Entrevista com Volney José Berkenbrock
Volney José Berkenbrock é doutor em Teologia, professor do programa de pósgraduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas
Gerais, e do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, Rio de Janeiro.
Quem foi São Francisco de Assis?
A figura hoje conhecida por São Francisco de Assis viveu na Idade Média. Não se sabe
ao certo se nasceu no ano de 1181 ou no ano de 1182. É certo, no entanto, que nasceu
na pequena cidade italiana de Assis, no Vale da Úmbria, no seio da família Bernardone.
Sua mãe teria dado ao menino no nascimento o nome de João (Giovanne). Seu pai, um
comerciante de tecidos, estaria em viagem de negócios à França quando do seu
nascimento. Ao voltar, resolveu chamar o menino de Francesco, segundo a tradição,
em homenagem à França. E com este nome ele cresce e se torna conhecido.
A sociedade em que cresce Francisco vive em profundas tensões e guerras. Por um
lado, as grandes tensões entre cristãos e muçulmanos, que viviam em guerras (as
chamadas Cruzadas); as tensões entre os senhores feudais e a burguesia nascente que
gerava muitas batalhas e guerras pelo controle de cidades e regiões; as tensões
políticas, sobretudo numa época em que o poder do papado ameaçava os poderes dos
reis; as tensões econômicas, em que o acúmulo de terras (pela Igreja e pelos senhores
feudais) gerava uma grande maioria de empobrecidos vivendo à margem; por outro
lado, as tensões entre os diversos ideais de vida: a busca dos ideais da nobreza e seus
títulos, a busca dos ideais da burguesia e seus anseios por liberdade, a busca por ideais
de vida religiosa cristã (em que facilmente propostas novas de vida eram consideradas
hereges e sofriam repressão).
Francisco vive pessoalmente boa parte dessas tensões: participou da guerra ao lado
dos burgueses de Assis contra os nobres (guerra na qual foi derrotado, passou um ano
na prisão até ter sua liberdade comprada pelo pai); partiu para a guerra das cruzadas,
mas desistiu no meio do caminho ao ter uma visão; conhece de perto as tensões
econômicas, justamente por ser de uma família que enriquecia com o comércio de
tecidos, e vê que boa parte da população não consegue comprar as roupas que seu pai
comercializava. Ao redor da cidade de Assis viviam leprosos, alijados da sociedade por
conta da doença. Francisco tem contato com essas pessoas e esse contato faz com que
o jovem comece a repensar sua vida. Por que lutar por títulos? Por que lutar por
posses? Por que almejar ser Senhor? Diz a tradição que Francisco teria começado a
distribuir tecidos da loja de seu pai aos pobres, sobretudo aos leprosos. Seu pai,
furioso com a atitude do filho, pede que o bispo chame sua atenção em público, para
que devolva os seus pertences. Isso teria ocorrido no início do ano de 1206. Diante do
bispo de Assis, da sua família e certamente de um grande número de pessoas,
Francisco devolve tudo o que pode ao seu pai, tirando inclusive sua própria roupa,
ficando nu diante de todos. A partir dali muda completamente de vida, indo cuidar dos
leprosos fora dos muros da cidade, morando numa igrejinha (Igreja de São Damião)
que ele mesmo restaura, pois estava em ruínas, vestindo uma simples túnica amarrada
com um cordão na cintura. Tido por muitos como um louco, Francisco experimenta
uma vida de total liberdade e alegria: nada tem, é igual aos pobres com quem convive,
não precisa brigar por nada, não almeja título nenhum, sente-se irmão de tudo e de
todos, e com isso é totalmente livre. Como homem de profunda fé, Francisco entende
que assim está vivendo como Jesus, que viveu como pobre, despojado de tudo. Vive de
maneira pobre, sente-se irmão de todos e passa a anunciar Jesus Cristo, que viveu e
morreu pobre. Cerca de dois anos após ter adotado esse novo modo de vida, diversos
de seus antigos amigos de juventude entendem que Francisco não está louco, mas sim
vivendo profundamente seu ideal cristão: uma vida de pobreza, de humildade, de
serviço, de paz, de fraternidade. E isso os leva a também abandonar seus modos de
vida e juntarem-se a Francisco. Um ano depois, já são onze os companheiros nessa
nova forma de vida. Com receio de que o grupo pudesse ser tido como herege,
Francisco escreve uma pequena regra de vida e vai a Roma com seus onze
companheiros pedir a aprovação do papa Inocêncio III. O grupo chama-se a si mesmo
de irmãos (frades) menores, e a forma de vida era simples: “A regra de vida dos frades
menores é esta: observar o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Isso foi no
ano de 1209, ano da fundação da chamada “Ordem Franciscana”, cujo nome oficial é
até hoje “Ordem dos Frades Menores”. Assim queria Francisco, que todos fossem
irmãos, se entendessem e vivessem como menores, isto é, não querendo buscar ser
maior que ninguém. Em poucos anos são centenas, milhares de pessoas que deixam
tudo para abraçar essa forma de vida vivida pelo grupo de Francisco. Formam-se
comunidades de frades menores na Itália, França, Alemanha, Hungria, Espanha,
Marrocos, Síria etc. Quando por um lado a Igreja continuava em suas guerras contra os
muçulmanos, Francisco quer viver uma proposta de irmãos em paz. No ano de 1219,
inclusive, em pleno tempo de batalhas da V Cruzada (1217-1221), Francisco e um
confrade vão ao encontro do sultão do Egito Malek-el-Kamel. São por este recebido e
inicia-se ali uma amizade entre franciscanos e muçulmanos que dura até os dias de
hoje. No natal do ano de 1223, Francisco faz um presépio para recordar que o próprio
Deus nasceu de maneira simples e pobre, em meio a animais. E conta-se que daí vem o
costume de se fazer presépios na tradição cristã. Francisco foi um homem de estatura
baixa, e desde o tempo que passou na prisão teve uma saúde muito frágil. Mesmo em
situação de saúde frágil, Francisco não vai abandonar seu modo pobre de vida. Aliás,
vai chamar a pobreza de dama, ou seja, a sua companheira de vida. Ao lado da vida em
pobreza e simplicidade, Francisco vai ser marcado pela experiência da fraternura, ou
seja, de viver com ternura em fraternidade com toda a criação. Francisco entende e
sente que todos os animais, todas as plantas, toda a natureza é – como o ser humano –
criatura de Deus. E assim todos são radicalmente irmãos. Viveu isso profundamente.
Nesse sentimento, Francisco compõe uma bela poesia, o chamado “Cântico das
Criaturas”, em que faz louvores a Deus através das criaturas às quais chama de irmã e
irmão: o irmão sol, a irmã lua, o irmão vento, a irmã água, o irmão fogo. Sentindo-se já
muito debilitado, Francisco vai sentir-se cada vez mais ligado à terra, a quem chama de
“irmã e mãe terra”. Sentido aproximar-se o momento da morte, Francisco pede que
seja despido e posto nu, na terra nua. Compõe então a última estrofe da poesia:
“Louvado seja, meu Senhor, pela irmã nossa, a morte corporal, da qual nenhum
homem vivente pode escapar”. E morre cantando salmos, na tarde do dia 3 de outubro
de 1226.
Por que São Francisco de Assis é um santo tão popular? O que o diferencia dos
outros?
É muito difícil pensar o que diferencia um santo dos outros, pois cada qual tem as suas
características. Mas creio que Francisco deve grande parte de sua popularidade ao fato
de ter vivido muitos ideais que são profundamente humanos, por ter encarnado
virtudes que boa parte dos seres humanos gostaria de viver. Vejamos alguns desses
ideais:
a) A coragem de romper com tudo para viver radicalmente os nossos ideais. Quando
Francisco entrega tudo a seu pai, inclusive a roupa do próprio corpo, para viver seu
ideal, penso que ele encarna um pouco algo que todos gostaríamos de fazer: ter a
coragem de romper com um monte de coisas que vivemos por conveniência e viver
radicalmente nossos ideais. Mesmo não tendo feito essa ruptura, todos nós, de certa
maneira, alimentamos esse desejo de um dia sermos totalmente fiéis aos nossos
ideais;
b) A vida em liberdade total. Francisco, ao escolher a vida em pobreza, não está
escolhendo uma vida em miséria, uma vida de não ter nada, uma vida de privações.
Está, sim, escolhendo uma vida de liberdade total. Não ter posse nenhuma é não estar
preso a nada. E quem consegue uma vida assim, experimenta a total liberdade.
c) Viver aquilo em que acreditamos. Outro ponto que faz de Francisco um santo muito
admirado foi o fato de ter vivido aquilo em que acreditou. Em Francisco não há
dicotomia entre fé e vida. Ele vive o que acredita. E isso é sumamente admirável, pois
no mais das vezes isso causa sofrimento ao ser humano: não poder viver plenamente
aquilo em que acredita;
d) O homem da paz. Francisco tinha uma saudação e que se tornou a saudação da
tradição franciscana: Paz e Bem! Não se tem notícia de Francisco, depois de sua opção
radical, ter vivido em divergência com quem quer que seja. Viveu em paz: paz consigo
mesmo, paz com todas as pessoas, paz com os animais, paz com a natureza. Viver em
paz é ter a capacidade de viver integrado. Eis aí outro grande desejo que nos
acompanha.
e) A vida em simplicidade. Francisco foi um homem simples. Esse é outro fator que o
leva a ser profundamente admirado. Vai aqui um reconhecimento de que vivemos
muitas vezes de forma complicada: complicamos nossa vida e a dos outros. Viver de
forma simples é e permanece sendo um grande desejo de cada ser humano.
f) Viver como irmão, e menor. Boa parte dos sofrimentos humanos tem como origem o
desejo: desejo de se destacar, de ter alguma posição, de superar os outros. Francisco
reconhece muito cedo essa fonte de sofrimento e vive como irmão. E não um irmão
mais velho, mas sim o irmão menor. E quer que todos os seus companheiros se
chamem de irmãos menores. E não só entre os seres humanos. Francisco também se
sente e vive como irmão de toda a natureza. Em nosso tempo, cerca de 800 anos após
a vida de Francisco, se está buscando justamente uma forma de convivência com toda
a natureza, que não a agrida, que seja equilibrada. Não é sem razão que Francisco foi
proclamado o patrono da Ecologia.
g) O homem profundamente humano. E talvez uma das características mais marcantes
de Francisco foi o homem profundamente humano em seu modo de ser. Francisco vai
ao encontro, Francisco dialoga, Francisco é um homem sensível, Francisco é um
homem pacífico. Viver simplesmente humanamente: isso conseguiu fazer Francisco e
nos deixa cheios de admiração. Talvez justamente por isso, uma pesquisa da revista
americana “Time” no ano de 1999, sobre quem teria sido o “homem do milênio”,
apontou o nome de Francisco de Assis em primeiro lugar.
O papa adotou o nome Francisco quando se tornou líder da Igreja Católica. Qual é o
significado dessa atitude?
Não podemos saber todos os motivos pelos quais o cardeal argentino Jorge Mario
Bergoglio adotou o nome de Francisco ao ter sido eleito papa. Seria muita pretensão
querer dizer o que ele teria pensado. Então, aqui só podemos fazer conjecturas e – de
certa forma – expressar desejos. Mas muitas atitudes que estão sendo tomadas pelo
papa Francisco lembram a figura de Francisco de Assis. Duas são as características que
talvez mais se tenham destacado até agora nos gestos e atitude do papa Francisco: a
pobreza e a simplicidade. Com os séculos, tínhamos nos acostumados a ver a figura do
papa sempre envolva em pompa. Não necessariamente por desejo próprio, mas por
uma espécie de cerimonial do cargo. De repente vem um papa que age de maneira
simples: vai de ônibus, dispensa carros blindados, fala coisas que todos entendem, tem
a simplicidade no olhar. Outra atitude do papa Francisco tem sido a questão da
pobreza: não apenas gestos de pobreza em sua vida pessoal como pontífice (desde a
dispensa do trono papal, da cruz de ouro e da moradia no palácio), mas sobretudo sua
insistência de que a Igreja tem como missão estar ao lado dos pobres, das suas
necessidades, de que deve ter sensibilidade por eles. Com isso, o papa Francisco tem
despertado fortemente a esperança de que a escolha deste nome não é apenas um
acaso ou um marketing, mas vai significar de fato uma mudança no modo de ação e de
vida da Igreja, como Francisco de Assis o foi em seu tempo: uma igreja que chama os
cristãos a uma vida mais simples, mais pobre, mais corajosa, mais fraterna.
Download

Entrevista com Volney José Berkenbrock