação Hospitalar (SIH), o
Sistema de Informação de Mortalidade. Todos têm origem, desenhos, base
de dados e finalidades distintas, o que dificulta sua integração e articulação.
O SIH foi implantado, em 1976, no antigo INPS, para fins administrativos
e de apuração de custos e pagamento de prestadores de serviços. Em 1983
foi implantada a Guia de Iinternação Hospitalar, progressivamente ampliada
para os hospitais. Em 1990, o MS assumiu a gestão do Sistema, ampliando
para todos as unidades hospitalares e, em 1994, foi descentralizado para as
SES e municípios, podendo-se analisar e obter relatórios em qualquer nível
do Sistema. O SIH-SUS reúne dados sobre: internação, características de
pessoa, tempo, lugar, procedência do paciente, características dos serviços,
procedimentos realizados, valores pagos, ocorrência de óbito, Código
Internacional de Doenças (CID). Existem inúmeros limites no uso dessas
informações, entre eles: o fato de a AIH ser um instrumento de pagamento,
sujeito a distorções, fraudes e superfaturamento; falta de treinamento
padronizado para classificação de doenças; variações do perfil tecnológico da
rede assistencial; o fato de não ser universal, representando cerca de 80%
das internações no país (Carvalho, 1997). Entretanto, mesmo com limites,
o SIH-SUS constitui uma fonte importante de informações sobre morbidade
hospitalar no país, situação de saúde, acompanhamento de tendências e
avaliação de resultados de ações e serviços. Sua utilização sistemática pode
servir de estímulo à melhoria qualitativa e quantitativa dos seus dados.
O Sistema de Informação Ambulatorial (SIA) foi implantado em 1991 e
segue a lógica do SIH em relação à apuração de custos e pagamento de
prestadores de serviços. A unidade de registro é o procedimento
ambulatorial realizado, desagregado em atos profissionais (consulta, exames
laboratoriais, atividade e ações). Não há dados sobre diagnósticos e motivos
de atendimento, o que impede a apuração dos perfis de morbidade, exceto
inferir sobre acesso, consumo e utilização de serviços; não revela, ainda,
procedência do paciente, fluxo. Em 1997, um grande avanço ocorreu com a
introdução do Subsistema para Autorização de Procedimentos de Alto Custo
- APAC (terapia renal substitutiva, oncologia, queimados, medicina nuclear,
medicamentos excepcionais, órteses e próteses, dentre outros), o que
aumentou o controle sobre esses procedimentos.
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.25-41, jan/jun 2006
A REGULAÇÃO PÚBLICA DA SAÚDE NO ESTADO...
Outro importante instrumento de regulação consiste nas centrais
informatizadas de leitos, consultas, serviços de apoio diagnóstico e
terapêutico (SADT), urgência e os serviços de atendimento móvel de
urgência. Existem iniciativas municipais e estaduais de desenvolvimento
destas centrais. O Ministério da Saúde desenvolveu uma ferramenta, o
Sistema de Regulação - SISREG, que propõe integrar as diversas centrais de
regulação e poderá ser um importante instrumento de regulação do acesso.
O avanço do processo de regulação da assistência far-se-á mediante a
integração destes e dos demais subsistemas em um Sistema Nacional de
Informação em Saúde, articulado, com os mesmos padrões de informação,
tabelas, cadastros, entrada de dados, identificações comuns, que
possibilitem cruzamentos, extração de indicadores e constitua, de fato, um
instrumento para as ações da regulação e avaliação da assistência.
As ações de auditoria analítica e operacional constituem
responsabilidades das três esferas gestoras do SUS. A auditoria deve analisar
as atividades desenvolvidas, propondo medidas corretivas, interagindo com
outras áreas da administração.
Outros mecanismos de controle e avaliação devem ser adotados pelo
gestor público, tais como: acompanhamento dos orçamentos públicos em
saúde, análise da coerência entre a programação, produção e faturamento
apresentados e implementação de críticas possibilitadas pelos sistemas
informatizados quanto à consistência e confiabilidade das informações
disponibilizadas pelos prestadores.
A implementação de um processo de avaliação das ações de atenção à
saúde, de forma sistemática e contínua, sobre estruturas, processos e
resultados permite melhor planejamento, ajustes na execução e busca de
melhor qualidade, eficiência, eficácia e efetividade. A avaliação da qualidade
da atenção, pelos gestores, deve envolver tanto a implementação de
indicadores objetivos baseados em critérios técnicos quanto a adoção de
instrumentos de avaliação da satisfação dos usuários do sistema, que
considerem a acessibilidade, integralidade da atenção, resolubilidade e
qualidade dos serviços prestados, criando mecanismos que garantam a
participação da população na avaliação do sistema. As dimensões
contempladas: avaliação da organização do sistema e modelo de gestão;
avaliação da relação com os prestadores de serviços – o gestor público deve
ser dotado de instrumentos que lhe permitam acompanhar os prestadores
na execução dos recursos programados; avaliação de qualidade e satisfação
dos usuários do sistema; avaliação de resultados e efetividade das ações e
serviços no perfil epidemiológico da população – deve envolver o
acompanhamento dos resultados alcançados em função dos objetivos,
indicadores e metas apontados nos planos governamentais de saúde.
As funções de controle, regulação e avaliação impõem aos gestores a
superação de métodos que se referenciam principalmente ao controle de
faturas (revisão) e instrumentos de avaliação com enfoque estrutural
(vistorias) e do processo (procedimentos médicos), supervalorizados em
detrimento do enfoque da avaliação dos resultados e da satisfação dos
usuários (Brasil, 2002b).
Existem, ainda, instrumentos norteadores das ações do gestor e de base
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.25-41, jan/jun 2006
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para o acompanhamento e fiscalização da implementação das políticas do
setor pelo Conselho de Saúde e instâncias formais de controle, regulação e
avaliação, como: os Planos de Saúde aprovados pelos Conselhos de Saúde; o
Plano Diretor de Regionalização e de Investimentos; a Programação
Pactuada e Integrada; os Pactos da Atenção Básica; os Termos de Garantia
de Acesso e de Compromisso entre os Entes Públicos existentes no
território, entre outros (Brasil, 2002a).
Conclusão
Existem inúmeros desafios na implementação da regulação pública, entre
eles a sua finalidade, ou quem seria o beneficiário desta ação. O pressuposto
da regulação pública nem sempre comanda e define a ação. Muitas vezes, o
aparelho de estado encontra-se refém de outros interesses disputantes e
define a regulação e seus mecanismos ancorado nesses pressupostos.
Cabe destacar o papel de comando único e articulado do SUS nos três
níveis de governo. Somente esta integração pode garantir o
direcionamento e condução do SUS nos moldes politicamente definidos na
Constituição Brasileira. Entretanto, esta articulação e parceria encontramse em processo de construção, sendo permeadas por disputas, muitas vezes
por interesses distintos. Neste sentido, as Comissões Intergestoras
Bipartite e Tripartite funcionam como instância de harmonização,
publicização e pactuação desses interesses.
Uma notável inovação do SUS consistiu no comando único das três
esferas de governo. Isto implica a assunção dos três níveis das suas
prerrogativas e responsabilidades na regulação pública, integrando o setor
contratado e conveniado. Importante ressaltar que esta perspectiva não
tem sido fácil, sendo uma incorporação gradativa a gestão do Sistema,
assumindo as ações de controlar e avaliar os serviços contratados pelo SUS.
Cabe especialmente aos municípios o desafio de assumir a gestão do
sistema, avançando na sua integração real, assumindo o planejamento das
ações, estabelecendo a adequação da oferta de serviços de acordo com as
necessidades identificadas. A regulação, ao garantir o acesso dos cidadãos
aos serviços, atua também sobre a oferta dos mesmos, subsidiando o
controle sobre os prestadores de serviços, seja para dilatar ou remanejar a
oferta programada para que seja cumprida a sua função. Promove, assim, a
eqüidade do acesso, garantindo a integralidade da assistência e permitindo
ajustar a oferta assistencial disponível às necessidades imediatas do cidadão,
de forma equânime e ordenada.
Outro aspecto fundamental consiste na inter-relação entre o modelo
assistencial e a regulação implantada. A regulação, por trabalhar com uma
lógica bastante voltada para o controle e com uma dinâmica própria, tende
a certo descolamento, restringindo-se às ações de controle do setor privadoconveniado, isolando-se do conjunto das ações assistenciais e dos serviços
próprios. Esta dicotomia deve ser superada integrando, no cotidiano,
necessidades, demandas, fluxos, tendo o usuário como a referência de
organização dos serviços.
Algumas iniciativas ainda estão incompletas, como, por exemplo, a
contração da rede prestadora de serviços, ainda não assumida nas três
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10,
v.9, n.18,
n.19,p.520,
p.25-41,
set/dez
jan/jun
2005
2006
A REGULAÇÃO PÚBLICA DA SAÚDE NO ESTADO...
esferas de governo. Esta rede, sub-rogada pelo extinto INAMPS aos estados,
foi, também, sub-rogada aos municípios, em sua imensa maioria com os
contratos vencidos, caducos, ou mesmo sem nunca ter sido assinado um
contrato com o Poder Público, trabalhando por meio de um
credenciamento, com critérios de entrada no sistema pouco definidos.
Vários municípios já levaram à frente a iniciativa, mas esta ainda carece de
se efetuar plenamente. Instrumentos importantes de regulação, como as
Centrais de Regulação Informatizadas, articuladas com as centrais de
urgência, ainda são iniciativas pontuais, isoladas, não se constituindo, até o
momento, de forma sistêmica.
Outro passo importante consiste na integração dos subsistemas de
Informação, compondo um Sistema Nacional de Informação em Saúde,
articulado, integrado, que possibilite a regulação e avaliação.
Por fim, a avaliação, que constitui parte fundamental no planejamento e
gestão do sistema de saúde. Um sistema de avaliação efetivo pode reordenar
a execução das ações e serviços, redimensionando-os de forma a contemplar
as necessidades de seu público, dando maior racionalidade ao uso dos
recursos. No entanto, a avaliação é uma das atividades menos praticadas.
Vários fatores têm contribuído para isso, desde a falta de recursos
financeiros para estas ações, até dificuldades metodológicas, insuficiência e
capacitação de recursos humanos para as atividades e, por vezes, ausência
de vontade política dos dirigentes na abordagem desse tema (Malta, 2004).
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revisión. Interface - Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10, n.19, p.25-41, jan/jun 2006.
El estudio se inscribe en el campo de la Gestión de Políticas de Salud, con el objetivo de
analizar la regulación pública de la salud en Brasil. Se entiende la regulación como la
capacidad de intervenir en los procesos de prestación de servicios para alterar u orientar
su ejecución. El artículo discute la evolución histórica y sus determinantes; las diferentes
estrategias de regulación utilizadas y sus objetivos; los actores involucrados y, en
particular, los instrumentos creados por el actor gobierno. El estudio se apoya en la
revisión de la literatura sobre el tema, discutiendo aspectos conceptuales y las
herramientas utilizadas en el proceso regulatorio en salud, así como sus alcances y
límites.
PALABRAS CLAVE: política de salud. SUS (BR). planificación en salud. servicios de salud.
Recebido em: 06/07/05. Aprovado em: 28/04/06.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.25-41, jan/jun 2006
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.42, jan/jun 2006
Dinâmica do capital e sistemas locais de
saúde: em busca de uma análise integradora do
setor saúde
Maria de Fátima Siliansky de Andreazzi 1
Marco Antonio Ratzsch de Andreazzi 2
Diana Maul de Carvalho 3
ANDREAZZI, M. F. S. ET AL. Capital dynamics and local healthcare systems: searching for a comprehensive
analysis of the health sector. Interface - Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10, n.19, p.43-58, jan/jun 2006.
This article presents a methodological proposal for analyzing the determinants of the offer of healthcare,
starting with the dynamics of capital accrual, to be added to the health policy definition elements
conventionally employed in the Collective Healthcare field. The analysis is based on the methods and ideas of
Industrial Economics, already tested, where the healthcare sector is concerned, within the European context
and by CEPAL researchers. To this, it proposes to add variables from the general context, which condition
possibilities and impose limits upon the strategies of local agents, as well as analyses of a historical nature that
allow one to identify rough patches. It has the purpose of providing support for the state and municipal
managers of the Single Healthcare System (SUS), as the sole administrators of the healthcare sector in a given
territory, which includes the set of possibilities of private sector regulation – from the planning of supply to its
quality control.
KEY WORDS: health services. health economics. health sector. health facilities proprietary. SUS (BR).
Apresenta-se uma proposta metodológica direcionada à análise dos determinantes da oferta de atenção à
saúde, com base na dinâmica da acumulação de capital a ser agregada aos elementos de definição das políticas
de saúde mais convencionalmente empregados na área da Saúde Coletiva. A análise está baseada nos conceitos
e métodos da Economia Industrial, já testados para o setor saúde em trabalhos desenvolvidos no âmbito
europeu e por pesquisadores da CEPAL, aos quais se propõem agregar variáveis do contexto geral, que
condicionam possibilidades e impõem limites às estratégias dos agentes locais, e análises de corte histórico que
permitam identificar rugosidades. Destina-se a apoiar os gestores do SUS, estaduais e municipais, na sua
atribuição de comando único do setor saúde sobre um determinado território, o que inclui o conjunto das
possibilidades de regulação do setor privado – do planejamento da oferta ao controle de qualidade.
PALAVRAS-CHAVE: serviços de saúde. economia da saúde. setor de assistência à saúde. instituições privadas de
saúde. SUS (BR).
1
Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, RJ.
<[email protected]>
2
Departamento de Indicadores Sociais, IBGE; assessor técnico da Secretaria Municipal de Saúde de Itaguaí/RJ. <[email protected]>
3
Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, UFRJ. <[email protected]>
1
Rua Esteves Jr. 30, apto. 102.
Rio de Janeiro, RJ
Brasil - 22.231-160
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ANDREAZZI, M. F. S. ET AL.
Introdução
Estudos de oferta de serviços de saúde são um componente decisivo do
planejamento de saúde. Com a implantação, no país, do Sistema Único de
Saúde (SUS), que impulsiona um amplo processo de descentralização, cada
vez mais, instâncias regionais e locais de governo e Conselhos de Saúde – que
incluem parcelas da sociedade civil organizada – têm se debruçado sobre a
formulação e o acompanhamento de Planos de Saúde, de acordo com as
diretrizes da NOB-96 e da NOAS-01/02. Uma das características marcantes do
sistema de saúde brasileiro é a interpenetração de interesses públicos e
privados, seja no financiamento, seja na prestação efetiva da atenção à saúde.
No entanto, tem sido comum analisar essa relação de forma estanque. De
modo geral, os sistemas estaduais e locais de saúde têm restringido sua
governança sobre o setor privado à atenção conveniada e contratada,
financiada por meio dos recursos dos fundos de saúde para complementar a
atenção estatal, com intuito de alcançar uma cobertura considerada
adequada. Isso ocorre a despeito de responsabilidades mais abrangentes do
Estado, que incluem o setor privado da saúde na sua totalidade, como, por
exemplo: a garantia da qualidade dos serviços prestados, a estratégia de
incorporação e disseminação de tecnologias e o consumo de medicamentos e
insumos. O processo de regulação da denominada atenção suplementar à
saúde, ou seja, aquela que voluntariamente é contratada por meio de
seguros privados de saúde, tem se dado, no Brasil, de forma centralizada,
com a formação de uma agência reguladora específica. Esta tem priorizado,
em sua forma de atuação, a ação direta sobre os objetos de sua regulação em
todo o território nacional, ao contrário de toda a legislação do setor saúde
que, após a Constituição de 1988, aponta no sentido da integração entre os
níveis federal, estadual e municipal e do reforço dos municípios como
principal instância gestora dos serviços de saúde. Essa agência inclui, entre
suas atribuições, algumas já amplamente discutidas no processo de reforma
sanitária brasileira dos anos 1980 – sendo mais efetivas quando efetuadas
mais próximas aos locais de execução dos serviços, como é o caso do controle
de qualidade de prestadores de saúde e de garantia de acesso à saúde, que,
para este fim, desenvolve espaços de controle social por intermédio dos
Conselhos de Saúde.
No Brasil, pouco se sabe sobre os impactos, sobre o Sistema Único de
Saúde, do crescimento dos seguros privados como alternativa de
financiamento de cerca de 25% da população total (que pode chegar a quase
50% em algumas metrópoles). Alguns são conhecidos há mais tempo, como
a dupla militância de profissionais de saúde desviando demanda e reduzindo
tempo de trabalho para as instituições públicas, ou, ainda, facilitando um
acesso diferenciado a determinados exames e procedimentos de alto custo,
como hemodiálise, próteses, entre outros. As interpenetrações freqüentes
dos sistemas público e privado clamam por políticas e metodologias que
enfoquem o problema de forma abrangente e integradora.
Este artigo propõe-se a contribuir para o desenvolvimento de
metodologias que permitam entender, de forma sistemática, a estrutura e
dinâmica dos serviços de saúde, mediante uma perspectiva integradora, que
contemple não apenas as políticas públicas como força motriz de seu
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.43-58, jan/jun 2006
DINÂMICA DO CAPITAL E SISTEMAS LOCAIS DE SAÚDE
desenvolvimento, mas, também, o que vamos entender como a dinâmica do
capital. Esta será estudada tanto pelas tendências estruturais de
acumulação mais gerais da sociedade capitalista, como pelos processos
específicos de competição intra-setoriais.
Para os formuladores de políticas, gerentes do setor saúde e agentes do
controle social, importa conhecer a estrutura do mercado e a natureza do
processo competitivo que ocorre entre os produtores de serviços; e como
essa estrutura muda no tempo mediante seus condicionamentos
econômicos, políticos e sociais mais gerais. Ou seja, qual a sua dinâmica? As
decisões que se dão no interior do setor saúde, que o conformam e
estabelecem os padrões de práticas e consumos de saúde, com impacto
sobre a situação de saúde das pessoas, não ocorrem apenas na esfera
pública, mediada pelo Estado. Podem, inclusive, não ocorrer, sobretudo,
nesta esfera. Embora a dinâmica dos mercados de seguros e serviços devesse
ser levada em consideração pelos gestores públicos, inclusive locais, isso, de
fato, não é feito; ou, quando tentado, freqüentemente baseia-se em
premissas empiricamente pouco fundamentadas. Várias áreas que fazem
parte do trabalho rotineiro das instituições públicas de saúde carecem
desses elementos empíricos e conceituais para estabelecer suas políticas, em
todos os níveis geográficos e funcionais do sistema, como, por exemplo: a
vigilância sanitária, a cobertura assistencial e o desenvolvimento de
recursos humanos.
Mais do que uma descrição administrativa dos estabelecimentos (com
suas respectivas naturezas jurídicas, indicadores de produção, cobertura e
resultados), o que se pretende é desenvolver uma dimensão explicativa dos
processos que forjam uma determinada configuração de oferta, com
resultados distintos e tendências esperadas com base no desenvolvimento
das variáveis determinantes, e, ainda, com possibilidades de regulação
pública sobre essas variáveis. Busca-se, também, identificar quais estruturas
e dinâmicas de mercado podem ser mais adequadas, o que implica
diferentes políticas públicas que favorecem estes ou aqueles agentes
econômicos; e que realmente avaliem onde elementos de mercado possam
ser valorados e onde seria melhor suprimi-los.
Nos anos 1990, nota-se um crescente interesse de organismos
internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), no
desenvolvimento de parcerias público-privadas para o alcance de metas de
saúde (Ridley, 2001). Varias estratégias de abordagem foram apresentadas
por Mills et al. (2002), que concluem pela necessidade de um melhor
entendimento do comportamento dos prestadores privados, de modo a
melhor influenciá-los. Nesse sentido, experiências têm sido promovidas e
avaliadas para o controle de doenças transmissíveis (Newel et al., 2004) e,
de forma menos freqüente, para as não-transmissíveis (Nishtar, 2004).
Este trabalho pretende colaborar para a identificação de áreas de
cooperação e áreas de conflito na relação público-privada e,
conseqüentemente, detectar onde as estratégias de parceria são possíveis e
desejáveis e onde somente são alcançadas com uma razoável renúncia ao
interesse público.
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ANDREAZZI, M. F. S. ET AL.
Estratégias metodológicas
Duas abordagens serão aqui expostas. Uma foi apresentada por Mossaiolos
& Thompson (2002), do Observatório Europeu de Sistemas de Atenção à
Saúde, e a outra por Jorge Katz, em conjunto com Munoz (1988) e
Miranda (1994).
A primeira abordagem é adaptada do modelo clássico da Economia
Industrial, desenvolvido por Bain, em 1956:
Tradicionalmente, a performance das firmas é influenciada por
sua conduta, por sua vez, determinada pelas características
estruturais do mercado. Nosso modelo não implica uma relação
necessariamente causal entre esses três elementos... mas
examina suas interações. (Mossaiolos & Thompson, 2002, p.22)
Nesse modelo, os autores introduzem um quarto elemento, relativo às
regras onde operam os demais, por eles apresentados. A seguir,
examinaremos as características e variáveis relevantes quanto ao sistema de
atenção à saúde de cada um dos elementos. Tal compreensão implica
considerar a complementaridade de uma análise, vista como estática
(estrutura-performance-resultado), com outra, de caráter dinâmico,
centrada nos processos de decisão em que as relações existentes entre leis
gerais e particularidades não são de um determinismo mecânico, sendo
possível uma ação dos homens que reverta sobre as restrições das
estruturas e as modifique (Hay & Morris, 1991).
Política pública – são as leis, normas e regulamentos que, no caso
específico, incluiriam:
. os sistemas de direitos à saúde e as coberturas existentes;
. os incentivos fiscais;
. as regras de funcionamento do setor privado.
Estrutura – refere-se ao meio onde operam especificamente os
mercados e, de forma mais geral, as unidades de saúde. São variáveis
relevantes:
. os tipos de produtos;
. o número e tipo das unidades de produção;
. as barreiras à entrada no mercado;
. características da demanda;
. assimetria de informação – grau no qual a informação é compartida
entre os agentes – demanda e oferta.
Conduta – é analisada em termos das estratégias dos agentes. Os
autores apontam, como importantes, as seguintes:
. precificação;
. desenvolvimento e diferenciação dos produtos;
. outras estratégias competitivas (por exemplo, a existência de seleção de
risco).
Perfomance – são os resultados em termos da cobertura, eficiência e
lucratividade das unidades de produção. E, ainda, das características mais
gerais do sistema de saúde, como a eqüidade. São variáveis aqui
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DINÂMICA DO CAPITAL E SISTEMAS LOCAIS DE SAÚDE
relacionadas:
. níveis de cobertura;
. preços;
. custos e lucratividade;
. inter-relações entre o setor público e o setor privado;
. eqüidade.
Katz & Munoz (1988) apontam que, no setor saúde, se identificam não
apenas um, mas três grandes mercados, cujo funcionamento isolado e suas
inter-relações determinariam o comportamento setorial: o mercado de
serviços médicos, o de serviços hospitalares e o de medicamentos, aos quais
poderíamos acrescentar mais dois mercados, o de equipamentos biomédicos
e o de seguros privados de saúde. Além disso, não se poderia estabelecer um
recorte rígido do que é público ou privado, pois o peso relativo de cada um
constitui uma resultante endógena do sistema - do funcionamento da
concorrência dentro e entre os vários mercados, e suas interdependências.
Segundo este trabalho, a morfologia dos mercados de saúde teria, como
seus determinantes gerais:
. as condições de ingresso de novos ofertantes;
. a natureza da mudança tecnológica, se capital ou trabalho-intensiva,
com mão-de-obra qualificada ou não;
. a organização dos ofertantes;
. a regulação estatal do mercado;
. o processo de acumulação de capital.
É importante lembrar, aqui, que estamos tratando, simultaneamente,
de elementos que pertencem a macroestruturas sociais, como a acumulação
de capital, e a meso e microestruturas, como as estratégias específicas de
agentes econômicos em um território e/ou mercado particular. Entre esses
níveis de análise, existem necessárias mediações. Para Possas (1989), a
principal seria a concorrência, elo de ligação entre a dinâmica específica dos
capitais individuais buscando valorização e as tendências mais gerais da
acumulação de capital, onde, na atualidade, destaca-se a financeirização.
Segundo a tradição clássico-marxista, tomada como ponto de partida por
esse autor, a concorrência seria definida pela disputa permanente, entre
empresas ou produtores/vendedores, pela sobrevivência no mercado, mais
do que pelo maior lucro possível. Segundo o autor, Marx entenderia a
concorrência... “como a ação recíproca que os vários capitais exercem
entre si ao se defrontarem nos vários planos em que o mercado se faz
presente”... (Possas, 1989, p.56). Incluindo-se, aqui, o poder de Estado.
Possas (1989, p.117-8) aponta, ainda, que
a concorrência apresenta necessariamente especificidades
setoriais - tecnológicas e a nível das características da inserção do
produto na estrutura produtiva e de demanda... Este aparece
como um processo (competitivo) de ruptura da “estrutura”
competitiva estabelecida via de regra através da introdução de
inovações tecnológicas, de produtos, de novos mercados, ou da
centralização de capitais existentes...
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ANDREAZZI, M. F. S. ET AL.
Se, em Marx, a concorrência estaria localizada na própria base do
processo de acumulação de capital, mais especificamente, dos processos de
concentração e centralização do capital (que seria uma das leis de
movimento do capitalismo), “decorre-se, daí, que também poder-se-ia daí
extrair sua lógica interna - ... processo de formação e dissolução/
consolidação de vantagens comparativas e posições monopolísticas”
(Possas, 1989, p.71).
Possas, com base em Shumpeter, ainda avalia que ocorreram mudanças
substanciais nas formas de concorrência no capitalismo:
. concentração crescente;
. crescimento generalizado das barreiras à entrada;
. maior rigidez dos preços e margens de lucro à queda da demanda dos
setores oligopolizados;
. novas formas de organização das unidades de capital;
. novas formas de concorrência - diferenciação de produto, controle e
comercialização, inovações de processos e produtos;
. novas formas (financeiras) de valorização do capital.
. ...novas dimensões histórico-estruturais derivadas do processo
de concentração e centralização de capitais, que ao gerar a
grande empresa como nova forma de gestão da acumulação
privada de capital, deu lugar no mesmo passo, à relativa
autonomização do capital financeiro, de um lado, e à
interpenetração econômica do Estado. (Possas, 1989, p.171)
Uma outra mediação localiza-se no campo da política e se refere às
estratégias dos atores políticos ao utilizarem o poder do Estado de acordo
com seus interesses gerais e específicos, assim como ao imporem sua
vontade no âmbito da sociedade civil.
Um terceiro elemento a ser considerado para a explicação das
configurações encontradas da oferta é a sua história, ou seja, como a
dinâmica da mudança setorial ocorre no tempo, com a finalidade de
identificar as continuidades resultantes de uma dinâmica prévia. Santos
(1986) aponta um conceito útil para se entenderem os padrões de oferta
em determinados territórios. Trata-se do conceito de rugosidade. Segundo
o autor, as rugosidades são restos ou formas espaciais fixas de um modo de
produção anterior, que permanecem como espaço construído, pelas coisas
fixadas na paisagem criada. Assim, quando um novo modo de produção
substitui o que termina, encontra formas preexistentes às quais ele deve se
adaptar para poder determinar-se. Dentro deste conceito, podemos
considerar desde as próprias construções e instalações, assim como as
estruturas de transporte, comunicação, até a formação dos recursos
humanos, além das relações e fluxos de dependência e/ou referência. Tais
fatores atuariam como rugosidades ou formas preexistentes, que
influenciariam na materialização local dos novos processos de produção em
instalação.
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DINÂMICA DO CAPITAL E SISTEMAS LOCAIS DE SAÚDE
Análises concretas da oferta de serviços de saúde
A proposta apresentada procura estabelecer parâmetros indicadores dos
fluxos da dinâmica do setor saúde, incluindo-se, aí, a acumulação de
capitais, objetivando realizar análises concretas da oferta de atenção à
saúde e seus determinantes.
1 Contexto geral – trata-se de identificar as variáveis do contexto
geral que constrangem a dinâmica local. São sinais que apontam
comportamentos esperados dos agentes econômicos e políticos, e que
tornam difíceis estratégias contrárias, seja por meio da concorrência, seja
mediante as políticas de Estado. Como não é o foco deste trabalho
aprofundar estes sinais do contexto econômico e político, serão apontados,
em caráter ilustrativo, aqueles considerados os mais relevantes na
conjuntura atual. Maiores detalhes podem ser vistos em Andreazzi (2002).
a) A financeirização global - esta acarretaria o desvio de capitais da esfera
produtiva para a esfera financeira, também alimentado pela especulação
dos títulos da dívida pública em mercados secundários de valores, que é um
freqüente acompanhante dos estrangulamentos financeiros dos Estados
(Chesnais, 1998). No contexto da globalização, tem acarretado uma
notável concentração de capital, sob a égide dos países centrais. As grandes
empresas produtivas, além de contarem com uma forte área financeira –
bancos tradicionais ou novas instituições financeiras – concentram-se nos
aspectos mais estratégicos da produção - tecnologia, desenho do produto descentralizando a sua montagem e as vendas, o que tem significado uma
certa “desintegração vertical”. Dupas (1999) identifica que, nesta nova
dinâmica do sistema capitalista, seria mais difícil estabelecer fronteiras
nítidas entre indústria, serviços em geral e serviços financeiros. O produto
financeiro “seguro”, por exemplo, também passa a ser oferecido por
grandes corporações industriais (na origem).
b) A crescente importância dos serviços como espaço de acumulação de
capital – o que pressiona pela transformação de setores antes nãomercantis em mercantis, além da decorrente tendência à terceirização de
serviços, tanto por parte de instituições públicas como privadas, e à
privatização.
2 Contexto específico setorial - no caso do Brasil, o contexto geral
repercute no setor saúde, a partir, principalmente, dos anos 1990, por
meio de um importante estrangulamento financeiro do Estado e mudanças
na configuração do mix público-privado. Dessa forma, o setor privado, de
cliente preferencial do Estado, dos anos 1960 a 1980, passa a competir
pela liderança da dinâmica setorial, por intermédio de uma expansão da
demanda por seguros privados de saúde, do gasto privado em saúde e da
penetração de capitais de outras origens no mercado de serviços de saúde.
Tais tendências são vistas pela formação de fundos de investimento para
aquisição de serviços compostos por capitais oriundos de fundos de pensão,
fundos mútuos, com a participação, inclusive, do capital internacional.
3 Análises de casos locais - os serviços de saúde constituem um setor
extremamente diferenciado, o que impõe a necessidade de se identificar
diferentes subsetores (públicos e de mercado), que serão objeto da análise
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.43-58, jan/jun 2006
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ANDREAZZI, M. F. S. ET AL.
dos casos locais. A natureza das mudanças tecnológicas, que explicam esta
diferenciação, tem sido intensa. Simultaneamente às transformações
industriais na produção de medicamentos e equipamentos médicos que
ocorreram no mundo desde os anos 1950, muda o significado da prática
médica, que passa a ser instrumento para viabilizar a realização das
mercadorias produzidas pelo setor industrial. Portanto, a delimitação do setor
de análise torna-se o primeiro passo para a aplicação da metodologia proposta.
Uma clivagem útil se basearia no caráter de substitutivos próximos dos
produtos oferecidos. Assim, é possível separar a assistência médica e hospitalar
da odontológica e, quiçá, de serviços de enfermagem de longa duração, que
constituem setores com características tecnológicas bastante específicas e com
uma história e normas de regulação próprias. Com uma permutabilidade
maior, estaria a chamada medicina alternativa, pois em algumas situações, ela
funcionaria, muito mais, como uma adição, do que uma substituição à
medicina oficial. A base técnica comum entre os serviços médicos e
hospitalares seria a ciência médica ocidental ortodoxa. Representando o elo
entre as diversas combinações de equipamentos, mão-de-obra especializada e
tecnologia, estaria o médico, como ordenador da demanda pelos seus diversos
produtos. Assim, com exceção do mercado médico, não há demanda
espontânea dos que, efetivamente, irão consumir os serviços do mercado
hospitalar e diversos submercados – laboratório, imagens etc. Figueras (1991)
afirma que a saúde é uma indústria multiproduto, sendo possível analisar o
agregado ou cada uma das partes conforme o interesse do estudo. Pode-se
prever uma permutabilidade bastante grande entre os serviços oferecidos pelo
setor público e pelo setor privado. Por um lado, porque a ética das práticas
profissionais de saúde não permite que haja diferenciações técnicas de
atendimento entre os indivíduos. Por definição, as diferenças eticamente
permitidas referem-se a aspectos da forma, e não do conteúdo - aparência das
instalações, comodidade dos horários.
É razoavelmente consensual que o mercado de serviços de saúde possua
algumas características específicas, como:
a) assimetria de informação - os consumidores possuiriam muito pouca
informação relativa aos produtores: “os pacientes poderiam aceitar, ou até
mesmo demandar, tratamentos que não comprariam se completamente
informados, mas que são vantajosos, financeiramente, para os profissionais
médicos” (Musgrove, 1999, p.84) – ou para a indústria produtora;
b) existência de externalidades - muitos dos cuidados à saúde, como os
preventivos e o tratamento de doenças infecto-contagiosas, acarretariam
benefícios que extrapolam o consumidor. Muitas vezes, isto dificultaria que os
consumidores individuais se disponham a pagar por eles, no nível que seria
eficaz, como, por exemplo, no caso de campanhas de vacinação (Musgrove,
1999);
c) presença do terceiro pagador - de seguros sociais ou privados, em que o
consumidor não teria, no ponto de uso do serviço, as restrições orçamentárias
clássicas da compra direta, o que poderia levá-lo a consumir mais serviços do
que o necessário para seu bem-estar;
d) presença de inúmeras instituições não-lucrativas, que tornaria necessária
a identificação de objetivos diferentes do lucro para os produtores de serviços
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.43-58, jan/jun 2006
DINÂMICA DO CAPITAL E SISTEMAS LOCAIS DE SAÚDE
de saúde. Nos Estados Unidos, tornaram-se também bastantes conhecidos os
estudos de Feldstein (1988), para analisar os objetivos dos hospitais nãolucrativos, que constituíam a grande maioria até a década de 1980. Segundo
essa abordagem teórica, verificou-se que não era a maximização do lucro do
hospital que ocorria, e sim a maximização do rendimento individual dos
médicos que atuavam no hospital. Também se dava a viabilização dos
interesses estratégicos de outros agentes econômicos, que faziam parte dos
Conselhos de Administração dessas instituições - empresários, representantes
das indústrias relacionadas à área de saúde, capital financeiro, sob a forma de
seguradoras ou bancos investidores. Todos interessados, por motivos diversos,
numa forma de competição por diferenciação de produtos, no caso,
incorporação tecnológica e inflacionária de custos;
e) como conseqüência das características acima, algum grau de indução da
demanda pela oferta.
Como a atividade de serviços acumularia capital? Na tradição marxista,
serviços são ramos autônomos da indústria nos quais produção e consumo
ocorrem no mesmo momento. O valor de troca, como o das demais
mercadorias, é determinado pelo valor dos elementos de produção, acrescido
da mais-valia, criada pelo mais-trabalho dos trabalhadores empregados. Seu
valor é transferido, como valor adicional, ao produto. Para Gadrey (1996), tal
definição não difere muito da tradição clássica, que considera serviço quando a
produção é imaterial (perecível no mesmo instante da produção). Para o
capitalista de serviços, além do valor retirado do mais-trabalho, pode haver:
a) ganhos comerciais – ao negociar fatores de produção e na venda dos seus
serviços, na dependência das estruturas de mercado;
b) ganhos financeiros.
Considerando essas características estruturais dos mercados de serviços de
saúde, em geral, a análise local proposta contemplaria:
I Análise histórica da constituição dos serviços em questão, tanto
públicos quanto privados. Busca associar os ciclos de expansão e declínio aos
contextos de mudança nos modos e relações de produção locais. E, também,
mudanças políticas que favoreceram ou dificultaram a implantação de medidas
destinadas ao favorecimento de classes determinadas ou a ascensão, ao poder
de Estado, de grupos econômicos interessados na expansão de seu capital. As
fontes poderão ser tanto documentais ou utilizando a história oral.
II Análise da regulação – normas aplicáveis tanto aos processos quanto
aos produtos dos serviços, de âmbito federal, estadual, municipal. É
importante verificar de que modos elas afetam a estrutura local dos serviços e
as condutas dos agentes. Entre elas:
. vigilância sanitária;
. regulamentação tributária que pode favorecer determinadas naturezas
jurídicas;
. códigos de ética e de auto-regulamentação;
. normas de regulação e auditoria.
Um exemplo de check-list para averiguar esse processo de regulação é
apresentado no quadro a seguir:
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ANDREAZZI, M. F. S. ET AL.
Quadro 1. Regulação do mercado de estabelecimentos hospitalares
Variáveis de conduta (estratégias)
Variáveis estruturais
Condições de
Natureza do
Número e tipo Condições
produto e das
entrada, inclusive de unidades/ de saída
mudanças técnicas normas tributárias firmas
Preço Diferenciação Diferenciação Outras
de processos de produtos
Estatal
Lucrativo
Não
lucrativo
Todos
III. Análise das variáveis estruturais:
. demandas pública e privada – obtidas por meio de estudos populacionais,
quando possível, inclusive, a cobertura de seguros privados de saúde;
. gastos públicos e gastos privados – obtidos do Orçamento e Balanço dos
órgãos públicos. No caso do setor privado, de balanços públicos, quando
possível; e por meio das transferências em pagamentos, por parte do SUS,
quando conveniados ou contratados. O conhecimento da participação de
distintas fontes privadas é desejável (como gastos diretos ou por intermédio
de seguros, quando existente);
. natureza dos produtos e das mudanças técnicas – algumas variáveis
importantes são:
. os fatores de produção e o peso relativo de cada um deles na composição
final dos produtos.
. a presença de economias de escala e de escopo que favoreçam estruturas
maiores e centralizadas. Analisando a natureza técnica dos serviços médicos,
poderíamos encontrar ganhos de escala. Para a aquisição e manutenção de
muitos equipamentos biomédicos, é necessária uma escala razoável de
funcionamento para se ter um custo/preço competitivo. Os custos
administrativos, que representam principalmente custos de gerenciamento,
podem apresentar economias de grandes números, até certo ponto, quando o
tamanho passa a se tornar mais custoso. Os custos comerciais, pelos aspectos
éticos que envolvem a propaganda médica no Brasil, não seriam muito
importantes. O papel das economias de escala na performance dos
produtores pode ser avaliada segundo a comparação de indicadores de
resultados selecionados, em diferentes tamanhos de unidades de saúde.
. o número e tipo das unidades/firmas – públicas estatais, privadas
lucrativas e não-lucrativas. Importante considerar que, ao contrário da
indústria produtora de bens, os serviços de proximidade, como seriam os de
saúde, possuem algumas características distintas, que implicam a necessidade
de delimitar a área de abrangência do seu mercado. Para Feldstein (1988),
esta depende, basicamente, da distância que o paciente percorre para chegar
ao serviço. Neste sentido, é possível falar, portanto, em oligopólios e, mesmo,
monopólios locais (inclusive naturais). O que reforça a direção da acumulação
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DINÂMICA DO CAPITAL E SISTEMAS LOCAIS DE SAÚDE
de capital em múltiplas plantas, no caso dos serviços de saúde. Verifica-se pelo
número e tipo de estabelecimentos e recursos humanos. Esta variável
desdobra-se em análises de concentração do mercado, ou seja, do percentual
do mercado correspondente às firmas, que terá relações com as condutas e a
performance. As fontes disponíveis poderão ser tanto públicas (Pesquisa
Assistência Médico-Sanitária, do IBGE; Cadastro Nacional de Estabelecimentos
de Saúde, e outros indicadores constantes do Banco de Dados do Datasus;
Dados das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde) quanto privadas
(Cadastro de Conselhos Profissionais; Associações de Hospitais). As variáveis
incluem desde a rede física aos recursos humanos e materiais. Importantes
para a análise da concentração dos serviços de saúde são os movimentos de
fusões e aquisições, e a participação de capital internacional (principalmente,
investimento) e do capital financeiro. Hoje, isto vem ocorrendo na região de
maior concentração de beneficiários de seguros privados de saúde, São Paulo, e
é particularmente destacado no mercado de patologia clínica;
. barreiras à entrada e à saída – referem-se às vantagens de firmas
estabelecidas sobre as firmas novas. No caso dos serviços de saúde, é justo
pensar que a presença dos retornos crescentes de escala, e o aumento dos
requisitos de capital para a instalação de empreendimentos hospitalares e
também ambulatoriais, de maior custo, gerem impactos nas condições de
entrada. De modo geral, verificam-se:
. vantagens absolutas de custo das firmas estabelecidas: por aprendizado,
acesso a financiamento, acesso a fatores de produção;
. existência de patentes, franquias ou outras regulações específicas;
. vantagens da existência de preferências dos consumidores – marcas;
. economias importantes de escala – requerimento de grande capital para a
entrada;
. tamanho mínimo elevado em relação à demanda, tendendo, nos mercados
locais, para o monopólio natural (condição em que o tamanho da demanda
impede a existência de duas unidades de produção de forma eficiente), o que
seria um fator estrutural do mercado;
. integração vertical (forma de diversificação da firma ou organização, em que
ela se expande dentro da cadeia de fornecimento de fatores de produção –
produção propriamente dita – comercialização).
O requerimento de certa escala para entrada tem sido reduzido pela
disseminação da prática de terceirizações de setores inteiros do
estabelecimento de saúde. A consignação de equipamentos, pela indústria de
bens, tem sido uma outra forma de facilitar o cumprimento dos requisitos de
capital para a entrada. Esta indústria, como forma de viabilizar a realização de
suas mercadorias, procura manter o prestador de serviço preso à exclusividade
de insumos, sendo esta prática de cunho classicamente monopolista (Kahn,
1988).
Destaca-se, ainda, no modelo, o aspecto que denominamos de financeiro.
Ele se refere à presença dos mecanismos de articulação aos processos de
acumulação financeira que, hoje, têm favorecido aqueles prestadores ou
aquelas formas jurídicas mais integradas a esse circuito. Por exemplo, a
integração a grupos financeiros, o que permite vantagens, como o acesso a
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.43-58, jan/jun 2006
53
ANDREAZZI, M. F. S. ET AL.
capital e a créditos para custeio.
IV. Análise de variáveis de conduta – trata-se de verificar as estratégias
de desenvolvimento e de competição dos agentes, sejam elas explicitadas em
documentos institucionais, quando existentes, sejam aquelas percebidas por
meio dos mecanismos mais gerais de gerenciamento e de diferenciação dos
produtos. Exemplos importantes são:
. as formas de remuneração dos profissionais e serviços credenciados aos
seguros de saúde;
. os padrões de investimento;
. as formas de organização política dos produtores e os mecanismos de
decisão;
. a integração vertical, ou seja, as formas pelas quais um dos componentes
do sistema procura ter controle direto sobre o seu mercado fornecedor e/ou a
comercialização do produto. No caso dos serviços de saúde, são exemplos: o
grau de terceirização da prestação de serviços públicos e a existência de
empresas médicas com serviços próprios de saúde.
A importância relativa de cada uma das estratégias, para os agentes, há de
ser objeto de estudo especifico, que inclua:
1 A identificação dos principais agentes – gestores públicos com poder
decisório; proprietários e gerentes das principais firmas.
2 Identificação de documentos, onde possam constar: os objetivos e planos
de trabalho desses agentes;
3 Realização de entrevistas, procurando identificar: a) sua visão sobre seus
pontos fortes e fracos, e os pontos fortes e fracos de seus competidores; b) suas
perspectivas de desenvolvimento a curto e médio prazo; c) como se posicionam
em face da regulação; d) como pensam se adequar aos fatores estruturais do
setor; e) como reagiram ante as mudanças dos modos e relações de produção
locais e as estratégias dos seus competidores, ou de seus fornecedores ou
financiadores.
A título de ilustração, apresenta-se o Quadro 2, tomado de Andreazzi
(2002), que, valendo-se de características estruturais e competitivas de
estabelecimentos privados com internação, no Brasil, nos anos 1990, analisa
vantagens e desvantagens competitivas de cada uma das formas jurídicas
relevantes.
V. Análise das variáveis de performance – as variáveis de performance
representariam uma combinação das variáveis tradicionais de avaliação de
serviços de saúde, referentes à eficiência, eficácia e efetividade, agregadas aos
resultados encontrados quanto ao funcionamento dos mercados: preços,
custos, lucratividade, cobertura, eqüidade, qualidade.
O desafio mais marcante é poder associar esses resultados aos elementos
anteriores: regulação, estrutura e conduta. O diagrama apresentado no Quadro
3 pretende auxiliar esse exercício de associação, de modo a subsidiar a etapa
seguinte, de ação. Técnicas de planejamento participativo poderão ser úteis
para construir as hipóteses de associação.
Ambos os quadros estão apresentados a seguir:
54
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.43-58, jan/jun 2006
DINÂMICA DO CAPITAL E SISTEMAS LOCAIS DE SAÚDE
Quadro 2. Vantagens e desvantagens de estabelecimentos privados de saúde com internação
Características
Estratégias Características
técnicas do
competitivas
financeiras
produto
Economias de
escala.
Privados
Barreiras à
não- lucrativos
entrada por
elevadas
reservas
técnicas iniciais
Marca.
Aprendizagem.
Primeiro a se
mover ao
mercado
Vantagens
tributárias.
Relacionamento
privilegiado com
o SUS
Economias de
escala.
Barreiras à
entrada por
elevadas
reservas
técnicas iniciais
Diferenciação
de produtos
Acesso a crédito
para expansão e
diferenciação de
produto. Maior
flexibilidade para
seleção de riscos
- clientelas e
patologias
Privados
lucrativos
Principais
Principais
vantagens desvantagens
Tributárias.
Marcas.
Tendências
Financeiras
Integração para cima
- formação de planos
próprios de saúde.
Terceirização da
tecnologia mais cara
para grupos
privados lucrativos.
Acesso mais
difícil a
recursos
públicos em
algumas
regiões do
país
Formação de
cadeias lucrativas.
Integração com
operadoras de
planos de saúde.
Enxugamento da
capacidade
instalada.
Especialização em
produtos mais
lucrativos.
Quadro 3. Parâmetros de análise de performance do setor saúde a partir das variáveis de estrutura e conduta
Regulação
Variáveis estruturais
Variáveis de conduta
(estratégias)
Eficiência
Estaria o custo dos
serviços observado
associado...
A barreiras à entrada relativa
a patentes?A ausência de
mecanismos de avaliação
tecnológica para aquisição de
equipamentos biomédicos?
Ao tamanho do
mercado relativo à
capacidade instalada?
A inovações de gerenciamento?A
integração vertical, gerando
práticas oligopolistas?A influência
da indústria de insumos sobre os
prestadores?
Indicadores de
utilização de
serviços de saúde
acima do esperado
estariam
relacionados...
A normas imprecisas de
auditoria e controle?
A concentração do
mercado?
A mecanismos de pagamento por
produção de serviços?
Eficácia
A cobertura privada
reduzida estaria
relacionada...
Requerimentos de certificação
das firmas?
As características da
demanda?
A precificação?
Baixa cobertura
vacinal estaria
associada...
A normas imprecisas sobre
envio de informação por parte
do setor privado?
A insuficiência de
recursos humanos?
Priorização de determinados
serviços considerados de maior
lucratividade?
Efetividade
Aumento da morbidade
por doenças
transmissíveis pode
estar associado...
A falta de implantação da
legislação sobre notificação
compulsória?
A gastos públicos
insuficientes?
A política de terceirização de
recursos humanos nas
instituições públicas?
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.43-58, jan/jun 2006
55
ANDREAZZI, M. F. S. ET AL.
Deste exercício, podem ser identificadas áreas críticas a serem objeto de
atuação do poder público.
Conclusões
Embora ainda de forma tímida, alguns trabalhos recentes, publicados no
país, sobre nosso padrão de articulação público-privada em saúde, têm
convergido para pontos que privilegiam a consolidação do comando único
do gestor público local sobre o seu território. Não se subtraem da
delimitação desse local a factibilidade técnica e a presença de economias de
escala e escopo, que podem remetê-lo, eventualmente, a uma unidade
político-administrativa estadual (Nisis, 2005). Isso inclui o controle de
qualidade da atenção prestada pelo setor privado, seja financiada pelo SUS
ou por fontes suplementares (Andreazzi et al., 2004). Além de manter as
mais tradicionais funções de contratação de prestadores privados para
complementar a atenção pública (Matos & Pompeu, 2003). Para que haja
um comando único da saúde em determinado território, temos, aqui,
apontado ser necessário considerar os vetores da dinâmica econômica do
setor. Identificamos não ser o setor privado em saúde um ente
homogêneo, ao contrário, é bastante heterogêneo, formado por diversos
subsetores, cada qual com seu próprio dinamismo e articulações com
outros setores, e com densidades diversas de capital. Estas características
remetem os produtores a distintas classes e frações de classe dentro da
sociedade, considerando o seu papel na produção, podendo ter interesses
conflitantes e até antagônicos. As estruturas de mercado são elementos
essenciais, que informam os gestores públicos sobre as possibilidades e
dificuldades da ação regulatória. A presença crescente de economias de
escala no processo de produção de serviços de saúde, e o fato de se
constituírem em serviços de proximidade, ampliam as possibilidades da
existência de oligopólios, ou mesmo, monopólios locais. Essa concentração
gera estruturas com maiores poderes para impor preços e condutas e
exercer maior pressão sobre o Estado. A dinâmica global e nacional de
acumulação de capital tem relações com a dinâmica dos mercados locais de
saúde, ampliando algumas possibilidades e restringindo outras. Na
atualidade, a financeirização do capital favorece os agentes econômicos com
maiores acessos a capitais e transforma os objetivos dos prestadores de
serviços de saúde, que passam a vislumbrar possibilidades de ganhos
financeiros com a sua atividade, pressionando os custos do sistema de
saúde para a sociedade.
A compreensão sistematizada de toda essa dinâmica – com suas
características específicas em função das histórias locais –, por parte dos
gestores, de forma sinérgica com as esferas do controle social, como a
metodologia aqui apresentada, pode gerar uma ação mais efetiva, como,
por exemplo: reformas da regulação, com a introdução de novas regras;
identificação de oligopólios ou monopólios refratários à regulação pública,
onde será adequado avaliar a sua estatização; identificação de áreas onde é
possível a compra de serviços e áreas onde esta não é recomendável;
mudanças nas formas de pagamento e introdução de incentivos monetários
e não-monetários; identificação de áreas onde é possível reforçar uma
56
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.43-58, jan/jun 2006
DINÂMICA DO CAPITAL E SISTEMAS LOCAIS DE SAÚDE
colaboração entre o setor público e o setor privado; estabelecimento de
uma hierarquização dos prestadores de serviços de saúde, quanto ao plano
de fiscalização, de acordo com o risco sobre a qualidade dos produtos
ofertados, valendo-se das estratégias competitivas identificadas.
Esse processo demanda um esforço de capacitação e apoio técnico aos
gestores, abrindo um campo fértil para colaborações efetivas e regulares,
entre as instituições de ensino e pesquisa e os responsáveis pela condução
das políticas e programas de saúde, também na área dos estudos
econômicos de organização do setor saúde.
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ANDREAZZI, M. F. S. ET AL. Dinamica del capital y sistemas locales de salud: en búsqueda
de un análisis integrador del sector salud. Interface - Comunic., Saúde, Educ
Educ., v.10,
n.19, p.43-58, jan/jun 2006.
El artículo presenta una propuesta metodológica cuyo objetivo es analizar los
determinantes de la oferta de atención a la salud a partir de la dinámica de acumulación
del capital, a ser añadida a los elementos más tradicionales de evaluación de las políticas
de salud utilizados en el campo de la Salud Publica. El análisis esta asentado en los
conceptos y métodos de da Economía Industrial, probados para el sector salud en
trabajos ya desarrollados en el ámbito europeo y de la CEPAL, a los cuales se propone
agregar variables del contexto socio-económico-político general. Estas variables abren
posibilidades e imponen límites a las estrategias de los agentes locales. Estudios
históricos que permitan identificar rugosidades, de acuerdo con el planteamiento de
Milton Santos, también son aportes importantes. El trabajo se propone apoyar los
gestores del Sistema Único de Salud de niveles estadual y municipal en su rol de
comando único de la salud de un territorio. Esto incluye el conjunto de las posibilidades
de efectuar la regulación del sector salud: desde la planificación de la oferta hasta el
control de la calidad de los proveedores.
PALABRAS CLAVE: servicios de salud. economia de la salud. SUS (BR).
Recebido em:10/02/06. Aprovado em: 18/05/06.
58
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.43-58, jan/jun 2006
Medicalização social (I): o excessivo
sucesso do epistemicídio moderno na saúde
artigos
Charles Dalcanale Tesser 1
TESSER, C. D. Social medicalization (I): the exaggerated success of modern ‘epistemicide’ in health. Interface Educ., v.10, n.19, p.61-76, jan/jun 2006.
Comunic., Saúde, Educ.
The process of social medicalization in Brazil is intense and important for the SUS (Unified Healthcare System)
- particularly the PSF- and for Collective Health. The purpose of this article is to reflect on this process from a
critical and “diagnostic” perspective. To this end, a free outline of Illich’s (1975) ideas on the topic is
presented, followed by an interpretation of his thoughts from Fleck’s (1986) epistemological point of view.
Medicalization culturally transforms populations, reducing their ability to face most of the everyday illnesses
and pains autonomously. The consequence is an abusive and counterproductive consumption of biomedical
services, generating dependency and alienation. According to Fleck, it is the predictable consequence of the fast
and forced socialization of the biomedical style of though, which is centered on control and heteronomous
actions and interpretations. This mentality was spread to population groups that are not very modern and
that are multicultural and of various ethnicities, this being the case of the vast majority of the Brazilian
people.
KEY WORDS: drug utilization. knowledge. Family Health Program.
O processo de medicalização social no Brasil é intenso e importante para o SUS (especialmente o PSF) e a
Saúde Coletiva. O objetivo deste artigo é refletir sobre tal processo, numa perspectiva crítica e “diagnóstica”.
Para isso, é apresentada uma síntese livre de idéias de Illich (1975) sobre o tema, seguida de uma
interpretação do mesmo a partir da concepção epistemológica de Fleck (1986). A medicalização transforma
culturalmente as populações, com um declínio da capacidade de enfrentamento autônomo da maior parte dos
adoecimentos e das dores cotidianas. Isso desemboca num consumo abusivo e contraprodutivo dos serviços
biomédicos, gerando dependência excessiva e alienação. Vista pelas idéias de Fleck, ela é a previsível
conseqüência da socialização forçada e acelerada do estilo de pensamento biomédico (centrado no controle, nas
ações e interpretações heterônomas) para contingentes populacionais pouco modernizados, pluriétnicos e
multiculturais, como a maioria da população brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: uso de medicamentos. conhecimento. Programa Saúde da Família.
1
Departamento de Saúde Pública, Universidade Federal de Santa Catarina, SC. <[email protected]>
Rua Sebastião Laurentino da Silva, nº 1307
Córrego Grande – Florianópolis, SC
Brasil - 88.037-400
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.61-76, jan/jun 2006
61
TESSER, C. D.
Introdução
Muito sinteticamente, o processo de medicalização social pode ser visto
como a expansão progressiva do campo de intervenção da biomedicina por
meio da redefinição de experiências e comportamentos humanos como se
fossem problemas médicos.
Illich (1975) analisou e criticou a medicalização social que se acelerava
em sua época, ainda mais acirrada no início deste século XXI. Imputou à
institucionalização, industrialização e expansão da biomedicina
transformações socioculturais e políticas negativas. Sua análise mantém-se
atual em vários aspectos, apesar do seu tom agressivo, tendo sido
reinterpretada e revalorizada recentemente por Nogueira (2003a).
No Brasil, o recente investimento do SUS na rede básica e no Programa
de Saúde da Família (PSF) aumentou o contingente de profissionais de
saúde e seu contato com a população, ampliando potencialmente o acesso e
o contato das populações com a atenção à saúde biomédica. Este fato torna
a questão da medicalização social um tema candente e urgente para a
Saúde Coletiva, para a educação permanente dos profissionais de saúde e
para sua atuação cotidiana, particularmente para as equipes de PSF (e de
toda a rede básica).
O objetivo deste artigo é discutir alguns aspectos do processo de
medicalização social ora em vigor no Brasil, como contribuição para uma
melhor compreensão da relevância do problema. Isso é particularmente
importante em razão do fato de as ações cotidianas de profissionais
médicos e equipes de saúde da rede básica serem ativos e intensos agentes
desse processo (Tesser, 1999). Numa analogia com o jargão médico, este
artigo discutirá um “diagnóstico”, mas não entrará na construção de
estratégias para o “tratamento”, dado seu limite de espaço.
Para realizar este objetivo, será introduzida a visão illicheana da questão,
por meio de uma síntese livre da mesma, sob a perspectiva da prática de
atenção à saúde na rede básica, a qual induz uma focalização maior no que
Illich (1975) chamou de “iatrogênese cultural” desviando, assim, de
questões macropolíticas, econômicas e corporativas, as quais não serão
abordadas em profundidade. A seguir, uma análise do processo de
medicalização social será esboçada a partir das idéias epistemológicas de
Ludwik Fleck (1986), previamente introduzidas, de modo a ressituar a
visão illicheana e indicar algumas conseqüências práticas da medicalização
social para a rede básica do SUS. Isso permitirá delinear, ao final, estratégias
de ação e de pesquisa sugeridas para o manejo das questões discutidas.
Parte-se da hipótese de que as idéias epistemológicas de Fleck (1986) –
relativamente pouco conhecidas e que abordam precisamente as
transformações dos saberes por intermédio de extratos sociocognitivos
distintos –, podem enriquecer a compreensão do processo de medicalização
social, fornecendo relevantes contribuições à Saúde Coletiva.
Sobre a medicalização 2
Há trinta anos, Ivan Illich (1975) lançou a crítica mais contundente até
então empreendida contra a medicina moderna, envolvendo seus aspectos
culturais, econômicos, sociais e políticos. Mais do que uma crítica à
62
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.61-76, jan/jun 2006
Esse tópico deriva de
parte de um capítulo
de meu estudo de
mestrado (Tesser,
1999, cap.1).
2
MEDICALIZAÇÃO SOCIAL I: O EXCESSIVO SUCESSO...
Illich usa o termo
“iatrogenêse” com
sentido derivado do
uso comum do termo
médico “iatrogenia”:
produção de efeitos
deletérios sobre a
saúde devidos à ação
médica.
3
Como exemplo, ver
Navarro (1975). Adam
& Herzlich (2001), em
obra recente,
panorâmica e
introdutória sobre a
sociologia da medicina,
não dedicam mais que
uma pequena nota de
rodapé à obra
illicheana.
4
medicina, pelo que ficou conhecido, o autor descreveu um movimento
cultural cujas dimensões são, hoje, globais.
Sua principal obra, “A expropriação da saúde: nêmesis da medicina”,
dizia que a medicina institucionalizada transformou-se numa ameaça à
saúde. Afirmava que esta ameaça se dá pela difusão de três tipos de
iatrogênese3: a iatrogênese clínica, que se constitui nos danos ao indivíduo
ocasionados pelo uso da tecnologia médica, diagnóstica e terapêutica. A
segunda seria a iatrogênese social, referente ao efeito social danoso do
impacto da medicina, que gera uma desarmonia entre o indivíduo e o seu
grupo social, resultando em perda de autonomia na ação e no controle do
meio, expropriação da saúde enquanto responsabilidade das pessoas e
disseminação do papel de doente como comportamento apassivado e
dependente da autoridade médica (Nogueira, 2003a). E, por fim, a
iatrogênese cultural: a destruição do potencial cultural para lidar
autonomamente com boa parte das situações de enfermidade, dor e morte.
Segundo Nogueira (1997, 2003a), esta foi a grande novidade
introduzida por Illich: a ampliação do conceito de iatrogênese para abarcar
processos difusos e sub-reptícios de medicalização da sociedade. Illich,
mergulhado no contexto contracultural da época, foi relativamente pouco
considerado pela academia e pela saúde pública4, seja pelo radicalismo de
sua crítica, afrontoso à subjetividade médica presente nos sanitaristas, seja
pela influência marxista na área na sua época.
Como se pode entender a medicalização? Em que ela consiste? Uma breve
discussão sobre a dor e o adoecimento ilustra o problema. Para a
biomedicina, a dor “é um dos sintomas mais comuns, denunciando lesões
orgânicas que determinam o fenômeno reflexo, e, em menor freqüência,
exprimindo a origem psicógena. É uma sensação desagradável (...), um
fenômeno neurológico reflexo” (Ramos Jr, 1973, p.16). Analogamente, as
doenças
são coisas, de existência concreta, fixa e imutável, de lugar para
lugar e de pessoa para pessoa; elas se expressam por um
conjunto de sinais e sintomas, que são manifestações de lesões,
que devem ser buscadas do âmago do organismo e corrigidas
por algum tipo de intervenção concreta.
(Camargo Jr, 1993, p.13)
Mas para quem a sofre, a dor é bem mais do que isto, assim como as
enfermidades são muito mais do que os critérios e saberes médicos. Elas
podem ter várias facetas, simultaneamente diferentes, intensas e
verdadeiras: um valor intrínseco negativo, fato que designa a experiência da
abolição da integridade do indivíduo consigo mesmo e/ou com seu meio.
Assim, a dor ganha caráter trágico, portando certezas excepcionais. De valor
incomunicável, e igualmente incontestável, é também inacessível ao termo
que a designa clinicamente, não podendo, portanto, ser enquadrada em
categoria alguma. Diferentemente de outros males, não admite distinção
entre causa nociva e experiência penosa, ficando o indivíduo na solidão de
sua experiência pessoal e única (Illich, 1975).
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.61-76, jan/jun 2006
63
TESSER, C. D.
Paradoxalmente, apesar da incomunicabilidade da dor, a certeza de sua
existência (possível) no outro é uma verdade de tipo igualmente
excepcional. A percepção da dor no outro denota uma verdade também
inquestionável: a certeza de que o outro é capaz desta experiência. Isso
acompanha a certeza de que ele é humano (Illich, 1975).
Assim, a dor pode ser chance de envolvimento mais íntimo do doente
consigo mesmo, seu meio, sua vida. Tal envolvimento pode ser – e amiúde
é – terapêutico; dele pode a pessoa sair mais forte, mais autônoma, mais
responsável por si mesma e perante a vida e o sofrimento dos outros. Mas
para uma melhor compreensão do problema da dor e do adoecimento, é
necessário incluir nessa discussão o contexto sociocultural em que ela
ocorre.
A sensação da dor é provocada por mensagens recebidas no cérebro. No
entanto, a experiência da dor, a que Illich reserva o termo sofrimento,
depende em qualidade e intensidade de outros fatores, independente da
natureza e da intensidade do estímulo nervoso. Linguagem, ansiedade,
atenção e interpretação são alguns desses fatores que dão forma à dor e por
meio dos quais agem, como determinantes sociais, a ideologia, as
estruturas econômicas, as características sociais, as crenças e as concepções
sobre o mundo e o homem. Desse modo, é a cultura que orienta o sentido
dado ao indivíduo à experiência da dor e do adoecimento. Portanto, uma
dor é vivida e se constitui em sofrimento se estiver integrada numa
cultura. Justamente pelo fato de a cultura fornecer um quadro que permite
organizar o vivenciado, ela é condição indispensável ao desenvolvimento da
“arte de sofrer”. Fornece elementos para veicular a dor, os sons, as palavras
e os gestos que aliviam e permitem a comunicação, o diálogo que liga a
vítima ao seu meio. Enfim, a cultura fornece a matriz explicativa, os mitos,
o universo simbólico que explica a existência da dor e a ela dá sentido.
Illich localiza o começo da luta ocidental contra a dor em Descartes, que
separa o corpo da alma, construindo um modelo em termos de geometria,
mecânica e relojoaria semelhante a uma máquina que pode ser reparada
por um engenheiro. No fim do século XIX, a dor estava emancipada de todo
referencial metafísico. Desde então, ocorreu uma grande virada da medicina
ocidental rumo à analgesia, que se insere dentro de uma reavaliação
ideológica da dor e do sofrimento, a qual se reflete na cultura e em todas as
instituições contemporâneas. Para o autor, a dor e sua eliminação por
conta institucional adquiriram lugar central na angústia do nosso tempo.
O progresso da nossa civilização torna-se sinônimo de redução de
sofrimento, mediante a tentativa de eliminação ou sedação de dores e
sintomas e controle dos riscos e doenças crônicas. Assim, a dor, a doença e
seus riscos começam a ser vistos primeiro como a condição dos homens a
quem a corporação médica não concedeu o benefício de sua caixa de
ferramentas (Illich, 1975).
Ao viver em uma sociedade que valoriza a anestesia e a sedação de
sintomas, o médico e seu cliente aprendem a abafar a interrogação inerente
a qualquer dor ou enfermidade: O que é que não anda bem? Por quanto
tempo ainda? Por que é preciso? Por que eu? Qualquer médico sincero sabe
que, se ficar completamente surdo à pergunta implícita na lamentação do
64
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.61-76, jan/jun 2006
MEDICALIZAÇÃO SOCIAL I: O EXCESSIVO SUCESSO...
paciente, pode até reconhecer sintomas e fazer diagnósticos corretos, mas
não compreenderá nada do sofrimento dele.
Entretanto, o desenvolvimento da faculdade de objetivação da dor e dos
sintomas em geral é um dos resultados (perseguidos) da formação
científica dos médicos. Seus estudos os incitam a concentrar a atenção nos
aspectos classificáveis e manipuláveis da dor e dos outros sintomas. O ato
médico vai, assim, reduzindo-se a uma intervenção mecânica. E a
interrogação essencial é transformada em vaga ansiedade que se pode
facilmente reduzir ou dissolver por meio de ansiolíticos “eficazes” (Illich,
1975).
Além disso, hoje a profissão médica decide quais as dores ou doenças
autênticas, as imaginadas ou simuladas. Os termos com que o médicoprofessor explica aos seus alunos a natureza da dor ganham em precisão
objetiva, e os termos de referência subjetiva com os quais os pacientes se
esforçam para discernir e dar significado para seus padecimentos esvaziamse e perdem seu poder de comunicação, sendo engolidos e
metamorfoseados pelo entendimento e uso médicos. A sociedade reconhece
este julgamento profissional e adere a ele. A dor objetiva pode vir a ser
sofrimento apenas através do olhar de uma pessoa, mas atualmente é o
olhar profissional que mais determina a relação do paciente com a sua
experiência.
A institucionalização da dor e dos adoecimentos reflete-se na linguagem
e muda o sentido das palavras. A dor corporal é indicada por uma litania de
termos que designam o aborrecimento, fadiga, punição, aflição, trabalho
penoso, provação, agonia, culpa, vergonha, tortura, medo, ansiedade,
tristeza, depressão, opressão, confusão, doença, etc. Mas o sentido em que
a palavra “dor” é empregada corretamente numa sala de cirurgia designa
alguma coisa que não tinha nome especial para as gerações passadas. A
palavra está medicalizada por seu emprego profissional e se reduz à
designação da parte da sensação sobre a qual o médico pode afirmar a sua
competência e o seu controle.
Para Illich, as culturas tradicionais tornavam o homem responsável por
seu comportamento sob o impacto da dor. Tornavam-na suportável e
“enfrentável”, integrando-a num sistema carregado de sentido. Hoje, a
medicalização da linguagem, da resposta à dor e aos sintomas em geral está
em vias de determinar condições sociais que paralisam ou diminuem a
capacidade de reagir autonomamente frente à dor ou sofrê-la. O tecido de
respostas orgânicas, pessoais, emocionais e sociais à dor, propiciado pelas
culturas, está em vias de se desfazer (ou já está se desfazendo), “de se
transformar em uma demanda geral de gestão técnica das sensações,
das experiências e do porvir individuais” (Illich, 1975, p.128).
Em meio medicalizado, a dor perturba e desnorteia a vítima sem que ela
tenha outros recursos senão entregar-se ao tratamento médico. A cultura
medicalizada deixa o homem desamparado e incompetente, pondo-o nas
mãos do trato médico profissional, estranho à compreensão tradicional ou
pessoal do doente - às vezes já resquicial – e desagregador das relações
entrelaçadoras do homem com sua doença, seu meio, a natureza, seus
próximos e com ele mesmo. Assim, a compaixão (fonte de consolo,
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.61-76, jan/jun 2006
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TESSER, C. D.
conforto, distração e esperança) e o conhecimento cultural sobre a saúde
(tradicional, popular ou de outras medicinas), de gerações anteriores e do
entorno social do doente (fonte de tratamento integrado à cultura e à vida
do paciente e dos seus), transformam-se em virtudes obsoletas e muitas
vezes indesejadas.
Sem matriz cultural ou conhecimento que propiciem outra saída, os
pacientes aprendem a conceber sua própria dor ou adoecimento como fato
clínico objetivo, que pode ser submetido a tratamento “estandardizado”.
Cresce, assim, um processo cíclico em que o indivíduo aprende a se ver
como consumidor de anestesias, sintomáticos, quimioterápicos e cirurgias.
Por outro lado, e coerentemente, a “saúde” passa a ser encarada como
obrigação, em termos de comportamentos prescritos por profissionais da
área, screenings periódicos especializados, gestão profissionalizada e,
mesmo, quimioterápica dos riscos; uma obsessão do cidadão moderno
transformado em consumidor de especialistas, personal trainers,
academias e, mais recentemente, “estatinas”5, conformando o que
Nogueira (2003a) chamou de higiomania moderna, criticada também por
Illich nos seus escritos posteriores ao Nêmesis.
Segundo Illich, essa situação chega a ponto de gerar um decréscimo
geral no que chamou de índice de boa saúde: a capacidade de manter,
intervir e transformar, de forma autônoma e socialmente compartilhada, a
própria vida e o meio em que se vive, com vistas a preservar e ou aumentar
o grau de “liberdade vivida”.
É claro que todo homem tem direito ao conhecimento e à moderna
técnica científica e industrial, não só médica, e às informações sobre os
benefícios e perigos das drogas e procedimentos usados na medicina. Mas
esses progressos, na grande maioria das vezes, só lhe favorecem a saúde na
medida em que alargam sua capacidade e responsabilidade diante de si
mesmo e dos que sofrem (Illich, 1975).
Todavia, para um melhor entendimento da crítica illicheana ao domínio
das ações heterônomas em saúde-doença, deve-se levar em conta seu
conceito de contraprodutividade. A contraprodutividade envolve a idéia de
uma ferramenta que passa a produzir efeitos paradoxais, operando contra o
objetivo implícito em sua função: o automóvel que produz
congestionamentos, a escola que inibe talentos, o hospital que favorece a
doença. Isso pode ocorrer por excesso de produção da ferramenta e/ou por
monopolização da sua função.
A contraprodutividade é uma frustração social interna ao uso da
ferramenta. Seus custos não podem ser externalizados, nem pode o
consumidor recorrer a outra fonte de serviços (outro hospital, por
exemplo), porque as condições sociais de profissionalização e do
institucionalismo fazem com que todos operem sob a mesma lógica. Ela
vem da destruição de certas condições culturais e psicológicas que
possibilitam a produção autônoma de valores de uso, por fora dos
esquemas mercantis e profissionais que hoje os monopolizam. As pessoas
tornaram-se condicionadas a obter em vez de fazer, a comprar em vez de
criar: em saúde, não querem mais curar-se, mas serem curadas (Nogueira,
2003a).
66
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.61-76, jan/jun 2006
Classe de fármacos
industrializados
usados para reduzir os
níveis de lipídios
sangüíneos.
5
MEDICALIZAÇÃO SOCIAL I: O EXCESSIVO SUCESSO...
A partir de certo limiar de expansão da produção heterônoma, o
equilíbrio sinérgico entre as ações de saúde autônomas (realizadas pelo
indivíduo ou seus pares no seu meio social autóctone) e as ações
heterônomas (realizadas e controladas por agentes profissionais
institucionalizados) é rompido internamente, ao passo que a
contraprodutividade começa a crescer e a expandir-se, retroalimentando
positivamente a produção de ações heterônomas. A conseqüente expansão
da produção heterônoma gera mais contraprodutividade, e ambas, por sua
vez, geram a ilusão da necessidade de mais ação heterônoma para corrigir
os efeitos indesejáveis e paradoxais produzidos. Perde-se, assim, a ajuda
mútua, a sinergia positiva entre as ações heterônomas e autônomas,
criando-se um círculo vicioso contraprodutivo.
No caso da atenção à saúde, a ação especializada, em vez de promover a
autonomia do doente, para que este possa necessitar menos de novas ações
heterônomas e melhor usufruir de ações eventuais ou necessárias, destrói a
autonomia, reivindicando submissão, alimentando a dependência e a
compulsão ao consumo, gerando mais demanda por atenção heterônoma,
comprometendo, por fim, a sua própria efetividade e eficácia geral.
A esse respeito, vide
Nogueira (2003a).
6
7
Para uma
apresentação mais
detalhada das idéias de
Fleck (1986), vide
Tesser (2004, cap.1,
p.93-107).
A conceituação de
estilos de pensamento
de Fleck guarda
estreita semelhança,
coerência e analogia
com os paradigmas de
Kuhn (1987, 1989),
embora seja bem mais
geral. Os paradigmas
podem ser
considerados casos
particulares de estilos
de pensamento,
propostos por Kuhn
para a atividade
científica. Uma
comunidade científica
seria um caso
particular de um
coletivo portador de
um estilo de
pensamento. Discussão
e aplicação do conceito
de paradigma na
medicina encontra-se
em Camargo Jr.
(1992a,b; 1993),
Tesser (1999),
Nogueira (2003b).
8
As idéias de Fleck
O enfoque illicheano, apesar de suas valiosas pistas para a abordagem do
tema (aqui não discutidas6), parece não ter mobilizado suficientemente a
atenção da Saúde Coletiva, dos gestores do SUS e do ensino médico nas
últimas décadas.
Para iluminar a questão da medicalização de forma distinta, pode-se
pensá-la com base nas idéias epistemológicas de Ludwik Fleck (1986) sobre
os estilos e coletivos de pensamento e o metabolismo do saber que ocorre
por meio dos círculos sociocognitivos do coletivo geral de um estilo de
pensamento7 .
Um estilo de pensamento é um conjunto entrelaçado de tradição,
valores, crenças metafísicas, modelos abstratos, representações simbólicas,
métodos e exemplos de procedimentos, aprendidos por semelhança e
iniciação ao modo tradicional (extracientífico), que os membros de um
coletivo de pensamento compartilham para determinada ação, projeto ou
interesse específico8.
Os estilos de pensamento, ao mesmo tempo em que coagem e
direcionam o pensamento, a percepção e a cognição, têm uma função
pedagógica essencial ao proporcionar um corpo de verdades, valores e
métodos prontos que viabilizam a introdução dos novatos no estilo do
pensamento. Além disso, exercem uma função sociocognitiva e psicológica
de permitir a coalizão dos participantes em torno de certa realização
intelectual, tecnológica, cultural etc. Para Fleck, os estilos de pensamento
são unidades de análise fundamentais para a compreensão da construção e
transformação do saber e sintetizam em si fatores de ordem
sociopsicológica, cognitiva, histórica, filosófica e cultural.
Segundo o autor, algo como um “metabolismo” psico-sócio-cognitivo do
saber desenrola-se entre os círculos sociocognitivos de um coletivo de
pensamento portador de um estilo. Toda a base de um saber especializado
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TESSER, C. D.
deriva do senso comum, da cultura geral, dos extratos exotéricos de
qualquer estilo de pensamento, que fornece o senso de confiança, as
concepções gerais de mundo e universo, a estabilidade emocional das
certezas evidentes por si sós. Esse saber e algumas partes dele são
reconstruídos, elaborados, sofisticados e transformados pelos círculos
progressivamente mais esotéricos (especializados) de um estilo de
pensamento, escrutinados pelos interesses, métodos, valores e técnicas
desenvolvidos por esses círculos, ganhando nova dimensão, muitas vezes
gerando novos saberes e concepções, permitindo descobertas,
especializações, eficácias, novas idéias e tecnologias. Estas permitirão novas
práticas sociais que podem, agora, fazer o caminho de volta ao mundo
exotérico (social geral) e o influenciar.
Nesse caminho de volta, os saberes de novo se transformam, ficando
mais simples, dogmáticos e esquemáticos. Afastado do centro esotérico em
direção à periferia exotérica, o saber fica fortemente dominado por um
grafismo emotivo que confere a ele segurança subjetiva do evidente. O
saber exotérico caracteriza-se pela omissão dos detalhes e uma valorização
apodídica que consiste no simples aceitar ou rechaçar certos pontos de
vista.
Uma vez estabelecido firmemente no saber exotérico e popular até que
se torne uma coerção do pensamento, o saber retorna ao especialista como
um fundo cultural, perceptivo e cognitivo, como aquilo que é pura
evidência, que não se precisa mais provar nem se pode mais questionar aquilo que não se pode pensar de outro jeito. Desta maneira, fecha-se o
círculo da dependência intracoletiva do saber.
No caso da biomedicina, discutida por Fleck, os círculos exotéricos são os
pacientes dessa medicina, uns mais outros menos exotéricos, conforme seu
grau de afinidade e de socialização no saber biomédico. Os círculos mais
esotéricos, os núcleos centrais destes círculos, são os grupos de cientistas
“de ponta” ou de excelência, que se debruçam sobre determinados
problemas, temas ou investigações. Os médicos clínicos estão localizados na
periferia dos círculos esotéricos, em extratos intermediários, já que
iniciados no estilo de pensamento e habilitados como praticantes portanto, social e estilisticamente especializados - mas não tão
especializados na produção de saber como os cientistas.
A transformação do saber pelos círculos eso-exotéricos de um coletivo de
pensamento, como descrita por Fleck no caso da ciência, permite alguma
compreensão da dinâmica de transformações intensas por que passa a
população brasileira, hoje, no seu contato com a biomedicina, ou seja,
enquanto círculo bem exotérico desse saber/prática.
A conformação do saber médico, como um saber estruturado num estilo
de pensamento superespecializado, sofisticado, elaborado e em pleno
desenvolvimento, orienta a percepção, a cognição e a abordagem do
profissional na prevenção dos adoecimentos, na promoção da saúde e no
tratamento de indivíduos e de coletividades. Proporciona alguns tipos de
ação e afasta outros. Porta eficácias e certos tipos de explicação, bem como
implica limites e cegueiras comuns à maioria dos extratos do coletivo
biomédico, particularmente os esotéricos (por causa de sua maior imersão
68
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.61-76, jan/jun 2006
MEDICALIZAÇÃO SOCIAL I: O EXCESSIVO SUCESSO...
na perspectiva estilística). Como discuti em outros momentos (Tesser,
2004, 1999; Tesser & Luz, 2002), isso tem importância na medicalização
social cotidiana e em vários dilemas éticos, técnicos, terapêuticos e
relacionais na prática biomédica da atenção à saúde.
Fleck e a medicalização
Passados os radicalismos da contracultura (de Illich) e certas crenças ou
simplificações do marxismo anterior à queda do muro de Berlim, podem-se
considerar os efeitos construtivos e, para alguns, desejáveis da
medicalização social. É possível, também, analisar os fundamentos
epistemológicos da mesma e considerar sua irreversibilidade relativa,
enquanto construção cultural em acelerado andamento no Brasil - já que a
maioria da população, moradora em centros urbanos, nos últimos anos,
tem algum contato com a biomedicina por meio do SUS. É nesse sentido
que ensaio uma pequena análise nas linhas que se seguem.
Inicialmente, é preciso esclarecer e resgatar certos pressupostos e
crenças iluministas, racionalistas e modernas sobre a atuação histórica e
social da ciência, para que se possa considerar a medicalização social no seu
contexto desejável, como um suposto projeto moderno de emancipação
social ou, ao menos, de mudança cultural em saúde-doença, centrada no
saber científico.
A ciência nasceu e se diferenciou de todos os outros saberes querendo
ser superior, única e exclusiva. Conseguiu atingir seus objetivos em grande
medida, embora parcialmente. A veracidade é, hoje, monopólio da ciência
na área da saúde, no ocidente.
“O privilégio epistemológico da ciência moderna é produto de um
epistemicídio” (Santos, 2000, p.242) de outras formas de saber e fazer
entrelaçadas com valores, tecnologias, modos de vida, culturas e sociedades
diversas das vigentes na sociedade moderna (e pós-moderna) européia ou,
recentemente, norte-americana. Assim, a homogeneização dos saberes em
saúde-doença, centrada no saber científico, nas suas tecnologias correlatas
(industrializadas), no pensamento moderno e sua noção de progresso, é
saudada como uma vitória, uma grande realização, para os defensores da
superioridade científica.
Todavia, essa homogeneização dos saberes culturais em saúde, se é
fortemente promovida pela mídia, pelo contato com a biomedicina e pela
globalização, dá-se de forma assíncrona e desarmônica em relação aos
processos de socialização social e econômica no terceiro-mundo e no Brasil.
Além disso, a cultura européia (e norte-americana), de modo geral, não se
expande em um vazio cultural ou sociotécnico, ao contrário. Encontra,
combate, domina, destrói, transforma e constrói por sobre uma população
heterogênea, com cultura mestiça sulista pobre (por oposição ao norte
rico), pluriétnica, multicultural e, em boa medida, sincrética, com saberes e
fazeres mais ou menos próprios e diversos.
A socialização ampla do estilo de pensamento biomédico em nosso país
só pode se dar na periferia exotérica do seu coletivo, onde a simplificação, o
pragmatismo e a transformação dos saberes são inevitáveis e sofrem
influência dos demais estilos de pensamento, valores culturais,
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69
TESSER, C. D.
representações, religiões e crenças populares do Brasil.
As pessoas não-européias (latino-americanas, africanas, asiáticas e
mestiças), imersas em redes sociotécnicas9 distintas, participantes de
círculos exotéricos (quando não esotéricos) de coletivos de pensamentos
diversos, portam valores e representações com pouca semelhança ou
afinidade com o estilo de pensamento biomédico.
Assim, os cidadãos pobres brasileiros, mal-alfabetizados, em princípio,
carregam um imaginário de crenças, representações, valores e cosmologias
em saúde-doença muito mais distintos do estilo de pensamento biomédico
do que os círculos exotéricos da biomedicina, por exemplo, na Europa –
onde a alfabetização, a escolarização e a inserção cultural e social do saber
científico são mais velhas e mais capilarmente difundidas na população.
Inevitavelmente, no Brasil, o contato exotérico com tal estilo implica
maiores metamorfoses de sentido, maior simplificação e maior grau e
variedade de “anomias vivenciais” nas interpretações e nos tratamentos
médicos dos adoecimentos, bem como relevantes conflitos de várias
naturezas, além de uma maior dificuldade comunicacional entre o
curandeiro biomédico e os doentes (ou usuários), com discrepâncias de
valores e dissensos simbólicos, geralmente antiterapêuticos e pouco
promotores de saúde ou autonomia.
Mediante o modelo de Fleck, torna-se compreensível a perspectiva
popular que pode parecer absurda a uma primeira vista. Por derivar de
outros círculos exotéricos, socializados em meios socioculturais nãointelectuais nem cientificizados, fascinados pela versão midiática milagrosa
da propaganda científica, pressionados pela globalização, precariedade da
moradia e do emprego, violência, pobreza e pelo desemprego, a maioria dos
brasileiros não poderia mesmo agir de outro modo. Suplica por uma vaga
nos serviços, aumenta as filas dos pacientes do SUS, para todos e quaisquer
adoecimentos, transtornos e queixas.
Ensinados a esquecer, menosprezar e desqualificar todos os cabedais de
saberes autóctones para interpretação e manuseio dos adoecimentos e
sofrimentos vividos; ensinados a buscar na causa biológica e no tratamento
quimioterápico/cirúrgico a solução de todos os males; ensinados a esperar
do especialista e dos exames complementares a elucidação e a cura de tudo,
os doentes agem coerentemente.
A biomedicina, por sua vez, ensina essas lições aos doentes no dia-a-dia
da clínica (Tesser, 1999), por intermédio de um dos instrumentos mais
poderosos em qualquer situação ou tradição: o exemplo. Os biomédicos,
eles mesmos, praticam esses ensinamentos, conforme seu estilo de
pensamento ensina, e assim geram para si um excesso de demanda que
encobre, por um lado, seus próprios limites e, por outro, desvia a atenção
de médicos e doentes das influências complexas sociopsicológicas,
ambientais, espirituais e econômicas sobre a vida e o adoecimento das
pessoas.
Os otimistas do desenvolvimento econômico talvez argumentassem que,
com mais empregos, mais saneamento, mais educação, mais escolarização,
essas mazelas do subdesenvolvimento seriam equacionadas. Todavia, as
redes sociotécnicas da biomedicina, de ordem mercadológica e comercial, os
70
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.61-76, jan/jun 2006
Uso esta expressão no
sentido proposto por
Latour (2000a).
9
MEDICALIZAÇÃO SOCIAL I: O EXCESSIVO SUCESSO...
valores e as culturas remanescentes do processo colonialista não parecem
indicar tanto otimismo e esperança a curto ou médio prazo. Em todo o
caso, enquanto o milagre moderno (ou pós-moderno) não chega, cabe-nos
a consideração das realidades presentes e suas tendências.
Do ponto de vista do projeto político da ciência, a medicalização social
não só é desejável como pode ser considerada uma vitória da modernidade e
da biociência. Nessa perspectiva, é o sucesso do projeto político-cultural e
epistemológico da socialização geral do saber científico pelo mundo, que
não pode ocorrer senão por meio do contato dos seus próprios círculos
intermediários e exotéricos com as constelações culturais e de saberes, de
vários tipos, dos doentes e das populações, ainda plurais no Brasil. Devido
às peculiaridades político-epistemológicas da biomedicina e ao seu sucesso
na luta pelo “monopólio epistemológico” institucional, este contato,
obtido no mundo ocidental e expandido com a globalização, é dominador,
desqualificador e epistemicida, como se mimetizasse, em alta velocidade e
com muito mais contraprodutividade, a socialização que a biociência viveu
em séculos passados na Europa.
Trata-se, portanto, de um processo colossal de epistemicídio progressivo
de saberes e estilos de pensamento em saúde-doença, mais ou menos
estruturados, e de práticas diluídas nas culturas, populações e subculturas,
importantes para o manejo autônomo dos problemas em saúde-doença,
agora em rápida transformação ou extinção parcial. Um processo cuja
conseqüência é a homogeneização - pautada pela heteronomia - dos
saberes/práticas em saúde-doença (e modos de vida em geral), criticada por
Feyerabend (1991), particularmente quanto ao seu pressuposto fundador
e justificador, transformado em mito na modernidade: a idéia disseminada
da superioridade epistemológica total da biociência e sua biomedicina.
Outro aspecto a ser ressaltado é que o estilo de pensamento dessa
medicina produz e porta um conhecimento basicamente de terceira pessoa
(para usar um jargão epistemológico atual), cuja tradição reserva toda
competência epistemológica e tecnológica para os pólos esotéricos de si
mesma; ou seja, ela é calcada na interpretação e intervenção heterônomas
especializadas e superespecializadas, no controle heterônomo.
De modo que é coerente com a socialização generalizada dessa tradição o
atual desenrolar sociocultural exotérico do saber/fazer em saúde-doença, o
qual se caracteriza por uma progressiva incompetência epistemológica
cíclica por parte das pessoas e mesmo, em certo grau, dos médicos, a
periferia exotérica dos círculos esotéricos. O pólo exotérico transforma-se
progressivamente em consumidor de tecnologias biomédicas
industrializadas, o intermediário (o profissional clínico) em consumidor de
saberes e prescritor dessas tecnologias ou comportamentos.
Paradoxalmente, o progresso emancipador da ciência parece ter, em
parte, saído pela culatra, ao menos para os que acreditavam ou acreditam
nessa promessa ou potencialidade emancipadora do processo sociocognitivo
científico.
A ciência, ao transformar-se em mito, ao centralizar em si, enquanto
instituição, toda competência e excelência epistemológica, esvaziando ou
extirpando, progressivamente, esta competência da vida dos leigos,
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.61-76, jan/jun 2006
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TESSER, C. D.
participa do reverso de seu suposto projeto emancipador: a construção da
incompetência epistemológica moderna em saúde-doença de todas as
pessoas, por meio da medicalização social, do excesso de sucesso da
socialização do saber biocientífico e das tecnologias científicas nessa área.
Por outro lado, ao se levarem em conta as redes sociotécnicas que se
organizaram e estão envolvidas na construção e sustentação da
biomedicina, pode-se observar o lado exitoso de um projeto sociocognitivo e
político, agora sem crenças ingênuas nem críticas raivosas ou
excessivamente militantes. Nesse sentido, um projeto de desenvolvimento
de relações sociais e práticas de saberes em saúde-doença baseados
essencialmente nas relações de consumo (no sentido econômico,
capitalista, do termo) pode ser vislumbrado.
Nesse aspecto, está envolvida a aceleração da socialização de práticas
científicas, centradas no controle heterônomo, o maior valor ao redor do
qual se organiza a ciência, segundo Lacey (1998). Um valor
eminentemente político, mas também social e psicológico, e curiosamente
não-cognitivo10. O que parecia radicalmente agressivo e pessimista, a
construção da incompetência epistemológica moderna, torna-se, agora,
instrumento de socialização acelerada, de complexificação e extensão das
redes sociotécnicas dos insumos e das tecnologias biomédicas, de inclusão e
geração de consumidores que nem dinheiro para o consumo têm – mas o
SUS financiará grande parte do tratamento. Dependência e incompetência
são requisitos bem-vindos para aumentar a extensão da rede biomédica
(científica e industrial) de controle dos riscos e das doenças, ao passo que
toda a contraprodutividade será debitada na conta alheia, atribuída às
mazelas da “falta de educação” dos pacientes.
Isso é compreensível mediante a visão de Latour (2000a) sobre a
separação moderna entre teoria e prática: enquanto no alto da limpidez das
teorias tudo vai bem, no mundo independente da prática, vai se
construindo uma vida mais tensa, controlada e homogênea, mais pobre e
difícil, para a maioria da população, em que as redes sociotécnicas do
mercado e da biomedicina (supondo esta em algum grau separada daquele)
se expandem por todo país, medicalizando-o.
O poder estende-se e centraliza-se (Latour, 2000b), a irresponsabilidade
cresce até não poder ser mais reconhecida, até tornar-se hegemônica e
dominar o tônus ético-moral dessa tradição moderna recente de
curandeiros oficiais. As conseqüências, mazelas, os efeitos, estragos e
reparos serão feitos por outros, de outro tempo, outra disciplina, outra
especialidade. O meio entre a “natureza biológica das doenças” (saber
científico sobre uma suposta natureza eterna sem história) e a sociedade
(cultura), o lugar não-moderno onde tudo ocorre, é o meio tenso em que
se dá a medicalização social aqui revisitada.
Segundo Hösle (apud Müller, 1996), três são os postulados
fundamentais da modernidade: o infinitismo científico (a criação de
metanecessidades a serem satisfeitas por uma mediação técnica cada vez
mais complexa e custosa, na dependência crescente de aparelhos e
tecnologia científica); o princípio do verum factum (só o que é
tecnicamente feito pelo homem é verdadeiro, o que proclama a
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10
Isso vale a pena ser
ressaltado porque
grande parte da
epistemologia louva e
admira a ciência por
seus valores cognitivos
(como, por exemplo,
adequação empírica,
consistência,
simplicidade,
fecundidade, poder
explicativo, verdade),
considerando todos os
outros tipos de valores
por ventura
encontrados ou
intervenientes na
produção do
conhecimento e no
próprio saber como
males ou partes
inevitáveis do contexto
social e histórico da
ciência, que não
pertenceriam ao seu
conteúdo.
MEDICALIZAÇÃO SOCIAL I: O EXCESSIVO SUCESSO...
construtividade essencial da ciência - e a destrutividade dela para o que não
é ela mesma); e o programa cartesiano de transformação da qualidade em
quantidade, corporificado na hegemonia das metodologias das ciências
naturais na biomedicina. Esses postulados dão uma idéia da conotação
exitosa do processo de medicalização social, o qual é plenamente coerente
com o desdobramento sociocultural exotérico dos mesmos na área da
saúde. Bem como deixam entrever as conexões recíprocas entre ciência,
técnica e capitalismo, configurando redes sociotécnicas relativamente
pouco exploradas e analisadas, entre nós, na área da saúde.
Conseqüências para a atenção básica do SUS
O desfecho prático do processo de medicalização social, precocemente
descrito por Illich e iluminado pelas idéias de Fleck, mostra que gripes,
resfriados, lutos, pequenas contusões e ferimentos, tristezas, crises de
relacionamento sentimental, familiar e conjugal, dores ocasionais,
recorrentes ou crônicas, mortes e nascimentos, crises existenciais etc.,
passam a ser vertiginosamente medicalizados, carentes de interpretação e
prescrição médica ou de especialista similar.
Assim, um dos subprodutos evidentes da medicalização social, visível
para todos os que trabalham ou têm contato com o dia-a-dia da atenção à
saúde nos serviços públicos, é a bola de neve crescente e infindável da
demanda espontânea por atenção médica para todos os tipos de problemas,
queixas, dores e incômodos. Fenômeno complexo, de múltiplos e amplos
determinantes, que, cada vez mais, tem exigido espaços de acolhimento
“resolutivo”, de atenção médica, administração e triagem das filas. Isso faz
com que o tema seja candente na prática, no cotidiano dos serviços do SUS,
na rede básica e nas equipes de PSF.
Tal fenômeno associa-se a várias epidemias de adoecimentos etiquetados
no saber exotérico, que avassalam os serviços públicos: dores incontáveis,
depressões, tendinites, pânicos, hipertensões, sinusites, viroses, gripes,
alergias dos mais variados tipos etc. Esses adoecimentos são
simultaneamente reais e artificiais, já que a popularização dos diagnósticos
força uma homogeneização precoce das histórias clínicas e dos diagnósticos
sobre elas produzidos, ao mesmo tempo em que as condições de vida e
trabalho impostas pela globalização pressionam e degradam a situação de
saúde da maioria da população.
Isso significa uma infinidade de novos problemas de saúde, criando uma
demanda crescente e praticamente impossível de se resolver por meio das
tecnologias habituais da atenção biomédica (quimioterapia e cirurgias),
como tem sido feito, senão medicalizando tudo cada vez mais, gerando
aumento de demanda no futuro próximo, aumentando a
contraprodutividade.
Por fim, pode-se considerar que a análise precedente sugere uma dupla
estratégia diagnóstica da situação, ao mesmo tempo assistencial e de
pesquisa, inspirada em Boaventura Santos (2004): considerar a
biomedicina (e sua socialização) indispensável para o mundo
contemporâneo e, simultaneamente, inadequada, incompleta e perigosa,
particularmente se levados em conta os processos de medicalização,
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TESSER, C. D.
iatrogenia cultural e contraprodutividade envolvidos no seu exercício
contemporâneo institucional.
Indispensável porque já está legitimada social e culturalmente nas
populações e estruturas sociais do ocidente e detém poder social inédito
como única referência epistemológica. Além disso, porque já não se sabe
mais o que fazer sem ela para muitas situações e provavelmente tenha
contribuído sobremaneira, de muitas formas, para o tratamento de vários
adoecimentos, particularmente os “graves”.
Essa medicina é inadequada porque centrada no controle heterônomo,
vinculado com redes e forças de poder social e econômico mercantis, e que
solapam ou dificultam a autonomia, alimentando a dependência das
pessoas, medicalizando-as. Por outro lado, seu estilo de pensamento é
reducionista e mecanicista em excesso, pouco sensível a muitos
adoecimentos de difícil enquadramento, para os quais não proporciona
interpretação coerente que forneça sentido para a vivência do adoecimento
e para uma terapêutica efetiva, acessível, sustentável e que reforce a
autonomia (Tesser, 1999).
Pode-se, assim, propor a tese da indispensabilidade e inadequação ou
incompletude da biomedicina e sua socialização ampla. Abre-se, com isso, o
desafio de se tentar algum grau de intervenção ou direcionamento no
processo de medicalização, tanto na assistência individual e microcoletiva
de pequena escala - PSF, rede básica - como no SUS em geral.
Isso demanda produção de conhecimento para a compreensão do
processo e construção de projetos de investigação e ação. Demanda,
também, clareza sobre o poder da ação medicalizante da atenção básica, que
agora pode entrar nos domicílios atendidos pelas equipes do PSF. E,
particularmente, supõe conhecimento sobre o modus operandi da atuação
dos médicos e seus saberes sobre a cultura em saúde dos usuários, sempre
em algum grau reconstruída a cada interação usuário-serviço ou médicopaciente.
Nesse sentido, a nova proximidade e interação permitida pelo PSF é uma
faca de dois gumes: pode ser uma chance para a reorientação da
medicalização e reconstrução da autonomia, mas também, e facilmente,
pode constituir-se em uma nova força medicalizadora poderosa.
A construção de sabedorias para o manejo dessa complexa questão no
dia-a-dia dos serviços é um desafio que fica aqui apenas registrado.
Pensando nele, para finalizar, esboço um balizamento que sugere três
frentes de atuação e pesquisa para o “tratamento” do problema. A primeira
é a crítica, a ressignificação e reconstrução do saber e das práticas típicas da
biomedicina, sua reforma por dentro. Desafio para a formação e a educação
permanente em saúde, especialmente o ensino médico.
A segunda é a abordagem, o resgate e o estudo das medicinas nãocientíficas, mais ou menos complexas e/ou tradicionais, como potenciais
parceiras a atenuar, iluminar e relativizar a inadequação da medicina
científica. Elas podem ser futuros e valiosos parceiros da tradição
biomédica, da Saúde Coletiva e do SUS no cuidado à saúde. Particularmente,
por hipótese, quanto à promoção da saúde, à evitação da medicalização
excessiva e da contraprodutividade específica da biomedicina11.
74
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.61-76, jan/jun 2006
11
Vide Luz (1997),
OMS (2002), Ernst
(2001), Tesser (2004,
cap. 2). Para propostas
de abordagem nãoepistemicida de
sistemas médicos
complexos, vide Tesser
(2004, cap.3), e de
racionalidades
médicas, vide Luz
(1996, 1997).
MEDICALIZAÇÃO SOCIAL I: O EXCESSIVO SUCESSO...
A terceira frente envolve a reconstrução da relação do saber biocientífico
com a vida cotidiana e com os saberes vários disseminados na sociedade, os
quais não devem ser apenas desqualificados, como tem ocorrido em grande
medida. As posturas biomédicas, em regra, são dominadas pelo viés da
heteronomia total e pelo preconceito cientificista que só valoriza o saber
superesotérico científico, desqualificando todo o resto. É preciso superar a
tendência controlista, da clínica biomédica e saúde pública, de pensar os
sujeitos e grupos sociais apenas pelo lado da sua submissão e “aderência”.
Essas frentes de trabalho constituem desafios sugeridos para se lidar
com o problema da medicalização social, carentes de melhor
desenvolvimento, tanto para o trabalho assistencial na rede básica e PSF,
quanto institucional, nos vários níveis do SUS – para o que se espera
contribuir em breve.
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Educ., v.10, n.19, p.61-76, jan/jun 2006.
El proceso de medicalización social en Brasil es intenso e importante para el Sistema
Único de Salud (SUS), en especial para el PSF (Programa Salud de la Familia) y la Salud
Colectiva. El objetivo de este artículo es reflexionar acerca de tal proceso, desde una
perspectiva crítica y “diagnóstica”. Por lo tanto, se presenta una síntesis libre de las
ideas de Illich (1975) acerca del tema, y después una interpretación del mismo a partir
de la concepción epistemológica de Fleck (1986). La medicalización transforma
culturalmente a las poblaciones, trayendo una disminución de la capacidad de
enfrentamiento autónomo de la mayoría de las enfermedades (trastornos) y dolores
cotidianos. Eso acarrea un consumo abusivo y contraproductivo de los servicios médicos,
generando dependencia excesiva y alienación. Vista a través de las ideas de Fleck, la
medicalización es la previsible consecuencia de socialización forzada y acelerada del estilo
de pensamiento biomédico (centrado en el control, en las acciones e interpretaciones
heterónomas) para contingentes poblacionales poco modernizados, multiétnicos y
multiculturales, como la mayoría de la población brasileña.
PALABRAS CLAVE: utilización de medicamentos. conocimiento. Programa Salud de la
Familia.
Recebido em: 22/11/05. Aprovado em: 25/05/06.
76
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.61-76, jan/jun 2006
Imagens e sentidos no discurso da mídia
impr
essa acer
ca de uma epidemia de
acerca
impressa
intoxicação ocupacional por benzeno*
Maria Ligia Rangel-S. 1
RANGEL-S., M. L. Images and meanings in the discourse of the press on an epidemic of occupational intoxication
by benzene. Interface - Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10, n.19, p.77-92, jan/jun 2006.
This study analyses the construction of public images put forth by four newspapers from Salvador, in the state
of Bahia, Brazil, for the different social actors involved in the public debate surrounding the epidemic of
occupational intoxication by benzene suffered by workers at the Petrochemical Complex at Camaçari, in the
state of Bahia (COPEC), in 1990 and 1991. The study resorts to Symbolic Interactionism, especially to Erving
Goffman, one of the most important sociologists of this research perspective, to analyze the discourse of the
newspapers, by using the analytical categories of “voices”, “arrangement” and “face”, as applied to 30% of the
journalistic material published during the course of 18 months. The analysis revealed the construction of
oscillating, conflicting and docile faces, which result from the variations of the dynamics with which the social
actors are presented in the text and operate within the news. They shape different public images for the
petrochemical workers, the COPEC employers and the government representatives in the different newspapers.
KEY WORDS: communication. journalism. discourse analysis. accidents occupational.
Analisa-se a construção de imagens públicas realizada por quatro jornais de Salvador-Bahia-Brasil, para os
diferentes atores sociais envolvidos no debate público, na vigência da epidemia de intoxicação ocupacional pelo
benzeno, que afetou trabalhadores do Complexo Petroquímico de Camaçari-Bahia-Brasil (COPEC), durante os
anos de 1990 e 1991. Recorre-se ao Interacionismo Simbólico, principalmente a Erving Goffman, um dos mais
expressivos sociólogos dessa perspectiva de pesquisa, para a análise do discurso dos jornais, utilizando-se as
categorias analíticas “vozes”, “arranjo” e “face”, em 30% do total de matérias jornalísticas publicadas ao longo
de 18 meses. A análise revelou a construção de faces oscilantes, em conflito e dóceis, que decorrem das
variações nas dinâmicas com que os atores são dispostos no texto e operam nas notícias. Estas conformam
distintas imagens públicas para os trabalhadores petroquímicos, para os empregadores do COPEC e para os
representantes governamentais, nos diferentes jornais.
PALAVRAS-CHAVE: comunicação. jornalismo. análise de discurso. acidentes de trabalho.
*
Elaborado a partir de Rangel-S. (2001).
1
Instituto de Saúde Coletiva/ISC, Universidade Federal da Bahia/UFBA, Ba. <[email protected]>
Rua Visconde de Itaboraí, 628, apto 303
Amaralina - Salvador, Bahia.
Brasil - 41.900-000
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.77-92, jan/jun 2006
77
RANGEL-S., M. L.
Introdução
Nos anos de 1990 e 1991 instalou-se, no Pólo Petroquímico de Camaçari,
Bahia, uma epidemia de leucopenia (redução das células brancas do
sangue), resultante da exposição ocupacional de trabalhadores ao benzeno
utilizado como matéria-prima em seis de suas indústrias. A morte de um
médico do trabalho, seguida do grave adoecimento e morte de um operário
da mesma empresa onde o médico trabalhava, foi o fato que gerou a
cobertura jornalística. A ação de vigilância da saúde do trabalhador,
desenvolvida pelo órgão estadual responsável, resultou em um estudo que
revelou, dentre 7.356 trabalhadores examinados, 850 suspeitos de
leucopenia e 216 considerados casos de benzenismo (DRT, 1991; Miranda
et al., 1990). A avaliação ambiental realizada pela Fundacentro/BA
constatou níveis significativos de contaminação ambiental pelo benzeno,
substância química utilizada como matéria-prima na produção de vários
compostos nas indústrias petroquímicas. Trata-se de um hidrocarboneto
cíclico aromático, líquido, volátil e altamente inflamável (Azevedo, 1990),
produzido principalmente pela destilação do petróleo ou como produto
secundário do coque metalúrgico e na siderurgia (DRT/MTb, 1991). Essa
substância produz diversos danos ao organismo humano, decorrentes da
intoxicação aguda ou crônica, à qual se atribui o nome de benzenismo.
Diante das mortes mencionadas, quatro jornais de Salvador realizaram
ampla cobertura dos acontecimentos em torno da epidemia, produzindo
um total de 217 matérias ao longo de 18 meses, sendo oitenta do jornal
Tribuna da Bahia (TB), setenta do jornal A Tarde (AT), 33 do Jornal da
Bahia (JB) e 34 do jornal Correio da Bahia (CB). Estes meios apresentavam
capacidade noticiosa distinta: o Jornal AT destacava-se como o principal
meio impresso de Salvador, de mais ampla tiragem e abrangência no
estado, constituindo-se como uma empresa jornalística, pretensamente
independente, mas sabidamente vinculada politicamente a alguns
interesses do grupo político hegemônico na sociedade baiana. O Jornal TB
TB,
o segundo maior em circulação naquela ocasião, assumia posição crítica às
forças governantes locais, sendo reconhecido pela sociedade como um
jornal de oposição. O jornal CB
CB, com tiragem restrita, buscava inserir-se no
mercado, sendo de propriedade de políticos que vêm governando o estado
há várias décadas. Por fim,, o Jornal da JB
JB, com tiragem ainda mais
restrita, vinculava-se historicamente às chamadas forças de esquerda do
estado, e em crise naquela conjuntura, adotava um perfil popular,
buscando sustentação no mercado, vindo posteriormente a desaparecer.
As mortes decorrentes de doença ocupacional levaram o problema da
saúde dos trabalhadores do COPEC às páginas desses jornais, ocorrendo a
epidemia em um contexto de forte tensão entre empregados e
empregadores, frente às incertezas da política econômica do país na década
de 1990. O debate em torno do risco de intoxicação corria em meio a
intensa luta política, no qual se destacavam os sindicatos dos
trabalhadores, enfrentando a dúvida plantada no debate público sobre a
origem das mortes e doenças emergentes no Pólo. Como parte do estudo
dos sentidos, produzidos pelos jornais para a epidemia (Rangel-S, 2003;
2001), neste artigo analisa-se a construção discursiva das imagens públicas
78
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.77-92, jan/jun 2006
IMAGENS E SENTIDOS NO DISCURSO DA MÍDIA...
no texto jornalístico para os principais atores envolvidos no processo de
análise e gerenciamento do risco da epidemia, os quais ganharam
visibilidade nas tramas discursivas dos quatro jornais. O estudo contribui
para se compreender como os meios massivos, ao construírem as notícias,
operam, dispondo os atores sociais no campo de ação de políticas de
controle de riscos à saúde e construindo imagens públicas para os mesmos.
Trata-se de um caso exemplar de múltiplas coberturas jornalísticas para um
mesmo fato, que possibilita um estudo em profundidade e a análise
comparativa, dada a profusão de textos produzidos sobre um tema de
saúde: a epidemia.
Abordagem teórico-metodológica
O estudo recorre ao interacionismo simbólico que se constitui como uma
das principais escolas de pensamento da sociologia, tendo como
característica a incorporação da reflexividade na análise da ação. Na área da
Comunicação, muitos pesquisadores que identificam os meios de
comunicação como construtores da realidade social têm recorrido às teorias
de Erving Goffman, um dos mais expressivos sociólogos dessa perspectiva
de pesquisa, para fundamentar seus estudos, especialmente à obra Frame
Analysis, na qual o autor analisa como as pessoas organizam a experiência
para dar sentido a suas práticas do cotidiano. Assim, para Goffman, os
sentidos são construídos também na dinâmica de operação dos
participantes da interação, de modo que, para a análise, é necessário isolar
alguns quadros de referência para se entender eventos particulares. Deve-se
analisar a vulnerabilidade desses quadros de referência, pois um ato
discursivo pode significar uma brincadeira, um mal-entendido ou, mesmo,
uma ação performativa de como os participantes querem ser vistos na
interação. Goffman também quer entender as conexões nas circunstâncias
em que um participante pode ter vários contratos na interação.
Neste estudo entende-se que a imagem de um ator é construída e ganha
sentido na cena da notícia, podendo ser apreendida do discurso,
considerando-se o esquematismo do texto, enquanto quadro formatado
pelos jornalistas para a ação dos sujeitos (Mouillaud, 1997). A análise
desses quadros permite a aproximação às forças que movem os sentidos
oferecidos ao público, enquanto intencionalidade não dita dos jornais.
O estudo foi feito em uma amostra de 30% das notícias, estratificada
por jornal, selecionada com uso de tabela de números aleatórios,
abrangendo-se todo o período de cobertura e tendo como suporte o
software NUD*IST 4.0, para análise qualitativa – uma ferramenta que, por
meio do computador, auxilia o trabalho de organização, codificação e
indexação dos dados, de acordo com um livro de códigos elaborado pelo
pesquisador, orientado por um quadro teórico de análise. Recorreu-se,
então, às categorias analíticas vozes para se entender o caráter polifônico
footing) e face
do texto jornalístico (Bakhtin, 1981), alinhamento (footing)
face,,
ambas de autoria de Goffman (1981). O termo footing pode ser
traduzido como condição ou arranjo sob o qual algo existe ou opera.
Goffman (1981) desenvolve essa noção aplicando-a também sobre um
texto jornalístico, definindo que as condições e os arranjos com que os
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.77-92, jan/jun 2006
79
RANGEL-S., M. L.
participantes se colocam na conversação, ou são postos no texto ou
decorrem do alinhamento, postura ou projeção do self que os mesmos
assumem. De acordo com o autor, devem-se considerar, para a
interpretação, quaisquer que sejam as mudanças na postura (Goffman,
1981). Nesse caso, os participantes, fontes das notícias, são dispostos
parcialmente por sua própria intencionalidade, mas também em conjunção
com a intencionalidade do jornalista. Para o estudo do alinhamento, foram
valorizadas todas as citações que, direta ou indiretamente, trouxeram os
atores à cena das notícias sobre a epidemia de benzenismo no Pólo, com o
intuito de identificar como as vozes foram dispostas no texto. Deste lugar
discursivo, analisou-se o que disseram os atores sobre si e sobre os outros,
no debate em torno da epidemia. Valorizou-se a interação dos atores no
texto, tomando-se o discurso como uma práxis, ou seja, procurando-se o
sentido prático do mesmo. O trabalho do jornalista foi visto, pois, como
interação de co-autores ou co-intérpretes dos fatos e personagens com os
quais o jornalista tece o enredo da narrativa sobre os acontecimentos,
conjugados a um quadro de sentidos (Mouillaud, 1997). As fontes de
informação são vistas como sujeitos autorizados que compõem um discurso
polifônico, vozes das notícias dispostas em relação dialógica.
Destacadas as vozes, foi necessário compreender como estão relacionadas
às ações dos sujeitos no texto e reproduzem a intencionalidade implícita
nas suas ações sociais e, portanto, nos discursos dos sujeitos. Para tanto,
analisaram-se as posições e os movimentos dos atores no texto, para
encontrar seus efeitos, tecidos como imagens públicas (Rangel-S, 2003).
Recorreu-se, então, às categorias analíticas arranjo/alinhamento
footing) e face, na busca de elucidar o modo como os co-autores operam
(footing)
nas notícias, enquadrados no texto jornalístico. A partir daí, procurou-se
compreender a significação do discurso, considerando-se o entendimento
dos modos de entrelaçamento da palavra, do verbo de sujeitos em
movimento no interior do texto, cuja ação deixa-se ver no ato mesmo da
fala (Goffman, 1981). A dinâmica do arranjo/alinhamento opera com a
figura do autor (aquele que fala) - o jornal, que é o responsável pela
seleção das palavras -; a do principal (aquele de quem se fala) - objeto da
notícia, a pessoa a quem se dirige; alguém cuja posição é estabelecida pelo
que é dito e cujas crenças são explicitadas (Goffman, 1981) -; e a do
animador (aquele com quem se fala) - a fonte, o que dá a voz e que é
parte do mesmo nível de análise do receptor (Goffman, 1981). O estudo do
arranjo/alinhamento permite analisar, no texto, a posição em que o
personagem é colocado: como autor, principal ou animador, o que nos
ajuda a interpretar as vozes às quais o jornal confere maior visibilidade,
uma vez que há um processo de seleção nas condições de alinhamento, que
define a quem e a que se quer dar visibilidade. Porém, isto não é suficiente
para desvendar a imagem construída. Trata-se, ainda, de identificar a ação
dos sujeitos no discurso.
Para tanto, recorre-se à categoria analítica face
face, pressupondo, com
Goffman (1970), que os sujeitos dos discursos constróem a auto-imagem
pública, ou seja, o modo por meio do qual gostariam de ser vistos pelos
outros. Aquele de face negativa deseja ver desimpedida sua ação,
80
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.77-92, jan/jun 2006
IMAGENS E SENTIDOS NO DISCURSO DA MÍDIA...
enquanto o de face positiva quer ver sua ação apreciada. A estratégia de
cortesia (politeness) satisfaz o desejo do outro, seja para uma face positiva
seja para uma negativa. Dessa interação, muitos atos discursivos podem
ameaçar a face que se mostra. Nesta análise, é importante, então, observar
a ambigüidade com que o sujeito é apresentado, a explicitação ou mitigação
da cortesia (politeness) que satisfaz uma face negativa. No caso da cortesia
(politeness) positiva, a face do narrador pode ser mostrada como a mesma
da audiência, exagerada ou intensificada; usando-se marcadores do grupo
da audiência (Brown & Levinson, 1987). Descreve-se, neste artigo, a
dinâmica de operação dos trabalhadores, empregadores e governo no texto,
atentando-se para os desejos de face dos jornais referidos aos mesmos, ao
dar voz a eles e estruturar sua ação. Esta é apreendida por meio dos verbos
e objetos indexados às vozes no interior das notícias, destacando-se, nas
frases, o sujeito da ação, o verbo referido à ação e seu objeto, tendo em
conta o contexto de conflito em que as ações se desdobram. Os resultados
da análise são apresentados a seguir.
Imagens da epidemia de benzenismo
Faces oscilantes em uma epidemia incerta
A análise das notícias do Jornal AT mostra a ambigüidade com que o
mesmo construiu as faces dos atores. O Quadro I mostra a dinâmica dos
diferentes atores no texto jornalístico, ao longo do tempo.
Quadro I - Dinâmica de alinhamento e faces dos diferentes atores nas notícias do Jornal A Tarde
Período/ Dinâmica
Posição
Ação
Imagem
Sindicato dos
Trabalhadores
Animador
Principal
Denúncia
Contesta a negação/defensiva
Prejuízo à atividade de prevenção
Face positiva
Face negativa
Governo
Principal
Animador
Coordenação s/força
Investigação
Oscilação
Face positiva
Face negativa
Empresa
Principal
Animador
Negação/contestação
Comprovação/Afirmação da
negação
Anuncia medidas para a melhoria
das condições de trabalho e saúde
Face negativa
Face positiva
Principal = aquele de quem se fala
Animador = aquele com quem se fala. (Fonte)
No início da cobertura jornalística sobre a epidemia, em julho de 1990, é o
sindicato dos trabalhadores, o Sindiquímica, que ocupa o lugar preferencial
de animador das notícias, denunciando o surgimento de casos de
leucopenia em uma indústria do Pólo, o descaso das autoridades
governamentais, e o controle da informação sobre a doença ocupacional. O
governo, nesse momento, aparece sem forças para enfrentar um problema
que ainda investiga, mas com capacidade de coordenar um acordo entre as
partes interessadas. As empresas, por sua vez, aparecem pondo em dúvida a
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.77-92, jan/jun 2006
81
RANGEL-S., M. L.
relação causal das duas mortes com a exposição ocupacional ao benzeno. Há
indícios de construção de uma face positiva para o Sindiquímica, contra
uma face negativa da empresa, nas notícias: Pólo é líder em doenças
ocupacionais (Pólo..., 1990); Morte de médico pode levar empresa à
Justiça (Morte..., 1990); Inspeção avalia a saúde dos empregados da
Nitrocarbono (Inspeção..., 1990).
Nesse jornal, a posição do Sindiquímica aparece apoiada pelo governo,
que reconhece a situação de contaminação por benzeno como epidêmica, na
notícia Funcionários da Nitrocarbono sob ameaça de intoxicação
(Funcionários..., 1990); e convoca reunião para “tomar medidas urgentes”
e “encaminhar a solução do problema”, contestando os dados de avaliação
ambiental apresentados pela empresa, os quais, na voz selecionada pelo
jornal, seriam incoerentes com os efeitos identificados nos trabalhadores
examinados. Evidenciou-se o conflito entre empresa e governo, favorecendo
a face negativa da empresa, que fala de uma posição defensiva.
O governo, em seguida, ganha face positiva quando passa a ser
alinhado na posição de animador, como nas notícias Contaminação
obriga a exame geral no Pólo (Machado et al., 1990) e Todos os
operários do Pólo serão examinados (Machado et al., 1990a),
mostrando-se, posteriormente, ser esta uma ação impossível de ser
realizada, tendo em conta os parcos recursos disponíveis no Estado para tal
propósito. Contudo, define-se o problema como de “prioridade federal” e
determinam-se os exames de mais de trinta mil operários, além da
implantação de um conjunto de medidas de investigação e controle.
O jornal, na seqüência, dá visibilidade às oscilações do governo, de certo
modo realizando esforços que ora ameaçam e ora salvam a face da empresa.
Isto é perceptível, por um lado, quando, diante dos resultados dos exames,
a notícia afirma que o então Ministro da Saúde evitava “sempre as
formulações de frases que pudessem ser configuradas como alternativas
diretas sobre a intoxicação por benzeno de 73 empregados” da empresa
em pauta. Considerava necessário reavaliar tudo e aprofundar as
investigações para uma melhor definição do quadro (Machado et al.,
1990a).
Enquanto o Ministro da Saúde pondera a responsabilidade criminal da
empresa, abre-se um espaço para que a face desta, ameaçada em outros
jornais, seja salva no jornal AT. Esta, da posição de animador
animador, afirma que a
epidemia não seria possível, uma vez que “é feito o controle rigoroso da
emissão de benzeno (...)” (Machado et al., 1990a), mesmo admitindo o
caráter esporádico do monitoramento ambiental. Assim, a relação óbito/
exposição ao benzeno é refutada pela empresa, sob a alegação de falta de
provas e de credibilidade dos exames laboratoriais realizados, que seriam
repetidos em clínicas da sua confiança e da Previdência Social. Assiste-se,
então, a um diálogo tenso entre empresa e governo, em que o segundo
ameaça a face da primeira, afirmando que esta não consegue ter outra
explicação para os casos. O governo alinha-se ao Sindiquímica, que reforça a
face negativa da empresa, considerando absurdas suas contestações. Ao dar
visibilidade preferencial à posição oscilante do governo, o jornal sustenta o
argumento construído para o sentido de uma epidemia incerta que
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IMAGENS E SENTIDOS NO DISCURSO DA MÍDIA...
2
Nessa época, a
legislação brasileira
considerava, como
limite de tolerância
para concentrações
ambientais de
benzeno, até 8 ppm,
conforme o Quadro 1,
Anexo 11, a NR 15, da
Portaria 3.214/88,
embora numerosos
estudos já mostrassem
aberrações
cromossômicas e
carcinogenicidade em
expostos a valores em
torno de 1 ppm (DRT,
1991). A Portaria 14,
de 20 de dez./95,
altera o Anexo 13 da
NR 15, da Portaria
3.214/78, criando um
novo parâmetro para a
avaliação ambiental - o
Valor de Referência
Tecnológica (VRT),
definido em 1,0 ppm,
que não exclui o risco
à saúde como o
anterior LT (Brasil,
1996).
predomina nesse jornal (Rangel-S, 2003).
Em outro momento, o alinhamento das vozes no texto do jornal AT
mostra-se mutante. Expressa, de certo modo, a tensão e o conflito em
torno do problema e a pretensa posição de neutralidade do jornalista, que
se isenta de interpretar, colocando na cena da notícia atores em posição de
principal e animador alternadamente, deixando o conflito e a tensão se
revelarem. Deixa ver que governo e empresa entram em acordo, esta
anunciando medidas de controle e aquele recuando da ameaça de
interdição, na notícia Ministério do Trabalho anuncia hoje decisão
sobre Nitrocarbono (Ministério, 1990a). O animador preferencial deste
jornal prossegue sendo o governo (Delegacia Regional do Trabalho - DRT),
que esclarece a “fórmula” adotada para atender aos interesses dos
trabalhadores: a paralisação da empresa para a manutenção.
O anúncio da não-interdição da empresa
empresa, já esperada pelo público, salva
a face da mesma, que passa a ocupar a preferência na posição de animador
animador,
anunciando as medidas para a melhoria das condições de trabalho e saúde
de seus funcionários, ainda que reafirmando que “trabalha sob absoluta
condição de segurança”, estando as emissões de benzeno em quantidades
inferiores aos limites estabelecidos pela lei2. A despeito disso, a empresa
anuncia altos investimentos para a importação de equipamentos de
controle de emissões de produtos químicos.
O Sindiquímica é principal das notícias, mas desta vez, para ter revelada
uma face negativa. A notícia Petroquímicos causam engarrafamento
no pólo - Manutenção paralisa Nitrocarbono ameaça a face deste
sindicato, ao salientar os efeitos negativos da manifestação, que “provocou
engarrafamento quilométrico (…) 10 mil trabalhadores ficaram
impedidos de ter acesso ao Pólo (…)”, acabando por “prejudicar também
a abertura da XII Semana de Prevenção de Acidentes de Trabalho do Pólo
Petroquímico de Camaçari (…)” (Petroquímicos..., 1990).
O governo também passa a ter face negativa quando o jornalista
ressalta o atraso do trabalho de fiscalização pela DRT, revelando as
deficiências tecnológicas do mesmo, bem como sua capacidade de decisão,
enquanto sugere que o sindicato tinha comportamento questionável ou
incoerente.
A postura do jornal sobre a empresa fica clara na matéria Nitrocarbono
modifica postura (Nitrocarbono..., 1991), em que esta, da posição de
principal, tem a face salva pelo jornal. Este a mostra em uma atitude de
redenção, afirmando que um de seus dirigentes fez “um balanço positivo
da bateria de críticas dirigidas à empresa e chegou a agradecer a
atuação do sindicato trabalhista, que ajudou a aumentar a consciência
sobre a necessidade de reduzir as emissões” (Nitrocarbono..., 1991, p.4).
Ademais, a estratégia discursiva adotada pelo jornal para salvar a face da
empresa se explicita quando a linha discursiva da notícia sugere o benzeno
como sujeito da ação: “Causador de centenas de casos, o benzeno (…) é
alvo de uma campanha nacional…” (Campanha..., 1991), e não a
empresa, como enunciado pelo JB. Apesar de o sindicato dos trabalhadores
sustentar a face negativa das empresas do Pólo, denunciando que estas
demitiram trabalhadores e suspenderam a complementação salarial
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RANGEL-S., M. L.
daqueles empregados afastados para tratamento, o jornal o coloca salvando
a face das mesmas, acrescentando a informação de que o sindicato
reconhece que as duas empresas mais criticadas foram também as únicas a
fazerem o monitoramento hematológico dos trabalhadores (Sindicato...,
1991).
Como visto, neste jornal, as faces da empresa, do governo e dos
trabalhadores oscilam, de positiva a negativa, embora se observe a
tendência a salvar a face da empresa e a ameaçar a face do Sindiquímica. O
governo, de sua posição também oscilante, ora sustenta a face dos
trabalhadores, ora salva a face das empresas.
Faces em conflito em uma epidemia real e aterrorizante
A análise das notícias do jornal TB, com postura oposta ao AT, mostra a
sua tendência de construir a face positiva do Sindiquímica e a face negativa
da empresa (Quadro II). As vozes governamentais comparecem no texto,
preferencialmente para dar suporte às imagens dos demais atores, tal como
no jornal AT.
Quadro II - Dinâmica de alinhamento e faces dos diferentes atores nas notícias do Jornal TB
Período/ Dinâmica
Posição
Ação
Imagem
Sindicato dos
Trabalhadores
Animador
Denúncia
Face positiva
Governo
Animador
Principal
Sustenta as denúncias/investiga
Justifica falhas
Declara dificuldades
Face positiva
Face negativa
Empresa
Principal
Animador
Justifica conduta
Face negativa
(atitude defensiva)
Assim, os trabalhadores responsabilizam as empresas, denunciando casos
de leucopenia, revelando temores e silêncios em torno da doença,
mostrando o drama dos trabalhadores e chamando a sociedade à
mobilização (Debate..., 1991; Cesat..., 1990; Interdição..., 1990, 1990a;
Desequilíbrio..., 1990). As empresas
empresas, em posição defensiva, justificam suas
condutas de assistência, esclarecendo sobre a doença, minimizando os
efeitos tóxicos do benzeno e da contaminação ambiental (Técnicos..., 1991;
Cesat..., 1990; Pólo..., 1990a; AL..., 1990; Exame..., 1990). O governo,
em diversas notícias (Debate..., 1991; Familiares..., 1990; DRT..., 1990; 11
Operários..., 1990; Cesat..., 1990), comparece para discorrer sobre o risco e
o controle da epidemia denunciada pelo Sindiquímica; para concordar com a
suspeita da contaminação do ar do Pólo, e para anunciar a investigação da
situação de saúde dos trabalhadores, o que iria comprovar as denúncias. Da
posição de animador, a DRT tenta salvar sua própria face, por vezes
ameaçada pelo jornal AT, ao admitir que não consegue cumprir seu papel
fiscalizador, por se encontrar totalmente desestruturada para fazer frente
ao “oponente a ser fiscalizado [que] detém o poderio financeiro, e não
são poucas as vezes em que consegue burlar a fiscalização…” (DRT...,
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IMAGENS E SENTIDOS NO DISCURSO DA MÍDIA...
1990).
Observa-se, ainda, que a face negativa da empresa é construída na voz
autor
direta do jornalista (autor
autor), o qual declara que: a empresa estava
“custeando todo o tratamento médico do funcionário (...), acometido de
leucemia por exposição ao benzeno, produto altamente tóxico utilizado
em larga escala na empresa” (Familiares..., 1990), sugerindo que isto
confirmaria que o trabalhador adquiriu a doença na mesma. Interpreta que
“Certamente, por esse motivo, os familiares do operador de processos
químicos evitam fazer quaisquer comentários sobre a situação do rapaz
(...)” (Familiares..., 1990, p.7), sugerindo que os mesmos temem a perda
do pagamento pelo tratamento, oferecido como benesse, e não como
direito.
Nesse jornal, a face negativa da empresa (Nitrocarbono) também é
sustentada pelo Sindiquímica, quando este, da posição de animado
animador, toma
como principal a Comissão do Ministério do Trabalho, que decidiria o que
fazer frente à recomendação de interdição pela DRT e a ameaça de
demissões na empresa (Interdição..., 1990). As empresas do Pólo se
apresentam cercadas por especialistas, para orientar a implantação do
sistema de controle ambiental, esclarecendo sobre o “fantasma do
benzeno”, informando ao público sobre a leucopenia (Suspeita..., 1990).
Ao mesmo tempo em que o jornal abre espaço para as empresas salvarem
sua face afirmando que investiriam US$ dois milhões em controle da
poluição e da saúde dos trabalhadores, ressalta o envolvimento das mesmas
em denúncias sobre contaminação de trabalhadores pelo benzeno
(Nitrocarbono..., 1991). Assim, apesar dos argumentos das empresas para
resguardar sua imagem, os investimentos em controle ambiental aparecem,
nesse jornal, como uma resposta à pressão do movimento sindical (Dia...,
1991). O conflito existente entre trabalhadores e empresas se expressa no
jornal TB, na tensão presente no jogo de ameaçar e salvar faces dos
atores, tendo ora empresas, ora trabalhadores alinhados na posição de
animador da notícia, até esboçar-se o acordo como solução.
Faces em conflito de uma epidemia criminosa
A análise das notícias do Jornal da Bahia mostra forças oponentes em
conflito, sustentando o sentido de uma epidemia criminosa, quando as
faces são mostradas predominantemente em oposição (Quadro III).
De um lado, trabalhadores “peões” lutam e denunciam as ações criminosas
das empresas do Pólo. De outro, empresas “criminosas” se defendem. A
Quadro III - Dinâmica de alinhamento e faces dos diferentes atores nas notícias do Jornal JB
Período/ Dinâmica
Posição
Ação
Imagem
Sindicato dos
Trabalhadores
Animador
Principal
Denúncia
Face positiva
Governo
Animador
Principal
Investigação
Face positiva
Face negativa
Empresa
Principal
Defensiva
Prestação de contas
Face negativa
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ênfase do jornal recai para a construção da face negativa da empresa,
sustentada por vozes dos sindicatos dos trabalhadores (face positiva) e do
governo. Os trabalhadores denunciam demissões, o surgimento de casos
de leucopenia e o drama da vida dos trabalhadores doentes (Quatro...,
1991; Ferreira, 1990). Acusam a empresa de sonegar informações,
divulgam a campanha nacional de combate ao uso abusivo do benzeno
(Peão..., 1991; Peão..., 1991a) e enfrentam os empregadores (Peão...,
1991b). Os governantes investigam os fatos, explicam o laudo da morte
do médico (Ferreira, 1990), revelam resultados de avaliações, divulgando
laudos médicos e mostrando providências tomadas (Nitrocarbono...,
1991a). As empresas pouco freqüentam os textos jornalísticos,
comparecendo em posição defensiva, para esclarecer sobre as condições de
trabalho do médico, vítima de leucemia (Ferreira, 1990). Declaram que não
têm interesse em manter doentes no emprego (No Pólo..., 1991).
O Sindiquímica e a DRT, colocados na posição de animador
animador, em diálogo,
sustentam a face negativa da empresa responsabilizada pela produção de
doenças, acompanhada da sonegação criminosa de informações aos
trabalhadores (Ferreira, 1990). A DRT dá suporte à face negativa da
empresa e à face positiva para o Sindiquímica, admitindo que o operário
vítima de leucemia, “apesar de não atuar diretamente com benzeno, (...)
pode ter sido vítima do mesmo processo que matou o médico (...)”
(Ferreira, 1990). A face negativa da empresa também é sustentada pelo
argumento da bióloga sindicalista, para quem o laudo médico do INAMPS
afirma que “O quadro clínico-laboratorial do paciente é compatível com
lesão medular mielotóxica” e que, portanto a empresa é irresponsável,
iludindo a família do trabalhador com promessas de tratamento. O jornal
evidencia o conflito das declarações dos empregadores com o parecer de
especialistas (Ferreira, 1990).
A empresa parece constrangida pelo jornal quando este divulga a
notificação, pela DRT, que determina o afastamento de 22 trabalhadores da
mesma (Lima, 1990). Com as vozes do Sindiquímica e da DRT, o jornalista
autor
(autor
autor) coloca a empresa em posição de prestar contas das providências,
levando o governo a propor ou impor medidas de controle ou mostrando o
mesmo conivente com a empresa. Por exemplo, sob os títulos Pólo joga
na rua peões doentes, na primeira página, e No Pólo, patrão mete
bronca nos empregados (No Pólo..., 1991), o jornal divulga a demissão
de quatrocentos trabalhadores doentes em uma empresa, no período de
um mês, sugerindo que a Previdência Social (por meio da Perícia Médica) é
co-responsável pelas demissões. Enfatizando a face negativa das empresas,
o jornal amplia a constatação de ações criminosas em outras indústrias,
como a metalúrgica, cujo sindicato dos trabalhadores denuncia a
leucopenia por exposição à radiação ionizante em uma outra empresa
(Radiação..., 1991). Esta tenta se defender, afirmando que a instalação do
equipamento, provável causador da doença, deveria ser orgulho do Pólo.
Na busca do constrangimento das empresas, o jornal declara que a
Nitrocarbono é culpada pelas mortes e pelos casos de leucopenia,
reafirmando sua face negativa com base na ação de defesa ambiental
movida pelo Ministério Público - MP - contra a mesma (Nitrocarbono...,
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IMAGENS E SENTIDOS NO DISCURSO DA MÍDIA...
1991a). Por sua vez, a face positiva dos trabalhadores é construída por
efeito retórico do título Peão luta contra mal do benzeno (Peão...,
1991), matéria em que o jornalista divulga a campanha contra o uso
abusivo do benzeno, que amplia o debate em nível nacional. Assim, o
jornalista desloca o foco da notícia para a vítima, o trabalhador, em um
mercado de trabalho que estigmatiza o doente, demitindo. Ainda que o
ambiente de trabalho não tenha sido modificado, as promessas dos órgãos
governamentais não tenham sido cumpridas e a conjuntura do mercado de
trabalho fosse desfavorável à luta sindical, o jornalista sustenta a face
positiva do Sindiquímica. Na última notícia publicada no ano de 1991,
divulga que este pretende mover todas as ações judiciais possíveis contra as
empresas, exigindo mudanças no ambiente de trabalho (Peão..., 1991b).
Deste modo, o jornal constrói a face criminosa das empresas, com base
nas denúncias de um sindicato atuante, que denuncia a falta de assistência
a trabalhadores doentes que são demitidos, em meio ao conflito entre
empresas e trabalhadores.
Faces dóceis de uma epidemia natural
No jornal CB, as empresas encontram, a princípio, espaço para a
construção de uma face positiva, reservando aos trabalhadores e ao
governo a face negativa (Quadro IV). A veracidade da epidemia é
questionada (Ministério..., 1990), com o argumento de que embora esta
fosse possível, devido ao desgaste natural dos equipamentos, seria pouco
provável (Rangel-S, 2003).
Quadro IV - Dinâmica de alinhamento e faces dos diferentes atores nas notícias do Jornal CB
Período/ Dinâmica
Posição
Ação
Imagem
Sindicato dos
Trabalhadores
Principal
Animador
Denunciam incoerências da empresa
Temem interdição
Espera dócil, solicitação e suposição
Face negativa
Governo
Principal
Adia responsabilidades, retendo
informações e evitando explicações
Face negativa
Empresa
Principal
Adia responsabilidades, retendo
informações e evitando explicações
Face negativa
Face positiva
As controvérsias quanto aos parâmetros para o diagnóstico dos casos e a
avaliação ambiental são argumentos para minimizar a gravidade do
problema. A despeito disso, as empresas são mostradas assumindo
compromissos e se esforçando para superar o problema, investindo
recursos financeiros para preservar o meio ambiente (Nitrocarbono...,
1991b). O conflito entre trabalhadores e empresas, e destas com o
governo, é eufemizado neste jornal, dando lugar, de um lado, à imagem de
empresas generosas e, de outro, a de trabalhadores dóceis.
Os trabalhadores, embora denunciem a incoerência das empresas e
critiquem o governo, aparecem nesse jornal com suas fragilidades
ressaltadas: temem a interdição (Ministério..., 1990) e aguardam
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.77-92, jan/jun 2006
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RANGEL-S., M. L.
pacientemente um acordo para assegurar a estabilidade no emprego
(Sindiquímica..., 1990), aceitando a parada espontânea da empresa para
manutenção (DRT..., 1990a), como alternativa à interdição (Ministério...,
1990). Apesar disso, eventualmente o jornal mostra os trabalhadores
protestando, embora com base em suposições, como a que se segue: “os
operários estariam com leucopenia provocada pelo benzeno” (Operários...,
1990). Tal protesto é dirigido indistintamente a ambos, empresa e
governo
governo, que são alinhados como principal da notícia e responsáveis pela
manifestação operária de que trata a mesma. Assim, empresa e governo adiam
responsabilidades, retendo informações e evitando explicações, enquanto o
Sindiquímica é colocado em posição dócil de espera, solicitação e suposição,
para obter esclarecimentos sobre causas da contaminação.
A empresa tenta salvar sua face das ameaças sofridas com voz direta
autor
(autor
autor), por meio de matéria paga, assinada pelo seu diretor-presidente
(Nitrocarbono..., 1990), defendendo-se das denúncias divulgadas na
imprensa, assumindo trabalhar com o benzeno e que este produto tem riscos
potenciais já conhecidos. Afirma praticar “medidas adequadas de
monitoramento ambiental” e ter consciência da possibilidade de emissão de
resíduos para a atmosfera, determinando risco para a saúde. Mas argumenta
que este é relativo, pois realiza “programa rigoroso de exames periódicos” e
questiona as informações divulgadas pelo Sindiquímica e pela imprensa.
Informa, ainda, que recorre a “instituições altamente especializadas” para
reavaliar os exames, colocando-se aberta ao diálogo e empenhada em
melhorias e “consciente da importância do homem e do meio ambiente,
harmoniosamente integrados no desenvolvimento econômico”
(Nitrocarbono..., 1990). O jornalista assume a veracidade da epidemia,
apoiado no relatório da DRT, ao afirmar que o estado dos equipamentos
causou a morte de funcionários da empresa (DRT, 1990a). Contudo, a recusa
da empresa a uma parada espontânea para manutenção e sua contestação dos
resultados de exames do laboratório que ela mesma escolheu, na voz da DRT e
do Sindiquímica, são elementos utilizados para construir sua face negativa.
Esta será contraposta pelo jornal com a publicação de uma série de notícias
que revelam uma indústria atuante na proteção da saúde e segurança de seus
empregados.
autor
Assim, o jornal mitiga a face da empresa quando o jornalista (autor
autor)
ameaça a face positiva do governo federal e do Sindiquímica, noticiando que
estes e o governo estadual não conseguiram definir a intervenção na empresa,
enquanto esta nega que as mortes se devem à contaminação por benzeno. Ao
introduzir a idéia de mistério na decisão dos órgãos públicos em relação à
empresa, concluída a inspeção, o jornal sugere que há algo que não pode ser
dito, talvez porque comprometa uma das partes envolvidas: ou a empresa não
pode ser responsabilizada, ou o governo não está convencido dessa
responsabilidade ou, ainda, este não tem poder suficiente para assegurar o
cumprimento das medidas. Planta-se, assim, a possibilidade da empresa salvar
a sua face
autor
face. A voz do jornalista (autor
autor) volta a ser menos afirmativa e mais
sugestiva, quando diz que “a unidade operadora de benzeno é suspeita de
ter causado a morte dos funcionários (...)” (Ministério..., 1990). A empresa
envolvida com as mortes, aparentemente redimida, apresenta no jornal um
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IMAGENS E SENTIDOS NO DISCURSO DA MÍDIA...
discurso prevencionista e humanitário e afirma destinar orçamento para o
controle ambiental, salvando sua face ameaçada pelo Sindiquímica e pelo JB
(Nitrocarbono..., 1991b). O conflito em torno da epidemia é, então,
neutralizado na idéia de uma epidemia natural, da qual não se conhece
suficientemente sobre a doença, de modo que não se pode responsabilizar a
empresa, que, ademais, parece disposta a investir em controle ambiental.
Considerações Finais
O recurso ao Interacionismo Simbólico, especialmente com o uso das
categorias analíticas (vozes, alinhamento e face), permitiu, neste estudo,
evidenciar a riqueza do texto jornalístico para mostrar as lutas sociais gestadas
na vigência da avaliação e controle do risco da epidemia. O rico debate contido
no interior do texto fala da história e da experiência vivida por muitos sujeitos
da sociedade baiana, narrada por jornalistas, expressando a realidade de um
tempo.
Os jornais, no jogo de alinhamento das falas dos participantes das notícias,
construíram diferentes imagens para sujeitos públicos: sindicatos dos
trabalhadores, empregadores e governo. No jornal AT, a construção das faces
oscila, mas predomina a ameaça à face do Sindiquímica e estratégias para
salvar a face da empresa. Na TB, há imagens em conflito, pois o jornal
sustenta a face positiva do Sindiquímica e constrói a face negativa da empresa.
No JB, predomina a face negativa da empresa, responsabilizada por uma
epidemia criminosa, enquanto o CB se move para salvar a face da empresa,
construindo faces dóceis para os trabalhadores.
O estudo mostra que os jornais dão visibilidade às vozes sociais,
construindo imagens com sentidos diversos. Apesar de o jornal AT dar ampla
visibilidade às vozes de trabalhadores, utiliza recursos que minimizam os
conteúdos dessas falas. Embora mostrados em postura ativa, estes aparecem
causando transtornos e até prejudicando os interesses de sua categoria. Em
contrapartida, o jornal opera favorecendo a imagem das empresas do Pólo e
enfraquecendo o papel das autoridades sanitárias, ressaltando denúncias de
descaso desses órgãos para com a saúde dos trabalhadores. No JB, os
trabalhadores são apresentados como “peões” que lutam e enfrentam
corajosamente (face positiva) as ações criminosas das empresas (face
negativa), reiteradamente noticiadas por meio das vozes de trabalhadores e
governo. A TB deu visibilidade às vozes dos três atores, enfatizando a imagem
combativa do Sindiquímica, na defesa da saúde e dos interesses da categoria.
Favoreceu a face negativa das empresas e do governo, ambos pressionados
pelos trabalhadores, revelando os conflitos e o drama vividos pelos operários
do Pólo. Por sua vez, o CB deu maior visibilidade às empresas e permitiu que
estas apresentassem uma nova face, anunciando as medidas de controle
ambiental e os investimentos expressivos que passaram a fazer em segurança
e saúde.
Os resultados da análise das faces mostram que os meios contribuíram para
fortalecer a imagem pública de alguns atores em detrimento de outros e
tomaram parte ativa da luta política que se desenvolveu no COPEC. Esta deu
lugar a conquistas de melhores condições de segurança e saúde para os
trabalhadores petroquímicos. Nesse sentido, o estudo também sugere que a
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RANGEL-S., M. L.
pluralidade de meios de comunicação, cobrindo os acontecimentos, foi
fundamental para levar o debate ao público, o qual teve acesso às diversas
formas de interpretação para a epidemia, tanto dos meios como dos atores
que lhes serviram de fontes de informação. As diferenças podem ser
explicadas pelo lugar social dos meios de comunicação e suas vinculações
políticas e econômicas na sociedade, de onde desempenham o seu papel de
informar segundo interesses de grupos sociais com os quais se encontram
comprometidos.
Referências
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nov. 1990. Caderno Cidade, p.3.
CAMPANHA contra benzeno vai ser lançada na bahia. A Tarde, Salvador, 22 jun. 1991. Caderno
Geral, p.4.
CESAT inicia exames. Tribuna da Bahia, Salvador, 06 nov. 1990. Caderno Cidade, p 1.
DEBATE sobre benzeno questiona os médicos. Tribuna da Bahia, Salvador, 28 set. 1991. Caderno
Cidade, p.2.
DESEQUILÍBRIO ecológico: casos de contaminação crescem no pólo e ultrapassam os limites de
camaçari, numa séria ameaça; sindiquímica aciona câmara. Tribuna da Bahia, Salvador, 8 nov. 1990.
Caderno Cidade, p.1.
90
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IMAGENS E SENTIDOS NO DISCURSO DA MÍDIA...
DIA do meio ambiente é lembrado por operários. Tribuna da Bahia, Salvador, 4 jun. 1991. Caderno
Economia, p.6.
DRT não tem recurso para fiscalizar pólo; benzeno espalha efeito mortífero. Tribuna da Bahia,
Salvador, 29 set. 1990. Caderno Cidade, p.2.
DRT ameaça intervir no pólo. Correio da Bahia, Salvador, 7 nov. 1990a. Caderno Aqui Salvador, p.1.
DRT/MTb. Investigação de benzenismo no Complexo Petroquímico de Camaçari (Ba): uma
proposta de ação fiscalizadora. Salvador, 1991.
EXAME tenta provar caso de leucopenia. empresa instala programa. Tribuna da Bahia, Salvador, 18
dez. 1990. Caderno Cidade, p.1.
FAMILIARES nada falam sobrevítima no polo. Tribuna da Bahia, Salvador, 24 set. 1990. Caderno Cidade,
p 7.
FERREIRA, E. Nitrocarbono: operário contrai leucemia e empresa sonega informação. Jornal da Bahia,
Salvador, 25 set. 1990. Caderno Geral, p.2.
FUNCIONÁRIOS da nitrocarbono sob ameaça de intoxicação. A Tarde, Salvador, 27 out. 1990.
INSPEÇÃO avalia a saúde dos empregados da nitrocarbono. A Tarde, Salvador, 28 jul. 1990.
INTERDIÇÃO na nitrocarbono é definida hoje. Tribuna da Bahia, Salvador, 12 nov. 1990a. Caderno
Cidade, p.8.
INTERDIÇÃO no pólo terá decisão hoje. Tribuna da Bahia, Salvador, 12 nov. 1990. Caderno Manchete,
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custeado pela Nitrocarbono. Jornal da Bahia, Salvador, 1 nov. 1990. Caderno Cidade, p.5.
MACHADO, S.; VARJÃO, S.; CASTOR, E. Contaminação obriga a exame geral no Pólo. A Tarde,
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p.1.
MINISTÉRIO do trabalho anuncia hoje decisão sobre nitrocarbono. A Tarde, Salvador, 13 nov. 1990a.
Caderno Geral, p.3.
MORTE de médico pode levar empresa à justiça. A Tarde, Salvador, 25 jul. 1990.
NITROCARBONO S.A.: nota de esclarecimento ao público. Correio da Bahia, Salvador, 1 nov. 1990.
Caderno Economia, p.9.
NITROCARBONO investe contra a poluição. Tribuna da Bahia, Salvador, 10 jan. 1991. Caderno Cidade,
p.2.
NITROCARBONO é culpada. Jornal da Bahia, Salvador, 6 jun. 1991a. Caderno Cidade, p.5.
NITROCARBONO vai acabar com a emissão de gases. Correio da Bahia, Salvador, 5 jun. 1991b.
Caderno Aqui Salvador, p.2.
NITROCARBONO modifica postura. A Tarde, Salvador, 5 jun. 1991. Caderno Geral, p.4.
NO PÓLO, patrão mete bronca nos empregados. Jornal da Bahia, Salvador, 4 jul. 1991. Caderno
Cidade, p.6.
ONZE operários sofrem mesmo de leucopenia. Tribuna da Bahia, Salvador, 8 dez. 1990. Manchete, p.1.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.77-92, jan/jun 2006
91
RANGEL-S., M. L.
OPERÁRIOS da nitrocarbono param 7 horas. Correio da Bahia, Salvador, 31 out. 1990. Caderno Aqui
Salvador, p.3.
PEÃO luta contra mal do benzeno. Jornal da Bahia, Salvador, 8 maio 1991. Caderno Cidade, p.6.
PEÃO luta pra espantar o fantasma do benzeno. Jornal da Bahia, Salvador, 4 jul. 1991a. Caderno
Cidade, p.5.
PEÃO dá testa no pólo. Jornal da Bahia, Salvador, 3 dez. 1991b. Caderno Cidade, p.5.
PETROQUÍMICOS causam engarrafamento no pólo. A Tarde, Salvador, 11 nov. 1990. Caderno Geral, p 2
PÓLO é líder em doenças ocupacionais. A Tarde, Salvador, 25 jul. 1990. Manchete, p.1.
PÓLO: tratamento. Tribuna da Bahia, Salvador, 28 nov. 1990a. Caderno Política, Coluna Raio Laser, p.2.
QUATRO envenenados na refinaria: peões foram contaminados e empresas queriam demiti-los. Jornal
da Bahia, Salvador, 15 nov. 1991. Caderno Cidade, p.5.
RADIAÇÃO nuclear no pólo deixa os peões assustados. Jornal da Bahia, Salvador, 16 abr. 1991.
Caderno Cidade, p.4.
SINDICATO denuncia descaso do pólo quanto à leucopenia. A Tarde, Salvador, 3 dez. 1991. Caderno
Geral, p.2.
SINDIQUÍMICA reivindica estabilidade. Correio da Bahia, Salvador, 20 nov. 1990. Caderno Aqui Salvador,
p.3.
SUSPEITA de leucopenia é confirmada. Tribuna da Bahia, Salvador, 8 dez. 1990. Caderno Cidade, p.3.
TÉCNICOS investigam a intoxicação na COPENE. Tribuna da Bahia, Salvador, 3 abr. 1991. Caderno
Economia, p.7.
RANGEL-S., M. L. Imágenes y sentidos en el discurso de los medios impresos acerca de una
epidemia de intoxicación ocupacional por benceno. Interface - Comunic., Saúde, Educ.
Educ.,
v.10, n.19, p.77-92, jan/jun 2006.
El estudio analiza la construcción de las imágenes públicas realizadas por cuatro periódicos
de Salvador, Bahia, Brasil, para los diferentes actores sociales involucrados en el debate
público, durante la vigencia da la epidemia de intoxicación ocupacional por benceno, que
afectó a trabajadores del “Complexo Petroquímico de Camaçari-Bahia-Brasil (COPEC)”,
durante los años 1990 y 1991. Este estudio recurre al Interaccionismo Simbólico,
principalmente a Erving Goffman -uno de los más destacados sociólogos de esta perspectiva
de investigación-, para el análisis del discurso de los periódicos, utilizando las categorías
analíticas: “voces”, “arreglo” y “cara”, en 30% del total de las notas periodísticas publicadas
a lo largo de 18 meses. El análisis ha revelado la construcción de caras oscilantes, caras en
conflicto y caras dóciles, que derivan de las variaciones de las dinámicas con que los actores
son dispuestos en el texto y operan en las noticias. Ellas conforman imágenes públicas
distintas para los trabajadores petroquímicos, para los empleadores del COPEC y para los
representantes gubernamentales, en los diferentes periódicos.
PALABRAS CLAVE: comunicación. periodismo. análisis del discurso. accidentes de trabajo.
Recebido em: 08/08/05. Aprovado em: 05/01/06.
92
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.77-92, jan/jun 2006
O ensino da comunicação na gr
aduação em
graduação
Medicina - uma abordagem*
Pedro Santo Rossi 1
Nildo Alves Batista 2
ROSSI, P. S.; BATISTA, N. A. The teaching of communication skills in medical schools - an approach. Interface Educ., v.10, n.19, p.93-102, jan/jun 2006.
Comunic., Saúde, Educ.
The purpose of this work is to analyze the process of teaching/learning communication within the doctorpatient relationship during the undergraduate medical course, discussing the ideas of students and of
coordinators regarding this process, and identifying how and when the curriculum takes this issue into account.
Twelve graduates and nine course coordinators were interviewed. We learned that there is a great diversity of
ideas on communication, especially a tendency to think of it as an instrumental skill for obtaining information
and making oneself understood within medical procedures. The learning of communication takes place
primarily in an implicit way within the education of physicians, being connected with certain disciplines, such as
Semiology and Medical Psychology, or being imbued in the curriculum during the different moments of
teaching and learning. The observation of attitudes and behaviors in the daily practice of teaching, whether by
professors or other physicians in practice, notably during internship, is the main factor responsible for student
learning of this skill. The results found in this research, given the relevance of communication in the exercise of
medical practice, indicate that it is necessary to reassess this theme in connection with the pedagogical
practices used to train future physicians.
KEY WORDS: medical education. communication. physician-patient relations. learning.
Analisa-se o processo ensino/aprendizagem da comunicação na relação médico-paciente durante a graduação
médica, discutindo concepções de alunos e de coordenadores sobre esse processo e identificando como e
quando o currículo o contempla. Foram entrevistados 12 egressos e nove coordenadores de curso. Apreendeuse uma grande diversidade de concepções sobre comunicação, afirmando-se, principalmente, uma tendência em
considerá-la uma habilidade instrumental para conseguir informações e se fazer entender no procedimento
médico. O aprendizado da comunicação acontece, prioritariamente, de maneira implícita ao processo de
formação, vinculado a algumas disciplinas, como a Semiologia e a Psicologia Médica, ou perpassando o currículo
nos diferentes momentos de ensino/aprendizagem. A observação de atitudes e comportamentos no cotidiano
do ensino, seja de professores ou de outros médicos em atividade, notadamente no internato, é a principal
responsável pela aprendizagem desta habilidade pelos alunos. Os resultados encontrados nesta pesquisa, dada a
relevância da comunicação no exercício da prática médica, apontam para a necessidade de um
redimensionamento do olhar para essa temática nos projetos pedagógicos de formação de futuros médicos.
PALAVRAS-CHAVE: educação médica. comunicação. relações médico-paciente. aprendizagem.
*
Elaborado a partir de Rossi (2004).
1
Departamento Psiquiátrico II, Secretaria de Saúde, Estado de São Paulo, SP. <[email protected]>
Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde, Universidade Federal de Sâo Paulo. Cedess/Unifesp, SP.
<[email protected]>
2
1
Rua dos Araçás, 601
Bairro Marajoara - Campo Limpo Paulista, SP
Brasil - 13.233-050
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.93-102, jan/jun 2006
93
ROSSI, P. S.; BATISTA, N. A.
Introdução
As Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina
(Brasil, 2001) apontam para a necessidade de formação de um médico
generalista, humanista, crítico e reflexivo, capacitado para atuar, pautado em
princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de
atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à
saúde, na perspectiva da integralidade da assistência. Dentre as habilidades
específicas, destacam a necessidade de o aluno aprender a comunicar-se
adequadamente com os colegas de trabalho, os pacientes e seus familiares,
informando-os e educando-os por meio de técnicas apropriadas. Embora exista
ainda, especialmente no Brasil, uma carência de literatura específica sobre
ensino/aprendizagem de “comunicação” nos cursos de graduação em
medicina, já aparecem muitos trabalhos sobre o tema na literatura
internacional.
Dubé (2000) afirma que a efetiva comunicação, relevante para os serviços
de prevenção e para a prática diária, está na base das habilidades do médico,
não somente para o levantamento da história básica e demais dados, mas para
a construção da relação com o paciente, na facilitação, negociação e parceria.
Conforme o autor, as competências fundamentais para a comunicação médicopaciente são, agora, rotineira e sistematicamente ensinadas em muitas escolas
médicas dos Estados Unidos.
Hulsman (1999), revendo literatura sobre a relação médico-paciente na
Holanda, salienta a importância da comunicação na atividade profissional do
médico; apesar disso, afirma que as escolas não chegam a ocupar mais que 5%
da carga horária do currículo no desenvolvimento dessa habilidade,
focalizando prioritariamente os aspectos tecnológicos e biomédicos da prática
profissional.
Na Faculdade de Medicina do Imperial College of Science, Technology and
Medicine, em Londres, é utilizado um sistema de treinamento para
desenvolvimento de habilidades de comunicação em que atores contratados e/
ou alunos representam pacientes. Tais eventos, segundo os autores,
proporcionam um excelente treinamento para os alunos identificarem e
refletirem sobre as especificidades da relação com os pacientes (Nestel, 2002).
Em 1992 foi realizada uma oficina de trabalho, no Canadá, abordando a
temática do ensino e avaliação das habilidades de comunicação na relação
médico-paciente nas escolas médicas canadenses (CMAJ, 1992). Quatro anos
depois, foi feita uma pesquisa avaliando os resultados do evento na
transformação do ensino de comunicação em 15 das 16 escolas participantes.
Todas reportaram grandes mudanças no período, bem como projetos de mais
mudanças para os anos futuros. No entanto, demonstraram que existiam
dificuldades para implantação de mudanças curriculares. As barreiras mais
freqüentemente mencionadas foram: falta de professores devidamente
habilitados para o ensino da comunicação, discussão da grade curricular e
ausência de novos espaços específicos para esse ensino.
Na Conferência Internacional de Ensino de Comunicação em Medicina,
realizada em Oxford, em 1996, chegou-se a um consenso com a recomendação
de oito itens básicos necessários para a formação (graduação) e o
desenvolvimento (educação continuada) do profissional médico: 1 o ensino e
94
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.93-102, jan/jun 2006
O ENSINO DA COMUNICAÇÃO NA GRADUAÇÃO EM MEDICINA...
avaliação deverão se basear numa visão ampla de Medicina; 2 o ensino de
comunicação e o de clínica deverão ser consistentes e complementares; 3 o
ensino deverá orientar e ajudar o estudante, no esforço da comunicação
centrada no paciente; 4 o ensino e a avaliação da comunicação deverão
proporcionar o desenvolvimento pessoal e profissional; 5 o currículo deve
apresentar uma estrutura planejada e coerente para o ensino de habilidades
em comunicação; 6 as habilidades estudadas deverão ser avaliadas diretamente
na prática; 7 os programas de ensino e avaliação de comunicação deverão ser
reavaliados constantemente; e 8 o desenvolvimento da matéria deverá ser
sustentado por pesquisas adequadas (Makoul & Schofield, 1999).
O termo “comunicação” tem muitas acepções, desde uma troca de olhares
até a rede mundial de satélites (Houaiss, 2001; Santaella, 2001; Martino,
2001). Santaella (2001, p.17) destaca sua polissemia relacionando recortes de
diversos autores: ‘Recepção e processamento de sinais detectáveis física,
química e biologicamente por um ser vivente’ (Mayer-Eppler, 1959); ‘A
troca de informação entre sistemas dinâmicos capazes de receber, estocar
ou transformar informação’ (Klaus, 1969); ‘A interação social através da
mensagem’ (Fiske, 1990); ‘Uma transição gradual que vai dos modos de
interação protocomunicacional mais rudimentares até os mais complexos’
(Nöth, 1990); ‘A relação dos espíritos humanos, ou melhor, dos cérebros
humanos’ (Baylon & Mignot, 1999).
Braga & Calazans (2001) afirmam que a comunicação é conatural ao ser
humano e que, portanto, não há comunidade ou sociedade sem comunicação
entre os homens: eles interagem, convivem, agem em comum, vivem em
comum, comunicam-se sempre. Referindo-se à “sociedade mediatizada”, os
autores comentam que: “Ao se dotar de mediações tecnológicas para
desenvolver as interações sociais, a sociedade não apenas acrescenta
instrumentos que aceleram e diversificam sua comunicação, mas acaba por
modificar seus próprios processos.” (2001, p.30)
De acordo com Fiske (1990), podemos identificar dois eixos principais no
processo comunicacional: o primeiro considera a comunicação como uma linha
de transmissão da mensagem entre o emissor e o receptor, onde A informa B;
para o segundo a comunicação é uma interação, uma troca de signos,
significados, significantes, onde A e B se relacionam.
Este trabalho teve como objetivo analisar o processo ensino/aprendizagem
da comunicação na relação médico-paciente durante o curso de graduação em
medicina, na visão de egressos e coordenadores de cursos.
Metodologia
A pesquisa foi desenvolvida com dois grupos de sujeitos: profissionais médicos
recém-formados, aqui denominados egressos (E), e professores coordenadores
de ensino na graduação médica, aqui denominados coordenadores (C). O
grupo de egressos constituía uma turma de iniciantes numa residência em
Clinica Médica de um hospital geral não vinculado à universidade, com
concurso de âmbito nacional. Os coordenadores foram entrevistados por
adesão à solicitação feita a todos os presentes a um Congresso de Ensino
Médico, com participação de diferentes estados brasileiros. Não houve uma
escolha direcionada a nenhuma instituição ou estado em particular, mas
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.93-102, jan/jun 2006
95
ROSSI, P. S.; BATISTA, N. A.
procurou-se apreender visões de egressos e coordenadores de diferentes
instituições. Neste sentido, a escolha de locais para a coleta dos dados deu-se
por conveniência, tendo em vista a abrangência nacional dos mesmos. Não
houve a intenção de comparar as respostas como representativas de categorias
diferentes.
Optou-se pela pesquisa qualitativa, com olhar fenomenológico, entendendo
o seu potencial na compreensão do fenômeno particular (Amatuzzi, 2003;
Bruns, 2003; Holanda, 2003; Forguieri, 1997). Sob esse olhar, as respostas
fornecidas nas entrevistas não foram simples depoimentos, mas novas
vivências sobre o passado com os filtros de agora, emergindo relatos do
“vivido”.
As entrevistas com os egressos foram realizadas na primeira semana da
Residência, sendo entrevistados 12 residentes: oito mulheres, quatro homens;
idade média de 25 anos, oriundos dos estados de SP (quatro), RJ (três), ES
(um), BA (dois), SE (um) e AL (um). Foram entrevistados, também, nove
coordenadores de cursos de medicina, representando cinco cursos federais,
três estaduais e um particular, de diferentes estados do país: RS (um); PR
(um); SP (três); MG (dois); PE (um); e RR (um). As entrevistas foram
gravadas, transcritas e submetidas à revisão dos entrevistados.
Para a análise dos dados, optamos pela orientação de Amatuzzi (2003), em
quatro passos: no primeiro, sintetizar a entrevista e devolvê-la para aprovação
do colaborador; no segundo, sistematizar as sínteses dos diversos
depoimentos; no terceiro, dialogar com a literatura e discutir os resultados
com outros pesquisadores; e, finalmente, no quarto, escrever o relato da
pesquisa, que pode ser o início de um diálogo com a comunidade científica.
Os núcleos orientadores da análise desta pesquisa, procurando identificar
parâmetros para a compreensão do ensino da comunicação na graduação em
Medicina, foram o processo de comunicação interpessoal na prática do
médico e as dimensões do processo de ensino/aprendizagem da
comunicação na graduação médica.
Na compreensão dos autores, o processo de comunicação se realiza na
relação eficiente entre o médico e o paciente, numa compreensão empática
conforme descrita por Rogers (1991). Deste referencial, a comunicação
interpessoal se estabelece como habilidade pessoal, resultado de atitudes
suficientes e necessárias para uma relação terapêutica. As dimensões
analisadas do processo ensino/aprendizagem da comunicação na graduação
médica priorizam as concepções de alunos e de coordenadores sobre tal
processo, identificando como e quando o currículo de formação o contempla.
Das análises das entrevistas, com base nos núcleos orientadores, emergiram
temáticas que foram agrupadas, posteriormente, nas categorias empíricas
desta investigação. Essas categorias são apresentadas nos dois tópicos a seguir:
a concepção de comunicação dos participantes e “como” e “quando” acontece
o aprendizado dessa habilidade na graduação em Medicina.
A concepção de comunicação de egressos e coordenadores
Propor-se a apreender concepções de egressos e coordenadores de cursos
médicos remonta a uma reflexão sobre os termos concepção e conceito. Partese do pressuposto de que o termo “concepção” permite maior abertura para a
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.93-102, jan/jun 2006
O ENSINO DA COMUNICAÇÃO NA GRADUAÇÃO EM MEDICINA...
diversidade de pensamentos do que seu correlato “conceito”. Conceber denota
a forma particular de perceber, apreender ou compreender algo. Concepção
implica as condições necessárias e suficientes para o nascimento biológico,
assim como pode representar o nascimento de uma idéia. A concepção é uma
construção individual da mente, a formação de uma consciência a respeito de
algo com base na sensação e experiência anterior do sujeito. A pesquisa buscou
a concepção do médico sobre a comunicação, o enfoque particular, o
entendimento próprio sobre o que seja esta habilidade na relação com o
paciente.
Para alguns coordenadores entrevistados, a noção de comunicação aparece
de forma muito ampla: “a comunicação é um todo na profissão médica, que
não é só palavra, não é só escrita, é atitude como um todo” (C05); para
outros, revela-se um simples instrumento para conseguir dados suficientes e
necessários para o diagnóstico: “Como você consegue uma informação
dependendo da classe social, das condições de vida daquela pessoa” (C02).
Para os egressos, predomina o mais popular dos conceitos: “Comunicar é se
fazer entender pelo paciente” (E09).
A concepção de comunicação como um instrumento de investigação na
relação médico-paciente foi a mais freqüentemente encontrada nesta pesquisa.
Nesse sentido, o levantamento de dados objetivos para análise e diagnóstico é
tomado como atividade precípua do processo de comunicação na consulta
médica. Comunicar, nesse enfoque, aparece como uma “atividade-meio”, um
instrumento, um procedimento, algo necessário e suficiente para se conseguir
informações. O “procedimento” comunicação na relação médico-paciente
aparece como instrumento de realização do ato médico. “É você conseguir
fazer com que o paciente fale o que está realmente incomodando” (E12).
Para se conseguir as informações, dar e receber dados específicos, entram
em pauta as discussões sobre a fala, a linguagem médica, a linguagem popular,
e a sua adequação no ato comunicativo entre o médico e o paciente: “Como é
explicar ao doente alguma coisa sobre a sua patologia, ao dar as
informações sobre a doença, ao dar a prescrição, a clareza em fazer isso”
(C09).
A adequação da linguagem do médico é mencionada como atividade
necessária, tanto para se obter as informações para o diagnóstico, quanto para
explanação do prognóstico e da prescrição. “Identificar qual é o tipo de
conversa que você pode ter com o paciente, qual é o nível de linguagem, até
o limite que você pode explicar as coisas” (E03).
“Saber identificar o nível de linguagem do paciente e se fazer entender”
resume a concepção do que seja comunicação para uma parte da população
entrevistada. Explicar, transmitir, passar, expressar, esclarecer e fazer-se
entender são verbos de ação que denunciam o caráter impositivo do papel de
“emissor da mensagem” que o médico assume nessa relação de comunicação.
Entretanto, uma parcela dos entrevistados também relatou a atenção à fala
e à participação dos pacientes, lembrando da conversa (“considerar o verso”,
“ver o verso”, “olhar o outro lado”), atendendo à demanda de ouvir e
entender o que o outro tem a dizer: “Acho que comunicação é enfocar mais
isso, tanto a parte técnica, saber cuidar da doença do paciente, mas saber
conversar, ter o paciente como um amigo, não como um objeto de
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.93-102, jan/jun 2006
97
ROSSI, P. S.; BATISTA, N. A.
trabalho, como simplesmente um ganha-pão” (E12).
Também se enfatizou que a comunicação não se dá apenas pela fala, pela
informação verbal, mas também por meio da postura, da atitude pessoal do
profissional, o que impõe uma preocupação com a expressão, mesmo que na
forma linear de comunicação: “... a forma do corpo, o jeito de se colocar, tem
uma linguagem, tem uma expressão para a pessoa que está do lado, no
caso o paciente”. (C01)
Se, de um lado, a maioria das concepções remete à perspectiva da
comunicação unidirecional, do médico para o paciente, de outro lado, esboçase um olhar para a comunicação como relação interpessoal, com a participação
ativa dos dois elementos envolvidos na produção e troca de significados. Nesse
sentido, de um respeito pelo entendimento do outro, encontrou-se uma
menção à relação empática, pressuposto teórico básico da relação terapêutica
na abordagem humanista:
Comunicação com o paciente é uma empatia; quando você se coloca
no lugar do paciente, aquele é um problema que poderia ser seu, e
como gostaria de ser atendido, de ser recebido, se você escolhe isso,
você vai tratar o outro melhor, vai estabelecer um bom vínculo (...).
A partir do momento que você cria uma certa empatia com o
paciente, você consegue estabelecer um vínculo melhor, você não se
coloca assim superior a ele. (E11)
Finalmente, fossem as concepções amplas ou restritas, lineares ou circulares,
semióticas ou não, a pesquisa deparou-se sempre com um sentido de
relevância do processo de comunicação no exercício da Medicina:
“...comunicação faz parte do ato médico, do atendimento médico, se não se
comunicar ou não entender a comunicação dele, não se faz o diagnóstico”
(C02).
O ensino da comunicação na graduação em Medicina
“O objetivo de revelar a natureza da aprendizagem através da descrição da
experiência do aprender é fundamental para o delineamento da pesquisa e
para a própria obtenção das descrições.” (Martins & Bicudo, 1989, p.34)
Na leitura das entrevistas com egressos e coordenadores de cursos de
graduação em medicina, pudemos destacar a diversidade de olhares sobre o
ensino/aprendizagem de comunicação na formação profissional. Embora todos
os egressos tenham relatado alguma aprendizagem de comunicação em seus
cursos de graduação, geralmente remetendo a alguma disciplina, nem todos
os coordenadores mencionaram a presença explícita dessa temática. Em
algumas escolas, a comunicação não consta do programa pedagógico do curso,
não havendo referências que possam identificar o propósito curricular no
desenvolvimento dessa competência.
Egressos e coordenadores identificam algumas disciplinas como lócus de
ensino da comunicação na formação do médico, especialmente, propedêutica
ou pemiologia e psicologia médica. Considerando a especificidade curricular,
em cursos com metodologia de Aprendizagem Baseada em Problemas, onde
não há a grade disciplinar tradicional, o lócus é identificado em módulos
98
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.93-102, jan/jun 2006
O ENSINO DA COMUNICAÇÃO NA GRADUAÇÃO EM MEDICINA...
como: habilidades profissionais, conteúdos específicos e treinamento em
serviço. O ensino/aprendizagem da comunicação é considerado resultante do
treinamento de procedimentos e não do estudo de uma habilidade específica.
Os entrevistados sugerem que o aprendizado ocorre no contexto do
currículo oculto, especialmente por meio da observação de profissionais em
atividade, seja como médicos ou professores. Tanto egressos como
coordenadores utilizam o termo “modelo”. Segundo Apple (2003, p.127), o
currículo oculto é entendido como “normas e valores que são implícitos,
porém efetivamente transmitidos pelas escolas e que habitualmente não
são mencionados na apresentação feita pelos professores”. Essas normas e
valores estão presentes em todos os momentos de aprendizagem, inclusive
naqueles em que não se aponta o objeto de estudo.
O modo como se aprende foi mais explorado pelos entrevistados do que os
momentos em que isso acontece – fato justificado, justamente, pela ausência
explícita da temática nos programas pedagógicos. Enfatizou-se
consideravelmente o aprendizado com base na própria prática: “Mas na
realidade a gente aprende mesmo é na prática, com os professores, com os
residentes que vão dando suporte para a gente nesse sentido” (E05). A
atividade prática junto ao paciente passa a desempenhar papel de destaque no
ensino/aprendizagem das habilidades de comunicação.
Santos (2003, p.150), numa reflexão sobre o ensino de Semiologia, diz que
“é muito importante conscientizar o aluno de que fazer uma boa anamnese
e um bom exame físico se aprende com o paciente”. O aprendizado valendose da prática pessoal também é enfatizado por Rogers (1991, p.35):
A experiência é, para mim, a suprema autoridade. A minha própria
experiência é a pedra de toque de toda a validade. Nenhuma idéia
de qualquer outra pessoa, nem nenhuma das minhas próprias
idéias, tem a autoridade que reveste a minha experiência.
Assim, a questão do aprendizado valorizado na prática vai se consolidar no
período do internato. O internato é considerado um momento privilegiado
para a aprendizagem prática da competência “comunicação”: “Porque o que eu
lembro do que eu aprendi na faculdade inteira foi o que eu aprendi no
internato com os médicos do meu lado; é o que fica no fim” (E07).
Foi apontada, pelos entrevistados, uma deficiência no processo ensino/
aprendizagem de comunicação no âmbito específico do preparo para “dar
notícia ruim”, revelar um diagnóstico de certa gravidade: “O meu problema é
doença grave, aí eu não vou não, eu acho que eu não fui preparada para
isso” (E02).
No entendimento dos coordenadores de curso, a mudança da qualidade das
habilidades de comunicação do aluno – e, futuramente, do médico que irá se
tornar – passa pela discussão da qualidade de alguns professores, não só no
aspecto didático como também no preparo psicológico, diferenciando-se a
habilidade profissional médica e o conhecimento técnico-científico da medicina
da habilidade necessária à condução do processo educativo.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.93-102, jan/jun 2006
99
ROSSI, P. S.; BATISTA, N. A.
Considerações finais
O questionamento sobre as concepções de comunicação e sobre o processo
ensino/aprendizagem dessa habilidade nas escolas médicas mostra algumas
especificidades. Um primeiro aspecto é a sensação de surpresa, especialmente
dos coordenadores, diante desse questionamento; deparam-se com algo não
pensado antes.
Fazendo uma leitura transversal das falas, depreende-se outra
especificidade: a comunicação, para a maioria dos entrevistados, é um
procedimento instrumental para execução do ato médico. Para que se chegue
a um diagnóstico, é preciso inquirir, de modo a se levantarem dados
suficientes para a análise de possibilidades. Saber se comunicar é entender o
paciente e se fazer entender por ele. Entra em vigência o esquema clássico de
comunicação: emissor - mensagem - receptor, e o foco do processo é a
mensagem. Numa via, os dados da anamnese, noutra via, o diagnóstico e a
receita. O ato de comunicar é visto, assim, como uma “atividade-meio”. Até as
atitudes afetivas de consideração e respeito são vistas como “atividades-meio”,
como possibilidades de facilitação do fluxo de informações. “Escutar a fala” e
“auscultar o fígado” podem receber a mesma consideração, como
procedimentos paralelos do ato médico.
Oliveira (2002, p.3), discutindo o processo comunicacional na relação
médico-paciente, comenta que é papel do médico “traduzir o discurso, os
sinais e os sintomas do paciente para chegar ao diagnóstico da doença”. No
entanto, a comunicação – como habilidade de tornar comum um saber
qualquer, num processo de troca de mensagens entre pessoas e no
pressuposto de que não se impõe ao outro a informação como se expõe um
dado, mas se lhe oferece a oportunidade e se procura facilitar tal aquisição –
não é contemplada.
Merleau-Ponty (1999) utiliza o termo “clivagem” para descrever a ação que
a pessoa desenvolve ao organizar os dados com base na percepção do objeto e
da evocação das referências internas. O processo comunicacional entre o
médico e o paciente, como uma interação social entre pessoas, pressupõe
relações entre grupos sociais e culturais, sendo influenciado por
comportamentos, motivações e estado emocional dos envolvidos (FISKE,
1990).
Rogers (1991, p.43) enfatiza o papel da comunicação na relação
terapêutica como em qualquer relação interpessoal: “a relação terapêutica é
apenas uma forma de relação interpessoal em geral, e que as mesmas leis
regem todas as relações desse tipo”. A interação entre comunicação e prática
do médico, tanto em suas relações com o paciente, como com a equipe de
trabalho e com a comunidade, em um processo horizontal, caracterizado pelo
diálogo, no qual se constroem e (re)constróem significados, assume papel
essencial na formação da competência profissional preconizada pelas diretrizes
curriculares.
Das concepções dos pesquisados, não se pretendeu saber quanto de “ciência
da comunicação” existe no aprendizado da medicina, nem se pretendeu avaliar
o acerto ou não dos conceitos que porventura aparecessem, mas almejou-se
levantar as análises individuais e entendimentos próprios sobre o assunto.
Na opinião dos entrevistados, o aprendizado da comunicação acontece de
100
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.93-102, jan/jun 2006
O ENSINO DA COMUNICAÇÃO NA GRADUAÇÃO EM MEDICINA...
maneira subliminar ao processo de formação do médico, não se constituindo
em uma proposta explícita na maioria dos cursos vivenciados por eles. Alguns
coordenadores e egressos situam o ensino/aprendizagem dessa habilidade no
contexto de disciplinas específicas, especialmente semiologia e psicologia
médica. Outros o identificam perpassando implicitamente o currículo nos
diferentes momentos de formação. A observação de modelos, seja de
professores ou outros médicos em atividade, na prática e em contato direto
com o paciente, notadamente no internato, é a principal responsável por esse
processo.
Partiu-se do pressuposto de que a comunicação é uma habilidade que pode
e deve ser conquistada no processo de formação do médico, constituindo uma
área de conhecimento específico. Uma proposta mais explícita de ensino de
comunicação na graduação em medicina pode fomentar a compreensão de que
o processo comunicacional vai além das palavras e tem conseqüências diretas e
profundas na eficácia do ato médico, interpretando-o com o auxílio da
linguagem verbal.
O desenvolvimento do ensino da comunicação nos cursos de graduação em
medicina – justificado pela importância que emerge das pesquisas sobre
relação médico-paciente e acrescido de importantes discussões, especialmente
em fóruns internacionais, e das recomendações das novas Diretrizes
Curriculares Nacionais – impõe-se como campo de conhecimento a ser
contemplado nos projetos pedagógicos de formação de futuros médicos.
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Educ., v.10, n.19, p.93-102,
jan/jun 2006.
El objetivo de este trabajo es analizar el proceso enseñanza/aprendizaje de la
comunicación en la relación médico-paciente durante la graduación médica, discutiendo
concepciones de alumnos y de coordinadores sobre ese proceso e identificando cómo y
cuándo el currículo lo contempla. Fueron entrevistados doce egresados y nueve
coordinadores de cursos. Aparece una gran diversidad de concepciones sobre
comunicación, mostrando, principalmente, una tendencia a considerarla una habilidad
instrumental para conseguir información y hacerse entender en el procedimiento
médico. El aprendizaje de la comunicación ocurre, prioritariamente, de manera implícita
al proceso de formación, vinculado a algunas disciplinas como la Semiología y la Sicología
Médica o durante el desarrollo del currículo en los diferentes momentos de enseñanza/
aprendizaje. La observación de modelos, tanto de profesores como de otros médicos en
actividad, notadamente en el internado, son los principales responsables por ese
proceso. Los resultados encontrados en esta investigación, dada la relevancia de la
comunicación en el ejercicio de la práctica médica, indican la necesidad de
redimensionamiento de perspectiva sobre esta temática en los proyectos pedagógicos de
formación de futuros médicos.
PALABRAS CLAVE: educación médica. comunicación. relaciones médico-paciente.
aprendizaje.
Recebido em: 31/01/05. Aprovado em: 10/12/05.
102
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.93-102, jan/jun 2006
Médicos rresidentes
esidentes e suas rrelações
elações com/e no
mundo da saúde e da doença: um estudo de caso
institucional com residentes em Obstetrícia/Ginecologia*
Ana Cristina Bohrer Gilbert 1
Maria Helena Cabral de Almeida Cardoso 2
Susana Maciel Wuillaume 3
GILBERT, A. C. B. ET AL. Medical residents and their relations with and within the health and illness
environment: an institutional case study with Obstetrics/Gynecology residents. Interface - Comunic., Saúde,
Educ., v.10, n.19, p.103-16, jan/jun 2006.
Educ.
The perceptions of the physicians that completed their residency in Obstetrics/Gynecology in 2004 at the
Fernandes Figueira Institute, of the Oswaldo Cruz Foundation, about their residency process are investigated.
The research comprised two steps, participant-observation and the use of oral sources. The methodological
procedure includes a qualitative analytical coding of the interviews and a subsequent semiotic analysis. The
study aims at understanding the cultural heritage of the residents’ discourses regarding their relations with and
within the health and illness environment. Some of the elements discussed in this paper were: medicine as a
depreciated profession; regret for the loss of the power of medical knowledge; the perception that medicine is
seen more as a business than as a profession; the uncertainties of being simultaneously a professional and a
student; the difficulties of getting in touch with the suffering and death of another human being.
KEY WORDS: internship and residency. profesional practice. medical education.
Investiga-se a percepção dos médicos que concluíram a residência em Obstetrícia/Ginecologia no Instituto
Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, em 2004, sobre essa trajetória. A pesquisa constou de duas etapas,
observação participante e construção de fontes orais, procedendo-se a uma codificação analítica qualitativa de
todo o material coletado para posterior análise semiótica. Busca-se compreender a herança cultural enraizada
no discurso dos residentes sobre suas relações com/e no mundo da saúde e da doença, em particular:
desvalorização da profissão, ressentimento pela perda de poder do saber médico, percepção da medicina mais
como negócio do que como ofício, incertezas pela duplicidade de papéis - aluno e profissional, dificuldade
diante do sofrimento e da morte.
PALAVRAS-CHAVE: internato e residência. prática profissional. educação médica.
*
Elaborado a partir de Gilbert (2005).
Programa de Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher, Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Fiocruz, RJ.
<[email protected]>
1
2
Departamento de Genética, Instituto Fernandes Figueira, Fiocruz. <[email protected]>
3
Departamento de Ensino, Instituto Fernandes Figueira, Fiocruz. <[email protected]>
1
Rua Voluntários da Pátria, 190/203
Rio de Janeiro, RJ
Brasil - 22.270-010
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.103-16, jan/jun 2006
103
GILBERT, A. C. B. ET AL.
Introdução
As relações entre o médico e o mundo que o cerca dizem respeito não
apenas às estabelecidas com as pacientes e seu sofrimento e com outros
profissionais, mas também àquelas que estabelece com o saber e o poder, o
conhecimento, o tempo, o sofrimento e a morte. Tais relações trazem em
seu bojo as influências do processo histórico de constituição da medicina e
também aspectos míticos, cujo conteúdo faz parte do repertório psicológico
e simbólico dos profissionais que escolhem essa profissão e da sociedade em
geral.
Na residência médica, o treinamento envolve o aprimoramento do
raciocínio clínico como instrumento da prática, por meio do qual se faz a
articulação entre o caso individual e a teoria geral sobre as doenças. O olhar
clínico que é apurado nesse treinamento vai além do sentido físico da visão,
pois a ele são acrescidas as ferramentas das tecnologias de comunicação e
biológicas, fatores fundamentais na modelagem dos corpos humanos,
particularmente, dos corpos das mulheres, tradicionais alvos de visualização
e intervenção (Haraway, 1997).
O conhecimento que é construído na residência, portanto, resulta de um
processo de ensino-aprendizagem estruturado na prática, que tem na
motivação um componente essencial para torná-lo significativo, no qual o
residente é o agente e o preceptor, o mediador (Wuillaume, 2000). Ao
estudar os discursos médicos de residentes, entende-se que são discursos
especializados ainda em construção e busca-se elucidar o percurso da
formação médica, não apenas em termos teórico-técnicos, mas também
culturais, como lentes através das quais o médico dá significado ao mundo.
Para melhor equacionar essas questões, realizou-se um estudo de caso
institucional (Yin, 2002) com residentes em Obstetrícia/Ginecologia do
Instituto Fernandes Figueira (IFF), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),
mediante duas etapas. Na primeira, fez-se uma observação participante de
quatro reuniões da Ginecologia e quatro da Obstetrícia, registrando-se em
notas de campo dados sobre: ambiente, relação entre os participantes,
relação dos residentes com o staff, relação dos residentes com o caso
narrado, aspectos rituais da apresentação de caso, construção do
diagnóstico, construção de narrativas médicas, forma de lidar com situações
não-rotineiras.
A seguir, tomando por base a análise dessas notas, foram construídas
fontes orais utilizando-se o método elaborado e validado por Cardoso
(1986), composto por quatro módulos de entrevistas, englobando contato
prévio, história de vida, entrevista temática e depoimento livre e aberto.
Foram trabalhados três tipos de memória que aparecem no decorrer dos
módulos de forma entrelaçada: a individual, expressão de desejos,
aspirações e conflitos; a coletiva, como forma de experiência de um grupo; e
a histórica, como recordação de fatos.
Foram entrevistados sete dos oito médicos que estavam no último mês
da residência Médica (janeiro de 2004) – cinco mulheres e dois homens –,
pois um deles se encontrava em licença médica. Os depoimentos foram
colhidos no próprio IFF, num período de quatro meses, com duração média
de três horas e vinte minutos por pessoa, distribuídas pelos quatro
104
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.103-16, jan/jun 2006
MÉDICOS RESIDENTES E SUAS RELAÇÕES COM E NO MUNDO...
módulos. Todos os depoimentos foram gravados e transcritos literalmente,
de forma a permitir uma melhor análise. Por limite de espaço, neste artigo
são trazidos alguns trechos ilustrativos do que foi ouvido, gravado e
transcrito, tendo sido usadas siglas para nomear os entrevistados, a fim de
preservar suas identidades.
O material coletado passou por uma codificação qualitativa para
identificar os temas de interesse. A seguir, procedeu-se a uma análise
semiótica, que considerou aspectos como: a coerência e competência
textuais e intertextuais, as estruturas superficiais e profundas do texto,
isto é, a forma como os significados são colocados em discurso, e o processo
de “discursivização”, que compreende a “actorialização” (estabelecimento
dos personagens no discurso), “temporalização e espacialização” (efeitos do
tempo e do espaço), “tematização” (a geração dos elementos abstratos) e
“figurativização” (o aparecimento dos elementos concretos) (Cardoso,
1997).
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IFF, sob o
parecer nº. 054/03, de 04 de dezembro de 2003 e financiada pela CAPES,
compondo, também, dissertação de mestrado defendida no Programa de
Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher do IFF/Fiocruz (Gilbert,
2005).
O texto que se segue, partindo das experiências vividas nos dois anos de
residência médica, focaliza as relações dos médicos em processo de formação
especializada em Obstetrícia/Ginecologia com: o saber e o poder, o
conhecimento, o tempo, e o sofrimento e a morte.
O saber e o poder
Os homens, em seu anseio por explicar os fenômenos que os cercavam e
por elaborar e expressar aquilo que não conheciam, criaram e se utilizaram
de mitos, explicações mágicas ou sobrenaturais, que constituíram os
primórdios do conhecimento sobre eles próprios e o mundo. Assim o foi
também em relação à medicina, ao que seria saúde e doença, estabelecendo
analogias entre corpo e natureza e seus processos (Castoldi, 1996).
É a partir de Hipócrates de Cós que a medicina ganha contornos mais
científicos e menos mágicos no que se refere ao entendimento das doenças.
Os conceitos gregos sobre saúde e doença são ampliados por Galeno, no
século II, e permanecem dogmáticos por cerca de 14 séculos (Castoldi,
1996).
No final do séc. XVIII, dois grandes ideais associados ao exercício da
Medicina se estabelecem: o do poder médico, equivalente ao poder clerical, e
o da eliminação da doença, resultado de uma sociedade cujo controle
médico ajudou a organizar (Foucault, 2003).
Saber e poder se implicam mutuamente. A partir do séc. XIX, o hospital
torna-se mais que um local de cura, transformando-se num espaço onde o
saber é produzido, acumulado e transmitido e, conseqüentemente, onde o
poder é exercido. O conhecimento fisiológico, antes mantido à margem
para o médico, torna-se o centro de toda sua reflexão. Passa a ocupar o
papel de organizador do espaço das moradias e das cidades e a estabelecer as
regras para a sociedade, significando, em termos políticos, uma legitimação
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.103-16, jan/jun 2006
105
GILBERT, A. C. B. ET AL.
da Medicina pelo Estado (Foucault, 1990), e fornecendo as bases para que o
governo possa pensar medicamente os problemas da população, tais como:
delinqüência, criminalidade, indigência (Rose, 1999).
O poder está presente nas relações humanas de modo geral e também na
hierarquia organizacional dos serviços hospitalares. O poder não é algo que
se possui ou não, mas é exercido em relações constituídas historicamente.
Nesse sentido, o que existe são práticas ou relações de poder configuradas
em teia, que comporta os movimentos de resistência a essas mesmas
práticas ou relações (Foucault, 1990).
Em nossa cultura, a relação do médico com o paciente é assimétrica,
calcada na presença do conhecimento no primeiro e na ausência, no
segundo. Assimétrica se conforma também a relação do residente com os
membros da equipe à qual se integra quando do início da residência.
No hospital, o residente é aquele que acaba de ingressar num período de
especialização com caráter de um rito de passagem, por constituir uma
transição de um nível de status para outro: de aluno para profissional.
Entretanto, esse profissional, até bem pouco tempo aluno do sexto ano de
medicina, patamar mais alto na hierarquia do alunado, passa agora a
ocupar o mais baixo na hierarquia da profissão dentro do hospital, o de R1.
Essa queda é muito rápida e acarreta ressentimentos. Inicialmente, a rotina
do serviço é desconhecida, assim como características da própria
especialidade. Mas por ser médico, talvez haja a ilusão da primazia do
território, o qual pode ser entendido tanto como o espaço do hospital,
quanto o corpo da própria paciente adoecida. O iniciar da residência traz
uma excitação antecipatória que é substituída aos poucos por períodos de
insegurança e depressão, alternados com sentimentos de competência e
arrogância ao final do primeiro ano (Martins, 1994).
O peso da responsabilidade por lidar intimamente com o binômio vida e
morte é o primeiro aspecto salientado nos depoimentos analisados, que
sem dúvida remete à questão das relações de poder. Conforme expressa S4:
“Quando algo complica, o medo que dá é da morte. Por um lado, um
poder muito grande, de salvar; por outro, uma impotência também
grande, quando dá errado”.
A influência da medicina, enquanto discurso e prática que detém um
domínio sobre a forma como os indivíduos pensam, moldam e vivem seus
corpos, implica, em sua gênese, uma teorização e materialização destes
corpos como textos codificados, requerendo de quem os pretende conhecer,
em seus múltiplos órgãos e sistemas, um conhecimento altamente
especializado que o legitime como “decifrador”.
A noção de “ferimento”, presente no curador mítico Quirão, como
aquilo que o aproxima dos mortais, do sofrimento do outro, por ser capaz
de saber/sentir a dor, aparece como metáfora latente nas narrativas
escutadas, sob a forma de adoecimentos reais que marcam indelevelmente
os residentes, confrontando-os com sua vulnerabilidade e incapacidade de
tudo decifrar e, assim, curar, trazendo a noção de limite. Como disse S3,
recordando ter ficado enferma no início da residência: “[O médico] me deu
uma licença que eu não cumpri e por isso até piorei. Não queria parar de
trabalhar, não queria me sentir doente”. S5 também, com toda clareza,
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.103-16, jan/jun 2006
MÉDICOS RESIDENTES E SUAS RELAÇÕES COM E NO MUNDO...
expõe: “Foi o [sofrimento do outro] o que mais me chocou. Eu me
cobrava muito de ter que dar conta”.
Evocar o mito não significa tomá-lo no sentido literal, mas perceber que
o real e o ficcional, o científico e o mítico interagem e compõem o
arcabouço cultural de determinada sociedade, incluídas as percepções e
práticas leigas acerca das doenças e opiniões e valores sobre o próprio
médico. S7 corrobora essa assunção ao lamentar: “A profissão de médico
agora é uma profissão comum, sem mito, sem idolatria; falta poder,
sobra contestação”.
Barthes (2001) define o mito contemporâneo como metalinguagem,
cuja função é esvaziar o real de história, transformá-lo em natureza de
forma a retirar o seu sentido humano e torná-lo eterno. O mito é um
sistema de comunicação, uma fala, um modo de significação. Ele não
esconde nem chama a atenção para si: o que faz é deformar o sentido, pela
naturalização do conceito. Percebe-se uma mudança da percepção do
médico com significados relacionados a um sacerdócio (Castoldi, 1996),
para a de pessoas como outras quaisquer, inseridas em uma realidade
contextual, com sérios problemas e dificuldades para exercer a profissão.
O limite ainda se revela pela declarada falta de conhecimento, quando
comparada ao de um profissional mais experiente, mesmo que não-médico
e ainda que social e institucionalmente posicionado em situação inferior.
Aparece também sob a forma de uma identificação com a paciente, gerando
angústia pela incapacidade, ainda que momentânea, de se perceber
diferente e separado do outro. Ou se manifesta por intermédio da queixa
de que, atualmente, a grande difusão de informações médicas veiculadas
pelos meios de comunicação, paulatinamente, promove uma perda da
exclusividade do saber, alterando as relações com as pacientes, que passam
a questionar, a testar e até desrespeitar o diagnóstico e a terapêutica. A
percepção geral é a de que, se por um lado, como diz S7, não há mais a
aceitação do peremptório: “sou o médico; sou o dono da verdade”, por
outro, a sensação de ser perenemente testado acaba por pautar, conforme
também afirma o mesmo depoente, o “tem que me respeitar”, porque o
saber especializado, tal como o do decifrador de códigos profissional, é
inquestionável e percebido como auferido e legitimado pelos anos de
estudo e, agora, de prática numa determinada especialidade da Medicina.
Nos relatos analisados, as relações entre saber e poder também se
refletem nas afirmações acerca das responsabilidades do médico no setor
público e no privado. No primeiro, elas são consideradas mais diluídas do
que no segundo, em função da existência de uma relação não muito
próxima com a paciente, e também em razão do desnível sociocultural
assumido como fato no mundo. Na clínica privada, a noção geral é de que a
cobrança é sistemática, inclusive, implicando uma prática da medicina
fatalmente cada vez mais defensiva, pois conforme se queixa S6: “Hoje em
dia, tem a indústria do processo”.
Para todos os residentes entrevistados, o poder, além de sua articulação
com o saber, vincula-se à capacidade de “convencimento” da paciente, por
parte do médico, da veracidade desse saber, o que, por sua vez, assenta-se
na boa relação entre eles. O poder de convencer é proporcional à capacidade
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.103-16, jan/jun 2006
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GILBERT, A. C. B. ET AL.
de elaborar uma boa relação médico-paciente, vista como condição sine qua
non para atingir o não-questionamento e a concordância. Todavia, o que
não é verbalizado resta subjacente, pois atingir este escopo só é possível
porque ambos, médico e paciente, compartilham a mesma asserção cultural
que legitima o domínio hierárquico do saber científico (Villar & Cardoso,
2002), como produtor absoluto da verdade.
O conhecimento
A busca do conhecimento, em especial na residência, por ser um período de
construção de uma identidade profissional, é direcionada primordialmente
aos profissionais da instituição, por conjugarem informação e experiência.
Para todos, o fundamental não é ter uma fonte teórica, mas de acordo com
S3: “discutir com um profissional mais experiente”.
O estudo é guiado pelas dúvidas que surgem diante de situações reais na
rotina do atendimento. Contudo, nos casos mais complicados de
ambulatório, onde o tempo não é decisivo, os livros ou artigos são citados
como podendo ser consultados com mais calma, para o esclarecimento de
uma situação específica.
O conhecimento teórico e a observação clínica, reiterando, se
complementam: não é possível considerar apenas um deles. É a narrativa
codificada, construída com base no relato da paciente, que faz a conexão
entre os dois, confrontada com os sinais mostrados pelo corpo e com o
resultado dos exames complementares.
Segundo Camargo Jr. (2003), no processo de seleção de informação
considerada relevante e/ou confiável, por parte dos médicos, parece existir
uma estratégia, que ocorre de forma mais intuitiva e menos consciente e
sistemática, de reconhecimento de sinais, semelhante à empregada ao
diagnosticar, que agrupa os elementos significativos, formando uma
gestalt. Entretanto, existe uma falta de recursos para avaliação dessa
informação, devido à escassez de tempo e ao desconhecimento, em especial
de epidemiologia e estatística, que possibilite uma discussão dos métodos
empregados nas pesquisas. Assim, a relevância da fonte acaba sendo
estabelecida, freqüentemente a priori, pela sua credibilidade acadêmica,
pela vinculação à prática clínica, ou ainda por serem previamente digeridas
e selecionadas pela indústria médico-farmacêutica.
A medicina baseada em evidências, um dos desdobramentos das
tecnobiociências, no discurso dos entrevistados, ganha conotação de uma
âncora para a prática clínica, por ser entendida como fundamental à
atualização do conhecimento, uma vez que, como diz S3, ela demonstra o
que “funciona ou não no paciente [pois é] evidência de uma prática”.
Essa definição tautológica é acrescida de declarações sobre situações
geradoras de dúvida e insegurança, que evidenciam as duas vertentes da
medicina, a ciência e a arte (Castoldi, 1996), trazendo a impossibilidade de
se conciliar o caráter geral da teoria das doenças com as singularidades das
pacientes. S4 reitera essa divisão entre o individual e o geral, ou, em outras
palavras, a definição clássica de medicina como ciência e arte, ao afirmar:
“Medicina não é regra, nunca foi. Cada caso é um caso”.
A atual dificuldade de absorção dos profissionais médicos pelo mercado
108
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.103-16, jan/jun 2006
MÉDICOS RESIDENTES E SUAS RELAÇÕES COM E NO MUNDO...
de trabalho, já na residência, aliada ao aumento do número de cursos de
medicina de qualidade duvidosa (Pessoa & Constantino, 2002) estabelece,
para os entrevistados, a especialização como diferencial. Nesse
afunilamento crescente, a opção por uma carreira acadêmica, que inclui
mestrado e doutorado, também aparece como atrativa, exceto para aqueles
que se reconhecem como essencialmente voltados para a prática clínica.
Nesse sentido, S6 assevera que: “Não tem como a parte acadêmica
superar a parte do atendimento, quando você não tem prática
nenhuma”. E acrescenta: “Não adianta ter um mundo de informação
acadêmica se quando vai para o consultório, para outro hospital, você
não tem experiência”.
A residência é vista também como uma forma de ganhar mais segurança,
diante de uma complexidade crescente das especialidades. A noção que se
patenteia é a de que, ao se restringir o campo de atuação, circunscreve-se
melhor o conhecimento a ser atualizado. O argumento apresentado por
todos é que tal recorte traz, inclusive, mais segurança para a paciente,
apesar da reconhecida conseqüente compartimentalização. A formação
generalista é tida como um retrocesso, sendo desvalorizada e percebida
como caminho somente percorrido por aqueles que não conseguiram ser
admitidos como residentes em hospitais credenciados, uma vez que,
conforme também diz S6: “Porque quanto mais você se subespecializa, a
tendência é que você saiba mais sobre aquele assunto. Lógico que o
paciente ganha”. Mas, ele também reconhece que: “Talvez essa parte
para a paciente seja ruim, o ter que procurar mais médicos: ela ganha
na qualidade e perde um pouco na relação”.
O tempo
A questão do tempo permeia todos os depoimentos: a sua falta,
dificultando a atualização diante do volume crescente de novas
informações, necessidade característica do estilo de pensamento clínico
(Camargo Jr., 2003); a opção pela não-exclusividade da medicina na vida,
com priorização do aspecto pessoal e afastamento da visão da medicina
como sacerdócio; nas escolhas em Obstetrícia, especialidade muito ligada ao
tempo, claramente expresso no trabalho de parto e na crescente opção por
cesariana como forma de melhor administrá-lo, e que traz uma sensação de
maior controle dos riscos envolvidos no parto.
É por meio das relações que o homem estabelece em sociedade (entre
elas a relação com o tempo) o que vai significar sua vida (Augusto, 1994).
A emergência da noção de indivíduo é contemporânea ao processo
desenvolvido no século XVIII e início do século XIX. Nela está embutida a
crença no progresso contínuo, linear, ilimitado, guiado pela razão e
realizado por intermédio do desenvolvimento da ciência e da tecnologia,
assim como a esperança no controle da natureza, administrada pela fé na
capacidade do homem de liberdade e de escolha.
A residência é encarada como um período iniciatório marcado pela
cobrança e extenuante rotina (Cousins, 1981) que o residente deseja
completar para adquirir instrumentos legitimadores de poder, tais como o
raciocínio clínico mais apurado e o “pegar mão”, significando habilidade
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.103-16, jan/jun 2006
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GILBERT, A. C. B. ET AL.
cirúrgica.
Nessa rotina, são apontados como fatores estressantes, por diversos
autores (Martins, 1994): a fadiga pela grande carga de trabalho,
despertando sentimentos hostis em relação a vivências de exploração e
desrespeito; a falta de tempo para a vida pessoal; a responsabilidade no
atendimento aos pacientes, trazendo o medo de cometer erros, e a falta de
conhecimento e experiência, que ameaçam a autoconfiança. Tais fatores
requerem o desenvolvimento de reações adaptativas por parte do
organismo, todos foram confirmados pelos residentes em seus
depoimentos.
A vulnerabilidade psicológica do médico é considerada um tema delicado
(Nogueira-Martins & Jorge, 2004), que se apresenta em função das
pressões inerentes à profissão, na lida diária com vida, doença e morte; pelo
contato íntimo com o corpo do outro, com suas queixas, reivindicações,
submissão e hostilidade; pelas incertezas da medicina, especialmente, num
hospital terciário e de ensino, onde a gravidade dos casos é maior em
relação aos hospitais gerais. Apesar da Obstetrícia/Ginecologia ser
considerada pelos entrevistados uma especialidade mais ligada à vida do que
à doença e, conseqüentemente, à morte, no IFF ela envolve casos graves,
especialmente a Obstetrícia, provocando um impacto inicial e uma angústia
muito grande nos residentes.
Observa-se um movimento no sentido de estabelecer limites para a vida
profissional, com uma tendência a migrar para subespecialidades que
permitam uma rotina com horários mais regulares e o contato com a
paciente mediado pela tecnologia, como é o caso do diagnóstico por
imagem e vídeo (laparoscopia e histeroscopia). Esta escolha está associada à
atração que a tecnologia de imagem exerce, por disponibilizar
procedimentos menos invasivos e que representam uma fonte de
segurança, mas também, à inclinação para o distanciamento do eixo
conjetural da medicina, já que a imagem é tida como capaz de mostrar mais
e melhor e ser fiel reprodução do que, na verdade, representa.
São identificados quatro grupos de fatores ligados à pressão do tempo
(Martins, 1994) que, associados, podem provocar situações de fadiga e
exaustão, e que devem ser considerados nos programas de residência: a) a
pressão social característica da assistência; b) a pressão dos valores, que
envolvem o ser médico; c) a pressão advinda do aprendizado, e d) a pressão
que surge em função das necessidades do residente.
A pressão social refere-se a uma ampla discussão sobre a residência como
período de preparação do profissional e/ou uma exploração do jovem
médico (Cousins, 1981). Para os residentes entrevistados, o volume de
atendimento é grande, gerando ansiedade em distribuir o tempo e, muitas
vezes, causando problemas com a marcação das agendas. Esse tempo
escasso, segundo eles, também impede a existência de um espaço de
discussão dos aspectos não fisiológicos dos casos, e mesmo relativos à
vivência da residência, com todas as dúvidas e questionamentos
pertinentes, pois a máxima parece ser a apontada por S2: “Residente não
fica cansado”.
A ausência desse tipo de discussão envolve outros fatores, como
110
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.103-16, jan/jun 2006
MÉDICOS RESIDENTES E SUAS RELAÇÕES COM E NO MUNDO...
competição, demonstração de poder, idealização da profissão, que
permeiam o segundo tipo de pressão do tempo: a dos valores, que colocam
o médico numa posição privilegiada em termos de atuação sobre a vida e a
morte, mas que o pressionam no sentido de não cometer erros e de ter de
decidir em situações emergenciais o que, para um residente, ainda em
processo de construção de confiança e identidade, pode significar um peso
excessivo. Existe o receio de ficar sozinho num plantão, como
assumidamente declara S5: “Eu tenho medo da emergência, de chegar
uma paciente com a vida na minha mão e eu não conseguir resolver”.
A terceira forma, a do aprendizado, inclui os conflitos inerentes ao ser
aluno e profissional simultaneamente, e o ter de adquirir conhecimento
especializado em pouco tempo. Ora lhes é cobrado que sejam capazes de
tomar iniciativas, ora lhes é lembrada a condição de dependência de um
profissional mais experiente, do qual devem apenas seguir as instruções. O
conflito polariza sentimentos, fazendo-os oscilar entre a insegurança e a
segurança exacerbadas. Como fala S1, lhes é dito: “vocês são residentes,
estão aqui para cumprir ordens”; e no momento seguinte, lhes é cobrado:
“Vocês não têm discernimento?”.
Durante as entrevistas, o carimbo levado no bolso do jaleco por todos os
entrevistados, metaforicamente representando a aquisição da
responsabilidade e o status de médico, serviu como indicador desses
momentos de mais insegurança, sob a forma de um constante batê-lo
contra a mesa, que ganhava aceleração quando o tema sugeria algo crítico,
que extrapolava o domínio ou controle.
A quarta forma de pressão do tempo, a das necessidades do residente,
refere-se a uma expectativa ilusória inicial de tornar-se o especialista
completo, seguro e experiente, e que vai se transformando de forma a
reconhecer os ganhos reais, mas também a perceber que é apenas uma
etapa que foi cumprida, que ainda há um longo caminho a ser percorrido,
pois, conforme reflete S2, parecendo recitar um credo: “as coisas vão num
contínuo”.
O sofrimento e a morte
A dificuldade de estar em constante contato com o sofrimento do outro e a
necessidade de realizar determinadas intervenções exigem do médico uma
dissociação das representações que ele tem sobre os órgãos e sobre o corpo
em geral, mas que pode chegar a uma “coisificação” da paciente. Esse
aprendizado é sentido pelos residentes como paulatino, pelo contato
rotineiro com a dor e a doença.
No contato com o sofrimento do outro, ouvir se diferencia de escutar: o
primeiro refere-se a um fenômeno fisiológico, enquanto o segundo, a um
fenômeno psicológico. Nesse percurso de predominância do olhar ampliado
sobre os outros sentidos, percebe-se que a escuta que ocorre, na maioria
das vezes, é a descrita por Barthes (1990) como uma escuta que busca
“ler” os signos, tendo como referência códigos já estabelecidos. No caso do
médico obstetra/ginecologista, ele é capaz de ver o interior do corpo da
mulher, portanto, é capaz de decifrar e saber. E para ver melhor ou decifrar
melhor, ele a escuta, buscando identificar sinais relevantes que o orientem
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.103-16, jan/jun 2006
111
GILBERT, A. C. B. ET AL.
em sua formulação do diagnóstico. O foco nesse tipo de escuta é sobre o
que é dito pela paciente e não a própria paciente.
Como categoriza S6, com pacientes consideradas “queixosas”, que
“gostam de fazer drama”, e em quem, segundo ele, não existe uma
vontade real de melhorar, a escuta é prejudicada, por gerar certa
impaciência no médico, que passa a desconsiderar as informações trazidas.
Os residentes consideram que a mulher vem ao ginecologista por questões
que vão além do mal-estar físico, confrontando-os com o limite e a
dificuldade de atuar em algo que extrapola a especialidade. De acordo com
eles, cabe à sensibilidade de cada um identificar essas situações e
discriminar o que deve ser levado em consideração, o que reconhecem nem
sempre acontecer, pois, de acordo com as palavras de S1: “É uma coisa
meio pessoal”.
Para os depoentes, essa sensibilidade aparece como sendo algo inerente,
e que vai sendo desenvolvida no decorrer do aprendizado profissional.
Entretanto, queixam-se de que é pouco estimulada ou discutida no
programa da residência médica ou, mesmo, na graduação. Segundo eles,
lhes é cobrado que a considerem dissociada do raciocínio baseado em sinais
ou evidências concretas, só sendo permitida e valorizada em profissionais
mais experientes.
Cabe assinalar, entretanto, que essa sensibilidade é indissociável do
próprio conhecimento médico que, apesar das ilusões ao contrário, sempre
expressa elementos intuitivos, inclusive, percepções físicas, que associados à
criatividade e à analogia, compõem o processo diagnóstico, montado a
partir das informações semiologicamente coletadas e confrontadas com a
grade nosológica de referência (Castiel, 1999).
No que se refere à morte, até o final do séc. XVIII, o olhar médico é
voltado para a eliminação da doença, a cura e a restauração da vida; a morte
está fora do alcance desse olhar e desafia o conhecimento e a habilidade do
médico. Com Bichat, anátomo-patologista (Foucault, 2003), os olhos do
médico se voltam para a morte, buscando nela as respostas do seu fracasso,
as explicações para a doença e para a vida, libertando a medicina do medo
da morte, que foi integrada num quadro técnico-conceitual, com
características determinadas e relevância como experiência.
A cultura realiza um trabalho de classificação da morte para melhor
compreendê-la e para dar-lhe sentido, resultando numa série de práticas,
teorias, dogmas e idéias (Rodrigues, 1983). A morte, tal como a
conhecemos hoje, nasce junto com o processo de valorização do indivíduo.
Ela perde o conteúdo de festividade e coletividade para dar lugar à
individualidade e à angústia diante dela, passando a ser evitada mediante a
sua naturalização. Ao acreditar-se capaz de controlar a natureza por meio
da ciência, o homem sente-se capaz de fazê-lo em relação à morte, que
passa a ser vista como fracasso do corpo e da atenção médica (Pitta, 1994).
Para Foucault (1990), essa esquiva da morte acontece pela mudança de
foco da ação do poder, que passa a se fixar sobre a vida, por intermédio de
mecanismos de regulação e correção, desembocando numa sociedade
normalizadora.
Culturalmente, os médicos são vistos como inimigos da morte, à qual
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.103-16, jan/jun 2006
MÉDICOS RESIDENTES E SUAS RELAÇÕES COM E NO MUNDO...
deverão vencer. A metáfora da batalha é bastante presente na medicina e
nela o médico é aquele que disputa, com a doença e a morte, a posse pelo
paciente. A doença pode ser entendida como oscilando entre algo que é
externo e penetra no corpo, e algo que é interno e causa um desequilíbrio
no organismo. Essas imagens são recorrentes em todas as narrativas feitas
pelos residentes. Para eles, nitidamente, o corpo da paciente é o território,
e se um câncer aparece, conforme fala S6: o “querendo ocupar” o médico
tem de expulsá-lo, porque, segundo ele: “O médico sempre quer vencer;
não quer ser vencido”.
Segundo Canguilhem (2002), a vida se caracteriza como polaridade que
se contrapõe a tudo o que pode ser considerado um empecilho para a
normatividade biológica, entendida como toda atividade que é própria do
organismo. Cabe à medicina atuar na mesma direção, prolongando esse
esforço espontâneo de defesa e luta que é próprio da vida.
Entretanto, isso nem sempre é possível, devendo o médico desenvolver
mecanismos para superar a frustração do fracasso e a impotência daí
advinda. A residência configura-se como um aprendizado, no sentido dado
por S4 de: “ter que lidar com o sofrimento das pessoas, com a morte”. Não
há nada que apague da memória o primeiro paciente que se vê morrer, mas
depois, a morte torna-se tão rotineira que se passa a considerar que, se a
cura não foi alcançada num paciente, virão outros, visto que, como diz S4:
“Você tem tantas outras pessoas para ajudar”.
A análise dos depoimentos indicou que não é o contato com a morte,
como conceito abstrato, o que é mais difícil, mas acompanhar o paciente
vivo que está morrendo (Zaidhaft, 1990). Os sentimentos de culpa são
reavivados, colocando os residentes, como qualquer outro ser humano,
frente a frente com a possibilidade de sua própria morte e limitação
(Cousins, 1981), levando-os muitas vezes a atitudes de obstinação para
conseguir a cura da doença (Pitta, 1994).
Considerações finais
Para os residentes, a medicina tem se tornado mais um negócio do que um
ofício. Segundo eles, ainda existe no imaginário social a noção de que o
médico realiza um trabalho que não deveria ser cobrado. A realidade para
quem está começando, afirmam, é a de uma profissão que é cada vez mais
banalizada, apesar da responsabilidade de lidar com vidas humanas, na qual
se ganha pouco e se trabalha muito. A assimetria existente entre médico e
paciente, pautada no conhecimento, não é estática: percebe-se o
movimento, interno a essa mesma relação, de resistência que exerce tal
pressão sobre o médico que faz pender a balança para o pólo oposto.
Começar com uma atividade de consultório é difícil, não só em termos
de clientela, mas devido à insegurança do trabalho solitário. Integrar uma
equipe com profissionais mais experientes que possam dar orientação é
percebido como uma forma paulatina de ganhar confiança. Os concursos
para os hospitais públicos são outra porta de entrada no mercado, agora
que deixam a segurança da residência.
Torna-se negócio também pela questão dos planos de saúde, que ditam
regras em áreas que tocam a responsabilidade ética do médico, como nos
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.103-16, jan/jun 2006
113
GILBERT, A. C. B. ET AL.
atendimentos em hospitais, diante de situações graves, onde a falta de
cobertura para determinados procedimentos é uma constante. ‘O que
fazer?’ perguntam-se os residentes. Respeitar as normas administrativas e
colocar em risco o registro no CRM ou seguir o que manda a ética médica?
Essa é uma questão que, para eles, permanece aberta, sem resposta.
O saldo final da residência aparece como positivo, apesar das reclamações
quanto à falta de mais parte prática ou de mais parte teórica; dos casos
difíceis e angustiantes que se apresentam num hospital com o perfil do IFF,
e dos eventuais problemas de relacionamento com a equipe. Todos
reconhecem a bagagem adquirida nos dois anos da residência e se percebem
capazes de enfrentar situações fora do ambiente protegido do hospital,
apesar dos receios, da consciência de não saber tudo.
Vários estudos apontam para a necessidade de mudanças no ensino da
medicina e sugerem a busca de novas perspectivas de se relacionar com o
paciente, articulando melhor clínica e teoria. Alguns propõem a introdução
do ensino de humanidades (Carson, 2000) e da Bioética, de forma a
ampliar o olhar do estudante, bem como suscitar o questionamento do
modelo passivo ensino-aprendizagem (Rodríguez et al., 2004; Siqueira e
Eisele, 2000).
Mas talvez a questão seja mais profunda do que o acréscimo de
informação; talvez falte abrir arenas de discussão, não apenas para
aprender sobre novas tecnologias diagnósticas e terapêuticas, mas para
refletir sobre o processo de construção de identidade profissional do
médico. Nesse processo, encontram-se inseridos o desenvolvimento da
competência narrativa, a importância da sensibilidade no aprimoramento
do raciocínio clínico, as dúvidas e inseguranças inerentes à transição entre
aluno e profissional e, principalmente, as teias de relações nas quais se
encontram envolvidos médicos e pacientes como seres históricos,
pertencentes a um contexto cultural específico, compartilhando valores,
conceitos, padrões que estão presentes e atuantes, ainda que de forma
subliminar, no momento da consulta. Também é preciso pesar o saber e o
poder, na moldura da administração dos corpos sociais e individuais,
comprometendo-se responsavelmente com diferentes saberes e entendendo
que a questão do poder não é executá-lo sobre os outros, e que ele
pressupõe a liberdade como questão constitutiva de todas as práticas, tal
como a médica que, historicamente, vêm tecendo as relações humanas.
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.103-16, jan/jun 2006
115
GILBERT, A. C. B. ET AL.
GILBERT, A. C. B. ET AL. Médicos residentes y sus relaciones con y en el mundo de la
salud y la enfermedad: un estudio de caso institucional con residentes en Obstetricia/
Ginecología. Interface - Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10, n.19, p.103-16, jan/jun 2006.
Este estudio discute la percepción de médicos que terminaron la residencia en
Obstetricia/Ginecología en el Instituto Fernandes Figueira, Fundación Oswaldo Cruz, en
2004, sobre esa trayectoria. La investigación constó de dos etapas, observación
participante y construcción de fuentes orales. Fue elaborada una codificación analítica
cualitativa del material colectado para posterior análisis semiótico. Se busca comprender
la herencia cultural enraizada en el discurso de los residentes sobre sus relaciones con y
en el mundo de la salud y la enfermedad. La devaluación de la profesión, el
resentimiento por la pérdida de poder del saber médico, la percepción de la medicina
como negocio más que oficio, las incertidumbres por la duplicidad de papeles -alumno y
profesional-, la dificultad ante el sufrimiento y la muerte son algunos de los aspectos
abordados en este artículo.
PALABRAS CLAVE: internado y residencia. práctica profesional. educación médica.
Recebido em: 13/09/05. Aprovado em: 01/05/06.
116
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.103-16, jan/jun 2006
Estr
atégias de Educação em S
aúde e a
Estratégias
Saúde
qualidade do cuidar e ensinar em P
ediatria:
Pediatria:
a interação, o vínculo e a confiança no discurso
dos profissionais
Maria Veraci Queiroz 1
Maria Salete Jorge 2
QUEIROZ, M. V.; JORGE, M. S. Health education strategies and the quality of care and teaching in pediatrics:
interaction, connection and trust in professional discourse. Interface - Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10, n.19,
p.117-30, jan/jun 2006.
An analytic and interpretative study whose objective was to understand the meaning of educational practice in
forming a connection between users, the pediatric team and healthcare services. It was based on Cultural
Anthropology assumptions and relied on semi-structured interviews with eight professionals from the field
under study. The expressions of the professionals showed the points of convergence, representing the social
imagery that applies to this professional activity, expressed in the dialogue themes with respect to the language
and experiences as a way of providing care and teaching, and connection and confidence as constructs of the
process of providing care and teaching. The results highlighted that Health Education permeates aspects of
communication and of interpersonal relations, such as respect for the culture of the families and, in this way,
fosters the approximation of the professional and the family and the establishment of a connection and of
trust, making it possible to improve aspects of the child’s health and qualify of life, justifying an incentive to
these types of attitudes and the creation of arenas for discussing and learning this process.
KEY WORDS: pediatrics. health education. health promotion. family. culture.
Trata-se de estudo analítico-interpretativo, cujo objetivo foi compreender o significado da prática educativa na
formação do vínculo entre os usuários, a equipe pediátrica e os serviços de saúde. Fundamenta-se em
pressupostos da Antropologia Cultural, utilizando a entrevista semi-estruturada com oito profissionais da área.
As expressões dos profissionais mostram os pontos de convergência, representando o imaginário social sobre
esta atividade profissional expressa nas temáticas diálogo com respeito à linguagem e às experiências como
forma de cuidar e ensinar e vínculo e confiança como construtos do processo de cuidar e ensinar. Os resultados
destacaram que a Educação em Saúde permeia aspectos da comunicação e da relação interpessoal, como
respeito à cultura das famílias e, assim, propicia a aproximação do profissional com a família e a formação de
vínculo e confiança, permitindo melhorar aspectos da saúde e da qualidade de vida da criança, justificando o
incentivo a tais atitudes e à criação de espaços para a discussão e aprendizagem desse processo.
PALAVRAS-CHAVE: pediatria. educação em saúde. promoção da saúde. família. cultura.
1
Enfermeira, Hospital Geral de Fortaleza; docente, Universidade Estadual do Ceará (UECE). <[email protected]>
2
Coordenadora, Mestrado Acadêmico em Saúde Pública, Universidade Estadual do Ceará. <[email protected]>
1
Rua Barbosa de Freitas, 941, apto. 1101
Bairro Aldeota - Fortaleza, Ce
Brasil - 60.170-020
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.117-30, jan/jun 2006
117
QUEIROZ, M. V.; JORGE, M. S.
Introdução
Na saúde em geral e, mais especificamente, na saúde da criança, são muitos os
obstáculos a serem enfrentados para que ações sejam implementadas com
vistas a um novo paradigma que não aquele que prioriza somente a doença,
introduzindo conceitos e ações facilitadores de promoção da saúde.
Na atenção à saúde da criança, há estreita relação entre a Educação em
Saúde e a promoção da saúde, visto que as ações implementadas em todos os
níveis de atenção, além de tratar e/ou prevenir doenças, destinam-se, também,
a promover o crescimento e desenvolvimento infantil, numa perspectiva de
qualidade de vida. As ações de promoção da saúde devem ser acionadas por
meio de estratégias que envolvam a coletividade em geral e a família, esta
como responsável pela criança e como detentora de um saber que não poderá
ser descartado, mas aperfeiçoado e/ou adaptado ao saber científico dos
profissionais.
Com base na experiência de investigação sobre o cuidado da criança,
percebemos que, em todos os campos de atuação da pediatria, a Educação em
Saúde surge como prática capaz de favorecer a cura e a recuperação, além de
promover a saúde, como também dar suporte ao profissional para avaliar as
condições da mãe, ou outro qualquer responsável, para assumir, com
suficiência, o cuidado da criança. Por conseguinte, todas as oportunidades
devem ser aproveitadas para conversar e trocar experiências, percebendo a sua
condição de cuidar da criança e demonstrando uma atitude de compreensão e
aproximação com a realidade das famílias, ou seja, estabelecendo uma relação
intersubjetiva com essas pessoas que buscam os serviços à procura de saúde
dos filhos, um objetivo nem sempre alcançado.
Promover a saúde diz respeito a ações que envolvem as coletividades como
um todo, não especificando grupos sob risco ou com determinada doença.
Numa compreensão estratégica da promoção da saúde, provocam-se mudanças
de comportamento organizacional capazes de beneficiar a saúde de camadas
mais amplas da população. É oferecida aos indivíduos, grupos e às coletividades
uma possibilidade de se conduzirem num comportamento positivo para a
saúde, permitindo que desenvolvam maior controle sobre os fatores que a
determinam, favorecendo um estilo de vida mais saudável (Candeias, 1997).
Desse modo, os usuários e as coletividades devem ser participantes, com
liberdade e direito de tomar decisões conscientes sobre sua saúde. Este é um
aspecto que requer, dos profissionais, a aquisição de saberes relativos à
dinâmica do “ensinar” cuidados à saúde, de modo crítico, reflexivo e
transformador. Essa aquisição envolve práticas e conhecimentos conjugados
no estabelecimento de uma nova ação em saúde, permeada de utopias e das
mudanças possíveis nas realidades.
Nesse sentido, Freire (2001) enfatiza que a utopia exige conhecimento
crítico, presença no mundo para denunciar e intervir na realidade
desumanizante. Assumir uma presença capaz de observar, comparar, avaliar,
decidir e intervir, adotando tão criticamente quanto possível a competência
política capaz de transformar. Além de todo esse fecundo ensinamento, Freire
nos leva a pensar que, se não é possível realizar certo sonho ou projeto de
mundo, devemos usar possibilidades não apenas para falar da desejada utopia,
mas para participar de práticas com ela coerentes, como seres
118
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.117-30, jan/jun 2006
ESTRATÉGIAS DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE E A FORMAÇÃO...
transformadores. Considerando, ainda, que as pessoas, quando sujeitos de seu
aprendizado, identificam seus problemas e tornam-se capazes de intervir,
buscando as possíveis soluções, uma adequada prática de Educação em Saúde
corrobora o sentido de ampliação da autonomia no cuidado e na promoção da
saúde.
Entendemos que educar deve ser um processo de desenvolvimento e
capacitação para um interagir consigo mesmo e com o mundo. E, neste
sentido, encontramos em Freire (1998; 2001) fundamentação para a
concepção de Educação em Saúde na perspectiva antropológica, pois ressalta
que todo ato educativo deve tornar o homem capaz de refletir sobre sua
realidade e intervir ao criar um mundo próprio. Esta criação passa a ser
entendida como cultura, não no sentido estático, mas como um ato de (re)
criação, tendo em vista a transformação e/ou adaptação. Assim, as pessoas
refletem, recriam e assumem atitudes conducentes à saúde.
Atualmente, com a noção ampliada de saúde, observamos diversos modelos
ou paradigmas de educação em saúde. Porém, muitas práticas ainda preservam
o modelo reducionista - numa visão biologicista -, o que requer
questionamentos e alcance de perspectivas mais integradas e participativas.
Uma educação em saúde ampliada pauta-se em ações para além do tratamento
clínico e curativo, assim como propostas pedagógicas libertadoras,
comprometidas com o desenvolvimento da solidariedade e da cidadania e,
conseqüentemente, melhoria da qualidade de vida e da promoção do homem
(Shall & Struchiner, 1999).
Com base nessas perspectivas, afirmamos ser esta a concepção de educação
em saúde que deve ser desenvolvida no campo da saúde e, especialmente, na
pediatria, pois traz possibilidades de superação das estruturas hoje
dominantes, de fragmentação e distanciamento, para integrar idéias e ações
com objetivo de melhorar a saúde e a qualidade de vida da criança, proposta
principal da atenção integral à saúde da infância. É preciso entender ainda
que, no cuidado à saúde da criança, as ações devem ser compartilhadas entre o
profissional e a mãe ou responsáveis. O conhecimento profissional poderá ser
assimilado pelas famílias, se colocado de maneira compreensiva e numa
linguagem coerente com cada cultura. Há de se entender, no entanto, que as
famílias preservam, de certa forma, seu modo de cuidar conforme aprendido
em seu meio cultural (Queiroz, 1998) e isto é legítimo.
É necessário conhecer significados, expressões e estruturas que mediatizam
a vida e a saúde das pessoas de quem cuidamos. Este conhecimento terá
impacto sobre a Educação em Saúde e consubstanciará as práticas de cuidado
com a criança. Indubitavelmente, as ações aprendidas para o cuidado são
efetivadas por meio da confiança e do vínculo estabelecido entre usuários e
profissionais. Estes pressupostos são considerados indispensáveis no
desenvolvimento da prática educativa com participação, atendendo alguns
princípios educativos, ou seja, que as pessoas, no caso, as crianças e as famílias,
assumam seu cuidado, tornando-se capazes de trocar idéias e opiniões sobre
suas práticas, como meio de validar, adaptar ou modificar formas aceitáveis e
benéficas de cuidados à saúde.
Vários motivos nos impulsionaram à elaboração desta pesquisa, tais como:
vivenciar na assistência situações de distanciamento na relação da equipe de
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saúde com as mães/famílias e as dificuldades destas em compreender a
linguagem do profissional durante a prática educativa. Esse distanciamento
acontece por diversos motivos, incluindo as divergências culturais, que
dificultam às famílias a apreensão do conhecimento e, conseqüentemente, o
aprimoramento das práticas de cuidado com a saúde dos filhos valendo-se dos
ensinamentos profissionais.
Com base no contexto abordado, consideramos relevante conhecer o
pensamento dos profissionais da área pediátrica, relativamente à Educação em
Saúde, destacando o aspecto da relação/comunicação e da formação de
vínculos entre profissionais e usuários. Pretendemos contribuir com a
compreensão dos profissionais sobre o significado e as dimensões estratégicas
da prática educativa no cuidado infantil, para que possam valorizar as
propostas da Educação em Saúde, pois são idéias compartilhadas com os
sujeitos da pesquisa e que podem ser dimensionadas no campo das práticas,
de modo a qualificar as ações educativas na área infantil.
A pesquisa baseou-se em reflexões que conduziram aos questionamentos
articulados aos seguintes objetivos: compreender o significado da prática
educativa na formação do vínculo entre os usuários, a equipe pediátrica e os
serviços de saúde.
Delineamento metodológico
O estudo constitui uma abordagem interpretativo-analítica sobre o
pensamento e as atitudes dos profissionais em relação à Educação em Saúde
no cuidado infantil, configurando uma investigação qualitativa segundo os
pressupostos da etnografia, de Geertz (2001; 2000; 1989) e do Discurso do
Sujeito Coletivo (DSC), de Lefèvre et al. (2000).
A etnografia é um método de pesquisa que faz a descrição de determinada
cultura em um contexto social, com o objetivo de compreender o tema
estudado na perspectiva dos participantes (Hammersley & Atkinson, 1994).
Segundo Geertz (1989, p.27), a etnografia trata de “descrever a cultura de
forma inteligível, o universo do discurso humano, visto em um contexto
social, articulando-o a outras categorias próprias da ação humana”. Desse
modo, deve-se atentar para o comportamento, pois é por meio dele, ou mais
precisamente da ação social, que as formas culturais encontram articulação. O
autor reforça que todo agrupamento de pessoas cria uma cultura que orienta
a visão de mundo dos seus membros e a forma pela qual eles estruturam suas
experiências.
Nesta pesquisa, utilizamos a abordagem etnográfica e o DSC. Este, como
um modo de organização e análise dos dados, intermediou a apreensão das
expressões dos sujeitos envolvidos, por meio dos discursos verbais emitidos.
Para a formação do DSC, são utilizadas figuras metodológicas, resultantes da
organização dos discursos, como condições necessárias para a análise e a
interpretação dos achados. Os sujeitos pesquisados detêm o conhecimento e o
conjunto dos discursos correspondentes a uma das descrições possíveis do
imaginário social aplicável ao tema que se está pesquisando (Lefèvre et al.,
2000).
Seguindo a orientação dos autores mencionados, destacamos na pesquisa a
figura da idéia central, entendida como a(as) afirmação(ões) que permite(m)
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ESTRATÉGIAS DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE E A FORMAÇÃO...
traduzir o essencial do conteúdo discursivo apresentado pelos sujeitos em seus
depoimentos. Com a idéia central, elaboramos o discurso do sujeito coletivo,
que é o discurso-síntese representado coletivamente e que revela a diversidade
de sentidos individuais manifestados por todos.
O campo da pesquisa foi um hospital público do Sistema Único de Saúde, na
cidade de Fortaleza - Ceará - Brasil, realizada no Ambulatório de Pediatria e no
Núcleo de Aleitamento Materno (NAM) dessa unidade de saúde. A escolha dos
informantes-chave foi feita de modo intencional, obedecendo a critérios que
atendessem a especificidade da temática. Foram escolhidas cinco médicas e três
enfermeiras, que se dispuseram a contribuir e constituíam o perfil de sujeitos
envolvidos no cuidado e nas práticas de educação em saúde nesse ambiente de
cuidado infantil. Procuramos respeitar os aspectos éticos relacionados à
instituição e aos sujeitos da pesquisa. O projeto foi aprovado pela Comissão de
Ética na Pesquisa em Saúde da instituição; os informantes ficaram cientes do
termo de compromisso de ambas as partes (pesquisadores e pesquisandos) e
assinaram o termo de consentimento informado. A pesquisa cumpriu as
determinações da Resolução nº 196/96, que regulamenta as pesquisas
envolvendo seres humanos (Brasil, 1996).
A coleta de dados se deu pela observação livre e pela técnica de entrevista
gravada. As observações permitiram conhecer as atividades no campo da
Educação em Saúde e o modo como os profissionais envolvem a família nesse
processo. As entrevistas foram norteadas pelos seguintes questionamentos: de
que modo você integra o saber das famílias de crianças que procuram os
serviços de saúde com o saber oriundo da sua formação profissional? Quais
idéias são consideradas na sua prática para a formação do vínculo entre os
usuários e a equipe pediátrica/serviços de saúde na relação de cuidar e educar
em saúde?
A análise das informações iniciou-se com a leitura atenta das entrevistas,
seguida da codificação dos conteúdos e organização das unidades de sentido
que se relacionavam aos objetivos da pesquisa. Seguindo a orientação
metodológica do referencial sobre o DSC, estabelecemos as temáticas
ilustrativas das idéias centrais. As referidas temáticas foram: o diálogo com
respeito à linguagem e às experiências como forma de cuidar e
ensinar e o vínculo e a confiança como construtos no processo de
cuidar e ensinar.
(Re)construção dos discursos dos profissionais e compreensão da
realidade
Além de cumprir um processo de pesquisa e uma dinâmica investigativa
coerentes com a teoria e os passos metodológicos escolhidos, foram reunidas
histórias e vivências da prática de ensinar e aprender a cuidar da criança,
representadas nas temáticas ilustrativas, que servem à recomposição crítica,
reflexiva e transformadora do cotidiano em pediatria e puericultura como
práticas essencialmente educativas.
Diálogo no contexto da linguagem e das experiências como forma
de cuidar e ensinar
Nesta categoria de análise, os discursos dos sujeitos da pesquisa permitiram
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QUEIROZ, M. V.; JORGE, M. S.
perceber os elementos que constituem a prática integrada do cuidar e do
ensinar, pois, falar de um implicava incluir o outro com suas características
próprias. Permeando essa díade, tivemos a comunicação e suas nuanças, tema
que apareceu no contexto da linguagem, das experiências e no resgate ao
conhecimento do outro, em interface com a cultura. Estas idéias estão
apresentadas na idéia central da temática, formada do recorte das entrevistas.
Idéia Central: Para fazer educação em saúde, é preciso manter uma
comunicação adequada com a mãe (ou responsável), conhecer e respeitar a
linguagem, as experiências pessoais e sua cultura, acompanhando a
aprendizagem e percebendo os comportamentos adotados no cuidado com a
criança; é, também, necessário capacitar os profissionais.
DSC: A população [que assistimos] é humilde e tem baixa escolaridade; é
preciso o diálogo numa linguagem não-científica, conhecer a realidade da
família, orientar de forma que entenda e devolva o que aprendeu, de acordo
com sua cultura, respeitando cada pessoa humana em sua sensibilidade e suas
crenças, valorizando o que já sabem, sua experiência pessoal, sem gerar
conflitos, não impondo, deixando as mães à vontade, inclusive, para que não
criem resistências. O respeito à cultura é difícil, pois há muitas idéias
arraigadas. O profissional deve acompanhar o que foi ensinado, vendo se
ocorreu aprendizagem pela devolução e pelo comportamento das mães, deve
informar sobre riscos e fazê-las pensar. A aprendizagem ocorre pela troca de
experiências das mães entre si e com a equipe. A equipe, demonstrando como
se faz, e a mãe, devolvendo o que foi ensinado. Quando a mãe devolve,
significa que teve assimilação. Devemos questionar sobre suas experiências,
pois ela aprende a cuidar com o tempo e, então, segue as recomendações.
Muitas têm dificuldades, mas retornam ao NAM amamentando. Nós
[enfermeiras] somos mais acessíveis, mas os médicos têm mais dificuldades de
falar no nível de compreensão da mãe. É preciso capacitar os profissionais.
É possível apreender, a partir do DSC, que os entrevistados dão relevância
ao conhecimento da realidade que envolve os sujeitos, alvo da aprendizagem,
bem como a adequação da linguagem a ser utilizada na comunicação entre
profissionais e usuários. Utilizando nossas observações empíricas, podemos
confrontar esses discursos com algumas situações nas quais o profissional tem
dificuldade de realizar uma prática educativa coerente com esses discursos.
Percebemos posturas incorporadas na relação educador-educando em que este
recebe os conhecimentos advindos do saber profissional passivamente, sem
questionar, inclusive, as dúvidas. Enquanto o profissional repassa os
conhecimentos da sua maneira (científica), sem, às vezes, refletir sobre o que
a pessoa entendeu ou apreendeu de tudo que foi repassado. Embora muitos já
conheçam que este modelo tradicional não surte o efeito desejado, continuam
agindo assim. Para muitos profissionais, educar em saúde é levar à população a
compreensão e as soluções consideradas corretas, da forma como sabe o
profissional.
Tal atitude permite uma análise crítica sobre as condições em que se dá a
Educação em Saúde, assim como os diversos fatores a influenciar os
pensamentos e as ações profissionais.
Várias são as considerações feitas para se entender a complexidade desse
fenômeno em suas diferentes possibilidades. A linguagem é um dos aspectos
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ESTRATÉGIAS DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE E A FORMAÇÃO...
relevantes na experiência de cuidar e ensinar. Ela faz parte das incertezas e
dificuldades na efetivação da aprendizagem, assunto destacado no DSC, o qual
aponta também as experiências das mulheres no processo de cuidar dos filhos.
Para compreender a associação entre a linguagem, as experiências e a
construção do conhecimento, podemos recorrer ao pensamento de Berger &
Luckman (2001, p.57), que destacam a linguagem como importante sistema
de sinais da sociedade humana para compreender a realidade. Por meio da
linguagem, participamos da vida de nossos semelhantes, principalmente na
situação face a face. A linguagem comunica significados e “é capaz de se
tornar o repositório objetivo de vastas acumulações de significados e
experiências”. Essa representação da linguagem na vida cotidiana, na
transmissão do conhecimento é entendida por muitos autores como cultura.
A cultura, para Geertz (1989, p.21), é um sistema simbólico e pode ser
vista nas estruturas expressas e nos princípios ideológicos ou, mais
precisamente, no comportamento das coletividades. É por meio do
comportamento, das ações sociais, que as formas culturais encontram
articulação. Segundo o autor, o ser humano vive em função do sistema
simbólico que cria e recria e dá sentido às suas ações. Assim, podemos
entender que as concepções de Educação em Saúde, abordadas pelos
profissionais, envolvem o sistema cultural a ser valorizado na prática. Há,
portanto, necessidade de serem considerados dois sistemas culturais - o
profissional e o familiar - os quais mostram condutas universais e condutas
diferenciadas mediante o comportamento e a linguagem como modos de
expressão cultural, ou seja, a variação simbólica inscrita no modo de viver
desses grupos (usuários e profissionais).
Tais discussões nos remetem ao propósito reflexivo da linguagem. Nesse
momento do diálogo, é possível elaborar idéias, recuperando, no pensamento,
aspectos já conhecidos e estruturando-os em termos de interesses e
conveniências. Torna-se relevante incentivar o interesse da mãe (ou
responsáveis) em cuidar do filho (da criança), reavendo o conhecimento do
que já sabe, despertando-a para novas experiências no aprimoramento do
“saber cuidar do filho”. No pensamento dos profissionais entrevistados,
“ensinar o que já sabem e o que não sabem”, corroborando, ainda, as idéias
de Berger & Luckmann (2001, p.66), ao acentuarem que nossos interesses
pragmáticos imediatos determinam algumas dessas conveniências, enquanto
outras são determinadas por nossa situação geral na sociedade. Considera-se,
ainda, que nossas estruturas de conveniência cruzam as estruturas de
conveniência dos outros. Por isso, encontramos muitos pontos
“interessantes” em comum com outras pessoas de nossa convivência. Assim,
podemos pensar no encontro de interesses e conveniências de ambos (famílias
e profissionais) em relação à saúde da criança e obter maior êxito nas ações
destinadas a esse fim.
Para o profissional ter acesso às experiências e ao conhecimento das mães
(ou responsáveis), faz-se necessário escutar, deixar o pensamento fluir
espontaneamente, ou seja, voltar a atenção e a reflexão para o que é
comunicado. Nesse sentido, sobressai a idéia de ser a linguagem uma das
formas mais comuns de tradução do pensamento. E, como explica Geertz
(2001, p.30-1), “o pensamento é conduta e deve ser tratado como tal”. Para
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QUEIROZ, M. V.; JORGE, M. S.
o autor, “as conseqüências do pensamento refletem, inevitavelmente, a
qualidade do tipo de situação humana em que foram produzidas”.
Tal situação, comentada em relação à postura profissional, corresponde à
maneira adequada do profissional agir para motivar a mãe a falar, facilitando o
entendimento com vistas a aprender o que foi ensinado. Uma posição
contrária produz relacionamento hostil, indiferente, e não manifestações
adequadas ao ato de ensinar e aprender. Conseqüentemente, não haverá
aproximação intersubjetiva nem troca de saberes capaz de favorecer mudanças
e/ou adequações na maneira de cuidar da criança.
No ambiente desta pesquisa, houve momentos da prática educativa em
grupos, quando se reuniam várias mães no NAM e no Ambulatório de
Pediatria e formavam-se grupos de interesses, algumas delas ainda no
puerpério imediato, outras vindas de casa com destino a uma consulta para o
filho doente. No NAM, os objetivos de repassar conhecimentos sobre cuidados
com a criança consistem, principalmente, do desenvolvimento de atitudes para
a prática da amamentação. As questões envolvidas no processo educativo são
destacadas, principalmente, nos relatos dessas mulheres sobre as dificuldades
encontradas no cuidado com o filho e na revelação de sentimentos e
preocupações com o estado de saúde da criança. Trata-se de experiências
trocadas entre as mães (participantes do grupo), facilitadas pelas profissionais
que ali estavam, motivando, explicando e apoiando cada mãe que se
manifestava por meio de palavras ou gestos em relação ao cuidado do filho.
No Ambulatório de Pediatria, a prática de Educação em Saúde é direcionada,
quase exclusivamente, aos cuidados relativos à medicação prescrita, pois
inexiste qualquer ação planejada junto aos usuários do setor. Nesse serviço,
percebemos, ainda, a necessidade de integração com os diversos setores de
atendimento à criança. Essa falta de integração mostrava-se claramente no
movimento das mães, na dificuldade do atendimento e na falta de
acolhimento por parte dos profissionais, portanto, o atendimento da criança
não era facilitado, o que causava tumulto e insatisfação por parte das mães e/
ou dos pais que acompanhavam seus filhos.
Estas foram situações reais da prática assistencial nas quais as ações
educativas se tornam ausentes, embora no discurso dos profissionais elas
estejam presentes, configuradas como repasse de informações e orientações
para os cuidados com a doença e o tratamento da criança, sem uma conotação
mais adequada sobre a essência da Educação em Saúde.
As estratégias de Educação em Saúde com propósitos definidos devem ter
espírito lúdico, compromisso social e, assim, permitir o convívio e interações
enriquecedoras entre os participantes. Portanto, devem ser planejadas e
executadas de acordo com a condição do serviço e as necessidades levantadas
com o grupo de usuários, colaborando na busca de experiências de
aprendizagem e reflexão acerca das questões de saúde, respeitando os valores e
as experiências dos sujeitos envolvidos no processo.
O DSC elaborado pelos profissionais apresenta, sutilmente, essa atitude
que ajuda a solidificar o potencial de cada participante, possibilitando uma
atividade de assistência em caráter socioeducativo. Suas declarações
envolveram, ainda, as estratégias utilizadas com vistas à aprendizagem da mãe
(ou dos responsáveis), as quais não estão distantes das idéias defendidas pelos
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ESTRATÉGIAS DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE E A FORMAÇÃO...
educadores em relação ao ensino-aprendizagem, em que se lança mão da
linguagem e das experiências do educando, tornando o ato de aprender um
momento real da vida de cada um. Nesse sentido, segundo os entrevistados, a
comunicação deve ser eficiente “para que as palavras não fiquem no ar”, sem
relação com interesses concretos. Nesse discurso há reconhecimento de que,
para ocorrer aprendizagem, o conteúdo a ser transmitido deve estar conectado
com a realidade dos sujeitos a quem se destina. Então, o profissional deve
acompanhar o processo de aprendizagem, dar oportunidade de
desenvolvimento do conteúdo ensinado, por meio de sua devolução, onde os
resultados podem ser demonstrados pelos comportamentos assumidos
mediante o que foi ensinado. Sem dúvida, é na convivência e mantendo
diálogo com a mãe (ou responsáveis), captando as atitudes demonstradas por
gestos e palavras, que se perceberá o entendimento dela (dos responsáveis)
em relação ao cuidado com a criança, embora muitas situações sobre esse
cuidado só aconteçam no ambiente privado do domicílio. Uma conversa
espontânea e confiante trará informações relevantes para o profissional
decidir, junto ao responsável pela criança, como fazer melhor pela sua saúde.
Na prática de Educação em Saúde, significa oportunidade de conhecer mais
as pessoas, seus contextos e sua linguagem. Certamente, esta ação realizada
em um grupo de mães interessadas com a saúde do filho, trará uma
participação de modo a obter conhecimentos para desenvolver habilidades e
atitudes favoráveis à saúde da criança. Nesse caso, deve-se facilitar a
participação das mães e o entendimento sobre a maneira de cuidar coerente
com a realidade dos sujeitos. Nesse sentido, é indispensável utilizar uma
linguagem simples e compreensiva, denotando o inestimável respeito à
cultura, expressa essencialmente por meio da linguagem.
É preciso dar atenção a esse mundo cotidiano das mulheres-mães,
representado pela linguagem do cotidiano, rica em significados. As mulheres
que trazem os filhos aos serviços de saúde expressam, nos gestos, além do que
está nas palavras, sua condição de vida, implicitamente. Além da doença física,
um mundo de relações a repercutir no processo saúde-doença. Assim, a
comunicação não pode ser linear e atemporal, porquanto deve haver a leitura
de suas expressões, considerando-se, ainda, o contexto em que se dão os
acontecimentos. Essa dimensão sobre o ser no mundo remete ao
entendimento sobre cultura que, na leitura de Geertz (2001; 1989), está na
mente e no coração de cada um.
Conforme expressaram os profissionais, o desrespeito aos aspectos culturais
da mãe pode trazer resistência e indiferença ao que foi ensinado. Na relação
cuidar-educar, se for desconsiderada a cultura dos usuários, é possível não se
atingir os objetivos previstos nesta ação, pois haverá conflito de idéias pelas
maneiras variadas de pensar a realidade, levando à indiferença ou à resistência
aos modos de pensar de outras culturas. Observar e entender a cultura do
outro, tanto no cuidado como nas ações educativas, é uma necessidade,
porquanto observação e entendimento fazem parte da ação profissional.
Assim, não podemos desconsiderar a Educação em Saúde quando cuidamos ou
ensinamos a cuidar.
A experiência de cuidar articulada com a Educação em Saúde deve ocorrer
com base na interpretação da cultura. O profissional que articula esse
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QUEIROZ, M. V.; JORGE, M. S.
conhecimento, isto é, que busca informações, observa e procura entender o
significado das palavras no contexto cultural, dispõe de instrumentos
essenciais capazes de conduzir sua “ação educativa”. Conforme expresso nas
entrevistas, “de acordo com a cultura”, sendo possível não originar conflitos
ou imposições, prevenindo resistências. Este aspecto foi ressaltado pelos
entrevistados, os quais reforçaram a idéia de valorizar as experiências,
respeitar o saber constituído e a cultura. Tal atitude é reconhecida pela
Antropologia Cultural como coerente e humanística, pois evita o conflito de
idéias e a imposição do profissional.
Vínculo e confiança como construtos no processo de cuidar e
ensinar
Esta categoria, construída com base nos discursos dos profissionais, mostra
a idéia de formação de vínculo e confiança intermediada pelo processo
comunicativo imbricado nas relações interpessoais entre usuário e profissional
da área pediátrica. Demonstra, pois, que cuidar-ensinar requer, antes de tudo,
a aproximação entre usuários e profissionais para que ambos se conheçam e
desenvolvam entre si confiança e vínculo observáveis durante as interações. Na
elaboração do DSC, estes aspectos são ressaltados como condição essencial de
efetivação das ações educativas para o cuidado à saúde.
Idéia central: devemos apoiar a mãe, informando-a e tranqüilizando-a
sobre a condição de saúde de seu filho, procurando entendê-la nas suas
condições; passar confiança e coragem, formando vínculo, pois muitas gostam
do atendimento e o continuam, mesmo com dificuldades financeiras.
DSC: [Na prática de Educação em saúde] é preciso ter uma relação de
confiança, conversar com cada mãe, sensibilizá-la e aos familiares, mostrando o
ganho de peso, a curva de crescimento, a amamentação, passando confiança e
ajudando-a a entender [...] Algumas não compreendem e não falam por
vergonha, então, devemos falar e perguntar de outra maneira, sermos
acessíveis para que nos entendam. Ao mandarmos voltar com a criança, ela vai
se acostumando e aprende a confiar. O retorno dela ajuda a tranqüilizá-la
sobre a condição da criança e a não abandonar a amamentação. Só se consegue
educar com o tempo. A informação é dada, mas é difícil saber se houve fixação
se não tivermos o retorno da mãe. Procuramos convencê-la a retornar com a
criança. Muitas gostam do atendimento e continuam, mesmo com
dificuldades financeiras, pois, mantêm a confiança no serviço e nos
profissionais.
Recuperando o DSC para enfocar os aspectos educativos envolvendo os
profissionais da área infantil e as mães (ou responsáveis) que procuram os
serviços de saúde, percebemos que os informantes transmitem a idéia de que
cuidar e ensinar estão conjugados numa dinâmica elaborada por meio do
vínculo e da confiança, atributos às vezes invisíveis ou adormecidos diante de
uma prática mecanizada, rotinizada e normatizadora. Na área pediátrica,
principalmente, somos invocados a perceber, a ter sensibilidade e a responder
aos apelos surgidos nos cuidados com a saúde da criança, a envolver também a
família.
Esta sensibilidade se transforma em ação quando somos capazes de escutar,
interagir de forma afetiva e pensar nos resultados deste empreendimento
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ESTRATÉGIAS DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE E A FORMAÇÃO...
indispensável à existência humana; agir integrando virtudes de uma ação e de
um fazer com predomínio da razão sensível, estabelecendo maneiras de reaver
os direitos dos usuários, cultivando uma relação humanizada.
Na prática, podemos entender tais estratégias como simples, pois não
requerem o uso de tecnologias avançadas; envolvem o entendimento do ser
humano em suas condições de sobrevivência, numa busca por atenção e
cuidados que podem ser dispensados de variadas formas. O desvelamento das
necessidades da criança em relação à sua saúde e a própria condição de ajudar a
mãe (ou responsável) a promover o cuidado podem ocorrer na interação, na
conversa e na atenção individualizada, em que as subjetividades se encontram,
se descobrem e superam o jogo de normas e relacionamentos indiferentes a
permear as instituições de saúde. Nas palavras de Faria (1996), este é um
aspecto a ser superado pelos profissionais, pois estão presos a uma rede
organizativa cada vez mais burocratizada e, em conseqüência, há menos
espaços de comunicação, impedindo aos usuários a codificação e decodificação
das mensagens provenientes do sistema de saúde. Mesmo as ações com caráter
preventivo, ações educativas no âmbito da assistência, tornam-se um jogo
simulado, nem sempre aceitável pelos usuários por serem momentos rápidos
e, às vezes, fora dos contextos em que vivem as pessoas.
Em situações da área pediátrica, segundo observamos, nem sempre a mãe
(ou responsável) age dentro das concepções profissionais. Às vezes, procura
meios de ajudar a criança conforme suas crenças, utilizando estratégias
realizáveis dentro da sua possibilidade, utilizando-se da astúcia e do jogo
duplo, pois, para o profissional, ela confirma a possibilidade de cumprir
receitas, embora em alguns momentos negue o afirmado. Assim, é preciso
considerar tais aspectos no sentido de amenizar contradições entre o esperado
pelo profissional e o realizado pela mãe (ou responsável). Como sabemos, as
concepções profissionais muitas vezes divergem do entendimento das mães
(ou responsáveis), pois os saberes e as vivências são constituídos em contextos
diferentes.
Nos discursos, ficou evidente que o despertar da mãe para o cuidado da
criança não depende somente das informações/orientações dadas e recebidas; é
preciso sentir-se segura, valorizada em sua singularidade. Significa, para o
profissional, acompanhar o que foi ensinado e tranqüilizá-la para ter confiança
em si e nos profissionais, atitudes que não se concretizarão em um único e
rápido contato. O vínculo formado entre usuários e profissionais ocorrerá nos
sucessivos contatos, respeitando-se a individualidade de cada mãe ao longo das
interações. Dessa maneira, serão estabelecidos a confiança e o vínculo por
meio de uma equipe voltada para o “acolhimento” em defesa da saúde
infantil.
Ao tratar dessas prerrogativas na saúde, Costa (2001) acentua que a
efetivação do trabalho vivo em ato, na saúde, se exprime como processo de
produção de uma relação intermediada pelo encontro entre os usuários e os
trabalhadores de saúde, e vice-versa. É neste encontro que são expressos os
componentes vitais, que transpõem os saberes tecnológicos estruturados, aí
incluídos o acolhimento e o vínculo.
Atualmente, as ações de acolhimento e vínculo passam a ser prerrogativas
do SUS na efetivação dos princípios e diretrizes deste sistema, o qual integra,
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também, a humanização da assistência à saúde. Segundo Vasconcelos (1999),
a Educação em Saúde é o campo de práticas e de conhecimentos do setor da
saúde que tem se ocupado mais diretamente da criação de vínculos entre a
ação, o pensar e o fazer cotidiano da população. Essa idéia favorece a efetivação
das ações no campo da Educação em Saúde, e contribui para a transformação
da prática, ampliando-se a visão para as dimensões além do corpo doente,
recuperando os valores pessoais e a singularidade, e fazendo, mesmo a passos
lentos, a humanização dos serviços de saúde em favor da vida – proposta
claramente justificada nas ações de Educação em Saúde.
A cada relacionamento positivo aumentam as possibilidades da formação de
vínculo e confiança dos usuários com os profissionais e com a instituição,
resultando maior eficácia das ações consideradas assistenciais e educativas. A
experiência do profissional e o interesse de que a mãe (ou responsável)
aprenda e cuide bem do seu filho são elementos a subsidiar uma prática
coerente, capaz de transformar-se em ação inovadora. Este entendimento
parte da concepção de alguns profissionais que expuseram suas idéias a
respeito do assunto. Segundo os discursos dos informantes desta pesquisa,
quando as mães (ou responsáveis) são orientadas, quando têm mais contatos
com os profissionais, dificilmente deixam de retornar ao serviço para
acompanhamento da criança. Esse fato é gratificante, pois a cultura
predominante é aquela em que as pessoas procuram os serviços somente
quando as crianças estão doentes, desvalorizando o acompanhamento da
criança no seu crescimento e desenvolvimento, independentemente de estar
doente, ou seja, o serviço de puericultura.
O vínculo e a confiança formados nos contatos dos profissionais com as
mães e, principalmente, quando são freqüentes e harmonizantes, vêm
garantir a adesão destas aos ensinamentos e às experiências positivas no
cuidado da criança. Essa atitude deve ser um estímulo a todos os que cuidam,
que reconhecem o direito dos usuários de saúde, não apenas aos cuidados com
a doença quando já instalada, mas no direito a opções na promoção da saúde
e, conseqüentemente, na qualidade de vida. Cabe às instituições de saúde se
organizarem para efetivar procedimentos técnicos e humanizados, com a
garantia de igualdade na atenção, acesso aos serviços de que necessita cada
pessoa e qualidade no cuidado ofertado, o que vai resultar em vínculo e
confiança dos usuários com os profissionais e a instituição.
Considerações do estudo
Levando em conta as questões principais do estudo, foi possível apreendermos
parte do imaginário dos profissionais em relação às estratégias de Educação
em Saúde e os elementos que contribuem para a formação de vínculos dos
usuários com os profissionais e as instituições de saúde. Foi evidenciado nos
discursos o fato de a Educação em Saúde ser norteadora do cuidado infantil a
oferecer e o fato de se constituir em suporte às famílias para o aprimoramento
do cuidado com a criança. Todavia, para que esta ação seja otimizada, é
necessário enfatizar o processo relacional, o conhecimento e o respeito às
condições da mãe (ou responsável) e a sensibilidade da equipe pediátrica para
desenvolver tal atitude.
Na prática, a Educação em Saúde predominante ainda é centrada no saber
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ESTRATÉGIAS DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE E A FORMAÇÃO...
dos profissionais. Mesmo tendo sido destacados, nos depoimentos, aspectos
diferentes no desenvolvimento desse processo, algumas idéias e posturas
profissionais revelaram o não-dito sobre o paradigma dominante que permeia
as ações de Educação em Saúde. Este indicativo é o ponto fundamental a ser
refletido, pois evidencia distanciamento, contrariando as necessidades dos
usuários (criança/família) e as possibilidades de acesso e vínculo aos serviços,
de forma que as mães (ou responsáveis) possam participar ativamente dos
cuidados com a saúde do filho (da criança).
Diante de tal postura profissional, estamos cientes de que é necessário
rever práticas educativas, com possibilidades de diálogo e escuta sensível sobre
as manifestações dos sujeitos responsáveis pelos cuidados com a saúde da
criança, facilitando a formação de vínculos e de confiança entre os usuários e
os serviços de saúde. Tal fato contribuirá na promoção da saúde infantil, pois a
família terá maior disposição e crença na resolubilidade dos seus problemas de
saúde.
Compreender esse complexo e, principalmente, incorporar atitudes
favoráveis ao processo de cuidar e ensinar pressupõem o empreendimento de
aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser,
conforme recomenda a Unesco às práticas de educação e ensino. Esses são fios
que tecem e garantem todo o sistema de sobrevida humana e envolvem
sobremodo a ação educativa de um modo geral.
Vale ressaltar que estas idéias são recortes de uma realidade
multidimensional, conflituosa e dinâmica, portanto, em decurso de
elaboração, mas tais noções trazem em si reflexões que podem contribuir para
mudanças e devem ser acrescidas de outras experiências no campo da pesquisa.
Referências
BERGER, L. P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. 20.ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
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profesionales. Interface - Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10, n.19, p.117-30, jan/jun
2006.
Estudio analítico e interpretativo, cuyo objetivo fue comprender el significado de la
práctica educativa en la formación del vínculo entre los usuarios, el equipo pediátrico y
los servicios de salud. Está fundamentado en presupuestos de la Antropología Cultural,
ha sido utilizada la entrevista semiestructurada con ocho profesionales del área. Las
expresiones de los profesionales señalaron los puntos de convergencia, representando el
imaginario social sobre esta actividad profesional expresa en las temáticas diálogo con
respecto al lenguaje y a las experiencias como forma de cuidar y enseñar, y vínculo y
confianza como constructores del proceso de cuidar y enseñar. Los resultados
destacaron que en la Educación en Salud intervienen aspectos de la comunicación y de la
relación interpersonal como respeto a la cultura de las familias y, así, propicia la
aproximación del profesional con la familia y la formación de vínculo y confianza,
permitiendo mejorar aspectos de la salud y de la calidad de vida del niño, justificando el
incentivo a tales actitudes y a la creación de espacios para la discusión y aprendizaje de
ese proceso.
PALABRAS CLAVE: pediatría. educación en salud. promoción de la salud. familia. cultura.
Recebido em: 15/06/05. Aprovado em: 11/01/06.
130
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.117-30, jan/jun 2006
Educação em S
aúde na atenção médica ao
Saúde
rogr
ama
paciente com hiper
tensão ar
terial no P
arterial
Progr
rograma
hipertensão
Saúde da F
amília*
Família
Vânia Sampaio Alves 1
Mônica de Oliveira Nunes 2
ALVES, V. S.; NUNES, M. O. Health education in connection with medical attention to hypertensive patients in
the family health program. Interface - Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10, n.19, p.131-47, jan/jun 2006.
Of the many contexts in which health education actions are conducted, the present work focused on medical
consultations. Aiming to identify and characterize these actions within medical attention, the transcripts of fifty
consultations with hypertensive patients, conducted by ten family health physicians in three municipalities of
the State of Bahia, were analyzed. The results show that consultations are conducted in a way that emphasizes
both medicalization and hypertension control. The patient’s narrative is inhibited or interrupted by the
physician’s narrative, medical attention remaining restricted to individual symptoms, with no grasp of the
psycho-social and cultural dimensions of the health-illness-care process. In most of the consultations, the
educational action is secondary and superficial, leading to prescriptive recommendations. However, one of the
physicians appeared to have a different approach, which points to the possibility of a type of medical attention
based on dialogue and on integrating biomedical and sociocultural aspects into healthcare.
KEY WORDS: health education. healer-patient relationship. family health program. hypertension.
Entre os muitos contextos de desenvolvimento da ação educativa em saúde, o presente trabalho privilegiou a
consulta médica. Com o objetivo de identificar e caracterizar essas ações na atenção médica, analisaram-se as
transcrições de cinqüenta consultas com pacientes hipertensos, realizadas por dez médicos de Saúde da Família
em três municípios baianos. Os resultados demonstram que a condução da consulta enfatiza a medicalização e
o controle da hipertensão. A narrativa do paciente é inibida ou interrompida pela narrativa do médico, com a
atenção médica circunscrevendo-se aos sintomas individuais, sem apreensão das dimensões psicossociais e
culturais do processo saúde-doença-cuidado. A ação educativa, na maior parte dessas consultas, apresenta-se
secundária e superficial, com recomendações prescritivas. Uma abordagem diferenciada foi identificada entre
um dos médicos, apontando para a possibilidade de uma atenção médica dialógica e integradora de aspectos
biomédicos e socioculturais ao cuidado.
PALAVRAS-CHAVE: educação em saúde. relação médico-paciente. programa saúde da família. hipertensão.
*
Elaborado a partir de Alves (2004).
Professora substituta, departamento de Saúde Coletiva I, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), Ba.
<[email protected]>
1
2
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, ISC/UFBA. <[email protected]>
1
Rua Clóvis Spinola, 40 - Edf. Aganju, ap. 202
Politeama - Salvador, Ba
Brasil - 40.080-241
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.131-47, jan/jun 2006
131
ALVES, V. S.; NUNES, M. O.
Introdução
Em conformidade com as responsabilidades e ações estratégicas prioritárias
da atenção básica, a Educação em Saúde figura entre as atribuições de todos
os profissionais que integram a equipe de Saúde da Família (Brasil, 2001;
1997). Além dos contextos convencionais de desenvolvimento da ação
educativa, como os grupos educativos organizados segundo necessidades de
saúde ou patologias específicas, espera-se que o contato cotidiano com os
usuários e a comunidade possa ser reconhecido pelos profissionais como
uma situação oportuna para o desenvolvimento desta ação.
Estudos empíricos – que abordam as concepções e práticas de Educação
em Saúde entre profissionais de centros de saúde convencionais (Machado,
1997; Pereira, 1993) e de equipes de Saúde da Família (Noronha et al.,
2004; Alves & Franco, 2003; Moura & Rodrigues, 2003; Franco, 2002;
Moura & Souza, 2002) – demonstram a reduzida freqüência com que as
ações educativas têm sido desenvolvidas no âmbito desses serviços,
particularmente as atividades coletivas. Um ponto de convergência entre
esses estudos refere-se à predominância das práticas de Educação em Saúde
orientadas pelo modelo hegemônico. De acordo com este modelo, uma
relação assimétrica e autoritária é estabelecida entre profissionais e
usuários. Estes são considerados carentes de informação em saúde ou
portadores de saberes equivocados, razão pela qual os profissionais,
orientados pelo conhecimento técnico-científico com status de verdade,
transmitem, para aqueles, conteúdos sobre comportamentos e hábitos para
uma vida saudável (Alves, 2005; 2004). Este modelo de prática educativa
contrasta com a possibilidade de construção compartilhada de
conhecimentos sobre o processo saúde-doença-cuidado, mediante uma
relação dialógica (Freire, 2003; 2002), e o desenvolvimento da autonomia
dos usuários. Ademais, a prescrição de formas de cuidado e atenção à saúde
configura uma ação impermeável às dimensões psicossociais e culturais das
concepções de saúde, doença e cuidado (Alves, 2005).
Outro ponto de convergência entre os estudos referidos diz respeito à
indicação que fazem os profissionais quanto à natureza da consulta como
um contexto de Educação em Saúde. A despeito deste reconhecimento, nos
estudos revisados, a consulta médica ainda não havia sido analisada como
um espaço educativo. Em razão desta lacuna identificada, o presente estudo
elegeu a consulta médica como unidade de análise, assumindo como
objetivo identificar e caracterizar ações de Educação em Saúde ao longo
dessas consultas no contexto do Programa Saúde da Família (PSF).
Dentre as ações cotidianas da equipe de Saúde da Família, o estudo
focalizou a atenção no paciente hipertenso. De acordo com as
recomendações do PSF, esta atenção deve ser iniciada pela busca ativa de
casos na comunidade, seja mediante visitas domiciliares ou rotina de
aferição da pressão arterial de usuários. A rotina de atenção a esses
pacientes prevê tanto o acompanhamento ambulatorial e domiciliar quanto
a assistência farmacêutica e a Educação em Saúde (Brasil, 2001).
Segundo relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2003), o
cuidado às condições crônicas tem se constituído um importante desafio
aos sistemas de saúde. Dentre as propostas inovadoras de cuidado, discute-
132
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.131-47, jan/jun 2006
EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA ATENÇÃO CLÍNICA ...
se a reorientação do modelo assistencial. A relevância das ações educativas
em saúde, em todas as interações estabelecidas entre os profissionais e os
usuários, é realçada, reconhecendo-se a centralidade que o paciente e sua
família devem ocupar na definição das estratégias de cuidado. Nesta
perspectiva, a presente análise da atenção médica ao paciente hipertenso
enfoca as interações e os processos comunicacionais estabelecidos entre o
profissional médico e o paciente no âmbito da consulta.
Este estudo foi
realizado a partir de
dados secundários
produzidos pelo
projeto de pesquisa “A
relação médicopaciente no Programa
Saúde da Família: uma
pesquisa-ação com as
equipes de saúde da
família do Ceará e da
Bahia”, desenvolvido
sob financiamento do
CNPq. O projeto do
presente estudo foi
submetido ao Comitê
de Ética em Pesquisa
do Instituto de Saúde
Coletiva (ISC/UFBA),
sendo por este
aprovado.
3
Metodologia
O estudo2 foi orientado pelos princípios da Etnometodologia (Coulon,
1995), sendo a consulta compreendida como um encontro intersubjetivo
entre médico e paciente. Nesta direção, privilegiou-se uma abordagem
metodológica que contemplasse a compreensão da ação educativa no seu
contexto de produção, salientando-se, deste modo, na análise das consultas,
as interações e os processos comunicacionais estabelecidos entre os sujeitos
participantes.
O corpus de análise foi constituído pelas transcrições literais de
cinqüenta consultas de pacientes hipertensos, conduzidas por dez médicos
atuantes em três municípios do Estado da Bahia: um da região do semiárido, outro da região litorânea e, o terceiro, da região metropolitana. A
observação e o registro das consultas em áudio realizaram-se mediante
consentimento informado de médicos e pacientes. A definição sobre o
número de consultas a ser analisado por profissional levou em consideração
o objetivo de aproximação com a rotina do médico na atenção ao paciente
hipertenso. Assim, cada profissional teve, em média, cinco consultas
analisadas.
A maioria das consultas foi conduzida por profissionais do município do
semi-árido (80%), que, na ocasião da coleta de dados, tinha como
característica proeminente a constituição de uma rede de serviços de saúde
integrada, favorecendo o acesso à média complexidade; e uma assistência
farmacêutica descentralizada, em que a medicação prescrita era entregue
pelo próprio médico durante a consulta – circunstância esta que permitia
ao profissional explicar mais detidamente sobre a sua posologia. Em
consultas a pacientes analfabetos, esses profissionais podiam recorrer – e,
freqüentemente, assim o faziam – às características da medicação para
distingui-las, a exemplo da cor da embalagem, formato ou cor dos
comprimidos. Nos municípios litorâneo e metropolitano, nos quais
observaram-se, respectivamente, 8% e 12% das consultas analisadas, as
realidades dos sistemas de saúde local eram muito semelhantes. A
referência e contra-referência não eram asseguradas em virtude da
desarticulação entre os serviços, e a assistência farmacêutica era
insuficiente. No município litorâneo, na ocasião de observação das
consultas, a farmácia municipal encontrava-se fechada e a distribuição de
medicamentos temporariamente suspensa; no município metropolitano,
vários medicamentos estavam em falta. Estas particularidades dos
contextos municipais repercutem na atenção ao paciente hipertenso e no
desenvolvimento da ação educativa ao longo da consulta médica.
A fase de constituição do corpus foi seguida por outras duas fases
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.131-47, jan/jun 2006
133
ALVES, V. S.; NUNES, M. O.
consecutivas e complementares: a análise descritiva da estrutura das
consultas e a análise interpretativa segundo categorias empíricas. A
descrição da estrutura das consultas possibilitou uma primeira
sistematização dos dados, descrevendo-se a interação entre o médico e o
paciente, bem como as ações desenvolvidas ao longo dos momentos da
consulta que, previamente, foram definidos como: a) anamnese e
investigação do problema de saúde; b) realização do exame físico; c)
definição do diagnóstico, com esclarecimento do problema de saúde; d)
definição do projeto terapêutico e de acompanhamento; e) ação educativa
em saúde.
Por meio da análise descritiva, pretendeu-se compreender o modelo de
atenção característico nas consultas. A não-assimilação de ações educativas
na consulta foi interpretada como um fenômeno característico do
predomínio do reducionismo do modelo biomédico, com ênfase na
medicalização e remissão de sintomas. Pressupondo-se que nem toda
consulta apresentaria o desenvolvimento de ações educativas, a análise
descritiva também teve o objetivo de tornar compreensível que fatores ou
circunstâncias favoreceriam ou dificultariam o desenvolvimento destas
ações na consulta médica do PSF.
Mediante uma interface entre os princípios do PSF, o campo da
antropologia médica e o campo da educação, foram definidas, para o
estudo, as seguintes categorias analíticas: integralidade da consulta,
modelos explicativos e ação educativa. Estas, por sua vez, foram
operacionalizadas mediante categorias empíricas correspondentes: a)
condução da consulta; b) narrativa do paciente/ família sobre o problema
de saúde e práticas de cuidado familiares; c) narrativa do médico sobre o
problema de saúde e definição do projeto terapêutico; d) processos
comunicacionais sobre o cuidado e a atenção à saúde.
Esta fase analítica, em complementaridade à anterior, buscou apreender
as racionalidades orientadoras da atenção médica, salientando os principais
temas abordados e assimilados à compreensão do processo saúde-doençacuidado dos pacientes. A integralidade da consulta estaria expressa numa
abordagem médica que contemplasse as necessidades de saúde e os
determinantes dos problemas referidos pelos pacientes (Camargo Júnior,
2003). Neste estudo, partiu-se do pressuposto de que a integralidade da
consulta constituiria uma condição favorável à assimilação da ação
educativa.
Outro objetivo dessa fase de análise foi a descrição e a interpretação do
processo comunicacional e dos modelos explicativos de médicos e pacientes.
Modelos explicativos consistem em explicações a um episódio de doença e
ao cuidado terapêutico considerado necessário, reveladas mediante as
narrativas dos sujeitos (Kleinman, 1980). Pressupôs-se que o encontro
entre diferentes modelos explicativos poderia configurar tanto uma
circunstância que dificultasse quanto favorecesse o desenvolvimento de
ações educativas. O desdobramento desse encontro foi objeto de análise
aprofundada, recorrendo-se, para tanto, a estratégias de análise de
conversação e da fala (Myers, 2003; Drew et al., 2001).
Por fim, essa fase teve o objetivo de descrever e caracterizar a ação
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.131-47, jan/jun 2006
EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA ATENÇÃO CLÍNICA ...
educativa, assim denominada por constituir mais uma ação dentre aquelas
realizadas pelo médico ao longo da consulta. Pretendendo-se apreender
uma compreensão ampliada de Educação em Saúde, a análise da ação
educativa foi realizada mediante a descrição dos processos comunicacionais
estabelecidos entre médico e paciente para a abordagem de temas relativos
à atenção e ao cuidado com a saúde.
Um limite do presente estudo decorre da natureza do próprio material
de análise. As observações das consultas foram pontuais, não sendo possível
apreender sobre a continuidade do processo educativo em consultas
subseqüentes com o mesmo paciente e em outros momentos interativos.
Também não se teve alcance sobre ações educativas realizadas em outros
contextos, tais como os grupos educativos e as visitas domiciliares, bem
como sobre as conseqüências dessas ações sobre o comportamento dos
pacientes e de suas famílias. Todavia, admite-se que a extensão do número
de consultas analisadas pode permitir algumas aproximações em razão da
diversidade de situações contempladas: consultas nas quais o médico revisa
com o paciente o projeto terapêutico definido em consulta anterior e
investiga se o paciente vem seguindo devidamente as recomendações
recebidas; consultas de pacientes que freqüentam grupos educativos;
consultas nas quais os pacientes declaram não-adesão às recomendações e
prescrições médicas, entre outras.
Resultados
A maioria dos pacientes com hipertensão, assistidos nas consultas
analisadas, era do sexo feminino (82%) e com mais de cincoenta anos de
idade (58%). A relação com a unidade de Saúde da Família caracterizava-se
pela continuidade da assistência, sendo que 72% dos pacientes haviam sido
atendidos em ocasião anterior à consulta analisada, seja pelo médico ou
outro profissional da equipe de saúde. Entretanto, esta continuidade não
representa necessariamente uma estabilidade do vínculo com o médico,
visto a rotatividade deste profissional nas equipes.
As consultas analisadas foram motivadas principalmente pela
hipertensão (62%) e a maioria dos pacientes encontrava-se com a pressão
arterial elevada (64%) no momento da consulta. A queixa relativa à
hipertensão incluía: observação de sintomas associados à elevação ou
“descontrole” da pressão, avaliação do efeito da medicação prescrita pelo
médico e efeitos colaterais por esta acarretados.
A maioria dos pacientes (80%) encontravam-se sob a prescrição médica
de anti-hipertensivo. Destes, 50% relataram o uso conforme a prescrição,
18% afirmaram haver descontinuado o uso por conta própria e 12%
referiram usar a medicação prescrita em desacordo com a orientação
médica, freqüentemente reduzindo a sua dosagem. A maior freqüência
quanto à descontinuidade do uso da medicação prescrita foi observada
entre os pacientes mais jovens, com idade entre 35-40 anos. Dos sete
pacientes assistidos, com esta faixa etária, quatro tinham recebido a
prescrição de anti-hipertensivo e três não deram continuidade ao seu uso.
A descontinuidade total ou parcial do uso da medicação prescrita,
declarada por 30% dos pacientes nas consultas analisadas, não pode ser
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.131-47, jan/jun 2006
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ALVES, V. S.; NUNES, M. O.
atribuída exclusivamente à insuficiência da assistência farmacêutica nos
municípios. Muitos dos pacientes que declararam esta descontinuidade
contavam com um sistema de saúde integrado. Em relação a este dado, é
possível interpretar que, em alguns casos, uma forma de resistência ou de
exercício de autonomia possa estar sendo enunciada na conduta do
paciente. Os elementos que subsidiam esta interpretação poderão ser
reunidos nas seções subseqüentes.
A condução da consulta: medicalização e controle da hipertensão
A análise das consultas dos pacientes hipertensos aponta três tendências de
sua condução pelos médicos. A primeira se caracteriza pela centralidade da
queixa manifestada pelo paciente, dos exames físicos e laboratoriais, e pela
ênfase conferida ao uso da medicação e ao controle da pressão arterial. A
segunda tendência se distingue pela ampliação da investigação de outros
problemas de saúde, com realização de uma anamnese clínica extensa, e
abordagem de fatores de risco à saúde. Nesta tendência, a dimensão
psicossocial, que diz respeito ao sofrimento do paciente e suas relações
afetivas com a família e a participação desta no cuidado, poderá ser
suscitada em decorrência do tipo de pergunta formulada pelo médico, sem
que, no entanto, seja incorporada à condução da consulta e compreensão
da condição de saúde do paciente. A última tendência observada caracterizase principalmente pela abordagem médica centrada no paciente e em sua
condição de vida. Sem deixar de atentar para o problema de saúde
manifesto, o médico formula questões ao paciente que possibilitam a este a
ampliação de sua narrativa e, conseqüentemente, da compreensão do
problema.
A primeira tendência é a dominante. A rotina de atenção ao paciente
hipertenso, de sete médicos, foi por ela orientada. A segunda tendência foi
observada entre dois médicos e apenas um profissional mostrou-se orientar
pela terceira das tendências descritas. Entre os profissionais, a rotina de
atenção ao paciente hipertenso não apresentou distinção quanto ao fato de
se tratar de atendimento a um caso novo ou a um paciente já assistido pela
equipe de Saúde da Família.
De acordo com a primeira tendência, a consulta pode ser iniciada pela
apresentação de resultados de exames laboratoriais, pela queixa do paciente
ou pela verificação do médico quanto ao uso da medicação e controle da
pressão arterial. Os resultados de exames irão subsidiar a construção da
narrativa do médico sobre o problema. A estes, soma-se a realização do
exame físico durante a consulta que, na maioria das vezes, consiste em uma
verificação do estado geral do paciente e na aferição de sua pressão arterial.
Esta, porém, pode ser aferida antes da consulta por outro profissional da
equipe de saúde.
A constatação de pressão arterial elevada é imediatamente seguida pela
indagação do médico a respeito do uso da medicação prescrita. Nessas
consultas, a dimensão psicossocial do processo saúde-doença pode emergir,
na maioria das vezes, espontaneamente, mas a escuta da questão pelo
médico pode ser comprometida pela ênfase conferida à medicação ou ao
esclarecimento diagnóstico. Em uma consulta com um senhor de 74 anos,
136
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.131-47, jan/jun 2006
EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA ATENÇÃO CLÍNICA ...
a médica questiona sobre algum aborrecimento, ela mesmo antecipando
uma resposta negativa. O paciente refere que sentiu uma “raiva” naquela
manhã. As possíveis razões dessa “raiva”, entretanto, não são investigadas
pela profissional, embora acabe atribuindo a alteração da pressão a essa
condição. Mais importante do que uma escuta interessada sobre a “raiva”
experimentada pelo paciente naquela manhã, parece ser a conclusão
diagnóstica:
M: Mas aconteceu alguma coisa, teve algum aborrecimento? Não.
P: Teve, doutora, cala a boca, que eu tive uma raiva tão grande,
doutora.
M: Então foi por isso!
Na segunda tendência de condução da consulta com o paciente hipertenso,
uma anamnese extensa é realizada pelo médico, o que repercute na duração
da consulta, em geral mais longa que as referentes à tendência anterior. A
anamnese inclui investigação de outros sintomas não relatados
inicialmente pelo paciente: de fatores de risco individuais, como tabagismo
e consumo de bebida alcoólica, de antecedentes mórbidos familiares, e
quanto à realização de exames preventivos. As perguntas formuladas pelo
médico favorecem uma narrativa do paciente que não se restringe à
descrição dos sintomas observados, e a emersão da dimensão psicossocial.
Entretanto, a abordagem a esta dimensão mostra-se superficial, sem sua
incorporação à compreensão da condição de saúde do paciente.
Uma condução diferenciada da consulta foi observada em relação a um
profissional, cuja abordagem médica leva em conta a condição de vida do
paciente. Mediante uma escuta interessada e por meio da formulação de
perguntas – estratégia de problematização –, o médico estimula a narrativa
de seus pacientes e a ampliação de sua compreensão quanto ao problema
narrado. Assim, o processo saúde-doença pode ser remetido à condição de
vida, com ponderação de estratégias de enfrentamento pelo paciente.
Reconhecido como sujeito, nessa relação, o paciente pode exercer uma ação
transformadora da realidade que incide sobre sua saúde.
A descrição de uma consulta desse profissional ilustra as considerações a
respeito dessa terceira tendência identificada de condução das consultas.
Uma senhora de 72 anos, obesa, refere que estava sem usar o antihipertensivo há alguns dias. A abordagem do médico se distingue daquela
observada entre os outros profissionais; em vez de repreender a paciente
pela descontinuidade do uso da medicação e repetir que ela não deveria
ficar sem usá-la sequer um dia, o médico indaga “por que, o que
aconteceu?”. A senhora explica que a farmácia municipal encontrava-se
fechada e a distribuição de medicamentos suspensa. A situação da paciente
e de sua família é de muita pobreza e ela vive o dilema de ter que optar
entre comprar a medicação, que compreende que precisa usar
continuadamente, e a alimentação. A decisão foi pela subsistência e os
remédios não puderam ser adquiridos.
A história familiar da paciente e o relato de sua condição socioeconômica
são ouvidos pelo médico e assimilados à abordagem de seu problema de
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.131-47, jan/jun 2006
137
ALVES, V. S.; NUNES, M. O.
saúde. A narrativa da paciente é extensa, estimulada pela formulação de
perguntas pelo médico, e refere o desemprego na família, a ajuda aos filhos
desempregados, os cuidados com os netos. A despeito de toda adversidade,
o médico não deixa de acreditar na capacidade criativa da paciente e na
possibilidade de transformação dessa realidade. A situação da suspensão da
distribuição de medicamentos da atenção básica era um problema
reconhecido por médico e paciente. A previsão era de que a farmácia
municipal voltaria a funcionar dentro de um mês. A pressão da senhora já
estava elevada em razão da descontinuidade do uso da medicação, razão
pela qual o médico não deixa de indagar: “como fazer para comprar o
remédio?”. A pergunta traz à tona o projeto da paciente de fazer uma
“puxadinha” na frente da casa para que ela e o marido possam vender
“bananinha, farinhinha...”. Este projeto, além de viabilizar a aquisição de
medicamentos, propiciaria uma melhora da condição de vida de toda a
família.
A postura desse profissional diante de seus pacientes, ao conduzir a
consulta, distingue-se não apenas pela escuta compromissada, a assimilação
da dimensão psicossocial e da condição concreta de vida deles, mas também
pela maneira como se despede dos pacientess: “Tchau, felicidades pra
senhora”. O compromisso do médico se reflete no estreitamento do
vínculo, sendo a consulta subseqüente agendada não para apresentar
resultado de exames ou verificar o controle da pressão, mas para uma
conversa: “Quarta-feira a gente conversa de novo aqui no consultório?”.
O enfoque da atenção não está na doença, mas no sujeito portador de uma
biografia. Ao longo das consultas desse profissional, delineia-se a
construção compartilhada de um projeto futuro de felicidade (Ayres,
2001), o que ultrapassa a mera remissão dos sintomas mediante uso
continuado de medicamentos.
Entre as três tendências de condução das consultas com o paciente
hipertenso, verifica-se a predominância de uma abordagem orientada pelo
reducionismo do modelo biomédico. A ênfase conferida aos sintomas e sua
descrição, ao uso da medicação e ao controle da pressão arterial põe em
evidência uma atenção médica centrada no indivíduo e na construção do
diagnóstico, em detrimento de uma abordagem integradora da história de
vida, sofrimentos, anseios e condições concretas de vida dos pacientes.
Estas considerações indicam que a maioria das consultas ao paciente
hipertenso analisadas não corresponde a uma atenção integral. Esta, além
de socioculturalmente contextualizada, reconheceria, no paciente, um
sujeito transformador da realidade e agente co-responsável pelo cuidado
com a própria saúde. A identificação de uma tendência contra-hegemônica
entre as consultas analisadas aponta, entretanto, a possibilidade de
reorientação da prática de saúde dominante.
A narrativa dos pacientes: sujeito em busca de autonomia
A narrativa dos pacientes nas consultas analisadas limita-se, na maioria das
vezes, à descrição dos sintomas observados, muito pouco revelando de seus
modelos explicativos. A narrativa estimulada pelos médicos é aquela que
oferecerá a eles maior detalhamento para o esclarecimento do diagnóstico
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.131-47, jan/jun 2006
EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA ATENÇÃO CLÍNICA ...
segundo as categorias nosológicas definidas pela biomedicina e informações
relativas a fatores de risco à saúde. Nas consultas de avaliação do projeto
terapêutico, a narrativa do paciente pode ser inibida pela apresentação de
resultados de exames laboratoriais ou pela consulta ao prontuário e revisão
de procedimentos e prescrições anteriores. Narrativas sobre as relações
familiares e as condições concretas de vida são comumente inibidas ou
interrompidas pelo médico.
Apenas nas consultas conduzidas pelo profissional cuja abordagem foi
anteriormente distinguida, pôde-se verificar uma estimulação da narrativa
dos pacientes, de modo que a descrição dos sintomas pudesse ser
contextualizada. Nessas consultas, a estratégia de problematização conferiu
uma transcendência da compreensão do problema de saúde e a sua
ressignificação repercutiu na elaboração de alternativas de enfrentamento
do problema experimentado pelos pacientes.
Embora uma narrativa aprofundada do problema de saúde e sua
contextualização na experiência de vida do paciente possam conferir maior
integralidade à atenção médica, a narrativa da maioria dos pacientes
assistidos nas consultas analisadas caracteriza-se pela sua superficialidade.
Ainda assim, a análise dessas narrativas suscita algumas questões relativas à
construção da experiência da doença pelo paciente e sua repercussão para o
cuidado em saúde.
A cronicidade da hipertensão pode não ser incorporada à experiência da
doença de alguns pacientes, cuja observação dos sintomas apresenta-se
associada a uma noção de temporalidade ou sazonalidade. Esta concepção
produz conseqüências quanto ao uso da medicação prescrita, a qual pode
ser descontinuada em virtude da observação de remissão dos sintomas. A
narrativa a seguir explicita esta concepção. Trata-se de uma senhora de 54
anos, cuja queixa é de que o coração agita nos dias quentes e que se sente
bem nos demais dias. A esta compreensão da paciente sobre o seu processo
saúde-doença, nenhuma consideração esclarecedora foi tecida pelo médico:
M: Sim, a senhora tá sentindo o quê?
P: Eu tô sentindo uma... aqui no joelho e mais um problema
que quando o dia tá quente eu não tenho ânimo pra fazer nada,
sabe?, até pra limpar a casa, eu preciso limpar aos poucos,
descansar, e já aconteceu também eu cair duas ou três vezes.
Quando o dia tá quente, agora o dia tando frio eu tô bem. Não
posso fazer nada nas carreiras...
M: Hum, hum.
P: Se eu correr, o meu coração agita...
M: Se corre?
P: É, eu não posso fazer nada... correr, não posso viajar com
pressa, tem que ser tudo devagar.
M: E quando tá frio, se a senhora corre, o coração não agita
não?
P: Não.
M: Não?
P: Só quando está quente.
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139
ALVES, V. S.; NUNES, M. O.
A adesão à prescrição médica relaciona-se estreitamente à construção da
experiência da doença pelo paciente (Kleinman, 1980). Saber-se hipertenso
pode ter como conseqüência o uso contínuo da medicação prescrita. Neste
caso, a adesão configura uma livre escolha de acatar as recomendações
recebidas dos médicos. Nesta perspectiva, a adesão pode ser compreendida
como uma expressão do exercício de autonomia do paciente no cuidado
com a própria saúde.
Entretanto, a autonomia do paciente no cuidado com a saúde pode
assumir outras expressões que não a adesão à prescrição médica. A
observação de efeitos colaterais do anti-hipertensivo pode levar à
descontinuidade total ou parcial do seu consumo, ou, ainda, a sua
substituição pelos remédios caseiros. Em ambas as circunstâncias, o
paciente poderá ser repreendido pelo médico com a advertência de que não
pode ficar sem usar a medicação.
A autonomia do paciente, quando não corresponde à adesão à prescrição
médica, comumente não é reconhecida e valorizada pelo médico. Sem uma
disposição do profissional para a compreensão das práticas populares de
cuidado e a abertura de um espaço para negociação, o que se observa é uma
ação antidialógica e culturalmente invasiva (Freire, 2003), na qual as
práticas populares são marginalizadas.
Ainda em relação à autonomia do paciente hipertenso, identifica-se, em
muitas das consultas, um sujeito em busca de conhecimento sobre a sua
condição de saúde, conhecimento este que poderá ser traduzido na
conquista de uma maior independência no cuidado. Esta disposição do
paciente, que Freire (2003) apreciaria como expressão de sua vocação
ontológica de ser mais, ser sujeito, repercute na relação médico-paciente.
Os médicos são levados a compartilhar mais informações com os pacientes
mais questionadores, o que não se processaria espontaneamente, como
evidenciado naquelas consultas nas quais o paciente assume uma postura
mais passiva.
Entretanto, a disposição dos pacientes em saber sobre sua condição de
saúde pode não ser aproveitada pelo médico para o desenvolvimento da
autonomia do paciente. Nessa situação, o profissional não responde às
indagações ou dúvidas a ele dirigidas, ou oferece uma resposta superficial e
estritamente biomédica. Em algumas interações, uma relação de poder é
claramente instituída pelo profissional, sustentada no monopólio do
conhecimento biomédico. Esta circunstância pode implicar restrições no
oferecimento de esclarecimentos, requisitados pelo paciente, relativos à sua
saúde.
Na consulta de uma senhora de setenta anos, a informação sobre o
resultado do exame de colesterol apenas foi obtida mediante sua
perseverança. Após entregar os resultados de exames laboratoriais e esperar
sua apreciação pela médica, a paciente é comunicada de que os exames
“estão jóia”. A senhora tem um interesse particular pelo exame de
colesterol. A médica, mesmo diante do interesse manifesto pela paciente,
afirma-lhe que “ainda não cheguei lá. Tô vendo aqui anemia, não tem
anemia, não tem infecção, o exame da tireóide que eu pedi também foi
bom. E a pressão?”. Desta maneira, a profissional demarca o seu controle
140
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.131-47, jan/jun 2006
EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA ATENÇÃO CLÍNICA ...
na condução da consulta. Quando finalmente informa sobre o exame de
colesterol, restringe-se à afirmação “tá beleza!”. A senhora, no ápice de sua
busca de conhecimento sobre sua condição de saúde, indaga “quanto
está?”, obtendo como resposta “180”. Diante desta resposta, a senhora
ainda precisa conferir se “180” significa um valor dentro da normalidade
para, finalmente, comemorar o exercício de autonomia no cuidado e
atenção com a saúde. Em exame anterior, o colesterol estava bastante
elevado, em torno de 340 mg/dl, e desde então, ela vem usando a “brijela”
[berinjela] e avalia, mediante o exame recente, a eficácia do cuidado
assumido por ela.
A respeito da busca de conhecimento sobre a condição de saúde-doença e
da autonomia do paciente, é importante ressaltar a sua independência em
relação à faixa etária ou outra característica do paciente. A análise das
consultas evidencia que mesmo pacientes idosos são capazes de atender à
vocação de ser sujeito, agente co-responsável pelo cuidado com a própria
saúde. Esta observação contraria considerações de alguns estudiosos da
relação médico-paciente, cuja afirmação é de que pacientes com um
determinado perfil – idosos, pacientes com baixa renda, com ocupações
profissionais pouco qualificadas, baixa escolaridade – tendem a preferir uma
relação paternalista com seus médicos, assumindo perante estes uma
postura passiva e dependente (Roter & Hall, 1993).
A narrativa dos médicos: monopolizando o conhecimento sobre a
saúde, a doença e o cuidado
A narrativa dos médicos, nas consultas com pacientes hipertensos
analisadas, caracteriza-se predominantemente como prescritiva. A ênfase
desta narrativa recai sobre o uso da medicação, sendo a ação educativa
secundária e superficial. O modelo explicativo do médico freqüentemente
não é exposto ao paciente. Ao contrário, a comunicação quanto à pressão
arterial verificada durante a consulta ou a respeito dos resultados de
exames não são esclarecedoras. Expressões evasivas ou emprego de
diminutivos caracterizam os enunciados médicos: “um pouquinho alta”,
“pressão rebelde”, “mais de 20...”, “tá de 21...”, “tá boazinha”, “alta
para a pessoa”, “pressão altinha”, “tá boa”, “está ótima”, “tá muito
alta”, “não é normal não”. Quanto a estas expressões, depreende-se que
elas não favorecem uma compreensão do paciente sobre a sua real condição
de saúde.
Uma consideração semelhante ao enunciado da pressão arterial pode ser
feita em relação à medicação. Esta nem sempre é referida pelo nome, com
os médicos fazendo menção a suas características visuais, como a cor da
embalagem, a cor ou o formato do comprimido, ou mais uma vez
empregando ordem de grandeza: “comprimido grandão”, “comprimido
alvinho” e “remedinho”, são alguns exemplos.
Entretanto, a narrativa do médico sobre a hipertensão poderá ser
ampliada, com o médico explanando sobre o tema. Esta narrativa pode ser
qualificada de dissertativa (Freire, 2003), visto não haver qualquer
participação do paciente na abordagem do tema, sendo sua escuta passiva e
silenciosa. Outra característica desta narrativa, verdadeiro depósito de
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ALVES, V. S.; NUNES, M. O.
conteúdo biomédico, é a não-verificação da compreensão do paciente, com
expressão de sua concordância ou de dúvidas. O objetivo da narrativa médica
apresenta-se bem definido: conquistar a adesão do paciente à prescrição.
A narrativa do médico freqüentemente acentua o risco, o perigo,
sugerindo ao paciente ser a hipertensão uma ameaça constante, o que
justifica, por outro lado, a imprescindibilidade da incessante vigilância. Em
uma de suas consultas, um profissional ressalta a importância do cuidado
com a seguinte consideração: “Pressão a gente fica... tem que ter um
cuidado danado, né? Pressão é um negócio traiçoeiro”. Outro profissional
retrata a ausência de sintomas da hipertensão como um perigo, assinalando
a importância da aferição periódica. O controle da pressão arterial, mediante
uso contínuo da medicação e aferição periódica na unidade de saúde, é a
tônica da narrativa médica.
O projeto terapêutico é definido pelo médico sem participação ou
negociação com o paciente. Neste sentido, a narrativa deste não será levada
em consideração no momento da prescrição. Assim, por exemplo, na
consulta da paciente que narra que o coração agita nos dias quentes e que se
sente bem nos dias frios, a prescrição é de uso diário e vitalício. A paciente,
cuja história pregressa é de descontinuidade de uso da medicação, não
consegue completar o que seria possivelmente uma expressão de sua
concepção de cuidado compatível com a sua noção de temporalidade da
hipertensão:
M: ...pra pressão pode tomar um comprido todos os dias...
P: Mas se eu tiver sentindo ou...?
M: Sempre!
P: Sempre, né?
M: Agora em diante a gente vai usar, certo?, até a gente tiver...
mas, em geral, uma pessoa depois com essa pressão alta, a gente
acha que tem que usar o remédio por toda a vida, viu?
P: É sem parar, né?
M: Hum, hum. Então vai tomar um comprimido todos os dia pela
manhã, certo?, esse aí.
P: Tá bom.
Nesta interação, compreende-se que, no “tá bom”, encerra-se a possibilidade
de uma ação dialógica, centrada na narrativa do paciente. A não-escuta
também obstaculiza a negociação, sendo, muitas vezes, a prescrição
reiterada pelo médico sem que seja considerada a relação estabelecida pelo
paciente com a medicação. No lugar da negociação, o que se verifica é uma
tentativa de convencimento pela transmissão de informação biomédica, na
qual são acentuados os danos à saúde conseqüentes da não-adesão à
prescrição.
O projeto terapêutico definido pelo médico é avaliado por este mediante
acompanhamento do resultado terapêutico almejado: o controle da pressão
arterial. Assim sendo, a substituição da medicação ou o aumento de sua
dosagem são procedimentos previstos e mesmo anunciados aos pacientes
como parte deste projeto. Destaca-se, nesta prática, a busca do “remédio que
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.131-47, jan/jun 2006
EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA ATENÇÃO CLÍNICA ...
dê certo”. Como se pode observar na interação a seguir, esta busca se
sobrepõe, muitas vezes, à ação educativa em saúde:
M: Ela tá de vinte e um por doze, viu?, a pressão, dona A. Sua
pressão é muito alta.
P: Tem que controlar muito o negócio de sal, né?
M: Hum, hum. Tem que ver o sal, tem que ver isso aqui, tem
que ver também a medicação. Toda vez... tem pressão também
que são mais rebeldes, assim, pressão que é mais rebelde pra
controlar. Mas o... agora, a gente vai aumentar a quantidade,
observar o sal e se não... a gente vai trocar o remédio, viu? Tem
que procurar o remédio que dê certo.
Sendo a narrativa do médico tão enfática quanto à doença e sua
medicalização, pode-se compreender porque a ação educativa, nessas
consultas com pacientes hipertensos, apresenta-se tão secundária.
Hierarquicamente, o projeto terapêutico preconiza o uso da medicação em
conformidade com a prescrição, a aferição periódica da pressão arterial na
unidade de saúde, para acompanhamento do efeito terapêutico da
medicação e, por último e marginalmente, a ação educativa em saúde.
A ação educativa: prescrevendo formas de cuidado com a saúde
Quanto ao desenvolvimento da ação educativa, três circunstâncias são
observadas: 1 consultas enfaticamente curativas, nas quais a narrativa do
médico sobre a atenção e o cuidado à saúde se restringe à reiteração
prescritiva quanto ao uso contínuo e apropriado da medicação; 2 consultas
em que a ação educativa é assimilada de forma secundária no projeto
terapêutico, com a abordagem de outros cuidados necessários à saúde,
particularmente a redução dos fatores de risco à hipertensão; 3 consultas
em que o projeto terapêutico se caracteriza pelo equilíbrio entre a
medicalização, o controle da pressão arterial e o desenvolvimento da ação
educativa. Dentre estas três circunstâncias, a segunda é preponderante.
Dentre as cinqüenta consultas analisadas, em apenas três observa-se um
certo equilíbrio no projeto terapêutico. Trata-se de consultas nas quais a
extensão da narrativa médica confere uma importância equilibrada às
recomendações feitas nas três direções. Entretanto, o equilíbrio observado
não caracteriza uma rotina do profissional na atenção ao paciente
hipertenso.
Nas consultas em que a atenção médica enfatiza exclusivamente a
medicalização, as ações de cuidado do paciente com sua própria saúde –
expressão de sua autonomia – podem não ser reconhecidas e
potencializadas pelo médico. A consulta de uma senhora de 68 anos é
ilustrativa desta consideração. A médica inicia a consulta investigando o
uso do anti-hipertensivo e acentua que “tem que tomar o remédio”. A
pressão arterial está elevada na ocasião do atendimento, a paciente afirma
que sua pressão é “descontrolada”. Esta observação da paciente é seguida
pelo comentário médico de que “vai ter que obter o controle dela”.
Imediatamente a este comentário, a paciente anuncia que vem seguindo
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.131-47, jan/jun 2006
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ALVES, V. S.; NUNES, M. O.
uma dieta hipossódica e reduzindo o consumo de gordura: “Não como... não
como mais muita gordura, não como sal...”, o que parece indicar uma
concepção de cuidado da paciente que vai além do uso da medicação.
Entretanto, esta ação de cuidado referida não é estimulada pela médica que
conclui: “eu vou aumentar esse remédio pra senhora”.
Entretanto, as ações de cuidado do paciente hipertenso, quando coerentes
com a prescrição médica e orientadas para a redução de riscos individuais, são,
em geral, valorizadas e incentivadas pelos profissionais. Um senhor de 62
anos, que afirma ser uma pessoa sadia, refere autonomia na atenção e cuidado
com a saúde e adesão às prescrições médicas. A partir da suspeita de que a
pressão arterial estava elevada, dirigiu-se a uma farmácia para verificá-la e,
depois, a um serviço de saúde, onde o profissional que o atendeu recomendou
que comesse sem sal, deixasse de tomar café e fumar. O senhor afirma ao
médico que, há uma semana, vinha seguindo à risca tais recomendações, sem,
contudo, deixar de assinalar o desafio de assumir estas restrições. O médico,
nessa oportunidade, o encoraja a dar continuidade aos “novos hábitos”.
A investigação de fatores de risco apara a hipertensão – tabagismo,
consumo de bebida alcoólica, sedentarismo, dieta, antecedentes de
cardiopatias na família – pode integrar a anamnese clínica. Entretanto, a
relação entre estes fatores de risco e a hipertensão não é necessariamente
explicitada pelos profissionais aos pacientes, principalmente quando a resposta
destes é negativa. A anamnese clínica oferece subsídios para a definição
diagnóstica, não constituindo um momento da consulta aproveitado para a
ação educativa em saúde.
Dentre os fatores de risco para a hipertensão, a alimentação destaca-se
como o mais referido pelos profissionais. Contudo, a abordagem quanto à
dieta do paciente hipertenso restringe-se à recomendação de redução do
consumo de sal e gorduras. A orientação geral é de que “tem que comer bem
pouco sal” ou ainda “não tocar em sal”. Contudo, sem levar em consideração
as condições concretas de vida dos pacientes, estas recomendações quanto à
dieta caracterizam-se, essencialmente, como prescritivas, implicando, muitas
vezes, a enumeração de alimentos que deverão ser incluídos ou excluídos da
dieta do paciente.
A observação da dieta pode ser incorporada ao discurso de alguns pacientes
enquanto ação de cuidado necessária. Nesta direção, uma senhora de 63 anos,
que antes era atendida em outro serviço de saúde, solicita ao médico de Saúde
da Família que oriente a ela quanto à “comida”, esclarecendo que o
profissional do outro serviço havia apenas prescrito medicamentos:
M: O remédio, tá tomando certinho, direitinho?
P: Certinho, todo dia de manhã e de tarde. Agora, só o que não
passou pra mim foi assim comida.[...] Pro mode eu saber direitinho.
Porque tem hora que retoma as comida, daqui a um pouco não dá
certo.
No que diz respeito à dieta, a orientação médica freqüentemente não parte da
realidade do paciente. Na consulta de uma senhora de quarenta anos, a médica
recomenda a adoção de uma dieta livre de “comida gorda, comida pesada,
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.131-47, jan/jun 2006
EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA ATENÇÃO CLÍNICA ...
comida muito forte”, sem levar em consideração os possíveis sentidos destes
alimentos para a paciente, sentidos estes socioculturalmente construídos e
compartilhados na comunidade assistida pela equipe de Saúde da Família:
M: Vai ter que fazer uma dieta, tirar o sal, tirar as massas,
principalmente a fritura, tá bom? [...] Comida gorda, comida
pesada, comida muito forte, nada disso. Ficar basicamente com
verduras e frutas, muito líquido, tá certo?
A relação entre a alimentação e as concepções de saúde, doença e cuidado
entre indivíduos das classes populares tem sido descrita em estudos
etnográficos (Ferreira, 1998; Montero, 1985; Loyola, 1984). De acordo com
esses estudos, a concepção de saúde entre populares apresenta-se
freqüentemente associada à noção de força e resistência física. Em
conformidade com esta concepção, o enfrentamento da doença implica a
restituição da força ao corpo, principalmente por meio da alimentação e do
repouso. A qualidade da alimentação, nas classes populares, pode ser
reconhecida como fator de proteção, e alimentos classificados como “fortes”,
“pesados” e “quentes” podem ser valorizados como fonte de sustentação e
força (Loyola, 1984, p. 153). Contudo, as consultas médicas analisadas no
presente estudo mostram-se impermeáveis à dimensão sociocultural das
concepções de saúde, doença e práticas de cuidado entre pacientes com
hipertensão arterial.
Além da dieta, as recomendações médicas contemplam, ainda, realização
de caminhadas e redução do peso, de consumo de bebida alcoólica e de
cigarro, sempre numa perspectiva prescritiva. Evidencia-se que a ação
educativa desenvolvida nessas consultas tem como objetivo a redução de
riscos individuais. Em coerência com esta orientação, fatores de risco
relacionados à condição de vida deixam de ser abordados. Trata-se do modelo
hegemônico de Educação em Saúde (Alves, 2005; 2004). Todavia, o alcance
deste modelo é percebido como limitado em uma auto-avaliação feita por
uma médica, que, após atender uma série de pacientes que sucessivamente
lhe declaram a não-adesão à prescrição do anti-hipertensivo e da dieta
hipossódica, expressa sua frustração e descontentamento: “É, minhas
palestras, consultas não tão adiantando nada, rapaz, vou me embora!”.
Considerações finais
O modelo hegemônico de Educação em Saúde mantém-se coerente com a
orientação estritamente biomédica da atenção ao paciente hipertenso. O
enfoque na doença e no indivíduo são alicerces da ação educativa que
objetiva, mediante a prescrição de hábitos e condutas, a redução de fatores
de risco individuais e prevenção de complicações à saúde derivadas da
hipertensão.
Entretanto, dentre as consultas analisadas, identifica-se uma abordagem
que se distingue do modelo de Educação em Saúde hegemônico. A condução
das consultas por um dos profissionais privilegia o desenvolvimento da
autonomia dos pacientes, ampliando a sua compreensão do problema e
reflexão quanto a uma intervenção sobre a realidade que o contextualiza e
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.131-47, jan/jun 2006
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ALVES, V. S.; NUNES, M. O.
determina. Esta é uma abordagem que assume, como ponto de partida, o
indivíduo, não a sua doença. O objetivo final da ação médica não está na
remissão dos sintomas, mas na promoção do cuidado com a saúde e outras
dimensões da vida, a exemplo da geração de renda. Evidentemente que esse
profissional assume uma postura que propicia uma relação dialógica, ao
acreditar no potencial criativo de seus pacientes-sujeitos.
A exceção, por vezes, merece mais destaque que a norma, especialmente
quando se tem como pano de fundo de investigação uma proposta de
reorientação de práticas de saúde, como é o caso da estratégia do PSF. A força
da exceção identificada na presente análise reside justamente na afirmação de
que, por maior que seja o desafio de ressignificar a relação com o outro e o
cuidado em saúde, este não constitui uma transformação da ordem do
impossível. Neste sentido, pode-se, ainda, declarar que, na exceção, se
revitaliza a esperança.
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Entre los muchos contextos de desarrollo de la acción educativa en salud, el presente
trabajo privilegió la consulta médica. Con el objetivo de identificar y caracterizar estas
acciones en la atención médica, se analizaron las transcripciones de cincuenta consultas con
pacientes hipertensos realizadas por diez médicos de salud de la familia en tres municipios
del estado de Bahía. Los resultados demuestran que la conducción de la consulta enfatiza la
medicalización y el control de la hipertensión. La narrativa del paciente es inhibida o
interrumpida por la narrativa del médico, y la atención médica se circunscribe a los
síntomas individuales, sin aprehender las dimensiones psicosociales y culturales del proceso
salud-enfermedad-cuidado. La acción educativa en la mayoría de estas consultas se presenta
secundaria y superficial, con recomendaciones prescriptivas. Un abordaje diferenciado fue
identificado en uno de los médicos, lo que mostró la posibilidad de una atención médica
dialógica e integradora de aspectos biomédicos y socioculturales al cuidado.
PALABRAS CLAVE: educación en salud. relación médico-paciente. programa salud de la
familia. hipertensión.
Recebido em: 26/04/05. Aprovado em: 11/05/06.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.131-47, jan/jun 2006
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.148, jan/jun 2006
Educação em S
aúde na escola:
Saúde
uma abordagem
do currículo e da percepção de alunos de graduação em
Pedagogia*
Valéria Marli Leonello 1
Solange L’Abbate 2
LEONELLO, V. M.; L’ABBATE, S. Health education in schools: an approach based on the curriculum and
perception of undergraduate education students. Interface - Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10, n.19, p.149-66,
jan/jun 2006.
Based on quantitative research, this article analyzes the way health education has been approached in the
undergraduate education curriculum at a state university in Brazil. The investigation was divided into two stages:
the first analyzes the curriculum of the course and the second investigates how education students see the topic,
based on replies to a questionnaire. In regard to the curriculum, it was seen that two of the 73 disciplines analyzed
deal explicitly with health education in schools. The replies showed that 65% of the students studied do not
perceive this approach in their curriculums, even though 85% consider the work of teachers indispensable for the
development of the theme in schools. The authors concluded that curriculums in the area of education should
critically take the theme of health education into account, due to its importance for the life and citizenship of
middle-school and high-school students.
KEY WORDS: health education. universities. higher education. curriculum.
Analisa-se, por meio de pesquisa descritiva, o modo como a Educação em Saúde tem sido abordada no
currículo de graduação em Pedagogia de uma universidade estadual paulista. A investigação foi dividida em duas
etapas: a primeira analisa o currículo do curso e a segunda, a compreensão dos estudantes de Pedagogia sobre
o tema, por intermédio de respostas a um questionário. Em relação ao currículo, observou-se que duas, das 73
disciplinas analisadas trabalham, de modo explícito, a Educação em Saúde na escola. As respostas dos alunos
revelaram que 65% dos respondentes não percebem esta abordagem no currículo, porém 85% consideram a
atuação do pedagogo indispensável para o desenvolvimento do tema no ambiente escolar. Concluiu-se ser
fundamental que o currículo do pedagogo contemple, criticamente, a temática da Educação em Saúde, dada sua
relevância para a vida e a cidadania dos escolares de nível médio.
PALAVRAS-CHAVE: educação em saúde. universidades. ensino superior. currículo.
*
Trabalho baseado em investigação de Iniciação Científica, realizado de janeiro de 2002 a janeiro de 2003, com financiamento da
Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo - Fapesp.
1
Programa de Pós-Graduação, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, SP. <[email protected]>
2
Departamento de Medicina Preventiva e Social, Universidade Estadual de Campinas/Unicamp, SP. <[email protected]>
1
Rua Ramiro de Santa Cruz Abreu, 116
Butantã - São Paulo, SP
Brasil - 05.592-120
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.149-66, jan/jun 2006
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LEONELLO, V. M.; L’ABBATE, S.
Introdução
Neste trabalho, abordamos a questão da Educação em Saúde inserida na
escola, com base em uma pesquisa sobre a formação de pedagogos.
A escolha do tema reflete a mudança de paradigma em relação às práticas
de saúde, antes fragmentadas e curativas e, atualmente, vistas numa
concepção de assistência integral e inseridas no contexto da promoção à saúde,
definida como: “o processo de capacitação da comunidade para atuar na
melhoria da qualidade de vida e saúde, incluindo maior participação no
controle desse processo” (Ministério da Educação apud Lervolino, 2000, p.8).
A promoção à saúde nos faz pensar na construção de práticas que
colaborem para a construção e desenvolvimento de hábitos saudáveis,
indivíduos responsáveis, autônomos e conhecedores do direito político,
econômico e social à saúde (Ministério da Saúde apud Lervolino, 2000).
Para o desenvolvimento dessas práticas, há que se considerar a necessidade
de definir campos de ação para a promoção da saúde. Dentre eles, estão: a
construção de políticas públicas saudáveis; a criação de ambientes favoráveis; a
reorientação dos serviços de saúde; o desenvolvimento de habilidades
individuais; e o reforço da ação comunitária, por meio da responsabilidade
social (Silveira, 2000).
Uma das estratégias que promovem a responsabilidade social é a Educação
em Saúde, entendida, neste trabalho, como a combinação de atitudes e
experiências de aprendizagem com objetivo de desenvolver o conhecimento
dos indivíduos “sobre os determinantes da saúde, sobre o comportamento
em saúde, e sobre as condições sociais que afetam seu próprio estado de
saúde e o estado de saúde dos outro” (Silveira, 2000, p.34).
Educação em Saúde no ambiente escolar
Acreditamos que no ambiente escolar o indivíduo, em determinadas etapas da
vida, apreende atitudes e habilidades que são articuladas às suas experiências
vivenciadas no cotidiano. Essas conquistas orientam o aluno para o
reconhecimento e expressão de suas necessidades, possibilitando a
oportunidade de refletir sobre seu papel histórico e colaborando para possíveis
transformações por intermédio da consciência e mudança social (Lervolino,
2000).
Neste sentido, a Educação em Saúde pretende “colaborar na formação de
uma consciência crítica no escolar, resultando na aquisição de práticas que
visem à promoção, manutenção e recuperação da própria saúde e da saúde
da comunidade da qual faz parte” (Focesi, 1992, p.19).
O educador
Quando nos remetemos à escola como ambiente favorável para a Educação em
Saúde, questionamos quais seriam os principais atuantes nesse processo?
Inicialmente, em nossas discussões, consideramos a importância do
profissional de saúde inserido na escola, tentando buscar caminhos que nos
orientassem em relação a essa atuação.
Porém, ao investigar a questão, nos deparamos com a importância de quem
trabalha diariamente e diretamente com os alunos, ou seja, o educador. Não
desconsideramos a importância da atuação e integração da equipe de saúde na
escola; ao contrário, a escola como equipamento social deve interagir e
articular estratégias de promoção à saúde com essa equipe.
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.149-66, jan/jun 2006
EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA ESCOLA: UMA ABORDAGEM DO CURRÍCULO...
Entretanto, elegemos como foco de atenção, neste trabalho, o profissional
de educação que atua na escola. Não apenas o professor que está diretamente
em contato com o aluno, como também aqueles que contribuem para o
desenvolvimento do processo pedagógico, a exemplo do supervisor e do
coordenador pedagógico. Representando de maneira abrangente esses
profissionais, concluímos pela escolha do pedagogo.
Para isso, nos fundamentamos na discussão de alguns autores que
consideram a importância da atuação consciente e crítica do educador,
articulando teoria e prática vinculadas à realidade dos alunos. De acordo com
Bagnato (1987), por exemplo, a Educação em Saúde no espaço escolar
depende, em grande parte, do preparo acadêmico dos educadores. Alguns anos
antes, Silva (1983) também já evidenciava a necessidade da formação crítica
de educadores para que esses soubessem articular teoria e prática, vinculadas
às condições de vida da população. O próprio Ministério da Saúde propõe a
necessidade de formação e qualificação docentes para a abordagem da
promoção à saúde em ambiente escolar (Ministério da Saúde, 2002).
Objetivo da investigação
O objetivo deste trabalho foi identificar o modo como a Educação em Saúde
tem sido abordada no currículo de Graduação em Pedagogia, considerando a
compreensão do tema pelos graduandos, tendo em vista sua atuação futura
como educador e orientador.
Metodologia
O tipo de metodologia utilizada foi a da pesquisa descritiva, ou seja, “aquela
em que se expõem características de determinada população ou fenômeno”
(Tobar & Yalour, 2001, p.69), sobretudo, quando se trata de situações pouco
conhecidas, como é o caso deste trabalho.
A investigação foi dividida em duas etapas: na primeira, trabalhamos a
abordagem do currículo do curso de Pedagogia da Universidade Estadual de
Campinas, por meio de duas técnicas (a observação de ementas disciplinares e
entrevista semi-estruturada com a coordenação de graduação do curso
pesquisado). Na segunda etapa, procuramos identificar a compreensão do
graduando de Pedagogia em relação à temática da Educação em Saúde, por
intermédio de instrumento de pesquisa – questionário.
A consulta às ementas disciplinares foi feita mediante leitura exploratória
do catálogo de graduação fornecido pela universidade. Buscamos por ementas
disciplinares oferecidas ao curso pesquisado que trouxessem explicitamente os
termos: “Educação em Saúde”
Saúde”, “Saúde Escolar” e “Saúde”
“Saúde”. Entretanto,
foram consideradas disciplinas que pudessem trazer alguma relação com a
questão da saúde em ambiente escolar.
A entrevista semi-estruturada foi realizada com a coordenadora de
graduação do curso de Pedagogia, em local e dia previamente acordados pelas
pesquisadoras e pela coordenação do curso.
Na segunda etapa do trabalho, aplicamos um questionário, com perguntas
abertas e fechadas, aos alunos do último semestre do curso.
Esse instrumento de pesquisa foi aplicado aos alunos dos períodos
vespertino e noturno em horário de aula, em dia previamente combinado, e
em comum acordo com a direção do curso de graduação em Pedagogia.
Foram prestados os esclarecimentos necessários aos estudantes para o
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LEONELLO, V. M.; L’ABBATE, S.
preenchimento do questionário, e explicitado o respeito aos seus direitos de
recusa na participação da pesquisa, bem como a liberdade e sigilo em relação às
suas respostas, por meio do Consentimento Livre e Esclarecido, fundamentado
na resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Além disso, a pesquisa
foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas
da Unicamp, sendo realizada no período de janeiro de 2001 a janeiro de 2002.
Resultados
Primeira etapa: observação do currículo
Para início de conversa: o que é um currículo?
Na busca de referenciais teóricos para a definição de currículo, nos
deparamos com uma infinidade de concepções, muitas vezes distintas entre si.
No entanto, de acordo com Pedra (1997), essa diversidade não sugere a
existência de diferentes realidades contextuais, mas sim interpretações
distintas de vários autores.
Apesar das diferentes possibilidades de definições, observamos, de acordo
com a literatura, que ao se considerar a estrutura curricular, deve-se refletir
sobre o contexto social na qual essa estrutura está inserida. Tal visão crítica
torna-se necessária para que se possa manter o objetivo da educação orientado
para a transformação da realidade (Pedra, 1997; Torres, 1995; Saviani,
1994).
Visto desse modo, o currículo surge como processo norteador da forma de
atuação da escola, de acordo com as mudanças e a reestruturação da sociedade
na qual está inserido. Portanto, ao se pensar o currículo como um processo,
construído conforme a realidade sociopolítica e econômica, defende-se a
necessidade de sua constante reflexão e discussão, para entendê-lo como uma
estrutura flexível e em permanente (re)construção (Jorge, 1996).
Construindo um currículo
De acordo com a coordenadora de graduação da Faculdade de Educação
investigada, a estrutura curricular denomina-se pré-ativa ou prescritiva, isto é,
um currículo construído a partir de dois enfoques: o normativo e o campo do
saber específico da Pedagogia.
O primeiro refere-se às normas e leis que regulamentam e norteiam a
estruturação do currículo. No Brasil, compete ao Estado, por intermédio das
Leis de Diretrizes e Bases (LDBs), controlar o sistema de ensino. Já o Conselho
Nacional de Educação (CNE), órgão constituído por representantes da classe de
pedagogos e assessores do Ministério da Educação, propõe as diretrizes
curriculares para os cursos de nível superior do país. Portanto, a LDB e as
diretrizes curriculares regulamentam e norteiam, respectivamente, o
desenvolvimento do currículo do curso de graduação em Pedagogia.
O currículo do curso de graduação em Pedagogia da Unicamp
Ainda segundo a coordenação de graduação do curso, o princípio
fundamental é a formação de pedagogos que entendam a educação como
resultado da relação professor-aluno, ou seja, o processo de ensinoaprendizagem só ocorre com a constituição do sujeito educador que é, por
excelência, o sujeito professor.
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EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA ESCOLA: UMA ABORDAGEM DO CURRÍCULO...
Esse princípio perpassa toda a grade curricular estruturada para o curso
(Quadro 1), organizada em oito semestres e constituída de disciplinas
norteadas por um eixo teórico-metodológico que estimula o aluno a
compreender a produção do conhecimento no campo da Pedagogia e
ordena as disciplinas em obrigatórias, eletivas e estágios, totalizando 2.850
horas.
Quadro 1. Distribuição das disciplinas oferecidas durante o curso de Pedagogia por semestre - Campinas, 2002
Semestres
o
Disciplinas oferecidas
EP107 Introdução à
Pedagogia - Org.
Trab.Ped.
EP 108
Pesquisa Pedagógica I
EP 140
Sociologia Geral
EP 122 Introdução
à Psicologia
EP 130 Filosofia
da Educação I
EP 109
Seminários de
Pesq.
Pedagógica I
2°
EP 110 História da
Educação I
EP 108
Pesquisa Pedagógica II
EP 340 Sociologia EP 123 Psicologia
da Educação I
Educacional
EP 230 Filosofia
da Educação II
EP 209
Seminários
dePesq.
Pedagógica II
3°
EP 210 História da
Educação II
EP 152 Didática Teoria Pedagógica
EP 445 Sociologia EP 126 Psicologia,
da Educação II
Educação e Pesquisa
EP 141
Comunicação
Educação e
Tecnologias
EP 412 História da
Educação III
EP 153 Metodologia
do Ensino
Fundamental
EP 144 Metodol.
da Pesquisa em
Ciências da
Educação I
EP 162 Escola e
Currículo
EP 163 Polít.
Educ.: Estr. e
Func. da Ed.
Básica
1
4°
5°
EP 154 Fundamentos EP 159 Prát. Ensino
da Alfabetização
nas Séries Inic. do
Ensino Fundamental
EP 145 Metodol.
da Pesquisa em
Ciências da
Educação II
EP 155 Fundamentos
do Ensino
de Matemática
EP 156 Fundam.
do Ensino de
História e
Geografia
6°
EP 111 Fundamentos
da Educação
Especial
EP 200 Estágio I
EP 127
Pensamento,
Linguagem e
Desenvolvimento
Humano
EP 151 Leitura e
Produção de Textos
EP 765
Eletiva
Fundamentos da
Educação Infantil
7°
EP 142 Educação e
Antropologia Cultural
EP 206 Estágio II
EP 808 Trabalho
de Conclusão de
Curso I
EP 164 Organização do EP 463
Planejamento
TrabalhoPedagógico e
Educacional
Gestão Escolar
EP 143 Educação
Não-Escolar (02 cr.)
EP 887Educação Não
Formal
EP 809 Trabalho de
Conclusão de Curso
II
EP 158
Educação Corpo
e Arte
Eletiva - Núcleos
Temáticos
8°
Eletiva- Núcleos
Temáticos
EP 157
Fundamentos
do Ensino de
Ciências
Eletiva
Eletiva Núcleos
Temáticos
Fonte: In Form Ação da Faculdade de Educação, Unicamp, 2002
As disciplinas obrigatórias fornecem a essência do currículo, ou seja, são
aquelas que os alunos devem freqüentar para que possam concluir o curso.
Perfazem o total de 2.220 horas.
Já as eletivas compõem a estrutura diversificada do currículo, na qual o
aluno tem autonomia para investir em suas áreas de preferências. No
currículo geral, destina-se uma carga horária específica para a participação
do aluno em disciplinas de sua escolha. Para concluir o curso, é necessário
que o aluno cumpra 330 horas nessas disciplinas.
Além das disciplinas obrigatórias e eletivas, há os estágios
supervisionados, que correspondem às atividades práticas realizadas em
diversas instituições de ensino.
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LEONELLO, V. M.; L’ABBATE, S.
Por último, há o núcleo temático, que se constitui numa proposta
inovadora de articulação entre um conjunto de disciplinas que favorecem o
aprofundamento de alguns campos de atuação. Por exemplo, existe um
núcleo temático que trabalha educação e diversidade ética. Dessa forma, os
alunos escolhem um núcleo, no total de oito existentes, e trabalham mais
profundamente questões de seu interesse. O núcleo perfaz um total de
180 horas e é oferecido no final do curso, ou seja, no oitavo semestre.
A inserção da Educação em Saúde no currículo: o que a
estrutura normativa mostra?
Apesar de não haver menção específica em relação à abordagem da saúde
na escola, a nova Lei das Diretrizes e Bases (LDB), de 1996, consolida e
amplia a participação do poder público no que se refere ao seu dever de
assegurar a educação para todos, principalmente no ensino fundamental,
colocando esse acesso como fator essencial para a formação de cidadãos
(Demo, 1997).
Ao se propor a formar cidadãos conhecedores de seus direitos e deveres,
o ensino na escola também se compromete a promover a Educação em
Saúde, pois esta é essencial para a formação de indivíduos responsáveis e
autônomos, conhecedores de seus direitos em relação à saúde.
No mesmo sentido, estão os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs).
Criados com base em discussões sobre os currículos oficiais, os PCNs
surgem como proposta norteadora, tendo como objetivo “orientar e
garantir a coerência das políticas de melhoria da qualidade de ensino,
tornando-as acessíveis a todos, divulgando discussões, pesquisas e
recomendações” (Lervolino, 2000, p.39).
Dentre as proposições dos PCNs, está a abordagem transversal de
questões sociais, na qual temas de relevância social – como o ambiente,
pluralidade cultural, orientação sexual, ética e saúde – seriam tratados em
todas as disciplinas do currículo fundamental de maneira transversal, ou
seja, perpassando todas as etapas das áreas curriculares O objetivo dessa
nova abordagem é o de resgatar a dignidade humana, a igualdade de
direitos, a participação ativa na sociedade e a co-responsabilidade pela vida
social (Ministério da Educação e Cultura, 1998).
O contexto educacional oferecido pelas matérias transversais favorece a
proposição de metas educativas, cujo eixo norteador do conjunto de
aprendizagem a ser desenvolvido esteja em ressonância com as necessidades
básicas e vitais da sociedade, entre elas, a saúde e qualidade de vida.
(Busquetes & Leal, 2000).
Pesquisando o currículo de Pedagogia
Tomando por base a observação do modo de construção do currículo,
iniciamos a pesquisa das disciplinas que pudessem estar relacionadas ao
nosso tema – a Educação em Saúde. Observamos ementas de disciplinas que
abordassem, de maneira geral, a discussão e reflexão sobre Educação em
Saúde, considerando seu contexto histórico e sua importância como
estratégia para promoção à saúde no espaço escolar. Entretanto, não
desconsideramos disciplinas que trouxessem aspectos relacionados à saúde,
como, por exemplo: compreensão do corpo, sexualidade humana, entre
outros.
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.149-66, jan/jun 2006
EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA ESCOLA: UMA ABORDAGEM DO CURRÍCULO...
Disciplinas obrigatórias
As 39 disciplinas obrigatórias investigadas não trazem, explicitamente, os
termos “Educação em Saúde”, “Saúde Escolar” ou “Saúde”. Entretanto, foram
selecionadas duas disciplinas que parecem fazer uma aproximação entre as
questões referentes à Educação e à Saúde (Quadro 2):
Quadro 2. Disciplinas obrigatórias relacionadas à prática de saúde – Campinas, 2002
Disciplinas
Fundamentos do Ensino de Ciências
Fundamentos em Educação Infantil
Classificação da disciplina
Obrigatória
Obrigatória
A primeira disciplina, Fundamentos do Ensino de Ciências, trouxe a seguinte
ementa:
Controvérsias metodológicas e condições extremas geradoras dos
modelos clássicos da história do ensino de ciências. Concepções de
Ciência, Ambiente, Educação e Sociedade subjacentes aos principais
modelos de ensino de Ciências. Papel no ensino de Ciências no
ensino de nível fundamental e inter-relações com os demais
componentes disciplinares. (Universidade Estadual de Campinas,
2001, p.448)
De acordo com a ementa proposta, entendemos que a disciplina, apesar de não
fazer menção à temática da Educação em Saúde em ambiente escolar, pode
abordar aspectos relacionados, na medida em que se propõe a trabalhar com o
contexto histórico do ensino de Ciências, disciplina essa que historicamente
tem trazido a discussão das questões referentes à saúde. Entretanto, ressaltase que não fica explícito tal abordagem somente pela observação da ementa
disciplinar.
A segunda disciplina, Fundamentos da Educação Infantil, traz em sua
ementa a seguinte informação:
Análise dos fundamentos políticos, econômicos e sociais da educação
infantil, ou seja, do atendimento de crianças de 0 a 6 anos.
Conceitos de infância, família e suas historicidades. Funções da
educação infantil. Políticas de atendimento à infância. Creches e préescolas. Relações entre educação infantil e ensino fundamental.
Articulações dos equipamentos de atendimento à criança de 0 a 6
anos com outras instituições. (Universidade Estadual de Campinas,
2002, p.455)
Observa-se que há uma preocupação da disciplina em trabalhar com as
questões voltadas ao “atendimento à infância” e “a articulação dos
equipamentos de atendimento”. Entretanto, não há explicitamente a
utilização do termo “Educação em Saúde” ou “Saúde Escolar” ou “Saúde”.
Disciplinas eletivas
Nas 34 disciplinas eletivas também não foi encontrada ementa disciplinar
que trouxesse os termos: “Educação em Saúde”, “Saúde Escolar” ou “Saúde”.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.149-66, jan/jun 2006
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LEONELLO, V. M.; L’ABBATE, S.
Observam-se, porém, algumas ementas que parecem favorecer o
desenvolvimento da temática (Quadro 3).
Quadro 3. Disciplinas eletivas relacionadas à prática de Saúde - Campinas, 2002
Disciplinas
Educação e Cidadania
Escolas abertas à diversidade
Educação e Sexualidade Humana
Direito à Infância e Educação
Oficina sobre direitos humanos e Cidadania
Deficiência Mental e família
Ética e Diversidade
Classificação da disciplina
Eletiva
Eletiva
Eletiva
Eletiva
Eletiva
Eletiva
Eletiva
As disciplinas selecionadas mencionam aspectos relacionados à saúde dos
indivíduos, dentre eles: cidadania, direitos humanos, direito à infância,
diversidades encontradas na escola, sexualidade humana e abordagem do
aluno especial. Como tema transversal, certamente, as questões relativas à
Educação em Saúde no ambiente escolar podem ser trabalhadas nas disciplinas
escolhidas. Entretanto, essa proposição não é encontrada nas ementas
disciplinares pesquisadas.
Segunda etapa: abordagem dos alunos
A segunda etapa da pesquisa foi realizada por meio de um questionário,
com perguntas abertas e fechadas, aplicado aos alunos do último semestre do
curso. O instrumento de pesquisa foi aplicado aos alunos dos períodos
vespertino e noturno, em dia previamente combinado, e em comum acordo
com a direção do curso de graduação em Pedagogia.
Como se pode observar na tabela abaixo (Tabela 1), o número total de
respondentes foi de quarenta alunos, sendo 23 do período vespertino e 18 do
noturno:
Tabela 1. Participação dos alunos na pesquisa de acordo com o período do curso - Campinas, 2002
Período
Vespertino (V)
Noturno (N)
(V) + (N)
Respondentes
22
18
40
Não Respondentes
01
0
01
Subtotal
23
18
41
O número total de matriculados em cada período do curso era, à época do
estudo, de 45 alunos. No entanto, devemos considerar que a aplicação do
questionário foi feita em horário de aula, em uma determinada disciplina. Por
abordarmos somente os alunos presentes nessa aula, não obtivemos o
número total de matriculados.
A escolha de uma única disciplina e de uma mesma data para a aplicação do
instrumento de pesquisa foi uma solicitação da própria coordenação do curso,
para que os alunos interrompessem a aula em um único período e disciplina,
não dificultando, assim, o cumprimento da programação normal do curso.
A compreensão dos entrevistados sobre a Educação em Saúde
No que se refere à primeira pergunta do instrumento, a questão, aberta,
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.149-66, jan/jun 2006
EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA ESCOLA: UMA ABORDAGEM DO CURRÍCULO...
indagava aos respondentes sobre a compreensão deles em relação à Educação
em Saúde. Tabulamos as respostas em algumas categorias, reconhecendo a
impossibilidade de abarcar toda a riqueza e variedade dos conteúdos
mencionados (Tabela 2). Por isso, as particularidades encontradas serão
discutidas em cada categoria criada.
Tabela 2. Categorias de respostas referente à compreensão sobre Educação em Saúde. Campinas, 2002
Respostas
Como orientações e discussões relacionadas à saúde em geral
Como aspecto importante a ser desenvolvido no ambiente escolar
Sem subsídios para responder a questão
Como uma disciplina específica
Como prática que estimule a ação social
Como elo entre práticas educativas e de saúde
Questão muito ampla
Total
Total
18
09
08
02
01
01
01
% Total (40)
45,0
22,5
20,0
5,0
2,5
2,5
2,5
40
100
O primeiro aspecto que chama a atenção nessas respostas é referente à
dificuldade em responder a questão, citada por 20% do total de alunos, devido
à falta de subsídios teóricos relativos à temática. Um desses respondentes
afirma nunca ter discutido a questão da Educação em Saúde no curso de
Pedagogia. Outros dois alunos colocam que não há uma disciplina do curso
que aborde esse tema.
Ao relacionarmos esses dados com a observação do currículo, entendemos
que, para esses alunos, não há disciplinas que abordem explicitamente a
questão da Educação em Saúde na escola. As disciplinas elencadas como
possíveis responsáveis pelo tratamento dessa questão - Fundamentos do
Ensino de Ciências e Fundamentos da Educação Infantil - não são citadas por
eles.
Uma das respostas mais comuns à pergunta, foi a que relaciona Educação
em Saúde na Escola com orientações e discussões sobre aspectos relacionados à
saúde em geral. Dentro desta categoria, incluímos as citações referentes aos
cuidados com o corpo, higiene, sexualidade, prevenção de doenças,
alimentação e ambiente. É interessante ressaltar a ênfase dada à higiene e à
prevenção de doenças. Das 18 respostas relacionadas, seis referiram a
importância da orientação aos escolares sobre aspectos referentes à higiene,
acrescentando fatores como alimentação adequada, sexualidade e ambiente.
Catalán (2001), ao defender a educação para o desenvolvimento social e
político, lembra que, historicamente, as atividades educativas em saúde eram
realizadas de maneira autoritária, impositiva e coercitiva e com caráter
exclusivamente informativo, dando ênfase à prevenção das doenças. Para o
autor, essa visão ainda está cristalizada na prática de alguns profissionais,
dentre eles, os de educação.
Em relação à prevenção de doenças, cinco das 18 respostas consideravam
este item como um dos aspectos a serem abordados na escola. Das cinco
respostas, dois alunos resumem a Educação em Saúde na escola como forma
de prevenir doenças. Esse entendimento vai ao encontro da concepção da
saúde na qual, segundo Berlinguer (1989), os indivíduos só entendem o
significado da saúde mediante a ausência de doença. Neste sentido, as práticas
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.149-66, jan/jun 2006
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LEONELLO, V. M.; L’ABBATE, S.
educativas em saúde tendem a reduzir-se a atividades preventivas, de cunho
meramente informativo e coercitivo.
Para L’Abbate et al. (1992, p.82), essa abordagem deve ser transformada
em uma concepção de Educação em Saúde como “campo privilegiado de
relações interpessoais e sociais através das quais se realizam as práticas de
saúde”, favorecendo o desenvolvimento da adesão, compromisso e autonomia
dos sujeitos coletivos envolvidos.
Deve-se ressaltar que tal concepção ainda não está difundida entre os
estudantes pesquisados. Observamos que, dos quarenta respondentes, apenas
um sujeito demonstrou entender a Educação em Saúde como vinculada às
dimensões social e histórica.
É uma questão que não pode ser dissociada da questão socialhistórica. Quem são os envolvidos? Quais as características da
comunidade em que a escola está inserida? Que questões são
relevantes e significativas para aquela população? Educação em Saúde
deve participar de um projeto de ação social e mudança social.
Revela-se, no relato, a preocupação do graduando em relação ao contexto
social, histórico e cultural dos sujeitos envolvidos nas atividades de Educação
em Saúde e a importância desses sujeitos na transformação e mudança de suas
condições de saúde.
O entendimento da educação como instrumento de luta social teve grande
avanço com o educador brasileiro Paulo Freire, ao colocar como indispensável e
inadiável “uma ampla conscientização das massas brasileiras, através de
uma educação que as coloque numa postura de auto-reflexão e de reflexão
sobre seu tempo e seu espaço”. Para o autor, essa auto-reflexão fará desses
sujeitos não mais expectadores, mas figurantes e autores da história (Freire,
1982, p.36).
Em relação às demais respostas a essa questão, encontramos nove alunos,
ou seja, 22,5% do total, que, apesar de não especificarem suas concepções de
Educação em Saúde no ambiente escolar, colocam a temática como sendo um
aspecto importante a ser abordado na escola. Um respondente, inclusive,
refere a necessidade de articulação entre atividades educativas e de saúde. Dois
alunos, 5% do total, opinam sobre a necessidade de uma disciplina específica
no conteúdo curricular para que a saúde seja abordada de maneira mais
específica no ambiente escolar.
A possibilidade do atual currículo abordar a saúde na escola
A segunda questão pergunta aos respondentes sobre a possibilidade de o
currículo de Pedagogia abordar a questão da saúde na escola. As respostas a
esta questão estão demonstradas no Gráfico 1:
Gráfico 1. Referente à questão:"Você acha que o currículo de pedagogia aborda a questão da
saúde na escola?"
28%
0%
Sim
Não
Parcialmente
72%
158
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EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA ESCOLA: UMA ABORDAGEM DO CURRÍCULO...
A maioria dos entrevistados (72,5%) considera que o currículo não possibilita
abordagem da saúde na escola, enquanto a minoria (27,5%) considera que o
currículo aborda parcialmente a temática. Nenhum aluno considera que o
currículo aborda a temática.
A explicação mais referida pelos que consideram que o currículo não aborda
a temática foi a de que não há abordagem específica do tema em disciplinas
obrigatórias e, por isso, o aluno não tem subsídios para trabalhar a temática.
Em contrapartida, alguns alunos sugerem que o tema não deva ser
trabalhado na base teórica das disciplinas obrigatórias, pois esse é o núcleo
estimulador de discussões filosóficas e epistemológicas, relacionadas
especificamente ao campo da Pedagogia.
A maior parte dos que optaram pela alternativa que considera que o
currículo aborda parcialmente a temática, relata que há uma abordagem,
porém não relacionada diretamente à Educação em Saúde. Um aluno
mencionou que não há abordagem dessa temática no currículo obrigatório,
não explicitando essa questão. Outro aluno também relatou que há
abordagem somente no último semestre, não explicitando a disciplina em que
tal abordagem é colocada aos alunos.
Conhecimento e lembrança de alguma prática de ensino que
tenha abordado aspectos sobre Educação em Saúde no currículo
atual
A terceira questão indagava aos estudantes sobre o conhecimento em
relação às práticas de ensino que tenham abordado aspectos referentes à
Educação em Saúde. Os resultados estão sintetizados no Gráfico 2:
Gráfico 2. Referente a questão: "Ainda considerando o currículo atual, você tem conhecimento de
alguma prática de ensino que tenha abordado aspectos referentes à Educação em Saúde?"
3%
33%
Sim
Não
64%
Não Respondeu
A maioria dos respondentes (65%) não tem conhecimento ou não se lembra
de nenhuma prática de ensino que tivesse abordado a temática durante o
curso de Pedagogia. Uma parcela pequena (3%) não respondeu a essa questão;
e, para os que relataram alguma experiência na graduação sobre atividades
educativas em saúde (32,5%), foi solicitado que descrevessem em qual(is)
disciplinas havia ocorrido esse contato. As mencionadas encontram-se na
Tabela 3:
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LEONELLO, V. M.; L’ABBATE, S.
Tabela 3. Disciplinas elencadas pelos alunos - Campinas, 2002
Disciplinas
Classificação da disciplina
Fundamentos de Educação Especial
Obrigatória
Educação, Corpo e Arte
Obrigatória
Fundamentos do Ensino de Ciências
Obrigatória
Educação e Sexualidade Humana
Eletiva
Pensamento, linguagem e desenvolvimento
Obrigatória
Fundamentos em Educação Infantil
Obrigatória
Temas Transversais em Saúde
Eletiva
Total de citações
Subtotal de citações
6
4
3
2
1
1
1
18
Observa-se que todas as disciplinas selecionadas pelos alunos também são
relatadas na etapa de abordagem do currículo, mediante consulta das ementas
disciplinares (Quadro 4). Excetuam-se as disciplinas: “Educação, Corpo e Arte”;
“Pensamento, linguagem e desenvolvimento”, e “Temas Transversais em
Saúde” que, apesar de ter sido referida por um aluno, não constava do
currículo, pois não estava incluída nas disciplinas eletivas oferecidas pelo
Catálogo de Graduação de 2001, conforme análise anterior.
Quadro 4. Disciplinas elencadas durante a fase de abordagem do currículo – Campinas, 2002
Disciplinas
Fundamentos do Ensino de Ciências
Fundamentos em Educação Infantil
Educação e Cidadania
Escolas abertas à diversidade
Educação e Sexualidade Humana
Direito à Infância e Educação
Oficina sobre direitos humanos e Cidadania
Deficiência Mental
Classificação da disciplina
Obrigatória
Obrigatória
Eletiva
Eletiva
Eletiva
Eletiva
Eletiva
Eletiva
É interessante notar que as duas disciplinas obrigatórias mais citadas pelos
alunos não correspondem às duas disciplinas relacionadas durante a
observação do currículo. Isto evidencia que, para esses alunos, as disciplinas
“Fundamentos da Educação Especial” e “Educação, Corpo e Arte” tiveram
maior relação com o entendimento que eles fazem de Educação em Saúde.
A atuação efetiva do pedagogo referente à Educação em Saúde na
escola
Essa questão solicitava, ao alunos, que fizessem uma classificação da
atuação do pedagogo em relação à Educação em Saúde na escola. Essa
classificação poderia ser: indispensável e importante; dispensável, mas
importante; e dispensável e sem importância (Tabela 4). Foi solicitado aos
respondentes que justificassem suas respostas.
160
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EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA ESCOLA: UMA ABORDAGEM DO CURRÍCULO...
Tabela 4. Classifcação da efetiva atuação do pedagogo referente à educação em saúde na escola
- Campinas, 2002
Respostas
Indispensável e importante
Dispensável, mas importante
Dispensável e sem importância
Outro
Total
Vespertino
17
01
01
03
22
Noturno
17
01
0
0
18
Subtotal
34
02
01
03
40
% Total (40)
85,0
5,0
5,0
5,0
100
Observa-se que 85% do total de participantes da pesquisa consideram a
atuação do pedagogo como indispensável e importante, o que nos mostra a
sensibilização e a responsabilização dos graduandos do curso investigado em
relação ao desenvolvimento da Educação em Saúde na escola. As justificativas
para essa opinião foram diversas, conforme mostra a Tabela 5:
Tabela 5. Justificativa dos alunos que consideram a atuação do pedagogo frente à saúde escolar
como indispensável e importante – Campinas, 2002
Categorias
O espaço escolar deve formar o aluno integralmente,
incluindo a abordagem sobre a saúde
O espaço escolar é um ambiente importante para essa
abordagem
A atuação do pedagogo é importante para prevenção e
orientação sobre problemas relacionados à saúde
Porque saúde é fundamental para vida
Porque faz parte da formação da criança
Porque a saúde influencia o aprendizado
Para melhorar a qualidade de vida dos alunos
Para modificar hábitos relacionados à saúde
Porque é um tema transversal
Outros*
Total
Vespertino
03
Noturno
04
Subtotal
07
03
00
03
03
05
08
01
02
00
03
00
00
02
17
00
03
01
00
01
01
02
17
01
05
01
03
01
01
04
34
* Esses respondentes relatam a importância da atuação sem justificar suas respostas.
Observamos que há certa predominância em dois aspectos: o relacionado à
formação integral do graduando (sete das 34 respostas) e o que se refere à
Educação em Saúde como forma de prevenção e orientação sobre problemas
relacionados à saúde (oito respostas).
Três alunos reforçam a importância do espaço da escola para abordagem de
aspectos relacionados à saúde. Além disso, demonstram a preocupação de que,
em algumas situações, a escola é o único local onde o aluno pode tomar
contato com a temática da saúde, por isso, a importância da atuação do
educador. Esta posição é apoiada por Martinez (1996), quando sugere as
diferentes contribuições do ambiente escolar para saúde. Entre elas, o autor
cita a participação desse espaço na formação cultural do aluno; a conformação
de um ambiente que fornece/forneça a base da preparação para o mundo do
trabalho; e, finalmente, os conhecimentos específicos de cada disciplina em
relação à saúde.
Quanto aos que relataram que a atuação do pedagogo é dispensável, mas
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161
LEONELLO, V. M.; L’ABBATE, S.
importante, obtiveram-se as seguintes respostas: “Não é prioridade da escola,
no entanto, os alunos (alguns) recebem esse tipo de orientação só na
escola”. “Normalmente, a Educação em Saúde fica a cargo dos professores,
principalmente de Ciências. O pedagogo deveria cuidar de montar um projeto
mais amplo”.
Ressalta-se que, ao pensarmos a Educação em Saúde, não estamos colocando
em segundo plano a tarefa específica do espaço escolar, já que isso seria
totalmente incoerente com a proposta de se tratar a saúde como tema
transversal. Pensada como um aspecto que permeia o conjunto das experiências
vivenciadas pelo escolar, a Educação em Saúde deve ser construída em
colaboração com todas as disciplinas e, portanto, permear toda a proposta
curricular (Ministério da Saúde & Ministério da Educação e Cultura, 2002).
Considerando o total de respostas obtidas nessa questão, concluímos que os
futuros pedagogos, em sua maioria, mostram-se sensibilizados e responsáveis
pela questão da Saúde na escola, independente do modo como encaram e
percebem essa temática.
Relacionando essas últimas informações com a questão referente à formação
acadêmica do pedagogo para a abordagem da Educação em Saúde, observamos
que, apesar dos alunos de Pedagogia sentirem-se sujeitos importantes e
indispensáveis na promoção à saúde do escolar, prevalece o entendimento de
que tal abordagem não está presente ou não é explicitamente colocada no
conteúdo curricular durante sua formação acadêmica.
Opiniões sobre a necessidade de promover mudanças de atitudes e
comportamentos no escolar em relação à saúde.
Nesta quinta e última questão, perguntamos a opinião dos alunos referente
ao que é necessário para promover mudanças de atitudes e comportamentos no
escolar em relação à saúde.. Para facilitar a observação dos resultados obtidos,
distribuímos o conjunto de respostas em categorias: A, B, C e D (Tabela 6).
Tabela 6. Opiniões sobre a necessidade de promover mudanças de atitudes e comportamentos no
escolar em relação à saúde –Campinas, 2002
Categorias
A- Relacionado com o método pedagógico e
de comunicação para abordar a temática
com o aluno
B- Relacionado com a preparação de
professores e do currículo de Pedagogia
C- Relacionado com a abordagem da
temática nos conteúdos curriculares do
escolar
D- Relacionado com trabalho em conjunto
com comunidade, escola e saúde
E- Relaciona A, B e D
F- Relaciona A e C
G- - Outros
H- Não Respondeu
Total
162
Vespertino
Noturno
% Total (40)
06
Subtotal de
citações
14
08
04
04
08
20
03
03
06
15
02
01
03
7,5
01
00
02
02
22
00
01
03
00
18
01
01
05
02
40
2,5
2,5
12,5
5,0
100
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35
EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA ESCOLA: UMA ABORDAGEM DO CURRÍCULO...
A categoria A abrange o conjunto de respostas que referem a mudança de
comportamento e de atitudes do escolar em relação à saúde e à necessidade de
utilização de diferentes métodos pedagógicos e/ou de comunicação, como, por
exemplo: discussões, orientações, palestras, aulas e campanhas.
Em seguida, na categoria B, relacionada à preparação dos professores e do
currículo do curso, que forma esses profissionais para uma possível mudança
de atitudes e comportamentos do escolar em relação à saúde, estão 20% das
respostas. Alguns argumentos são citados abaixo:
É necessário que o currículo do curso de Pedagogia trabalhe esse
assunto e que alunos desse curso adotem uma nova postura em
relação à saúde e as informações sobre ela, não deixando as
informações apenas para os médicos e enfermeiros.
É necessário que os profissionais da escola tenham subsídios
suficientes para saber lidar com a saúde da escola em si e, para isto, é
necessário, por parte das faculdades de educação, estar abrindo espaço
para disciplinas da área de saúde no curso de Pedagogia.
Observamos, no primeiro depoimento, a preocupação do aluno em relação à
mudança de atitude dos próprios profissionais em relação ao que eles
entendem por Educação em Saúde na Escola, sugerindo que, desde a formação
acadêmica, a discussão seja apresentada ao pedagogo.
Já o segundo argumento, além de referir a importância da formação do
educador para a abordagem da temática na escola, considera que, no currículo
de Pedagogia, deve haver um espaço formal, por meio de disciplinas
específicas, para discussão de temas relacionados à saúde.
A categoria C, com 15% das respostas, inclui as respostas que consideram o
modo como a abordagem da saúde é tratada no currículo, como responsável
por essa provável mudança de comportamento.
Nessa categoria, foram inseridas respostas que consideram a necessidade de
uma abordagem específica, por intermédio de uma disciplina (dois alunos);
opiniões favoráveis à abordagem transversal da saúde (um aluno); relatos
sobre a importância da temática fazer parte do conteúdo curricular da escola
(três alunos); e, finalmente, uma sugestão de aulas “mais interessantes”, para
que favoreçam a mudança de comportamentos e de atitudes dos alunos em
relação à saúde.
A categoria D, que representa apenas 7,5% das respostas, considera que
mudanças de atitudes e de comportamentos relacionados à saúde só são
possíveis se houver uma construção crítica e coletiva com todos os agentes
envolvidos, isto é, professores, alunos, pais, comunidade, profissionais de
saúde. Ressalta, ainda, que, sem essa discussão coletiva, não é possível
envolver nem a escola, nem a comunidade:
Para mudanças de comportamentos e atitudes são necessários
conhecimentos e condições materiais para que as mudanças
aconteçam, caso se façam necessárias. E mesmo assim, nem sempre o
que é passado pela escola será tido como certo e único modelo a
seguir, pois o sujeito está inserido em outros grupos os quais lhe dão
outras referências. E há termos que envolvem outros aspectos que
podem, mesmo com o conhecimento teórico influenciar e muito em
suas atitudes.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.149-66, jan/jun 2006
163
LEONELLO, V. M.; L’ABBATE, S.
Aqui encontramos a crítica ao modelo informativo e com caráter coercitivo. De
acordo com Ramos (1989), tais práticas baseiam-se na educação como forma
de adaptação à ordem social, fazendo com que os indivíduos mudem de
comportamento e atitudes em relação à sua saúde de acordo com o modelo
médico vigente.
Essa forma de conceber a Educação em Saúde não estimula a autonomia do
indivíduo, pelo contrário, suprime-a de tal forma que o indivíduo não é sujeito
do processo educativo, mas objeto passivo e aquém da construção reflexiva
sobre suas condições de vida e de saúde (Cardoso de Melo, 1981; Apesar de
encontrarmos uma crítica em relação a esse modelo hegemônico na saúde,
apenas um aluno (2,5% do total de respondentes), levantou a discussão sobre
a temática. Grande parte dos estudantes de Pedagogia investigados (35% do
total) ainda não consegue fazer a correlação entre atividades educativas em
saúde e processo de construção de autonomia.
Conclusões
Ao abordarmos o currículo do curso investigado utilizando a técnica de leitura
exploratória das ementas disciplinares, observamos que não há disciplinas que
tragam explicitamente a temática da Educação em Saúde na escola.
Entretanto, consideramos a possibilidade do currículo em questão trabalhar
com a temática da Educação em Saúde de maneira transversal, ou seja,
perpassando as disciplinas obrigatórias e optativas do curso. Dessa forma, não
haveria a necessidade de trazer a questão explícita na ementa disciplinar.
Entretanto, ao questionarmos os alunos, observamos que a maioria (65%)
ainda não identifica a Educação em Saúde no currículo, fato que nos faz
questionar a existência da abordagem transversal do tema durante o curso.
Acresce-se a isso que a maior parte dos alunos (85%) considera a atuação do
pedagogo importante e até indispensável para o desenvolvimento da Educação
em Saúde no ambiente escolar.
Apesar da importância dada à temática, notamos também que o
entendimento da Educação em Saúde, para esses alunos, volta-se,
principalmente, para uma abordagem reducionista da saúde, na qual o
processo de mobilização social e construção da autonomia dos escolares e da
comunidade é considerado, apenas, por um número reduzido de graduandos.
Ao estudarmos a inserção desta temática no currículo desse curso,
entendemos que o principal eixo norteador da educação escolar e, portanto,
atributo do papel do educador, é a construção e desenvolvimento da cidadania
e autonomia dos escolares. Nesse contexto de princípios democráticos, nos
quais se incluem a dignidade da pessoa humana, igualdade de direitos,
participação e co-responsabilidade pela vida social, “a educação cidadã
concorre para a compreensão da saúde como direito. Mais do que isso,
promove o exercício desse direito através da capacitação para agir,
individual e coletivamente” (Ministério da Saúde & Ministério da Educação,
2002, p.8).
Dessa forma, consideramos necessário e fundamental que o currículo da
formação do pedagogo possibilite a reflexão crítica do aluno referente a tal
temática, com o objetivo de que o entendimento desse aluno no campo da
Educação em Saúde ultrapasse uma concepção fragmentada, medicalizada e
reducionista. Afinal, acreditamos na importância de o currículo ser flexível e
adaptado à realidade social, expressando assim “uma visão de mundo, de
164
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.149-66, jan/jun 2006
EDUCAÇÃO EM SAÚDE NA ESCOLA: UMA ABORDAGEM DO CURRÍCULO...
homem, de sociedade e, portanto, de educação e, também, de saúde”
(Bagnato, 1994, p.148).
Nossas conclusões permitem considerar que o primeiro, senão o maior,
desafio para a melhoria das condições de vida da população e,
conseqüentemente, da promoção da saúde, passa por um maior
comprometimento das instâncias governamentais, pelo processo de
planejamento e efetivação de políticas públicas saudáveis. Entretanto, é
igualmente instigante a tentativa de, mediante uma mobilização coletiva
consciente e crítica, envolver o conjunto de atores sociais incluídos nesse
processo - profissionais de saúde, de educação e a própria comunidade.
Concluímos, finalmente, pela necessidade urgente de uma maior
articulação entre os responsáveis pelos setores da educação, da saúde e
representantes da comunidade, no sentido de refletir e debater as temáticas
da Educação e da Saúde e, sobretudo, a relação entre os dois campos.
Acreditamos que tal articulação irá contribuir para a construção de uma
concepção mais integrada e crítica da Educação em Saúde e também da
Saúde em Educação
Educação, capaz de nortear ações coletivas e planejadas de saúde e
de educação que sejam condizentes com a realidade social.
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.149-66, jan/jun 2006
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LEONELLO, V. M.; L’ABBATE, S. Educación en la salud en la escuela: un abordaje del
currículo y de la percepción de alumnos de graduación en Pedagogía. Interface Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10, n.19, p.149-66, jan/jun 2006.
Mediante la investigación descriptiva, este artículo analiza la manera cómo la educación
de salud ha sido abordada en el currículo de graduación en pedagogía de una universidad
provincial paulista. La investigación fue dividida en dos etapas: la primera analiza el
currículo del curso y la segunda, la comprensión que los estudiantes de pedagogía tienen
del tema, por intermedio de respuestas a un cuestionario. Con relación al currículo, se
observó que dos de las 73 disciplinas analizadas trabajan explícitamente la Educación en
Salud en la escuela. Las respuestas de los alumnos demostraron que 65% de los
encuestados no perciben ese abordaje en su currículo, aunque 85% consideran la
actuación del pedagogo indispensable para el desarrollo del tema en el ambiente escolar.
Se concluye que es fundamental que el currículo del pedagogo contemple, críticamente,
la temática de la Educación en Salud, debido a su importancia para la vida y la
ciudadanía de los estudiantes secundarios.
PALABRAS CLAVE: educación de salud. universidades. educación superior. curriculum.
Recebido em: 26/04/05. Aprovado em: 04/10/05.
166
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.149-66, jan/jun 2006
Tarr
afa de pescaria: o uso de carta na pesquisa
arrafa
Ana Alcídia Araújo Moraes 1
MORAES, A. A. A. Fishing cast net: the use of letters in a study. Interface - Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10,
n.19, p.169-84, jan/jun 2006.
The text shares an experience in which letters were used as one of the means for collecting information for an
investigation. The period of investigation went from 1996 to 1997 and involved 16 letters sent by the
researcher and 13 letters received in response from the research subjects. Letters, missives or epistles are a
resource rarely used in research, though some studies report that lately their use has been growing. The letters
collected in this study reflected a crisscrossing of reader-professor histories, as they were sometimes similar
and sometimes different, in the natural movement of histories that were also underscored by other voices and
by different times, spaces and transposed pathways. The use of letters showed itself to be a generator of links
of enchantments, of the crisscrossing of affective and cultural relationships between the investigator and the
professors and a self-education alternative.
KEY WORDS: correspondence. teaching. education. research methodology.
Analisa-se uma experiência que usa a carta como um dos recursos de coleta de informações em pesquisa. O
caminho percorrido, no período de 1996 a 1997, envolveu 16 cartas enviadas pela pesquisadora e 13 cartas
como respostas das professoras que representavam os sujeitos investigados. A carta, missiva ou epístola ainda
tem sido um recurso pouco utilizado na pesquisa, embora alguns estudos dêem conta de que mais
recentemente seu uso venha crescendo. As cartas, recolhidas pelo movimento da pesquisa desenvolvida,
trouxeram à tona um entrecruzamento de histórias de leitoras-professoras que, em alguns momentos,
assemelham-se e, em outros, diferenciam-se, num movimento natural de histórias que são marcadas também
por outras vozes e por diferentes tempos, espaços e trilhas percorridas. O uso da carta revelou-se, assim, como
um gênero que estabeleceu elos de encantamentos, entrecruzamento de relações afetiva e cultural entre a
pesquisadora e as professoras, e alternativas de autoformação.
PALAVRAS-CHAVE: correspondência. ensino. educação. metodologia de pesquisa.
1
Professora, Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde, Universidade Federal de Sâo Paulo, Cedess/Unifesp, SP;
Faculdade de Educação, Universidade Federal do Amazonas, AM. <[email protected]>
1
Rua Tucuna, 913, apto. 45
Perdizes - São Paulo, SP
Brasil - 05.021-010
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.169-84, jan/jun 2006
169
MORAES, A. A. A.
Situando o contexto da pesquisa
O presente texto relata uma experiência de pesquisa2 que usa a carta como um
dos recursos de coleta de informações. A referida pesquisa, utilizando-se da
narrativa de histórias de vida como instrumento de investigação, buscou
conhecer as histórias de leitura de professoras que exercem a docência na
cidade de Parintins-AM.
A alternativa de usar a carta para esse fim foi motivada, principalmente,
por dois aspectos: um deles, o meu desejo de realizar a pesquisa voltada para o
contexto amazônico, meu lugar de atuação profissional; o outro, por ser este
um lugar ainda pouco pesquisado no campo da educação.
Nesse cenário, tentei arquitetar uma estratégia que possibilitasse resolver o
impasse em que me encontrava, cursando doutorado em São Paulo e
querendo fazer a pesquisa no município de Parintins, no Estado do Amazonas.
Pelo cronograma da pesquisa, a coleta de dados estava prevista somente
para 1997. Até lá, eu estaria cumprindo créditos e a distância geográfica
tornava bem concreta a separação espaço/tempo que me afastava do contexto
da pesquisa, Parintins/AM.
A cidade de Parintins fica a 420 km de Manaus. Tem o relevo natural e
exótico de uma ilha, com 7.069 km de superfície, situada à margem direita do
Rio Amazonas, e formada pelo Paraná do Limão, Anhinga, Redondo, Lagoa
Francesa, Lago do Paranapanema e Lago do Macurany; é cercada pelas águas
amareladas-barrentas do rio Solimões.
Uma das poucas e a mais importante via de acesso que liga Manaus a este
município é o transporte fluvial. Descendo o curso do rio, de barco, até
Parintins, é possível observar vários fenômenos próprios da Região Amazônica:
o “Encontro das Águas” é o primeiro fenômeno natural que ornamenta a
paisagem de um lugar esculturado pela confluência das águas do Rio Negro
com as águas do Rio Solimões.
Os arredores da ilha guardam uma beleza extravagante: a Serra de
Parintins, formação rochosa de cerca de 152 m de altitude, de onde é possível
vislumbrar a Floresta e o Lago da Valéria, com uma vegetação típica da região
amazônica - a “Vitória Régia”. Na época da vazante, surgem lindas praias às
margens do rio Uaicurapá. Mas para descrever o cenário geográfico, com a
propriedade de quem tem laços mais firmes com o enredo do lugar, nada
melhor do que uma filha da terra:
A cidade de Parintins fica numa das Ilhas Tupinambarana, a cidade,
o município todo está incluído no Arquipélago Tupinambarana, o
município está dentro do arquipélago. Parintins limita-se com o
Estado do Pará, com o município de Nhamundá, de Urucará, um
trecho de Barreirinha e Urucurituba. Parintins é o centro de toda
essa região aqui, de todas as cidades e municípios em volta, porque
fica bem localizada, fica num lugar estratégico da situação
geográfica. É uma Ilha cercada de dois lagos, Macurany e
Parananema, a Lagoa da Francesa e, na frente, o Rio Amazonas. Os
municípios mais próximos daqui são Barreirinha (duas horas e meia,
três horas) e Nhamundá (quatro horas de viagem). (Pacheco)
170
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.169-84, jan/jun 2006
2
Moraes, 1999.
TARRAFA DE PESCARIA: O USO DE CARTA NA PESQUISA
Naquele momento, meu maior desafio, enquanto pesquisadora, era criar
possibilidades que, de algum modo, me permitissem uma primeira
aproximação com esse lugar. Para Demo (1985), a tarefa de pesquisar
exige, do(a) pesquisador(a), criatividade, pois pesquisa envolve a técnica,
mas igualmente é arte. As sugestões metodológicas são importantes à
medida que favorecem a criação da pesquisa. Nesse sentido, o autor alerta
que:
A metodologia é somente instrumento para chegarmos lá.
Discutimos os caminhos possíveis, os já vigentes, os que
poderíamos inventar, os discutíveis, os que já se superaram, e
assim por diante. Não vale a pena entreter-se de tal modo com
questões metodológicas que não cheguemos a fazer a pesquisa...
(Demo, 1985, p. 22)
Seguindo essa perspectiva sugerida pelo autor, comecei então a “ruminar”
idéias para ultrapassar os percalços resultantes da distância. Sabia que,
somente por telefone, ficaria inviável uma aproximação mais fiel/concreta
com o contexto investigado. Como já havia estabelecido alguns contatos
por meio de cartas com uma das professoras, agarrei-me ao recurso da
prática epistolar como via de acesso para adensar minha comunicação
também com as outras três.
Minha intenção inicial era usar as cartas como um recurso que me
possibilitasse uma espécie de um primeiro contato com as minhas parceiras
de pesquisa, uma necessária (re)aproximação com essas professoras (exalunas), antes de poder estar com elas pessoalmente para realizar a
entrevista. Agindo assim, pensei que conseguiria reduzir as distâncias entre
a pesquisadora e o contexto da pesquisa - escrever e receber cartas foi a
fórmula (naquele momento até encantadora) de começar a estabelecer uma
relação com aquelas que seriam as minhas parceiras na pesquisa que se
iniciava.
No vaivém das cartas, fui percebendo que elas eram portadoras de um
conjunto de informações que me estimulavam a intensificar o fluxo das
correspondências e que, ao mesmo tempo, me faziam refletir sobre a
legitimidade do uso das cartas como um instrumento de pesquisa, tendo
em vista que esse uso implica situar a carta em um espaço que não é o
espaço da intimidade, onde comumente a escrita de carta se constrói. A
inquietação levou-me a uma busca bibliográfica com o propósito de
encontrar algum respaldo para minha intenção de usar as cartas como
estratégia de coleta de dados para a pesquisa.
A carta: (re)conhecendo a diversidade de seus usos
Já faz algum tempo que o mercado editorial brasileiro tem lançado
publicações portadoras de escritos epistolares. A divulgação desses escritos é
reveladora do conteúdo intimista e privativo que as cartas carregam, uma
vez que se tornam do conhecimento público fatos, episódios e aspectos
desconhecidos e antes restritos ao domínio dos correspondentes, em
algumas situações, pessoas anônimas. Este é o caso, por exemplo, da
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.169-84, jan/jun 2006
171
MORAES, A. A. A.
publicação de um conjunto de cartas que Mário de Andrade enviou a vários
de seus interlocutores, fato que o revela como um missivista constante.
Dentre os interlocutores que trouxeram a público as suas cartas, podemos
citar os nomes de: Manoel Bandeira (1958 e 1967), Carlos D. de Andrade
(1981), Fernando Sabino (1981), Oneyda Alvarenga (1983) e Anita
Malfatti (1989). Vale lembrar que essas cartas, originalmente, não tinham
a publicação de seu teor (privado) como horizonte de destinação, uma vez
que havia um destinatário bem demarcado que, certamente, não
pressupunha o grande público como seus leitores (destinatários). Além
disso, o teor desses escritos epistolares não se destinava a servir como
objeto de análises ou subsídio de investigação.
Nessa busca bibliográfica, além desses escritos que versam sobre cartas,
tive acesso à pesquisa de doutorado de Santos (1994), que se debruça
sobre o tema em questão, analisando aspectos conceituais, normativos e
éticos, bem como o uso desse meio de comunicação na literatura. Também
encontrei o estudo de Rocha (1997), “Abelardo-Heloísa: cartas”, sobre a
correspondência entre Abelardo e Heloísa, relatando fragmentos de suas
histórias de vida, aventuras, desventuras e as vicissitudes do drama de
amor que os dois viveram. Por intermédio das missivas, o autor consegue
apresentar o contexto histórico-cultural em que se dava a comunicação
entre os dois. O trecho a seguir pode dar uma breve idéia sobre isso:
As cartas mostram claramente que Abelardo e Heloísa viveram
suas vidas em dois grandes mundos: o mundo das Escolas e o
mundo dos Mosteiros. Pois bem, o renascimento cultural e
religioso do século XII modificou profundamente as estruturas
destes dois mundos. (Rocha, 1997, p.42)
A carta, missiva ou epístola permite a comunicação manuscrita ou
impressa com uma ou várias pessoas que estejam (em geral) distantes/
ausentes do lugar e do tempo de onde se escreve. O ato de escrever cartas
sempre (ou quase sempre) traz consigo a preocupação de ser entendido ou,
mesmo, a insegurança e a vergonha de escrever para alguém que, do outro
lado do papel e de um outro espaço geográfico, vai penetrar nas palavras,
nos sentidos das narrativas e nas histórias de vida de quem escreveu. Para o
autor-escritor da carta, existe sempre um leitor-destinatário situado em um
determinado espaço-tempo histórico. Por isto, quem escreve sempre tem
presente questões dessa ordem: para quem se escreve; o que escrever;
como escrever para ser entendido; o que pode ser escrito/partilhado com
o outro; o lugar-tempo de onde se escreve e para o qual se escreve.
A carta é um gênero primário do discurso propício para refletir a
individualidade daquele que escreve. Ela pode permitir, de forma bastante
demarcada, a passagem da palavra do autor para o seu destinatário. A
alternância de falantes ocorre porque se trata de um gênero mais próximo
da oralidade e, por isso, permite a quem escreve dizer tudo aquilo que
queria dizer, de tal forma que, ao ler, o destinatário percebe um
acabamento do querer dizer do autor e, segundo os estudos de Bakhtin
(1997, p.290), simultaneamente adota uma “atitude responsiva” em
172
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TARRAFA DE PESCARIA: O USO DE CARTA NA PESQUISA
relação à provocação feita por este – discorda, concorda, complementa,
afirma, opõe, consente, reage.
Na carta, essa atitude responsiva do leitor-destinatário pode ser
retardada pela característica que o gênero oferece – o autor escreve de um
lugar e tempo determinado e o destinatário lê de um outro lugar e em
outro tempo. Por isto, a resposta esperada pelo autor não acontece de
imediato, como ocorre em outro diálogo em que destinatário e autor
estejam num mesmo espaço/tempo.
A carta ainda tem sido um recurso pouco utilizado na pesquisa, embora
alguns estudos dêem conta de que mais recentemente seu uso venha
crescendo. Uma investigação muito interessante, que talvez possa ser
situada como um marco inicial da utilização de cartas como instrumento de
coleta de dados, é a de Demartini (1988). Seu texto, intitulado Histórias de
vida na abordagem de problemas educacionais, relata o processo de
investigação das memórias de professores que lecionaram durante a
Primeira República no Estado de São Paulo, discutindo o uso das cartas
como uma alternativa de realização da pesquisa:
[...] como nem sempre dispúnhamos dos telefones dos
professores indicados, e também porque ligações interurbanas
para todos eram inviáveis aos custos da pesquisa, resolvemos
estabelecer contatos com os mesmos inicialmente através de
cartas nas quais explicávamos o objetivo da pesquisa e
solicitávamos a colaboração; pedíamos que escrevessem
contando sobre sua vida e especialmente sobre alguns aspectos
que para nós eram importantes. (Demartini, 1988, p.53-4)
Este trecho dá pistas de que lançar mão das cartas foi a via que se
apresentou, naquela situação, como a única possível para levar a pesquisa
adiante. Começar a corresponder-se, com os professores, por cartas foi a
possibilidade viável (em comparação com os custos que um outro
movimento acarretaria) para estabelecer contatos com os pesquisados,
dispersos pelo interior de São Paulo. Mas o relato da autora (1988)
testemunha que a troca de cartas, além de revelar-se como estratégia
extremamente importante para a pesquisa, também trouxe momentos de
encantamento para as pessoas envolvidas no processo da pesquisa.
O escritor de cartas pode estimular um jogo de perguntas e respostas
dialogando com o leitor – formula perguntas, responde-as, opõe objeções,
refuta idéias; deduz o querer dizer do outro e faz novas perguntas a partir
da provocação. Assim, fica estabelecida uma dinâmica de comunicação em
que a resposta do seu interlocutor é uma possibilidade presente-ausente,
próxima-distante, ainda que emudecida por algum tempo. Talvez por isto a
carta seja um gênero que estabelece elos de encantamentos mágicos e
sedutores, podendo entrecruzar relações afetivas e culturais entre as
pessoas.
Uma outra pesquisa que faz uso da prática epistolar é a de Vencio
(1996), que relata a experiência do povo Jarawara com a escrita de cartas. O
estudo destaca a troca de cartas entre esses índios como uma alternativa
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MORAES, A. A. A.
que possibilita mudanças na educação escolar indígena, que historicamente
vem sendo marcada pelo modelo de escola do não-índio. Nessa perspectiva,
a autora enfatiza que:
A modificação mais profunda que fizeram foi a mudança da
função que receberam para a escrita através da substituição do
livro didático impessoal, pré-elaborado, que foi trocado pela
CARTA, que se tornou o Livro Didático Jarawara, pessoal e em
constante elaboração. A carta se tornou o meio e o fim do
letramento. Além disso, criaram a CARTA JARAWARA, tendo
como característica principal o fato de ser escrita por uma
pessoa em particular mas lida por todas. (Vencio, 1996, p.4)
A prática epistolar na pesquisa com professoras de Parintins
Na pesquisa em foco, escrever cartas foi uma possibilidade de narrar
experiências vividas e permitiu abrir um diálogo entre a pesquisadora e as
professoras-participantes, estabelecendo-se como uma das fontes de
informações para essa investigação, que se utilizou também das narrativas
orais.
Neste sentido, para suscitar a atitude responsiva nas minhas parceiras
de pesquisa, sabia que precisaria utilizar-me de artifícios estratégicos da
escrita capazes de seduzir, convencer, provocar e catucar, instigando-as à
troca de cartas, permitindo-me, assim, adentrar sutilmente nas suas
histórias de leitura. Em relação a isso, é interessante o que Neves (1988
apud Nunes & Carvalho, 1993) explica sobre a teoria da carta, tratando-a
com base em questões que coloca sobre sua constituição, estatuto,
cronologia, entre outros aspectos. Neves (1988), ao se perguntar o que
constituiria uma história da carta, remete-se a diferentes possibilidades de
leitura que a mesma encerra, tais como:
[...] às relações de regras de reciprocidade (análise de envios e
respostas); aos temas favorecidos pelo uso desse suporte; às
características de sua materialidade; aos critérios que presidem a
sua guarda ou destruição; ao seu caráter de ‘encaixe’ em séries
materiais ou epistêmicas; à variedade construída dentro desse
gênero (a carta a desconhecidos, a si mesmo, a qualquer pessoa,
a carta aberta, a carta que só pode ser aberta em certa situação,
a carta a amigos etc...); à análise quanto aos ritos de
tratamento, interpelação, regras de polidez [...].
(Nunes & Carvalho, 1993)
O processo de correspondência que tentava dar início trazia-me algumas
preocupações que, de certo modo, iam ao encontro das indicações de Neves
(1988) pois, ao iniciar a escrita das cartas destinadas às minhas amigas,
levantava questões/preocupações mais centradas no que e no como
escrever, para não tornar a leitura enfadonha e, ao mesmo tempo, ser bem
compreendida nos meus objetivos: corresponder-me para recolher dados
que seriam úteis para a pesquisa.
174
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TARRAFA DE PESCARIA: O USO DE CARTA NA PESQUISA
3
Trechos de uma carta
que enviei às
professoras, de São
Paulo a Parintins, em
13 de junho de 1996.
Pensando um pouco nisto, procurei escrever numa linguagem informal
e amistosa, tentando fazer (e querendo) com que as minhas leitorasdestinatárias se sentissem à vontade para ler, e que, principalmente,
gostando da leitura, se colocassem também à vontade para escrever com
descontração sobre qualquer assunto que desejassem partilhar comigo.
Além do caráter informal que procurei dar às cartas, também, vez por
outra, usava alguns trechos literários, tentando embelezar meus escritos,
embalada por outras vozes, entoando outros coros de palavras já antes
decantadas em diferentes contextos, textos e intertextos, enunciadas por
diversos autores, de modos, maneiras e lugares diferentes.
Assim, com essas preocupações, dei início à minha prática epistolar com
as professoras que habitam a Ilha de Parintins, localizada no Estado do
Amazonas. As cartas parecem ter esse poder mágico: fala-se com quem não
está presente e consegue-se chegar (às vezes demorando uma semana) em
lugares onde a nossa imaginação (e outros meios de comunicação mais
modernos) chega bem mais rápido.
Na primeira carta para as três professoras, inicialmente, senti-me
desafiada, como escritora-autora, a seduzir cada uma das minhas leitoras,
conquistando a sua aquiescência definitiva para participar da pesquisa
(tinha receio de que recuassem no aceite que havia ficado garantido por
telefone). O segundo desafio que tinha pela frente era conseguir deixar
claro (sem amendrontá-las) o que seria o trabalho e qual seria a
participação das mesmas. Imbuída deste propósito, tentei, nesse
(re)encontro de conversas escritas ou (re)encontro de manuscritos ou
ainda (re)encontro epistolar, envolvê-las em minhas lembranças saudosas
do lugar e das pessoas que ali habitam; reafirmei o prazer de poder fazer o
trabalho lá e assim poder revê-las; falei do meu interesse (mais que isso paixão) pela temática - leitura e formação de professor.
Além de ressaltar a importância de um trabalho em que o professor
narre a sua própria história de formação — e daí a necessidade da
participação das mesmas na pesquisa —, utilizei-me de algumas palavras do
poeta amazonense Thiago de Melo (1975), para embalar minha conquista
premeditada, expressas nesse pequeno trecho3 da primeira carta enviada:
A familiaridade com esse lugar e com as pessoas daí dá uma
marca de identidade a essa pesquisa, despertando-me um
sentimento que me remete ao que nos fala o poeta Thiago de
Melo:: “Piso firme no meu chão, sei que estou no meu
lugar, como a panela no fogo e a estrela na
escuridão.
Iniciei com o poeta Thiago de Melo e quero finalizar esse nosso
primeiro encontro com as suas palavras que, ao meu ver,
retratam a importância de um trabalho que tente tornar o
professor o contador de sua própria história: “O que passou
não conta?, indagarão as bocas desprovidas. Não
deixa de valer nunca. O que passou ensina com sua
garra e seu mel. Por isso é que agora vou assim no
meu caminho. Publicamente andando.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.169-84, jan/jun 2006
175
MORAES, A. A. A.
A estratégia das cartas, enquanto instrumento de coleta de informações
para a pesquisa, deixou-me em diversos momentos intranqüila em razão do
tempo que demorava para receber as respostas. Algumas demoravam até
mais de um mês para chegar – a tarrafa4 enroscou-se diversas vezes no
fundo do rio – e foram necessárias diversas fisgadas (telefonemas) para
conseguir desenroscar a rede lançada. Isso vem confirmar que a pesquisa
tem suas dificuldades e limitações impostas pela sua própria natureza. E,
neste caso específico, enfrentava um obstáculo, até certo ponto, “grande”,
mas que lhe é quase intrínseco: o fato de usar como um dos instrumentos
para registrar as histórias das professoras a prática epistolar, o que exige,
por parte das narradoras, um exercício solitário de auto-reflexão, fazendo-as
voltarem o olhar para as suas histórias de práticas de leitura, modos/
maneiras de ler e materiais lidos. Afora isso, a tarefa de organizar as idéias
para escrever pode demandar algum tempo porque não é algo tão simples,
pelo menos para a maioria das pessoas. Para essas professoras, também
parecia mais fácil relatar oralmente do que escrever, tanto que, em alguns
diálogos mantidos por telefone, elas falavam sobre trechos de suas histórias
(indagados nas cartas) com muita desenvoltura e, ao contar oralmente,
elas queriam considerar como respondidas as cartas que recebiam. Tentei
compreender e aceitar a demora nas cartas-respostas como uma dificuldade,
até certo ponto, inclusa nos planos de uma pesquisa que usa a prática
epistolar como instrumento de investigação.5
Num espaço de um ano e três meses (março/1996 até junho/1997),
escrevi, ao todo, dezesseis cartas para as minhas parceiras: pedindo novas
informações e também reforçando o pedido de informações já solicitadas
em cartas anteriores. E, a partir de abril de 1996 até julho de 1997, recebi,
ao todo, de três professoras, treze cartas.
Durante esse período, tentei ir recolhendo respostas às seguintes
provocações: a escola, a série e as disciplinas do magistério em que
trabalhavam; o trabalho com as disciplinas em sala de aula; a leitura na
infância (dentro e fora da escola); lembranças das experiências e momentos
marcantes com a leitura em suas vidas; a formação enquanto leitora;
influências da família e da escola na formação da leitora; leituras
obrigatórias; acesso aos materiais escritos; influências da formação de
leitora na atuação como professora; leituras mais recentes; formação
acadêmica (do curso inicial aos mais recentes).
As cartas que chegavam traziam as seguintes preocupações sobre: para
quem estavam escrevendo (a amiga, mas também a ex-professora); o que e
como escrever; e, possivelmente, que assuntos/aspectos poderiam ser
contados/partilhados por cartas. A preocupação com a apresentação da
escrita, por estar escrevendo para a ex-professora, transpareceu
principalmente na fala6 de duas delas: “Desculpa as falhas, pois estou fora
de forma em escrever a máquina” (Socorro). “A máquina é velha e a
datilógrafa pior ainda” (Pacheco).
À medida que recebia as cartas, ia organizando as informações, fichandoas com base nos focos temáticos que transpareciam das leituras das
mesmas. Destaquei de cada carta focos que me orientassem como
subtítulos; passei para o computador as informações, tomando o cuidado
176
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.169-84, jan/jun 2006
4
Tarrafa – rede de
pescaria. Metáfora que
utilizo referindo-me à
pesquisa. Pescar –
pesquisar.
5
Acresça-se a isto a
questão da
dependência de um
serviço externo – os
Correios – para
garantir a entrega das
cartas.
Trechos de duas
cartas, de diferentes
sujeitos, enviadas para
mim de Parintins-AM a
São Paulo, uma datada
de abril/96 e a outra
de 17/set/96.
6
TARRAFA DE PESCARIA: O USO DE CARTA NA PESQUISA
de, ao usar fragmentos dos textos, não deslocá-los do contexto original da
narrativa, ou seja, mesmo usando trechos em outros lugares, a meu ver,
necessários para a minha própria orientação, deixá-los naqueles lugares dos
relatos onde, naturalmente, apareciam. Nesses fichamentos,
primeiramente, ia tentando perceber os temas em cada carta, depois, no
conjunto de cartas de cada uma das professoras. Feito isso, fui procurando
apreender os temas comuns nos três conjuntos que consegui compor. Os
dados fichados por títulos temáticos foram me permitindo colocar novas
indagações sobre a produção brasileira que vê o professor como um nãoleitor, e sobre a prática de leitura daquelas professoras, revelada naqueles
relatos. Fui ampliando uma visão que contrastava com uma representação
de que os professores não lêem.
Com a intenção de avivar as memórias e, assim, provocar lembranças das
suas próprias histórias de leitura, enviei uma carta acompanhada de três
textos: um de Paulo Freire – A importância do ato de ler (1993); outro de
Ezequiel Silva – Literatura e pedagogia: reflexões com relances de
depoimento (1990), e outro de Lygia Bojunga Nunes – Livro: eu te lendo
(1990). Nestes textos, os autores contam episódios de suas histórias de
leitura. Com essa estratégia, esperava fazê-las (re)viver, (re)passar o filme
de suas histórias de vida para que pudessem (re)encontrar a boniteza
contida também nas suas próprias histórias de leitura e formação.
Uma outra estratégia que utilizei para lançar (outra vez) a tarrafa no
rio, ou seja, dar continuidade ao processo de construção da pesquisa, foi
cruzar os trechos das histórias contidas nas cartas, para que o fragmento
da história de uma mexesse com a história de outra, esperando desta
maneira causar ressonâncias no sótão de lembranças adormecidas na
memória. Com isto, pretendia especular a história de uma com os
fragmentos da história das outras, tentando, assim, afinar um acorde de
vozes (informações) içadas pela rede na correnteza do rio. Essa “artemanha” de que lancei mão para alcançar o não-dito sobre as histórias das
professoras, que interessava para a pesquisa, remete-me ao que pondera
Demo (1985) sobre a garantia da construção do conhecimento científico,
por meio da pesquisa, como finalidade básica da ciência. Em relação a isso, o
autor ressalta que o pesquisador precisa ser criativo:
Como em tudo na vida, a ciência não é ensinada totalmente,
porque não é apenas técnica. É igualmente arte. E na arte vale a
máxima: é preciso aprender a técnica, para termos base
suficiente: mas não se pode sacrificar a criatividade à técnica;
vale precisamente o contrário; o bom artista é aquele que
superou os condicionantes da técnica e voa sozinho [...]. (Demo,
1985, p.22)
(Re)encontro com as cartas
Com o objetivo de encontrar um fio condutor que me alinhasse na
construção de um instrumento para recolher informações em agosto/
1997, quando pretendia estar com as professoras para entrevistá-las, fiz
uma leitura do conjunto de todas as cartas que havia recebido. Essa
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MORAES, A. A. A.
releitura revelou-se como uma experiência de descoberta, de nova chamada
de atenção para pontos que antes haviam passado despercebidos pelo meu
olhar, num primeiro momento, atento para outras informações.
Comecei a perceber que as histórias daquelas leitoras-professoras, em
algum momento (tempo/espaço), cruzavam-se com a minha própria
história, também de leitora-professora. Nas suas narrativas, as três
professoras lembravam a disciplina que eu havia ministrado no Curso de
Licenciatura em Letras como um marco importante nas suas trajetórias de
leitoras. Descubro-me, assim, como uma personagem nas suas histórias de
formação de leitoras-professoras. Uma das falas expressa em uma das cartas
que me permitiram esta descoberta foi a seguinte:
[...] eu não gostava de ler. Porém, ao ingressar no curso de
graduação, tendo como primeira disciplina METODOLOGIA DO
ESTUDO e ainda por cima tendo recebido uma literatura
diferente das que vira anteriormente (livro didático), sofri um
impacto devastador (...) És grande responsável por esta brusca
mudança!7
Uma história sozinha, anônima, esquecida, silenciada e não revelada parece
não ter significado, mas, quando é pensada e situada num determinado
contexto de formação e é partilhada com outros parceiros, é possível
perceber que, no entrelaçamento das histórias individuais, aparece uma
dimensão coletiva que a constitui. Por esta razão, ao ler as narrativas
contidas nas cartas, fui percebendo que nossas histórias representam um
caminho perpassado por outras. São histórias aparentemente solitárias,
mas construídas no coletivo dos “sentidos” de outras, de outros percursos
que, ao se cruzarem quase despercebidamente, (se)construíram e
(re)construíram cada trajetória individual contextualizada no coletivo de
um mesmo espaço de formação - a escola, a sala de aula e para além
delas.
Descobrir-me como personagem daquelas histórias me fez ver que as
histórias de formação (minha e de outros) podem ajudar a formar outros,
porque nos permitem não só refletir sobre aquilo que foi feito, mas
fundamentalmente descobrirmo-nos como autores de uma trama que é
tecida no conjunto de outras histórias de outros homens e mulheres
(leitores-professores), histórias que se movem, que se parecem e se
diferenciam, que se identificam e se confrontam. Enfim, percebermo-nos
como construtores, e não só consumidores, de histórias que, assim como a
rebeldia das águas, no banzeiro de um rio, não se movem linearmente em
uma única direção. É justamente nessa história em construção que se
insere e se movimenta a história da leitura e das professoras leitoras.
Outra informação que considerei muito instigante foi revelada nos
fragmentos de cartas de duas professoras:
[...] sobre minha vida de leitora, infelizmente não tenho muita
história. A leitura propriamente começou em minha vida quando
passei no vestibular e comecei o curso de Letras. Nesse período,
178
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7
Trechos de uma carta
que recebi de
Parintins-Am, datada
de 08 de julho de
1996.
TARRAFA DE PESCARIA: O USO DE CARTA NA PESQUISA
percebi que a leitura é um fato importantíssimo na vida de
Trecho de uma cartafax da Socorro que
recebi em nov/96
8
9
Trecho de uma cartafax da Pacheco,
recebida em nov/96.
Depoimento
recolhido em 1998.
10
qualquer pessoa, sobretudo na vida de um professor.8
A minha história de leitora é como a da maioria dos brasileiros.
Tem pouco a acrescentar.9
Estas duas falas podem estar revelando uma diluição das teias de uma
história pessoal no conjunto de outras histórias. Isto fica mais
transparente nesses relatos, quando o narrador silencia a sua própria
história, referindo-a como desprovida de sentido ou significado. Como
alguém que não se inclui como fazedor da história, porque a versão oficial
parece silenciar as histórias do cidadão comum, ao mesmo tempo que cria
estratégias de valorização do percurso de leitura de uma minoria de
homens e mulheres socialmente denominados e reconhecidos como
ilustres.
Além dessas revelações, outras também apareceram nos relatos das
cartas: a formação acadêmica; aspectos do trabalho com a leitura em sala de
aula; o desencanto e/ou entusiasmo com a profissão; aspectos da
constituição da leitora; influências da família na formação de leitora;
momentos marcantes na vida da leitora, idéias a respeito do que vem a ser
o leitor.
Em agosto de 1997, quando reli todas as cartas recebidas/escritas, logo
de início me chamou a atenção a alegria da carta de Pacheco, escrita há um
ano, pela vitória do boi Caprichoso e a esperança, quase certeza, de que
naquele ano de 1997 chegaria ao “tetra”. Um ano de tempo vivido em
troca de cartas e, naquela releitura, me deparava com a confissão de sua
tristeza pela derrota do Caprichoso e a vitória do boi contrário, o
Garantido.
Considero importante esclarecer que meu comentário sobre o que a
Pacheco fala nessa carta refere-se a uma festa importante que ocorre no
mês de junho, no município de Parintins-AM. Essa festa surgiu na década
de 1930, quando os bumbás, cordões de pássaros e de peixes, além de
pastorinhas, dançavam nas ruas em frente às casas. No entanto, com o
passar dos anos, foi crescendo e, o que era uma brincadeira de rua, ganhou
espaço físico próprio e dias fixos no calendário parintinense. A festa ganhou
tamanha proporção, que, atualmente, os visitantes, durante os dias da
festa, não são somente amazonenses mas também de outros Estados do
Brasil e até de outros países. Sobre isso, a Pacheco nos conta que: “O
Festival tem 32 anos,10 que é contado como festival oficial, isto é, em que
há disputa entre o boi-bumbá Garantido e o boi-bumbá Caprichoso,
disputa de títulos. Essa disputa entre os dois bois que levou a evolução do
festival a essa explosão”.
Na época do Festival Folclórico, a cidade veste-se de bandeiras azuis e de
cor vermelha, e divide-se ao meio para demarcar as fronteiras de
“Caprichosos” (azul/branco) e “Garantidos” (vermelho/branco). As cores
expressam as preferências por um ou por outro boi. A paisagem da cidade
ganha o colorido dessas cores: a fachada das casas e os ornamentos no seu
interior; as roupas que as pessoas vestem; as bandeiras dependuradas nas
ruas; o cais do porto, apinhado de barcos, dando o tom e o colorido festivo
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MORAES, A. A. A.
ornamentados de bandeiras. Enfim, durante a festa, moradores e visitantes
vestem e cantam a paisagem da cidade de Azul (Boi Caprichoso) e Vermelho
(Boi Garantido).
Aquela é uma festa diferente, entre outras coisas, porque enquanto um
boi se apresenta, a torcida contrária assiste em silêncio, em atitude de
respeito ao espetáculo que o boi contrário oferece. Ao mesmo tempo, do
outro lado, a torcida simpatizante do boi que está se apresentando canta e
dança numa euforia contagiante.
Na arena, chamada de Bumbodrómo, os brincantes representam mitos e
lendas amazônicas, misturados a traços da cultura indígena e da vida do
caboclo da região. As coreografias são marcadas por passos inspirados em
danças indígenas. As músicas, chamadas de toadas, são verdadeiros poemas
que decantam a beleza da Ilha e das culturas herdadas dos índios e dos
caboclos da região.
Para mim, esse assunto sobre a derrota do Caprichoso, na primeira
leitura das duas cartas, era apenas um dado da nossa intimidade aprisionado
pelas nossas escritas, um dado que mereceu a minha atenção. Entretanto,
na releitura, o assunto me parecia revelar a “pessoalidade” de alguém que
(antes de ser uma informante da pesquisa) é minha amiga e, por essa razão,
sentia a necessidade de partilhar um tema latente e pulsante como esse. Por
isto, partilhava uma tristeza que sabia interessar (a mim), sua amiga
(leitora-destinatária), por ser alguém que já havia participado da alegria de
ver seu boi ser campeão e, portanto, tinha idéia do que significava, para ela,
a derrota do boi Caprichoso.
Concluída essa releitura do conjunto das cartas, cuidei de preparar
novamente a rede, o caniço e o anzol, refinando-os para uma grande
pescaria, afinal, era chegada a época da piracema – época em que os grandes
cardumes de peixes arribam para as nascentes dos rios. Depois de alguns
ensaios em pequenas pescarias (as cartas), era, enfim, chegado o momento
de tentar refinar os instrumentos de pesca para o grande momento da
pesquisa - minha ida a Parintins para o reencontro com os habitantes do
lugar, mais especificamente com as minhas parceiras, professoras-leitoras,
mas também com seus pais, mães, maridos, avós e ex-professores(as) – um
conjunto de “outros” em torno dos quais as professoras se teceram como
leitoras.
História de pescadora-pesquisadora: caminhando para o fim...
Após vários rascunhos, consegui estabelecer alguns focos temáticos que
pudessem servir como um roteiro, visando não apenas imprimir uma certa
direção às narrativas das professoras – auxiliando-as a organizar os seus
depoimentos –, mas também tentando desencadear o próprio processo de
rememoração do percurso vivido por elas. Preparei os focos para uma
entrevista semidirigida (com alguns pontos de destaque delimitados a
priori), por um lado, pensando que, a partir desse roteiro, as minhas
parceiras pudessem fazer o relato temático de suas histórias de vida
direcionado mais especificamente para os momentos vividos em relação à
sua formação de professora e de leitora; por outro lado, pretendendo que
esse roteiro me servisse como um mapa orientador das informações que
180
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.169-84, jan/jun 2006
TARRAFA DE PESCARIA: O USO DE CARTA NA PESQUISA
precisaria recolher posteriormente.
Com esses focos, pretendia levantar informações sobre, entre outras
coisas: a leitura na infância e na adolescência; a leitura na vida pessoal/
profissional; a leitura em família; modelos e influências de leitores;
maneiras de se relacionar com o objeto escrito; disponibilidade do livro e
outros suportes escritos na cidade; estratégias de acesso; dificuldades e
facilidades para ler; a formação escolar; a trajetória de carreira; o aprender a
ensinar; relação entre o crescimento pessoal/profissional; modelos que
influenciaram a prática de professora; crenças, valores e opiniões (sobre
educação, leitura de mais e menos valor, bom livro/mau livro, bom leitor/
mau leitor). Esses focos foram buscados nas leituras dos autores já
referenciados na primeira parte do trabalho e, também, no contato com
outros interlocutores em cursos e orientações partilhadas, mas,
principalmente, nas informações que consegui obter através das cartas que
havia trocado com as minhas parceiras.
A reconstrução da experiência vivida pode revelar-nos uma trilha de
formação, que quase sempre nos passa desapercebida. As histórias de
professores têm o que contar para ajudar na formação de outros
professores. Quando li aquelas cartas, recuei no tempo, tentando lembrar
de minha prática como formadora daquelas professoras: o que teria feito
(sem perceber), na disciplina que havia ministrado em 1986 no curso de
Letras, para despertar o interesse daquelas professoras para a leitura?
Comecei a pensar que a minha própria história também pode indicar
caminhos que ajudem a formar leitores(as)-professores(as). Sozinha não
consigo (mesmo distanciada no tempo) perceber, com clareza, qual foi a
atividade desenvolvida ou comportamento assumido por mim, que
funcionou como elemento disparador para despertar/estimular uma relação
de prazer das ex-alunas com o livro, a leitura. Ao ler os fragmentos de
histórias, registrados nas cartas, via-me ruminando sobre minha história de
leitora-professora e a ligação da mesma com outras histórias, com
outros(as) leitores(as).
Ao mesmo tempo, o conjunto de vozes confrontava-me com a minha
própria história de formação de leitora-professora. Comecei a perceber que
a dimensão formadora da minha investigação (as narrativas de formação
das professoras) atingia-me, visto que não apenas as professoras
reconstituíam os seus caminhos – eu também. Aquelas narrativas
suscitavam ecos e transportavam-me para a minha história, estimulando
uma reflexão mais apurada dos acontecimentos e representações que
emergiam da minha memória. Em relação a isso, Kramer (1994, p.15)
assinala que:
[...] a história de vida de um dado professor ou professora não
se esgota nos seus aspectos idiossincráticos ou únicos, mas
permanece em estado de tensão com os fatos ou
acontecimentos que encontram eco no ‘outro’ e em suas
possíveis histórias. Trata-se, portanto, de encontrar, nas
narrativas tiradas das entrevistas, as ‘ressonâncias’ ou o ‘eco’ de
uma vida em outras vidas, recuperando sempre nas diferentes
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.169-84, jan/jun 2006
181
MORAES, A. A. A.
falas dos professores aquilo que diz respeito a um tempo
saturado de ‘agoras’.
As narrativas escritas (cartas) tanto quanto as orais (entrevistas),
recolhidas pelo movimento da pesquisa, trouxeram à tona esse
entrecruzamento de histórias de leitoras-professoras que, em alguns
momentos, assemelham-se e, em outros, diferenciam-se, num movimento
natural de histórias que são marcadas também por outras vozes e por
diferentes tempos, espaços e trilhas percorridas.
Concluindo o relato desta experiência de usar cartas na pesquisa, o que
fica? Inicialmente, sinto-me à vontade para dizer o que me tem sido
ressoante do texto de Fazenda & Soares (1992) sobre “Metodologias nãoconvencionais em teses acadêmicas”.
Convoco, então, esse texto para auxiliar-me a desenvolver a seguinte
idéia: se o uso de cartas na pesquisa pode ser considerado como uma prática
pouco convencional porque ainda é reduzido o número de investigações
que lançam mão desse meio de comunicação como um instrumento que se
junte a outros para recolher os dados – então, essa fala de Soares vem
reforçar minha compreensão no sentido de que:
Entre o convencional e o não-convencional, em pesquisa e
produções acadêmicas, não cabem juízos de valor. Não se trata
de valorizar o não-convencional e desvalorizar o convencional,
nem cabem aqui comparações maniqueístas. Na verdade,
convencional ou não-convencional não é propriamente a
metodologia de pesquisa, é a maneira como as pessoas vêem a
metodologia. Creio que não é absurdo dizer que todas as
metodologias de pesquisa são válidas e importantes, tudo
dependendo do objeto da pesquisa e das opções do pesquisador.
(Fazenda & Soares, 1992, p.127)
Afora isso, é possível compreender o uso das cartas como uma estratégia
que provoca um deslocamento na maneira como as professoras percebem e
informam suas experiências de ensinar a leitura e a escrita. A proposição
das cartas como o recurso por meio do qual suas vivências enquanto
professoras-leitoras-autoras seriam transmitidas, colocou-as de frente com
a situação de praticantes, de fato, da escrita e da leitura. Isso possibilitou,
entre outras coisas, a reflexão sobre os seus modos de se relacionarem com
a cultura escrita.
Além disso, esta pesquisa, ao utilizar a carta como um instrumento de
coleta de dados, usa-a, ao mesmo tempo, como um recurso que possibilita o
exercício da leitura e da escrita para a pesquisadora e para as pesquisadas.
Por isso, revelou-se como uma alternativa de autoformação para quem
envolveu-se com/e na prática de pesquisar histórias de quem ensina e tem
como interesse de investigação o ler e o escrever.
182
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.169-84, jan/jun 2006
TARRAFA DE PESCARIA: O USO DE CARTA NA PESQUISA
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.169-84, jan/jun 2006
183
MORAES, A. A. A.
MORAES, A. A. A. Red de pesca: el uso de carta en investigación. Interface - Comunic.,
Educ., v.10, n.19, p.169-84, jan/jun 2006.
Saúde, Educ.
El texto comparte una experiencia que usa la carta como uno de los recursos para
recolectar información en investigaciones. El camino recorrido, en el período de 1996 a
1997, constó de 16 cartas enviadas por la investigadora y 13 cartas como respuesta de
las profesoras que componían los sujetos investigados. La carta, misiva o epístola ha
sido un recurso poco utilizado en investigación, aunque algunos estudios indiquen que
más recientemente su uso está creciendo. Las cartas, recolectadas por el movimiento de
esa investigación, revelaron un entrecruzamiento de historias de lectoras-profesoras que,
en algunos momentos, se asemejaban y, en otros, se diferenciaban, en un movimiento
natural de historias que son marcadas también por otras voces y por diferentes
tiempos, espacios y caminos recorridos. El uso de la carta se haya revelado como un
género que estableció eslabones de encantamientos, entrecruzamiento de relaciones
afectivas y culturales entre la investigadora, profesoras y alternativas de autoformación.
PALABRAS CLAVE: correspondencia. enseñanza. educación.
Recebido em: 26/04/05. Aprovado em: 16/11/05.
184
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.169-84, jan/jun 2006
Trajetória da análise de acidentes: o paradigma
tradicional e os primórdios da ampliação da análise*
Ildeberto Muniz de Almeida 1
ALMEIDA, I. M. The path of accident analysis: the traditional paradigm and extending the origins of the
expansion of analysis. Interface - Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10, n.19, p.185-202, jan/jun 2006.
The traditional approach to accidents assumes that compliance with procedures and norms protects the
system from accidents and that these events are caused by the faulty behavior of workers, which results partly
from personality aspects. Identification of these behaviors can be based on comparing them with the standard
“safe working practices”, which safety experts are aware of ahead of time. In recent decades, new alternative
views have expanded the perimeters of accident analyses and opened the way to questioning the assumption of
the traditional approach to the concepts of the human being and work. These new approaches help to highlight
the sterile results of traditional practices: blaming and punishing victims, recommending training, and
proposing norms without changing the systems in which the accidents took place. The new approaches suggest
that the traditional approach is totally worn out and emphasize the importance of operator contribution for
system safety.
KEY WORDS: accidents occupational. accident prevention.
A abordagem tradicional de acidentes pressupõe que a obediência a procedimentos e normas protege o sistema
contra acidentes e que esses eventos decorrem de comportamentos faltosos dos trabalhadores, originados, em
parte, de aspectos de suas personalidades. A identificação desses comportamentos baseia-se em comparação
com o padrão que toma por base o “jeito seguro de fazer”, conhecido por antecipação pelos especialistas em
segurança. Nas últimas décadas, surgem visões alternativas à abordagem tradicional, ampliando o perímetro das
análises de acidentes e abrindo caminho para questionamentos de seus pressupostos relativos às concepções de
ser humano e de trabalho. Os novos enfoques ajudam a evidenciar os resultados estéreis das práticas
tradicionais: culpar e punir as vítimas, recomendar treinamentos e normas mantendo inalterados os sistemas
em que ocorreram os acidentes. As novas abordagens sugerem o esgotamento do enfoque tradicional e
ressaltam a importância da contribuição dos operadores para a segurança dos sistemas.
PALAVRAS-CHAVE: acidentes de trabalho. prevenção de acidentes.
* Trabalho produzido com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, Fapesp (proc. nº 0302475-4).
Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - FMB/
Unesp, SP. <[email protected]>
1
1
Departamento de Saúde Pública (FMB/Unesp)
Caixa Postal: 549
Botucatu, SP
Brasil - 18.618-970
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.185-202, jan/jun 2006
185
ALMEIDA, I. M.
Introdução
Como têm sido analisados os acidentes e desastres ao longo da história? Nesta
revisão, expõe-se, de modo sumário, uma forma de pensar ou organizar
diferentes enfoques surgidos a esse respeito.
Na origem deste trabalho está a constatação de que grande número de
análises de acidentes, conduzidas no âmbito de empresas e, mesmo, de
organismos oficiais, são concluídas de modo a atribuir responsabilidade e culpa
pelo ocorrido às vítimas do acidente ou a seus colegas que atuavam nas
proximidades (Vilela et al., 2004; Almeida, 2001; Reason, 1999). Na
literatura, abordagens que culminam dessa forma vêm sendo denominadas de
paradigma tradicional ou clássico da segurança (Cattino, 2002; Dwyer, 2000).
Esta revisão busca, entre outros, os seguintes objetivos: contribuir para a
desconstrução do paradigma tradicional de segurança; fornecer subsídios para
a sistematização de abordagens atualmente adotadas para a análise de
acidentes; incentivar a explicitação de pressupostos adotados em práticas de
análises de acidentes, em especial, daquelas embasadas no paradigma ou
abordagem tradicional; contribuir para o esclarecimento de diferenças
existentes entre posições de defensores do paradigma tradicional e da
segurança sistêmica.
De modo complementar, pretende-se descrever características de diferentes
princípios adotados em práticas usuais de análises de acidentes, de modo a
mostrar que as práticas de atribuição de culpa também se associam à nãoutilização, ou ao uso distorcido, de princípios que vêm sendo sugeridos na
sistematização de análises de acidentes nos últimos trinta anos. Para concluir,
o trabalho mostra que, mais recentemente, a exploração de aspectos da
dimensão subjetiva de acidentes beneficia-se da incorporação de releitura dos
aspectos identificados na coleta de dados com apoio de conceitos da Psicologia
Cognitiva, Ergonomia Cognitiva, Antropologia, Engenharia de Sistemas, entre
outros. Essa ampliação conceitual de análise revela outras facetas da
insuficiência das abordagens tradicionais para explicar comportamentos
humanos no trabalho.
De modo preliminar, parece importante lembrar que uma primeira
compreensão sobre as origens e razões desses fenômenos tem raízes em
crenças que os atribuíam à vontade divina, castigo ou outras formas de
expressar ocorrências merecidas pelas vítimas. Essa visão enraizou-se em
muitas culturas de diferentes sociedades e, até hoje, influencia percepções ou
visões ditas ingênuas (Kouabenan, 1998).
A pré-história da análise de acidentes
Estabelecendo um paralelo grosseiro com a periodização histórica, pode-se
definir como pré-história da análise de acidentes o surgimento da contribuição
de Heinrich (1959), que desenvolveu a teoria dos dominós, representando a
ocorrência de um acidente como seqüência linear de eventos ou “pedras”. A
terceira pedra representa a ocorrência de atos e condições inseguros que
estão na origem da visão dicotômica prevalente em nosso meio.
Durante anos, essa era a única abordagem de causalidade de acidentes
estudada por profissionais de saúde e segurança do trabalho (SST) no Brasil.
Essa era também a compreensão presente em material “educativo” de uso
186
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.185-202, jan/jun 2006
TRAJETÓRIA DA ANÁLISE DE ACIDENTES...
mais freqüente, como cartazes e folhetos de prevenção, peças de teatro etc
(Almeida, 2001). Posteriormente, sob a influência de idéias da Organização
Científica do Trabalho, chega-se a duas classes de fatores causais de acidentes
que, na prática, equivalem aos atos e condições citados: fatores técnicos e
fatores humanos (Neboit, 2003).
E como esses atos deveriam ser identificados? A prática mais difundida
assume o pressuposto da existência da forma correta de execução do trabalho,
dita “segura”, definida em normas e procedimentos legais ou administrativos.
Para identificar os atos inseguros, bastaria ao “investigador” comparar o
ocorrido com esse padrão. E como preveni-los? Estimulando mudanças nos
comportamentos das vítimas. Para fazer isso, as análises recomendam punir
comportamentos não-desejados e premiar aqueles desejados. É a estratégia do
chicote e da cenoura.
Essa forma de conceber o acidente entende as ações e omissões ocorridas no
trabalho como produtos de escolhas conscientes dos trabalhadores, tomadas
em situações em que eles teriam alternativas diferentes dentro de um leque
de opções, em condições de controle absoluto da situação em curso. Em
síntese, o desfecho da ação é usado como critério de julgamento da decisão
tomada, desconsiderando, entre outros, os seguintes aspectos da situação de
trabalho: contexto, natureza das exigências da tarefa, variabilidade e história
das formas usuais de execução do trabalho, adequação do “padrão” na vigência
dessa variabilidade, e até os processos psíquicos associados, por exemplo, o
estresse, as incompreensões, etc.
Não bastasse a fragilidade técnica desse enfoque, sua difusão mostra-se
associada a práticas que agravam suas conseqüências, seja atribuindo culpa às
vítimas, seja inibindo práticas efetivas de prevenção.
A abordagem tradicional de análise de acidentes
Na periodização aqui proposta, o início da sistematização do processo de
análise de acidentes caracteriza-se pela estruturação de prática auxiliar de
política ou sistema de gestão de segurança e saúde do trabalho (SGSST),
dividida em quatro etapas, mostradas no Quadro 1. O surgimento de
propostas de sistematização das análises modifica essas etapas, em geral,
ampliando o perímetro da investigação.
Quadro 1. Etapas do processo de sistematização da análise de acidentes
1)
2)
3)
4)
Preparação da análise, definição de evento a ser analisado e suas conseqüências;
Análise propriamente dita com propostas de correção e relatório escrito;
Implantação de correções e seu acompanhamento; e
Retro-alimentação ou “feedback” do sistema com atualização baseada nos ensinamentos
aprendidos na análise.
No entanto, a estruturação de processo com essas quatro etapas não
representa efetiva ruptura com a essência do modelo acima descrito. A
essência da abordagem ou paradigma tradicional de segurança foi resumida
por Dwyer (2000) e Cattino (2002) nas seguintes características: a) a
melhoria dos níveis de Saúde e Segurança seria conseguida com melhorias
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.185-202, jan/jun 2006
187
ALMEIDA, I. M.
tecnológicas, sanções disciplinares, reforço da normatização e controles
oriundos de ações de especialistas; b) o ser humano é a parte não confiável
e portadora da insegurança dos sistemas; c) o erro é visto como “falha” ou
“defeito” originado na negligência dos operadores.
Outros autores referem-se a essa abordagem como antecipacionista
(Hood & Jones, 1996), para enfatizar o fato de que os fatores de risco que
podem originar um acidente ou desastre são considerados como conhecidos
a priori. Esse conhecimento reflete-se em instrumentos usados na análise
de acidentes que tomam a forma de listas de verificação ou check lists de
“causas”, a serem usadas pelas equipes de segurança.
As práticas de análise que resultam em atribuição de culpa às vítimas
mostram-se profundamente influenciadas pelas idéias apresentadas até
aqui. O Quadro 2 inicia com resumo da noção de acidente e dos caminhos
assumidos pela análise de acordo com essa abordagem.
Em situações de segurança caracterizadas por elevadas taxas de ocorrências
de acidentes associadas a problemas clássicos de Engenharia de Segurança, a
adoção desse modelo mostrou-se útil como ferramenta auxiliar de políticas
de segurança.
Quadro 2. Concepções de acidentes e suas características
Concepção
TRADICIONAL
Noção de acidente
Fenômeno simples, com estrutura causal
linear. Resulta do descumprimento de normas
de segurança ou prescrições com origens em
aspectos individuais. Modelo centrado na
pessoa, comportamentalista ou
psicologizante.
Os comportamentos são explicados pelo
modelo estímulo-resposta.
Mudança significante na situação com
acidente quando comparada com a situação
Modelo da análise sem acidente. A mudança pode ser de
de mudanças
componentes técnicos, humanos ou produto
de interações de componentes.
Não explicita pressupostos quanto às origens
de comportamentos.
Modelo da
liberação de
energia/análise
de barreiras
188
Acidente como encontro entre pessoa
exposta e energia liberada de perigo potencial
presente no sistema.
Não explicita pressupostos quanto às origens
de comportamentos.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.185-202, jan/jun 2006
Como analisar e interpretar os achados?
Descrever a lesão (evento final) e suas
origens.Comparar comportamentos e fatores
técnicos com o “jeito certo de fazer ou ser”,
considerado como padrão previamente conhecido
e descrito em normas e prescrições. Costuma
adotar lista de verificação sem explorar
interações entre fatores.Diferenças identificadas
entre ações dos trabalhadores e padrões são
assumidas como “causas”.
Causas são explicadas como problemas dos
trabalhadores. O sistema é poupado.A prevenção
baseia-se em punição de comportamentos
indesejados e premiação dos desejados.
Analisar acidente é identificar o que mudou e as
condições do sistema que possibilitaram as
origens das mudanças.As origens das mudanças
identificadas devem ser buscadas sempre no
plural. O padrão recomendado para a identificação
de mudanças é o trabalho real, e não as normas e
prescrições da empresa.
As razões das condições que originam mudanças
devem ser buscadas até as “causas das causas”
de modo a evidenciar origens gerenciais ou
organizacionais do acidente.
Descrever os elementos do modelo.Identificar as
formas de energia (perigos) envolvidas no
acidente e explorar todos os tipos de barreiras
capazes de contê-las, em todo o processo do
acidente. Da origem do sistema à minimização das
conseqüências sofridas.
A inexistência de e as falhas de barreiras tendem
a ser interpretadas como sinais de falhas do
subsistema de segurança no trabalho.
TRAJETÓRIA DA ANÁLISE DE ACIDENTES...
Primórdios da ampliação do perímetro da análise de acidentes
Preparando o processo e ampliando os alvos de análises
A periodização aqui proposta toma como fio condutor as etapas do
modelo descrito no item anterior. Nos primórdios de sua ampliação, a etapa
de preparação das análises passa a incluir definição de política de
segurança com diversos componentes, um dos quais é o subsistema de
análise de acidentes. Nesses sistemas, passa a existir definição prévia dos
recursos humanos e materiais a serem utilizados, assim como a
estruturação de sistemas de informação que servem de base para a
definição de prioridades a serem abordadas pelas equipes de segurança, etc.
Os eventos a serem analisados também são revistos. No caso do Brasil,
sistemas mantidos no estágio anterior apegam-se a conceito legal de
acidente centrado na noção de existência de vítimas vinculadas à empresa
segundo tipo específico de contrato de trabalho. Nos primórdios da
ampliação discute-se a importância da detecção e eventual análise de outros
tipos de eventos adversos, como incidentes, quase-acidentes e perdas
materiais como ferramenta auxiliar de uma política de segurança.
Ampliação da análise propriamente dita
Repensando a análise: achar culpados ou buscar a
prevenção?
No que se refere à análise de eventos propriamente dita, surgem
importantes contribuições, das quais merecem destaque (Almeida, 2001;
Johnson, 2002; 2003; Livingston, Jackson & Priestley, 2001): a)
explicitação de diferenças de objetivos entre análises voltadas para a
identificação de responsáveis e aquelas que se destinam a identificar
causas e subsidiar práticas de prevenção de acidentes com aspectos
assemelhados; b) explicitação das noções de análises de mudanças e de
análises de barreiras como fundamentos de análises de acidentes, e o
surgimento de técnicas baseadas nesses princípios, isoladamente ou em
associação. A noção de risco assumido amplia as fronteiras dessa
abordagem; c) explicitação de estratégias de formulação e de critérios de
escolha de medidas preventivas a serem recomendadas e implementadas.
Quanto aos objetivos das análises, torna-se evidente que, quando a
equipe privilegia a busca de responsáveis, ou culpados, o processo tende a
encerrar-se nas proximidades das conseqüências do evento. No jargão da
área, a busca encerra-se na identificação de causas diretas do acidente.
Afinal, quanto menos se sabe a respeito de um acidente, maior é a
probabilidade de conclusão que resulte em atribuição de causa e de
responsabilidade a erro de um operador. Também é possível constatar que,
quanto mais completa a análise, maior é a probabilidade da identificação de
outros tipos de fatores causais e de limites da conclusão anterior.
Uma das definições adotadas para causas diretas ou imediatas de um
acidente é “a razão mais óbvia pela qual um evento adverso acontece”.
Além delas, também existem as causas raízes ou básicas, e as causas
subjacentes ou contributivas. As causas raízes são eventos iniciadores,
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.185-202, jan/jun 2006
189
ALMEIDA, I. M.
falhas que dão origem a todas as demais. Elas são de natureza gerencial,
como falhas de planejamento ou organizacionais. As causas subjacentes
são razões organizacionais ou sistêmicas menos óbvias para as origens de
acidentes. Por exemplo: a não-realização de inspeção pré-uso de uma
máquina, por parte de supervisores, ou o aumento de pressões de produção
(Health and Safety Executive, 2004).
As razões para a adoção dessa diferenciação entre tipos de fatores causais
não são muito claras. Apesar disso, sua utilização ganhou grande difusão,
sendo incorporada em diferentes técnicas de análises de acidentes. No
entanto, embora explicite-se a necessidade de exploração das origens de
comportamentos humanos apontados como causas imediatas de um
acidente, estudos mostram que a interpretação desses achados continua se
dando com base na mesma concepção de ser humano adotada no
paradigma tradicional (Vilela et al., 2004; Baumecker, 2000; Llory, 1999).
Como se dá a estruturação dessas análises? Desde os primórdios, surge
uma lista de questões que deveriam ser respondidas numa análise: O quê?
Quem? Quando? Onde? Como? Por quê? Adicionalmente, surgem múltiplas
formas de se organizar uma análise. As mais difundidas adotam modelo de
seqüência de eventos montada como um quadro que se inicia, à direita, em
conseqüências do acidente, por exemplo, as lesões sofridas pelas vítimas.
Logo ao lado, vem uma lista de causas imediatas, seguida, mais à
esquerda, de lista de causas subjacentes e, por fim, no extremo esquerdo
do quadro, a causa raiz. Alguns modelos trabalham com a idéia de lista de
causas raízes.
Esse modelo de análise costuma ser complementado com listas de cada
um dos grupos de causas, de modo a “auxiliar” a equipe de análise no seu
trabalho. As listas de causas não são meras ferramentas inocentes de apoio
à prevenção. Apesar de elaboradas com a melhor das intenções, embutem
visão de mundo e de segurança fortemente influenciada pelos pressupostos
da abordagem tradicional. Normas de segurança, práticas prescritas ou
especificadas, ordens de serviço, a presença de dispositivos técnicos que
podem ser usados como medidas de proteção ou barreiras à liberação de
diferentes fluxos de energias durante um acidente etc., tendem a ser
adotados como padrões de comparação com as ações identificadas no
acidente. A constatação de diferenças tende a ser tomada como prova da
identificação de causa do acidente. Trata-se de modelo de inspiração
antecipacionista, que se revela útil ao se evidenciarem condições materiais
e ambientais e, também, de comportamentos apontados como associados
ao aumento do risco de acidentes. As ações e omissões destacadas tendem a
ser julgadas em si. Sua ocorrência e, às vezes, a mera suposição de
ocorrência são interpretadas como prova de falha do operador, implicando
julgamento de sua responsabilidade e de sua culpa.
A adoção de análises de mudanças, barreiras e conceitos como sistema,
atividade e seus componentes, regras da lógica etc., em novas técnicas de
análises de acidentes, ajuda a sistematizá-las, ao mesmo tempo em que
amplia os perímetros dessas investigações.
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TRAJETÓRIA DA ANÁLISE DE ACIDENTES...
Análise de mudanças
De acordo com a noção de análise de mudanças, se o sistema
funcionasse da mesma maneira que na situação normal ou sem acidentes,
esses não ocorreriam. A ocorrência de um acidente sempre exige o
surgimento de alguma mudança ou variação no funcionamento do
sistema sem acidentes. Como conseqüência, analisar um acidente é
identificar essas mudanças e as condições desse sistema que permitiram as
suas origens (Binder, 1997; Monteau, 1979).
Como se define a situação normal ou padrão de comparação
necessário à identificação das mudanças? Na abordagem tradicional, a
definição mais usada refere-se ao conceito restrito de desvio, entendido
como “toda ação ou condição que não está de acordo com as normas de
trabalho, procedimentos, requisitos legais ou normativos, requisitos do
sistema de gestão, boas práticas, etc., que possa levar direta ou
indiretamente a dano à pessoa, ao meio ambiente, ou à propriedade própria
ou de terceiro, ou a uma combinação destes” (DuPont do Brasil, 2003).
Discutindo a análise de mudanças, Johnson (2002) afirma que
diferentes padrões podem ser tomados como condição ideal: descrições
contidas em documentos, tais como rotinas, passo a passo, normas
operacionais (“guidelines”), contratos, acordos ou convenções; normas de
segurança etc., de acordo com o caso. A condição ideal também poderia ser
aquela que existia antes do acidente. Essa distinção é considerada
importante porque nas origens de um acidente poderiam estar “práticas
inadequadas mantidas por muito” tempo. Nessas circunstâncias, o foco da
análise deveria ser colocado muito mais nas razões da presença dessas
práticas.
Do ponto de vista operacional, a condução de análises baseadas nesse
princípio tende a mostrar diferenças em relação à escolha de padrão de
comparação. No caso da técnica de árvore de causas, recomenda-se que a
equipe de segurança adote como padrão o conhecimento da situação
habitual ou rotineira de trabalho, que vai ser comparada com os achados
da situação presente no acidente, de modo a permitir a identificação de
variações (Binder, 1997; Monteau, 1979). Valendo-se de conceitos da
linguagem atual da Ergonomia da Atividade (‘corrente francesa’ da
Ergonomia), nesses métodos enfatiza-se que o padrão de comparação seja o
trabalho real, a atividade, e não o trabalho prescrito (Guérin et al.,
1997). Mais recentemente, Rasmussen (1997) refere-se a esses mesmos
conceitos usando as expressões práticas estabelecidas (“established
practices”) e práticas especificadas (“specified practices”).
Por razões práticas, técnicas de análises baseadas nessa noção, como o
método de árvore de causas, recomendam o início da reconstrução do
evento pelos seus últimos acontecimentos. A existência de um trabalhador
lesado, de um produto danificado é mudança facilmente identificável e que
serve perfeitamente aos propósitos desse tipo de análise (Binder, 1997;
Monteau, 1979).
Uma das diferenças instauradas pelo uso dessa noção nas práticas de
análises de acidentes é a cobrança da explicitação do que realmente
aconteceu, e não mais de relatórios que explicavam o ocorrido com a
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ALMEIDA, I. M.
indicação da norma ou da regra supostamente descumprida, ou da ação que
deixou de ser realizada pelos trabalhadores, ou, ainda, da proteção que não
existia e que deveria existir etc.
Em análises tradicionais, “erro” é definido como desvio no desempenho
de uma seqüência de ações em relação ao prescrito ou especificado. Como
conseqüência, partindo do resultado conhecido após o acidente, facilmente
identificam “erros” desse tipo. Por exemplo, a falta de uma válvula de alívio
num sistema que explodiu, a falta de guarda-corpo no andaime de onde
caiu um trabalhador etc. Quando esse tipo de análise encerra-se com a
identificação desses aspectos, passa a não permitir a identificação do que e
como explodiu, ou das razões associadas à queda do trabalhador, ou, ainda,
dos motivos pelos quais já não havia o guarda-corpo muito antes do
acidente. Quando se desconsideram esses aspectos, estreitam-se os espaços
para práticas de prevenção mais efetivas.
Essa abordagem introduz no sistema discussão sobre a regra de parada
a ser adotada nas análises. Na prática, o processo conduz a equipe à busca
de causas das causas, e, assim, sucessivamente. As mudanças
identificadas associadas com regras da lógica são utilizadas como fio
condutor da elaboração de diagramas de mudanças ocorridas e das
“causas” de suas origens. Cada um dos aspectos representados enseja a
continuidade do desenho e, assim, sucessivamente. Posteriormente, o
esquema é completado com a representação de condições habituais do
sistema que participaram do acidente. Uma das maneiras de se fazer isso é
associar uma análise de barreiras à análise de mudanças.
Levado a sério, esse processo desemboca na identificação de práticas e
escolhas gerenciais dos diversos subsistemas, e até da alta hierarquia da
empresa, habitualmente não discutidas pela equipe de segurança, cuja
exploração pode representar fonte potencial de embaraços na organização.
Em empresas que não estão preparadas para conviver com esses
questionamentos, eles tendem a ser abafados e as análises tendem a
encerrar-se em estágios precoces do processo de questionamento. Quando
muito, exploram-se aspectos da dimensão técnica envolvida no acidente,
contrariando o pressuposto de métodos de análises que consideram
empresas como sistemas sociotécnicos abertos (Lima & Assunção, 2000).
O Quadro 2, já apresentado, inclui resumo da noção de acidente e de
formas assumidas em técnicas de investigação baseadas na análise de
mudanças.
Análise de barreiras e risco assumido
De acordo com a noção de análise de barreiras, o acidente sempre
envolve a liberação de um fluxo de energia potencialmente perigosa, que
estava controlada por barreiras, ou medidas preventivas, existentes no
sistema. Eventualmente, o sistema poderia não ter as barreiras indicadas e,
ainda assim, conter, temporariamente, aquela energia. A análise de
barreiras consiste na identificação das formas de energia liberadas no
acidente e das razões que explicam a sua liberação. A ênfase é posta na
exploração das barreiras que existiam ou deveriam existir naquele sistema
e na evidência da contribuição potencial de cada uma delas naquele cenário.
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TRAJETÓRIA DA ANÁLISE DE ACIDENTES...
Uma barreira que não estava presente poderia ter evitado o acidente ou
minimizar suas conseqüências? Em caso afirmativo, como se explica sua
ausência? Alguma barreira existente falhou? Por quê? E assim
sucessivamente.
Embora, nas práticas de segurança, seja mais conhecida a noção de
barreiras técnicas de proteção, a análise de barreiras adota compreensão
mais abrangente. aAssim, todos os tipos de barreiras possíveis devem ser
explorados. Por exemplo, a definição de critérios para compras de materiais
ou para decisões de intervenção em casos de detecção de falhas no
funcionamento ou gestão de determinado subsistema; a implementação de
treinamentos; o desenvolvimento de práticas de estímulo à criação de uma
cultura de segurança; a (não) contratação de assessorias especializadas;
restrições à realização de horas-extras, etc.
Do ponto de vista prático, surgem diferentes formas de condução de
análises de barreiras. O método management oversight risk tree (MORT),
desenvolvido na década de 1970 por Johnson (1975), inicia-se com uma
organização de seqüência temporal de eventos, de modo a identificar os
diferentes fluxos de energia liberados no acidente. Eles são representados
em coluna inicial de um quadro, tendo, ao lado, a especificação dos agentes
ou materiais vulneráveis ante a liberação daquela forma de energia. A
terceira coluna desse mesmo quadro deve ser preenchida com barreiras
conhecidas como proteções capazes de evitar o fluxo, diminuir a quantidade
de energia liberada ou minimizar conseqüências para organismos vivos ou
materiais vulneráveis (The Noordwijk Risk Initiative Foundation, 2002).
Outra forma de condução de análise de barreiras associa-se ao
desenvolvimento de modelos de acidentes. Os modelos costumam adotar
representação gráfica de elementos presentes em um acidente. O modelo
de Dumaine (1985) define acidente como o encontro entre organismo
vivo suscetível e energia liberada de perigo potencial presentes no sistema.
Inclui também fatores desencadeadores da liberação da energia que estava
controlada anteriormente no sistema e fatores geradores da presença do
perigo potencial. A análise busca identificar barreiras conhecidas como
proteções capazes de evitar o encontro, o surgimento de fatores
desencadeadores da liberação do fluxo de energia, a geração do perigo, etc.
Muitos “check lists” usados em análises de acidentes inspiram-se nessa
noção de análise de barreiras.
A noção de barreiras é adotada por Reason (1997) em modelo de
acidente organizacional, que denomina erros ativos a contribuição de
comportamentos humanos para a liberação do fluxo de energia ocorrida no
acidente. Segundo ele, a análise deve ser estendida até a busca de causas
das causas, ou seja, das razões de acidentes ditas latentes ou não
proximais que, em geral, são gerenciais ou organizacionais.
Tomando como referência esse modelo, pode-se dizer que a principal
diferença entre as abordagens tradicionais e sistêmicas é o fato das
primeiras continuarem insistindo na idéia de que as principais causas de
acidentes são os comportamentos humanos situados nas proximidades do
desfecho desses eventos, ou seja, os “atos inseguros” ou erros ativos das
vítimas.
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ALMEIDA, I. M.
Apoiadas em conceitos como os acima descritos, as análises tendem a
assumir determinada sistematização, embora os graus de liberdade da equipe
na condução do processo sejam relativamente elevados, explicando diferenças
nas conclusões de análises de mesmo tipo de evento, por equipes diferentes
que usaram a mesma técnica. Outra fonte de diferenças em resultados de
análises está no grau de domínio da técnica e na concepção de acidente por
parte dos integrantes das equipes. A forma como cada um entende as noções
de acidente, de análises de mudanças e de barreiras, de sistema sociotécnico
aberto, de comportamentos humanos no sistema etc., influencia as conclusões
da análise.
Uma das diferenças básicas entre análise de barreiras e análise de
mudanças é que esta última mostra-se mais afinada com práticas de coleta de
informações baseadas em questões abertas. Desse modo, razões anteriormente
não-antecipadas podem ser identificadas e ensejar discussão acerca de seu
eventual papel nas origens de um acidente. Além disso, ao conduzir busca das
causas das causas e decidir sobre pontos de paradas da análise, a equipe deve
discutir e explicitar as razões associadas à escolha desses pontos. Na análise de
barreiras, a lista de causas tende a encerrar-se em si mesma. Por sua vez,
realizada como complemento de análise de mudanças, a análise de barreiras
pode contribuir para a ampliação da análise e indicação de outras estratégias
de prevenção.
Um outro conceito que passa a ser associado a esses dois é o de risco
assumido ou risco residual. Trata-se de risco identificado em análise prévia e
assumido após avaliação técnica. A decisão de assumi-lo é consciente, por
exemplo, porque a adoção de correções seria impraticável. Os atores envolvidos
nesse tipo de decisão precisam comprovar que ela foi tomada de modo
satisfatório (The Noordwijk Risk Initiative Foundation, 2002).
Considerando que sistemas devem ser concebidos incorporando análises de
barreiras baseadas nos conhecimentos científicos mais atuais; e que, ao
mesmo tempo, de sua concepção à instalação e operação esses sistemas passam
por mudanças que precisam ser consideradas nos SGSST, de modo a evitar
perdas e acidentes, cresce a idéia de que o risco aceitável na operação de
qualquer sistema é aquele associado a aspectos que não podem ser controlados
com os recursos oferecidos à luz dos conhecimentos mais atuais.
Em outras palavras, os sistemas precisam demonstrar que lançam mão das
melhores e mais atuais práticas e ferramentas de prevenção para o controle de
perigos e riscos. Ao fazê-lo, estariam também assumindo o risco da ocorrência
de eventos não-antecipados e não-controlados com esses melhores recursos:
o risco assumido ou residual do sistema. Entre esses riscos não-controlados,
estão aqueles ainda desconhecidos, como, por exemplo, os associados a
interações inesperadas entre componentes do sistema que, na maioria das
situações, comportam-se como independentes entre si.
Uma das vantagens atribuídas ao uso dessas técnicas é a possibilidade da
sistematização das análises: da coleta de dados ao seguimento do impacto das
medidas implementadas. Esse processo tende a diminuir o número de aspectos
não-explorados, de vieses originados na formação de integrantes da equipe de
análise, e reforça a necessidade de checagens cruzadas com uso de diferentes
fontes de informação. Outras vantagens atribuídas a esse modelo de análises
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TRAJETÓRIA DA ANÁLISE DE ACIDENTES...
são: a identificação de padrões de acidentes e de aspectos organizacionais
presentes em acidentes. A identificação de aspectos assemelhados em
acidentes usa noção equivalente à de saturação: “fenômeno pelo qual,
passado um certo número de entrevistas, [...] o pesquisador ou a equipe tem
a impressão de não adquirir novos conhecimentos relativos ao objeto
sociológico da enquete” (apud Bertaux, 1980, p.205).
O Quadro 2 também inclui resumo da noção de acidente e dos caminhos
assumidos pelas investigações baseadas em análises de barreiras.
Descobrindo a dimensão subjetiva dos acidentes
Embora técnicas baseadas na teoria de sistemas critiquem duramente
abordagens comportamentalistas estritas e o reducionismo de “análises” de
acidentes que atribuem culpa às vítimas desses eventos, em muitos casos, elas
também não respondem adequadamente a questionamentos surgidos acerca
da dimensão subjetiva dos acidentes. De certo modo, a exploração de aspectos
da dimensão organizacional desses acidentes parece ser tomada como
negação da antecedente.
O método de árvore de causas, desenvolvido por psicólogos na França, foi
criticado devido ao seu objetivismo (Goguelin, 1996). No Brasil, em algumas
de suas publicações utilizando esse método, Binder & Almeida (1997, p.751)
apresentam a técnica reforçando essa característica “[...] sua aplicação exige
reconstrução detalhada e com a maior precisão possível da história do
acidente, registrando-se apenas fatos, também denominados fatores de
acidente, sem emissão de juízos de valor e sem interpretações”.
A crítica de Goguelin centra-se na ausência de exploração de aspectos
cognitivos, cuja abordagem ganhou impulso com o desenvolvimento do
enfoque cognitivo na Psicologia e na Ergonomia. Parece importante situar o
fato de que, no início da década de 1970, quando foi desenvolvido o método
ADC, a utilização de conceitos da escola cognitivista em estudos no mundo do
trabalho ocorria de modo embrionário.
Na experiência do autor, em muitas situações de uso do método de árvore
de causas, a falta de distinção entre árvore e análise ADC e, em particular, a
falta de explicitação da necessidade de abordagem conceitual complementar de
aspectos representados no esquema contribuíram para a ocultação de aspectos
invisíveis do trabalho, empobrecendo interpretações e conclusões de análises.
No entanto, paralelamente ao desenvolvimento de técnicas baseadas em
análises de mudanças, de barreiras e na idéia de risco assumido, também
surgiam novas formas de análises de acidentes inspiradas em conceitos da
Sociologia, da Antropologia, das Psicologias Social e Cognitiva, e da Ergonomia
da Atividade, apontando novos caminhos para a coleta, organização,
interpretação de dados relativos às origens e prevenção de acidentes. Esses
enfoques contemporâneos serão apresentados em outro texto.
Formulação e seleção de medidas de prevenção
As diferentes técnicas de análises comentadas associam orientações de
sistematização do processo de formulação e seleção de recomendações de
prevenção. O método de árvore de causas recomenda que os participantes
sejam estimulados a sugerir a eliminação direta de determinados fatores, o
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acréscimo de barreiras que impeçam as origens desses mesmos fatores e a
supressão de elementos necessários às suas origens. Sempre que possível, a
lista inicial de recomendações deveria incluir propostas desses três tipos para
cada um dos fatores representados no esquema, e também para os problemas
ou fatores potenciais formulados durante a interpretação do esquema. A
utilização de critérios de seleção das propostas elaboradas também é
enfatizada. Entre os critérios que auxiliariam a sistematização da análise e a
escolha de prioridades, destacam-se: 1 estabilidade da medida no tempo; 2
custo adicional – físico, cognitivo ou afetivo - da medida para os operadores; 3
possibilidade de deslocamento do risco para outras partes ou até para outros
sistemas; 4 alcance da medida - localizado ou capaz de estender seus
benefícios até outras partes do sistema? 5 tempo necessário para sua
aplicação - é imediato ou exige longo prazo de maturação? (Binder &
Almeida, 2003)
Por sua vez, depois de dividir o acidente em dez fases, indo do pré ao póslesão, Haddon (1973) propôs dez tipos de estratégias preventivas, mostradas
no Quadro 3.
Quadro 3. As dez estratégias de prevenção de acidentes de Haddon Jr.
1)
2)
3)
4)
5)
Prevenir a formação da energia potencialmente lesiva presente no sistema;
Reduzir ou limitar a quantidade de energia formada;
Prevenir a liberação dessa energia;
Modificar a distribuição espacial da liberação de energia a partir de sua origem;
Separar, no espaço ou no tempo, das estruturas suscetíveis, vivas e inanimadas, a energia que
está sendo liberada;
6) Interpor barreira material entre energia e estruturas suscetíveis;
7) Modificar superfícies, estruturas básicas de modo a dissipar a carga de energia;
8) Aumentar a resistência das estruturas suscetíveis;
9) Reduzir perdas, detectar e avaliar rapidamente o dano ocorrido para dificultar e impedir sua
continuidade e extensão; e
10) Estabilizar, reparar e reabilitar as lesões e perdas, visando a promoção do retorno ao “status”
funcional pré-evento.
O surgimento de critérios de avaliação de medidas preventivas agrega outro
tipo de crítica às abordagens tradicionais de acidentes que, no Brasil,
resultavam quase sempre em sugestões de mudanças de comportamento das
vítimas do acidente e de seus colegas. Esse tipo de sugestão é descrito como
ineficaz quando adotado isoladamente, e como de baixíssima estabilidade no
tempo, sobretudo, se não concebido com adequado programa de reforços
periódicos.
Na Psicologia, surgem estudos que mostram outros limites e fragilidades de
propostas de treinamentos supostamente voltadas para mudanças de
comportamento (Kouabenan, 1999; Rogers & Mewborn, 1976; Levanthal et
al., 1965). Grande parte das propostas destinadas à prevenção de acidentes é
baseada no estímulo ao medo. Estudos mostram que o medo ou choque
provocado por mensagens aterrorizantes é uma emoção que se esvai antes do
tempo necessário para a ocorrência de mudança de comportamento. Essa é
uma das razões que explica diferenças encontradas entre declarações de
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atitudes favoráveis a mudanças de comportamento e mudanças efetivas de
comportamentos de pessoas entrevistadas após exposição a esse tipo de
estímulo (Kouabenan, 1999; Rogers & Mewborn, 1976; Levanthal et al.,
1965).
As expressões prevenção ativa e passiva foram utilizadas genericamente
para designar, respectivamente, medidas que exigem a participação ativa dos
envolvidos, como, por exemplo, a utilização de equipamentos de proteção
individual, e medidas que dispensam essa participação, tais como os
dispositivos de bloqueio automático que param movimentos de máquinas
quando há a aproximação de partes do corpo de um trabalhador (Gielen,
1992; Baker et al., 1982). A noção de falha segura surge em associação com
essas idéias (Baker et al., 1982; Haddon & Baker, 1981) para indicar que os
sistemas devem ser concebidos de modo a tolerar a ocorrência de falhas.
A introdução de critérios de escolhas de medidas preventivas e a ênfase
colocada na necessidade de recomendações relativas às causas organizacionais,
gerenciais ou distais de acidentes impulsionam o debate acerca de questões de
novo tipo, para os interessados na prevenção de acidentes e gestão de riscos
em geral. Entre elas, destaca-se o grau de dificuldades técnicas e políticas
associado à formulação de recomendações de novo tipo, como, por exemplo:
explorar condicionantes de práticas de remanejamento de trabalhadores para
setores e atividades em que nunca trabalharam antes; encarar condicionantes
da introdução de aumentos de pressão de tempo e de produção; gerir riscos de
atividades simultâneas e sucessivas ou nas quais os operadores deparam-se
com situações inusitadas (Binder & Almeida, 2003).
Surgem questões sobre as técnicas apropriadas para a abordagem desse
novo tipo de “fatores de riscos” e a respeito do perfil de formação profissional
necessário às equipes de segurança. Também surgem questionamentos acerca
de características de organizações favoráveis ou desfavoráveis ao
desenvolvimento de política de Saúde e Segurança que passe a abordar de
modo ativo e permanente esse tipo de questões.
A resposta dada a esses questionamentos, nos marcos da abordagem
tradicional, é a exacerbação de práticas comportamentalistas. Insistindo na
idéia de que as principais causas dos acidentes situam-se em atos inseguros ou
similares, surgem propostas de segurança comportamental. Algumas delas
referem a necessidade de mudanças, também, nos comportamentos de seus
gerentes e chefias intermediárias, embora na prática esse aspecto persista
desconsiderado.
Implantação de correções e seu acompanhamento
O subsistema de análise de acidentes organiza um processo de avaliação das
recomendações de prevenção originadas de suas atividades, assim como a
implementação e acompanhamento das medidas escolhidas, exigindo definição
formal de fluxo para tramitação de relatórios, definição de responsáveis pela
tomada de decisões, pela sua implementação e pela checagem de seu
respectivo cronograma.
Outro aspecto importante é o da necessidade de acompanhamento do
impacto das medidas implementadas no que se refere à ocorrência de
acidentes que incluam aspectos assemelhados, quase iguais àqueles que se
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pretendeu controlar com as medidas adotadas. Caso isso ocorra, em especial de
modo freqüente, muito provavelmente a equipe está diante de sinais que
permitem a ela pensar na falência do esforço anterior e na necessidade de
reanálise da situação. Infelizmente, em muitos casos, nessas horas, vêm à tona
resistências originadas na abordagem tradicional. Os sinais que a situação
envia são interpretados como confirmação da falibilidade do componente
humano dos sistemas, ensejando e reforçando recomendações normativas,
novas regras, procedimentos e até a punição dos “indisciplinados” ou
“desviantes”.
Retroalimentação do sistema
O processo de sistematização da análise de acidentes completa-se com o
desenvolvimento e implantação de práticas de retroalimentação ou
“feedback” do sistema com os resultados obtidos.
Nas fases iniciais desse processo, ele visa compartilhar achados imediatos
com os demais integrantes do sistema. Um dos motores dessa prática é a idéia
de informar, aos que participaram do processo de análise, as conclusões
obtidas de modo a ressaltar a importância de suas contribuições para o
aperfeiçoamento do sistema. Dessa forma, fortalece-se a possibilidade de
contribuições futuras, em especial, nos sistemas que efetivamente
implementam recomendações de impacto na melhoria de sua segurança e
confiabilidade e mostram pleno reconhecimento das contribuições dos
diversos participantes. Posteriormente, associando-se com a noção de SGSST, a
retroalimentação incorpora novos objetivos, como o de tornar-se fonte de
atualização e melhoria contínua das avaliações de risco presentes no sistema.
Com o advento da Internet, as formas usadas para prover essa
retroalimentação ganham novas possibilidades e maior agilidade.
O desenvolvimento da noção de aprendizagem organizacional, entendida
como processo contínuo, impulsiona o reconhecimento da importância desse
componente do subsistema de análise e prevenção de acidentes, e renova as
forças interessadas na ampliação do perímetro da análise de acidentes e de
ruptura com os pressupostos do paradigma tradicional.
Comentários finais
Este texto resgata aspectos da trajetória da análise de acidentes, procurando
mostrar que, do ponto de vista técnico, já existem elementos que justificam a
diminuição da ocorrência de análises circunscritas a comportamentos das
vítimas proximais às lesões. Entre eles, destacam-se: o surgimento das noções
de causas diretas e causas básicas; a introdução de análises de mudanças,
sobretudo, nos casos em que o padrão de definição de desvio é baseado no
trabalho real e em que há explicitação de regras de parada da análise, e as
práticas de análises de barreiras usadas em associação com modelos que
incluem a exploração de origens organizacionais de acidentes e como
complemento de análises de mudanças.
A persistência da abordagem tradicional também chama a atenção pelo fato
de concentrar-se em recomendações de prevenção classificadas como de baixa
estabilidade no tempo ou uso isolado de medidas ativas. Nas situações em
que o sistema de trabalho mantém-se inalterado, o acompanhamento da
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TRAJETÓRIA DA ANÁLISE DE ACIDENTES...
implantação dessas medidas pode revelar a recorrência de acidentes com
aspectos assemelhados, ou seja, o esgotamento do alcance dessas
recomendações.
Infelizmente, em grande número de análises, a identificação de
comportamento classificado como faltoso continua a ser interpretada como
sinal de falha ou baixa confiabilidade do componente humano do sistema,
capaz de ser corrigida com punição do “desviante”. Em síntese, nem mesmo a
introdução de técnicas de análise de inspiração sociossistêmica rompe com os
marcos da abordagem tradicional. Em alguns casos, as análises desse tipo de
acidentes apontam, como “causa básica”, a existência de falha de supervisão da
adesão aos comportamentos prescritos.
Recente estudo, elaborado a pedido do Health and Safety Executive, no
Reino Unido, aponta características de uma boa análise de acidentes (Health
and Safety Comission, 2001): 1 adotar modelo sistêmico; 2 envolver os
diversos níveis hierárquicos; 3 utilizar protocolos para estruturar e dar
suporte à análise; 4 identificar causas imediatas e subjacentes; 5 desenvolver
recomendações para causas imediatas e básicas; 6 implementar recomendações
e atualizar avaliações de riscos relevantes; 7 acompanhar resultados das ações
implementadas para redução de risco de acidentes futuros; 8 providenciar
retroalimentação (feed-back) e compartilhar o aprendizado imediato; 9
desenvolver bancos de dados acessíveis.
Como se pode ver, parte dos limites e questionamentos já comentados
permanece ausente da lista acima. No entanto, algumas das características
listadas, como a de número dois, a atualização de avaliações de riscos citada na
de número seis, e a de número nove (que trata da noção de banco de dados
como componente de um sistema de vigilância de acidentes), já refletem
aspectos de ampliação conceitual da análise de acidentes.
O que se entende por ampliação conceitual? A expressão é usada para
designar a incorporação de conceitos no processo de análise. Sua utilização
abre novas veredas para a compreensão e análise de acidentes. Com o uso de
conceitos, partindo do mesmo material, a equipe de análise pode chegar a
entendimentos bastante diferentes daquele obtido sem o seu uso.
A noção de armadilha cognitiva, desenvolvida por Reason (1997) e usada
por Almeida & Binder (2004), possibilita identificar tarefas organizadas com
seqüências de passos que aumentam as chances de omissões em situações
inicialmente interpretadas como falta de atenção dos operadores. Os conceitos
de Rasmussen (1982), Reason (1999; 1997) e Reason & Hobbs (2003), assim
como os de atividade, regulações, competências, cognição situada,
migração sistemática para o acidente, apontam novos rumos para análises
de comportamentos humanos em acidentes de trabalho. Diferentemente das
abordagens tradicionais, nas novas abordagens, o acidente é organizacional e
as origens de comportamentos são buscadas em circunstâncias materiais e
sociais do contexto de trabalho entendidas como circunstâncias que
influenciam os modos de gestão psíquica usados pelos operadores no trabalho
(Vidal-Gomel & Samurçay, 2002; Lima & Assunção, 2000; Rasmussen, 1997).
Este texto procura apresentar aspectos da trajetória de conformação da
abordagem tradicional de acidentes, indicando elementos que apontam para
limites da concepção de ser humano nela adotada, e de esgotamento de suas
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possibilidades de contribuições em sistemas que melhoraram seus desempenhos
de segurança e que lidam com novas tecnologias.
Para aonde vai a análise de acidentes? O debate atual mostra-se dividido entre
duas grandes correntes: segurança comportamental versus segurança
sistêmica. A abordagem comportamental defende a idéia de que as principais
causas de acidentes são “atos inseguros” que equivalem a erros ativos de
operadores. Por isso mesmo, a sigla inglesa de programas de segurança
comportamental, BS, de “behavioural safety”, vem sendo usada por
movimentos de trabalhadores como sigla para programas de atribuição de culpa
(“blame the worker safety programs”).
A abordagem sistêmica contém modelos de acidente ditos psicorganizacionais
e rejeição à idéia negativa de erro humano presente na abordagem tradicional.
Ganham destaque: a) o reconhecimento da contribuição do subsistema social ou
humano para a segurança dos sistemas; b) a contribuição de características
estruturais e de circunstâncias materiais e sociais do sistema, em especial, de
respostas às pressões do ambiente para as origens da segurança e dos riscos na
situação de trabalho. Esta abordagem introduz novos desafios para os
interessados na exploração da dimensão humana em sistemas sociotécnicos
abertos. Entre os mais importantes, parecem estar: como identificar situações
em que “seu” sistema possa beneficiar-se com o uso da ampliação conceitual?
Como saber quais os conceitos que lhe serão úteis em cada situação? Estes
aspectos serão retomados em outro texto.
Agradecimentos: professor Chris W. Johnson, Grupo de Análise de Acidentes de
Glasgow, Departamento de Engenharia da Computação, Universidade de
Glasgow; Grupo de Apoio à Pesquisa, Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp.
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Educ., v.10, n.19,
p.185-202, jan/jun 2006.
El enfoque tradicional de accidentes presupone que la obediencia a procedimientos y
normas protege el sistema contra accidentes y que esos sucesos resultan de
comportamientos culpables de los trabajadores, originados, en parte, en aspectos de sus
personalidades. La identificación de esos comportamientos se centra en comparación con el
patrón basado en la “manera segura de hacer”, conocida anticipadamente por los
especialistas en seguridad. En las últimas décadas surgen visiones alternativas al enfoque
tradicional que amplían el perímetro de los análisis de accidentes y abren camino para
cuestionamientos de sus presupuestos relativos a las concepciones del ser humano y del
trabajo. Los nuevos enfoques ayudan a evidenciar los resultados estériles de las prácticas
tradicionales: culpar y punir a las víctimas, recomendar entrenamientos y normas
manteniendo inalterados los sistemas en que ocurrieron los accidentes. Los nuevos
enfoques sugieren el agotamiento del enfoque tradicional y resaltan la importancia de la
contribución de los operadores para la seguridad de los sistemas.
PALABRAS CLAVE: accidente de trabajo. prevención de accidentes.
Recebido em: 12/04/05. Aprovado em: 30/10/05.
202
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.185-202, jan/jun 2006
Suporte social, promoção de saúde e
saúde bucal na população idosa no Br
asil
Brasil
Silvânia Suely Caribé de Araújo 1
Danielle Bianca de Lima Freire 2
Dalva Maria Pereira Padilha 3
Julio Baldisserotto 4
ARAÚJO, S. S. C. ET AL. Social support, health and oral health promotion among the elderly population of
Brazil. Interface - Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10, n.19, p.203-16, jan/jun 2006.
The rising age of the world’s population, even in Brazil, highlights the importance of taking measures to deal
with the situation. In Brazil, most of the elderly are women living in multi-generation homes. Generally
speaking, they are an economic reference within these homes, have a low socioeconomic level, suffer from at
least one chronic disease, are independent in terms of carrying out their daily activities, are toothless, and look
for healthcare at governmental SUS (Single Healthcare System) centers. The Brazilian elderly that are exposed
to situations of social vulnerability are subject to the direct interference of social determinants in the heathillness process. Social Support includes social support networks and policies that act as integration agents for
the elderly within society, minimizing the risks of social exclusion and consequently of impairment of health
due to Health Promotion measures. This article discusses Social Support and some of its aspects, such as the
type and place of residence, transportation and financial support for the Brazilian elderly and their relation
with the Promotion of Health.
KEY WORDS: social support. elderly. health promotion. oral health.
O crescente envelhecimento da população mundial, inclusive no Brasil, ressalta a importância de medidas para
se lidar com esta situação. No Brasil, a maioria dos idosos é do sexo feminino; vive em domicílios
multigeracionais; é referência econômica nos mesmos; possui baixo nível socioeconômico; portadora de, pelo
menos, uma doença crônica; independente para realização das atividades da vida diária; não possui dentes, e
busca atenção em saúde no SUS. Os idosos brasileiros expostos a situações de vulnerabilidade social estão
sujeitos à interferência direta dos determinantes sociais no processo saúde-doença. O Suporte Social inclui
políticas e redes de apoio social, que atuam como agente de integração do idoso na sociedade, minimizando os
riscos de exclusão social e, conseqüentemente, de danos à sua saúde por meio de medidas de Promoção de
Saúde. Este artigo aborda o Suporte Social e alguns de seus aspectos, tais como: tipo e local de residência,
transporte e suporte financeiro; em idosos brasileiros e sua relação com a Promoção de Saúde.
PALAVRAS-CHAVE: apoio social. idoso. promoção da saúde. saúde bucal.
Professora, Disciplina de Dentística, Departamento de Clínica Odontológica, Faculdade de Odontologia, Universidade Federal da
Bahia. <[email protected]>
2
Departamento de Odontologia Preventiva e Social, Faculdade de Odontologia, UFRGS. <[email protected]>
3
Departamento de Odontologia Preventiva e Social, Faculdade de Odontologia, UFRGS; Instituto de Geriatria e Gerontologia da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. <[email protected]>
4
Departamento de Odontologia Preventiva e Social, Faculdade de Odontologia, UFRGS; gerente de Ensino e Pesquisa do Grupo
Hospitalar Conceição. <[email protected]>
1
1
Rua Edgar Reys Navarro, nº 376A, 204.
Santo Agostinho - Salvador, Ba
Brasil - 40.255-280
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.203-16, jan/jun 2006
203
ARAÚJO, S. S. C. ET AL
Introdução
A transição demográfica é um fenômeno mundial caracterizado,
principalmente, pelo declínio da taxa de fecundidade, a diminuição da taxa
de mortalidade nas idades avançadas e o aumento da expectativa de vida,
tendo como conseqüência direta uma mudança na estrutura etária da
população (envelhecimento). Este fenômeno já é observado há algum
tempo nos países desenvolvidos, mas ocorre agora de um modo bastante
acelerado nos países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, e, em menor
proporção, nos subdesenvolvidos (Carvalho & Garcia, 2003; Higgs, 1997;
Pereira, 1995).
Nas sociedades orientais, os idosos são considerados sábios e respeitados
pelas gerações mais jovens (Goyaz, 2004). Nas sociedades ocidentais, o
aumento do número de idosos na população tem sido acompanhado pelo
estigma da dependência, o que acarreta uma visão preconceituosa em
relação aos indivíduos mais velhos. Estes podem ser vistos por alguns
segmentos da sociedade como um fardo social e econômico, não só pelo seu
afastamento do mercado de trabalho, mas também pela própria prevalência
aumentada de doenças crônico-degenerativas e pelo risco maior de
incapacidades.
Com o processo do envelhecimento, surge o questionamento sobre o
termo saúde, já que a maioria dos idosos é portadora de, pelo menos, uma
doença crônica. O aspecto central no envelhecimento é a autonomia, sendo
esta um determinante de vida saudável para o idoso. “Envelhecimento
saudável... passa a ser a resultante da interação multidimensional entre
saúde física, saúde mental, independência na vida diária, integração
social, suporte familiar e independência econômica” (Ramos, 2003,
p.794). Os efeitos benéficos de uma rede de apoio social dependem,
sobretudo, de sua capacidade de suprir vários recursos para o indivíduo;
isto é, suporte social (Hanson et al., 1994).
O suporte social destina-se a integrar o idoso na sociedade, minimizando
os riscos de exclusão social, seja por meio das redes de apoio social ou
mediante a construção e viabilização de políticas públicas. Assim, o objetivo
deste estudo é realizar uma revisão de literatura sobre o suporte social e
seu impacto na organização e promoção da saúde em idosos no Brasil.
Idosos no Brasil
O número e as condições de vida dos idosos brasileiros variam bastante
entre as regiões, Estados e municípios. Estas características são
dependentes do nível de desenvolvimento socioeconômico local (Telarolli
Júnior et al., 1996). Um inquérito domiciliar, realizado com 667 idosos na
cidade de Fortaleza (CE), revelou que 66% eram do sexo feminino, 48,1%
eram casados, 36,8% viúvos e 15,1% solteiros; enquanto 67,2% das
mulheres viviam sem o cônjuge. A grande maioria dos idosos (75,3%) vivia
em domicílio multigeracional, e apenas 6,3% moravam sozinhos. Idosos
com melhor nível socioeconômico têm uma propensão maior para morar
em domicílios unigeracionais ou sozinhos, além de possuírem um maior
grau de independência (Coelho Filho & Ramos, 1999).
Um estudo baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
204
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.203-16, jan/jun 2006
SUPORTE SOCIAL, PROMOÇÃO DA SAÚDE GERAL E SAÚDE BUCAL...
Domicílios (PNAD) de 1998 delineou o perfil do idoso brasileiro. A renda
média foi de R$ 332,56 ( +30,75), e 64% dos idosos eram referência no
domicílio; o menor nível de renda foi mais freqüente entre as mulheres, os
maiores de 75 anos, aqueles com menor escolaridade e os que moravam
sozinhos, apesar de este dado ser contraditório em relação ao estudo acima
citado. Apenas 22,8% dos idosos relataram que sua saúde era boa ou muito
boa, mas somente 15% afirmaram que deixaram de realizar atividades
cotidianas nas últimas duas semanas por motivo de saúde. A maior parte
dos idosos referiu ter pelo menos uma doença crônica, ser independente
para a realização das atividades da vida diária, ter realizado mais de três
consultas médicas nos últimos 12 meses e consulta odontológica há mais
de três anos. Dos idosos entrevistados, 26,9% possuíam plano de saúde
privado. As melhores condições de saúde, capacidade física e acesso aos
serviços de saúde foram relatados por idosos com melhor nível de renda
(renda maior que 67% do salário-mínimo, sendo este, na época, igual a R$
130,00). Os gastos com medicação corresponderam a 23% do saláriomínimo (Lima-Costa et al., 2003a; Lima-Costa et al., 2003b).
Quanto à condição de inserção no mercado de trabalho, a maior parte
dos idosos residentes em dez regiões metropolitanas brasileiras realizava
trabalho informal, com uma jornada de trabalho igual ou superior a
quarenta horas semanais, eram autônomos no setor de prestação de
serviços e possuíam até sete anos de estudo. Do grupo dos idosos que
trabalhavam, 57,35% estavam na faixa etária de 65 a 69 anos. Já no grupo
dos aposentados, 36,85% dos idosos tinham 75 anos ou mais, e 35,36%,
65 a 69 anos. A mediana da renda domiciliar dos aposentados foi de R$
350,00, porém 24% destes recebiam menos de R$ 130,00. Por sua vez, a
mediana da renda domiciliar dos idosos que estavam trabalhando era de R$
610,00. Os idosos aposentados apresentaram maior freqüência de doenças
crônicas, menor grau de autonomia e mobilidade física (Giatti & Barreto,
2003).
Na literatura biomédica do período de 1998 a 2002, foram pesquisados
dados sobre pobreza, fome e desnutrição. De acordo com estas informações,
47% do total de óbitos por desnutrição ocorreram em pessoas maiores de
65 anos. Os municípios das regiões Sul e Sudeste apresentaram maior
mortalidade por desnutrição em idosos com 75 anos ou mais. O tipo de
desnutrição da qual os idosos foram vítimas não foi a desnutrição carencial
(escassez de alimentos), e sim de abandono (privados de alimentação)
(Paes-Sousa et al., 2003).
O Projeto Epidoso, estudo longitudinal realizado em 1991 com idosos
que viviam em comunidade, na cidade de São Paulo (SP), identificou fatores
relacionados ao envelhecimento saudável e fatores de risco para a
mortalidade. Os fatores de risco para mortalidade nesse grupo de idosos
foram: sexo (masculino), idade avançada, hospitalização, déficit cognitivo e
dependência nas atividades diárias (Ramos, 2003).
Desigualdades sociais em saúde na terceira idade
Para se falar sobre desigualdades sociais em saúde, é necessário admitir a
influência dos determinantes sociais sobre o processo saúde-doença. Para
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.203-16, jan/jun 2006
205
ARAÚJO, S. S. C. ET AL
Chammé (2002), a saúde contempla as condições vivenciadas pelo corpo do
indivíduo e seu nível de qualidade de vida. Este autor vê a doença como
resultante do desinteresse pelos determinantes socioeconômicos da
mesma, originando indivíduos doentes que são fruto de exclusões e
explorações.
O homem é um ser complexo, composto da interação de fatores
biológicos, sociais, psicológicos e espirituais, os quais influenciam-se
mutuamente. Quando se trata da ação destes fatores, é difícil determinar
precisamente quanto influenciam no processo saúde-doença (Palácio &
Vasquez, 2003). Segundo Ludermir & Melo Filho (2002), as relações entre
as classes sociais não são passivas e estáveis, mas têm uma dinâmica própria
que vai além da diferenciação por fatores socioeconômicos, possibilitando
explicações sobre a distribuição das doenças nas comunidades.
Os determinantes socioeconômicos estão relacionados à
capacidade de obtenção dos meios de saúde, isto é,
compreendem a capacidade econômica e cognitiva de se
apreender bens e serviços de saúde e incorporar práticas de
higiene pessoal e ambiental que favoreçam a obtenção e
manutenção de boas condições de saúde. (Paes-Sousa et al.,
2003, p.28)
Existem três teorias que buscam explicar as desigualdades sociais em saúde
por meio da interação de fatores sociais, econômicos e ambientais: Análise
do Curso de Vida, Modelo Salutogênico e Capital Social. A teoria da Análise
do Curso de Vida explica que há uma interação entre risco biológico e
fatores sociais e psicológicos para o desenvolvimento de doenças crônicas ao
longo da vida, sendo a doença atual resultante da posição social passada do
indivíduo. De acordo com o Modelo Salutogênico, existe uma relação entre
o modo como as pessoas lidam com eventos de vida estressores e seu estado
de saúde. Esta teoria propõe a identificação e modificação de fatores
socioeconômicos que influenciem o estado de saúde das comunidades
(criação de espaços salutogênicos). A teoria do Capital Social é de difícil
definição e abrange cidadania, confiança nos outros, cooperação e
envolvimento social. O capital social é relacionado a redes de apoio social e
ao suporte social. O estado de saúde de indivíduos e coletividades é
explicado pelos diferentes níveis de capital social presente, enquanto a
pobreza e a falta de base material e estrutural relacionam-se com um baixo
capital social, contribuindo para as desigualdades em saúde (Watt, 2002).
Idosos com menor nível socioeconômico apresentam mais necessidades
sociais, maior morbidade física e mental. Os resultados de uma pesquisa
realizada em Fortaleza (CE) demonstraram que os idosos que viviam em
piores condições materiais apresentaram mais doenças crônicas, maior grau
de dependência, piores condições mentais e dificuldade de acesso aos
serviços de saúde, do que aqueles em melhor nível socioeconômico (Coelho
Filho & Ramos, 1999).
Um estudo realizado em um centro de reabilitação na cidade de
Araraquara (SP), sobre a percepção da condição de saúde bucal em idosos
206
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.203-16, jan/jun 2006
SUPORTE SOCIAL, PROMOÇÃO DA SAÚDE GERAL E SAÚDE BUCAL...
com baixa renda, nível de escolaridade até a quarta série do Ensino
Fundamental e pouca qualificação profissional, demonstrou que a saúde
bucal foi considerada como regular por esses idosos, porém os dados
coletados por meio do exame clínico indicaram que não havia concordância
entre a autopercepção e a real condição de saúde bucal (Silva & Fernandes,
2001).
No levantamento epidemiológico nacional em saúde bucal (SB Brasil),
com uma amostra de 5.349 idosos, constatou-se que o número de dentes
perdidos, cariados e restaurados, verificado por intermédio do índice CPOD,
aumenta com a idade, passando de uma média de 20,1 na faixa etária de
35 a 44 anos, para a média de 27,8 na faixa etária de 65 a 74 anos. O
componente perdido foi responsável por aproximadamente 93% do CPOD
nos idosos, no entanto, a meta da Organização Mundial de Saúde (OMS) e
da Federação Dentária Internacional, para o ano 2000, era de 50% da
população idosa com vinte dentes ou mais presentes em boca. A prevalência
de cárie radicular nesta faixa etária foi baixa devido às perdas dentárias,
enquanto o componente cariado representou apenas 12,19% dos dentes
examinados. A necessidade de prótese dentária superior foi vista em
32,40% dos idosos examinados e 56,06% necessitavam de prótese dentária
inferior. Apesar disso, 46% desses idosos consideraram sua saúde bucal
como boa. Quanto ao acesso ao serviço odontológico, quase 70% dos idosos
pesquisados não iam ao dentista há mais de três anos e 5,83% nunca foram
atendidos. Quanto ao tipo de serviço utilizado, 40,50% relataram o serviço
público e 40,26% serviço privado liberal (Brasil, 2004d).
Em idosos norte-americanos, o edentulismo mostra-se associado às
seguintes condições: maiores de 65 anos, pobres, brancos e autopercepção
do estado de saúde geral como ruim. O uso de prótese dentária parcial
removível e a presença de coroas dentárias estiveram relacionados à
disponibilidade financeira do idoso para o pagamento da assistência
odontológica, fato que impossibilitou o acesso a estes tratamentos pelos
idosos mais pobres (Dolan et al., 2001).
A perda dentária é vista como uma conseqüência do envelhecimento,
porém existe uma associação entre perda dentária e eventos negativos de
vida (como a viuvez), baixos níveis de prestígio ocupacional, menos ajuda
de familiares e amigos, e presença de mais sintomas depressivos (Drake et
al., 1995).
Suporte social e promoção de saúde
O termo exclusão mostra-se insuficiente para definir um processo dinâmico
que não se limita ao afastamento dos meios produtivos, mas envolve a nãoparticipação em redes e sistemas de proteção social. A luta contra as
desigualdades sociais perpassa o restabelecimento de vínculos sociais,
interdependência e solidariedade entre os indivíduos (Magalhães, 2001).
O suporte social abrange políticas e redes de apoio sociais (família,
amigos e comunidade) que têm como finalidade contribuir para o bemestar das pessoas, principalmente aquelas em situação de exclusão. Neste
caso, o suporte social, mediante a eqüidade das ações, possibilita o exercício
da cidadania.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.203-16, jan/jun 2006
207
ARAÚJO, S. S. C. ET AL
Segundo Valla (1999, p.10),
apoio social se define como sendo qualquer informação, falada
ou não, e/ou auxílio material oferecido por grupos e/ou pessoas
que se conhecem e que resultam em efeitos emocionais e/ou
comportamentos positivos.
A função das relações sociais compreende aspectos comportamentais e
qualitativos dos relacionamentos e abrange suporte social, ancoragem
social e esforço relacional (suporte emocional). Salienta-se que, com o
processo de envelhecimento, as relações sociais sofrem mudanças (Avlund
et al., 2003).
Diante das questões econômico-sociais e de saúde, o idoso torna-se
sujeito à vulnerabilidade social. A Política Nacional do Idoso (Brasil, 2003)
afirma que é responsabilidade da família, da sociedade e do Estado
assegurar a cidadania ao idoso, sua participação na comunidade, dignidade,
bem-estar e direito à vida. O Estatuto do Idoso (Brasil, 2004c) garante a
esta população prioridade na formulação e na execução de políticas sociais,
bem como ratifica o direito do idoso à vida, saúde, alimentação, educação,
cultura, esporte, lazer, trabalho, cidadania, liberdade, dignidade, respeito, e
à convivência familiar e comunitária.
A criação de políticas incluindo toda a sociedade, redes de apoio para o
idoso dependente e sua família (capacitação dos cuidadores por
profissionais de saúde), assistência ao idoso que não dispõe de cuidados
familiares, e programas com o intuito de evitar uma posterior dependência
em idosos independentes são meios de promover a saúde na terceira idade
(Caldas, 2003; Telarolli Júnior et al., 1996).
O aumento da população idosa é simultâneo à ampliação da necessidade
de apoio. Um estudo realizado em Guadalajara (México), com idosos
hospitalizados de baixa renda, demonstrou que os indivíduos casados e
viúvos recebiam um maior número de atividades de apoio. O apoio
emocional foi o tipo mais prevalente, seguido do apoio econômico e
instrumental (apoio nas atividades da vida diária). O tamanho da rede de
apoio foi em média de 7,5 integrantes. As mulheres idosas receberam uma
rede de apoio maior e uma maior proporção de atividades de apoio do que
os homens idosos (Robles et al., 2000).
O apoio social melhora a saúde e o bem-estar das pessoas, atuando
também, em algumas situações, como um fator de proteção. Além disso, o
apoio atua como uma ferramenta de autonomia para os indivíduos, na
medida em que estes aprendem e compartilham modos de lidar com o
processo saúde-doença na comunidade (Valla, 1999). A Promoção de Saúde
dá ênfase à redução das desigualdades em saúde por meio da atuação sobre
os determinantes sociais do processo saúde-doença, injúria e incapacidade,
bem como mediante a adoção de medidas que favoreçam ambientes
saudáveis (Watt, 2002).
Embora as mulheres idosas representem a maioria da população com
mais de sessenta anos no Brasil, enfrentando situações sociais específicas,
como a viuvez e condições de saúde mais prevalentes neste gênero, como a
208
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SUPORTE SOCIAL, PROMOÇÃO DA SAÚDE GERAL E SAÚDE BUCAL...
osteoporose, todos os idosos demandam um adequado suporte social e
sanitário (Telarolli Júnior et al., 1996).
O idoso necessita de diversos tipos de recursos para suprir suas
necessidades da vida diária e ser capaz de optar por escolhas saudáveis.
Esses recursos incluem aspectos psicológicos, educação, recursos
financeiros, mas também recursos sociais (Hanson et al., 1994).
O Estado deve ser atuante, de modo a promover e auxiliar o suporte
familiar e, além disso, garantir o acesso pleno do idoso ao Sistema Único de
Saúde. O Programa de Saúde da Família tem a função de elo entre o idoso e
os serviços de saúde, possibilitando também a atenção domiciliar para os
idosos dependentes, valorizando o cuidado comunitário, principalmente na
família e na Atenção Básica de Saúde (Silvestre & Costa Neto, 2003). “Ativo
envolvimento em conselhos locais de saúde pode estimular o senso de
pertencimento e espírito comunitário e, além disso, aumentar o suporte
social dentro da comunidade” (Watt, 2002, p.245).
O acesso facilitado aos serviços odontológicos, seja nos centros de saúde
ou no atendimento domiciliar e unidades móveis, juntamente com uma
conscientização da equipe de cuidadores sobre a importância de se manter
uma boa condição bucal, são recursos importantes na busca de suporte
para manutenção da autonomia e uma melhora no quadro geral do
indivíduo idoso.
Os fatores sociodemográficos, principalmente aspectos das relações
sociais, são considerados importantes preditores de doenças bucais em
idosos, como a cárie radicular (Avlund et al., 2003; Gilbert et al., 2001).
“... fracas relações sociais influenciam no desenvolvimento de cáries
dentárias por meio de mecanismos biológicos ou comportamentais que
são inter-relacionados” (Avlund et al., 2003, p.460).
Neste contexto, a Odontologia deve atuar como um agente de
integração na sociedade, influenciando o suporte social, na medida em que
mantém a saúde bucal do idoso, possibilitando a este uma aparência
agradável, melhor auto-estima, maior capacidade de fonação, além de
contribuir para a integração do idoso ao meio social.
A estratégia do Fator de Risco Comum na Promoção de Saúde atua na
prevenção de diversas doenças crônicas que possuem os mesmos fatores de
risco, como: dieta, fumo, uso de álcool, estresse, trauma, sedentarismo. A
dieta, por exemplo, tem influência na obesidade, diabetes e cárie dentária.
A promoção de saúde por meio desta estratégia controla um número
ilimitado de fatores de risco comum, apresentando grande impacto sobre a
prevalência das doenças crônicas (Sheiham & Watt, 2000). Esta estratégia
pode ser utilizada com idosos com o propósito de prevenir o surgimento de
doenças crônicas, associadas ou não, e suas complicações.
A Promoção de Saúde pode ser realizada em ambientes multigeracionais,
como a família, já que a maioria dos idosos vive em comunidade; em grupos
freqüentados pelos idosos, como igrejas, associações e na Universidade
Aberta para a Terceira Idade; em escolas com crianças e adolescentes, de
modo que estes compartilhem o conhecimento com os avós; deste modo, a
Promoção de Saúde tem o objetivo de valorizar os idosos estimulando,
também, uma maior autonomia quanto à sua saúde.
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209
ARAÚJO, S. S. C. ET AL
Tipo e local de residência
Os idosos podem residir na comunidade e nas instituições. Os tipos de
residência podem ser: residenciais geriátricos, asilos, hospitais de longa
permanência e domicílios. Os residenciais geriátricos são condomínios
fechados com toda infra-estrutura de saúde e outros serviços, onde os
idosos residem sozinhos ou com o cônjuge. Estes residenciais possuem um
alto custo de manutenção.
Os asilos podem ser filantrópicos, públicos ou privados, de acordo com o
tipo de financiamento. Estas instituições possuem quartos comunitários,
comumente separados por sexo, e demais ambientes de uso comum. Os
hospitais de longa permanência abrigam idosos dependentes que
necessitam de constante assistência médico-hospitalar. Já nos domicílios, os
idosos vivem na comunidade com seus familiares, amigos ou sozinhos.
“A família e os amigos são a primeira fonte de cuidados. O maior
indicador para o asilamento e outras formas de institucionalização de
longa duração entre idosos é a falta de suporte familiar” (Caldas, 2003,
p.776).
No Brasil, os idosos tendem a viver em domicílios multigeracionais, com
cônjuge e/ou filhos, genros, noras e netos (Coelho Filho & Ramos, 1999).
O cuidado do idoso no Brasil é centrado na família e realizado
principalmente por mulheres. Em Araraquara (1993), por exemplo, apenas
0,75% dos idosos são institucionalizados (Telarolli Júnior et al., 1996).
Estes dados são semelhantes aos da Inglaterra, onde pequena parcela da
população inglesa vive em asilos ou hospitais geriátricos, mesmo em idades
avançadas (Higgs, 1997).
A idade avançada, por si só, não é um determinante para o asilamento.
Fatores que aumentam o risco para o asilamento são: presença de doenças
crônico-degenerativas e suas seqüelas, a hospitalização recente,
dependência, morar sozinho, suporte social precário, baixa renda e
diminuição do número de cuidadores familiares (Chaimowicz & Greco,
1999).
De acordo com o Estatuto do Idoso (Brasil, 2004c), este tem a
preferência na aquisição de imóveis em programas de habitação financiados
com recursos públicos, com reserva de 3% das residências para atendimento
aos idosos, urbanismo e arquitetura adequados, e critérios de
financiamento próprios para idosos.
Idosos que residem em apartamentos com escadas e em favelas ou vilas
que possuem passagens estreitas podem apresentar dificuldade de
locomoção, principalmente se esses idosos necessitarem de apoio ou de
cadeira de rodas, restringindo o acesso a uma rede de apoio social maior,
incluindo os serviços de saúde, o que torna o serviço de saúde odontológico
domiciliar também fundamental.
Transporte
Segundo a Classificação Internacional de Funcionalidades (CIF, 2004) o
transporte está enquadrado nos serviços de suporte social geral. O
transporte também compõe um importante fator para a promoção de
saúde na terceira idade, atuando indiretamente para evitar a reclusão social
210
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SUPORTE SOCIAL, PROMOÇÃO DA SAÚDE GERAL E SAÚDE BUCAL...
desses indivíduos.
No Brasil, a lei do Estatuto do Idoso (Brasil, 2004c) assegura, aos
maiores de 65 anos, a gratuidade dos transportes coletivos públicos
urbanos e semi-urbanos, exceto nos serviços seletivos e especiais, quando
prestados paralelamente aos serviços regulares. No caso das pessoas
compreendidas na faixa etária entre sessenta e 65 anos, ficará a critério da
legislação local dispor sobre as condições para o exercício da gratuidade nos
transportes públicos.
Esta gratuidade surge como um mecanismo facilitador para escolhas
saudáveis, no momento em que estimula o lazer, a participação em grupos
de convívio, de educação e, conseqüentemente, resultando no
empoderamento, ao combater o isolamento social e a depressão.
Os idosos que utilizam esse tipo de transporte geralmente são
caracterizados pela sua independência, vivem na comunidade e não
necessitam de auxílio para se manterem funcionais, conseguindo usufruir
normalmente dos serviços de saúde tradicionais que requerem o
deslocamento do indivíduo, como, por exemplo, os serviços odontológicos
públicos ou privados.
Já os idosos considerados frágeis – que possuem uma doença crônica,
têm debilidades físicas, médicas, emocionais e são capazes de manter
alguma independência na comunidade somente se obtiverem assistência
continuada –, juntamente com os funcionalmente dependentes, que além
dos problemas anteriormente citados são incapazes de manter sua
independência, vêem o transporte como uma barreira ao acesso dos mais
variados serviços, dentre eles, o odontológico (Dolan & Atchison, 1993).
Cazarini (2002) também demonstrou que uma das causas da não-adesão a
um grupo educativo de pessoas portadoras de diabetes mellitus foi a
dificuldade de acesso aos meios de transportes.
Para os idosos considerados frágeis e os funcionalmente dependentes,
que necessitam de cuidados em saúde bucal, surgem alternativas como as
unidades móveis e o atendimento domiciliar. Nas unidades móveis, um
consultório é mantido em um trailer ou van, que se desloca o mais próximo
do usuário. No atendimento domiciliar, o usuário não se encontra em
condições de deslocamento e o cirurgião-dentista se encaminha até o local
com equipamento portátil, às vezes com algumas limitações, mas
oferecendo acesso aos serviços (Lee et al., 2001). Uma dessas limitações é o
custo financeiro (Fiske et al., 1990), onde a maioria ainda se encontra na
esfera privada, principalmente o atendimento domiciliar.
No Brasil, o Programa de Saúde da Família (PSF) amplia o seu alcance de
acesso para além das Unidades de Saúde, com o trabalho das visitas
domiciliares, por meio do qual procura atender os indivíduos, que, na sua
maioria, são idosos frágeis ou funcionalmente dependentes, buscando
mantê-los no convívio familiar, evitando-se ou postergando a hospitalização
(Silvestre & Costa Neto, 2003). Os profissionais de saúde bucal, que atuam
em PSFs, trabalham um novo conceito de atenção à saúde, o atendimento
domiciliar – deslocando-se até o usuário incapacitado e buscando, com uma
melhora no seu quadro de saúde bucal, participar do restabelecimento da
saúde geral. As unidades móveis também são recursos utilizados para
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.203-16, jan/jun 2006
211
ARAÚJO, S. S. C. ET AL
prestarem serviços às zonas rurais ou periféricas onde o acesso aos serviços
de saúde é bastante limitado.
Uma outra questão a ser discutida é a de acidentes de trânsito
envolvendo idosos. Os idosos vítimas de lesões por causas externas são
geralmente independentes. Após os acidentes, esta condição é comumente
modificada, prejudicando sua saúde mental e física. A violência no trânsito
é mais prejudicial aos idosos, pois são mais vulneráveis aos traumas,
possuem uma recuperação mais lenta, apresentam maior tempo de
hospitalização nos casos de traumatismos e lesões mais graves
(Gawryszewski et al., 2000).
Um estudo realizado em Londrina (PR) analisou as características das
vítimas por acidentes de trânsito terrestre. Verificou-se que os coeficientes
de incidência de agravos e de mortalidade mais elevados foram para jovens
motociclistas de 15 a 29 anos (33 a 38,3 por cem mil habitantes); para
idosos entre sessenta a 69 anos (28,1 por cem mil habitantes), e para
idosos entre sete ta a 79 anos (39,4 por cem mil habitantes) (Andrade &
Mello-Jorge, 2000).
São aliados na manutenção da qualidade de vida dos idosos: um
transporte público de qualidade, adaptado às necessidades dessa população;
diminuição das barreiras de acesso aos serviços de saúde por meio do
atendimento domiciliar e das unidades móveis; continuação da autonomia
do dirigir; a presença de programas que auxiliem na manutenção do idoso
na família, e estruturas físicas apropriadas para idosos nas cidades.
Suporte financeiro
Segundo Higgs (1997), um marco que indica em vários países a entrada na
terceira idade é a aposentadoria. Este é um fato controverso e não pode ser
generalizado, já que, em alguns países africanos, principalmente os mais
pobres, as pessoas esperam a aposentadoria aos quarenta anos de idade. O
aumento do número de aposentadorias nas sociedades industrializadas
propiciou o surgimento de teorias quanto à posição do idoso na sociedade.
A teoria do desligamento refere-se ao afastamento do idoso da população
economicamente ativa por meio da aposentadoria, não se resumindo
apenas ao desligamento do espaço profissional, mas também do familiar. A
teoria da dependência estruturada expõe que o idoso, quando sai do
mercado de trabalho formal, passa a depender da renda da aposentadoria,
sendo esta dependência estabelecida por políticas públicas. Para a teoria da
Terceira Idade (Third Ageism), a aposentadoria é vista como um momento
que possibilita ao idoso oportunidades para realização de outras atividades
de caráter econômico e de valorização pessoal. O idoso poderia investir seu
tempo em educação, mudança de profissão, turismo etc .
No Brasil, mediante a Lei Orgânica da Assistência Social, o idoso que não
possui recursos para a sua sobrevivência, ou cuja família não intervenha na
sua manutenção, tem o direito a um salário-mínimo mensal como benefício
(Brasil, 2004a).
A aposentadoria oferecida pelo Estado não deve ser inferior a um saláriomínimo e nem superior ao limite máximo do salário-de-contribuição (dez
salários-mínimos). Para se evitar um colapso no Sistema Previdenciário
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SUPORTE SOCIAL, PROMOÇÃO DA SAÚDE GERAL E SAÚDE BUCAL...
brasileiro daqui a alguns anos, devido ao crescente número de idosos e
aumento da expectativa de vida, uma das soluções adotadas foi aumentar a
idade de aposentadoria de sessenta para 65 anos para os homens, e de 55
para sessenta anos para as mulheres. Os trabalhadores rurais podem pedir
aposentadoria por idade com cinco anos a menos: aos sessenta anos,
homens, e aos 55 anos, mulheres. Também foi estipulada uma
contribuição de 11% para a Previdência Social, mesmo após a
aposentadoria, para aqueles que receberem acima de 60% do limite máximo
fixado para os benefícios do regime geral de Previdência Social (Brasil,
2004b; 2004c).
Um suporte financeiro adequado minimiza as desigualdades em saúde.
Quanto à saúde bucal, a economia contribui marcadamente para a
construção de um perfil de saúde bucal e de hábitos de cuidado bucal entre
as pessoas (Hanson et al., 1994).
Quando é feito o planejamento para recuperação da saúde bucal na
terceira idade, o custo desta deveria ser considerado, principalmente
porque os serviços de reabilitação oral, especificamente os procedimentos
protéticos, são os mais procurados e onerosos. Tal fato exclui a maioria dos
idosos do acesso a esses serviços. Aos poucos, esta realidade tende a ser
modificada com a implantação da Política Nacional de Saúde Bucal, que
busca ampliação e qualificação da Atenção Básica, mediante a inclusão de
procedimentos mais complexos como a reabilitação protética (Brasil,
2005).
Considerações finais
O Brasil é um país com grandes contrastes sociais e econômicos e, neste
contexto, o envelhecimento populacional emerge como uma questão a ser
discutida, devido ao aumento do número de idosos em precárias condições
socioeconômicas, com maior prevalência de doenças crônico-degenerativas e
risco aumentado de dependência. Um suporte social adequado e a
promoção de saúde, tanto ao nível macro — políticas públicas, quanto no
núcleo familiar, devem ser estruturados e viabilizados de modo a suprir as
necessidades dos idosos e melhorar a sua qualidade de vida. A presença de
redes de apoio, suporte financeiro digno, acesso aos serviços de saúde,
moradias adequadas e transporte de qualidade são alguns elementos
necessários à construção de uma melhor condição de vida.
A promoção de saúde e saúde bucal na população idosa brasileira deve
ser estimulada em todos os ambientes sociais, tanto nos serviços de saúde
quanto na família, promovendo a autonomia do idoso, possibilitando a
consolidação da relação inegável entre o suporte social e a promoção de
saúde, pois na medida em que se implementa o primeiro, trabalha-se
promovendo a saúde.
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2006.
El creciente envejecimiento de la población mundial, inclusive en Brasil, acentúa la
importancia de las medidas para tratar con esta situación. En Brasil, la mayoría de los
ancianos es del sexo femenino, vive en domicilios con varias generaciones, es referencia
económica para estos, tiene bajo nivel socioeconómico, es portadora de por lo menos
una enfermedad crónica, independiente para realización de las actividades de la vida
diaria, no tiene dientes y busca atención en salud en el SUS. Los ancianos brasileños
expuestos a situaciones de vulnerabilidad social están sujetos a la interferencia directa
de los determinantes sociales en el proceso de salud-enfermedad. El Soporte social
incluye políticas y redes de apoyo social, que actúan como agente de integración del
anciano en la sociedad y disminuyendo los riesgos de exclusión social y en consecuencia
de daños a su salud a través de medidas de promoción de salud. Este artículo discute el
Soporte Social y algunos de sus aspectos como: el tipo y lugar de residencia, el
transporte y el soporte financiero en ancianos brasileños y su relación con la promoción
de salud.
PALABRAS CLAVE: apoyo social. anciano. promoción de salud. salud bucal.
Recebido em: 11/04/05. Aprovado em: 20/02/06.
216
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Autoper
cepção da per
da de dentes em idosos*
Autopercepção
perda
Beatriz Unfer 1
Kátia Braun 2
Caroline Pafiadache da Silva 3
Léo Dias Pereira Filho 4
UNFER, B. ET AL. Self-perception of the loss of teeth among the elderly. Interface - Comunic., Saúde,
Educ., v.10, n.19, p.217-26, jan/jun 2006.
Educ.
The objective of this work was to analyze the perceptions of a group of elderly people regarding loss of teeth.
A qualitative study was conducted that used the Discourse of the Collective Subject as a methodological
technique for ordering the data. The analysis of the interviews and the construction of the Discourse of the
Collective Subject disclosed information on the thoughts and values associated with the loss of teeth within this
group. The main results suggest that the lack of teeth caused functional and psychological problems, but that
these appeared to be offset by solving the aesthetic problem. The justifications disclosed by the collective
subject for edentulism predominantly reflect the healthcare model, which focuses on surgical, restorative and
rehabilitation procedures, to the detriment of preventive actions and the promotion of health. Thus, the
development of initiatives in the field of education and prevention regarding oral health is essential,
emphasizing actions that target paying total, overall attention to the elderly, the social dimension of the
illnesses standing out, as well as the role of the State as supplier of health and quality of life for all citizens.
KEY WORDS: elderly. oral health.self-perception.
O objetivo deste trabalho foi analisar as percepções de um grupo de idosos sobre a perda de dentes. Realizouse uma pesquisa qualitativa que utilizou O Discurso do Sujeito Coletivo como técnica metodológica para a
ordenação dos dados. A análise das entrevistas e a construção do Discurso do Sujeito Coletivo revelaram
informações sobre os pensamentos e valores associados à perda de dentes no grupo. Os principais resultados
sugerem que a falta de dentes trouxe problemas funcionais e psicológicos, mas que parecem ser compensados
pela resolução do problema estético. As justificativas reveladas pelo sujeito coletivo para o edentulismo
refletem predominantemente o modelo de atenção à saúde, em que predominam procedimentos cirúrgicorestauradores e reabilitadores, em detrimento de ações preventivas e educativas. Desta forma, torna-se
imprescindível o desenvolvimento de iniciativas no campo da educação e prevenção em saúde bucal,
enfatizando ações voltadas para a atenção integral do idoso, destacando-se a dimensão social das doenças e o
papel do Estado como provedor da saúde e da qualidade de vida de todos os cidadãos.
PALAVRAS-CHAVE: idoso. saúde bucal. autopercepção.
*
Elaborado a partir de Santos (2006).
Curso de Odontologia, Universidade Federal de Santa Maria/UFSM, RS. <[email protected]>
Curso de Odontologia, UFSM. <[email protected]>
3,4
Acadêmicos, Curso de Odontologia, UFSM. <[email protected]>. <[email protected]>
1
2
1
Rua Dutra Vila, 193/302
Santa Maria, RS
Brasil - 97.050-190
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.217-26, jan/jun 2006
217
UNFER, B. ET AL.
Introdução
O crescimento do número de idosos na população tem provocado um
aumento significativo de estudos que se propõem a investigar os
fenômenos que cercam o envelhecimento humano.
Na área da saúde, este processo tem provocado a discussão sobre a
reorganização da atenção proporcionada aos idosos, visando à qualificação
do cuidado em saúde nas diversas áreas de conhecimento.
No Brasil, o último levantamento epidemiológico mostra que os
brasileiros na faixa etária de 65 a 74 anos já perderam 93% dos seus dentes
(Ministério da Saúde, 2004). Este quadro revela a precariedade da saúde
bucal na população idosa brasileira e denuncia a falta de cuidados a que
foram submetidos estes indivíduos ao longo de sua vida.
Na Odontologia, a preocupação com os idosos reside no fato, entre
outros, de que a capacidade mastigatória está intimamente ligada à
condição nutricional e esta, à saúde geral dos indivíduos, o que repercute
na sua qualidade de vida. Embora a estética dentária seja importante, a
cavidade bucal deve ser vista em sua plenitude, pois por meio dela existe a
integração social do indivíduo (Brunetti & Montenegro, 2002).
Na área da educação em saúde tem sido dada ênfase à articulação entre
os saberes técnico e popular para possibilitar que as comunidades e o
próprio indivíduo possam conhecer e controlar os fatores que afetam e
determinam sua saúde. O autodiagnóstico e o autocuidado potencializam o
desenvolvimento de ações de saúde junto à população idosa, pois as
mutilações dentárias produzem incapacidades que nem sempre são
percebidas como problemas funcionais relevantes (Freire Jr. & Tavares,
2005; Narvai & Antunes, 2003).
O objetivo deste trabalho foi identificar e analisar as percepções dos
indivíduos sobre a perda de dentes, como forma de aumentar o
conhecimento e qualificar as ações e os serviços voltados para a terceira
idade.
Metodologia
O método para coleta dos dados partiu de um corte qualitativo. A
população integrante foi composta por idosos de sessenta anos ou mais, de
ambos os sexos, que participavam de um evento de saúde e lazer para a
terceira idade, na Universidade Federal de Santa Maria.
Os dados foram obtidos por meio de entrevista individual semiestruturada com base em duas perguntas que serviram como balizadoras
do tema: “O senhor / a senhora já perdeu algum dente?” e “O que
significa para o senhor / a senhora ter perdido este (s) dente (s)?”. O
entrevistado tinha liberdade de falar sobre o tema e de relatar sua história
da maneira que lhe fosse conveniente.
Partindo da perspectiva de um estudo qualitativo, a amostragem seguiu
critérios inerentes a este tipo de investigação, considerando-se suficiente o
número de entrevistas no momento em que foram observados a reiteração
e o esgotamento das categorias nos discursos dos sujeitos entrevistados
(Bosi & Mercado, 2004).
As entrevistas, num total de 23, foram gravadas, e os discursos foram
218
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.217-26, jan/jun 2006
AUTOPERCEPÇÃO DA PERDA DE DENTES EM IDOSOS
transcritos literalmente pelos pesquisadores. Para a análise dos dados, foi
adotada a abordagem metodológica proposta por Lefèvre (Lefèvre et al.,
2000) - O Discurso do Sujeito Coletivo.
Cada entrevista foi analisada individualmente após sucessivas leituras,
coletando-se as expressões-chave e a respectiva idéia central. Em seguida,
foram destacadas as categorias temáticas consideradas mais significativas. A
síntese dos discursos dos entrevistados representa o discurso do sujeito
coletivo para cada categoria temática.
De acordo com os critérios éticos, a adesão dos entrevistados foi
voluntária, posterior à leitura e explanação dos objetivos do estudo, e
seguida da assinatura do termo de consentimento informado. O projeto de
pesquisa (N° 015770) foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do
CCS/UFSM, recebendo aprovação.
Resultados e Discussão
A população estudada foi constituída por idosos funcionalmente
independentes e participantes ativos de grupos de terceira idade,
aposentados, predominantemente do sexo feminino e com idades variando
entre 55 e 84 anos. Segundo dados preliminares de um levantamento de
saúde bucal, 87% de idosos possuem algum tipo de prótese dentária
(Unfer, 2004).
Os pensamentos e os valores associados à perda de dentes pelos idosos
entrevistados foram organizados segundo dois temas principais: as idéias
centrais que os compõem e os Discursos do Sujeito Coletivo
correspondentes.
Tema 1: Justificativas para a perda de dentes
Idéia Central 1: falta ou dificuldade de acesso a serviços
odontológicos
Morando na campanha, há setenta anos, imagina o que era este
mundo, essa vida há sessenta anos atrás. Eu morava pra fora, lá
na colônia, não era bem instruído, não fazia tratamento. Eu
cheguei a botar cinza quente pra aliviar a dor. Tinha os dentes
muito estragados. Hoje, tem dente estragado quem quer, pois
quando eu era novo, era moço, não havia a facilidade que tem
hoje, já tem recursos que substituem os dentes, ou substituem
a estética. Naquele tempo, estes recursos eram de última
necessidade. O problema é a situação financeira. A gente vai
indo, vai indo, vai estragando. No fim, a gente acaba tirando o
que resta e coloca uma dentadura. Em parte, foi descuido meu.
Um pouquinho de relaxamento. Eu tinha medo de ir ao
dentista, sentia a anestesia, sentia a extração e me dava
hemorragia. E aí fui relaxando, fui deixando, fui deixando e...
Considerando o acesso como qualquer situação que permite e facilite a
entrada de um indivíduo a um serviço de saúde, percebe-se que, para os
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UNFER, B. ET AL.
idosos, há um conjunto de situações que impedem ou não facilitam a
utilização de serviços de saúde bucal. Entre estas estão as dificuldades
econômicas, culturais, e sociais. Nem todos os pacientes chegam à terceira
idade com condições financeiras de arcar com os custos do tratamento
odontológico, principalmente o protético. Aliam-se a esta situação a
necessidade de deslocamentos e a ajuda de terceiros (Narvai & Antunes,
2003; Brunetti & Montenegro, 2002). Além disso, embora exista déficit de
atendimento a idosos, muitos não buscam atendimento nos serviços
públicos, pois são desestimulados pela demora e pela qualidade dos serviços
prestados (Jitomirski, 2000). Nestes locais, os idosos constituem um grupo
de menor prioridade.
Idéia central 2: desconhecimento sobre as causas e o controle
das doenças bucais
Eu tinha 10, 13, 14 anos, não pensava em dentista, não sabia
nem o que era dentista, me criei assim, nem escovava os dentes.
Minha mãe escovava os dentes com cinza, nem sabia o que era
pasta de dente. Minha gengiva inflamava e meus dentes
afrouxavam. Às vezes, eu tirava até com a mão. Até hoje não
fiquei sabendo o porquê, só sei que afrouxou. Talvez o
problema seja daquela piorréia que afrouxa os dentes. Eu tive
que arrancar, fui obrigada, foi muito ruim porque eu tinha a
dentadura boa, dentes sãos, novos, com toda a idade que eu
tinha. Senti muita dor. Um arrebentou aqui em cima, saiu a furo
pro lado de fora. Obturei, mas depois já não dava mais pra
obturar, então mandei tirar tudo, os que estavam bons e os que
estavam ruins.
As manifestações dos idosos neste estudo refletem os resultados dos
estudos epidemiológicos na população adulta e idosa, evidenciando a alta
prevalência de cárie dentária, doenças periodontais e edentulismo. A
prevenção em odontologia teve sua implementação iniciada na década de
1970, mas com ênfase para a população escolar. Até o momento, os
cuidados para os idosos não têm sido contemplados devidamente nos
programas de saúde bucal.
Para Jitomirski (2000), os serviços de saúde devem e podem incluir a
proteção à saúde bucal de idosos entre suas atividades normais. As ações
educativas devem ser intensificadas, proporcionando orientações
específicas, enfatizando a adoção de comportamentos compatíveis com uma
boa saúde e estimulando que os idosos realizem o auto-exame bucal. O
autodiagnóstico de problemas bucais pode representar a possibilidade de
ampliação da cobertura por parte dos sistemas preventivos, de recuperação
e de manutenção da saúde.
Shankai (2000) coloca que a incorporação de hábitos e modos de vida
saudáveis requer que a população idosa tenha conhecimento deles para
querer adotá-los, e queira para pedir e fazer. Assim, é preciso proporcionar
a informação e a orientação básica para que as percepções de necessidades
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.217-26, jan/jun 2006
AUTOPERCEPÇÃO DA PERDA DE DENTES EM IDOSOS
de saúde sejam reais e se transformem em atitudes pessoais e de
reivindicações de medidas governamentais para a proteção da saúde bucal.
Idéia Central 3: conseqüência do modelo de atenção em saúde
bucal
Um pouquinho da época. Porque, na minha época, se estragava
um dente, em vez de os dentistas obturar, já arrancavam. E aí ...
perdia. A gente fica sentida. Talvez por causa de uma dor
terrível no nervo trigêmeo. Não tinha nada a ver com o dente e
alguns dentistas não queriam retirar o dente. Como eu não
melhorava daquele sintoma fui no SESC. Me aconselharam que lá
eu conseguiria tirar os dentes, então tirei três dentes.
Brunetti & Montenegro (2002) colocam que, no passado, as intervenções
em dentes fraturados ou com mobilidade implicavam exodontia e colocação
de prótese parcial, evoluindo até a colocação de uma prótese total. O
quadro de alta prevalência de edentulismo no Brasil reflete um modelo de
atenção cirúrgico-restaurador. Principalmente em serviços públicos, as
extrações em massa se constituem na única forma de atendimento
oferecido.
Nesse contexto, sem um enfoque conservador e preventivo, as
intervenções evoluem de sucessivas restaurações, exodontias, colocação de
próteses parciais, até a colocação de próteses totais.
Tema 2: Conseqüências da perda de dentes
Idéia Central 1: influência na saúde
Eu gostaria de ter todos os meus dentes, é muito triste,
imensamente triste mesmo, perder os dentes, eu perdi muito
em termos de saúde. Não há como dente natural, é confortável,
acho um tesouro. Dentes naturais significam saúde. Eu tinha
meus dentes maravilhosos, uma dentadura linda. Eu tenho só 6
dentes naturais, então, fica aqueles vãos, aquela falha nos
dentes, atrapalha. Quando extraio um dente, eu digo: - Vou ficar
com um dente a menos. Quem tem os dentes bons tem que
cuidar, pois mais tarde fará muita falta. A falta de dente poderá
se tornar uma dor de cabeça, qualquer coisa, pra saúde.
Se nos reportarmos para a definição de saúde bucal levantada pela I
Conferência Nacional de Saúde Bucal, no mesmo ano da VIII Conferência
Nacional de Saúde, veremos que ela é parte integrante e inseparável da
saúde geral. Para a população idosa, significa condições biológicas e
psicológicas adequadas, de modo que os indivíduos exerçam
funcionalmente a mastigação, deglutição e fonação, além de exercitarem a
auto-estima e o relacionamento social por meio da estética, sem inibição ou
constrangimento contribuindo, deste modo, para a saúde geral. Havendo
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.217-26, jan/jun 2006
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UNFER, B. ET AL.
dificuldades em alguma dessas funções ou estado, estaremos diante de um
quadro de incapacidade, que pode acometer os indivíduos de formas
variáveis (Narvai & Antunes, 2003).
Neste estudo, os idosos parecem reconhecer que a presença dos dentes
naturais determina ou colabora para a saúde, embora não esteja claro, para
eles, de que forma o desconforto percebido pela perda de dentes pode
alterar a saúde.
Idéia central 2: prejuízo à mastigação
Eu acho que muda muito, muito mesmo. A gente não consegue
se alimentar direito, não pode mastigar o alimento direito. Se eu
tivesse meus dentes, eu podia comer uma espiga de milho. É
impossível até pra comer carne. O pessoal acha graça que eu
corto no garfo... tenho que cortar a carne mais pequenininha. Eu
não posso pegar uma maçã ou um pão e dar uma dentada
daquelas gostosas. Tenho que pegar uma faca e cortar os
pedacinhos. Eu gostava muito de comer cana, mas agora não
posso mais, a gente não pode comer nada que aperta. A chapa é
outra coisa. Não é como os dentes da gente. A gente não tem a
força nos dentes pra cortar porque os dentes postiços nunca são
firmes na boca. As próteses vão gastando e não cortam muito. É
enjoado para mastigar, tem muitas coisas que a gente não pode
comer com esses dentes porque resvala. Então, às vezes, como
até muito ligeiro. Não tem nada melhor do que mastigar com os
dentes naturais.
Os idosos percebem que a mastigação não é realizada com naturalidade e
conforto, e que há necessidade de selecionar o tipo de alimento ou a forma
de consumi-lo, por meio de estratégias que facilitem a ingestão.
A perda de dentes e a diminuição do fluxo salivar em idosos diminuem a
capacidade de mastigar e deglutir adequadamente o alimento,
comprometendo a saúde geral e o bem-estar do idoso. A mudança de uma
dieta saudável para uma dieta com predominância de carboidratos e
alimentos menos consistentes pode não conter os nutrientes adequados às
necessidades biológicas, causando estados anêmicos e apáticos em pessoas
mais suscetíveis. Além disso, este tipo de alimentação pode causar atrofia
na musculatura mastigatória, com repercussão na estética facial e na autoestima do idoso (Brunetti & Montenegro, 2002).
Nem mesmo a substituição dos dentes por próteses confere o conforto e
a naturalidade necessários para uma alimentação adequada. Nesse sentido,
destaca-se a importância da execução de um tratamento protético
biologicamente orientado, adequada às reais necessidades do idoso,
proporcionando o conforto e a segurança necessários para a mastigação.
Também é preciso orientar os portadores de próteses sobre os controles
periódicos que devem ser realizados pelo dentista. A desadaptação das bases
é comum devido a reabsorção óssea, e a perda da altura facial pode ser
conseqüência da abrasão dos dentes artificiais.
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AUTOPERCEPÇÃO DA PERDA DE DENTES EM IDOSOS
Idéia Central 3: problemas na fonação
Tenho problema, dificuldade para falar, conversar. É difícil.
Embora se saiba que as perdas dentárias contribuem para aumentar a
dificuldade de fonação, neste estudo, apenas três pessoas relataram sentir
dificuldades nesta função, o que foi comprovado também no estudo de
Narvai & Antunes (2003).
Idéia Central 4: problemas psicológicos
Eu não acho confortável estar com os dentes que não são meus.
A gente não se sente a mesma pessoa. Começando pela higiene.
Muitas vezes, a gente tem que sair da mesa e chegar no toalete
e escovar dentes e dentadura. Para mim, é difícil, não me sinto
bem, fico encabulada de estar escovando a prótese. Isso me
constrange muito. Não me interessa se os outros estão ali, não
sei se estão me olhando ou não, mas eu sempre espero não ter
ninguém no toalete pra eu tirar minha escovinha de dente.
Na população estudada, a presença de prótese é uma situação comum. No
caso das removíveis, o processo de higiene bucal exige a retirada da prótese
para a limpeza adequada. Isto pode gerar constrangimento aos portadores,
principalmente quando não há privacidade no local. Conforme relata Wolf
(1998) em seu estudo, mesmo em situações extremas, como doenças
graves ou realização de cirurgias, “ficar sem as próteses provoca sensações
de humilhação, vergonha e sentimentos de desproteção”.
Idéia Central 5: implicações estéticas
Se eu quebrar um dente eu entro em pânico, eu vou procurar
um dentista, eu faço qualquer coisa. Eu acho horrível a pessoa
sem dente ou desdentada. É uma coisa desagradável. Eu cuido
dos meus dentes! As duas dentaduras são postiças. Uma vez
quebrei um dente, fiquei louca, desesperada, pois onde
encontrar um dentista, era sábado. No outro dia, eu disse pra
minha filha: - Eu vou sair, se eu encontrar um dentista que
coloque esse dente de volta na chapa, eu volto pra casa, senão,
eu não volto, vou fazer qualquer coisa, não volto pra casa
desdentada. Porque o principal na pessoa pra mim é o rosto! Já
mudei 2 vezes, não, 3 vezes. Uma vez eu mandei fazer uma
prótese. Até foi uma prima minha e afilhada. Nossa, ficou
horrível, me senti horrível! Uma semana depois, eu mandei fazer
outra. Essa aqui já faz uns 6, 8 anos que eu tenho. Não sei...
acho que não implica em nada, nenhum problema, ainda mais
que são laterais, são bem atrás, não são dentes frontais, nem se
nota.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.217-26, jan/jun 2006
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UNFER, B. ET AL.
A preocupação com a reposição dos dentes perdidos é maior quando a
estética está envolvida, e menor quando o restabelecimento da função
dentária é necessário. No último levantamento das condições de saúde
bucal da população brasileira, verificou-se que o uso de próteses superiores
superou o de próteses inferiores, e uma das razões pode ser explicada pela
questão estética que envolve a perda de dentes anteriores superiores
(Ministério da Saúde, 2003).
A auto-imagem está relacionada a um padrão ideal imposto pelas
exigências sociais. Assim sendo, a expressão: “o principal na pessoa é o
rosto” revela a importância da imagem para os padrões desejáveis pela
sociedade (Wolf, 1998).
Idéia central 6: problemas causados pelas próteses
Dizem que é horrível se acostumar com a prótese inferior, por
isso eu estou agüentando. Agora mesmo, mandei fazer esses
dentes, mas não estou me acertando com eles, ficou diferente,
ficou saliente, machuca. Fiquei meio queixuda, não é aquilo que
era. Para o ano, vou ter que fazer outra prótese nova. De vez
em quando, cai o pivô, aí eu corro lá no dentista e ele coloca de
novo. Incomoda um pouco, a superior não tanto, mas não
consigo dormir com a prótese inferior.
Conforme foi mencionado, a possibilidade de desajuste das próteses
removíveis, por conta da reabsorção óssea ou do desgaste dos dentes
artificiais, pode acarretar vários problemas. A adaptação da prótese inferior
é sempre mais crítica, pois o índice de reabsorção óssea na arcada inferior é
maior que na superior. A falta de acompanhamento e controle da
adaptação pode ocasionar o aparecimento de lesões na mucosa bucal e
problemas no sistema neuromuscular, aumentando a incidência de nãouso, especialmente as próteses removíveis inferiores (Brunetti &
Montenegro, 2002).
Idéia Central 7: compensação pelo uso de prótese
Não mudou porque tive que usar dentes postiços, artificiais. Eu
tive que colocar pivô. Nem sei se ainda usam. Eu estranhei de
fazer prótese, mas agora eu estou acostumada, agora é bom,
está como era antes, acostumei rápido, acho que é a mesma
coisa. Minha prótese é muito boa porque ela foi bem feita. O
dentista extraía os dentes e já colocava a prótese. Isso me
cansou, me judiou muito, mas agora eu nem sei se eu tenho
prótese. Estou muito bem, melhor do que os dentes que eu
tinha. Prá mim é dente natural, principalmente a superior, a
inferior não. Pelo menos, a gente não fica desdentado.
Para muitos idosos, a possibilidade de acesso ao uso de uma prótese parece
superar as dificuldades com as extrações dentárias e o comprometimento
224
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.217-26, jan/jun 2006
AUTOPERCEPÇÃO DA PERDA DE DENTES EM IDOSOS
das funções bucais. O uso de dentes artificiais ou de aparelho protético é
capaz de melhorar a auto-estima e as relações interpessoais, uma vez
atendidas as expectativas do indivíduo (Narvai & Antunes, 2003; Wolf,
1998).
Considerações finais
A utilização da metodologia qualitativa para a apreensão das percepções dos
idosos sobre os problemas bucais, visualizadas por meio do Discurso do
Sujeito Coletivo, permitiu conhecer aspectos relevantes que devem ser
considerados nos projetos e programas desenvolvidos para este grupo
populacional.
Percebe-se que o sujeito coletivo não parece ter conhecimento das causas
das doenças bucais e as formas de prevenir e controlar suas manifestações,
antes que seja necessário intervir mediante procedimentos cirúrgicos,
restauradores ou reabilitadores.
Ressalta-se a necessidade de conscientizar os idosos sobre a importância
de revisões periódicas para a avaliação das próteses em relação aos aspectos
de estabilidade e retenção e pela possibilidade de as próteses mal-adaptadas
gerarem danos em tecidos moles e duros da cavidade bucal.
Por outro lado, os portadores de próteses mal-adaptadas ou pessoas que
não tenham substituído artificialmente seus dentes perdidos podem estar
comprometendo sua saúde geral pela perda da eficiência mastigatória, além
de colocar em risco, também, a qualidade nutricional da dieta alimentar.
Igualmente, é preciso levar em consideração os fatores psicológicos que
envolvem os indivíduos que perderam seus dentes, dando atenção aos
danos psíquicos e sociais que envolvem esta situação e que nem sempre são
verbalizados claramente aos profissionais de saúde.
Torna-se imprescindível o desenvolvimento de iniciativas no campo da
educação e prevenção em saúde bucal, enfatizando comportamentos
voltados para auto-exame, controle de lesões cariosas e gengivoperiodontais e manutenção das próteses.
É de fundamental importância, ainda, evidenciar a dimensão social das
doenças e o papel do Estado como provedor da saúde, proporcionando
qualidade de vida a todos os cidadãos.
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Comunic., Saúde, Educ.
El objetivo de este trabajo fue analizar las opiniones de un grupo de ancianos sobre la
pérdida de dientes. Una investigación cualitativa fue realizada con la utilización del
discurso del sujeto colectivo como técnica metodológica para el ordenamiento de los
datos. El análisis de las entrevistas y la construcción del discurso del sujeto colectivo
revelaron informaciones sobre los pensamientos y los valores asociados a la pérdida de
dientes en este grupo. Los resultados principales sugieren que la falta de dientes trajo
problemas funcionales y psicológicos, pero que parecen ser compensados por la
resolución del problema estético. Las justificativas del sujeto colectivo para el
edentulismo reflejan predominantemente el modelo de atención a la salud, en que los
procedimientos quirúrgico-restauradores y rehabilitadores son privilegiados, en
detrimento de acciones preventivas y educativas. De esta forma, el desarrollo de
iniciativas en el campo de la educación y la prevención en salud bucal son esenciales,
acentuando las acciones dirigidas hacia la atención integral del anciano, destacando la
dimensión social de las enfermedades y el papel del Estado como proveedor de la salud
y de la calidad de la vida de todos los ciudadanos.
PALABRAS CLAVE: ancianos. salud bucal. autopercepción.
Recebido em: 13/09/05. Aprovado em: 10/02/06.
226
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.217-26, jan/jun 2006
O uso de leitor
es de tela no TTelEduc*
elEduc*
leitores
Roberto Sussumu Wataya 1
WATAYA, R. S. The use of screen readers with TelEduc. Interface - Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10, n.19,
p.227-42, jan/jun 2006.
It was investigated, in the Telematic Environment TelEduc , the accessibility of the Visually Impaired People
(VIP), using the softwares DosVox and Jaws. The theoretical foundations used can be found in studies related to
Distance Education. First the research explored how the SR software, the tools and the contents of the
Proinesp-II program’s course, contributed to the training of teachers at a distance in information technology in
Special Education. The second step included the analysis of the softwares and TelEduc’tools. Twenty sessions
with two VIP were realized, during which they interacted in the course. The data was colleted in two stages and
the analyses were recorded and transcribed in Tables. The analysis of the results showed, among other aspects,
that both softwares - DosVox and Jaws, with small differences, allow VIP access in TelEduc.
KEY WORDS: education distance. visually impaired persons. teaching.
Investigou-se, no Ambiente Telemático TelEduc, a acessibilidade de Pessoas com Necessidades Especiais Visuais
(PNEV’s), utilizando os softwares Leitores de Tela - LT DosVox e Jaws, tendo como ponto de partida uma
revisão de literatura relacionada ao uso de tecnologias de informação e comunicação (TIC) e à Educação a
Distância (EAD). Primeiramente investigou-se como os softwares LT, as ferramentas e os conteúdos do curso do
programa do Proinesp-II auxiliaram a capacitação à distância de professores no uso de informática na Educação
Especial. Em uma segunda etapa, analisou-se o uso dos referidos softwares LT e das ferramentas da plataforma
TelEduc com duas PNEV´s, em vinte sessões, gravadas e transcritas em forma de tabelas. Resultados indicam,
entre outros aspectos, que ambos os softwares LT – DosVox e Jaws –, com pequenas diferenças entre si,
permitem o acesso das PNEV’s no TelEduc.
PALAVRAS-CHAVE: educação a distância. portadores de deficiência visual. ensino.
*
Elaborado a partir de Wataya (2003).
Departamento de Computação, Tecnologia Educacional e Sistemas de Informação, Núcleo de Computação, Centro Universitário
Adventista de São Paulo, Campus-1 (UNASP C-1), SP. <[email protected]>
1
Rua Jan Andreas, 63
São Paulo, SP
Brasil - 05.855-260
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.227-42, jan/jun 2006
227
WATAYA, R. S.
Introdução
O presente trabalho baseou-se na constatação de que Pessoas com
Necessidades Especiais Visuais (PNEV’s) não são aceitas como alunos nos
mais diversos cursos, o que caracteriza uma realidade muito dura. Isto pode
ser explicado pelo fato de que as salas de aula são inadequadas, os
professores despreparados, os recursos e os materiais didáticos específicos
para esses casos insuficientes e, sobretudo, as estruturas físicas e
pedagógicas da escola deixam muito a desejar. Diante dessa realidade,
buscou-se ampliar conhecimentos sobre a Educação Especial e, em
específico, a Educação das PNEV’s (Nabais et al., 1996).
Pode-se afirmar que é de fundamental importância pleitear a melhoria
do ensino para poder receber essa população com necessidades especiais;
disponibilizar a ela o uso dos recursos tecnológicos específicos e
proporcionar sua inclusão no ambiente educacional, para que, por
intermédio dessas oportunidades, possa ser eliminado o rótulo imposto,
ainda usado pela sociedade que, com freqüência, as classifica como
incapazes (Carvalho, 2001; Almeida, 1996).
Este trabalho também se baseou na constatação de que as PNEV’s
desconhecem os recursos básicos do computador e não estão inseridas no
mercado de trabalho. A pesquisa aborda as contribuições que advêm da área
da informática, focalizando as necessidades das pessoas cegas, procurando
constatar, evidenciar e possibilitar um tipo de formação educacional para
que este segmento da população não fique à margem da sociedade.
A abordagem do estudo valeu-se das propostas, voltadas para as PNEV’s,
de facilitar sua inclusão social e analisar como o domínio dos recursos do
computador pode representar uma excelente oportunidade para esse
intento. O estudo teve por objetivo analisar e discutir os softwares Leitores
de Tela - LT Jaws e Dosvox, considerando a sua possível contribuição para o
atendimento das necessidades educacionais dessas pessoas, favorecendo a
criação de ambientes acessíveis de aprendizagem a distância mais adaptados
as suas características especiais de leitura, compreensão e aprendizagem.
A Educação de Pessoas com Necessidades Especiais Visuais
(PNEV’s): foco na tecnologia
As Pessoas com Necessidades Especiais Visuais (PNEV’s) são pessoas que
necessitam de algum tipo de apoio ou suporte, sejam pessoas cegas ou com
visão subnormal; contudo, independente do termo usado, são indivíduos
que não podem ser excluídos da sociedade, pois todos devem ter
oportunidades iguais de usufruir seus direitos de cidadãos. A Constituição
Federal de 1988, no artigo 208, inciso III, garante, por meio do Poder
Público Federal, “o atendimento educacional especializado aos portadores
de deficiência, preferencialmente, na rede regular de ensino” (Brasil,
1988, p.138).
O Ministério da Educação tem como competência proporcionar condições
e prover materiais para a promoção de políticas públicas educacionais, como
a inclusão escolar. Os recursos didáticos são os meios empregados nos
diferentes níveis, em distintas disciplinas, áreas de estudo ou em outras
atividades, não importando as técnicas ou procedimentos aplicados. Tais
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006
O USO DE LEITORES DE TELA NO TELEDUC
recursos são utilizados com o objetivo de auxiliar, com maior eficácia, a
aprendizagem, transformando-se em uma ferramenta destinada a facilitar
e incentivar o processo ensino-aprendizagem.
Cerqueira & Ferreira (1996) afirmam que, para a educação especial de
deficientes visuais alcançar seus objetivos, há três possibilidades:
Seleção – os alunos cegos podem se utilizar recursos usados pelos
alunos de visão subnormal, como: figuras geométricas e alguns jogos.
Adaptação – há materiais que, com algumas mudanças tornam-se
instrumentos eficientes na educação dos cegos.
Fabricação – adoção de materiais “recicláveis” para confeccionar
objetos para a prática educacional, como, por exemplo: palitos de fósforo,
barbantes, cartolinas, botões, etc. Assim, o vestir, os hábitos higiênicos e o
comer devem ser tarefas de fácil execução pelas PNEV’s, não precisando de
auxílio para realizá-las. A alfabetização deve começar com um período
preparatório bem delineado, visto que seu sucesso dependerá de sua
qualidade. Nesse contexto social, reconhecemos um crescente aumento de
novas Tecnologias de Informação e Comunicação – TIC, e da redes de
computadores internet no meio educacional.
Internet
A internet é uma grande rede de computadores interligados e espalhados
ao redor do mundo, não importando o tipo de máquina nem o sistema
operacional utilizado. Tecnicamente, é uma associação de redes que trocam
informações, seguindo um padrão, como uma teia de redes virtuais
diferentes e intercomunicáveis. Assim, o usuário tem a possibilidade de
entrar em um mundo virtual onde as pessoas de distintos países e culturas
comunicam-se, cooperando e participando de discussões e diálogos.
A internet oferece uma grande oportunidade para uma maior inclusão
social de qualquer pessoa que possua ou não dificuldades, desde que
assegure a ela o acesso e a acessibilidade, independente de suas
necessidades. No caso das PNEV’s, é preciso que, além dos equipamento
básicos, o computador utilizado esteja equipado com os softwares Leitores
de Tela - LT e hardwares compatíveis.
2
Avaliação automática
de sites. Disponível em:
<http://www.cast.org/
bobby/>.
Acessibilidade
O governo brasileiro, pela Lei Federal de Acessibilidade, Lei nº 10.098 de
19/12/2000, trata da igualdade de oportunidade das Pessoas com
Necessidades Especiais (PNE) e Idosos, além de delegar aos Estados a
promoção de acesso universal à informação e os serviços para os cidadãos,
por meio de recursos específicos.
A acessibilidade do software é caracterizada pela existência de vários
programas e recursos que se destinam a aumentar a acessibilidade das
PNE’s: como “lupas”, os aplicativos que aumentam o tamanho do que é
mostrado na tela; simuladores de teclado; “mouse”; sistemas de
reconhecimento de comando de voz; leitores de tela, entre outros.
Existem determinadas instituições, como o Bobby2, que, com o apoio de
algumas grandes empresas como a Microsft, a IBM, garantem a
acessibilidade das PNE’s às páginas da internet, baseadas em princípios e
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006
229
WATAYA, R. S.
conceitos definidos pelas World Wide Web Consortium–Web Accessibility
Initiative - W3C-WAI,3 porém a existência dessas ferramentas não garante a
acessibilidade das PNEV’s.
3
Recomendações para
acessibilidade em
páginas web.
Disponível em:
http://www.w3c.org/TR/
WAI-WEBCONTENT>.
Softwares
A maior parte das PNEV’s que utiliza computadores não conhece os vários
recursos disponíveis do equipamento. Assim, os grandes atrativos para elas
são: obter informações sobre novos softwares, equipamentos informáticos,
“links” para páginas de interesse, grupos de discussão, “Chat. Os
deficientes visuais utilizam o mesmo tipo de computador usados por
pessoas que não possuem dificuldades visuais, com teclado e outros
periféricos. A única diferença está na ausência do “mouse”, pois todas as
operações são feitas no teclado, motivo pelo qual se faz necessário que
dominem cada um de seus caracteres, bem como a localização de cada tecla
alfanumérica, e a localização de símbolos e funções, com suas respectivas
finalidades. Para facilitar o posicionamento no teclado, as PNEV’s contam
com a presença de uma saliência nas teclas F, J e no número 5 (à direita do
teclado).
DosVox
Trata-se de um programa desenvolvido na Universidade Federal do Rio de
Janeiro para leitura e edição de textos destinados aos cegos. Além da
operação das funções básicas do computador, inclui: correio eletrônico,
Protocol Transfer File – FTP e Telnet falados, e programa para bate-papo. A
principal finalidade desse sistema é auxiliar a execução de tarefas no editor
de texto, com a opção de imprimir no modo normal ou em braile; fazer a
leitura/audição de textos previamente transcritos, empregando
ferramentas de produtividade falados (calculadora, agenda etc.), além de
“rodar”4 diversos jogos.
Jaws
Os Jaws for Windows são produtos da Freedom Scientific, considerados os
melhores LT do mundo, e usados por mais de cincoenta mil pessoas em
vários países. Esse software destina-se a trabalhar em ambiente Windows,
inclusive nas atuais versões desse ambiente operativo: Windows 95, 98,
Me, NT e 2000. Após a instalação, também é falado e possibilita o uso de
maior parte das aplicações concebidas para o ambiente Windows. Apresenta
como limitação o fato de que o usuário pode se deparar com uma imagem
ou figura contendo um “link”, elo de ligação ativo, e não haver um texto
para informar a ele para onde esse link o remeterá a seguir.
A Educação a Distância (EAD)
Carvalho (2001, p.18) define a Educação a Distância como sendo
uma forma de oferecimento de ensino, com ênfase no aluno,
onde o mesmo tem acesso a tal fonte de ensino (que pode ser
um docente ou uma instituição), através da mídia tecnológica
que, dependendo da sua sofisticação, pode fornecer-lhe uma
230
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006
4
“Rodar”, nesse caso,
tem o significado de
“funcionar”.
O USO DE LEITORES DE TELA NO TELEDUC
independência desde espaço e até de tempo, assim como uma
maior ou menor interação com a fonte.
Nessa modalidade de ensino-aprendizagem a interação entre professores e
alunos, cujas ações estão separadas no espaço e/ou no tempo, pode estar
presente. EAD é conhecida popularmente como “escola virtual”, onde as
salas de aulas físicas e outras dependências têm os correspondentes
virtuais de uma escola convencional.
Santos, 2001 (apud Tavares-Silva, 2003) afirma que a EAD compreende
três gerações: Ensino por correspondência (primeira metade do século
XX); Teleducação/Telecursos (surge no Brasil em 1970, com base na
transmissão de aulas pré-gravadas por emissoras educativas); e Ambientes
interativos (uso de redes, como internet e videoconferência).
Na EAD a diversidade de termos procura indicar as diferentes formas de
interação das propostas de aprendizagens nos ambientes telemáticos,
como: a) Broadcast, b) Virtualização da Escola e c) O Estar Junto Virtual
(Valente, 1999, 2001; Xavier, 2000; Prado, 1999).
a) Broadcast: a plataforma disponibiliza a informação para o aprendiz
via internet e não existe interação entre ele e o professor. A ação é
organizada de acordo com uma seqüência pedagógica particular e é
apresentada ao participante segundo essa seqüência.
b) Virtualização da Sala de Aula: nesta abordagem, a interação
professor-aluno limita-se a perguntas e respostas em forma de exercícios.
Para Valente (2001), esse tipo de EAD é insuficiente para entender se o
aprendiz foi capaz de atribuir significado à informação disponível.
c) O Estar Junto Virtual: explora a potencialidade de interação das
tecnologias, possibilitando a construção do conhecimento pelo aluno e a
sua relação com o professor.
Na análise da EAD é preciso considerar com cuidado as tecnologias de
suporte e sua operacionalização. No caso das PNEV’s, os detalhes indicarão
a classificação do grau de compatibilidade com os softwares LT e SV, que
apresentarão uma série de características fundamentais, relevantes para o
aluno com necessidades visuais e para a instituição que se utiliza da EAD.
Há duas modalidades de interação para mensurar o grau de
acessibilidade permitida pelas ferramentas: síncronas e assíncronas.
Síncronas: possibilitam que os usuários se comuniquem em tempo
real, por exemplo, o “chat”, ou sessão de bate-papo da internet. Outra
ferramenta é a videoconferência, que permite ao usuário ver e participar,
em tempo real, de um evento em um local qualquer do planeta.
Assíncronas: permitem que os usuários se comuniquem de acordo
com sua disponibilidade de tempo, não sendo necessário que todos estejam
conectados no mesmo tempo. Um exemplo desta modalidade é o correio
eletrônico, que possibilita receber mensagens mesmo que não se esteja
conectado à internet. Isto é possível porque essas mensagens ficam
armazenadas na “caixa do correio”, por meio da “mailbox” do destinatário,
que as verá quando “abrir sua correspondência”; outros exemplos são as
listas de discussão e os grupos de discussão.
A expansão da internet provocou uma explosão de cursos a distância on-
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006
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WATAYA, R. S.
line, portais educacionais e universidades virtuais. Por isso, as formas de
comunicações entre alunos e professores transformam-se em um grande
desafio para a educação, sobretudo, quando se focaliza, nos sistemas de
EAD, o acesso das PNEV’s.
Plataforma de desenvolvimento de Educação a Distância TelEduc5
Trata-se de um sistema que permite a criação de ambientes para apoio à
elaboração, apresentação e manutenção de curso à distância baseado na
internet (Teleduc, 2002). Cada um desses ambientes é composto por
ferramentas diversas de comunicação, como: agenda, atividades, material
de apoio, parada obrigatória, mural, fórum de discussão, bate-papo, correio,
perfil, diário de bordo e portfólio. O TelEduc é de fácil manuseio e não
requer conhecimento de qualquer linguagem de programação. O professor
e o aluno só precisam ter conhecimento de processador de texto e
navegação na Web, após o acesso mediante um login (nome do usuário) e
senha.
O sistema oferece ao professor um conjunto integrado de ferramentas
para criação e realização de cursos, sendo considerado de fácil manipulação,
e baseado em alta tecnologia disponível atualmente na internet.
O TelEduc, como sistema para educação a distância na Web, é analisado,
no presente trabalho, sob o viés de acessibilidade das PNEV’s, feita pelos
softwares LT – DosVox e Jaws, esperando que forneçam os subsídios
adequados para os trabalhos dos profissionais que pesquisam e atuam
nessa área.
Figura 1. Home Page do TelEduc
O Projeto de Informática na Educação Especial – Proinesp
Trata-se de iniciativa da Secretaria da Educação do estado de São Paulo
(SEESP), com objetivo de expandir o acesso à informática ao maior número
possível de alunos com necessidades especiais. São destinados recursos para
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006
5
O TelEduc foi
desenvolvido pelo
Instituto de
Computação e pelo
Núcleo de Informática
Aplicada à Educação
(Nied), ambos da
Universidade Estadual
de Campinas
(Unicamp), sob a
coordenação da Profa.
Dra. Heloisa Vieira da
Rocha. Disponível em:
<http://www.
teleduc.nied.unicamp.br/
teleduc>.
O USO DE LEITORES DE TELA NO TELEDUC
implantação de laboratórios de informática em escolas de Educação Especial
não-governamentais e sem fins lucrativos, como APAE e Sociedade
Pestalozzi. Além da compra de equipamentos de informática para a
implantação dos laboratórios, o projeto financia a capacitação de
professores das escolas participantes. Quatro professores são indicados pela
diretoria de cada escola envolvida no Proinesp.
O programa de capacitação é constituído de duas etapas: a) curso
presencial de introdução à informática, com carga horária de noventa
horas; b) curso via internet de Informática Aplicada à Educação Especial,
com duração de 120 horas. O objetivo da primeira etapa é nivelar o
conhecimento dos professores sobre informática de modo geral. Mas no
ensino via internet, o objetivo é orientar os professores quanto ao uso
pedagógico da informática.
O curso a distância é uma experiência de aprendizado e permite a
imediata aplicação da nova metodologia com os alunos. Os professores
capacitados comprometem-se a repassar aos colegas os conteúdos
apreendidos durante a capacitação.A SEESP organiza, anualmente, o
Seminário sobre Informática na Educação Especial, com o objetivo de
promover a troca de experiência entre os professores envolvidos no Projeto.
Desenvolvimento do trabalho: criação de um curso no TelEduc
O objetivo do trabalho foi analisar os softwares LT - DosVox e Jaws,
mediante a participação das PNEV’s no ambiente virtual da plataforma
TelEduc, na exploração e uso de suas ferramentas de informação,
comunicação e interação.
A pesquisa caracterizou-se como um estudo de caso envolvendo a
participação de duas pessoas cegas em um curso no ambiente TelEduc,
desenvolvido de outubro de 2001 a julho de 2002 no Laboratório de
Computação do curso de Ciências da Computação do Centro Universitário
Adventista de São Paulo, campus 1 – UNASP C1.
A página de entrada do curso contém um menu lateral, à esquerda, com
as ferramentas usadas durante o curso; à direita desse menu, visualizava-se
o conteúdo da ferramenta “Agenda”, contendo informações atualizadas,
dicas ou sugestões dos professores aos alunos. Esta página funciona como
um canal de comunicação disponibilizada no início de uma aula.
O conteúdo da Agenda deve ser atualizado semanalmente, para
caracterizar o dinamismo do estar junto virtual.
Os dois participantes do curso receberam suas senhas por e-mail. O
“login” sugerido foi aquele com o qual os alunos já estavam acostumados,
como os da rede ou seu primeiro nome. O acesso ao curso foi, assim
liberado para os alunos. Ressalta-se que o sistema gera, automaticamente,
uma senha aos alunos, com características especiais, em que minúsculas e
maiúsculas devem ser respeitadas rigorosamente. Sugeriu-se aos alunos
que fizessem a cópia dessa senha, para, em seguida, “colar” quando
acessassem o curso pela primeira vez. Mas, no primeiro acesso, deveriam
alterar a senha para algo mais familiar (entrando no menu Configurar, à
esquerda).
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006
233
WATAYA, R. S.
Coleta de Dados
A coleta de dados ocorreu em três momentos:
Primeiro momento – foram levantadas as informações socioculturais
dos dois alunos, no que se refere a sexo, idade, série escolar, além da
capacidade de uso do teclado e dos softwares LT .
Segundo momento – apresentação do ambiente telemático TelEduc, em
duas etapas. Na primeira, foi feita uma exposição oral, destinada a transmitir
um conceito mais amplo sobre esse ambiente; na segunda etapa, A e B
(denominações dos sujeitos do estudo) participaram do curso Informática
para PNEV´s, criado nesse ambiente, com os softwares DosVox e Jaws, para
analisarem o grau de acessibilidade desses programas.
Terceiro nomento – A e B participaram do curso usando os softwares LT
DosVox e Jaws, no ambiente TelEduc.
Para orientar a análise de acessibilidade dos softwares LT, no ambiente
Teleduc, foram criadas as seguintes tabelas.
Tabela 1. Pontuação e resultados
Pontuação
0 - 50 pontos
51 - 85 pontos
86 - 100 pontos
Resultado
Não acessível - Não recomendável
Não acessível - Nova análise
Acessível - Recomendável
Tabela 2. Ferramentas e o LT DosVox.
DosVox
FERRAMENTA
Agenda
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Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006
Acesso positivo
Acesso negativo
1.
1.
1.
2.
1.
1.
2.
1.
1.
1.
1.
1.
2.
1.
1.
2.
1.
1.
1.
O USO DE LEITORES DE TELA NO TELEDUC
Tabela 3. Ferramentas e o LT Jaws.
Jaws
FERRAMENTA
Acesso positivo
Agenda
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1.
1.
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1.
1.
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1.
1.
1.
Acesso negativo
1.
1.
2.
1.
1.
2.
1.
1.
1.
No que se refere ao caminho percorrido pelos dois participantes do estudo
no curso de Informática para PNEV’s, os dados foram coletados em duas
etapas, realizadas na plataforma TelEduc. A primeira etapa da coleta foi
entre 25 e 26 de junho e a segunda, entre 2 e 3 de julho de 2003. A
seguir, apresenta-se uma síntese dessas etapas.
Primeira etapa. Sistematização
Sujeitos: Participantes A e B
Leitor de Tela (LT): DosVox versão: 3.14
Local da coleta: laboratório de microinformática do UNASP C1, no
período vespertino (as aulas para coleta de dados tinham a duração de duas
horas).
Data de coleta
coleta:
. Participante A: 25 de junho de 2003 (uma hora para interação e
uma hora para a entrevista com o preenchimento da ficha de critérios).
. Participante B: 26 de junho de 2003 (uma hora para interação e
uma hora para a entrevista com o preenchimento da ficha de critérios).
Instrumento de coleta: observação e anotação da interação com os
participantes A e B, no curso proposto; entrevistas com os participantes,
com audiocassete para gravar as respostas.
Procedimentos de coleta: observação nas interações e anotações nas
fichas; nas entrevistas, foi proposto seguir as questões da ficha de critérios.
Esses dados foram comparados com as anotações feitas durante as
observações.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006
235
WATAYA, R. S.
Quadro I. Ferramenta e DosVox
Sujeito A
DosVox
FERRAMENTA
Atividade do Sujeito
Acesso positivo
Agenda
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Bate-Papo
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2. Positivo
1. Positivo
1. Positivo
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2. 10
1. 10
1. 10
1. 05
Subtotal
90
Fóruns de Discussão
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Portfólio
5.
6.
3.
3.
3.
Leu o recado?
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Quadro II. Ferramenta e DosVox
FERRAMENTA
Atividade do Sujeito
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casos, necessitando copiar o
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1. Dificuldades em alguns
casos, necessitando copiar o
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Sujeito B
DosVox
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Pontos
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1. Positivo
1. Regular
1. 10
1. 05
Subtotal
90
236
Acesso negativo
Pontos
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006
Acesso negativo
1. Se não for extensão .txt,
não abre.
1. Dificuldades em alguns
casos, necessitando copiar o
link.
1. Dificuldades em alguns
casos, necessitando copiar o
link, para enviar os arquivos
O USO DE LEITORES DE TELA NO TELEDUC
Segunda etapa.
Sistematização
Sujeitos: Participantes A e B
Leitor de Tela (LT): Jaws versão: 4.05
Local da coleta: laboratório de microinformática do UNASP C1, no
período vespertino (as aulas para coleta de dados tinham a duração de duas
horas).
Data de coleta
coleta:
. Participante A: 02 de julho de 2003 (uma hora para interação e uma
hora para a entrevista com o preenchimento da ficha de critérios).
. Participante B: 03 de julho de 2003 (uma hora para interação e uma
hora para a entrevista com o preenchimento da ficha de critérios).
Instrumento de coleta: observação e anotação da interação com os
participantes A e B, no curso proposto; entrevistas com os participantes,
com audiocassete para gravar as respostas.
Procedimentos de coleta: observação nas interações e anotações nas
fichas; nas entrevistas, foi proposto seguir as questões da ficha de critérios.
Esses dados foram comparados com as anotações feitas durante as
observações.
Quadro III. Ferramenta e Jaws
Sujeito A
Jaws
FERRAMENTA
Atividade do Sujeito
Acesso positivo
Pontos
Agenda
Leituras
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1. Positivo
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1. 10
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2. Positivo
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2. 10
Bate-Papo
1. Pode interagir?
1. Regular
1. 05
Correio
Fóruns de Discussão
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2. Respondeu?
1. Acompanhou a evolução do tema?
1. Positivo
2. Positivo
1. Positivo
1. 10
2. 10
1. 10
Perfil
Portfólio
1. Fez o cadastro?
1. Fez upload em arquivo?
1. Positivo
1. Positivo
Subtotal
1. 10
1. 10
90
Acesso negativo
1. O número excessivo de
textos provoca uma leitura
desordenada, dificultando,
assim, a identificação dos
mesmos, e das respostas.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006
237
WATAYA, R. S.
Quadro IV. Ferramenta e Jaws
FERRAMENTA
Atividade do Sujeito
Sujeito A
Jaws
Acesso positivo
Acesso negativo
Pontos
Agenda
Leituras
1. Leu as atividades do dia?
1. Abriu o arquivo/Fez o download?
1. Positivo
1. Positivo
1. 10
1. 10
Mural
1.Acessou o link?
2. Deixou recado?
1. Positivo
2. Positivo
1. 10
2. 10
Bate-Papo
1. Pode interagir?
1. Regular
1. 05
Correio
Fóruns de Discussão
1. Leu o recado?
2. Respondeu?
1. Acompanhou a evolução do tema?
1. Positivo
2. Positivo
1. Positivo
Perfil
Portfólio
1. Fez o cadastro?
1. Fez upload em arquivo?
1. Positivo
1. Positivo
Subtotal
1. 10
2. 10
1. 10
1. 10
1. 10
1. O número excessivo de
textos provoca uma leitura
desordenada, dificultando,
assim, a identificação dos
mesmos, e das respostas.
95
O curso oferecido à distância, via plataforma TelEduc do Proinesp-II, é
denominado Curso de Capacitação de Professores à Distância em
Informática na Educação Especial. Sua análise é feita por meio dos
softwares LT – DosVox e Jaws, apoiados nas ferramentas: Leituras, Parada
Obrigatória, Mural, Bate-Papo, Correio, Fórum de Discussão, Perfil, Diário
de Bordo e Portfólio, além do uso de multimídia, que foi analisada sob o
viés de acessibilidade das PNEV’s.
Proinesp-II, DosVox e Jaws
A exploração deste curso com os softwares LT – DosVox e Jaws, apoiou-se
nas ferramentas: Leituras, Parada Obrigatória, Mural, Bate-Papo, Correio,
Fórum de Discussão, Perfil, Diário de Bordo e Portfólio.
Os conteúdos das ferramentas sob o crivo dos LT – DosVox e Jaws são:
a) Agenda
O início do curso é feito com a programação do dia ou da semana, cuja
principal função é organizar e situar o aluno em seu decorrer, indicandolhe o que é esperado de seu desempenho.
Nesta ferramenta, a leitura foi bastante trabalhada, os arquivos
convertidos em extensão .txt, e o desempenho das pessoas foi considerado
bom. Para o Jaws, a ferramenta não apresentou problemas quanto ao
comportamento; para o LT – Jaws, o desempenho foi excelente.
b) Leitura
Para explorar esta ferramenta, foram disponibilizados 11 materiais em
forma de textos, artigos e alguns sites, para oferecer referências teóricas ao
238
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006
O USO DE LEITORES DE TELA NO TELEDUC
trabalho proposto. Na leitura relacionada a esta ferramenta, as pessoas
encontraram dificuldades de entendimento com o LT, pela quantidade de
textos apresentada e pelos termos difíceis que acabaram prejudicando o
entendimento.
c) Parada Obrigatória
Esta ferramenta tem como objetivo administrar as dúvidas mais
freqüentes, permitindo que os professores ofereçam sugestões e caminhos
às soluções. Assim, o LT apresentou mais facilidade na leitura, pois o
objetivo era administrar as dúvidas mais freqüentes explicadas pelos
professores aos alunos por meio de textos simples.
d) Mural
Esta ferramenta é formada de um espaço aberto aos participantes,
contendo materiais como: recados, sites interessantes, nomes de livros,
notícias e outros.
Embora tenha havido um grande número de recados, sites interessantes,
nomes de livros, o LT não encontrou dificuldades para leitura.
e) Bate-Papo
É muito usado para provocar aproximações e interações entre os
participantes. Pelas mensagens e atividades diferentes, a ferramenta
proporciona leitura satisfatória. Os alunos com visão normal precisam ter
paciência com os colegas PNEV’s, uma vez que, nessa modalidade, os
usuários se comunicam em tempo real e as pessoas cegas dependem dos
softwares leitores de telas para lerem as mensagens recebidas, para então
elaborar suas respostas, o que torna o processo muito moroso.
f) Correio
Em razão da familiaridade com os e-mails convencionais, trata-se de uma
ferramenta bastante utilizada pelos participantes para se corresponderem
com os professores. O LT não teve problema ao ler as várias mensagens que
continha.
g) Fórum de Discussão
Representa um espaço virtual para interações; tirar dúvidas e auxiliar na
implantação de atividades com uso das TIC’s integradas às atividades
curriculares. É uma ferramenta com grande quantidade de mensagens, que
levam mais tempo para serem lidas; a leitura fica lenta e cansativa, o que
talvez possa desestimular as PNEV’s.
h) Perfil
Permite aos participantes anunciarem suas características pessoais e
profissionais; seu preenchimento é uma das tarefas iniciais. A leitura
mostra-se mais agradável e de fácil entendimento ao LT.
i) Diário de Bordo
Esta ferramenta tem acesso limitado aos autores dos relatos e aos
formadores; é usada pelos professores para suas observações pessoais e
reflexões. Pode, também, ser usada pelos estudantes ao longo das
atividades.
j) Portfólio
Nesta ferramenta, ficam alojadas as atividades dos professores, com a
finalidade de compartilhar e receber as sugestões dos participantes. O
desempenho do LT é considerado satisfatório, pois permite o entendimento
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006
239
WATAYA, R. S.
das atividades dos professores e facilita compartilhar e receber sugestões
dos participantes.
Discussão dos resultados e conclusão
O Quadro V mostra os resultados alcançados pelos LT - DosVox e Jaws. As
variações no desempenho foram nas ferramentas Mural e Portfólio, no
DosVox,, e Bate-Papo, no Jaws. Nessas ferramentas, os respectivos Leitores
de Telas alcançaram acesso regular, totalizando, respectivamente, 90 e 95
pontos.
Quadro V. Resultados alcançados: DosVox X Jaws
Leitor de Tela
Resultados Alcançados
DosVox
Jaws
Participante A
90
95
Participante B
90
95
Ao analisar o sistema TelEduc, confirma-se que ele oferece ao professor
um conjunto integrado de ferramentas para criação e oferta de cursos,
sendo de fácil manejo, por estar baseado em alta tecnologia disponível na
internet. O ambiente também proporciona um bom suporte de apoio para
a criação e realização de cursos, oferecendo diversas ferramentas de
informação, comunicação e interatividade para tal objetivo.
O conjunto de resultados que os softwares LT oferecem é amplo e
permite algumas considerações de interesse acadêmico e prático.
Ao longo do processo investigado, tanto o participante A como o B
apresentaram os mesmos desempenhos em relação aos softwares LT –
DosVox e Jaws, no que se refere à exploração do curso para as PNEV’s na
Plataforma TelEdu, com pequenas diferenças.Pode-se sugerir, portanto,
que ambos os softwares LT disponíveis no mercado brasileiro permitem a
acessibilidade das PNEV’s nos cursos EAD na Plataforma TelEduc.
Para a análise do curso de modalidade de Educação à Distância na
Plataforma TelEduc, utilizando os softwares LT – DosVox e Jaws, foi
possível o acesso a quase todas as informações disponibilizadas nas
ferramentas da plataforma. O mesmo comportamento foi verificado pelos
dois softwares LT, quando submetidos à exploração do curso da Proinesp-II
Pode-se afirmar que ambos os softwares LT – DosVox e Jaws
apresentaram os mesmos níveis de acessibilidade no curso oferecido na
Plataforma TelEduc, mas a qualidade de contribuição de cada um depende
do usuário, no manuseio e decodificação do que é lido em voz alta para eles
nas telas visitadas com o apoio dos LT´s. Recomenda-se seu uso em cursos
a distância desenvolvidos e ofertados em plataformas virtuais para PNEV´s,
porque favorecem aos cursistas o entendimento do que se lê e a execução
das atividades solicitadas.
240
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006
O USO DE LEITORES DE TELA NO TELEDUC
Referências
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professores. 1996. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo.
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portadores de necessidades especiais terão acesso a sites púlicos. 2002. Disponível em: <http://
www.governoeletronico.gov.br>. Acesso em: 16 fev. 2003.
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Educação a Distância no Ensino Superior. 2001. Tese (Doutorado) – Faculdade de Engenharia
Elétrica e de Computação, Universidade Estadual de Campinas , Campinas.
CERQUEIRA, J. B.; FERREIRA, E. M. B. Recursos didáticos na Educação Especial. Benjamin
Constant, n.5, 1996. Disponível em: <http://64.233.161.104/
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O encaminhamento do deficiente visual ao mercado de trabalho. Benjamin Constant, n.4, p.6-22,
1996.
PRADO, M. E. B. B. O uso do computador na formação do professor: um enfoque reflexivo da
prática pedagógica.Brasília: Secretaria da Educação a Distância, 1999. (Coleção Informática para a
mudança na Educação).
TAVARES-SILVA, T. Mediação pedagógica nos ambientes telemáticos como recurso de
expressão das interações interpessoais e da construção do conhecimento. 2003.
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VALENTE, J. A. Criando ambientes de aprendizagem via rede telemática: experiências na
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www.uvb.br/br/atualidades/artigos/jose_valente/valente_introducao.htm>. Acesso em: 16 fev. 2003.
VALENTE, J. A. Formação de professores: diferentes abordagens pedagógicas. In: _______ (Org.)
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WATAYA, R. S. O uso de leitores de tela no TelEduc: um estudo de caso. 2003. Dissertação
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XAVIER, R.T.O. O construcionismo e o desenvolvimento da cooperação, da autonomia e da
auto-estima. 2000. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006
241
WATAYA, R. S.
WATAYA, R. S. El uso de lectores de pantalla en el TelEduc. Interface - Comunic.,
Educ., v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006.
Saúde, Educ.
El trabajo tuvo por objetivo estudiar la accesibilidad en el ambiente telemático TelEduc
de Personas con Necesidades Especiales Visuales - PNEVS, utilizando los softwares
Lectores de Pantalla - LT: DosVox y Jaws y los fundamentos teóricos encontrados en la
literatura relacionada a la Educación a Distancia en los abordajes: Broadcast,
Virtualización del Aula Tradicional y el Estar Junto Virtual, que abarcan el
Construccionismo contextualizado. En primera instancia el estudio busco explorar cómo
los softwares LT, las herramientas y los contenidos del curso del programa Proinesp-II
auxiliaron la capacitación a distancia de profesores, en el uso de informática en la
Educación Especial. En un segundo estudio el objetivo fue analizar los softwares LT, las
herramientas y los contenidos del curso. Se realizaron veinte sesiones con dos PNEVS,
durante las cuales ellas interactuaron en el curso. La colecta de datos ocurrió en dos
etapas, los análisis fueron grabados y transcritos en forma de tablas. El análisis de los
resultados de los dos estudios indicó entre otros aspectos, que ambos softwares LT’s,
DosVox y Jaws con sus pequeñas diferencias permiten el acceso de las PNEVS al TelEduc.
PALABRAS CLAVE: educación distancia. personas con daño visual. enseñanza.
Recebido em: 15/09/04. Aprovado em: 11/02/06.
242
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.227-42, jan/jun 2006
Avaliação do conhecimento em práticas de
higiene: uma abordagem qualitativa
Paula Tavolaro 1
Carlos Augusto Fernandes Oliveira 2
Fernando Lefèvre 3
TAVOLARO, P. ET AL. Evaluation of the knowledge in hygiene practices: a qualitative approach. Interface Educ., v.10, n.19, p.243-54, jan/jun 2006.
Comunic., Saúde, Educ.
It was investigated the knowledge of goat milkers on milking hygiene, before and after a Good Production
Practices (GPP) training course, through a qualitative approach. In order to achieve this objective, milkers from
three goat dairy farms in the state of São Paulo, Brazil, were interviewed, using a semi-structured
questionnaire. The responses to the questions were recorded, transcribed and analyzed using the Discourse of
the Collective Subject methodology. Milkers were then trained through a one-hour lecture following a contentbased exposition and dialogue approach on “GPP principles” and “recommended hygienic procedures for
milking”. Two months after training, the milkers were interviewed again using the same questionnaire as
before. No difference was found between discourses obtained before and after training. Individual analysis of
the discourses showed that milkers had previous experience milking of animals, liked their jobs and were willing
to learn more about it. However, they had no clear suggestions on how to improve their work routine.
KEY WORDS: discourse of the collective subject. food handlers. milkers. inservice training. occupational health.
Investigou-se o conhecimento de ordenhadores de cabra sobre higiene nas operações de ordenha, antes e após
uma capacitação em Boas Práticas de Fabricação (BPF), por meio de uma abordagem qualitativa. Para isto,
foram realizadas entrevistas com ordenhadores de três propriedades rurais do Estado de São Paulo, baseadas
em um formulário semi-estruturado, cujas respostas foram gravadas, transcritas e analisadas de acordo com a
metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo. Após a entrevista inicial dos ordenhadores, em cada propriedade,
realizou-se a capacitação em BPF por intermédio de aula expositiva dialogada, de uma hora de duração, sobre
os temas “princípios gerais de BPF” e “cuidados higiênicos recomendados para ordenha”. Após dois meses da
capacitação, realizou-se nova entrevista com os ordenhadores. Não foram identificadas diferenças nos discursos
obtidos antes e após a capacitação. A análise individual dos discursos mostrou que os ordenhadores
apresentavam prévia experiência em ordenha de animais, gostavam do que faziam no trabalho e desejavam
aprender mais sobre o ofício, mas não tinham sugestões claras em relação à melhoria do seu fluxo de trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: discurso do sujeito coletivo. manipuladores. ordenhadores. capacitação em serviço. saúde
ocupacional.
Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia Experimental e Aplicada às Zoonoses, Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia,
Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. <[email protected]>
1
2
Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos, Universidade de São Paulo, Pirassununga, SP. <[email protected]>
3
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. <[email protected]>
2
Departamento de Engenharia de Alimentos, Faculdade
de Zootecnia e Engenharia de Alimentos, USP
Av. Duque de Caxias Norte, 225
Pirassununga, SP
Brasil - 13.635-900
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.243-54, jan/jun 2006
243
TAVOLARO, P. ET AL.
Introdução
A capacitação de funcionários para a manipulação de alimentos é fundamental
para o controle de microrganismos indesejáveis nas matérias-primas utilizadas
na dieta humana. Isto é particularmente importante no que concerne ao leite,
sobretudo o leite de cabra, uma vez que, durante a ordenha, este produto está
sujeito a contaminações das mais variadas origens. O leite de cabra é um
produto geralmente indicado para grupos populacionais específicos, como
crianças, idosos e adultos debilitados, e a produção deste leite ocorre,
principalmente, em países em desenvolvimento, sob condições rudimentares
(Camacho & Sierra, 1988), por pequenos produtores, os quais, normalmente,
não são assistidos por programas de extensão que envolvam higiene e
melhoria das condições de produção. Estes fatores contribuem para diminuir a
qualidade microbiológica do leite de cabra e, conseqüentemente, aumentar a
probabilidade de riscos à saúde humana decorrentes do consumo de leite de
cabra contaminado.
A expressão “Boas Práticas de Fabricação” (BPF) é utilizada para indicar um
conjunto de ações aplicadas à produção de alimentos, medicamentos e
instrumentos médicos, com a finalidade de assegurar a qualidade dos
produtos e prevenir riscos à saúde do consumidor. As BPF foram implantadas
na área de alimentos na década de 1970, embora somente tenham sido
formalizadas em diversos países a partir de 1995 (Hooten, 1996). No Brasil,
as BPF tornaram-se obrigatórias para a produção industrial de alimentos em
1997, quando foram publicadas as portarias 326/97, do Ministério da Saúde,
e 368/97, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Brasil,
1997). Entretanto, não há obrigatoriedade de aplicação de BPF durante os
procedimentos de ordenha em propriedades leiteiras.
Os trabalhos de extensão a pequenos proprietários rurais podem ser
bastante influenciados pela ideologia dos técnicos, os quais, despreparados
para lidarem com aspectos educativos, creditam a não-aceitação dos pacotes
tecnológicos a três agentes principais: os próprios agricultores e sua
ignorância; outros técnicos, incluindo seu despreparo e atitudes pouco éticas;
e as instituições e seu poder (Oliveira, 1993). Assim, para superar este tipo de
limitação na execução de programas de extensão, é necessário que se conheça
mais a fundo o público-alvo a quem os programas são dirigidos. As pessoas que
manipulam alimentos devem ser continuamente capacitadas, e para que sejam
implementadas modificações nos hábitos higiênicos dos manipuladores, as
crenças e atitudes relacionadas à segurança alimentar devem ser estudadas por
métodos qualitativos (Costa et al., 2002; Coleman et al., 2000; Cleary, 1988;
Mergler, 1987).
O objetivo do presente trabalho foi fazer uma avaliação qualitativa do
conhecimento relacionado aos cuidados de higiene nas operações de ordenha
de ordenhadores de cabra de pequenas propriedades localizadas no Estado de
São Paulo, antes e após uma capacitação em BPF, empregando-se a
metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo (Lefèvre & Lefèvre, 2003).
Métodos
O estudo foi conduzido em três propriedades de criação de caprinos para a
produção de leite no Estado de São Paulo, duas delas com ordenha manual e
244
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.243-54, jan/jun 2006
AVALIAÇÃO DO CONHECIMENTO DE ORDENHADORES...
outra com ordenha mecânica. Em cada propriedade, a seqüência dos
procedimentos de ordenha foi observada cuidadosamente, levando-se em
consideração os itens previstos na planilha de avaliação das BPF estabelecida
pela legislação brasileira (Brasil, 2002). Esta atividade possibilitou identificar
os problemas mais importantes, referentes à higiene da rotina de ordenha, a
serem abordados na capacitação em BPF aplicada aos ordenhadores.
Antes da observação dos procedimentos de ordenha e da capacitação, os
ordenhadores foram entrevistados individualmente, sendo as respostas das
perguntas gravadas e transcritas integralmente. Empregou-se, na entrevista,
um formulário semi-estruturado, previamente testado e ajustado aos
objetivos do estudo, contendo as seguintes questões: 1 Você é ordenhador,
não é? Como chegou a ser ordenhador? 2 Como você aprendeu esse ofício?
Teve algum treinamento? Fale um pouco sobre isso. 3 Você sabe quem
costuma tomar o leite que o senhor ordenha? 4 Explique agora como você faz
para ordenhar as cabras, desde o começo. 5 Qual a pior parte do seu trabalho?
Existe alguma? 6 E a melhor parte? 7 O leite de cabra pode transmitir algumas
doenças. O que você sabe sobre isso? 8 Você acha que vai continuar nesse
trabalho? 9 Existe alguma coisa que você acha que poderia mudar aqui, que
melhorasse o seu trabalho?
A capacitação em BPF foi realizada, nas três propriedades, pelo mesmo
profissional veterinário, empregando-se material pedagógico com figuras e
texto simples, escrito com fonte de tamanho trinta e elaborado de acordo com
as informações obtidas nas entrevistas e com os problemas apontados durante
a observação dos procedimentos de ordenha. Adotou-se como base o conceito
de comunicação, e não de extensão, de Paulo Freire (Freire, 1977). Dois temas
principais foram abordados, em uma palestra de cerca de uma hora de
duração: princípios gerais de BPF e cuidados higiênicos recomendados para
ordenha. Depois de apresentado e discutido este material, foram sugeridas as
possíveis soluções técnicas para corrigir as deficiências encontradas em relação
às BPF, chegando-se a um consenso sobre as modificações a serem
implantadas, que variaram de propriedade para propriedade.
Após dois a três meses da conclusão da capacitação, foram realizadas novas
visitas às propriedades estudadas. Nessa ocasião, cada ordenhador foi
entrevistado novamente, com a finalidade de verificar a existência de
diferenças nos discursos obtidos antes e depois da capacitação. Os dados
qualitativos coletados pelas entrevistas de cinco ordenhadores antes da
capacitação, e de três ordenhadores depois da capacitação, foram analisados de
acordo com a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo (Lefèvre & Lefèvre,
2003).
Resultados
As respostas obtidas nas questões um a nove do formulário aplicado antes e
após a capacitação em BPF encontram-se nas Tabelas 1 e 2, respectivamente.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.243-54, jan/jun 2006
245
TAVOLARO, P. ET AL.
Tabela 1. Síntese das idéias centrais contidas no Discurso do Sujeito Coletivo de ordenhadores, antes da capacitação em BPF.
Questão
Idéias centrais
Trabalho inicial com outros animais
(1) O senhor é ordenhador,
não é? Como chegou a ser
ordenhador?
Faz-tudo do campo
Capacitação não formal
(2) Como o senhor aprendeu
esse ofício? Teve algum
treinamento? Fale um pouco
sobre isso
(3) O senhor sabe quem
costuma tomar o leite que o
senhor ordenha?
Capacitação formal, mas com ordenha
de vacas
Crianças bebem o leite de cabra,
produto medicinal e hipoalergênico
Não sabe o que acontece com o leite
Idosos bebem o leite de cabra
(4) Me explique agora como o
senhor faz para ordenhar as
cabras, desde o começo
Seqüência padrão, com pequenas
variações
(5) Qual a pior parte do seu
trabalho? Existe alguma?
Não tem pior parte, trabalho é
trabalho e tem que ser feito
(6) E a melhor parte?
Melhor parte é quando você não está
trabalhando
Melhor parte é o momento da ordenha
Melhor parte é tomar o leite da cabra
(7) O leite de cabra pode
transmitir algumas doenças.
O que o senhor sabe sobre
isso?
Tem poucas informações sobre as
doenças transmitidas pelo leite
(8) O senhor acha que vai
continuar neste trabalho?
Sim, mas não depende só dele
(9) Existe alguma coisa que
você acha que poderia mudar
aqui, que melhorasse o seu
trabalho?
246
Modificações na estrutura física
melhorariam o trabalho
Não há necessidade de melhorias
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.243-54, jan/jun 2006
Discurso do Sujeito Coletivo
Foi com gado, antes com cabra eu não mexia,
comecei com vaca. Com cabra, comecei aqui.
Eu trabalhava no campo, vim prá fazê um
cercado no pasto, aí eu vi, gostei. Perguntaram
se eu queria trabalhar aqui, aí eu gostei também,
aí foi isso, eu vim sê ordenhador aqui mesmo, na
chácara
A primeira vez eu tava, eu vi o outro ordenheiro
tirar, né…. Aí fui pegando… ele me ensinou duas,
três vezes e aí eu fui adquirindo sozinho
Eu fiz com vaca, com cabra não. Tive curso
de… de casqueamento, de manejo de cabra,
mas não sobre leite, não. Foi aqui mesmo,
com o S. [veterinário da associação]
Quem costuma tomá? Ah, acho que a maioria é
criança. Mais prá criança que tem alergia ao
leite da vaca, criança tá com bronquite, né?
Não. É que eu retiro ele, né? Retiro, ponho na
queijaria. E daí, para lá eu já não sei mais o que
acontece.
Ah, é crianças e pessoas mais idosas, né? Tipo
assim, criança tá com bronquite, pessoas mais
velhas que tá com osteoporose, né?
A gente traz as cabra, aí faz o teste de mamite,
depois lava com água normal, com água comum,
depois, eu uso a água com a cândida, né? Prá
fazê a primeira limpeza, o mais pesado, depois
eu enxugo com papelzinho toalha ali, aí começa
a ordenha. As cabras, eu ordenho uma por uma,
depois de eu ordenhar, eu injeto solução de iodo,
né, no teto.
Não tem uma pior parte, não? Eu sou uma pessoa
que eu gosto mesmo de animal e é bom prá mexê
com cabra. Serviço desse aí tem que fazê tudo
mêmo, né, É todo dia, né, não tem dia parado.
Sempre o mesmo horário, às vezes mais cedo
ainda, às vezes, quando a gente qué saí,
qualquer coisa. Mas é normal, é fácil, porque
você dá água, trata, pica capim...
A melhor parte? É a hora que termina, quando
chega sábado, e é a hora de receber
A melhor parte para mim é a ordenha
A melhor parte acho que é tomar o leite, né?
Não, aí eu, isso aí eu não sei sobre nada. Que eu
sei, é da mamite e da brucelose. o que eu sei é…
a falta de higiene realmente transmite, é, pode
ocasionar essas doenças. Eu mesmo procuro
trabalhar na maior higiene que eu puder né?
Com certeza vou. Enquanto o rapaz tiver
querendo continuar, acho que eu tô aqui. Tô
gostando, não é um serviço assim que é pesado,
vamo indo aí, vamo tocando o barco, mas não
posso lhe garantir nada. O dia de amanhã não
pertence a nós, né?
Acho que o patrão tá pensando em fazer um
galpão melhor e uma sala de ordenha mais perto,
e se ele fizé realmente vai melhorá, né?
Pra mim, pra mim, assim, o serviço geralmente,
para mim tá bom, o trabalho até que tá indo bem,
tem todo, tem ferramenta, tem, né, presteza, do
jeito que tá, tá bom.
AVALIAÇÃO DO CONHECIMENTO DE ORDENHADORES...
Tabela 2. Síntese das idéias centrais contidas no Discurso do Sujeito Coletivo de ordenhadores, após a capacitação em BPF.
Questão
Idéias centrais
Trabalho inicial com outros animais
(1) O senhor é ordenhador,
não é? Como chegou a ser
ordenhador?
Foi o emprego que arranjou
Capacitação não formal
(2) Como o senhor aprendeu
esse ofício? Teve algum
treinamento? Fale um pouco
sobre isso
Capacitação formal, mas com ordenha
de vacas
(3) O senhor sabe quem
costuma tomar o leite que o
senhor ordenha?
Crianças bebem o leite de cabra,
produto medicinal e hipoalergênico
(4) Me explique agora como o
senhor faz para ordenhar as Seqüência padrão, com pequenas
variações
cabras, desde o começo
(5) Qual a pior parte do seu
trabalho? Existe alguma?
Não tem pior parte, trabalho é
trabalho e tem que ser feito
(6) E a melhor parte?
A melhor parte é quando você não
está trabalhando
Melhor parte é quando o leite está
pronto para o consumo
(7) O leite de cabra pode
transmitir algumas doenças.
O que o senhor sabe sobre
isso?
Tem poucas informações sobre as
doenças transmitidas pelo leite
(8) O senhor acha que vai
continuar neste trabalho?
Sim, mas não depende só dele
Modificações devem ser feitas
(9) Existe alguma coisa que
você acha que poderia mudar
aqui, que melhorasse o seu
trabalho?
Modificações são necessárias, mas
não dependem dele, e sim do patrão
Discurso do Sujeito Coletivo
Eu trabalhava como ordenhador de vaca. Aí eu passei
aqui no sítio e comecei a ordenhar as cabras, que é
pouca diferença com vaca, é muito mais fácil do que
a vaca
Ah, isso aí foi por acaso, né? Nunca fui caseiro na
minha vida. Aí fui, arrumei esse emprego aqui, né?
Aí cheguei aqui, falaram, ó você vai ter que tirar leite,
eu nunca tinha feito na minha vida. Nos primeiros
dias foi complicado mesmo, né? Mas depois aprendi.
A gente foi aprimorando, o jeito, a higiene, essas
coisas, com vocês, né? Tive um treinamento com o
seu A. [dono do capril], né, para não forçar tanto o
úbere da cabra. E você falando, o S. [veterinário da
associação] veio e falou como é que tem que fazer a
parte de peito para não pegar esses tipos de doença,
essas coisas eu não sabia
Tive curso. Tive vários cursos. De como evitar
mamite, de como, a parte de limpeza, tudo isso foi
feito. Quando eu era ordenhador de vaca
A maioria é criança. Um é minha filha, ela toma desde
os 7 meses de idade e até hoje ela toma, né? Também
criança que tem alergia
O menino pega as cabras, escova ela antes, depois
leva para mim. Eu amarro aqui. A gente faz o teste de
mamite. Depois a gente vem lavando, e o outro vem
enxugando com o papelzinho toalha, né? Limpo bem
a mão no álcool, e faço a ordenha. depois eu
desinfeto, né? Com iodo, solução pós-ordenha
Trabalho é sempre trabalho, né? Acho que tudo a
mesma coisa, é um pouco é assim, um pouco corrido,
né? Mas eu acho que da parte da cabra não tem. é
tudo bom de fazer. Acho que não tem pior parte,
acho que é tudo legal
Ah, a melhor parte é quando eu pego folga, né? É
quando termina a ordenha
A melhor parte é quando tá pasteurizando o leite.
Que o leite tá lá, tá engarrafando, tá saindo, tá tudo
bonitinho, aí eu gosto
Eu sei que pode transmitir através do ar, né? Do ar,
do ambiente, né? Então é pano, vasilha, utensílios.
Agora, o tipo da doença não sei, acho que
tuberculose é uma, as outra, ah, não lembro!
A vida da gente, a gente nunca sabe o que pode
acontecer amanhã ou depois, tanto da minha parte
quando da parte do patrão. Mas acho que continuo
sim, mais uns 3 anos, ainda. Eu tenho família e
dependo do salário. Se alguém me oferecer uma
oferta melhor que eu vou dar uma condição de vida
melhor para minha família, é óbvio que eu vou
aceitar, se não, não tenho pra quê, né, ficar saindo
Acho que vai fazer a sala de ordenha, que é o que
mais precisa mesmo e o patrão falou que ele vai
fazer, ali em cima, um escritório fechado, vai mandar
fechá, azulejá, que vai ficar a coisa mais linda. E já
pedi para ele colocar aquele papel ali, colocar uma
papeleira, né, fechadinho, tal. Vou pedir para ele, ver
se ele consegue colocar também saboneteira aqui,
se ele colocasse uma água quente aqui, facilitaria
bem mais melhor, o trabalho, né?
Óia, tem muita coisa que melhoraria, mas depende
muito do patrão, aí não é, não faz a minha parte. Eu
quero fazer, mas depende dele, né?
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.243-54, jan/jun 2006
247
TAVOLARO, P. ET AL.
Para a questão 1, foram observadas duas situações básicas: ou o indivíduo
trabalhava com outros animais, ou fazia um pouco de tudo nas propriedades
rurais, e não houve mudança nas idéias centrais antes e após a capacitação. Na
questão 2, aparece a noção de que a ordenha é um trabalho solitário, que se
aprende sozinho, no dia-a-dia, e que o ordenhador considera que não há
variações no procedimento de ordenha de espécies diferentes. Na maioria dos
casos, o procedimento foi ensinado por outro ordenhador, e, em apenas um
dos casos, por um veterinário. Aqui, existe a sugestão de que os próprios
veterinários não consideraram a capacitação dos ordenhadores entrevistados
como algo a que deveriam dedicar muita atenção, pois o modo de ordenha é
um dos menores problemas enfrentados por esses profissionais no seu dia-adia de trabalho em propriedades produtoras de leite de cabra. Neste caso,
perde-se uma chance para a melhoria da qualidade do leite, assim como para a
disseminação de diferenças de manejo de espécies leiteiras diversas.
No tocante à questão 3, apenas um dos ordenhadores não sabia o que
acontecia com o leite, e os outros sabiam que o leite era consumido
preferencialmente por crianças. Dois deles falaram sobre o consumo por
crianças doentes e alérgicas, e um deles, do consumo por idosos. Verificou-se,
com isso, que os ordenhadores sabiam que o leite de cabra é um produto que
tem uso medicinal, o que foi repetido na aplicação deste mesmo questionário
após a capacitação. Quanto à questão 4, todos os ordenhadores executavam o
procedimento padrão esperado, com algumas modificações: dois deles
afirmaram fazer o teste da caneca de fundo preto; todos lavavam os tetos com
água fria, e não com água morna; dois deles faziam uma desinfecção com água
clorada antes da ordenha, embora a quantidade de cloro colocada não fosse
uma medida conhecida; todos enxugavam os tetos com papel toalha, usando o
mesmo papel para os dois tetos, e então começavam a ordenha; dois deles
forneciam alimento no cocho durante a ordenha, mas apenas um fornecia
concentrado específico para animal leiteiro; todos os outros usavam apenas
farelo para que o animal ficasse mais tranqüilo durante o procedimento;
depois da ordenha, todos usavam solução à base de iodo para proteção contra
a mastite.
No que concerne à questão 5, três dos ordenhadores afirmaram que o
trabalho com as cabras era agradável, e dois deles, que trabalho é apenas
trabalho. Dois deles deram a entender que algumas atividades eram mais
custosas de serem executadas, como a retirada do esterco. Entretanto,
consideraram que, de maneira geral, a lida com os animais não era atividade
pesada, e que raramente saíam cansados no final do dia. A questão 6,
relacionada à questão anterior, revelou diferentes idéias centrais nos discursos
antes da capacitação: o melhor momento é quando não se está trabalhando
(um discurso); ou quando se recebe o pagamento (um discurso); é o
momento da ordenha (um discurso); ou é o próprio leite (dois discursos).
Após a capacitação, foram observados dois tipos de resposta: a melhor parte é
o momento de folga (dois discursos), ou quando o leite está pronto para o
consumo (um discurso).
As idéias centrais apresentadas à questão 7, antes da capacitação, indicaram
que o conhecimento dos ordenhadores versava sobre as doenças que afetam a
produção de leite (mastites) ou a brucelose, herança do trabalho com vacas,
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AVALIAÇÃO DO CONHECIMENTO DE ORDENHADORES...
uma vez que a Brucella mellitensis, transmitida pela cabra, é uma doença
exótica, não notificada no Brasil (Astudillo, 2004). Apenas um dos
ordenhadores se referiu à higiene do procedimento como algo de importância
para a veiculação de doenças pelo leite, mas a relação entre o leite e as doenças
pareceu ser mais freqüentemente associada à saúde do animal do que à
higiene na ordenha do leite. Outro ordenhador mostrou que gostaria de
aprender mais sobre as doenças, por entender que este é um ponto
importante para melhorar seu trabalho e sua vida.
Na questão 8, a maioria dos trabalhadores respondeu que permanecer no
trabalho não dependia unicamente deles, e sim de conjunturas externas a eles,
o que se repetiu nas respostas obtidas após a capacitação. Entretanto, nos
discursos obtidos antes da capacitação, os ordenhadores afirmaram que, pelo
fato de gostarem do trabalho com os animais, era possível que continuassem.
Quanto à questão 9, os discursos foram diversos: dois deles gostariam de
mudanças na estrutura física, que melhorariam o fluxo do trabalho, o que se
repetiu na análise dos mesmos questionários no final do estudo. Dois outros
achavam que não havia necessidade de modificações, e apenas um se referiu a
um salário melhor.
Discussão
A Organização Mundial de Saúde recomenda que os programas educacionais
sejam culturalmente apropriados para os manipuladores de diferentes países,
levando-se em consideração os hábitos alimentares e crenças da população de
modo que se consiga mudanças nos hábitos e atitudes em relação aos
alimentos (Ehiri & Morris, 1994). Para tanto, devem-se utilizar métodos
antropológicos e sociológicos na determinação de programas em segurança
alimentar. O uso de entrevistas tem como objetivo explorar e descrever o
espectro de atitudes e experiências dentro de um certo campo, mais do que
quantificar as opiniões coletadas (Vaarst et al., 2002). Isto baseia-se no fato
de que, para conseguir implantar boas práticas de higiene na manipulação de
alimentos, todos os fatores que condicionam estas práticas (individuais e
coletivos, comportamentais e ambientais) devem ser investigados (Costa et
al., 2002).
A análise dos discursos apresentados para a questão 1, “O senhor é
ordenhador, não é? Como chegou a ser ordenhador?”, permite constatar
que, para os ordenhadores entrevistados, o trabalho com os animais é algo
que pode não variar muito segundo a espécie com que se lida, não se
explorando a necessidade de especialização; e que, embora possam ter recebido
algum tipo de capacitação questão 2, o trabalho se aprende é no dia-a-dia, ao
se executarem as atividades. Por outro lado, a idéia de faz-tudo no campo,
presente nos discursos tanto antes quanto após a capacitação, pode ser vista
como simples oportunidade de trabalho dentro das cidades onde esses
trabalhadores moram. São ordenhadores, assim como poderiam estar
trabalhando em qualquer outro ramo de atividade de baixa especialização.
Na questão 2, “Como o senhor aprendeu esse ofício? Teve algum
treinamento? Fale um pouco sobre isso”, não foram observadas diferenças
comparando-se a resposta obtida antes e após a capacitação em BPF. A
capacitação formal ocorreu apenas na propriedade 2, onde havia ordenha
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249
TAVOLARO, P. ET AL.
mecânica e o leite era parte da renda da propriedade; as outras propriedades
eram apenas sítios de fim-de-semana. No discurso obtido após a capacitação,
ficou mais claro que a capacitação desse funcionário tinha ido além do que a
que ocorreu em outras propriedades, envolvendo cursos sobre manejo e saúde
dos animais, o que mostra que o vínculo financeiro que esse proprietário tem
com a criação de cabras e sua produção leiteira pode levar a um maior
interesse na capacitação dos ordenhadores.
Para a questão 3 “O senhor sabe quem costuma tomar o leite que o
senhor ordenha?”, notou-se, no ordenhador que desconhecia o que acontecia
com o leite, a sensação de que ele não dominava o fluxo de seu trabalho. Isto
pode ser um fator que influenciou o sucesso da capacitação, pois o
desconhecimento do fluxo de trabalho não estimula a participação e o
envolvimento. Os trabalhadores têm uma noção fragmentada sobre qual a
melhor forma de se executar uma tarefa. Eles normalmente são tecnicamente
qualificados na sua pequena área de conhecimento, são disciplinados,
politicamente submissos, isolados e não organizados, pois o conteúdo do seu
trabalho foi esvaziado e mecanizado (Kuenzer, 1995). A participação e
iniciativa dos trabalhadores tende a ser fraca se eles não estiverem bem
representados (Mergler, 1987), o que é uma realidade para os ordenhadores,
que não são organizados como uma classe. A participação, portanto, estaria
apoiada na postura individual do ordenhador, na confiança que ele tivesse no
técnico, e no seu interesse em relação ao trabalho que estivesse executando. A
relação de descompromisso com o trabalho, visível na análise dos discursos do
grupo em estudo nas duas ocasiões, foi possivelmente um dos grandes
entraves ao sucesso do treinamento em BPF.
Quanto à questão 4, “Explique agora como o senhor faz para ordenhar
as cabras, desde o começo”, apenas um dos ordenhadores se referiu à higiene
necessária ao procedimento, principalmente mãos limpas e unhas cortadas, e
ao uso de desinfetante nas mãos antes da ordenha, e outro afirmou que a
lavagem da sala de ordenha era importante. Entretanto, a lavagem das mãos
antes de começar a ordenha nunca foi citada como parte do processo. Alguns
dos ordenhadores eram também responsáveis por buscar as cabras, após o que
ordenhavam os animais, sem lavar as mãos, tanto antes quanto depois da
capacitação. Duas das propriedades tinham pias e detergente disponível na sala
de ordenha, mas que eram apenas usados para lavar os materiais antes da
ordenha, e não as mãos, seja antes ou durante a ordenha. Nos dois locais onde
a sala de ordenha era aberta, não havia pia ou detergente disponível. Na
propriedade onde havia ordenha mecânica, os funcionários que buscavam as
cabras, às vezes, lavavam as mãos antes da ordenha, porém isto pode ter
ocorrido devido ao efeito de Hawthorne (Goldehar & Schulte, 1994), segundo
o qual os trabalhadores mudam seu comportamento simplesmente porque os
pesquisadores estão presentes no local de trabalho. Portanto, o procedimento
de ordenha permaneceu o mesmo nos discursos antes e após o treinamento, o
que pôde ser confirmado pela observação do trabalho na ordenha.
No que concerne à questão 5, “Qual a pior parte do seu trabalho?
Existe alguma?”, os ordenhadores consideraram que, de maneira geral, as
atividades executadas não eram cansativas. Na ordenha de vacas, por outro
lado, já foi demonstrado que o impacto da carga física pode afetar a capacidade
250
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.243-54, jan/jun 2006
AVALIAÇÃO DO CONHECIMENTO DE ORDENHADORES...
de trabalho e o estado de saúde de trabalhadores na ordenha (Shenkman &
Badken, 1989), como em outros tipos de atividades (Sell, 2002). Na resposta
obtida à mesma pergunta aplicada após a capacitação, repetiu-se a observação
de que trabalho é apenas trabalho, não existindo uma pior parte. O tipo de
atitude observada nesses discursos não é mérito único dessa categoria de
trabalhadores e pode dificultar enormemente o envolvimento desses homens
em programas educativos. Pode-se entrever, nas respostas, um baixo grau de
comprometimento com as tarefas, não apenas nesta questão, mas também na
questão seguinte da entrevista.
As respostas dadas à questão 6, “E a melhor parte?”, indicaram,
novamente, a idéia de que, por se tratar de um trabalho não altamente
qualificado, os trabalhadores entrevistados o aceitam, como aceitariam outro
tipo de trabalho dentro ou fora de propriedades rurais, a fim de garantir sua
sobrevivência. Contudo, houve uma resposta que se destacou das outras: o
funcionário que acreditava ser a melhor parte “quando tá pasteurizando o
leite. [...] Que o leite tá lá, tá engarrafando, tá saindo, tá tudo bonitinho”,
era o mesmo que foi submetido a cursos formais de capacitação em manejo
dos animais e produção de leite. Este fato sugere que o investimento dos
proprietários rurais na capacitação técnica pode elevar a auto-estima dos
funcionários e, conseqüentemente, gerar maior envolvimento e abertura ao
processo educativo.
No discurso apresentado à questão 7, “O leite de cabra pode transmitir
algumas doenças. O que o senhor sabe sobre isso?”, observou-se um maior
conhecimento dos ordenhadores sobre as doenças transmitidas por alimentos,
que era o que se buscava nas entrevistas, após a capacitação em BPF. Um dos
funcionários se referiu ao assunto abordado na capacitação, observando que o
material usado na ordenha e a higiene do procedimento eram importantes
para a transmissão de doenças pelo leite. Isso pode ter ocorrido devido ao fato
de o intervalo entre a capacitação e o novo questionário ter sido menor do que
nas outras propriedades, por arranjos no cronograma do estudo. Já o
ordenhador que foi capacitado formalmente lembrou-se da tuberculose, o que
provavelmente foi abordado em cursos que ele tenha freqüentado sobre a
tecnologia do leite. Outro ordenhador, que passava por problemas pessoais,
pediu desculpas por não se lembrar do que tinha sido falado. Aqui, pode-se
fazer uma crítica ao formato da capacitação neste estudo, uma aula expositiva,
pouco incentivadora da participação (Bernardo, 2003), o que reforça a
necessidade de preparação para o técnico exercer adequadamente seu papel
como educador.
Quanto à questão 8, “O senhor acha que vai continuar neste trabalho?”,
um dos ordenhadores se referiu ao fato de o trabalho não ser difícil nem
pesado, e também afirmou que o trabalho é sempre igual, o que pode ser
pouco desafiador e motivador para ele, levando a um certo desinteresse pela
sua na rotina e por modificações dela. Este era o mesmo ordenhador que
afirmou não saber o destino final do leite que ordenhava. Na resposta obtida
após a capacitação, a questão da sobrevivência e do sustento da família foi
abordada, o que não foi tão claro na primeira entrevista. Todas as respostas
indicam o pequeno comprometimento dos trabalhadores do grupo analisado
com seu trabalho, o que acabou dificultando enormemente os resultados do
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.243-54, jan/jun 2006
251
TAVOLARO, P. ET AL.
treinamento.
Dos discursos apresentados para a questão 9, “Existe alguma coisa que
você acha que poderia mudar aqui, que melhorasse o seu trabalho?”,
após a capacitação, destaca-se o do funcionário cujo intervalo entre as
entrevistas feitas antes e após a capacitação foi menor, o qual refere-se
claramente às informações abordadas na capacitação sobre higiene e BPF
aplicadas ao procedimento de ordenha.
A análise global das idéias centrais, obtidas nas entrevistas com os
ordenhadores das três propriedades, demonstraram que os funcionários
tinham noção da necessidade de limpeza na ordenha, mas ignoravam a
existência da necessidade de uma etapa de desinfecção. Deste modo,
procurou-se trabalhar com estes conceitos, e enfatizou-se esta diferença no
processo de capacitação. Um segundo ponto observado nos locais em
estudo, e também bastante comum em outras pequenas propriedades, é o
fato de a mão-de-obra ser constituída de apenas um funcionário, ou de um
pequeno grupo familiar, que se dedica a todas as atividades dentro da
propriedade. Esta múltipla dedicação, no presente trabalho, deve ter
contribuído para que não existissem cuidados especiais com o momento da
ordenha (uso de uniforme diferenciado, lavagem de mãos constante
durante o procedimento), pela carga de atividades da qual esses
trabalhadores têm que dar conta. Assim, apesar de os ordenhadores terem
considerado importante o que tinham aprendido, a ponto de repetirem
algumas das informações na entrevista contendo as mesmas questões
realizada um a dois meses após o treinamento em BPF, observou-se uma
enorme dificuldade para se modificar os procedimentos já cristalizados pelo
hábito.
Os veterinários que normalmente estão envolvidos neste tipo de ação
educativa em propriedades leiteiras muitas vezes encontram dificuldades na
transferência do conhecimento ao homem do campo, devido às próprias
limitações de sua formação profissional. Neste sentido, as idéias centrais
dos relatos dos ordenhadores entrevistados deveriam ser levadas em
consideração pelos veterinários em seus trabalhos de educação em
propriedades de criação de caprinos. Adicionalmente, são necessárias
grandes mudanças no currículo de graduação em veterinária, privilegiando,
além das informações técnicas, uma formação mais humanística e holística
(Goodger, 1982). Este tipo de mudança poderia beneficiar enormemente
tanto a população em geral quanto os trabalhadores com os quais os
veterinários devem ter contato.
Conclusões
Os resultados do presente trabalho evidenciaram as dificuldades de se
trabalhar com educação para a mudança de comportamento de
ordenhadores de cabra. Embora os funcionários saibam que os
conhecimentos discutidos são importantes, mudanças na rotina acabam
sendo afetadas por uma série de barreiras técnicas à implantação dos
programas de garantia de qualidade, além de barreiras de natureza
antropológica e sociológica que deveriam ser ao menos conhecidas e
estudadas pelos profissionais responsáveis pela capacitação de mão-de-obra
252
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.243-54, jan/jun 2006
AVALIAÇÃO DO CONHECIMENTO DE ORDENHADORES...
em áreas rurais. Esta abordagem deveria ser melhor explorada em
programas educativos destinados à melhoria da qualidade do leite de cabra,
de modo a se ampliar o alcance e a eficácia das ações de extensão aos
produtores rurais.
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TAVOLARO, P. ET AL. Evaluación del conocimiento en prácticas de higiene: un análisis
cualitativo. Interface - Comunic., Saúde, Educ.
Educ., v.10, n.19, p.243-54, jan/jun 2006.
En este trabajo se evaluó cualitativamente el conocimiento de ordeñadores de cabra
acerca de higiene en las operaciones de ordeño antes y después de ser entrenados en
Buenas Prácticas de Fabricación (BPF). Con este fin se realizaron entrevistas con
ordeñadores de tres establecimientos rurales en el estado de São Paulo, Brasil. Las
entrevistas se basaron en un cuestionario semiestructurado y las respuestas fueron
gravadas, transcriptas y analizadas usando el método del Discurso del Sujeto Colectivo.
Después de la entrevista inicial de los ordeñadores de cada establecimiento se realizó la
capacitación en BPF mediante una clase expositiva de una hora de duración sobre los
temas “Principios generales de BPF” y “Cuidados higiénicos recomendados para el
ordeño”. Entre 1 y 2 meses después del entrenamiento los ordeñadores fueron
entrevistados nuevamente. No encontramos diferencias entre los discursos obtenidos
antes y después del entrenamiento, y un análisis individual de los mismos mostró que
los ordeñadores tenían experiencia previa de ordeño, les gustaba su trabajo y les
gustaría aprender mas sobre el oficio, pero que no tenían sugerencias claras sobre cómo
mejorar su flujo de trabajo.
PALABRAS CLAVE: discurso del sujeto colectivo. manipuladores. ordeñadore. capacitación
en servicio. salud ocupacional.
Recebido em: 19/04/05. Aprovado em: 04/10/05.
254
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.243-54, jan/jun 2006
livros
RATTNER, D.; TRENCH, B. (Orgs.) Humanizando nascimentos e
par
tos
partos
tos. São Paulo: Editora Senac, 2005.
Nascer sorrindo, parir pelejando *
Humanizando partos e nascimentos é um
livro apaixonado, escrito por ativistas da
Rede pela humanização do parto e do
nascimento (Rehuna), e que merece ser lido
como parte da estratégia deste movimento
em convencer e conquistar mais adeptos para
esta causa. A qualidade estética do livro é
notável, o material de qualidade e sua
linguagem acessível ao público leigo; sem
descuidar das informações técnicas
pertinentes e notícias sobre legislação
referente ao tema. Tais informações auxiliam
parturientes e familiares a enfrentarem os
grandes bloqueios que impedem tantas
mulheres de darem à luz a seus filhos de
forma cidadã e prazerosa, nos dias atuais.
O livro traz alguns depoimentos de
pessoas que, munidas dessas informações,
conseguiram impor seus direitos diante dos
profissionais, mostrando o quão importante
é deter certos conhecimentos, inclusive o
médico. Os autores e autoras são
profissionais de diferentes especialidades na
área da saúde, todos identificados com o
ideário da humanização: a organizadora,
epidemiologista, é liderança da Rehuna;
Sônia Venâncio, uma das mães que narra seu
parto no livro, é doutora em saúde pública;
outra mãe, Maria Cecília de Miranda, é
também profissional no campo da saúde
coletiva. Há ainda o texto de Fadynha, outra
liderança nacional, de Ângela Gehrke, cuja
memória é revisitada com o artigo escrito
antes de sua morte, em 2000, bem como de
Marcos Ymayo e irmã Monique, que falam da
construção da Casa de Maria e, ainda, texto
de Fábio de Mello, pai “consciente de seus
diretos”, entre outros. Há também textos
coletivos, como o que foi produzido durante
uma oficina de trabalho do Grupo de Estudos
sobre Nascimento e Parto (GENP), em São
Paulo, e o não menos importante texto
produzido por pequenas crianças,
responsáveis pelas ilustrações
almodovarianas que atravessam o livro, no
projeto gráfico de Belkis Trench.
Desde Leboyer, um dos mestres
reverenciados pela Rehuna, as críticas à
medicalização excessiva ressaltam a
importância da primeira infância na vida dos
seres humanos, daí a escolha das ilustrações
infantis. São desenhos de crianças de uma
escola infantil, reveladores de um imaginário
social extremamente instigante acerca do
parto e do nascimento: todos muito
coloridos, povoados por mulheres grávidas,
barrigas grandes, fetos solitários e
gemelares, um mundo de mulheres e de
bebês, onde apenas um pai (e grávido!) é
representado, à página 150. Chamam
atenção os cordões umbilicais que repontam
na maioria dos desenhos, inclusive ligando
crianças às suas mães após o nascimento.
Interpretações à parte, cabe lembrar que um
dos textos do livro dedica-se aos significados
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.255-8, jan/jun 2006
255
LIVROS
psíquicos do fenômeno do parto,
considerando a primeira e mais decisiva
ruptura da unidade mãe-filho, a primeira de
uma série de muitas e incessantes outras
separações.
O livro está estruturado em quatro
partes: Refletindo, Praticando, Vivenciando,
Atuando e Anexos, que constituem sua
parte mais auspiciosa e desafiadora. O
prefácio é do escritor Moacyr Scliar, também
especialista em saúde pública, o qual coloca
que a humanização é uma verdadeira causa
contexto de uma sociedade fortemente
medicalizada, na qual o parto cirúrgico virou
rotina, e o parto vaginal uma lembrança dos
tempos passados. Scliar assinala que esta luta
tem exigido intermináveis esforços, levando
vários ativistas, como Daphne, à exaustão e
ao adoecimento.
A lista de méritos do livro é extensa:
recoloca em cena, a partir de vários aspectos,
o problema da assistência ao parto no Brasil;
convoca os leitores a uma participação nesta
causa; preenche, junto com outras
publicações recentes, as lacunas de saberes
em torno do tema do parto. É uma
oportunidade de pensar o parto como um
evento existencial, ligado à vida familiar,
psíquica e afetiva das pessoas. Sua leitura
suscita uma série de reflexões sobre o
próprio ideário e a estratégia do movimento
pela humanização, bem como sobre as
políticas públicas em nosso país e seus
limites, sobretudo diante de uma categoria
médica bastante endurecida pelos lugares de
poder que tem ocupado, reflexões estas que
não chegam a ser analisadas no livro mas, a
partir dos documentos anexos, causam
estranhamento àqueles que desconhecem a
longa história de tensões e de conflitos que
marcam o campo da assistência ao parto.
Há alguns pequenos erros de edição, por
exemplo: a data da Carta de Fortaleza, que é,
na verdade, de 2000, e a falta de referência
ao texto de Sônia Hotimsky, citada ao final,
os quais, numa reimpressão, certamente
serão revistos.
Quanto às parteiras tradicionais,
256
personagens importantíssimos no cenário da
assistência ao parto no Brasil, não há senão
duas referências breves; lacuna grave, já que
este é um dos trabalhos femininos que mais
tem desafiado o olhar medicalizado sobre o
parto. Estas “médicas sem diploma”, como
diz a historiadora Mary del Priore, mereciam
pelo menos um artigo que expusesse suas
práticas, bastante sofisticadas e respeitadoras
dos direitos das mulheres. Sua ausência no
livro chama atenção, porque na própria
Rehuna há uma experiência de diálogo e
troca com essas mulheres, particularmente
pelas feministas do Grupo Curumim, que
atua há mais de 15 anos no norte e nordeste
do Brasil.
A historiadora Yvonne Knibiehler (2000),
em seu clássico estudo sobre a medicalização
do parto no Ocidente, fala que o processo de
avanço da obstetrícia nos últimos séculos
promoveu o esfacelamento das redes de
solidariedade entre mulheres, espaços nos
quais trocavam-se não apenas apoio e auxílio
mútuo, na hora dos partos mas, também,
informações técnicas que permitiam às
mulheres dominar conhecimentos sobre seus
corpos e suas dinâmicas. Este esfacelamento,
no entanto, não foi completo:
particularmente em países onde a
modernidade não se consolidou até hoje,
como na América Latina, encontramos
outros sistemas de atenção ao parto,
orientados por lógicas não-medicalizadas e
sistemas de cura ditos “tradicionais”. Nesses
contextos, saberes sobre o parto são
transmitidos e compartilhados por mulheres,
camponesas, indígenas, pobres. Nesses
universos encontramos também parteiras
tradicionais, cujas práticas têm suscitado
estudos no campo da Antropologia, História
e Enfermagem e que trazem muito mais do
que citações e referências genéricas. Já nos
contextos urbanos, onde a hospitalização se
deu de forma completa, ainda que
insatisfatória do ponto de vista da qualidade
da assistência, o vácuo causado pelo processo
de medicalização do parto tem sido suprido,
em grande parte, por livros como
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LIVROS
“humanizando”, que tem o grande mérito
de trazer informações e reflexões que podem
instrumentalizar mulheres e seus familiares
a reivindicarem o acesso a uma assistência de
maior qualidade e respeito aos desejos da
parturiente.
Uma leitura às avessas do livro,
começando pelos anexos, levaria os leitores
que estão do lado de fora do campo da
assistência a uma certa indignação: suscitam
perguntas dos leigos acerca de noções
partilhadas pelos ativistas, que merecem ser
estranhadas: desde as tão faladas evidências
científicas até a própria noção de
humanização, passando pela Carta Aberta
à Comunidade, assinada por um pai
indignado diante da negativa de acompanhar
sua mulher no trabalho de parto por parte
do “alto clero” de uma maternidade. Do
ponto de vista dos não-profissionais, pululam
perguntas: “por que os gestores de saúde e
grande parte dos médicos não aderem às
recomendações da OMS?”, “por que as
taxas de cesáreas ainda são tão altas no
Brasil, malgrado estas mesmas
recomendações e todos os incentivos do
ministério para o parto normal?”, “por que
as tais evidências científicas atuais não
seduzem os médicos, que insistem em
manter práticas consideradas pela
literatura internacional como pouco
aconselháveis ou sem eficácia?”, “por que –
apesar de medida simples, barata e eficaz o direito de as mulheres serem
acompanhadas por alguém de sua
confiança é tão malvisto pelas instituições,
como relatam não só a carta de Raul, mas
também o périplo empreendido por Fabio
Mello, em seu texto “Eu queria estar lá!”?”,
“por que as Casas de Parto não se
expandem pelo país, por quê são fechadas
ou desqualificados em cidades modernas e
cosmopolitas como o Rio de Janeiro, apesar
de toda a ciência e de toda a sua
legalidade?”.
Os anexos não são alvo de comentários ou
análises. Assim, os leitores precisam
trabalhar um pouco mais neste ato de ler,
tentando desvendar estes porquês, que
certamente apontam para perspectivas
menos luminosas do que as que partilham
os ativistas da humanização, bons
conhecedores dos meandros destes embates.
Os esforços de modificar os cursos de
formação médica e de saúde, bem como de
sensibilizar profissionais para esta causa são,
certamente, positivos, e altamente louváveis:
várias conquistas já foram feitas, como a
legalização das casas de parto, a criação dos
cursos de enfermagem obstétrica, as novas
prerrogativas para estas profissionais, entre
outras. Em pesquisa sobre a Rehuna, escutei
narrativas de conversão a esta causa
realmente pungentes, histórias que apontam
para o bom sucesso deste caminho pacifista,
de convencimento e sedução. No entanto,
um enorme número de mulheres não tem
tido nem a sorte, nem as possibilidades
concretas de escolher um médico
humanizado ou fazer valer seu capital
cultural e conhecimento de direitos sexuais
e reprodutivos, sempre tão frágeis em nosso
país, como a Lei do Acompanhante, citada no
livro, fruto da mobilização da ReHuNa.
No parto humanizado, o tempo nãoapressado é a substância central, como diz
Sílvia Machado, no seu artigo sobre as
implicações psíquicas do momento do parto;
a temporalidade da complexa relação mãefilho é outra, difere do tempo dos
profissionais, contraria o tempo fabril e
febril dos hospitais enlouquecidos pela lógica
de produção em massa. Já no movimento
social, há pressa, impaciência, indignação
com o enorme vagar com que as políticas e
recomendações da OMS são atendidas.
Sensibilidade, amor e acolhida são atributos
humanos necessários para mudar
comportamentos; porém, são insuficientes:
já sabemos, pela história social da obstetrícia
moderna, que se trata de uma “verdadeira
guerra”, para usar a expressão das
historiadoras que analisam o processo de
eliminação do Parto sem Dor, ancestral do
parto humanizado. Para que bebês nasçam
sorrindo e para que a maternidade seja uma
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.255-8, jan/jun 2006
257
LIVROS
experiência prazerosa para as mulheres, há
ainda muito que pelejar. É O que podemos ler
no Manifesto em favor das Casas de Parto no
Rio de Janeiro, escrito pela Rehuna, em 2004,
face às ações do Conselho de Medicina local:
acreditamos que são resultantes ou do
desconhecimento das recomendações
internacionais e evidências científicas, ou
de resistência à mudança do modelo,
seja por conveniências que não
consideram o que seria melhor para mães
e bebês, seja por compromissos
escusos com o grupo de
profissionais que se beneficia com a
atual situação de excesso de
intervenções.
Aos bons entendedores, meias palavras bastam:
não haverá mudança efetiva sem embates, não
haverá assistência humanizada sem
enfrentamento das relações de poder que,
historicamente, fizeram do parto um evento
médico e, da mulher, um mero objeto da
reprodução humana, ao invés de sujeito de
direito e senhora de seu destino.
Carmen Susana Tornquist,
Doutora em Antropologia Social, professora da
Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).
<[email protected]>
Referências
KNIEBIHLER,Y. Histoire des Mères et de la Maternité en
Occident. Paris: Presses Universitaires de France, 2000.
TORNQUIST, C. S. Parto e poder: o movimento pela
humanização do parto no Brasil. 2004. Tese (Doutorado) –
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
BRASÍLIA. Senado Federal. Lei n. 11.108, de 07/04/2005.
LEULLIEZ, M.; GEORGES, J. Une anti-sorcière: la sage-femme
messagère des Lumières, dans la psycho-prophylaxie
obstétricale. In: CHEVILLOT, F. (General Edictor). Women in
french studies. USA: University of Denver and Ball State
University, 2002. p.36-50.
Recebido em 08/05/06. Aprovado em: 18/05/06.
258
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.255-8, jan/jun 2006
teses
Construção do conhecimento em saúde: o ensino de
biossegurança em cursos de nível médio na Fundação Oswaldo Cruz
Construction of the knowledge in health: the biosafety teaching in secondary courses in the
Oswaldo Cruz Foundation
O estudo, realizado no período 20042005, teve como objetivo geral investigar a
situação atual do ensino de biossegurança
em cursos de nível médio da área de saúde.
Teve como foco de coleta de dados, seis
cursos de nível médio da Fundação Oswaldo
Cruz no Rio de Janeiro. Um total de 97
alunos, 12 professores e três coordenadores
dos locais pesquisados participaram do
estudo. Caracterizou-se como uma pesquisa
teórico-empírica, com abordagem qualitativa
e utilização de dados quantitativos que
emergiram ao longo do processo de trabalho.
Os dados foram analisados a luz da
multirreferencialidade. Esta investigação
justificou-se pela defasagem da
biossegurança em relação ao mundo do
trabalho e o mundo da escola e as demandas
decorrentes do progresso técnico-científico e
da própria evolução social, no que se refere a
biossegurança em espaços da saúde.
Resultados obtidos apontam para uma
necessidade sentida de aprimoramento dos
processos de ensino em biossegurança em
cursos de nível médio da área de saúde na
Fundação Oswaldo Cruz. O estudo, inserido
no processo educação-trabalho-saúde, poderá
suportar ações pedagógicas no campo da
educação profissional, especificamente no
que se refere ao ensino da biossegurança em
cursos de nível médio da Fundação Oswaldo
Cruz, na área de saúde, e também atuar
como instrumento de apoio para a
elaboração de políticas públicas no âmbito do
SUS e de sistemas de ensino em geral,
principalmente aos relacionados às Escolas
Técnicas do SUS (ETSUS).
Marco Antonio Ferreira da Costa
Tese (Doutorado), 2005
Programa de Pós-Graduação em Ensino de
Biociências e Saúde, Instituto Oswaldo Cruz,
Fiocruz, Rio de Janeiro. <[email protected]>
PALAVRAS-CHAVE: segurança. saúde. educação
profissionalizante.
KEY WORDS: safety. health. education professional.
PALAVRAS CLAVE: seguridad. salud. educación
profesional.
Recebido em 29/03/06. Aprovado em: 07/04/06.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.259-62, jan/jun 2006
259
TESES
O processo de formação do enfermeiro crítico-r
eflexiv
o na
crítico-reflexiv
eflexivo
visão dos alunos do curso de Enfermagem da F
AMEMA
FAMEMA
The process of educating critical and reflective nurses in the view of Nursing students at
FAMEMA
Investigamos a formação do enfermeiro
enquanto sujeito crítico-reflexivo no Curso de
Enfermagem da Faculdade de Medicina de
Marília (FAMEMA), tendo como objetivo captar,
por meio dos alunos, como está sendo
construído seu processo de formação, na
direção da constituição de um profissional
crítico-reflexivo; identificar as marcas
diferenciais do processo de formação percebidas
pelos mesmos, a partir da lógica do Projeto
Político-Pedagógico (PPP), bem como apreender
quais as facilidades e dificuldades encontradas,
pelos mesmos no transcorrer de um processo
de formação crítico/reflexivo. Tomamos por
pressuposto que a formação de um enfermeiro
crítico-reflexivo implica que o aluno se torne
sujeito no processo de formação e essa
transformação do aluno em sujeito está
determinada e determina o contexto da
implementação do PPP adotado pelo Curso de
Enfermagem da FAMEMA. A pesquisa foi
realizada com os alunos da 4ª série do Curso de
Enfermagem da FAMEMA, no ano de 2001,
sendo utilizadas as técnicas de grupo focal e
entrevista semi-estruturada. Para a organização
do material empírico utilizou-se do método do
Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), com
posterior aplicação da técnica de análise
temática proposta por Minayo. Na análise
emergiram três eixos temáticos, revelando que
o processo de formação do enfermeiro críticoreflexivo se dá pela construção de competências,
as quais apresentam qualidade formal e política,
iniciando-se na graduação e continuando ao
longo da vida, numa perspectiva de renovação
260
constante da profissão e do profissional. A
mudança curricular deu-se por meio da
implementação do PPP enquanto processo
dinâmico, histórico, contraditório, construído
pelos sujeitos que atuam no mesmo,
apresentando adesão e resistências ao longo do
processo. Ao utilizarmos a Metodologia da
Problematização e o currículo integrado,
verificamos ser importante a articulação entre
ensino-serviço-comunidade mediante parcerias,
gerando novos cenários de ensinoaprendizagem, tomando o trabalho enquanto
princípio da formação, provocando uma ação
crítico-reflexiva acerca da realidade vivida no
cotidiano, no entanto, gerando vários conflitos
nesta nova relação. Os alunos apontam para
uma ampliação do fazer do enfermeiro e da
concepção de saúde-doença, utilizando as
tecnologias leves no cuidado com o usuário,
além de reconhecer que o trabalho em equipe
requer uma nova postura do profissional na
qual deve criar vínculo, ter argumentação
fundamentada posicionando-se frente à equipe.
O trabalho pedagógico ocorre em pequenos e
no grande grupo, nos quais aprende-se a
argumentar, a ouvir, conviver e respeitar a
diversidade e diferenças de opiniões, aprende-se
a lidar com os conflitos, os quais nem sempre
são considerados pelos docentes que
apresentam dificuldades para trabalhá-los
enquanto processo educativo. O professor,
nesta metodologia, faz a mediação entre o
objeto a ser aprendido e o aluno para a
construção do conhecimento, na perspectiva da
autonomia no processo de aprender a aprender,
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.259-62, jan/jun 2006
TESES
sendo considerado como aquele que instiga o
aluno a refletir sobre a realidade, orientando e
auxiliando em suas atividades e dificuldades. O
processo de avaliação deve ser contínuo e
formativo, no entanto, manteve-se no geral
uma concepção e prática tradicional, sendo
realizada por vezes de forma burocratizada, sem
significado e finalidade processual para alunos e
professores.
Mara Quaglio Chirelli
Tese (Doutorado), 2002
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo
<[email protected]>
Texto completo:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/83/
83131/tde-24052006-154515/>
Periódicos na comunicação
científica: produção e difusão de
periódicos e panorama dos veículos
brasileiros da área de Comunicação na
base Qualis
Journals in scientific communication:
production and dissemination of scientific and
technical journals and panorama of the
brazilian communication titles classified in
2001-2003 Qualis-Capes lists of journals
Os periódicos científicos e técnico-científicos
constituem um dos principais veículos da
comunicação formal entre pesquisadores,
desempenhando inúmeras funções dentro do
universo social de produção da ciência, desde a
disseminação de informações à legitimação e
consagração de pesquisas e pesquisadores. Por
conta disso, a produção e a disseminação dessas
publicações encontram-se estreitamente
relacionadas com as atividades de pesquisa que
caracterizam e diferenciam áreas de
conhecimento e disciplinas. Este trabalho é um
estudo teórico-descritivo sobre a produção e a
difusão dos periódicos no Brasil e no mundo
contemporâneos e contém pesquisa exploratória
sobre os títulos brasileiros dedicados a temáticas
de comunicação listados na base Qualis-CAPES
nos anos de 2001 a 2003.
Carolina Guimarães de Souza Dias,
Dissertação (Mestrado), 2006
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Cultura, Escola de Comunicação, Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
<[email protected]>
PALAVRAS-CHAVE: educação. educação em enfermagem.
currículo.
KEY WORDS: education. education nursing. curriculum.
PALABRAS CLAVE: educación. educación en enfermería.
currículo.
Recebido em: 18/04/06. Aprovado em: 27/04/06.
PALAVRAS-CHAVE: comunicação científica. periódicos.
produção editorial.
KEY WORDS: scientific communication. journals. editing.
PALABRAS CLAVE: comunicación cientifica. periodicos.
produción editorial.
Recebido em: 30/03/06. Aprovado em: 17/04/06.
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.259-62, jan/jun 2006
261
TESES
A saúde mental no P
rogr
ama de S
aúde da F
amília:
Progr
rograma
Saúde
Família:
estudo sobre práticas e significações de uma equipe
The mental health on Family Health Program: a study about practices and meanings
of a health team work
O Programa de Saúde da Família (PSF) tem
se colocado como a principal estratégia para
viabilizar a atenção primária à saúde, pela
proposta de mudança na racionalidade da
assistência, com base em um processo de
trabalho em equipe multiprofissional em que
são centrais a vigilância à saúde, integralidade
das práticas, hierarquização, territorialização
e adscrição da clientela. Tais princípios
operativos, organizativos e conceituais que
orientam o PSF encontram ressonâncias
importantes na reforma psiquiátrica
brasileira, processo que tem enfatizado que os
cuidados em saúde mental são mais
resolutivos quando conta-se com estratégias
que possibilitem a integralidade,
continuidade da atenção e responsabilidade de
uma equipe de saúde. Inicialmente, procurase evidenciar as formas pelas quais se
desenvolveram as concepções de comunidade
em torno de alguns dos principais
movimentos de reforma sanitária e sua
influência na definição das diretrizes
históricas de Atenção Primária à Saúde, base
do PSF. A seguir, discute-se o movimento
brasileiro de reforma psiquiátrica e as
questões colocadas para as transformações na
atenção à saúde mental nos marcos da
desinstitucionalização, com ênfase na
descrição e análise de experiências que visam à
articulação das equipes de saúde da família
aos modelos substitutivos em saúde mental.
Finalmente, apresenta-se um estudo empírico,
parte do desenvolvimento de uma pesquisa
participante, que analisa entrevistas
realizadas com uma equipe de saúde da
família, no qual se procurou investigar como
são subjetivamente significadas, por esta
equipe em particular, a produção de cuidados
em saúde mental da população atendida.
Observou-se que o enfrentamento cotidiano
das dificuldades sócio-econômicas da
população atendida implica uma percepção
ampliada do processo saúde-doença, em que a
própria abertura para outros recursos para
além do enquadre clínico da consulta
possibilitada pela forma de organização do
trabalho no PSF contribui positivamente. A
consciência das inúmeras necessidades que a
população atendida vivencia é também uma
fonte de sofrimento para os profissionais, o
que fica evidente quando, nas entrevistas, se
referem à saúde mental da própria equipe.
Este processo impõe aos profissionais a
necessidade de instrumentalização em torno
de habilidades e competências para o cuidado
em saúde na direção da ampliação do núcleo
biomédico de determinação do processo saúdedoença. Notaram-se também dificuldades
quanto à abordagem da família enquanto
unidade de cuidado, tanto em relação à
atenção à saúde mental quanto de uma forma
geral. O acolhimento como recurso terapêutico
e o vínculo e a continuidade da atenção
enquanto possibilidades de ruptura com a
exclusividade do núcleo biomédico na
determinação do processo saúde-doença foram
questões centrais identificadas nas entrevistas
realizadas. Finalmente, observou-se que a
implementação relativamente recente do PSF
no município é uma mediação importante para
que dificuldades significativas relacionadas
com o acesso, universalização e integralidade
das estratégias de atenção à saúde estejam
presentes.
Marcelo Dalla Vecchia
Dissertação de Mestrado, 2006.
Universidade Estadual Paulista, Faculdade de
Medicina de Botucatu, Programa de Pós-Graduação
em Saúde Coletiva. <[email protected]>
PALAVRAS-CHAVE: cuidados primários de saúde. programa
saúde da família. saúde mental.
KEY WORDS: primary health care. family health program.
mental health.
PALABRAS CLAVE: atención primaria a la salud. programa
salud de la familia. salud mental.
Recebido em: 29/03/06. Aprovado em: 07/04/06.
262
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.259-62, jan/jun 2006
criação
Pêlos
Pelos
for
a da or
dem*
fora
ordem*
Entre junho de 2001 e junho de 2002
realizei este trabalho em que, diariamente,
me auto-retratava. Das quase 365
fotografias reveladas, selecionei uma dúzia
que mostram, como um zapping, parte do
processo vivido na época em que meu
interesse estava voltado para a pesquisa
sobre as identidades híbridas no caso
terapeuta - usuários de serviço de saúde/
arte – terapia ocupacional. Todas as
fotografias são analógicas, tendo sido
usados filmes 35mm ou advantix. Como
proposta raspei cabelo, barba e bigode e
acompanhei a diferença na mesmice do
sutil crescimento/produção cotidiano dos
pêlos. Para as pessoas fora da ordem
dedico este trabalho.
*André Nunes, Terapeuta plástico/artista ocupacional, formado em Terapia Ocupacional pela Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo (FMUSP), com especialização em práxis artísticas e terapêuticas, realizada no Curso Práxis Artísticas e Terapêuticas –
Interface Arte e saúde, ministrado pelo Laboratório de Estudos Arte e Corpo do Departamento de Terapia Ocupacional da USP, em
2002. <[email protected]>
Rua Bassin Nagib Trabulsi, 50, apto. 115
Ponta da Praia - Santos, SP
Brasil - 11.030-540
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.18, p.263-6, jan/jun 2006
263
CRIAÇÃO
“Perceber o ser humano não como uma figura
indesfigurável, nem como um intérprete, mas
como uma interrogação: tal atitude fecunda
um interesse fortíssimo pelo outro. Um
interesse pelo outro que, quanto mais nos
aproxima de suas singularidades, mais nos
reenvia para todos os outros seres do mundo.
Como se todos os seres fossem esfinges. No
lugar de ser monumento de museu, objeto de
fascinação, fotografia, suvenir, ou um estado
de eternidade confiscado por um pai-todopoderoso, a esfinge seria apresentada no
corpo de cada ser.
Todos os seres que nos cercam (e mesmo as
coisas) são esfinges; mas com os ardis da
sutileza eles não nos revelam os seus
enigmas, assim como nós, por delicadeza, não
os deciframos. Apenas não os deixamos
morrer.”
Sant’Anna, D. B. Corpos de passagem.
São Paulo: Ed. Estação liberdade, 2001. p.127.
Recebido em: 10/05/06. Aprovado em: 22/05/06.
264
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.263-6, jan/jun 2006
CRIAÇÃO
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.263-6, jan/jun 2006
265
CRIAÇÃO
gosto à beça
esse coração
na tua cabeça
Alice Ruiz
266
Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.10, n.19, p.263-6, jan/jun 2006
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