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A LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ E O PROCESSO DO TRABALHO
Luís Felipe Lopes Boson *
1 - O DEVER DE LEALDADE E BOA-FÉ.
2 - A LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ.
2.1 - HIPÓTESES.
3 - INDENIZAÇÃO DA PARTE LESADA.
3.1 - ATUAÇÃO DE OFÍCIO.
3.2 - HONORÁRIOS DE ADVOGADO.
3.3 - DOIS OU MAIS LITIGANTES DE MÁ-FÉ.
3.4 - PREFIXAÇÃO PELO JUIZ.
3.5 - LIQUIDAÇÃO POR ARBITRAMENTO.
4 - CONDENAÇÃO DO ADVOGADO DA PARTE.
5 - APLICAÇÃO DO INSTITUTO AO PROCESSO DO TRABALHO.
1 - O DEVER DE LEALDADE E BOA-FÉ
Se o Estado, ao proibir a autodefesa, salvo como exceção, concentrando em si o poder de dirimir os conflitos de
interesse, obriga-se a colocar à disposição dos seus cidadãos meios acessíveis e efetivos de composição de tais conflitos (ação,
processo), pode e deve exigir, para sua atuação, que este conflito lhe seja exposto pelas partes interessadas com lealdade e boafé. Isto quer dizer (v. CPC, art. 14) expor os fatos conforme a verdade, em juízo; não formular pretensões, nem alegar defesa,
sabendo de sua ausência de fundamento; não produzir provas nem praticar qualquer outro ato inútil ou desnecessário para a
declaração ou defesa do direito; não agir, enfim, senão de forma a obter do Estado a solução justa para a sua divergência com a
parte contrária, sem subterfúgios, sem golpes de surpresa, sem táticas protelatórias, sem artimanhas.
Deve vencer quem tenha razão, não o mais esperto, não o de advogado mais habilidoso. Provocar uma atuação do
Estado fora dos lindes de composição da lide é agir deslealmente e de má-fé.1
2 - LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
A litigância de má-fé se verifica na desnecessária formação do processo ou no ato de se provocar ou se tentar
provocar, livre e conscientemente, a atuação do Estado fora dos lindes da composição justa do conflito.
2.1 - HIPÓTESES
Litiga de má-fé o autor (reclamante) que deduza pretensão contra texto expresso de lei ou fato incontroverso.
Tomemos o exemplo da empregada doméstica que postule o FGTS. Provoca com isto, sem a menor necessidade, a atuação do
Estado. Constrange a parte contrária a comparecer em juízo, com o sofrimento moral e despesas conseqüentes. Tomemos o
exemplo da defesa que sustente a existência de contrato de estágio, para afastar a relação de emprego, ciente de que o
empregado já era formado. Obriga o Estado a atuar inutilmente (não há séria controvérsia sobre o direito). Obriga a parte a
esperar e fazer despesas para valer o seu direito. Tomemos o exemplo de empregado que reclame salários, recebidos com
intermediação de seu pai, a pretexto de que não dera os competentes recibos. Tomemos o exemplo de empregador que negue o
salário-maternidade, já que a gravidez não lhe fora noticiada por atestado médico, quando é certo que ele mesmo levara a
empregada ao hospital para o parto.
Litiga de má-fé quem altera a verdade dos fatos, postulando, por exemplo, taxa de depreciação de ferramentas (direito
convencional), ciente de que elas pertenciam à empresa, ou nega a existência de salário não contabilizado robustamente
provado.
Litiga de má-fé quem usa do processo para conseguir objetivo ilegal, como a namorada que, após o rompimento e,
para se vingar, sustente que fora empregada daquele ao qual eventualmente auxiliou, entre as tertúlias de amor.
Litiga de má-fé quem opõe resistência injustificada ao andamento do processo, como dificultar sua citação ou induzir
testemunhas intimadas ao não comparecimento à audiência.
Litiga de má-fé quem revela imprudência em qualquer incidente ou ato processual, a exemplo do empregado que, sem
maiores pesquisas, demanda contra uma empresa apenas porque seu nome é parecido com a de sua verdadeira empregadora ou
do empregador que argúa a suspeição do Juiz apenas porque ouviu dizer que este era parente do empregado.2
Litiga de má-fé quem provoca incidentes infundados. O vigia alega que não marcava seu relógio porque a iluminação
ambiente não permitia tal marcação. Sabe que isto não é verdade. Provoca com isto inútil inspeção judicial.
3 - INDENIZAÇÃO DA PARTE LESADA
Na redação dada pela Lei 8.952, de 13.12.94, procurou o CPC dar alguma eficácia ao princípio da lealdade e boa-fé,
tarifando a penalidade pela litigância de má-fé (v. art. 18, parágrafo 2º).
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Com efeito, a anterior necessidade de arbitramento da indenização, que subsiste como alternativa, dificultava a
aplicação da pena. Como mensurar a dor, o sofrimento, as tribulações daquele que sofre uma demanda injusta ou tem retardada,
obstaculada, a justa satisfação de seu direito?
As complicações de uma liquidação por arbitramento mais estranhas se revelam no processo trabalhista, de instrução
sumária, criada para satisfação de créditos de natureza alimentar.
Na nova redação permite-se ao Juiz que fixe a pena em até 20% do valor (atualizado, naturalmente) da causa.
A indenização deve atender aos prejuízos materiais e morais, mas o seu pagamento não desobriga ao litigante de má-fé
de também pagar as despesas da parte lesada.
3.1 - ATUAÇÃO DE OFÍCIO
A Lei 8.952, de 13 de dezembro de 1994 também evoluiu o processo no sentido de deixar claro que a aplicação da
penalidade por litigância de má-fé não exige provocação do interessado. Atua neste campo de ofício o juiz. É que há evidente
interesse público. O litigante de má-fé atinge, com seu comportamento, não só a parte contrária, mas o próprio Estado, ferido
em sua dignidade, levado a erro, induzido a ser levado a erro ou travado em sua atuação.
3.2 - HONORÁRIOS DE ADVOGADO
A indenização por litigância de má-fé não compreende também os honorários de advogado.
Entendo que, na hipótese de litigância de má-fé, mesmo no processo trabalhista, cabe a condenação em honorários de
advogado.
Justifica-se a inexistência da verba, de modo geral, no processo trabalhista, por ser nele facultativa a contratação do
profissional. Não, contudo, se a parte abusa do seu direito de demandar ou se defender.
Para situações anormais soluções extraordinárias: desviada a finalidade da lei geral, aplica-se a especial, aplicando-se
subsidiariamente o art. 18, caput, do CPC, às inteiras.
3.3 - DOIS OU MAIS LITIGANTES DE MÁ-FÉ
O CPC (art. 18, parágrafo 1o.) prevê a litigância de má-fé de dois ou mais litisconsortes, para determinar que sejam
condenados na proporção de seu interesse na causa ou solidariamente, se se coligaram para lesar a parte contrária.
Se o empregado A alega ter crédito de 3 mil e o empregado B, de mil, responderá o primeiro por 75% da indenização.
Se ambos se articularam para lesar o empregador C, responderão solidariamente.
Isto se aplica à hipótese do empregado que demanda contra sub-empreiteiro e suposto empreiteiro principal,
articulados os dois primeiros para confirmar uma responsabilidade subsidiária em verdade inexistente.
E se tanto o autor como o réu agem de má-fé, alterando ambos, por exemplo, a verdade dos fatos?
Entendo que a situação, não tão rara assim, provoca a compensação das culpas.
Não parece haver amparo legal para, nos próprios autos, determinar-se aos litigantes que indenizem o Estado (custas),
por desnecessária atuação.
3.4 - PREFIXAÇÃO PELO JUIZ
Entendo que o juiz deve prefixar a indenização - em até 20% do valor atualizado da causa - quando os danos forem
puramente morais, sem repercussão econômica. Como nas situações em que o dano se resume no retardo na satisfação de
direito líquido e certo, sem que em torno dele haja uma séria controvérsia. A correção monetária, os juros de mora, a dobra
prevista no art. 467 da CLT, a multa cominada no parágrafo 8º, do art. 477, da mesma CLT, cobrem, pelo menos em tese, os
prejuízos econômicos decorrentes do atraso. Mas não o sofrimento, não a ansiedade. Idem a situação do empregador que vê seu
sossego perturbado por demanda notoriamente desfundamentada.3
3.5 - LIQUIDAÇÃO POR ARBITRAMENTO
Configurado, contudo, o prejuízo econômico, decorrente ou não dos danos morais, caso será de seu arbitramento em
execução nos próprios autos do processo em que caracterizada a litigância de má-fé.
Se ao empregado é imputado levianamente ato de improbidade, e se esta imputação, feita no processo, ganha foros de
notoriedade, impedindo ao obreiro a aquisição de novo emprego, caso será do arbitramento do dano. Idem quando o
empregador se vê inabilitado em licitação, pública ou privada, pela só existência daquela demanda temerariamente instaurada.
4 - CONDENAÇÃO DO ADVOGADO DA PARTE
O art. 32 da Lei 8.906, de 04.07.94 (Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil) já dispõe ser o
advogado responsável por atos profissionais dolosos ou culposos. Seu parágrafo único deixa claro que, na lide temerária, isto é,
naquela instaurada imprudente ou negligentemente, responde o advogado, solidariamente com o cliente, pelos prejuízos
causados. Exige-se, para tanto, que esteja coligado com o cliente para lesar a parte contrária.
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Configura-se, a meu ver, tal coligação pela só circunstância de ter o advogado ciência inequívoca de não haver
fundamento sério para demandar ou resistir à satisfação da pretensão ou, pelo menos, aparência de fundamento sério.
Esta ciência inequívoca há de ser aferida dentro de uma linha de razoabilidade. Um advogado razoavelmente conhecer
de nossa legislação poderia razoavelmente desconhecer a falta de fundamento da pretensão ou da resistência a esta?
A responsabilidade do advogado há de ser apurada em processo autônomo, não naquele em que configurada a
litigância de má-fé. Não sendo parte em tal último processo, o advogado poder-se-ia ver surpreendido com punição da qual não
teria se defendido prévia e amplamente, o que contrariaria princípios constitucionais.4
5 - APLICAÇÃO DO INSTITUTO AO PROCESSO DO TRABALHO
Embora especial o processo do trabalho e especial a Justiça que dele faz uso, de nenhum modo a ele deixam de se
aplicar os princípios norteadores da Teoria Geral do Processo, dentre os quais os da lealdade e boa-fé.
A questão social, produto das revoluções industriais, do êxodo rural, do surgimento das grandes metrópoles, das
demandas por habitação, saúde, educação e transporte, fez também surgir o direito do trabalho. O direito civil, fundado numa
suposta igualdade de condições e liberdade de contratar, se revelava inadequado para regular as relações entre aquele
verdadeiro exército de reserva acantonado nas posições mais precárias das cidades e premido a obter trabalho como condição
de sua sobrevivência, ainda que da forma mais abjeta, e a indústria, favorecida pelo desequilíbrio entre as condições de oferta e
procura do trabalho. O descortino de juristas percebeu que, para aplicação do novo direito do trabalho, desatrelado das velhas
concepções individualistas, necessária a criação de uma nova Justiça, com juízes imbuídos de seu espírito, que pode ser
resumido no seguinte princípio: “desigualdade jurídica para compensar a desigualdade econômica”.
Nem por viver no limite de condições dignas de sobrevivência ou mesmo abaixo de tal limite está, contudo, o
trabalhador autorizado a demandar, sem fundamento jurídico, seu empregador ou de usar meios desleais para obter vitória no
processo. Dizia Bertold Brecht: “Primeiro o pão, depois a moral”. Não se nega o valor literário e sociológico da frase, mas um
Estado digno de tal nome não pode admitir contemplação com a imoralidade. Há de garantir o pão para todos, e exigir que no
processo todos ajam dentro dos princípios da moralidade.
* Juiz Presidente da 8ª JCJ de Belo Horizonte
1 Como assevera Humberto Theodoro Jr.: “Isto se dá quando a parte desvia, astuciosamente, o processo do objetivo principal e
procura agir de modo a transformá-lo numa relação apenas bilateral, onde só os seus interesses devam prevalecer perante o
juiz”. (Curso de Direito Processual Civil - Vol. I - 15a. ed. - Forense - Rio - 1994 - p. 86).
2 “A indiferença às más conseqüências se no caso era de exigir-se cuidado, pode ser tida como falta de boa-fé”. (Pontes de
Miranda - CPC Anotado - Sálvio de Figueiredo Teixeira - 3a.ed., Forense, Rio, 1986, p. 21).
3 Ouso, aqui, discordar do Prof. Humberto Theodoro Jr., quando diz: “Observe-se, finalmente, que, como toda
responsabilidade civil, não pode haver simples alegação de prejuízo, mas cumpre que o dano seja provado antes da
condenação. A liquidação deve limitar-se à apuração do respectivo “quantum”. (ob. cit., p. 87).
A lição, com efeito, parece inadaptada à consagração legal da possibilidade de condenação na indenização mesmo de ofício.
O dano provocado por quem litiga de má-fé é evidente. Seja no provocar a instauração de um processo inútil, ou desviado de
suas verdadeiras finalidades, seja na resistência à satisfação de uma justa pretensão da parte.
4 Contra, em artigo que merece ser lido, não só pela erudição, mas também por suas agudas advertências quanto à freqüente
responsabilidade dos advogados por litigância de má-fé de empregados e pelo desprestígio da Justiça do Trabalho, o ilustre
Juiz José Miguel de Campos (Litigância de má-fé no processo trabalhista in “Temas de Direito e Processo do Trabalho” Livraria Del Rey Editora - Belo Horizonte - 1996 - pp. 143/159).
Observo que a culpa do advogado não exonera de responsabilidade o cliente, caracterizada a “culpa in eligendo”(v. neste
sentido, “Comentários ao Código de Processo Civil”- Wladimir Valler - Vol. I - 1991 - Julex Livros - Campinas - SP - p. 82).
A favor: “O disposto nos artigos 16 a 18 não se aplica ao advogado, mas, somente, à parte (opinião do relator, de acordo com
o pensamento de Arruda Alvim)” (STJ - 3a. T. - R. Esp. 22027-4-RS, rel. Min. Nilson Naves, j. 10.08.92 -“CPC e Legislação
Processual em Vigor” - Theotônio Negrão - 27a. ed. - Saraiva - SP - 1996 - p. 85.
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