Introdução
O sonho de Silvia
Silvia sabia que estava sonhando. Dentro do sonho, dizia–lhe, baixinho, uma voz nublada:
— É apenas um sonho.
Um sonho que se desenrolou como um filme estranho, em preto e branco. Uma câmera
filmadora, em close, afastou–se dela aos poucos. Alguém gritou atrás da cortina:
— Ação!
Luzes acenderam–se no meio do palco. Sem curiosidade, olhou–se no espelho. Era uma
bailarina e dançava dura na ponta do pé, num teatro antigo. Ensaiava para uma apresentação e
parecia bastante concentrada. Deu uma volta leve e ao ficar de frente para a plateia vazia, notou
que um homem a observava com frieza. Olhando para os lados, hesitante, e como se não tivesse
controle sobre o corpo, seguiu dançando ao ritmo da música suave.
O homem, magro e apenas um pouco mais alto que a menina, subiu ao palco, ignorando–lhe a
presença. Carregava nos ombros uma borracha grande, e dentro do peito de homem pequeno e
pontudo, um soluço repetitivo. Aproximou–se dela, indiferente, huc huc huc, o soluço cada vez
mais forte. Será que não vê que estou ensaiando? — perguntou–se, pálida. Desconcentrou–se,
parou para observar o que ele fazia. O homem avançou calado, o rosto liso e sem expressão,
parecia mais preocupado em trazer a borracha para o centro do palco. Mas esforçava–se tanto
para andar que os pés afundavam no tablado velho, fazendo um barulho irritante, que se
misturava ao soluço: heinc, heinc, huc, huc.
Não suportando aquele ruído de nozes estilhaçadas, decidiu fazer de conta que ele não estava
ali, respirou fundo e voltou a dançar — o espetáculo vai começar daqui a pouco, pensou. O
homenzinho parou um instante, precisou respirar fundo, o soluço comprido persistia, huuuc,
huuuc. Tirou os óculos do rosto, enxugou a testa com um lenço. Com o dedo indicador, parou
uma gotinha de suor que rolara até a ponta do nariz de faca. Avançou um pouco mais e parou
em frente à menina, que rodava desajeitada, como uma boneca manipulada por cordões
invisíveis. Com a cara limpa e fresca, parecia mais sério. O soluço, porém, retornou forte e com
tamanha intensidade que os pés tamborilaram no chão, tuc tuc tuc huuuc! Ele tentou equilibrar–
se, mas o corpo tremeu uma dança esquisita, de ossos rangendo, tac, tac, tac huuc! Tapou o
nariz, fechou a boca, prendeu a respiração, mas depois explodiu vermelho de raiva:
— Huuuc!
Silvia estremeceu ao vê–lo tão furioso, também ela perdia a paciência, tentando equilibrar–se
— mas como era difícil com aquele homenzinho por perto! Notou, minutos depois e para sua
surpresa, que dançava sem música. Quem desligou o rádio? — perguntou–se. Sem que ela
percebesse — ainda tentava equilibrar–se na ponta do pé, dura, com a cabeça erguida —, o
homem tirou uma fita métrica e mediu–lhe o tamanho das pernas. Ele ainda tremia com o
soluço e tentava a todo custo controlar–se, o rosto contaminado por uma raiva vermelha.
— Huc huuc, cheeega! — gritou com tanta força que caiu para trás, como se levasse um soco.
Com o impulso, derrubou a borracha no chão e o suspensório soltou plác! a calça de saco,
deixando aquele pedacinho de homem envergonhado — e a vergonha o deixava ainda menor.
Ela de novo se assustou, virou–se sem jeito e quase torceu o pé.
Sem olhar para os lados, ele segurou a calça pra que não caísse outra vez, ajeitou clic clác o
suspensório listrado. Por outro lado, ela não conseguia sair da posição de bailarina de perna–
de–pau, e dava saltos amarrados. Que estranho, não consigo me mexer! — pensou suando. Ele
aproximou–se dela novamente. Segurou a borracha com as duas mãos, ajoelhou–se e, sem fazer
o mínimo ruído, começou a apagar as pernas com rapidez.
— É muita perna, muita perna. Perna demais... — grunhiu, afastando–se dela alguns
centímetros.
Silvia achou estranho o jeito como ele a olhava, mas sem notar nada diferente em si, continuou
dançando com metade das pernas. Sentiu até que se equilibrava melhor em pernas de vento.
Que curioso! Me sinto tão leve! — animou–se. O homenzinho ficou intrigado. Como é que ela
ainda consegue dançar?
— Perna, ainda perna!
Como se acabasse de ter uma nova ideia, riu satisfeito, hic hic hic. Decidiu usar outra técnica
e tirou do bolso um pincel menor que o dedo mindinho. Que será que ele vai fazer com esse
pincel de palito? Ele, que a seguia como uma raposa lânguida, aproximou–se da presa
novamente. Ajoelhou–se, e sem perder tempo hic hic huc — o soluço estalando fino —,
segurou com força a ponta do pincel minúsculo e molhou–o numa tinta invisível. Passou uma
camada no que restava das pernas, com cautela, é muita perna, e riu com prazer. Em seguida,
puxou–lhe o fio de saia e a menina saiu dando voltas e voltas pelo palco. Onde vou parar?
Sentiu vontade de gritar, mas por algum motivo não conseguia. Rodopiou forte, como um
pião, sentiu o vento fresco no rosto, rodou, rodou, e parou flácida em frente à plateia — que
agora estava completamente cheia. Meio tonta, não pôde ver nada além de rostos confusos.
Mas o espetáculo não começou ainda! Apertou os olhos, viu pontinhos brancos no ar; sem
saber o que fazer, cega e nervosa, riu desconcertada.
— Não vai dançar? — perguntavam, num silêncio nervoso, rostos de bichos domesticados.
— Essa menina não dança — cochichavam na plateia.
Ela estava paralisada e fria. Procurou os pais, o rostinho de cereja da irmã, mas só encontrou
desconhecidos em estado de choque:
— Silvia, está tudo errado! — gritaram num pavor uníssono.
Apontavam para ela, que seguia dura no palco. Olhou para os lados, em busca da saída. Quero
correr, tentou sem êxito. As pessoas vieram em sua direção. Um senhor aproximou–se e, com
uma lupa, constatou zangado:
— Não é uma bailarina de verdade!
Ela não entendeu o que queriam dizer, buscava desesperadamente a saída. Quero sumir! Tentou
novamente, sem conseguir sair do lugar. De repente, ouviu–se um grito.
— Aqui estão as pernas dela! — disse uma mulher dentuça, segurando duas pernas de boneca.
Silvia ficou apavorada. Todos riram ao olhar para ela e para as pernas de plástico. Atrás da
cortina, a mesma voz ressurgira, áspera:
— Corta!
Ela viu–se no espelho e, atônita, olhou para baixo. Tentou expulsar as palavras, com aflição:
minhas pernas! Mas só pôde ver a altura da queda.
Acordou agitada:
— Minhas pernas de bailarina!
Abriu os olhos, em estado de choque. Ficou uns segundos deitada em silêncio, sentiu um alívio
ao ver que já havia amanhecido. Detestava acordar assustada no meio da noite porque nunca
voltaria a dormir depois de um sonho daquele!
Enfiou a cabeça debaixo do lençol, viu que as pernas continuavam ali, fortes e resistentes.
Adorou sentir o peso delas no colchão. Fez círculos no ar com os pés, que brotavam fora do
lençol. Para ter certeza de que nada havia acontecido, esticou as pernas de elástico no ar,
dobrou–as com cuidado. Encostou o queixo nos joelhos, enrolou–se como um caracol, e
guardou as pernas de bailarina numa caixinha que o próprio corpo dava forma. Em seguida,
pulou da cama, enérgica. Quando estava a ponto de sair do quarto, parou ao ouvir os passos da
mãe e da irmã descendo as escadas:
— Hoje é dia de surpresa de Silvia! — gritou a menina. — E o bolo, onde está o bolo?
— Maria, fale mais baixo. Assim não há surpresa que resista! — repreendeu a mãe com ternura.
A voz da mãe trouxera–lhe conforto. Ficou feliz ao saber que preparavam alguma surpresa para
o aniversário dela. Como era bom saber que tudo não passara de um sonho. Saiu do quarto,
vestida em pijamas, na ponta do pé. Sentiu uma vontade enorme de pular, sentia uma energia
estranha. Mal podia esperar para contar o sonho à irmã. Aliás, uma coisa que muito apreciava
fazer era sentar–se com Maria, que tinha cinco anos, no parque ao lado de casa, e ler estórias
debaixo de um pé de folhas tristes. Há poucos dias, contara–lhe a estória de uma família que
morava numa casa de cabeça para baixo.
— E como as pessoas andam dentro dessa casa? Com os pés na cabeça? — perguntou–lhe
Maria, curiosa.
— Não! É uma casa como a nossa, mas a cozinha é no andar de cima e o quarto dos pais fica
na sala, e a sala fica onde seria o banheiro. Ah, e as crianças dormem em tapetes voadores.
Desceu as escadas, plinc–plác, as pernas estalavam a cada movimento. Na sala, encontrou o
pai e a irmã, ocupados em juntar as bolas de assopro num canto. Ela os observou em silêncio
por uns segundos. Uma bola vermelha estourou.
— Que susto! — disse a mãe, ao entrar na sala com uma bandeja.
Silvia não se assustou, mas sentia as pernas moles como borracha.
— Aí está você! Feliz aniversário! — disse o pai.
— Hoje é dia de festa; então, vamos ao que interessa! — gritou a irmã.
— Mas se nem penduramos as bolas! — disse a mãe, que gostava de ver tudo arrumado.
Deram de ombros e lhe entregaram um dos presentes, um livro de fotografia de animais em
extinção.
— Sabia que alguns animais de que você tanto gosta podem desaparecer para sempre, se nós,
seres humanos, não fizermos nada pra ajudá–los? — perguntou–lhe o pai.
Ela olhou para ele, tinha olhos profundos e cansados. Folheou algumas páginas, viu a foto de
um mico–leão dourado, e pensou que mal aquela criatura teria feito para correr o perigo de
sumir do mundo para sempre.
Sentou–se à mesa e olhou para o bolo. Contou as dez velas que apagaria com a disposição que
só uma criança tem de envelhecer. Imaginou quantas crianças estariam também comemorando
aniversário e comendo bolo no café da manhã. Hum... bolo de manhã, acho que só aqui em
casa — pensou com doce alegria. Naquele momento sentiu–se tão feliz, pareceu–lhe
impossível conter inesperada energia. Quero correr, quero pular! A felicidade transbordava
como se ela fosse um balde cheio de furos. De repente, percebeu que estava sozinha na sala,
perdida com seus pensamentos. Onde estão todos? Será que preparam uma surpresa? Ouviu,
ao longe, um movimento na casa, um abrir e fechar de gavetas, procuravam alguma coisa.
— Não consigo encontrar a câmera fotográfica — disse o pai.
— Já falei que deviam deixar as coisas no mesmo lugar — respondeu a mulher.
Silvia vira aquela cena antes. As coisas na casa tinham o poder de sumir na hora em que mais
precisavam delas. O pai sempre perdia a chave do carro minutos antes de sair, a mãe nunca
encontrava a chave de casa quando chegavam da escola. Tinham mania de dizer: “os objetos
nessa casa têm pernas!”. A menina riu ao lembrar que os objetos, sim, tinham pernas invisíveis.
Esperou longos minutos. Sem saber o porquê, a alegria apagava–se. Empalideceu. Olhou ao
redor, viu tudo turvo, como num sonho. O bolo movia–se de um lado para o outro. As paredes
comprimiam–se. Ficou tonta. Passou as mãos esverdeadas no rosto frio. Olhou para a palma
das mãos com pavor. O que está acontecendo? Tentou gritar, mas ouviu apenas o eco dentro
dela. Estava sonhando outra vez. Beliscou o braço e os dedos afundaram–se na pele. Olhou
para o lado, a irmã corria atrás das bolas que escapavam pela janela. Esforçou–se para chamar
a menina, mas só conseguiu abrir e fechar a mandíbula seca:
— Ma–ri–a, me a–ju–de! — e as palavras escorregaram pela garganta.
Apoiou a cabeça na mesa, fraca, e quando olhou para baixo, a imagem do sonho voltou com
um golpe fatal. Não podia acreditar no que via: as pernas acabavam de desaparecer! Minhas
pernas, gemeu, sem forças. Apesar de continuar sentada, sentiu rastejar–se pelo chão da sala.
Alguém... me ajude!, desesperou–se. E, delirando, acreditou ter visto o homenzinho do sonho
atrás da cortina. Procurou–o pelos cantos. Ah, ele desapareceu outra vez! Aos poucos, o corpo
foi sumindo como sob efeito de uma borracha mágica. Olhou–se com pavor. Só tenho o tronco
e a cabeça! Experimentou grande desespero ao se ver tão vazia. Escutou os pais aproximando–
se da mesa, onde ela estava sentada de “costas”. Sentiu um alívio passageiro. Oh, mas eles não
podem me ver assim!, retomou a consciência. Tentou manter a cabeça reta e erguida, era a
única parte do corpo que lhe restara. Prendeu a respiração — aquele minuto se fizera eterno —
e pôde ouvir a última frase do pai, atrás dela:
— Silvia, olhe para mim e diga Xis.
Fez um esforço para virar–se — a cabeça flutuava —, mas os olhos fecharam–se plát!, duas
portinhas de madeira. Ela deu o último e longo suspiro, o rosto apagando–se por completo.
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