Panorama Nº01 – Jun|Jul 2009
Deslocamentos e suas vibrações.
por Vânia Elisabeth Selzlein Sommermeyer
Nos rotineiros deslocamentos entre as cidades de Novo Hamburgo e Porto Alegre,
minha atenção tem se concentrado nestas duas extremidades de meus percursos
cotidianos, que trago sob a forma de três experiênciasensaio. A palavra en-saio disposta
desta forma, remete ao que poderíamos exemplificar deste movimento de entrada e de
saída realizado a partir destas duas cidades. Segundo Montaigne, o ensaio seria a escrita
de um tempo inseguro e problemático, de um tempo ‘a deriva’.
Como ensaios derivantes sobre os percursos, apresento o primeiro, que foi fruto do
acaso e analiso os demais, que se utilizaram de estratégias previamente definidas para os
percursos, bem como os trabalhos advindos deles e sua forma de apresentação.
“Em janeiro de 2007 quando estávamos eu e meu filho aguardando o início da
primeira prova ao vestibular de verão da UFRGS em Porto Alegre, vi por detrás de uma
senhora que também aguardava e que se encontrava sentada numa cadeira de praia,
uma inscrição na parede. A principio me pareceu uma pichação, mas havia algo de
decifrável em letras vermelhas, de uma frase que não conseguia ler por completo. Apesar
do cansaço, nada me impedia de me mover. Precisei curvar-me, caminhar ora para um
lado ora para outro, para poder ver melhor e decifrar o enigma. Já não me interessava o
que os outros vestibulandos e seus pais iriam pensar desse meu vai-e-vem, pois tinha em
mente um objetivo: descobrir o que se escondia por detrás daquela cadeira. Minha
vontade era pedir que ela saísse, para poder ver tudo de uma vez, mas sua lassidão não
permitia. Primeiro descobrindo letra por letra, depois as palavras e no final tudo sendo
compreensível em minha mente para só depois se mostrar aos meus olhos. Surge um
nome conhecido e em grandes letras: Clarice Lispector. Este fato só aumentou a minha
curiosidade. A sentença, talvez escrita às pressas, com um pincel largo foi se mostrando
por inteiro: “Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.” Desvendado o
mistério, e para não deixar escapar este momento, anoto num papel que tenho as mãos
aquele fragmento tão bem escolhido. A vibração diante desta descoberta é o encontro da
diferença em meio à normalidade cotidiana, onde a beleza do momento se fez na
particularidade de uma apreensão. Não importa o lugar, a situação ou o tipo de
deslocamento, nem o tempo que estes fragmentos poéticos ficarão guardados até serem
apresentados ou revelados. Poesia em parede de cimento - poros poético feito superfície
de contato, onde (tuchê) no grego é contato - quando se diz que alguma coisa se produz
por acaso, nos encontra, nos toca, nos atinge como uma flecha perdida que vem
subitamente ferir-nos. De uma aparição inicial para uma travessia transposta em forma
de texto, temos que hoje a frase, como antes se mostrou, não existe mais. A parede está
pintada e a declaração de Clarice Lispector já não ecoa mais pelo Campus do Vale. Não há
imagem, só experiência e texto, onde situações vividas, como esta, perduram pelo relato,
carecendo de outra forma de apresentação.
No dia 05 de julho de 2003, munida de câmera fotográfica, bloco de notas na mão e
um traçado mental da cidade, definido1, saí com o objetivo de caminhar, anotar, olhar,
escutar e acima de tudo, deixar que o inesperado da cidade emergisse fixando aquilo que
nos escapa no dia-adia. Revejo então o que denominei naquela ocasião As anotações da
caderneta (2003) Reproduzo um pequeno fragmento destas anotações: “Porto Alegre.
Sinal. Homem verde. Mão vermelha. Capas de celulares. Flores. Bugigangas. Biscoitos em
caixas. Cheiro de Incenso. Ônibus. Carros. Barulho. Passarinhos na gaiola. Bromélias
atrás da vitrine. Ovos na galinha de arame. Cama. Travesseiro no plástico. Parque. Areia
fazendo barulho nos sapatos. Faixas de segurança, muitas! Asfalto. 10h20min. Carros
atrás das grades. Pessoas atrás das grades. Balconistas atrás de grades. Cartas atrás de
grades. Chapéu na cabeça. Nome de mulher em edifício. Gato no colo do vovô. Jovens
conversando. Embalagens na farmácia. Coloridas. 81163669. Parada de ônibus amarela.
81173368. 587 1435. Cortinas coloridas. Água em garrafas plásticas. 10h41min no
relógio do túnel....
Na igual ação de potencializar um deslocamento, porém alheio, a artista Luz Maria
Bedoia, monta no espaço de um livro o resultado de um mapeamento realizado por
pessoas que ela convida para registrarem os seus deslocamentos cotidianos, entregando
uma câmara fotográficadescartável com o pedido de retorno das imagens.
Passo a fixar meus momentos de deslocamento através de tipologias dos registros
fotográficos
obtidos2
e
a
organizar
este
processo
de
trabalho
apontando
suas
especificidades através de categorias: superfícies dos locais (paredes, fachadas, calçadas,
marcas, sinais); capas ou revestimentos produzidos em objetos e na arquitetura
(embalagens, interiores das lojas, pacotes, acessórios).
Isto me faz lembrar a atitude dos fotógrafos alemães da nova objetividade, que,
nos anos 20, dirigiam um olhar não seletivo sobre a paisagem urbana, buscando
igualmente uma organização visual de cunho tipológico do cotidiano das cidades, onde
temos em Bernd & Hilla Becher, um exemplo marcante, que ao dirigirem um olhar não
eletivo para a paisagem urbana buscam desenhar categorias e ordenamentos.
1
O passeio como estratégia, foi exercício coletivo proposto por Jailton Moreira no ano de 2003, tendo como
saída o Torreão e ponto final o Mercado Público de Porto Alegre.
2
Percursos, 2003 é a série de fotografias captadas enquanto se davam as Anotações da Caderneta, 2003.
As minhas fotografias mostram o percurso pelas evidencias do trajeto, da geografia
peculiar e da materialidade visível nos objetos encontrados ou avistados, onde segundo
Baudrillard “cada objeto fotografado não é senão o vestígio deixado pela desaparição de
todo o resto” (BAUDRILLARD. 1997.p.35). Isto nos faz perceber que somente a atenção
não da conta de reter o instante de visibilidade, então a fotografia contribui para reter o
observado, salvaguardando o invisível numa apreensão justificada no visível, onde
preservamos um tempo e a visão dele pela imagem. As Anotações da Caderneta (2003)
seguem o modo original como foram registradas e o conjunto de imagens pode resultar
em livro, alimentar um projeto de exposição fotográfica ou permanecer arquivado como
registro do percurso, deflagrando o processo seguinte. Uma cartografia própria passa a se
desenhar, como que, preservando e sinalizando um mapa particular de percursos físicos e
de vivências, que guardado e dobrado caberia em uma caixa ou gaveta. Que objetos
circulam nestes percursos? Como alteram a textura do mundo visível?
Vânia Sommermeyer
fig. 1,2,3 Percursos, 2003 (pelas ruas de Porto Alegre)
Trago de Walter Benjamin o conceito chave, de passagem, no qual os enunciados
são revelados pelas cidades contemporâneas, através de uma escrita como marca gráfica
e uma escrita em pensamento, pois “no autor moram, se alojam imagens, sabedorias,
palavras, que sem ele – quem poderia dizer se depois de tudo e de que modo se teriam
firmado em nossos dias?” (BENJAMIN, 1995.p.207).
A cidade e suas gavetas de 2003 é um mapeamento gráfico de momentos vividos
com base em minha relação com Novo Hamburgo, a cidade onde vivo desde 1962. Venho
assinalando num mapa os meus movimentos durante vários anos, e em fichas eu anoto
os fatos relevantes. Produzo um sistema de gavetinhas de papel no verso do mapa, que
ao serem puxadas deixam a mostra a descrição que se relaciona a cada local evidenciado
no mapa. O que resta de minhas vivências são uma imagem fotográfica e um mapa
espesso.
Nesta condição temporal de sujeito urbano, redesenho momentos em meio às
lembranças e os percursos, que ao serem revelados nas minúcias se mostram com
localizações precisas, como revela (CARERI, citado por SILVA. 2007, p. 25): “É como se a
deriva tivesse começado a criar na cidade uns vértices afetivos, como se a geração
constante de paixões tivesse permitido que os continentes, assumissem uma autonomia
magnética própria, e que tivessem empreendido por si mesmos sua própria deriva
através de um espelho líquido.”
3
Estes fatos se inscrevem indicando, o processo artístico
a seguir, que é construído na esteira da experiência4 e da constatação de sua poética,
onde Didi-Hubermann constata dois sentidos se abrindo para a palavra experiência: “o
sentido físico de um protocolo experimental e o sentido de uma apreensão do mundo”
(HUBERMANN, 1997)5. De igual modo encontramos em Paul Ardenne o termo arte
contextual onde temos a “experiência como regra artística”, dentro de um contexto real, a
partir da relação com as coisas concretas.6.
Com As anotações da caderneta, (2003) e A cidade e suas gavetas, (2003) os
achados circunstanciam-se e revelam as descobertas. Ao coletarmos os materiais temos a
presença dos fenômenos que se relacionam diretamente com o viver, com a experiência
que fazemos destas circunstâncias. Pela fotografia congelamos o que não podemos reter
entre os dedos. Os objetos que coleto, também como fragmentos da experiência - sobras,
restos – os denomino Lugares em repouso. Estes conteúdos são armazenados em caixas
no atelier para, num outro momento, quando por algum procedimento artístico, serem
ativados7. Podem igualmente permanecer inertes no Depósito das latências.
Fig.4 Pilhas laranjas fig.
Fig. 5 rolos de sobras de tecido Fig.6 (detalhe)
Vânia Sommermeyer Depósito das Latências, 2007
3
Intervenção FORMAS, 2007
CARERI, Francesco In: SILVA, Marina de Camargo. Dissertação de Mestrado/UFRGS: Desenho e pensamento:
imagem e texto, deslocamentos e cidades. Porto Alegre: 2007.p.25.
4
“A palavra experiência é composta pelo prefixo latino ex – para fora, em direção a – e pela palavra grega
peras - limite, demarcação, fronteira-, significa um sair de si rumo ao exterior, viagem e aventura fora de si,
inspeção da exterioridade”. In Arte e Pensamento.Org. Adauto Novaes. CHAUI, Marilena. Merleau- Ponty. Obra
de arte e filosofia. São Paulo. Editora Schwarcz. 1994.p.472,473.
5
Tradução de Patrícia Franca de Texto de Georges Didi-Huberman do Catálogo de Exposição – Centre Georges
Pompidou - Paris, 1997. “Impressão, marca, sinal”, 20001, p.4. 6 Segundo Paul Ardenne, “arte contextual é
uma arte de acontecimento, considerando o mundo este acontecimento”. É o “investir na realidade e nela ativar
um processo, numa temporalidade especifica”.
7
Em minha pesquisa os termos ativação e latência estão presentes, através de ações e operações conduzidas
no processo envolvendo os fragmentos cotidianos. Surgem coleções, imagens, colagens, objetos,
revestimentos, interferências e desvios nos processos de produção gráfica.
Lembro o quanto me marcou conhecer o trabalho do americano Robert Smithson
que com seu olhar contextual produzia deslocamentos de objetos e de informações, onde
“realizou na verdade um complexo interdisciplinar, envolvendo objetos, mapas, desenhos,
fotografias e filmes, além de notáveis site specific”, onde relacionava “o dentro e o fora, o
natural e o urbano, a arte e ciência, o fixo e o móvel, a forma e o informe, bem aos
moldes do ‘entrelaçamento dos termos’ de que falava Merleau-Ponty, e já bem distante
do estruturalismo minimalista.” (CANONGIA, 2005. p.70). Interessa-me muito observar
este artista exatamente pela dinâmica da operação de deslocamento e de suspensão que
ele produz. Nos anos 70 Gordon Matta-Clarck atua de forma política no espaço público,
enquanto na Inglaterra o inglês Richard Long, impõe-se uma estratégia de marcar,
percorrer espaços abertos. Também Francis Alys, artista que vive no México, se fixa no
passeio como arte, transformando as cidades em laboratório de suas proposições. No
Brasil tivemos bem antes disso, num caráter performático e radical o artista Flavio de
Carvalho que “em plena procissão de Corpus Christi, pôs-se a caminhar no contra-fluxo
dos fiéis, com um nada discreto chapéu verde musgo na cabeça” 8. Estava inaugurada a
Experiência nº. 2 (1931) seguindo-se a Experiência nº. 3 em 1956. Depois temos Hélio
Oiticica, que propunha o seu Delírio Ambulatórium (1978) com Luis Fernando Guimarães
visando: "caminhar pela periferia da área-baldia demarcada durante a duração da
performance”
9
. Para ficarmos com um exemplo mais próximo de nós, temos na
pesquisa10 conduzida pela artista Maria Ivone dos Santos dois momentos envolvendo a
cidade: Fração Localizada: Dilúvio (2004) e Fração Localizada: Camelódromo (2007).
Sobre a pesquisa diz Maria Ivone: “nos dedicamos a observar o espaço urbano integrando
as caminhadas, suas experiências e seus reconhecimentos em nossa prática artística.
Ambas encontram-se em pontos nevrálgicos de Porto Alegre no que tange a ocupação
humana e às atividades e destinos dados a estes lugares ao longo do tempo”
11
.
Quando Georges Perec diz que “poderíamos escrever nas paredes (como se escreve
às vezes nas fachadas das casas, nos tapumes de obras, nos muros das prisões), mas
raramente o fazemos” (PEREC. 1973. Trad. por SILVA), me volta a imagem daquela frase
na parede, onde “abismados” pelo que vemos realizamos o incomum através dos relatos,
anotações, mapas, fotografias, coletas e intervenções.
8
MACHADO, Vanessa (bolsista). Daisy V.M. Peccinini de Alvarado, coord. do Projeto Mapeamento Flávio de
Carvalho, MAC, USP.
9
OITICICA, Hélio. In. Programa HO. Tombo 0091/78-5/7. Itaú Cultural. SP.
10
“As extensões da memória: a experiência artística e outros espaços” é pesquisa conduzida desde 2004, pela
Drª.profª. Maria dos Santos, PPGAV, UFRGS.
11
SANTOS, Maria Ivone. A observação de um lugar urbano como ação da arte. No prelo.
fig.7 Móvel da Sala
Vânia Sommermeyer.
fig.8 capa do banco
fig.9 Dobras, 2007
Intervenção Formas, 2007. Espaço de Montagem, IA, UFRGS.
Os deslocamentos e suas vibrações revelam o que a cidade nem sempre mostra:
sua superfície feita tecido, pele, membrana, onde o artista, este que capta a energia dos
lugares e dos fragmentos, produz um diário sempre em expansão. Neste ponto Paul
Michel, o personagem de Alucinando Foucault, poderia supor que, “ainda que os edifícios,
caminhos e lojas mudem de fisionomia, continuam a ser apenas a superfície das coisas”.
E é nas superfícies deste mundo; nos objetos, edifícios e absolutamente tudo o que lhe
cobre; que meu olhar toca e fixa nas fotografias, e alimenta os trabalhos que seguem no
meu processo artístico, as capas e os recobrimentos, as latências guardadas e seus novos
agenciamentos.
12
Bibliografia
Livros:
ARDENNE, Paul. Un Art Contextuel. Création artistique en milieu urbain, en situation,
d’intervention, de participation. Paris, Flamaarion. 2004.
BAUDRILLARD, Jean. A arte da desaparição. Rio de Janeiro. Editora da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. 1997.
BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única. São Paulo. Editora Brasiliense. 1995
_______________ .Passagens, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
BERNARDES, Maria Helena. Retrato da Utopia. In: Alexandre Santos e Maria Ivone dos
Santos (Orgs). A fotografia nos processos artísticos contemporâneos. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2004.
NOVAES, Adauto (org.) Artepensamento. São Paulo. Editora Schwarcz. 1994.
CANONGIA, Ligia. O legado dos anos 60 e 70. Rio de Janeiro. Jorge Zahar. 2005.
12
http://www6.ufrgs.br/escultura/espaco_montagem/vania.htm
DUNCKER, Patrícia. Alucinando Foucault. São Paulo: Editora 34.1998.
PEREC, Georges. Espécies de Espacios. Paris. Montesinos. 1973.
Revistas:
Porto Arte. Revista de Artes Visuais. Porto Alegre: UFRGS, n. 15, 1997.
Revista Educação & Realidade. jan. /jun. de 2004.
Catálogo:
DIDI-HUBERMANN, Georges. Do Catálogo de Exposição – Centre Georges
Pompidou-Paris, 1997. Tradução de Patrícia Franca de “Impressão, marca, sinal”, 20001,
p.4.
Links:
http://www.macvirtual.usp.br/mac/templates/projetos/seculoxx/modulo2/modernidade/ei
xo/cam/artistas/carvalho3.html
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=docu
mentos&cod=462&tipo=2
http://blogs.publico.pt/artephotographica/files/mariacseren.html.
Dissertação:
SILVA, Marina de Camargo. Dissertação de Mestrado/UFRGS: Desenho e pensamento:
imagem e texto, deslocamentos e cidades. Porto Alegre: 2007.p.25.
Artigo:
SANTOS, Maria Ivone dos Santos. A observação de um lugar urbano como ação da arte.
(no prelo)
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PDF - Editora Panorama Crítico