Rompendo Tabu e Silêncio Organizacionais? Estratégias Discursivas da Igreja Católica
a respeito da Homossexualidade
Autoria: Jacquelaine Florindo Borges, Míriam de Castro Possas, Nicemara Cardoso Silva,
Ricardo de Sena Abrahão
RESUMO
Nós analisamos estratégias discursivas da Igreja Católica em relação à homossexualidade, no
momento em que um novo Papa assume o papel de representante dessa instituição. Utilizamos
o método de análise de conteúdo no estudo de material publicado pela Santa Sé e em jornais e
revistas, e o método de análise de discurso, para análise comparativa de discursos do Papa
Bento XVI e do Papa Francisco. Os resultados mostram três estratégias no discurso do
antecessor e do sucessor: modos de agir, representar e identificar, e mostram as diferenças e
semelhanças da presença de tabus e silêncios organizacionais em ambos os discursos.
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1 − INTRODUÇÃO
Na última década, Igreja Católica passa a enfrentar uma crise de grandes proporções e que
coloca em risco o seu futuro. A perda de fiéis em países historicamente católicos, o
crescimento de religiões evangélicas (UOL NOTÍCIAS, 2013), juntamente com as
repercussões de escândalos financeiros e de pedofilia (GIBNEY, 2012). Especificamente
sobre a relação entre religião e a homossexualidade, algumas mudanças estão em curso:
legalização do casamento homossexual (uniões homoafetivas) em diferentes países, o
movimento LGBTs e sua luta por cidadania e em defesa da diversidade sexual, e as ações de
organizações governamentais e não governamentais as quais exigem que essa questão seja
considerada no âmbito da política internacional, da igualdade e dos direitos humanos.
Em 2013, a renúncia do Papa Bento XVI (Joseph Ratzinger) e a eleição do Papa Francisco
aumentaram as especulações sobre possíveis mudanças nas estratégias dessa organização:
foco maior no papel evangelizador da Igreja Católica, rompimento do silêncio da igreja em
relação a temas tratados como tabu e menor rigidez no trato de questões relacionadas ao
comportamento social.
Os estudos sobre tabu são oriundos de pesquisas sobre cultura organizacional, com forte
influência de pesquisas no campo da antropologia. Tais estudos mostram como tabu molda o
comportamento e influencia a tomada de decisões na organização. Os estudos sobre silêncio
organizacional privilegiam a pesquisa no nível dos indivíduos ou daquele que silencia sua
opinião, seu conhecimento ou sua avaliação relativos a problemas sobre o trabalho nas
organizações. Esses estudos mostram os impactos do silêncio organizacional sobre a
aprendizagem, o desenvolvimento e a mudança organizacionais, sobre os gestores e a tomada
de decisão e os possíveis relacionamentos entre silêncio organizacional e práticas ilegais e não
éticas.
Para refletir sobre e analisar a relação entre tabus, silêncio organizacional e estratégia, nós
estudamos as ações de uma das mais antigas e tradicionais instituições sociais, a Igreja
Católica Romana. Essa organização assumiu posicionamentos controversos em relação a
diversos assuntos, ao longo de sua história. Isso lhe rendeu acusações por omissão,
conivência, ambiguidade e silêncio organizacional. Neste artigo, nós analisamos de que modo
essa organização se propõe a romper com o silêncio em relação a um assunto tratado como
um tabu organizacional: a homossexualidade. O nosso objetivo é refletir sobre as
possibilidades de diálogo entre os estudos sobre tabu e silêncio organizacionais. E, para isso,
nós analisamos as ações da Igreja Católica em relação à homossexualidade, no momento em
que um novo Papa assume o papel de principal representante dessa instituição. O método de
análise de conteúdo é utilizado para a pesquisa de documentos publicados no website da Santa
Sé e de reportagens de jornais e revistas nacionais e internacionais. O método de análise de
discurso é aplicado em uma análise comparativa dos discursos do Papa Bento XVI e do Papa
Francisco.
Além dessa primeira seção de introdução, o artigo está estruturado em outras quatro seções. O
referencial teórico tem duas seções: a primeira trata da relação dos tabus e do silêncio
organizacionais com a tomada de decisão, e, a segunda seção trata da estratégia como discurso
e o tema da homossexualidade na igreja católica. Na seção dos procedimentos metodológicos
são apresentados os procedimentos adotados na coleta e análise dos dados. Na seção seguinte
são apresentados e analisados os resultados. E, uma seção de conclusão encerra o artigo.
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2 − REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 Tabu e silêncio organizacional
Dentre os diversos elementos que caracterizam a cultura organizacional, destacaremos os
estudos sobre tabu. A ideia de cultura organizacional é utilizada como um conceito “guardachuva” que, de acordo com Alvesson (2007), pode ser concebido como um conceito mais
amplo para incluir os diferentes usos de valores, símbolos, regras, padrões de comportamento,
entre outros, que são compartilhados coletivamente por um grupo de pessoas. A cultura
organizacional, quando concebida como um sistema coeso, é vista como fonte de resistência a
mudanças, pois a mudança significa modificar normas e crenças compartilhadas pelos
membros da organização (SMITH; GRAETZ, 2011).
Os estudos sobre sociedades primitivas ou tradicionais, no campo da Antropologia, mostraram
que os tabus, juntamente com as cerimônias, os mitos, os rituais, a língua, o artesanato e
outros, compõem os sistemas simbólicos desenvolvidos por essas sociedades. Para a
antropologia simbólica, esses sistemas fundam "uma ordem cósmica e social"
(LAPLANTINE, 1997, p. 113). Os tabus se referem a imposições (mistério) cuja lógica não
cabe questionar (HOEBEL; FROST, 1981). Eles orientam pensamentos, atitudes,
comportamentos e decisões que não são desejáveis. O fato de ter uma conotação negativa, não
implica que todo tabu é ruim, pois ele pode servir a fins honestos. E, sua essência não é a
proibição, mas algo que deve ser temido. Na prática, os tabus assumem o papel de normas que
devem ser seguidas, caso contrário o infrator sofrerá as consequências e poderá colocar não
apenas a si mesmo, mas os demais membros do grupo em perigo. O tabu desempenha funções
de reforço de atitudes (associado ao temor e ao castigo), estabelece um espírito de grupo
(associado a comportamentos e decisões de solidariedade que fortalecem o grupo e o
distingue de outros grupos) e constitui um elemento de sociabilidade.
A cultura é composta de elementos que se desenvolvem num processo contínuo e cíclico. Esse
processo é conhecido como socialização (LARAIA, 2009). A relação entre cultura e religião é
assim analisada por Geertz (2008, p. 93):
Na discussão antropológica recente, os aspectos morais (e estéticos)
de uma dada cultura, os elementos valorativos, foram resumidos sob o
termo "ethos", enquanto os aspectos cognitivos, existenciais foram
designados pelo termo "visão de mundo". [...] Essa demonstração de
uma relação significativa entre os valores que o povo conserva e a
ordem geral da existência dentro da qual ele se encontra é um
elemento essencial em todas as religiões, como quer que esses valores
ou essa ordem sejam concebidas. O que quer que a religião possa ser
além disso, ela é, em parte, uma tentativa (de uma espécie implícita e
diretamente sentida, em vez de explícita e conscientemente pensada)
de conservar a provisão de significados gerais em termos dos quais
cada indivíduo interpreta sua experiência e organiza sua conduta.
Também existe uma ordem simbólica secular nas sociedades modernas (GUSFIELD;
MICHALOWITZ, 1984), conforme mostram os estudos sobre as instituições políticas,
jurídicas e de controle social; estudos sobre eventos e cerimônias na área dos esportes e
festivais; estudos sobre a vida cotidiana e o consumo de bens e alimentos e a cultura popular.
Antropólogos e sociólogos pesquisam os diferentes níveis simbólicos dos significados em
áreas relacionadas com a busca das pessoas pelo poder, por valores econômicos e por metas
organizacionais. Os objetos dessa cultura moderna não são vistos como coisas, mas como
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relações, ou seja, esses estudos não distinguem estrutura simbólica (arte e religião) de
estrutura concreta (economia e política), ou de outro modo, eles buscam as relações entre
simbólico e não simbólico.
Os estudos sobre o silêncio nas organizações mostram os indivíduos e suas escolhas entre
falar ou silenciar. Milliken e Morrison (2003) avaliam que os indivíduos optam pelo silêncio a
respeito de questões, situações e problemas que são de seu interesse em organizações nas
quais as chefias não querem ouvir aquilo que diz respeito a problemas e punem aquelas
pessoas que falam ou quebram o silêncio; e, em organizações em que as normas não são
claras e explícitas sobre o que e o quanto é desejável que se discutam os problemas, ou, não
são explícitos os mecanismos para transferência de informação sobre problemas.
A ênfase desses estudos tem sido nos impactos da escolha dos indivíduos em se silenciarem
sobre a incidência de práticas não éticas e ilegais, sobre os impactos do silêncio sobre a
aprendizagem organizacional e a mudança organizacional e os efeitos sobre os indivíduos que
tomam decisões. Se falar é um risco, calar-se tem consequências para a vida das pessoas.
Esses estudos analisam o silêncio no grupo de trabalho (EDMONDSON, 2003) e o silêncio na
relação entre chefias e subordinados (MILLIKEN; MORRISON, 2003; MILLIKEN;
MORRISON; HEWLIN, 2003). A Psicologia oferece suporte para os estudos que relacionam
o silêncio e o silenciado na organização e os impactos sobre aprendizagem, gestão do
conhecimento e mudança organizacional (BLACKMAN; SADLER-SMITH, 2009). O
engajamento dos empregados em silenciar suas opiniões, ideias e informações a respeito de
problemas e situações do trabalho nas organizações não é precisamente o oposto de expressálas, conforme pressupõe uma abordagem comportamentalista. Para explicar essa afirmação,
Dyne, Ang e Botero (2003) desenvolvem uma abordagem compreensiva sobre as vozes e os
silêncios organizacionais e mostram que esses são construtos multidimensionais. Eles
identificaram três tipos de silêncio (aquiescente, defensivo e pró social) e três tipos de vozes
(aquiescente, defensiva e pró social).
2.2 − Estratégia discursiva da Igreja católica em relação à homossexualidade
O discurso é tratado, em parte da obra de Foucault, como um sistema de representação, um
grupo de instruções que fornecem uma forma de representação do conhecimento sobre
determinado assunto, em um momento histórico particular, ou seja, “é a produção de
conhecimento através da linguagem” (HALL, 2001, p. 72). O discurso é controlado e
delimitado de diversas formas, e, sejam elas externas ou internas, os procedimentos são
responsáveis por controlar, selecionar e organizar a produção do discurso na sociedade
(FOUCAULT, 1996). Externamente, três tipos de interdição do discurso “se cruzam, se
reforçam ou se compensam” (FOUCAULT, 1996, p. 9), funcionando como sistemas de
exclusão: “tabu do objeto”, “ritual da circunstância” e “direito privilegiado ou exclusivo do
sujeito que fala”.
Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo [tabu do objeto],
que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância [ritual da
circunstância], que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer
coisa [direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala]
(FOUCAULT, 1996, p. 9).
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Por meio do discurso há a produção de conhecimento que molda nossa prática cotidiana, pois
é o discurso em si, através da linguagem, que produz o saber e não as coisas e sua
materialidade (HALL, 2001). Esse saber se modifica de cultura para cultura e se localiza em
determinado período histórico, pois o saber não é algo objetivo, imutável, cada período
produz uma forma de conhecimento e de discurso que o acompanha, tornando determinado
construto inteligível (HALL, 2001).
Uma das correntes sobre a estratégia organizacional, que se desenvolveram ao longo do
tempo, é o conceito de prática discursiva. Contrariamente, à concepção de estratégia adotada
pelo mainstream da administração, a estratégia como prática discursiva tem como objetivo
entender como o discurso é produtor de sentido dentro do cotidiano organizacional
(EZZAMEL e WILLMOTT, 2008). Essa concepção da estratégia entende o discurso como
instrumento de poder, que produz realidade, molda subjetividades, definindo uma perspectiva
legítima e criando resistência.
O discurso se apresenta como instrumento de poder, pois não é autônomo (ROULEAU,
1995), e se transforma em recurso disciplinar, ou seja, mecanismo de poder que tem efeito de
verdade, tornam-se parte da identidade dos gestores que incorporam os discursos estratégicos
(KNIGHTS; MORGAN, 1991). O discurso opera no intento de trazer estabilidade à
organização, pois confere sentido e existência às coisas, produz realidade (EZZAMEL;
WILLMOTT, 2008) e molda subjetividades, pois é nela o poder do discurso é exercido
(KNIGHTS; MORGAN, 1991). Enquanto um das formas de administrar a mudança, o
discurso opera sobre material resistente, ou seja, sobre comportamentos e pressupostos já
consolidados, e, por isso, mudanças podem gerar oposições e resistências (EZZAMEL;
WILLMOTT, 2008).
Desta perspectiva, a estratégia é entendida como uma série de discursos que, ao serem
proferidos pela alta gestão, são recebidos pela organização e incorporados por seus membros.
Assim, a estratégia define a perspectiva legítima, pois o discurso determina o que é válido ou
não, o que é permitido ou não (KNIGHTS; MORGAN, 1991). E, consequentemente, gera
resistência, pois cada indivíduo ou grupo tem suas próprias crenças e normas (EZZAMEL;
WILLMOTT, 2008). Isso ocorre porque os indivíduos se veem guiados pelo discurso inicial
que está vinculado à estratégia organizacional (KNIGHTS; MORGAN, 1991) e que se
chocam com os interesses individuais, criando resistências. A entrada de um novo
representante em uma organização vem acompanhada de uma estratégia e de discursos novos
que são apresentados como um novo regime a ser seguido (EZZAMEL ; WILLMOTT, 2008).
Em 2013, a Igreja católica romana, uma das instituições mais antigas e tradicionais, passou
por mudança com a renúncia de seu principal representante, o Papa Bento XVI, em um
período no qual graves problemas afetavam o futuro dessa instituição. Na ampla cobertura da
mídia, muito se especulou e muitos especialistas defendiam a necessidade de que o sucessor
fosse alguém que pudesse promover mudanças reais em diversas frentes. Uma dessas frentes é
a questão da homossexualidade e o tratamento dado pela igreja ao assunto que não se resume
mais em uma posição teológica. Não apenas a homossexualidade, mas a sexualidade em
sentido mais amplo, torna-se uma questão tratada em ações de governos e países, de
organizações intergovernamentais (Organizações das Nações Unidas) e de organizações não
governamentais e movimentos sociais (movimento LGBT). As questões de sexualidade,
aborto, procedimentos contraceptivos, homossexualidade, diversidade de gêneros passam a
ser tratadas como questões de cidadania, diversidade sexual, direito à igualdade e respeito aos
direitos humanos.
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Estudos sobre religião e a relação entre essa e o nosso modo de ser e estar no mundo, não são
recentes (BAUMAN, 1998). Especificamente em relação ao discurso da Igreja católica e a
maneira como as práticas estratégicas discursivas representam a figura do “homossexual”.
Mesmo que práticas homossexuais sempre tenham existido, o sujeito social que o personifica
– que apresenta comportamentos homossexuais – é produto de um momento histórico, tendo
como característica a regulação dos desejos sexuais e o aparato de instituições, presentes no
século XIX, na sociedade ocidental, que possibilitaram, com o auxílio de seu discurso, a sua
aparição (HALL, 2001).
A Igreja, ao evidenciar uma doutrina a certa enunciação, une os indivíduos que a seguem
proibindo, concomitantemente, a aceitação de todas as outras (FOUCAULT, 1996). E, desse
modo, ela utiliza essas enunciações para reforçar as ligações entre esses indivíduos e, ao
mesmo, tempo para diferenciá-los dos outros que não se sujeitaram a determinado discurso
(FOUCAULT, 1996). E, assim, influenciam a forma como essas ideias são colocadas em
prática, pois elas possuem caráter regulador de condutas (HALL, 2001). Todos esses
construtos pertencem a um determinado momento histórico e não sobrevivem fora dele, pois
não conseguem existir e fazer sentido sem que haja o discurso que os criou e os mantém e as
técnicas disciplinares de determinado contexto social (HALL, 2001).
Em uma igreja em que a homossexualidade é vista como uma abominação e as questões sobre
o assunto são silenciadas, não há espaço para as vozes de gays e lésbicas cristãos. A solução
encontrada por alguns gays cristãos foi criar a própria igreja: Igreja Cristã contemporânea (TV
UOL, 2013). O fundamentalismo cristão (RODRIGUEZ, 2010) resulta em sofrimento e
atitudes negativas para a vida dessas pessoas: medo de ir para o inferno, depressão, baixa
autoestima, sentimentos de não ser digno de merecimento (BARTON, 2010). Várias igrejas
ensinam que o comportamento ser gay ou lésbica é um pecado, o que produziu historicamente
o conflito entre o cristianismo e a homossexualidade (SUBHI; GEELAN, 2012). Esse conflito
afeta os homossexuais (depressão, ansiedade, ideia de suicídio, alienação, dificuldades em se
relacionar sexualmente), mas, recentemente o que vem sendo discutido é que esse conflito
afeta também a igreja, e é essa organização que é acusada agora de cometer pecado da
discriminação. Além disso, rever sua posição sobre a homossexualidade pode significar
(re)considerar as práticas de vida monástica, papel das mulheres no sacerdócio, conceito de
família assentado na relação heterossexual.
3 − ASPECTOS METODOLÓGICOS
Com o objetivo geral de refletir e analisar a relação entre tabus, silêncio organizacional e
estratégia, nós analisamos de que modo a igreja católica se propõe a romper com o silêncio
em relação a um assunto tratado como um tabu organizacional: a homossexualidade. Nós
conduzimos a análise no momento em que um novo Papa assume o papel de principal
representante dessa instituição.
Nesta pesquisa utilizamos a abordagem qualitativa dos dados, a qual aplica-se em virtude da
“natureza do problema que se quer estudar” (GODOY, 1995, p 7), pois não se trata de dados
quantificáveis. Em relação à abordagem epistemológica, essa pesquisa orienta-se por
elementos do estruturalismo radical e do humanismo crítico (BURRELL; MORGAN, 2011),
que estudam as estratégias discursivas como forma de estabelecer e manter poder. Além de
pesquisas sobre a estratégia como discurso, nós utilizamos o suporte teórico de estudos sobre
tabu e silêncio organizacionais.
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Na coleta de dados, nós empregamos o método de análise de conteúdo, utilizado para a
pesquisa de documentos publicados no website da Santa Sé e de reportagens de jornais e
revistas. A técnica da análise de conteúdo, de acordo com Bardin (2011), pode ser organizada
em três fases: pré-análise, com a organização do material; exploração, fase na qual se definem
categorias de análise; e tratamento dos resultados, inferência e interpretação, quando ocorre a
análise reflexiva. No website da Santa Sé estão disponíveis as transcrições de entrevistas,
vídeos, orações e discursos dos Sumos Pontífices da Igreja Católica e em reportagens de
jornais e revistas estão disponíveis análises de especialistas e reportagens sobre a reação da
população. Os textos disponíveis no website da Santa Sé utilizados na pesquisa são as
traduções para a língua portuguesa, utilizada em Portugal. Por isso, algumas das citações
podem trazer termos que seriam redigidos de forma diferente do português vigente no Brasil.
Para a análise e contraste entre o discurso do Papa Bento XVI (antecessor) e o discurso do
papa Francisco (sucessor), foram definidas três categorias de análise, conforme método de
análise crítica do discurso proposto por Fairclough (2003) e desenvolvido por Resende e
Ramalho (2006). Essas três categorias correspondem a três estratégias discursivas, cada uma
produz um tipo de significado do discurso. Essas estratégias são inseparáveis e mantêm entre
si uma relação dialética, conforme descrito:
(a) ação (modos de agir): nós analisamos as inter-relações entre texto e eventos sociais e a
utilização do silêncio organizacional sobre a homossexualidade (gêneros e vozes do discurso
e proposições performativas);
(b) representação (modos de representar): nós analisamos o modo que o texto representa o
mundo físico, social e mental e busca-se a legitimação (ou não) do tabu da homossexualidade
(visões de mundo, representação dos atores sociais e das diferenças, do tempo e do espaço);
(c) identificação (modos de ser): nós analisamos a construção e a negociação de identidades
no discurso, o uso da linguagem como um recurso para autoidentificar com as questões da
homossexualidade (avaliações ou valores assumidos, presunções sobre o que é bom ou ruim,
certo ou errado, metáforas, compromissos).
Quadro 1 − Documentos analisados no estudo
Ano
Fonte
1975
Número de
documentos
5
2012
2012
2013
Tipo de documento
01 Declaração do Vaticano - Congregação para Doutrina
da Fé
01 Exortação apostólica
01 Documento aprovado pelo Papa Bento XIV
Santa Sé
01 Encontro com jornalistas - Papa Francisco
2013
2013
Revista Advocate
1
01 Entrevista com Papa Francisco para a Revista La
Civiltà Cattolica
Reportagem "Personalidade do Ano - Papa Francisco"
2013
Jornal Zero Hora
1
Reportagem
2013
Estadão online
1
Reportagem
Fonte: elaborado pelos autores com base nos dados da pesquisa
O intervalo de tempo definido para a seleção do material foi de fevereiro de 2012 a janeiro de
2014, de forma a cobrir o último ano de exercício do Papa Bento XVI e os primeiros meses de
exercício do Papa Francisco. A coleta do material se deu nos meses de novembro e dezembro
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de 2013. Também foi incluído um documento anterior a esse período, aprovado no ano de
1975, que mostra o posicionamento oficial da Igreja em relação à homossexualidade.
Os documentos apresentados (QUADRO 1) foram selecionados por mencionarem os temas
família, casamento e homossexualidade. A pré-análise consistiu na seleção e leitura do
material, a fim de identificar os documentos nos quais esses temas são mencionados. Após a
leitura, foram selecionados trechos que mencionam os temas definidos, pois os demais trechos
dos textos tratam de assuntos diversos. A análise está descrita na próxima seção.
4 − APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS
O discurso define a perspectiva legítima (KNIGHTS; MORGAN, 1991), o que é válido ou
não dentro de determinada instituição. Assim, o uso dessas enunciações reforça as ligações de
determinado grupo e o diferencia dos outros indivíduos que dele não participam
(FOUCAULT, 1996). O discurso é também uma tentativa de produção de realidade, ao
conferir sentido a determinada prática, no intuito de trazer estabilidade à organização
(EZZAMEL; WILLMOTT, 2008). A posição da Igreja Católica é exemplo desse tipo de
discurso ao estabelecer como devem ser tratadas as questões relativas à homossexualidade:
[...] apresenta como depravações graves a Tradição sempre declarou que os
atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados. São contrários
à lei natural, fecham o ato sexual ao dom da vida, não procedem duma
verdadeira complementaridade afetiva sexual, não podem, em caso algum,
serem aprovados. (29 de Dezembro do ano de 1975. Congregação para a
Doutrina da Fé, Declaração Pessoa Humana, 8)
Também identificamos aqui, as formas de representação (modos de representar) presentes no
texto, em que a homossexualidade é condenada. Nessa visão de mundo a homossexualidade é
ilegítima, pois é representa "depravações graves". O uso dessa metáfora e da metáfora da
"desordem" mostra o rigor com que a igreja trata essas pessoas e o temor em relação à
possibilidade de que a homossexualidade seja vista como um direito à igualdade e respeito à
diversidade. O Papa Bento XVI reforçou em seus anos de atuação o posicionamento da Igreja:
Reconhecer legalmente as uniões homossexuais ou equipará-las ao
matrimônio, significaria, não só aprovar um comportamento errado, com a
consequência de convertê-lo num modelo para a sociedade atual, mas
também ofuscar valores fundamentais que fazem parte do patrimônio
comum da humanidade. (Documento aprovado por Bento XVI em 16 de
março de 2012)
Nós identificamos esse texto os mecanismos de identificação (modos de ser) do discurso, em
que presunções − "comportamento errado", e também elementos de ação no discurso e
manutenção do tabu, com a promoção do temor − consequências para a sociedade atual, risco
ao patrimônio da humanidade. Os elementos de representação estão também presentes nesse
texto que destaca as diferenças: uniões homossexuais e matrimônio (heterossexual).
Nessa passagem, é possível notar a intenção de definir um padrão de normalidade, no intuito
de regular e educar. Além disso, o discurso se apresenta como instrumento de poder
(ROULEAU, 1995), pois se torna recurso disciplinar e tem efeito de verdade (mecanismo de
identificação). De forma a construir um sistema coeso de valores compartilhados e que são
resistentes a mudanças (SMITH; GRAETZ, 2011). A organização divulga aquilo que pretende
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defender como correto e nega discursos contrários (mecanismo de representação). Pode-se
perceber isso no texto a seguir, que identifica uma pressão externa pela mudança cultural e
reafirma a posição adotada pela Igreja:
[...] e o modelo cristão da família, da sexualidade e do amor são, em nossos
dias, se não contestados pelo menos incompreendidos por determinados
fiéis. Existe a tentação de adoptar modelos contrários ao Evangelho,
transmitidos por certa cultura contemporânea espalhada por toda a parte no
mundo. (Papa Bento XVI, Exortação apostólica. 14 de setembro de 2012)
Novamente está presente o mecanismo de identificação em que se estabelece o modelo cristão
de família como aquele com o qual as pessoas devem se identificar e o qual a igreja representa
como legítimo (mecanismo de representação). O mecanismo acional está presente na
"exclusão" da "certa cultura contemporânea" e na "incompreensão de determinados fiéis". Ou
seja, do ponto de vista dos modos de agir do discurso, esse não estabelece um diálogo com
essas outras vozes: parte da sociedade e os fiéis que rejeitam ou questionam essa posição da
igreja ou defendem que ela aceite a homossexualidade.
O quadro a seguir exibe dois fragmentos de discursos e documentos oficiais do Papa Bento
XVI, publicados em 2012 e 2013, e fragmentos de discursos do Papa Francisco publicados em
2013. Neles, ambos os Papas falam da posição da igreja a respeito da homossexualidade e do
problema de gênero. Ao colocá-los lado a lado (QUADRO 2), espera-se evidenciar
semelhanças e diferenças na maneira de abordar o assunto, pela fala de cada um dos
representantes da Igreja Católica nos dois últimos anos.
Quadro 2 − Papa Bento XVI e Papa Francisco
Papa Bento XVI
Papa Francisco
Texto 1 − Tal posição não é aceitável. A Igreja
Católica, de fato, distingue entre pessoas com
tendências homossexuais e atos homossexuais.
Quanto às pessoas com tendências homossexuais, o
Catecismo da Igreja Católica ensina que as mesmas
devem ser acolhidas com respeito, compaixão e
delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer
sinal de discriminação injusta. No entanto [...] A
Igreja ensina que o respeito para com as pessoas
homossexuais não pode levar, de modo nenhum, à
aprovação do comportamento homossexual ou ao
reconhecimento legal das uniões homossexuais
(Notificação sobre o livro Just Love, 2012).
Texto 2 − Por isso, a Igreja reitera o seu grande sim
à dignidade e à beleza do matrimónio , como
expressão de aliança fiel e fecunda entre um homem
e uma mulher, e o seu não a filosofias como aquela
do gender se motiva, pelo facto de que a
reciprocidade entre masculino e feminino expressa a
beleza da natureza desejada pelo Criador. (Discurso
do Papa Bento XVI, 2013)
Fonte: dados da pesquisa
Texto 3 − Se uma pessoa é gay e procura o Senhor
e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar? O
Catecismo da Igreja Católica explica isso muito
bem, dizendo – esperem um pouco… como diz... : “Não se devem marginalizar estas pessoas por
isso, devem ser integradas na sociedade” (encontra
os jornalistas durante o voo de regresso a Roma
depois da visita ao Brasil, 2013)
Texto 4 − Em Buenos Aires recebia cartas de
pessoas homossexuais, que são “feridos sociais”,
porque me dizem que sentem como a Igreja
sempre os condenou. Mas a Igreja não quer fazer
isto (entrevista à Revista Civiltà Cattolica, 2013)
Ao afirmar que é preciso distinguir “entre pessoas com tendências homossexuais e atos
homossexuais”, o Papa Bento XVI (Texto 1) reafirma os elementos como crenças, valores,
mitos, tabus que compõe a cultura organizacional da Igreja Católica, e, mostra de que modo
esses promovem uma ordem social que busca modelar a existência das pessoas (GEERTZ,
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2008). Também é possível perceber a resistência à mudança ("não pode levar"), pois isso
modifica toda uma série de normas e crenças compartilhadas pela organização (SMITH e
GRAETZ, 2011). O mecanismo de identificação do discurso reforça a ideia que a igreja não
discrimina "pessoas com tendências homossexuais", elas devem ser tratadas com "respeito,
compaixão e delicadeza", mas em relação aos atos homossexuais e uniões homossexuais eles
não têm a aprovação da igreja. A igreja silencia sobre de que modo o homossexual pode
construir uma existência plena se sua vida é limitada dessa maneira e se o modelo de
existência defendido pela igreja lhe priva de aspectos essenciais. No texto 2, a teoria de
gênero é rechaçada, e o Papa Bento XVI informa que a igreja rejeita um discurso diferente do
seu, a instituição exclui e discrimina condutas contrárias àquelas que defende (mecanismos de
representação das diferenças no discurso).
De forma geral, os trechos extraídos de textos publicados durante o papado de Bento XVI
evidenciam uma doutrina que evidencia o posicionamento da Igreja e, ao mesmo tempo,
exclui outros posicionamentos (FOUCAULT, 1996). Esse discurso auxilia na personificação
do sujeito social “homossexual” (HALL, 2001), pois delimitam quais são suas características,
constrói uma ideia do que é a homossexualidade e, posteriormente, quando esses discursos
são incorporados, é possível personificá-lo na imagem de um sujeito, o “homossexual”
(HALL, 2001). Todos os três mecanismos do discurso (acional, representacional e de
identificação) estão presentes reforçando-se mutuamente: no silenciamento de vozes
contrárias, no estabelecimento de diferenças claras entre homossexuais e heterossexuais (e
defesa desses) reforçando um tabu e na intransigente recusa em identificar qualquer benefício
em uma mudança de posição da igreja com base no argumento (ou presunção) de que a
"reciprocidade entre masculino e feminino expressa a beleza da natureza desejada pelo
Criador".
Com a mudança do principal representante da Igreja católica surgem especulações sobre
indícios de uma mudança no discurso, ou seja, novas estratégias discursivas e um novo
regime de verdade seria seguido (EZZAMEL; WILLMOTT, 2008). Esses indícios se
mostraram no encontro do Papa Francisco com jornalistas durante o voo de retorno à cidade
de Roma, após sua visita ao Brasil, em 2013. Quando questionado sobre como pretendia lidar
com a questão da homossexualidade, ele respondeu que “Se uma pessoa é gay e procura o
Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar?” numa tentativa de criar outra
perspectiva legítima (KNIGHTS; MORGAN, 1991), a de que o homossexual deve ser aceito e
integrado à sociedade.
Embora o Papa Francisco não afaste a ideia de anormalidade, de desvio, que foi a forma como
a Igreja tratou a homossexualidade ao longo do tempo (RODRIGUEZ, 2010), ao falar em
"feridos sociais", tenta mudar a prática da exclusão, quando afirma que homossexuais devam
ser acolhidos. O uso dessa metáfora mostra que o mecanismo da identificação está presente no
discurso, mas os homossexuais ainda são identificados metaforicamente de modo negativo. O
que significa que o conflito entre o cristianismo e a homossexualidade (BLACKMAN;
SADLER-SMITH, 2009; DYNE; ANG; BOTERO, 2003; MILLIKEN; MORRISON, 2003;
MILLIKEN; MORRISON; HEWLIN, 2003) não foi resolvido.
[...] podemos insistir somente sobre questões ligadas ao aborto, ao
casamento homossexual e uso dos métodos contraceptivos. Isto não é
possível. Eu não falei muito destas coisas e censuraram-me por isso. Mas
quando se fala disto, é necessário falar num contexto. De resto, o parecer da
Igreja é conhecido e eu sou filho da Igreja, mas não é necessário falar disso
10
continuamente. (Papa Francisco, em entrevista à Revista Civiltà Cattolica,
setembro de 2013).
Aqui podemos retomar as interdições que Foucault (1996) apresenta, quando o Papa diz: “eu
não falei muito destas coisas e censuram-me por isso”, “é necessário falar num contexto” e
“não é necessário falar disso continuamente”. Essas falas aparecem como formas de delimitar
e controlar o discurso exteriormente, seja pelo tabu do objeto (não se tem o direito de dizer de
tudo), pelo ritual da circunstância (não se pode falar de tudo em qualquer circunstância), ou,
ainda, pelo direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala (qualquer um não pode falar
de qualquer coisa) (FOUCAULT, 1996).
A forma que o Papa Francisco se refere à homossexualidade foi interpretada pelo público
geral de maneira positiva. Representantes de grupos de defesa dos direitos LGBT expõem
satisfação com o discurso do Papa, como pode ser visto em alguns trechos de textos
jornalísticos, selecionados e dispostos no Quadro 3.
Se fala sobre “palavras mais encorajadoras”, as estratégias do discurso, que condenou e
reprimiu pessoas por sua orientação sexual, agora apresentam mudanças, na avaliação de
algumas pessoas. Assim, o discurso se mostra, mais uma vez, como mecanismo de poder
(ROULEAU, 1995), com o potencial de moldar subjetividades (KNIGHTS; MORGAN,
1991) e criar personificações (FOUCAULT, 1996), conforme fez até recentemente em 2012:
"ameaças à família tradicional" e colocar em xeque "o próprio futuro da humanidade"
(QUADRO 3, TEXTO 1) e "bandeiras contra os gays" (QUADRO 3, TEXTO 3).
Quadro 3 − Reação e expectativas do público LGBT
Veículo e ano
Fragmentos dos textos
Estadão, 2012
Texto 1 − O papa Bento 16 disse nesta segunda-feira, 9, que o casamento
homossexual é uma das várias ameaças atuais à família tradicional, pondo em
xeque "o próprio futuro da humanidade". Foram as declarações mais fortes já
proferidas pelo pontífice contra o casamento homossexual.
Grindley (2013),
Revista The Advocate
elegeu o Papa Francisco
a personalidade do ano,
2013
Texto 2 − Mudança gritante na retórica do Papa Francisco em relação a seus
dois antecessores [...] O Papa Francisco soltou algumas das palavras mais
encorajadoras já faladas por um pontífice sobre pessoas gays e lésbicas” [...]
“Os líderes católicos que continuam a depreciar os gays e lésbicas não podem
mais alegar que seus comentários inflamatórios representam os sentimentos do
Papa. Bispos que se opõem à expansão dos direitos civis básicos − como o fim
da discriminação no local de trabalho − não pode mais afirmar que o papa
aprova sua agenda discriminatória.
Texto 3 − A gente ficou muito feliz. Na verdade, o que Bergoglio fez foi
confirmar o que, há anos, já é a doutrina oficial. Embora a doutrina diga que é
preciso acolher o gay com respeito, por parte da hierarquia da Igreja e dos fiéis
nem sempre era isso que a gente via. É um contraste com o Papa anterior, que
não perdia oportunidade para levantar a bandeira contra os gays.
Jornal Zero Hora, 2013
Fonte: dados da pesquisa
Há duas passagens de destaque nos Textos 2 (QUADRO 3) que mostram como os construtos
perdem sua força quando o discurso que os criou e os mantinha não existe mais ou é rarefeito
(HALL, 2001), reforçando a ideia de que são parte de um contexto histórico e sua significação
fora dele é impossibilitada: “católicos que continuam a depreciar os gays e lésbicas não
podem mais alegar que seus comentários inflamatórios representam os sentimentos do Papa”
e “não podem mais afirmar que o papa aprova sua agenda discriminatória”.
11
CONCLUSÕES
Tanto os estudos sobre o silêncio em organizações, quanto as pesquisas sobre os tabus
seculares e suas relações com o mundo das organizações, são esparsos. Com o objetivo de
refletir sobre e analisar a relação entre tabus, silêncio organizacional e a estratégia como
discurso, nós estudamos as ações de uma das mais antigas e tradicionais instituições sociais, a
Igreja Católica Romana. Ao longo de sua história, essa organização assumiu posicionamento
contrário à homossexualidade. Neste artigo, nós analisamos as estratégias discursivas da
Igreja Católica em relação à homossexualidade, no momento em que um novo Papa assume o
papel de representante dessa instituição.
Muitas reportagens abordaram e especularam sobre uma mudança discursiva nas falas do
atual Papa, que mostrava maior aceitação da Igreja Católica a respeito de um assunto que até
então foi tratado como tabu e cujas ações da igreja foram dirigidas para silenciar as vozes
contrárias. No decorrer da pesquisa, nós mostramos as estratégias discursivas − modos de
agir, modos de representar e modos de identificar − nos discursos do Papa anterior
(antecessor) e do atual (sucessor) sobre o assunto homossexualidade, a construção do sujeito
homossexual e a posição da igreja em relação ao assunto, conforme segue:
a) ação (modos de agir): o antecessor condenou de forma explícita o "comportamento
homossexual" e "a união homossexual", tratam-se de "comportamentos errados" e não devem
ser convertidos em "modelos para a sociedade atual". O sucessor afirma que homossexuais
lhe "dizem que sentem como a Igreja sempre os condenou. Mas a Igreja não quer fazer isto".
Essa fala do sucessor não representa uma mudança significativa de direção, o que pressupõe
reconhecer que parte do clero condena a homossexualidade e explicitar quais serão as novas
práticas discursivas que serão adotadas pela igreja e se elas significam o fim do silêncio das
vozes de homossexuais e de outros grupos sociais condenados pela igreja;
b) representação (modos de representar): o antecessor reprovou a teoria de gênero, propôs a
separação entre "pessoas com tendências homossexuais" e "atos homossexuais". Os primeiros
são dignos de simpatia e os segundos de reprovação permanecem um tabu. O sucessor busca
lidar de forma mais amigável, mas bastante vaga ("o parecer da Igreja é conhecido e eu sou
filho da Igreja") com as mesmas questões, a ideia de distinguir "pessoas com tendências
homossexuais" e "atos homossexuais" permanece nas estratégias discursivas do sucessor;
c) identificação (modos de ser): o antecessor identifica no discurso a homossexualidade com
"desordem" e depravação". O sucessor utiliza a metáfora dos "condenados" e "dos feridos
sociais", mas os compromissos assumidos por esse são semelhantes ao já proferido pelo
antecessor: homossexuais devem ser tratados com respeito. O sucessor não mudou a
condenação dos atos e da união homossexual.
O antecessor condenava a homossexualidade e exaltava o matrimônio heterossexual e a
família enquanto expressões da beleza do Criador, o sucessor utiliza palavras moderadas para
tratar da homossexualidade e não estabelece o confronto entre tradição e teorias de gênero.
Essa “outra” maneira de falar sobre a temática pode implicar mudança nas práticas
estratégicas dessa organização: (1) tentativa de modificar a maneira como esse sujeito é
tratado pela religião; (2) reconhecimento do fato de que manter o discurso agressivo do
antecessor tem implicações para o futuro da Igreja; e (3) o entendimento da questão da
homossexualidade de modo mais amplo, que envolve mais do que pressupostos teológicos,
implica se adaptar às mudanças em âmbito político-legal: direitos humanos e respeito à
12
diversidade. Talvez isso explique a instabilidade no discurso do sucessor, que varia entre a
desconstrução do discurso anterior e o reforço de certas regras e convenções que também
estavam presentes nas falas de Bento XVI.
A análise mostra que as estratégias discursivas constroem certas verdades, e podem agir para
diminuir as personificações construídas, ou, pelo menos, reduzir a força delas. Assim, o tabu
pode ser então desconstruído, quando ele passa a ser questionado, a estar presente nos
discursos de uma forma mais branda e conciliadora, quando é possível falar do assunto,
questioná-lo e desconstruí-lo. E, esse processo se mostra interdependente do surgimento de
vozes questionadoras, dispostas a expressarem sua opinião, seus desejos e interesses, ao invés
de silenciá-los. Isso mostra que aquilo que uma instituição busca silenciar (a
homossexualidade na Igreja católica), acaba por gerar e dar espaço para o crescimento ou
mesmo redirecionar os esforços de outras organizações que trabalham para romper com tal
silêncio (ONU, Movimento LGBT). O silêncio não pode ser analisado apenas no âmbito de
uma organização, mas também em espaços interorganizacionais.
Nós mostramos nesse artigo que há um amplo espectro de questões que podem ser
compreendidas a partir dos estudos sobre tabus organizacionais e dos estudos sobre silêncios
que dão suporte às práticas estratégicas organizacionais. A relação entre tabus, silêncio
organizacional e estratégias discursivas estão, ainda, praticamente inexploradas. Quanto ao
objeto da pesquisa, nós analisamos uma organização pouco presente nos estudos de
Administração: a Igreja Católica.
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1 Rompendo Tabu e Silêncio Organizacionais? Estratégias