RELATÓRIO DE PESQUISA DE INICIAÇÃO EM
DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO E INOVAÇÃO - PIBITI
TEMA: AVALIAÇÃO COMPUTADORIZADA DAS HABILIDADES
EXECUTIVAS EM CRIANÇAS PRÉ-ESCOLARES
Orientador: Prof. Dr. Jesus Landeira-Fernandez
Bolsistas PIBITI: Janaína de Oliveira Maia e Tamy Zylberglejd
Rio de Janeiro
Julho de 2014
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Introdução
Para compreender o funcionamento cerebral humano por completo é importante
abordar uma perspectiva a partir de seu desenvolvimento, que enfoca as fases do ciclo
vital em que o indivíduo se encontra. Desta forma, a neuropsicologia do
desenvolvimento juntamente com a neuropsicologia infantil são disciplinas que têm
auxiliado o estudo do desenvolvimento padrão ou patológico do funcionamento
neurobiológico, cognitivo e comportamental do ser humano ao longo dos anos [1].
Sendo através da avaliação neuropsicológica, a realização de um diagnóstico
diferencial, o tratamento precoce de alterações e déficits, o planejamento de estratégias
mais eficazes no processo de reabilitação bem como compreender o processo de
desenvolvimento das funções cognitivas [2]. Por conseguinte, essa ferramenta possui
uma grande relevância na prática clínica, em especial na faixa etária pediátrica, pois a
mudança do prognóstico age como um fator protetor, prevenindo disfunções cognitivas
e comportamentais secundárias advindas de restrições educacionais, ocupacionais e
familiares injustificadas.
De acordo com Welsh e Pennington [3], dentre as múltiplas funções cognitivas a
serem avaliadas, as funções executivas merecem uma atenção especial. Entre muitos
fatores, as funções executivas estão intimamente relacionadas a uma maior
vulnerabilidade quanto aos distúrbios do desenvolvimento. Por serem funções
cognitivas ligadas aos lobos frontais, estruturas cerebrais de evolução mais recente na
espécie humana, podem ser mais susceptíveis a variações genéticas e ambientais. Além
disso, as funções executivas desempenham um papel chave na caracterização de
diferentes doenças neurológicas e neuropsiquiátricas. Indivíduos com déficits ou com
“disfunções executivas” apresentam uma série de problemas, podendo ser observados
em diversas patologias tais como o transtorno do déficit de atenção/hiperatividade
(TDAH), transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), autismo, esquizofrenia, entre outros.
Apatia, dificuldade na tomada de decisão, incapacidade de inibir comportamentos e na
flexibilização da conduta e do seu pensamento, insistência em ações que se mostraram
ineficientes são outros exemplos comuns de prejuízos executivos [4].
Embora não exista um consenso sobre a conceituação das funções executivas,
elas geralmente são definidas como o conjunto de habilidades e capacidades que nos
permite executar as ações necessárias para atingir um objetivo. Nelas se incluem a
atenção seletiva, controle inibitório, a identificação de metas, o planejamento de
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comportamentos e sua execução, bem como o monitoramento do próprio desempenho
(auto-regulação) até que o objetivo seja alcançado [5]. Da mesma forma, permitem que
as normas sociais sejam respeitadas em um padrão comportamental considerado
apropriado para um determinado contexto ou situação.
As funções executivas possibilitam nossa interação com o mundo frente às mais
diversas situações com que nos deparamos em nosso cotidiano. Por meio delas, é
possível organizar os pensamentos, levando em conta as experiências e conhecimentos
armazenados na memória, assim como as expectativas em relação ao futuro. De uma
maneira geral, essas funções participam da supervisão de todo o processo cognitivo,
evitando erros e limitando as ações dentro dos padrões éticos do grupo cultural a que
pertencemos. Isto é, englobam uma série de competências inter-relacionadas e de alto
nível de processamento cognitivo, cujo impacto refletem em todos os aspectos afetivoemocionais, comportamentais e sociais. Portanto, são essenciais para garantir o bom
desempenho na escola, no trabalho e na vida cotidiana [6].
O desenvolvimento das funções executivas tem se mostrado não-linear. As
diferentes habilidades executivas e suas respectivas trajetórias de desenvolvimento têm
seu início na infância, continuam na adolescência, chegando até a idade adulta. As
funções executivas parecem melhorar seqüencialmente ao longo dos anos tais como
entre o nascimento e os dois anos de idade, dos sete aos nove e um salto no final da
adolescência, entre dezesseis e dezenove anos de idade. Seu lento desenvolvimento
geralmente é atribuído à maturação prolongada do córtex pré-frontal[8].
Apesar da importância nas atividades do cotidiano e do grande interesse sobre a
avaliação e desenvolvimento das funções executivas, ainda é bastante limitado o
número de medidas fidedignas para avaliar os diversos aspectos das funções executivas,
principalmente na população de crianças pré-escolares e com caráter computadorizado
[8]. Mesmo sendo escasso o número de testes computadorizados, o computador se
encontra presente em quase todos os âmbitos da vida das pessoas e não seria diferente
com o psicólogo, em especial na área de neuropsicologia e psicometria.
Nesse sentido, é importante ressaltar a importância da utilização e do
desenvolvimento de tarefas adequadas para a pesquisa e para a avaliação
neuropsicológica infantil. Da mesma forma, verificar como se dá a utilização de testes
informatizados nessa população que tem características tão dinâmicas quanto os
elementos tecnológicos, será um novo ponto de partida para renovação do processo de
testagem psicológica.
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Descrição do trabalho desenvolvido
Fase 1
Os bolsistas do projeto (inicialmente Rodrigo Leão e Mayara Baima, sendo
substituídos por Janaína de Oliveira Maia e Tamy Zylberglejd) desempenharam
atividades relacionadas ao levantamento bibliográfico da tarefa DCCS nas plataformas
Scielo, Pubmed, Science Direct e Periódico Capes. Realizando o levantamento de 116
artigos publicados em distintos 42 periódicos internacionais, houve a categorização dos
mesmos em diversas variáveis. Através do presente trabalho foi possível observar o
amplo espectro de aplicação e versatilidade da tarefa DCCS, como instrumento e
medida fidedigna a ser utilizada em crianças pré-escolares, demonstrando consistência
na aplicabilidade do mesmo na população brasileira.
A partir do levantamento realizado, construiu-se uma primeira versão
computadorizada do DCCS, intitulada "Jogo das Cartas Mágicas - Versão I",
constituído por três fases (Fase I Cor - 6 jogadas, Fase II Forma - 6 jogadas e Fase III
Cor e Forma - 12 jogadas). Após realização do primeiro estudo piloto, modificações
foram realizadas dando origem ao "Jogo das Cartas Mágicas - Versão II". Nesta nova
versão, modificou-se algumas instruções, layout do jogo e número de jogadas, este
último teve sua quantidade duplicada em cada fase.
Fase 2
O estudo piloto II foi realizado na cidade do Rio de Janeiro, em crianças de 3 a 7
anos de idade, de ambos os sexos, regularmente matriculadas em instituições públicas
cursando a educação infantil e fundamental.
Participaram ao todo 71 crianças, sendo que 13 crianças de três anos de idade, 18
crianças de 4 anos , 23 crianças de 5 anos, 12 crianças de 6 anos e 5 crianças de 7 anos.
Devido à quantidade insuficiente de crianças de 7 anos, juntou-se ao mesmo grupo as
crianças de 6 e 7 anos de idade para uma análise estatística mais robusta.
Todos os responsáveis presentes no conselho de classe de cada turma receberam
um termo de consentimento livre e esclarecido, onde foram esclarecidos sobre a
pesquisa e convidados a participar da mesma.
Resultados obtidos
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A tarefa analisada neste trabalho foi o teste computadorizado construído pela
doutoranda Emmy Uehara Pires: Jogo das Cartas Mágicas (teste computadorizado a ser
validado). Avalia três habilidades executivas: o controle inibitório, a memória de
trabalho e a flexibilidade mental.
Análise de variância (ANOVA): JCM
Através da ANOVA de uma via no Jogo das Cartas Mágicas, não foram
observadas diferenças de sexo, porém, foi observado diferenças significativas de idade
nos acertos de todas as fases. Em relação à fase 1 (F=3,277; p=0,05) e à fase 2
(F=3,261; p=0,05), foram encontradas diferenças entre as crianças de 3 e 4 em relação
às de 6-7 anos. Na fase 3 (F=5,488; p=0,05), houve diferenças significativas entre as
crianças de 3 em relação às de 5 e 6-7 anos, das crianças de 4 em relação às de 6-7 anos,
das crianças de 5 em relação com as de 3 anos e das crianças de 6-7 anos em relação às
3 e 4 anos, o que demonstra uma diferenciação no desenvolvimento das funções
executivas nesta fase mais difícil do JCM. Por fim, em relação ao acerto total
(F=10,462; p=0,05), foram observadas diferenças significativas das crianças de 3 anos
em relação às de 5 e 6-7 anos, das crianças de 4 em relação às de 6-7 anos, das crianças
de 5 anos em relação às de 3 e 6-7 anos e crianças de 6-7 anos em relação à todas as
crianças.
Validade convergente
Conforme observado na Tabela 1, a análise de correlação de Pearson entre o
escore total do JCM e os escores de cada fase do JCM indicou correlação positiva
moderada para a fase 1 (r=0,441; p<0,05) e moderada-alta na fase 2(r=0,696; p<0,05) e
fase 3 (r=0,793; p<0,05). Na análise das correlações entre outras variáveis e o escore
total do JCM, foi encontrada correlação positiva moderada com o escore das tarefas de
fluência animal (r=0,412), frutas (r=0,512), span de dígitos ordem direta (r=0,447) e
span de dígitos ordem inversa (r=0,557). No entanto, a variável Tarefa de Stroop (r= 0,471), obteve uma correlação negativa moderada em relação ao escore total do JCM.
6
Tabela 1 - Coeficientes de correlação Pearson entre as medidas.
Fase1
Fase2
Fase3
A.Tot
Ani
Fru
Rou
SDir
Fase2
-0,054
Fase3
0,154
0,210
A.Tot
0,441**
0,696**
Ani
0,283*
0,264*
0,260*
0,412**
Fru
0,404**
0,303*
0,312**
0,512**
0,606**
Rou
0,159
0,177
0,113
0,231
0,195
0,337**
SDir
0,185
0,333**
0,317**
0,447**
0,420**
0,480**
0,283*
SInv
0,316**
0,393**
0,357**
0,557**
0,437**
0,575**
0,517**
0,560**
Stro
-0,266*
-0,400**
-0,230
-0,471**
-0,379**
-0,375**
-0,215
0,348**
SInv
0,741**
-0,296*
Nota: *Nivel de significância 0,01; **Nível de significância 0,05.
Fase1=Acerto Fase 1 JCM, Fase2= Acerto Fase 2 JCM, Fase3= Acerto Fase 3 JCM, A.Tot= Acerto Total JCM, Ani=
Acerto Fluência Animal, Fru= Acerto Fluência Frutas, Rou= Acerto Fluência Roupas, SDir= Span Digitos Direto,
SInv= Span Digitos Inverso e Stro= Erro Stroop. Em todas as variáveis, foi utilizado o escore padronizado.
Confiabilidade
A Tabela 2 apresenta a análise do teste-reteste realizado com 40 crianças do
estudo. O CoeficienteCoeficiente de Correlação Intra-Classe apresentou correlação forte
(CCI=0,74; IC95% 0,41 a 0,88, P<0,001).
Tabela 2 - Coeficientes Alpha de Cronbach (α) e de correlação intraclasse (CCI).
Variável
Acertos Fase 1
Acertos Fase 2
Acertos Fase 3
Acerto Total
α
CCI
p
0,529
0,515
0,501
0,738
0,51
0,52
0,51
0,74
0,036
0,041
0,048
0,001
A aplicação do teste t pareado nas médias entre a 1ª e a 2ª coleta em intervalo de
um mês, não apresentou diferença estatisticamente significativa ou efeito importante, tal
como demonstrado na Tabela 3 abaixo.
Tabela 3 - Teste-Reteste do JCM.
Acertos
Acertos Fase 1
Acertos Fase 2
Acertos Fase 3
Acerto Total
Teste
Re-teste
p
9,69 (2,43)
8,11 (3,75)
11,86 (3,50)
29,66 (6,35)
9,92 (2,22)
8,88 (3,14)
13,68 (4,17)
32,48 (7,03)
0,113
0,603
0,763
0,469
7
Produtos decorrentes da participação dos bolsistas
O principal produto decorrente da participação do bolsista é o software do Jogo
das Cartas Mágicas. Além disso, a participação dos alunos de IC foi fundamental para a
realização da tese de uma aluna de doutorado do Programa de Pós-graduação em
Psicologia Clínica e Neurociências. Artigos científicos baseados nesse estudo estão
agora sendo preparados para submissão. Finalmente, a atual bolsista substituiu
recentemente um bolsista anterior que contribuiu para apresentações em diferentes
eventos regionais (ex. Mostra Carioca de Neuropsicologia Clínica) e nacionais (ex.
Reunião Anual do IBNeC), tendo ele mesmo também apresentado em congressos.
Etapas posteriores
A coleta de dados será estendida, incluindo um maior número de participantes,
com distribuição mais equilibrada em diferentes faixas etárias e grupos sócioeconômicos. Além disso, planeja-se a inclusão de um grupo clínico, com crianças com
dificuldade de desenvolvimento, para a exploração da validação clínica da escala.
Considerações finais
O presente estudo ressalta a importância de pesquisas que valorizem a
investigação do desenvolvimento das FE, e mais especificamente, na elaboração e na
validação de instrumentos destinados à população pré-escolar e escolar. A produção de
estudos nessa área pode contribuir para o conhecimento das trajetórias maturacionais
executivas dentro do desenvolvimento típico, possibilitando intervenções precoces e
tratamentos melhor delineados.
Os dados obtidos nos estudos demonstraram várias evidências dos principais
marcos do desenvolvimento das FE na faixa etária de 3 a 8 anos de idade. No entanto,
ajustes técnicos no JCM são fundamentais para obtenção de marcos com intervalos de
tempo menores (ao invés de anos, meses). Assim, outros estudos ainda são necessários,
especialmente no que tange à investigação de diferentes critérios psicométricos, tais
como validade clínica, confiabilidade teste-reteste, análises fatoriais exploratórias,
normatização, não somente para população da amostra coletada, mas também para
outras regiões.
8
Ainda, pesquisas futuras podem avaliar a influência da escolaridade materna e
paterna no desenvolvimento das FE, para que programas de estimulação e de
capacitação de pais possam ser realizados. Apesar destas informações terem sido
coletadas no presente estudo, houve uma homogeneidade em relação à escolaridade dos
pais. A maioria possuía ensino superior, concluído ou incompleto, não sendo possível a
investigação de diferentes níveis de escolaridades, e consequentemente, sua influência.
Por fim, espera-se que este estudo venha a trazer contribuição ao conhecimento na
área de construção de novos instrumentos computadorizados, bem como no campo da
neuropsicologia do desenvolvimento. Nesta direção, os avanços tecnológicos na área da
neuropsicologia tornam-se cada vez mais relevantes para a inovação da testagem
psicológica.
Referências Bibliográficas
[1] LEFÉVRE, B. H. Avaliação Neuropsicológica Infantil. In: ANDRADE, V. M;
SANTOS, F. H.; BUENO, O. F. A. (Orgs.). Neuropsicologia Hoje. São Paulo: Artes
Médicas, 2004.
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Springer, 2007.
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from developmental psychology. Developmental Neuropsychology, v.4, p.199-230,
1988.
[4] ZELAZO, P.; CRAIK, F.; BOOTH, L. Executive function across the life span. Acta
Psychologica, v.115, p.167–183, 2004.
[5] DELIS, D.; KAPLAN, E.; KRAMER, J.H. Delis Kaplan Executive Function
System technical manual. San Antonio, TX: The Psychological Corporation, 2001.
[6] JURADO, M.; ROSSELLI, M. The elusive nature of executive functions: A
review of our current understanding, 2007.
[7] GARON, N.; BRYSON, E, SMITH, I. Executive function in preschoolers: A review
using an integrative framework. Psychological Bulletin, v.134(1), p.31-60, 2008.
[8] ISQUITH, P.; CRAWFORD, J.; ESPY, K.; GIOIA, G. Assessment of executive
function in preschool-aged children, 2005.
[9] ZELAZO, P.; REZNICK, J.; PINON, D. Response control and the execution of
verbal rules. Developmental Psychology, v.31, p.508–517, 1995.
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