UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
NEEMIAS OLIVEIRA DA SILVA
CARPE DIEM:
RITUAIS COTIDIANOS NO SATYRICON – PETRÔNIO E FELLINI
São Paulo
2009
NEEMIAS OLIVEIRA DA SILVA
CARPE DIEM:
RITUAIS COTIDIANOS NO SATYRICON – PETRÔNIO E FELLINI
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação, Arte e História
da Cultura da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, como requisito parcial à obtenção
do título de Mestre em Educação, Arte e
História da Cultura.
Orientador: Profº Dr. Martin Cezar Feijó
São Paulo
2009
S586c Silva, Neemias Oliveira da.
Carpe Diem: Rituais Cotidianos no Satyricon – Petrônio e Fellini
/ Neemias Oliveira da Silva – 2009.
271 f. : il. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da
Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2009.
Orientadora: Profº Dr. Martin Cezar Feijó
Bibliografia: f. 138 - 150.
1. Satyricon. 2. Frederico Fellini. 3. Cinema. 4. História.
5. Literatura. I. Título.
CDD 791.4
NEEMIAS OLIVEIRA DA SILVA
CARPE DIEM:
RITUAIS COTIDIANOS NO SATYRICON – PETRÔNIO E FELLINI
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie como requisito
parcial para a obtenção do título de
Mestre em Educação, Arte e História da
Cultura.
Aprovado em
BANCA EXAMINADORA
Profº Dr. Martin Cezar Feijó- Orientador
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Profª Drª. Márcia Angelita Tiburi
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Profº. Dr. Ronaldo Entler
Universidade Estadual de Campinas
Aos meus pais, Nadir Alves da Silva e Valdomiro
Oliveira da Silva.
Ao meu orientador, o Prof. Dr. Martin Cezar Feijó.
AGRADECIMENTOS
A primeira palavra de gratidão vai para aqueles que se mantiveram firmes e
presentes em momentos que ora sucumbi. Aos meus pais Valdomiro Oliveira da
Silva e Nadir Alves da Silva pelo apoio e amor incondicional.
Ao meu orientador, o Prof. Dr. Martin Cezar Feijó, sempre presente e atuante
ao me conduzir pelo caminho da pesquisa. Sem seu olhar, por vezes crítico, seria
difícil o caminhar. Sou grato pelo seu cuidado, apoio, atenção e respeito pela minha
forma de pensar.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Educação, Arte e História da Cultura pela formação Interdisciplinar singular. São
eles: Prof. Drª Jane de Almeida, Prof. Dr. Martin Cezar Feijó, Prof. Dr. Marcos
Masetto, Prof. Dr. Paulo Monteiro, Prof. Drª Petra Sanchez Sanchez, Prof. Dr. Wilton
Luiz Azevedo, Prof. Dr. Sérgio Bairon, Prof. Dr. Norberto Stori, Prof. Dr. Marcos
Rizolli e o Prof. Dr. Arnaldo Daraya Contier.
Aos membros da banca de qualificação e defesa pública pelas considerações
no presente estudo. As observações e os apontamentos foram essenciais para o
desenvolvimento deste estudo. Sou grato a Prof. Drª Sandra de Cássia Araújo
Pelegrini (Universidade Estadual de Maringá – UEM) pelo carinho e apoio, a Prof.
Drª Maria Aparecida de Aquino e o meu orientador, o Prof. Dr. Martin Cezar Feijó e
ao Prof. Dr. Ronaldo Entler e a Prof. Drª Márcia Tiburi.
Ao Prof. Dr. Michel Marie (Universidade de Paris III – Sorbonne) e ao Prof. Dr.
Fernão Ramos (Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP) por terem me
aceitado como aluno especial no Programa de Pós-Graduação em Multimeios.
Ao Prof. Dr. Ronaldo Marin e ao Prof. Dr. Ernesto Giovanni Boccara pelo
apoio e participação no Programa de Pós-Graduação em Multimeios – UNICAMP.
À Prof. Drª Renata Senna Garrafoni da Universidade Federal do Paraná
(UFPR) pelo envio de artigos e periódicos inéditos, que muito contribuíram para o
enriquecimento desta pesquisa. Seus estudos acadêmicos serviram de inspiração
para o desenvolvimento desta pesquisa.
À Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e a CENP (Coordenadoria
de Estudos e Normas Pedagógicas), que possibilitou o financiamento desta
pesquisa. Em especial a comissão responsável pelo Programa de Bolsa Mestrado
da Diretoria de Ensino Campinas Oeste, representada pela Corinta, Neusa Fassani e
Silvana (in memorian), que acompanharam e auxiliaram no desenvolvimento desta
pesquisa.
Ao MACKPESQUISA que financiou os estudos na Fundação Federico Fellini
em Rimini – Itália.
Ao Guiseppe Ricci, arquivista da Fundação Federico Fellini pela recepção
calorosa em Rimini.
Aos amigos de Portugal, Espanha, Bolívia, Peru, República Dominicana e
Argentina que compartilharam comigo momentos inesquecíveis em Roma – Itália.
À “República Chinatown”, minha família em Campinas, agradeço aos amigos
e físicos, o Prof. Ms. Pedro Alves da Silva Autreto (UNICAMP), pelas sugestões e
incentivos nesta pesquisa, o Prof. Ms. Éder Arnedo Perassa (UNICAMP), pela
leitura, o incentivo e a revisão, ao amigo e economista, Bráulio Amais Bracero
(UNICAMP), pelo apoio, leitura e revisão, e ao jornalista Júnior Milério (PUC Campinas), pela leitura e crítica. A todos vocês sou muito grato pela paciência e
consideração nestes três anos de convivência.
Aos Profissionais de Educação que fizeram e fazem parte da minha vida na
Escola Estadual Padre Antônio Móbile (Campinas), são eles: Hélio Rocha, Ignês
Capellari, Leandro, Maria do Carmo, Nair, Marilza, Sônia, Telma Regina, Valéria,
Maria Tomázia, Valdir Paranhos, Antônia (Toninha), Alexandra, Flôr, Lucas Lemos,
Lara Molina Pampulini, Silvana Ferreira, Lúcia Rodrigues Faria, Lúcia Helena, Marta
Maria, Marta, Jane, Sofia, Andréia, Carlos Henrique, Gilmar (Gil), Érica Ap.
Tamburus, Bernadete, Felipe, Deuzani, Vitor, Silvia, Fátima, Paulo, Adriano, Márcia,
Dailva, Rosely, Mônica, Luciano Carlo Pereira Neto, Sandra Regina Braga, Vânia
Rocha, Aparecida (Cidinha), Leonice Silva, Carlito F. da Silva, Sandra e a amiga
Aldemara Pagani. A todos estes sou muito grato pelo apoio, bem como aqueles da
qual não citei, provável injustiça de minha parte, a estes peço desculpas. Assim, os
nomes citados representam colegas, companheiros e funcionários que tive o
privilégio de conviver nestes quatro anos de funcionalismo público na carreira como
docente.
A todos os meus alunos, bem como as Professoras Maria Isabel Baptistão e
Renata Basso, pelo carinho, atenção e o constante apoio na jornada acadêmica.
Aos amigos eternos que me acompanharam desde a graduação, o Prof. Ms.
Leandro Brunelo (Universidade Estadual de Maringá – UEM) e a Prof. Ms. Cláudia
Maria Gusson (Universidade de São Paulo – USP), bem como a Prof. e amiga
Josineide Alves da Silva e ao amigo Gilberto Robson Santana. A vocês sou muito
grato por tudo o que fizeram por mim, sem vocês a vida acadêmica seria bem mais
difícil de ser trilhada.
A todos os amigos do curso de mestrado, turma do primeiro semestre de
2007, em especial a Design Júlia Stateri e ao Pedagogo Thiago Carvalho Barbosa,
que sempre estiveram presentes e atuantes nesta etapa de minha vida.
Aos membros do grupo de pesquisa Moderno/Contemporâneo: Culturas e
Educação da Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM.
Às amigas, Carol Boari, Carolina Franco e Zane pelas dicas e orientações no
decorrer do curso.
A todos os amigos do Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo
(APEOESP), em especial, Suely Fátima (diretora Estadual), Nely (Nelinha), Luciana
(Lú), Daniela Caetano e a historiadora Kátia.
Aos professores do Departamento de História da Universidade Estadual de
Maringá – UEM, que contribuíram para minha formação acadêmica.
À amiga e advogada Drª Damaris Moura Kuo.
Aos Professores João Carlos de Oliveira e Luzia Brígida de Oliveira D‟Avila
pelo constante apoio em cursar o mestrado. Agradeço também a todos os meus
amigos de Alto Piquiri (PR), Maringá (PR), Campinas (SP) e São Paulo (SP).
Aos meus tios Irassi Sossai e José de Oliveira pelo constante apoio em seguir
a carreira acadêmica.
Ao Prof. Igor Alexandre Capelatto, pelas aulas de Cinema.
À Profª. Ms. Daniella Basso pelos apontamentos, correção e revisão.
A todos os professores, amigos e familiares. E a você leitor desta dissertação,
muito obrigado!
Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi,
quem tibifinem di dederint, Leuconoe, nec
Babyloniostemptaris numeros. ut melius,
quidquid erit, pati. Seu pluris hiemes seu
tribuit Iuppiter ultimam, quae nunc
oppositis
debilitat
pumicibus
mare
Tyrrhenum: sapias, vina liques et spatio
brevi spem longam reseces. Dum loquimur,
fugerit invidaaetas: carpe diem quam
minimum credula postero.
(HORÁCIO, Odes – I, 11.8, 65 – 8 a.C)
Não pergunte, saber é proibido, o fim que os
deuses darão a mim ou a você, Leuconoe,
com os adivinhos da Babilônia não brinque.
É melhor apenas lidar com o que cruza o
seu caminho. Se muitos invernos Jupiter te
dará ou se este é o último, que agora bate
nas rochas da praia com as ondas do mar
Tirreno: seja sábio, beba seu vinho e para o
curto
prazo
reescale suas
esperanças.
Mesmo enquanto falamos, o tempo ciumento
está fugindo de nós. Colha o dia, confia o
mínimo no amanhã.
(HORÁCIO, Odes – I, 11.8, 65 – 8 a.C)Trad: Prof. Dr.
Paulo Martins – FFLCH/DLCV/USP
RESUMO
Este estudo tem por objetivo traçar uma discussão sobre os rituais cotidianos
inseridos na obra fílmica o Satyricon de Federico Fellini. Este trabalho compreende o
ritual, no latim ritualis, como um conjunto de práticas do homem, repleta de valores
simbólicos aos quais foram recriadas e incorporadas pela indústria cinematográfica.
Portanto, a análise da obra fílmica será baseada na obra literária Satyricon de
Petronius escrita no século I d.C. A ponte para compreender dois mundos, do
Clássico ao contemporâneo, é o foco no diretor e produtor do filme: Federico Fellini.
As festas populares, a dança, o misticismo, a religião são expressões humanas que
servem de mediação das tradições culturais de um determinado grupo social e que
passou a se integrar na linguagem cinematográfica. Nessa perspectiva, nós
buscamos mapear os rituais cotidianos e as representações dos indivíduos inseridos
em seu próprio tempo e espaço. Desta forma, a metodologia usada para analisar o
filme e a obra literária será baseada na leitura do material bibliográfico. Através da
análise da obra fílmica Satyricon de Federico Fellini, nós analisaremos o quanto da
Filosofia de Epicuro do Carpe Diem está inserida nos rituais cotidianos e como a
indústria cinematográfica usa a linguagem ritualística.
Palavras-Chave: Satyricon, Federico Fellini, Cinema, História, Literatura, Ritual,
Símbolo.
ABSTRACT
This study aims to map out a discussion about the daily ritual inserted on the filmic
work Satyricon of Federico Felini. This work includes the ritual, in latin "ritualis", as a
set of practices of man, replete of symbolic values which have been recreated and
incorporated by the film industry. Therefore the analysis of filmic work will be based
on Satyricon of Petronius literary work which was written in the first century AD. The
bridge to understand two separate worlds, the contemporary and the classic, is the
focus on director and producer of movie: Federico Fellini. The popular festivals, the
dance, the mysticism, the religion are human expressions that are used for mediation
in cultural traditions of a particular social group and that began to integrate itself in
the film language. From this perspective, we try to map the daily rituals and
representations of individuals which are include on own time and space. In this way,
the methodology used to analyse the movie and literary work will be based in the
reading of the bibliographic material. Through of the analysis of the filmic work
Satyricon of Federico Fellini, we will examine how far the Epicuru's philosophy of
Carpe Diem is inserted in daily rituals and how the film industry uses the ceremonial
language.
Key Words: Satyricon, Federico Fellini, Movies, History, Literature, Ritual, Simbol.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1
Cena do Satyricon – despedida............................................................ 115
Figura 2
Cena do Satyricon – despedida (2)....................................................... 115
Figura 3
Cena do Satyricon – despedida (3)....................................................... 116
Figura 4
Cena do Satyricon – despedida (4)....................................................... 118
Figura 5
A morte de dois patrícius....................................................................... 122
Figura 6
Veias abertas........................................................................................ 123
Figura 7
Rito de preparação para a morte.......................................................... 124
Figura 8
No Templo, guardiões de Hermafrodite................................................ 125
Figura 9
Torre de Babel – Insulae....................................................................... 129
Figura 10 Jardim dos prazeres.............................................................................. 130
Figura 11 O Banquete de Trimalquião.................................................................. 133
SUMÁRIO
PRÓLOGO............................................................................................
13
INTRODUÇÃO......................................................................................
20
1
AS FONTES: PETRÔNIO E FELLINI..................................................
49
1.1
O SATYRICON DE PETRÔNIO...........................................................
49
1.2
O SATYRICON DE FEDERICO FELLINI.............................................
69
1.3
APONTAMENTOS SOBRE A IMAGEM CINEMATOGRÁFICA...........
91
1.4
CARPE DIEM E O HEDONISMO EM EPICURO.................................
102
2
UM OLHAR SOBRE OS RITUAIS DO SATYRICON..........................
108
2.1
UMA DEFINIÇÃO DE RITUAL.............................................................
108
2.2
AS CENAS...........................................................................................
111
2.2.1
Rituais do Sagrado.............................................................................
112
2.2.2
Encontrando os rituais......................................................................
115
2.2.3
Rituais do Profano.............................................................................
127
2.2.4
Rituais Festivos..................................................................................
131
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................
135
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................
138
ANEXOS...............................................................................................
151
PRÓLOGO
Vós que entrais no inferno das imagens perdei
toda a esperança.
(Abel Grance)
Ao dar início a este estudo fui tomado por muitos questionamentos. Questões
estas que se apresentavam frente aos diversos estudos já realizados pela
historiografia sobre o conjunto da obra literária de Petrônio 1, ou seja, o Satyricon.
Qual a importância desta obra para os nossos dias? O que ela representa? E qual
seria a contribuição em humanidades em relação ao estudo da obra literária?
Cabe ressaltar que o interesse em desvendar o mundo romano nasceu na
graduação, no curso de História, concluído pela Universidade Estadual de Maringá UEM, na qual tive a oportunidade de realizar uma pesquisa intitulada “O Clientelismo
nas Sátiras de Décimo Júnio Juvenal”, estudo este que ocorreu sobre o plano da
Iniciação Científica (2001-2003).
Ao desvelar o mundo Antigo através do estudo das Dezesseis Sátiras de
Décimo Júnio Juvenal defrontei-me com Petrônio, ambos eram literatos, satíricos
circunscritos ao Alto Império Romano sobre a égide do principado, no século I d. C.
Nesse viés, inspirado tanto pelos escritos de Juvenal quanto pela curiosidade
em saber um pouco mais sobre Petrônio fui conduzido ao encontro do cineasta
Federico Fellini.
Dessa forma, a obra fílmica o Satyricon de Fellini passou a compor meu
objeto de estudo. Os rituais cotidianos no Satyricon de Petrônio e Fellini é um
convite a conhecer as práticas do Homem Romano, tais como os laços sociais, as
relações de gênero e poder por intermédio do olhar do homem moderno. Esse
percurso entre um mundo e outro se torna possível graças ao cineasta e ao meio na
qual o mesmo se encontra, ou seja, o mundo do cinema.
1
Conhecido também como Gaius Petronius Arbiter ou Titus Petronius – 27-66 d.C
Com este espírito é que propomos interpretar o Satyricon de Petrônio e
Fellini, despindo-nos dos preconceitos e dos anacronismos vigentes, para com isso
nos situarmos como expectadores e atores do mundo em que nos encontramos.
Com isso, o mundo do espetáculo, da imagem, das relações de poder, da
sexualidade, da carnavalização se revela na intersecção entre o moderno e o antigo.
As páginas que ora traçamos são, portanto, uma tentativa de desvendar o
imaginário humano. A simbologia de Petrônio e de Fellini é múltipla, pois ambos
pertencem a uma sociedade plural. Os alicerces desse estudo se entrelaçam na
relação interdisciplinar entre a História, Literatura e Cinema, inserido na linha de
pesquisa: “História das Culturas e das Artes nas Sociedades Contemporâneas” do
Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura - UPM.
O cenário apresentado compreende um esboço do que ora pretendemos com
este trabalho. Assim, abrimos o leque de investigação para que juntos possamos
compreender os rituais cotidianos presentes na obra de Petrônio e Fellini.
A dissertação de mestrado que se segue é o resultado de um projeto de vida,
da busca pessoal pela qualificação profissional e a superação de novos desafios.
Desafios estes que se fizeram presentes em cada palavra, frase e capítulo
deste trabalho. Por vezes o desânimo e o cansaço em dividir o tempo de pesquisa
com as aulas de História no Ensino Fundamental e Médio da Rede Pública do
Estado de São Paulo me tomaram conta, mas movido pelo dever em concluir o
mestrado, bem como pelo interesse em buscar respostas para muitas questões
deste estudo me levaram para a concretização de um sonho, que ora torna-se
realidade em minhas mãos.
Neste momento, ao invés de obter respostas para minhas inquietações,
ampliei ainda mais o campo de indagações. Com isso, não posso considerar este
trabalho como um fim em si mesmo, mas uma possibilidade de discorrer sobre
novas temáticas ao qual por ventura possa interessar tanto os admiradores do
assunto, quanto aos historiadores e especialistas.
No que diz respeito aos desafios desta pesquisa, ressalto a problemática que
encontrei ao dialogar com as fontes. Ao construir o quebra-cabeça do pensamento
felliniano deparei-me com referências teóricas divergentes e outras que apontavam
diferentes caminhos para se compor o perfil do diretor e cineasta.
Muitos estudiosos da filmografia de Fellini afirmam que suas obras revelam
uma produção autobiográfica, no entanto existe uma linha de teóricos que defendem
que a produção dele era autônoma e ligada às questões políticas, em especial ao
regime totalitário da Itália fascista.
Entretanto, segundo o próprio cineasta, este não gostava de falar sobre
política, nem mesmo dos filmes que produzia. Embora como caricaturista satirizasse
a sua produção e a política italiana da década 60 e 70. Aqui levanto a seguinte
questão: teria Federico Fellini usado sua imagem e influência de diretor e cineasta
para construir um tipo personagem?
A leitura que devemos fazer de Federico Fellini deve ser uma leitura criteriosa,
pois ele mesmo se autodenominava como sendo um mentiroso nato. Outra
observação é quanto ao discurso do diretor. Assim, em que medida o discurso
felliniano seria um marketing pessoal?
Com isso, recorri à leitura do historiador Carlo Ginzburg em “Sinais: raízes de
um paradigma indiciário”2 para desnudar a fala de Fellini e as contradições de muitos
pensamentos teóricos. Na obra de Ginzburg, o historiador faz um paralelo entre o
papel do paradigma indiciário no interior das Ciências Humanas com relação à
semiologia médica. O autor procura mostrar que tal como o médico que produz seus
diagnósticos por intermédio da investigação dos sintomas e da observação do corpo
humano, do mesmo modo muitos outros saberes indiciários também podem ser
produzidos através de um conhecimento interpretativo, dos sinais, das pistas e dos
indícios.
De todo modo, Carlo Ginzburg propõe a análise do indivíduo com base no
paradigma indiciário, a leitura de Fellini deve ser feita pelas entrelinhas e pelas
2
GINZBURG, C. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, Emblemas, Sinais:
morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
pistas que o próprio Fellini nos fornece sobre sua postura ideológica 3 e
cinematográfica.
A metodologia para se compreender a produção de Federico Fellini se
constrói por meio de uma relação interdisciplinar. A narrativa historiográfica absorve
conceitos e práticas de outros campos da pesquisa científica, tais como a
psicanálise, a sociologia e antropologia. Dentro deste contexto, Federico Fellini
recorre à memória, quando constrói lembranças imaginadas, faz uso de caracteres
lingüísticos e antropológicos ao centrar suas discussões em torno da natureza do
homem. O cineasta inova o cinema italiano quando penetra no inconsciente do
espectador utilizando de recursos da psicanálise, definindo assim novos parâmetros
para se pensar a produção do cinema contemporâneo.4
3
A palavra “ideologia” apareceu por volta do fim do século XVIII, para designar a ciência das idéias;
todavia, seu sentido foi profundamente modificado pela ideologia marxista, que a definiu, geralmente,
como um conjunto das idéias e das crenças próprias a uma formação social. Além disso, o marxismo
situa a ideologia nas “superestruturas” sociais (ou seja, a esfera das idéias, do trabalho intelectual e
também do aparelho jurídico – político), que ele considera determinadas pela infra-estrutura
econômica. Como prática significante, o cinema participa das superestruturas ideológicas, em vários
níveis: a produção – além da ideologia econômica, na qual se inspira o sistema de produção dos
filmes, este repousa, em grande parte também, em uma ideologia da criação, via noção de autor; os
conteúdos – a ideologia encarna-se nos modelos tais como os gêneros ou os esquemas narrativos;
as formas – descritas como intrinsecamente não ideológicas na tradição realista que defende a
vocação do cinema à transparência, mas também em certas abordagens marxistas que as
consideram “linguagem” neutra, suscetível de veicular qualquer conteúdo, elas são, ao contrário,
consideradas intrinsecamente ideológicas em uma tradição marxista e vanguardista; a técnica – a
câmera, e a imagem cinematográfica, como termo da história da pintura e de seus códigos
representativos desde a Renascença, seria, pela própria construção, considerada ideologia que
atravessa essa história de representação, a “ideologia burguesa”. Assim, os conceitos abordados
neste trabalho podem ser encontrados em AUMONT, J; MARIE, M. Dicionário teórico e crítico de
cinema. Campinas: Papirus, 2003.
4
Sobre o papel da interdisciplinaridade, o Prof. Dr. Marcos Masseto – UPM ressalta que “[...] Na
interdisciplinaridade os olhares se integram permitindo que um novo conhecimento que não se
encontrava nem em uma e nem em outras disciplinas isoladamente, mas que surge pelo embate e
integração de aspectos de ciências diversas. A Interdisciplinaridade coloca as disciplinas em diálogo
entre si de modo que permite uma nova visão da realidade e dos fenômenos.” Cf: MASSETO, M. “Um
paradigma Interdisciplinar para a formação do cirurgião dentista.” In: CARVALHO, A.C. P; KRIGER, L.
(org). Educação Odontológica. São Paulo: Artes Médicas, 2006, v.1, p: 31-50. Para o historiador
Pedro Paulo Abreu Funari: “A Interdisciplinaridade não se resume à junção de fontes de natureza
diversas, mas consiste na articulação das diversas abordagens em um discurso único coerente.” Cf:
FUNARI, P.P.A. Antiguidade Clássica: a História e a Cultura a partir de documentos. Campinas:
Editora da Unicamp, 1995, p: 33. Com relação a “memória” utilizada por Federico Fellini em seus
filmes, a historiadora Déa Ribeiro Fenelon ressalta que esta é uma “das formas mais poderosas e
sutis de dominação e de legitimação”. Cf: FENELON, D. R; MACIEL, L.A; ALMEIDA, P.R; KHOURY,
Y (orgs). Muitas memórias, outras Histórias. São Paulo: Editora Olho d‟água, 2004, p: 6. Para a
autora “[...] como qualquer experiência humana, a memória é também um campo minado pelas lutas
sociais. Um campo de luta política, de verdades que se batem, no qual esforços de ocultação e de
classificação estão presentes na disputa entre sujeitos históricos diversos, produtores de diferentes
versões, interpretações, valores e práticas culturais. Cf: FENELON, D. R. et al (orgs), op cit., p. 06.
Ao propor o estudo acerca do Satyricon de Fellini com base em Petrônio,
busquei também no historiador Marc Bloch em “Apologia da História”5 o sentido da
criticidade e da análise do documento quanto fonte histórica e não apenas como
narrativa. Para o historiador francês Marc Bloch a produção historiográfica era antes
de tudo compreensão, reconstituição e duração.
Em comentário a obra de Marc Bloch o historiador medievalista francês
Jaques Le Goff ressalta que a tarefa do historiador é de investigar, de ir além da
própria ciência, de buscar entender a sensibilidade do espírito humano.
Com base nestes escritos retomamos Fellini e a sua relação com a sua obra.
Para ele a vida não era vista de forma linear, mas caracterizada pelo momento, da
duração do acontecimento sem a idéia do retorno, era o ideal epicurista do Carpe
Diem.6
Tendo em vista o texto inicial, este trabalho divide-se em dois momentos.
Sendo assim, o primeiro momento é composto pela Introdução que traz como título
“História e Cinema: a leitura do Clássico a partir da obra fílmica”. Nesta parte,
apresentamos o objeto de estudo, bem como a metodologia a ser usada com base
na relação interdisciplinar entre História, Literatura e Cinema.
5
6
BLOCH, M. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
Termo empregado no latim como sinônimo colha o dia ou aproveite o momento. A escola filosófica
epicurista foi fundada por Epicuro (341 – 270 d.C), na qual defendia que o próprio homem era quem
traçava seu destino e o do seu conhecimento. Este deveria buscar o prazer da vida, mas sem se
esquecer do exercício de uma vida virtuosa. Para Epicuro, o prazer estava ligado ao bem, enquanto a
dor representava o mal. Nesse sentido, o supremo prazer pertencia à natureza intelectual e o seu
domínio passava pela superação das paixões humanas. Cf: BRUN, J. O Epicurismo. Lisboa: Edições
70, 1987. Tanto o epicurismo quanto o Estoicismo buscavam soluções para os problemas existenciais
do ser humano, para que o homem pudesse alcançar a felidade individual, como bem nos observa o
filósofo Pierre Léveque: “A filosofia se apresenta agora como uma proteção contra a destruição do
homem que não encontra mais razões para viver na sua função de cidadão. Ela pretende
primeiramente encontrar uma solução para o problema da felicidade e, nos dois casos (epicurismo e
estoicismo), apesar de diferenças evidentes, a resposta é a mesma: a felicidade está no domínio
sobre si própria de uma alma que se escapa do mundo, que se liberta do contingente, que consegue
atingir um estado de indiferença (ataraxia para uns, apatia para os outros) onde nada mais a poderá
atingir.” Cf: LÉVÊQUE, P. O Mundo Helenístico. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 115
O diálogo da História com o mundo das artes nos conduzirá ao Capítulo I,
intitulado “As fontes: Petrônio e Fellini”. Com isso, a discussão exposta nesta parte
nos dará o alicerce para seguirmos rumo ao segundo momento deste trabalho, isto
é, a análise do objeto fílmico, o Satyricon de Federico Fellini com base na obra
literária de Petrônio. Para isso, optamos pela escolha de determinadas cenas do
Satyricon para melhor compreendermos os rituais cotidianos do mundo Clássico ao
contemporâneo.
Portanto, este trabalho tem o anseio de buscar compreender o homem pelo
homem no percurso entre o Clássico e o Contemporâneo. Este percurso histórico é
o encontro com o significado daquilo que somos e do que representamos em vida.
Nesse aspecto, a relação do homem com o meio em que vive ocorre por meio das
variadas construções simbólicas, da constante busca da se expressar e marcar sua
presença no mundo. Espero que a leitura do texto que se segue represente mais do
que um estudo sobre a poética fílmica, mas que signifique um reencontro com o
próprio “eu” e que cada indivíduo possa construir a sua própria narrativa, assim
como me possibilitou de construir a minha. 7
7
A Historiadora e Prof. Drª. Déa Ribeiro Fenelon, na explicação de Khoury, cita que as narrativas são
expressões da consciência de cada um sobre a realidade vivida, assim: [...] Ao narrar, as pessoas
estão sempre fazendo referências com a consciência de si mesmas, ou daquilo que elas próprias
aspiram ser na realidade social. Associando e organizando os fatos no espaço e no tempo, dentro
dos padrões de sua própria cultura e historicidade, cada pessoa vai dando sentido à experiência
vivida e a si mesma nela. Apud (Cf: KHORY, Y. A. Muitas memórias, outras histórias: cultura e sujeito
na história. In: FENELON, D. R. et al. Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d‟água,
2004, p. 116-138.
O tempo do romance é construído com palavras.
No cinema, ele é construído com fatos. O
romance suscita um mundo, enquanto o filme
nos coloca diante de um mundo que ele
organiza
de
acordo
com
uma
certa
continuidade. O romance é uma narrativa que
se organiza em mundo, enquanto o filme é um
mundo que se organiza em narrativa.
(Jean Mitry – Esthétique et psychologie di
cinema)
INTRODUÇÃO
Amo a história. Se não a amasse não seria
historiador. Fazer a vida em duas: consagrar
uma à profissão, cumprida sem amor, reservar
a outra à satisfação das necessidades profundas
– algo de abominável quando a profissão que se
escolheu é uma profissão de inteligência. Amo a
história – e é por isso que estou feliz por vos
falar, hoje, daquilo que amo.
(Lucien Febvre - Combate pela História)
Todas as manhãs para ganhar meu pão vou ao
mercado onde se vendem mentiras. E, cheio de
esperança, me misturo entre os vendedores.
(Bertolt Brecht)
A obra fílmica Satyricon de Federico Fellini chegou ao conhecimento do
público no ano de 1969. Confesso que quando tive contato com o filme pela primeira
vez, o mesmo me causou certo estranhamento. O contato com o Satyricon de Fellini
ocorreu ainda na graduação nas aulas de História Antiga e passados alguns anos
acabei retomando a produção de Fellini na tentativa de entendê-lo um pouco mais e
me reconciliar com o diretor e produtor da obra.
Este “estranhamento” é algo peculiar que provavelmente ocorre com qualquer
pessoa que tenha visto o Satyricon de Fellini, as cenas se apresentam ao público
por meio de um espetáculo visual, com direção, fotografia, câmara e guarda-roupa
impecáveis. Entretanto, a visão do conjunto da produção do Satyricon do cineasta é
semelhante ou próximo a visão do inferno. Os personagens se expressam pelos
excessos, são pedófilos, assassinos, sádicos, personagens míticos, tais como o
Minotauro e um semideus hermafrodita.
Todo este arcabouço de personagens é oriundo do Satyricon de Petrônio, um
clássico do século I d.C. Assim, o filme traz cenas satíricas, permeadas de humor
negro. Por traçar aspectos satíricos característicos do mundo de Petrônio, mesclado
com os delírios contemporâneos do mundo de Fellini, não é de se estranhar que o
filme possa realmente causar um “estranhamento”. Ainda mais, quando em certos
momentos do filme, temos a sensação de não saber o que realmente se passa entre
uma cena e outra.
A escolha do tema deste trabalho “Carpe Diem: rituais cotidianos no Satyricon
- Petrônio e Fellini” fazem parte da construção da simbologia do Satyricon, tanto da
obra fílmica quanto da literária. Estudar assuntos relacionados aos rituais e à
mitologia é algo que tem despertado o interesse de muitos estudiosos e
pesquisadores de inúmeras áreas. A curiosidade, o medo, a crença, o
desconhecido, o sagrado e o profano são características que desde o surgimento da
humanidade, o homem se vê na tentativa de decifrar os mistérios que o cercam. O
filósofo Ernst Cassirer já afirmava que a busca do conhecimento, de saber sobre o
inusitado ocorria em meio a uma constante carga simbólica. Nessa perspectiva,
Cassirer8 defende que todo o conhecimento e relacionamento do homem com o
mundo ocorrem nas diferentes formas simbólicas. Vejamos:
[...] por “forma simbólica” há de entender-se aqui toda a energia do espírito
em cuja virtude um conteúdo espiritual de significado é vinculado a um signo
sensível concreto e lhe é atribuído interiormente. Nesse sentido, a
linguagem, o mundo mítico-religioso e a arte se nos apresentam como
outras tantas formas simbólicas particulares.
Sob este ponto de vista, podemos afirmar que todas as civilizações
produziram símbolos ou signos9 destinados a representar, de modo mais ou menos
8
CASIRER, E. Esencia y efecto del concepto de símbolo. México: Fondo de Cultura Económica,
1975, p. 165.
No sentido corrente “signo” designa uma percepção que determina uma informação que concerne a
alguma coisa que não é diretamente percebida ou perceptível; por exemplo, a sirene pode ser signo
de incêndio. O signo é também o gesto ou a atitude que comunica um desejo ou uma ordem (fazer
sinal de vir), ou, de modo mais geral, um estado afetivo (um sinal amigável). Enfim, em lingüística e
em semiologia, o signo é a ligação entre uma significação e um elemento fônico ou gráfico (ou visual,
ou audiovisual para o cinema) de comunicação. A imagem é um signo do objeto designado. Muitas
distinções foram propostas entre categorias de signos, opondo, notadamente, signos naturais, em
que a relação com a coisa significada depende unicamente das leis da natureza (a fumaça como um
signo do fogo), e signos convencionais (a sirene como signo de um incêndio). No cinema, todos os
9
arbitrário, uma realidade abstrata. Os simbolismos mais antigos são, geralmente,
associados a valores religiosos (na cultura cristã, a cruz, símbolo da Redenção, o
triângulo, símbolo da Trindade etc.), mas existem símbolos de toda natureza. Nesse
primeiro sentido, o cinema, como qualquer outra forma de significação cultural e
social, reproduz e veiculam símbolos fílmicos, mais do que os produz realmente (o
que por vezes descrito como símbolos fílmicos diz respeito, antes, à metáfora). Os
símbolos sexuais (em Luis Bruñel ou Federico Fellini), os símbolos religiosos (em
Carl Dreyer ou Roberto Rossellini), as alegorias filosóficas (em Jean-Luc Godard)
existiam, no mais das vezes, antes de estarem nos filmes. 10
Como já assinalamos muitas das produções audiovisuais têm sido
influenciadas pela literatura. Nesse aspecto, centramos nossa atenção na produção
fílmica de Fellini. Deste modo, o Satyricon é uma produção audiovisual, que sofreu
influências do campo literário, situamos a “construção simbólica” do filme por
intermédio da referência do crítico Northrop Frye11. Para ele, “Símbolo” significa:
[...] qualquer estrutura literária que possa ser isolada para apreciação crítica.
Uma palavra, uma frase ou uma imagem usada com algum tipo de
referência especial (é esse o significado habitual de símbolo), todas são
símbolos quando constituem elementos discerníveis na análise crítica.
Neste contexto, todo ritual traz consigo valores simbólicos, constituídos por
um conjunto de gestos, palavras e formalidades. A partir deste pensamento, os
rituais são tributários de diversas características, tais como os ritos de passagem
oriundos de diversas culturas, como na cultura indígena, na qual se realiza o ritual
de comemoração de iniciação na puberdade. O casamento, bem como a coroação
ou a posse presidencial também são formas distintas de rituais. Várias ações
signos são motivados por uma relação de analogia, de semelhança, já que uma imagem ou um som
gravado se parecem com o que eles designam. Tentou-se com freqüência analisar o funcionamento
das imagens de filmes, tendo em vista que remetem a um significado. Tratava-se de saber que a
categoria de signos elas podiam pertencer. Tentou-se igualmente definir o “signo minimal” da
linguagem cinematográfica, para se chegar à conclusão que o cinema era uma “espécie de
linguagem sem signos”. Cf: AUMONT, J; MARIE, M., op cit., p: 269 e 270.
10
AUMONT, J; MARIE, M., op cit., p. 272.
11
FRYE, N. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1957, p. 75.
comuns como um aperto de mão ou um “oi” são ações ritualísticas do cotidiano por
natureza.12
À primeira vista, para compreendermos os rituais cotidianos no Satyricon,
recorremos ao hedonismo13 de Epicuro para entender o Satyricon de Fellini. Neste
processo, Epicuro (341 – 270) foi um filósofo grego nascido em Samos, que
defendeu a doutrina do atomismo, desenvolvida originalmente por Leucipo 14 e
Demócrito.15 Pertencente a uma ex-família nobre, não sofreu muita influência dos
filósofos, pois não tinha muita disposição em estudá-los. No ano de 325 a.C seguiu
para Atenas, na qual estabeleceu um jardim e fundou sua escola. Tanto homens
como mulheres compunham o quadro de alunos da escola epicurista.
Epicuro possuía muitos discípulos e amigos, os epicuristas tinham como base
o prazer, o que acarretava diversas acusações sobre o excesso do vinho e dos
festins. Apesar de uma vasta produção, com mais de trezentos tratados, restaram
apenas três cartas que tratam da “natureza”, dos “meteoros” e da “moral”. As cartas
e os fragmentos foram reunidos pelo professor Hermann Usener com o título de
Epicurea em 1887.
12
Cf: GENNEP, A. V. Les rites de passage: étude systématique dês rites. Paris: Picard, 1994.
Assim, os índios têm formas de demonstrar carinho bem diferente daquelas dos civilizados e seu
casamento também se realiza de forma diversa. Cada tribo segue rituais e comportamentos ditados
pelos heróis míticos há milhares de anos, e às vezes o relacionamento homem-mulher pode tomar
características de uma verdadeira guerra, Cf: PERET, J. A. Amazonas: História, gente e costumes.
Brasília: Gráfica do senado, 1983
13
Teoria ou doutrina filosófica que defende o prazer individual e imediato, estando ligada também a
idéia de prazer como felicidade.
14
Leucipo (cerca de 475 - ?), natural de Mileto, colônia cretense no mediterrâneo. Foi um filósofo
grego, criador do atomismo ou da teoria atomista. Considerado discípulo de Parmênides ou de Zenão
de Eléia, pouco se sabe sobre sua vida. No único fragmento que nos restou, declara: “Nada deriva do
acaso, mas tudo de uma razão sob a necessidade”. Cf: CHÂTELET, F. História da Filosofia – A
Filosofia Pagã. Rio de Janeiro: Zahar Editoras, 1981; CHAUÍ, M. Introdução à História da
Filosofia, vol I. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1998; JAEGER, W. Paideia. São Paulo: Ed. Herder, s/d;
REALE, G. História da Filosofia Antiga, vol I. São Paulo: Edições Loyola, 1993.
15
Demócrito (cerca de 460 – 370 a.C), natural de Abdera, colônia jônica da Trácia. Foi discípulo e
sucessor de Leucipo na direção da escola de Abdera. Contemporâneo do sofista Protágoras, suas
preocupações se voltaram para o campo da ética e das técnicas. Deixou cerca de noventa obras,
entre elas restaram-nos os fragmentos da Pequena Ordem do Mundo, Da Forma, Do Entendimento,
Do Bom Ânimo. É considerado atomista e, também, o primeiro pensador materialista. Seu atomismo
se resume a dizer que: a) as qualidades sensíveis (sabor, odor, quente, frio, cor etc) são aparências;
b) esses corpúsculos, que são os átomos, não possuem nenhuma qualidade sensível, pois só têm
propriedades geométricas (grandeza e forma), c) o movimento é função da existência do vazio. A
novidade física e lógica do atomismo é a concepção mecanicista da necessidade: “nada nasce do
nada, nada retorna ao nada”, “tudo o que existe nasce do acaso e da necessidade”. Os átomos
constituem a explicação última do mundo. Cf: Ibid.
A filosofia epicurista é a hedonista, na qual toda dor tem que ser eliminada
para se atingir a ataraxia (estado da alma em que nada consegue perturbá-la) é
necessário suprir os desejos naturais e ignorar os desejos supérfluos. O sábio é
aquele que se contenta com o necessário, o prazer estável é o que garante a
felicidade. O desejo incômodo se dissolve no amor a filosofia. O essencial é a
felicidade, por isso os desejos precisam ser controlados, para que a serenidade nos
ajude a suportar a dor.
O raciocínio sábio torna a vida mais agradável; o prazer para Epicuro não era
simplesmente o prazer pelo prazer, da satisfação imediata, pois este prazer pode
estar muitas vezes ligado a uma dor futura. Por isso, Epicuro submete à razão a
busca da felicidade.16
No que se segue esse estudo abre caminho para se verificar como Literatura,
História e o Cinema se relacionam na construção do homem romano de Petrônio
frente ao mundo contemporâneo de Federico Fellini. Ao adaptar uma obra literária
para o campo cinematográfico temos que ter em mente a concepção de que são
“signos”
17
diferentes e que tanto a literatura como o cinema devem ser analisados
segundo estratégias próprias de linguagens.
A adaptação de uma obra literária para o campo cinematográfico deve possuir
características de quem está realizando essa adaptação. Assim, o produtor da obra
audiovisual deve ter liberdade ao produzir a obra fílmica por meio da obra literária,
pois vai ter que responder por ela. Nesse sentido, o cineasta torna-se singular, ou
seja, não ocorre uma tradução uniforme da linguagem, mas uma transmutação.
A cada nova leitura do texto original surgem possíveis interpretações. Com
isso, o Satyricon de Fellini apresenta muito de seu próprio contexto cultural e
temporal. Ao analisarmos uma obra fílmica com base numa obra literária é
16
Do que nos restam dos escritos de Epicuro, destacamos três: sobre Física: três cartas, Quarenta
Máximas, o Testamento e a Carta a Heródoto, sobre os Fenômenos Celestes: Carta a Pitocles e
sobre Ética: Carta a Meneceu. Para Epicuro o prazer e a felicidade são os condutores dos seres
humanos. Com esta doutrina filosófica, Epicuro nos orienta sobre a forma de administrar nossas
necessidades.
17
Para Herman Northrop Frye, crítico literário canadense, o signo está colocado em consonância com
o símbolo. Assim, para ele: “Os símbolos assim compreendidos podem ser aqui chamados signos,
unidades verbais que, convencional e arbitrariamente, querem dizer coisas, às quais conduzem, fora
do lugar onde ocorrem.” FRYE, N., op cit., p. 77
necessário saber que tanto o filme quanto a literatura possuem particularidades
específicas aos seus contextos. O crítico literário Northorp Frye (1957, p. 87)
completa dizendo que: [...] As ficções históricas não se destinam a levar
compreensão a um período da História, mas são exemplares; ilustram a ação, e são
ideais no sentido de que manifestam a forma universal da ação humana.
As representações simbólicas presentes no Satyricon de Fellini estão
inseridas na relação do autor, público e obra,18 particularmente na relação do
espectador com a obra fílmica, originando diferentes interpretações e significações
simbólicas.
Dessa forma, a construção dos símbolos no Satyricon ocorre de formas
distintas. O produtor da obra fílmica, Federico Fellini, afasta-se de seu objeto para
permitir que o público construa sua própria representação19, mas isso não significa
18
A relação autor, público e obra nos permitem conhecer o vínculo que o autor tem com o meio social
que o envolve. Como já destacou o poeta e crítico literário Antônio Cândido, existe um jogo
permanente entre eles: “[...] O escritor vê apenas ele próprio e as palavras, mas não vê o leitor; que o
leitor vê as palavras e ele próprio, mas não vê o escritor; e um terceiro pode ver apenas a escrita,
como parte de um objeto físico, sem ter consciência do leitor nem do escritor. Isso pode fazer com
que o escritor suponha irrefletidamente, que as únicas partes do processo sejam a primeira e a
segunda; e o leitor suponha que o processo consiste na segunda e terceira; e um crítico irrefletido,
que a segunda parte é tudo [...]. Mas a verdade básica é que o ato completo da linguagem depende
da interação das três partes, cada uma das quais, afinal, só é inteligível [...] no contexto normal do
conjunto.” Cf: CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1985, p: 38 e 39. Não
podemos esquecer que toda produção literária está vinculada ao mundo onde foi criada e conhecida.
Sendo assim, a trilogia autor, público e obra nunca devem estar desvinculados, o texto e o contexto
interagem entre si, e a condição social do autor é um fator preponderante. E sobre o conceito de
representação, o historiador Roger Chartier nos diz que a representação é como um “instrumento de
um conhecimento mediador que faz ver um objeto ausente através da substituição por uma imagem
capaz de reconstituí-lo em memória e de figurá-lo como ele é”. Cf: CHARTIER, R. A História
Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990, p. 20.
19
Utilizada em numerosos e variados contextos, a palavra designa sempre uma operação pela qual
se substitui alguma coisa (em geral ausente) por outra, que faz às vezes dela. Esse substituto pode
ser de natureza variável: uma imagem (representação pictória, fotográfica, cinematográfica), uma
performance em um palco (representação teatral) etc. No que concerne à representação por
imagens, a questão principal foi, no mais das vezes, a de decidir se ela punha em jogo atitudes
humana inatas e universais, ou, ao contrário atitudes culturais, adquiridas e particulares. No cinema, a
representação implica dois momentos, inextricavelmente ligados: a passagem de um texto, escrito ou
não, à sua materialização por ações em lugares agenciados em cenografia (tempo de encenação) e a
passagem dessa representação, análoga à do teatro, a uma imagem em movimento, pela escolha de
enquadramentos e pela construção de uma seqüência de imagens (montagem). Essa duplicação do
processo representativo estimulou comparações do cinema com o teatro e também com a pintura (na
qual o segundo tempo é o único acessível). Cf: AUMONT, J; MARIE, M, op cit., p. 255 e 256.
que o cineasta não possa ter sua própria simbologia e que o mesmo passe
despercebido frente ao espectador. Para o pesquisador francês Fracis Vanoye20:
[...] é possível postular que qualquer arte da representação (o cinema é uma
arte da representação) gera produções simbólicas que exprimem mais ou
menos diretamente, mais ou menos explicitamente, mais ou menos
conscientemente, um (ou vários) ponto(s) de vista sobre o mundo real.
Nessa perspectiva, os signos da obra cinematográfica produzem novas
marcas que vão além da obra escrita. A construção da simbologia de Petrônio a
Fellini objetiva compor a significação dos mistérios do homem histórico, presentes na
religião, no mito, na sexualidade, no cotidiano da vida pública e privada.21 Formando
com isto, os rituais cotidianos da natureza do homem.
A linguagem cinematográfica, que traz elementos próprios do mundo
imagético modifica o texto primário, mas sem comprometer a obra original como um
todo. Federico Fellini reconstrói o Satyricon tornando-o fruto de seu subconsciente.
O percurso escolhido pelo cineasta permitiu trazer o Satyricon de Petrônio para as
telas do Cinema, fazendo de sua composição fílmica um Clássico do Cinema
Contemporâneo. Estas considerações nos levam há desvendar um pouco mais
sobre o cineasta italiano.
Nessa linha de pensamento, circunscrevemos Federico Fellini. Assim,
Federico Fellini nasceu em Rimini, na Itália, em 20 de Janeiro em 1920, uma
pequena cidade litorânea, na qual viveu até os seus 17 anos, cidade esta que lhe
serviu de inspiração para muitos de seus filmes, tais como: “Os Boas-Vidas” e
“Amarcord”.
20
VANOYE, F. et al. Ensaio sobre análise fílmica. São Paulo: Papirus, 2002, p: 61 Apud (RIBEIRO,
E. S. O Senhor dos Anéis: a tradução da simbologia do Anel do Livro para o Cinema. Santa
Catarina: UFSC, 2005, cadernos de tradução nº 16, p. 183 - 200.)
21
O historiador Carlo Ginzburg ressalta que “o que aproxima mitos e pinturas (obras de arte em geral)
é, por um lado, o fato de terem nascido e serem transmitidos em contextos culturais e sociais
específicos; e, por outro, a sua dimensão formal.” GINZBURG, op. cit., p. 12
Fellini foi considerado um gênio dentro do mundo cinematográfico, em
decorrência da sua criatividade ilimitada, que tornava seus pensamentos e delírios
como algo próprio da nossa imaginação. Essa característica acabou virando
adjetivo, conhecida também como “felliniana”, que designava mulheres de seios
fartos, rostos grotescos e imagens circenses.
No ano de 1937 o cineasta dirigiu-se para Florença na tentativa de publicar
suas charges na revista satírica “420”, sendo que no ano seguinte acabou indo para
Roma estudar Direito, como conseqüência acabou tornando-se colaborador e
desenhista de história em quadrinhos. Ele escreveu sketches22 para rádio, canções
para teatro de revista e monólogos para cômicos famosos.
A oportunidade apareceu mesmo quando teve contato com Aldo Fabrizi, ator
de cinema e teatro italiano, que o levou para o teatro de revista, e lhe concedeu a
chance de colaborar como roteirista no primeiro filme, eram comédias humorísticas
de Macário. Destaque para comédias como: Lo Vedi Come Sei? Il Pirata Sono Io e
Imputador Alzaveti; mas foi com a colaboração de Piero Tellini, que realizou outros
trabalhos, tais como: Avanti c’è Posto, Campo di Fiori, L’ultima Carrozzella, Chi l’ha
Visto, Quarta Pagina, Documento Zeta 3, Ventornato Signor Gai, Sette Poveri in
Automobile, I Predoni Del Sahara. Fellini e Giulietta deixaram na cinematografia
filmes memoráveis, como a obra: La Strada, Noites de Cabíria, na qual ganhou o
Oscar e Ginger e Fred.
No ano de 1944, ao conhecer o diretor de cinema Roberto Rossellini, este o
convidou para escrever o roteiro de “Roma, Cidade Aberta”. E ainda com Rossellini,
colaborou também com Paisà (1945), e em seguida, com Alberto Lattuada,
contribuiu em Il Delitto di Giovanni Episcopo; Senza Pietà (estréia de Giulietta),
Duilio Coletti (Il Passatore), o episódio Il Miracolo, do filme L’amore (de Rossellini).
Sobre a influência de Rossellini na obra de Federico Fellini23, sublinhamos:
22
Têrmo normalmente usado para designar pequenas peças ou cenas dramáticas, também usadas
no cinema e na televisão.
23
FELLINI, F. Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1995, p. 66.
[...] Compreendi, graças a Rossellini, que se podia fazer cinema no meio de milhares
de pessoas, de máquinas, de gruas, com a mesma tranqüilidade com que, na minha
infância, eu fazia um pequeno desenho.
O cineasta também teve participação em outros importantes roteiros, como
“Em nome da Lei”, de Pietro Germi, “O Moinho do pó”, de Lattuada, “Francesco
Giuliare di Dio”, de Rossellini, “O Caminho da Esperança”, de Germi, “Persiani
Chiuse”, de Comencini, “Il Brigante de Tacca di Lupo”, de Germi, “Europa 51”, de
Rossellini e “A Cidade se defende”, de Germi. Como ressaltamos, o estilo de Fellini
era único, não pertencia a um movimento específico, assim como muitos críticos o
identificaram.
[...] Nunca tive a preocupação de me afastar do neo-realismo com o qual
jamais me identifiquei, mesmo quando trabalhei ao lado de Rossellini. Essa
foi uma grande experiência de vida, como tantas outras coisas, mas eu
24
jamais a considerei dependente de uma estética.
Com Lattuada, Masina e Carla Del Poggio, acabou formando uma cooperativa
chamada Capitolium, que produziu o filme “Mulheres e Luzes”, inspirado nas
aventuras da companhia de teatro de revista de Aldo Fabrizi, em 1939.
A consagração internacional ocorreu com a obra “La Strada”, quando ganhou
o Leão de Ouro em Veneza e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Fellini, também
fez “La Dolce Vita”, um retrato de Roma em seu auge: Via Veneto, estrelas de
cinema, pobres decadentes. Muito polêmico, o filme foi atacado pelos moralistas, a
quem o cineasta satirizou em um episódio de Boccaccio 70, com o qual ganhou a
Palma de Ouro em Cannes. Em “8 ½ (Oito e Meio)”, um filme considerado pelos
críticos como sendo autobiográfico, Federico Fellini retratou a história de um
cineasta em crise artística e pessoal; por este trabalho também ganhou o Oscar de
melhor direção e o grande prêmio de cinema de Moscou. Com relação ao embate
24
Ibid, p. 139.
dos críticos frente à produção autobiográfica felliniana, o historiador Luiz Renato
Martins25 cita que:
No quadro dessa carreira geralmente aclamada, mas de curso
analogamente denegado e sujeito à incompreensão, observa-se que, a
cada novo trabalho, a mídia repisa, pelo seu lado, o slogan corrente de que
Fellini seria um autor autobiográfico, um obcecado por si mesmo e pelo
cinema. De outro lado, tem-se o realizador, em suas irônicas aparições aos
jornalistas, enfatizando seguidamente o caráter artificial e inventado dos
estilemas pessoais e autobiográficos, utilizados em suas obras. Se tal
impasse parece ainda muito longe de se solver, a obra, entretanto teria
evoluído, radicalizando a desconstrução analítica seja do processo
cinematográfico, seja das subjetividades envolvidas tanto na realização
como na recepção do cinema.
Assim sendo, a dicotomia entre o movimento neo-realista e a indústria
cinematográfica hollywoodiana colocava Federico Fellini como “sujeito” entre um e
outro, pois o cineasta não pertencia a uma categoria propriamente definida.
[...] Passa a simbolizar o novo estágio de relações entre autor e indústria,
em que o papel de diretor, promovido a protagonista do processo
cinematográfico, deixa a situação artesanal e o ponto de vista da escassez
e se integra ao núcleo de um mercado de luxo. Sinalizando o valor de
referência central, assumido por Fellini na nova conjuntura, o qualificativo
“felliniano” (para designar certos traços ou situações) passa a ser adotado
pela mídia de vários países. 26
A relação de Fellini com o mundo do espetáculo circense era intensa. Atribuía
ao cinema certa relação com o circo, a mistura de técnicas, de precisão e
improvisação. A montagem do espetáculo para Fellini relacionava-se com a
montagem cinematográfica, da construção do “imaginário” por meio de certa
ordenação de “fantasias” e da forma de contá-las.
25
MARTINS, L.R. Conflito e Interpretação em Fellini: construção da perspectiva do público. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo – Instituto Italiano de Cultura, 1994, p. 21.
26
Ibid, p. 21
O cinema parece-se muito com o circo. É provável que se o cinema não
tivesse existido, se eu não tivesse encontrado Rossellini e se o circo fosse
ainda um gênero de espetáculo de uma certa atualidade, eu gostaria muito
de ser diretor de um grande circo, pois o circo é axatamente uma mistura de
técnica, de precisão e de improvisação. Ao mesmo tempo em que se
desenrola o espetáculo preparado e repetido, arrisca-se realmente algo, isto
é, vive-se ao mesmo tempo. Há, evidentemente, coisas que nada têm a ver
com a criação de fantasia: há as girafas, os tigres, os animais. E este modo
de criar e de viver ao mesmo tempo, sem as medidas fixas que um homem
de letras ou um pintor deve ter, mas estar mergulhado na ação. Eis o que é
o espetáculo do circo. Ele tem esta força, esta coragem [...] e parece-me
que o cinema é exatamente a mesma coisa. Efetivamente, o que é fazer um
filme? É, bem entendido, tentar pôr ordem em certas fantasias e contá-las
com uma certa precisão. Contudo, no momento em que se faz o filme, a
vida do elenco, os encontros que se fazem, as cidades novas que temos
que visitar para contar histórias, toda vida cinematográfica nos encoraja, nos
emociona, nos enriquece, enquanto se trabalha. Trata-se, em um
determinado momento, de saber se quem quer contar a realidade aos
outros tem a possibilidade de ser seu intérprete, porque, se não for
intérprete, será inútil começar.27
Casado com a atriz Giulietta Masina desde 1943, esta tinha sido estrela de
sete de seus filmes. Esposa e companheira, Giulietta acabou morrendo de câncer
em 23 de Março de 1994. Federico Fellini, abatido pela doença da mulher, faleceu
no dia 31 de Outubro de 1993.28
Federico Fellini morreu no dia 31 de Outubro de 1993. Foi velado durante
dias no estúdio Cinecittà – fábrica de seus delírios – e teve uma missa
solene numa das maiores igrejas de Roma – sua eterna amada amante –
antes de seguir para repousar para sempre na terra de Rimini – seu berço
de nascimento e morte. Presentes nos diversos atos de seus funerais
artistas, políticos, diretores e técnicos de cinema, rádio, televisão,
jornalistas, religiosos, gente de todas as camadas e de toda espécie e a
multidão, num misto de reverência e saudade antecipada. Talvez espanto:
então Fellini era mortal?29
27
Apud (STRICH, C; KEEL, A. Fellini por Fellini. Porto Alegre: L&PM Editores Ltda, 1986, p. 84).
28
Com relação à atriz e companheira Fellini afirmava: “Giulietta Masina representava para mim a
projeção da inocência ferida, mas enfim triunfante.” Cf: FELLINI, F. Eu sou um grande mentiroso,
entrevista a Damien Pettigrew. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 169.
29
MACHADO, L. R., “A Vitória da Mentira”. In: FELLINI, F. Eu sou um grande mentiroso, entrevista
a Damien Pettigrew. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
O Estúdio Cinecittà era a fábrica dos sonhos de Fellini. Sua construção iniciou
com o lançamento da pedra fundamental em 27 de Janeiro de 1936. No complexo
de teatros era possível encontrar além do diretor e cineasta Federico Fellini, os
astros Marcello Mastroianni e Sophia Loren; o cineasta Pier Pasolini, Michelangelo
Antonioni e Rossellini. Sobre a relação de Fellini com o Cinecittà, o mesmo cita que:
Adoro a Cinecittà. Aqui passo meus melhores momentos. É uma fábrica, é
onde trabalho e é um bom instrumento de trabalho. Estou também ligado
por laços afetivos. Cheguei aqui pela primeira vez, há muito tempo. Era
jornalista, na época, e fazia entrevistas com as vedetes, os diretores [...] 30
As produções que ocorreram no Cinecittà se mesclavam com a trajetória da
história política romana. O Estúdio foi fruto do regime fascista e apresentava o
arquétipo de uma ideologia pautada pela estética fincada em valores morais e
sociais, características predominantemente do regime totalitário. A exposição dos
problemas sociais e a busca de soluções e de um “cinema-verdade” inspiraram os
cineastas para uma nova forma de se “pensar” o cinema italiano.
[...] Mussolini inaugurou Cinecittà na tarde de 27 de abril de 1937, com
hierarcas, bandeiras, fanfarras, crianças uniformizadas, operários perfilados
militarmente, generais e deputados. O quotidiano romano (da época)
Giornale d‟Italia descreve: „O Duce, galgando entre altíssimas aclamações,
a grande praça, que, da Cidade cinematográfica forma a vasta luminosa
entrada, presenciou o início do filme Elevazione, argumento de Vittorio
Mussolini, e do filme Aviazione, que se desenvolverá sob a superdireção
[sic] do próprio Vittorio Mussolini [...] O Duce presenciou depois à
sincronização do filme Scipione l‟africano. [...] No período fascista, o cinema
fascina os filhos de Mussolini: Vittorio Mussolini é também roteirista. A irmã
da amante de Mussolini é, por sua vez, uma diva, intérprete também de
filmes distribuídos por Vittorio Mussolini. Muitas divas são amantes de
hierarquias fascistas, e freqüentemente iniciam suas carreiras no cinema,
graças a tal proteção.31
30
31
Apud (STRICH, C; KEEL, A., op cit., p. 94).
Cf: PENAZZO, D. “Redação das didascálias das fotos.” In: FELLINI, F. Um Regista a Cinecittà.
Verona: Mondadori, 1988, p: 8, 11 e 20 Apud (MARTINS, L. R., op cit.,p. 68-69)
Com isso, Fellini encontraria nos cartuns seu escape para os assuntos
políticos, bem como a inspiração para seus futuros filmes. Mesmo o Satyricon de
Fellini tendo sido produzido na década de 60, momento em que o cinema estava
passando por uma transformação, principalmente no campo do documentário, como
um movimento de expressão do cinema direto, que se desenvolvera na América do
Norte, no Canadá, na França e em Quebec, trazendo consigo novas técnicas de
filmagem e de captação direta do som. Federico Fellini procura deixar claro que sua
produção não fazia parte deste “novo” movimento de expressão. No entanto, o que
percebemos é que mesmo o “Cinema – Verdade” tendo como proposta captar a
“realidade tal como ela é”, não podemos deixar de notar que toda produção fílmica
se passa pelo crivo de quem a produz. O diretor, suas escolhas e sua matriz de
pensamentos frente ao objeto fílmico revelam que o “Cinema – Verdade” é na
verdade uma construção, feita a partir da edição das imagens e sons captados.
Se considerarmos a construção do cinema dito “Verdade” como algo próximo
da ficção, a produção cinematográfica de Fellini aproxima-se do cinema direto, uma
vez que a mesma não é feita pela reprodução Ipsis litteris da obra literária, mas
produzida pelo cineasta no preenchimento das lacunas historiográficas baseadas na
obra literária. Sobre o “Cinema – Verdade”, vejamos o que o Prof. Dr. Fernão Ramos
do Programa de Pós – Graduação em Multimeios da Universidade Estadual de
Campinas, nos fala32:
O Cinema Verdade/Direto constitui o primeiro momento de ruptura
ideológica com o universo documentarista griersoniano. Surge como estilo,
nos anos de 1960 e domina o horizonte ideológico de nossa época, nesta
virada de milênio. Vivemos, ainda hoje, dentro das crenças que nortearam
seu surgimento. A crítica ética à encenação e a progressiva elegia da
refletividade (no caminho que vai do “direto” a “verdade”) são dois
momentos-chaves para a definição do campo da não-ficção, dentro do
universo ideológico do Cinema Verdade. Nessa visão, o documentário de
“jogar limpo” e sempre revelar o caminho percorrido na composição dos
procedimentos enunciativos do discurso cinematográfico. O Cinema
Verdade/Direto revoluciona a forma documentária, através de
procedimentos estilísticos proporcionados por câmeras leves, ágeis e,
principalmente, o aparecimento do gravador Nagra. Planos longos e
imagem tremida com câmera na mão constituem o núcleo de seu estilo. O
aparecimento do som direto conquista um aspecto do mundo (o som
32
Cf: RAMOS, F. Cinema Verdade no Brasil. In: Teixeira, F. E. (org.). Documentário no Brasil Tradição e Transformação. São Paulo: Summus Editorial, 2004, p. 81 e 82.
sincrônico ao movimento) que os limites tecnológicos havia, até então,
negado ao documentário. Através do som do mundo e do som da fala, o
Cinema Verdade inaugura a entrevista e o depoimento como elementos
estilísticos.
A primeira projeção da “realidade” aconteceu no dia 28 de Dezembro de
1895, no subsolo do Grand Café de Paris, os irmãos Louis e Auguste Lumière
projetaram os primeiros registros de chegada de um trem à estação La Ciotat, bem
como a saída dos operários das usinas Lumière. Após quatro anos, o francês
George Meliès lança, “Viagem á Lua”, um filme de ficção científica, colocando em
xeque a fantasia e a “realidade”. Assim, ao longo da história o cinema passaria a ser
uma ferramenta de propagação de ideologias culturais e políticas.33
Neste universo entre a realidade e a fantasia, o desenho, mais propriamente a
caricatura permeava o mundo de Fellini, servindo de inspiração para a construção de
seus filmes. 34 Sobre a inspiração que Fellini tinha para com seus filmes, o mesmo
nos relata em uma entrevista realizada para Giovanni Grazzini que:
No início de cada filme passo a maior parte do tempo na escrivaninha, e não
faço mais do que rabiscar desenhos de nádegas e seios. É a minha maneira
de perseguir o filme, de começar a decifrá-lo através desses rabiscos. Uma
espécie de fio de Ariadne para sair do labirinto.35
33
Sobre a construção do visível e do invisível, cabe a leitura da obra do Professor de cinema Bill
Nichols da Universidade de São Francisco, na Califórnia. Para ele: “Certas tecnologias e estilos nos
estimulam a acreditar numa correspondência estreita, senão exata, entre imagem e realidade, mas
efeitos de lentes, foco, contraste, profundidade de campo, cor, meios de alta resolução (filmes de
grão muito fino, monitores de vídeo com muitos pixels) parecem garantir a autenticidade do que
vemos. No entanto, tudo isso pode ser usado para dar impressão de autenticidade ao que, na
verdade, foi fabricado ou construído. [...]. E essa é uma impressão forte.” Cf: NICHOLS, B.
Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005.
34
“[...] a força da imagem nos filmes de Fellini, tão difícil de definir porque não se enquadra nos
códigos de nenhuma cultura figurativa, tem as suas raízes na agressividade redundante e
desarmoniosa da gráfica jornalística. Aquela agressividade capaz de impor em todo o mundo
cartoons e „quadrinhos‟.” Cf: CALVINO, I. “Autobiografia di uno Spettatore.” In: Federico Fellini,
Quatro Film. Torino: Einaudi, 1975, p: 19-22 Apud (MARTINS, L. R., op cit., p: 68).
35
FELLINI, F. Entrevista sobre o cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986, p. 5.
Ao retratar assuntos “Clássicos”, como fez com Roma Antiga, utilizou-se de
certo tom de liberdade. Na obra o Satyricon, desenhou uma Roma que existia
somente em sua imaginação. Para Fellini, tanto a literatura do Satyricon de Petrônio,
como o cinema devem ser compreendidos inseridos em seu próprio tempo e espaço,
o que nos revela que o cineasta pertencia ao mundo onde foi concebido, ou seja, o
mundo do cinema, da “imagem em movimento”.
Uma obra de arte nasce sob uma expressão única; eu acho essas
transposições ridículas, aberrantes, monstruosas. As minhas preferências
vão em geral a sugestões originais escritas para o cinema. Creio que o
cinema não tem necessidade de literatura, precisa somente de autores
cinematográficos, isto é, de gente que se expresse através do ritmo, da
cadência, que são particulares ao cinema. O cinema é uma arte autônoma
que não tem necessidade de transposições sobre um plano que, no melhor
dos casos, será sempre ilustrativo. Cada obra de arte vive na dimensão na
qual foi concebida e na qual é expressa. Que coisa se observa num livro?
Situações. Mas as situações, sozinhas, não têm significado. É o sentimento
com o qual elas vêm, são expressas, que conta, a atmosfera, a luz: em
suma, a interpretação dos fatos. Mas a interpretação literária daqueles fatos
não tem nada a ver com a interpretação cinematográfica dos mesmos. São
duas maneiras de se exprimir inteiramente diferentes.36
A biografia de Federico Fellini é permeada de contradições, entretanto a
certeza que temos é quanto à aproximação de Fellini com o imaginário 37, recurso
este que vai buscar em fontes literárias. A relação de Fellini com a Literatura e o
Cinema pode ser verificada em sua leitura do Satyricon de Petrônio.
Com isso, o cineasta releu o Satyricon de Petrônio, enquanto se recuperava
de uma pleurisia em Manzania. Instigado pela leitura do Clássico, Federico Fellini
passou a compor sua visão frente à obra do mundo antigo. A produção do filme
ocorreu sobre a atmosfera das drogas alucinógenas e da ficção científica da década
de 60. A utilização da ficção científica no filme de Fellini se mostra por meio da
36
37
FELLINI, F., op cit., p. 20.
No sentido corrente, o imaginário é o campo (e o produto) da imaginação, entendida como
faculdade criativa. A palavra, praticamente, é então empregada como sinônimo de “fictício”,
“inventado” e oposta a real. Nesse sentido, a diegese de uma obra de ficção é um mundo imaginário.
O cinema é constituído de significantes imaginários, “ele suprime em massa a percepção, mas para
jogá-la logo depois em sua própria ausência, que é, entretanto, o único significante presente.” Cf:
METZ, C. “Le significante presente” e “Le film de fiction et son spectateur”. In: Communications,
1975, nº 25 Apud (AUMONT, J; MARIE, M, op cit., p. 164 e 165).
inserção da banda desenhada das histórias de Alexander Raymond através do
personagem Flasch Gordon que serviu de inspiração para criar filtros de várias cores
com diferentes tipos de película.
Satyricon foi filmado entre Novembro de 1968 e Maio de 1969, em um
ambiente de experimentação, polissexualidade e de autodescoberta. O movimento
hippie, convencionalmente denominado de movimento de contracultura da década
de 60, representava a ideologia do filme, caracterizado pelo espírito de liberação e
da abstração das conseqüências dos atos. No Satyricon de Fellini tudo era válido.
O filme se entrelaça por meio de dois jovens romanos, Encolpio (Matin Potter)
e Ascilto (Hiram Keller), que acabam sendo raptados por um pirata e escravizados
em um navio. Ao serem libertados, realizam variadas conquistas sexuais. Nesta
aventura sexual Encolpio acaba sendo capturado e forçado a lutar com um
Minotauro. Este fato torna Encolpio impotente, fato que percebe no momento em
que se envolve com Ariadne. Para resolver o problema de sua impotência, Encolpio
faz uma visita ao Jardim dos Prazeres e depois a Oenothea, que lhe devolve sua
potência sexual. O filme termina com a morte de Ascilto e com a decisão de Encolpio
embarcar para a África. As cenas finais mostram os preparativos da viagem.
As cenas do filme de Fellini se constituem como uma crítica a sociedade
romana contemporânea. Para o diretor, os romanos do período do principado tais
como os romanos da Via Veneto de seu período tinham uma vida vazia e sem
sentido. Nesta teia das relações humanas, tanto no filme de Fellini quanto na obra
de Petrônio, o desfecho se cruza através das falas dos personagens. Ambos
terminam em meio a uma frase. Encolpio e outros personagens são transformados
em um afresco. Satyricon de Fellini é um filme de formato cíclico, abrindo e fechando
as cenas com imagens semelhantes, tal como Fellini já tinha feito em “O Conto do
Vigário” e “A Estrada”.
No ano de lançamento do filme Satyricon, os críticos afirmaram que não era
uma obra que chamava muito a atenção, apesar das cenas de orgias, dos
banquetes e da violência. O filme causava certo tédio ao espectador. Ao contrário de
A “Doce Vida”, todo o filme foi filmado para que o público não se identificasse com
os personagens principais, fato caracterizado pela música em estilo diegético. 38
Mesmo Fellini tendo a pretensão de fazer do Satyricon um documentário do mundo
romano Antigo, o mesmo passava longe das características históricas, aproximando
mais do mundo de fantasias do cineasta.
Este filme em particular foi o mais caro de Fellini, na qual foram utilizados 90
cenários, construídos todos no Cinecittà. Cerca de 250 atores compunham o
mosaico do mundo romano do período Imperial montado por Fellini nos estúdios. A
estréia da obra fílmica ocorreu nos Estados Unidos, depois de um espetáculo de
Rock no Madison Square Garden. O filme foi apresentado para um público de
aproximadamente dez mil hippies drogados e enrolados uns aos outros. Segundo
especialista em cinematografia, o filme de Fellini tinha atingido o seu público alvo,
sendo um filme para adolescentes, como classificou o United Artists. Todavia,
mesmo perante todas as críticas, Satyricon foi indicado ao Oscar pela originalidade e
pela realização, sendo aplaudido em todo o mundo pela criatividade no conjunto da
obra. Vejamos:
38
Palavra de origem grega (diègesis: narrativa) oposta, de modo, aliás, diferentemente, por Platão e
Arsitóteles, a mimesis (imitação); caída em desuso. Depois ressuscitada por Étienne Souriau;
retomada em seguida, mas também em dois sentidos diferentes, por Gérard Genette e por Chistian
Metz, um em narratologia literária, o outro em filmologia. Cf: SOURIAU, E. “La structure de l‟universe
filmique”. In: Revue Internationale de Filmologie, 1951, p: 7-8 e MERTZ, C. Essais sur La
signification au cinema. Paris: Klincksieck, 1968. Para Souriau, os “fatos diegéticos” são aqueles
relativos à história representada na tela, relativos à apresentação em projeção diante dos
espectadores. É diegético tudo o que supostamente se passa conforme a ficção que o filme
apresenta. Tudo o que essa ficção implicaria se fosse supostamente verdadeira. Souriau dá o
exemplo de dois cenários de estúdio que podem ser contíguos e ser diegeticamente (na lógica
suposta da história que o filme conta) distantes em várias dezenas de quilômetros. Mertz e seus
discípulos (Percheron, Vernet, entre outros) retomam a definição de Souriau: a diegese é concebida
como o significado longínquo do filme considerado em bloco (o que ele conta e tudo o que isso
supõe); a instância diegética é o significado da narrativa. A diegese é a “instância representada do
filme, ou seja, o conjunto da detonação fílmica: a própria narrativa, e com isso as personagens, a
paisagem, os acontecimentos e outros elementos narrativos, porquanto sejam considerados em seu
estado detonado. O interesse dessa acepção filmológica é acrescentar à noção de história contada e
de universo ficcional a idéia de representação e de lógica suposta por esse universo representado. O
próprio do cinema é, com efeito, que o espectador constrói um pseudo-mundo do qual ele participa e
com o qual se identifica, o da diegese. Apud (AUMONT, J; MARIE, M, op. cit., p: 77 e 78). Sobre a
diegese, vêr também: COSTA, F. C. O primeiro cinema. São Paulo: Scritta, 1995, p: 7.
A projeção foi entusiasmante. A cada fotograma os rapazes aplaudiam;
muitos dormiam, outros faziam amor. No caos total, o filme seguia adiante
implacavelmente, sobre uma tela gigantesca que parecia refletir o que
acontecia na sala de projeção. Imprevisivelmente, misteriosamente, naquele
ambiente entre os mais improváveis, Satíricon parecia ter encontrado o seu
lugar natural. Nem mesmo parecia meu, na revelação imprevista de uma
integração tão secreta, de ligações tão sutis e nunca interrompidas entre a
antiga Roma da memória e aquele público fantástico do futuro.39
A literatura é composta por um conjunto de textos escritos que nos levam a
imaginação. Toda obra literária traz significações do mundo onde foi produzida, tais
como características culturais ligadas à língua, aos costumes e a temporalidade de
sua produção. Os textos literários devem ser compreendidos variantes a outros
textos, pois exercem um papel social e emocional no público receptor. O historiador
Lynn Hunt enfatiza que com a abertura da produção historiográfica através do uso
de novas metodologias, bem como o diálogo com a crítica literária, tem possibilitado
interpretar, analisar e compreender melhor o passado histórico.
De fato, o único traço verdadeiramente distintivo da nova abordagem
cultural da história é a abrangente influência da crítica literária recente, que
tem ensinado os historiadores a reconhecer o papel ativo da linguagem dos
textos e das estruturas narrativas na criação e descrição da realidade
histórica.40
Em vista do que foi apresentado, temos verificado que a Antiguidade Clássica
tem sido tema de muitos estudos e produções fílmicas na contemporaneidade,
principalmente sobre o período romano, tais como: Spartacus (Spartacus – 1960) do
diretor Stanley Kubrick, A queda do Império Romano (The Fall of the Roman Empire
–
1964)
do
diretor
Anthony
Mann,
Satyricon
(The
Degenerates/Fellini
Satyricon/Satyricon – 1969) do diretor Federico Fellini e mais recentemente, o
Gladiador (Gladiator – 2000) do diretor Ridley Scott e a minissérie Roma (Rome –
2005/2007), produzida pela HBO (Home Box Office) em vinte e quatro capítulos.
39
FELLINI, F. Entrevista sobre o cinema. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1986, p: 119.
40
HUNT, L. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p: 133.
Ao abordar o estudo Clássico a partir do cinema, podemos afirmar que o
mundo das Artes, em especial da sétima arte, é o mundo do “possível”, pois além da
visão do diretor, da construção do herói e do bandido, do trágico e do cômico, dos
romances eternos, o filme também pode ser utilizado como um documento de cunho
historiográfico.41 Cabe ao historiador buscar definir as fronteiras do imaginário, a
partir de uma metodologia própria.
Assim, a História Nova42 incorpora o cinema como um documento plausível
de ser estudado e analisado. Um dos precursores desta característica é o historiador
francês Marc Ferro43. Para ele o cinema revela muito do seu tempo, ou seja, do
momento em que foi feito.
[...] „o cinema‟ destrói a imagem do duplo que cada instituição, cada
indivíduo se tinha constituído diante da sociedade. A câmara revela o
funcionamento real daquela, diz mais sobre cada um do que queria mostrar.
Ela descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros, tira as máscaras, mostra o
inverso de uma sociedade, seus „lapsus‟. É mais do que preciso para que,
após a hora do desprezo venha a da desconfiança, a do temor [...] A idéia
de que um gesto poderia ser uma frase, esse olhar, um longo discurso é
totalmente insuportável: significaria que a imagem, as imagens [...]
constituem a matéria de uma outra história que não a História, uma outra
análise da sociedade.
41
Para o historiador Jean-Claude Bernadet, o cinema trouxe a ilusão, algo que parece verdadeiro,
embora saibamos que é mentira. Para ele, o filme é “um pouco como num sonho: o que a gente vê e
faz num sonho não é real, mas isso só sabe depois, quando acordamos. Enquanto dura o sonho,
pensamos que é verdade. Essa ilusão de verdade, que se chama impressão de realidade, foi
provavelmente a base do grande sucesso do cinema.” Cf: BERNARDET, J.C. O que é cinema. São
Paulo: Brasiliense, 2000, p: 12. Nesse parâmetro, a ilusão esteve presente desde o surgimento da
cinematografia, como em Meliès na França, até a organização da linguagem cinematográfica através
da criação do roteiro, da utilização dos cenários e dos movimentos de câmera.
42
A partir dos Annales (1929), movimento que revolucionou a abordagem historiográfica por meio do
uso de novas fontes, novos objetos e novos métodos, as idéias e os costumes ganharam um campo
maior de atenção, nascia assim, a Nova História. Sobre a mudança no campo das técnicas e dos
métodos, o historiador José Carlo Reis relata que “os documentos se referem à vida cotidiana das
massas anônimas, à sua vida produtiva, à sua vida comercial, ao seu consumo, às suas crenças, às
suas diversas formas de vida social.” Cf: REIS, J.C. Tempo, História e Evasão. Campinas: Papirus
Editora, 1994, p: 126. Nesse aspecto, com a História Nova os documentos são arqueológicos,
pictográficos, icnográficos, fotográficos, cinematográficos, numéricos, orais, enfim, de todos os tipos.
Com relação à História dos Annales Cf: BURKE, P. A escola dos Annales, 1929-1989: a revolução
francesa na historiografia. São Paulo: UNESP, 1991; DOSSE, F. A história em migalhas: dos
“Annales” à nova história. São Paulo: Ensaio, 1992; FEVRE, L. Combates pela história, v. I.
Lisboa: Presença, 1977.
43
FERRO, M. “O Filme: uma contra-análise da sociedade?” In: LE GOFF, J; NORA, P. (orgs).
História e Novos Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 202-203.
Mesmo a imagem sendo uma “construção”, uma “representação”, o cinema
reflete o contrapoder da sociedade por revelar as ideologias e por apresentar um
olhar diferenciado sobre a sociedade. Um filme, mesmo nas relações com o discurso
histórico revela suas próprias tensões.
Nesse sentido, a utilização do cinema como um documento histórico leva-nos
a uma melhor compreensão de períodos que outrora se apresentavam de maneira
obscura em documentos ditos oficiais. Entretanto, todo documento se renova a partir
da visão do historiador. Assim, o imaginário, os ritos, os signos e mitos passaram a
fazer parte da construção das sociedades e de seus respectivos contextos
históricos. Marc Ferro (1976, p. 203) ressalta que: [...] aquilo que não se realizou, as
crenças, as intenções, o imaginário do homem, é tanto a História quanto a História.
A partir desta concepção apresentada por Marc Ferro, o historiador deve
tomar cuidado ao fazer a leitura de seu documento fílmico. Um documentário que se
baseia em fatos reais pode ser uma construção 44, assim como um filme de ficção,
que também pode apresentar cenas reais. A relação histórica e historiográfica da
leitura fílmica se expressa pela construção da narrativa do objeto estudado, que por
44
Construção do gesto, construção da interpretação (mise em geste, mise em jeu). Termos forjados
por Serguei M. Eisenstein, em seus cursos na VGIK, a escola de cinema de Moscou, por analogia
com mise-em-scène, e para designar a técnica da interpretação de autor. A construção do gesto
(mise em geste) recobre uma decomposição mental das atitudes das partes do corpo. A construção
da interpretação (mise em jeu) retoma a idéia de um repertório de posições expressivas. Construção
do quadro (mise em cadre). Termo utilizado pelo realizador de cinema Serguei M. Eisesntein em suas
aulas na escola de cinema de Moscou (VGIK) na década de 1930, por analogia com a expressão
mise-em-scène, para designar a preocupação de composição (gráfica, plástica) dos planos. A direção
(mise-em-scène) é a localização (mise em place) dos atores no cenário e a determinação de seus
movimentos; a construção do quadro (mise em cadre) é a determinação dos enquadramentos
sucessivos correspondentes: ela não é, portanto, exatamente o enquadramento: este é imaginado
como decupagem móvel de uma realidade persistente, a construção do quadro (mise em cadre) é
correlativa de uma modificação da realidade com fins de seu enquadramento. Construção em abismo
(mise em abîme/ em abyme) – Termo de retórica, proposto por André Gide e universalmente adotado
em seguida, significando a incrustação de uma narrativa em outra, por analogia com o termo brasão
que designa uma figura colocada no centro do escudo, e que figura outro escudo. O sentido
narratológico conservou-se tal e qual no cinema (a narrativa “em construção” é uma narrativa dentro
da narrativa, sobre modos variáveis, como em literatura, a mais corrente sendo ligada ao flashback).
Além disso, designou-se com isso, às vezes, de maneira mais aproximativa, a existência de uma
segunda estrutura na figuração ou na representação (por exemplo, o fato de mostrar em um filme a
filmagem de um filme imaginário é com freqüência assimilada, erroneamente, a uma construção em
abismo). Cf: AUMONT, J; MARIE, M., op cit., p. 59 e 60.
sua vez ocorre através da conjunção de sentidos que os filmes atribuem ao tempo
que constroem. 45
Dessa forma, o cinema é a expressão do homem. É na projeção da tela que
os diferentes tipos de gêneros se cruzam, e que as inúmeras estórias, mitos e
fábulas adquirem consistência. Todo este aparato faz regir um complexo comércio
que alimenta o desenvolvimento do mercado cinematográfico. A publicidade que
aparece nos filmes e nas salas de projeção, bem como as distribuidoras que enviam
filmes para estas salas e os espectadores que pagam pela bilheteria, constituem o
mercado cinematográfico.
A narrativa cinematográfica é um conjunto de sons, imagens e discursos
verbais direcionados a compreensão do espectador. No campo literário, ao ser
adaptado para um roteiro, o discurso fílmico passa a ser outro texto mantendo as
características do discurso lingüístico.46
Ao ser projetado temos que ter consciência que o filme passou por diversas
etapas até chegar às salas de cinema, tais como a preparação do roteiro, das
filmagens e da edição do produto.47 A natureza fílmica é heterogênea e sua estrutura
é uma composição de técnicas que levam o espectador a construir um mundo de
ilusões perceptíveis ao seu modo.48 Por meio desta observação, a “análise
estrutural” servirá de parâmetro para interpretar o Satyricon de Fellini com base na
obra de Petrônio. Ao seguir por este percurso, é possível descortinar o foco
45
No entanto, os argumentos de Ferro vêm sendo criticados pela nova historiografia principalmente
com relação à manipulação da linguagem cinematográfica. Vejamos: “[...] Além disso, apontam para
certas lacunas na maneira como Ferro pensa a relação entre história e cinema: como a linguagem
intrínseca ao filme, seja ele documentário ou ficção, interfere no registro de um evento, de um
processo ou de um personagem de valor “histórico”? Como o filme com tema histórico, documental ou
ficcional traduz o presente ao representar o passado? Quais são as tensões internas do filme,
pensadas a partir da sua estrutura narrativa, na tentativa de registrar ou representar fatos históricos?”
Cf: NAPOLITANO, M. “A História depois do papel”. In: PINSKY, C.B (Org.). Fontes históricas. São
Paulo: Contexto, 2006, p: 243 e 244.
46
Para o historiador Marcos Napolitano: “O roteiro é o guia básico para o diretor, que pode fazer
algumas alterações ao longo da filmagem. Eventualmente, a mesma pessoa pode acumular as
funções de argumentista, roteirista e diretor, mas é mais comum o roteiro ser feito por profissional
especializado. Cf: NAPOLITANO, M. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto,
2005, p: 57.
47
48
Cf. LEONE, E; MOURÃO, M.D. Cinema e montagem. São Paulo: Ática, 1987.
Cf. CAMPOS JR, L de C. Cinema e Possibilidades de Diálogo. (trabalho apresentado ao GT
História da Mídia Audiovisual do V Congresso nacional de História e Mídia). São Paulo: Facasper e
Cill, 2007.
narrativo, a construção dos personagens, bem como a composição das cenas, a
relação personagens-espaço, figurino, etc.
Dando continuidade ao processo de investigação da obra de Fellini, a “análise
estrutural” somente é viável se levarmos em conta os indícios de recepção. Recurso
este presente na tríade relação entre autor, público e obra, que são muito utilizadas
no discurso literário.
A luz deste quadro, entre o discurso cinematográfico e literário o
posicionamento do diretor (presentes em depoimentos, entrevistas ou artigos
publicados em jornais e revistas) e a historicidade da produção da película devem
ser analisados em consonância com a análise estrutural do objeto fílmico. No
entanto, o papel do pesquisador somente chega à plenitude através do contato com
o público. Assim, a recepção do objeto fílmico pelo público receptor é o resultado do
momento em que a obra foi produzida.
Com isso, o pesquisador da obra fílmica tem que transcender a própria obra e
buscar compreender como que a película foi recebida pelo público e como este
reagiu frente à produção cinematográfica. O crítico Jean Mitry relata que o público
atribui significado a imagem seqüencial dentro da edificação e elaboração das idéias
do cineasta. Significação que está associada à narrativa, pois a imagem em si não
traz significados, pois a mesma passa a ter significado após entrar em contato com o
público. A busca de algum significado na imagem fílmica, já é por si um exercício
interpretativo.49
Dentro da perspectiva psicológica, o teórico Ernst Hans Grombrich enfatiza
que inserido na interação imagem cinematográfica e espectador existem dois planos:
o do reconhecimento e o da rememoração. Nesse viés, o reconhecimento acha-se
ligado a memória, ao intelecto, e a segunda encontra-se ligado na apreensão
daquilo que é visível, principalmente nas funções sensoriais. Para Grombrich o
espectador tem o papel perceptível e psíquico, que ao estar em contato com a
imagem busca compreendê-la e fazê-la existir, ou seja, o espectador de forma ativa
constrói a sua própria imagem. Desse modo, a percepção visual do público receptor
revela a sua base de conhecimento visual do mundo, capaz de elaborar seu próprio
49
Cf: Apud (ANDRE W, J. D. As principais teorias do cinema. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989, p:
194-196).
campo imagético. O conhecimento prévio deste permite o preenchimento das
lacunas da representação.50
Neste ponto, o cinema se firma como um meio de comunicação que depende
do espectador para dar significado à narrativa fílmica. A recepção da obra fílmica
está na própria obra que é interpretada segundo características que o espectador
confere a mesma por meio do seu mundo imagético.51
É preciso enfatizar que a imagem cinematográfica é uma construção,
realizada pela junção de recursos e equipamentos próprios ao mundo do cinema,
tais como o som, a iluminação, a fotografia, o roteiro e as câmeras. Nesse contexto,
a produção cinematográfica é uma construção de uma determinada visão da
realidade. Ao produzir uma obra fílmica, as escolhas do diretor influenciam a
execução da mesma, pois é ele quem indica os atores, elabora o roteiro, escolhe os
cenários e aponta a temática que será abordada.52
As características expostas até aqui indicam que o historiador e os estudiosos
dos recursos audiovisuais, ao se ocuparem dos estudos de fontes fílmicas, tornamse necessário ainda estabelecer um diálogo com outras formas de expressão, tais
como a imagem, o movimento e o som. Assim, um objeto fílmico permite variadas
leituras, suscetíveis a temporalidades e ângulos de análise distintos.
O olhar metodológico do historiador sobre o objeto fílmico é diferente da visão
do cineasta, do crítico ou do diretor, pois além do significado da produção
cinematográfica, leva-se em conta a sua relevância quanto objeto de cunho
historiográfico. O historiador Marcos Napolitano completa dizendo que:
50
Apud (AUMONT, J. A Imagem. São Paulo: Papirus, 1993, p: 81-90).
51
Para Francis Vanoye e Anne Goliot-Leté, ambos frisam que descrever um filme, ou seja, contá-lo, já
é interpretá-lo, pois isso, de certo modo é um processo de reconstrução. Cf: VANOYE, F; GOLIOTLÉTÉ, A. Ensaio sobre a análise fílmica. São Paulo: Papirus, 1994, p: 52.
52
Pierre Sorlin, professor da Universidade de Paris III, nos diz que um filme não é uma história, nem
uma duplicação do real fixado sobre o celulóide, é um mise em scène social; o que ele transmite é
uma certa visão da realidade social que abre novas perspectivas de estudos sobre a humanidade.
Cf: SORLIN, P. Sociologie du cinema. Paris: Aubier Montaige, 1977, p: 200.
[...] é menos importante saber se tal ou qual filme foi fiel aos diálogos, à
caracterização física dos personagens ou a reprodução de costumes e
vestimentas de um determinado século. O mais importante é entender o
porquê das adaptações, omissões, falsificações que são apresentadas num
filme. Obviamente, é sempre louvável quando um filme consegue ser “fiel”
ao passado representado, mas esse aspecto não pode ser tomado como
53
absoluto na análise histórica de um filme.
Um documento fílmico apresenta as mesmas armadilhas de um documento
escrito. O espectador cinematográfico estabelece uma relação com a produção em
consonância com o seu mundo. O historiador deve observar que a imagem fílmica
não determina por completo o mundo do espectador, sendo antes uma ilusão.
Todavia, nesse conjunto o espectador também exerce um papel ativo frente à
produção cinematográfica, pois ao assimilar e interpretar a imagem fílmica faz por
meio de suas vivências e aspirações. A partir dessa característica, a relação da
História com o cinema pode ser estabelecida da seguinte forma:
[...] O cinema na História; a história no cinema e a História do cinema. Cada
uma das três abordagens implica uma delimitação específica. O cinema na
história é o cinema visto como fonte primária para a investigação
historiográfica; a história no cinema é o cinema abordado como produtor de
“discurso histórico” e como “intérprete do passado”; e, finalmente, a História
do cinema enfatiza o estudo dos “avanços técnicos”, da linguagem
cinematográfica e condições sociais de produção e recepção de filmes.54
A história do cinema é uma disciplina específica, que possui objetos e
métodos próprios. Inserido nesta disciplina, está à história das técnicas, a história da
Indústria, que trata da produção, da investigação, administração, marketing etc. E a
história das formas que circunscrevem elementos ligados as artes em geral, música
e literatura.
NAPOLITANO, M. “A História depois do papel”. In: PINSKY, C.B. (org). Fontes históricas. São
Paulo: Contexto, 2006, p: 237.
53
NAPOLITANO, M., op cit., p: 240 e 241. Apud (DUTRA, R. A. “Da historicidade da imagem à
historicidade do cinema”. In: Projeto História nº 21, São Paulo, EDUC, nov. 2000, p: 126).
54
O cinema na História tem como objetivo verificar como que a história é vista
ou tratada no cinema. O que os historiadores têm verificado é que o filme tem sido
utilizado como um poderoso veículo de dominação e poder. 55 As produções
cinematográficas também têm sido usadas como propaganda, mesmo sem a
interferência direta do Estado, os filmes revelam muito da cultura que o produziu,
sempre carregados de ideologia.
Mas, o que dizer sobre a grande maioria dos filmes de ficção e
documentários produzidos pela milionária indústria cinematográfica sem a
interferência do Estado? Neste caso, narrando histórias, o filme espelha a
mentalidade do público ou pelo menos de parcela dele. Porém, merece ser
sempre lembrado, que a indústria cinematográfica é nacional – quando se
trata de cinema, é impossível deixar de pensar na poderosa indústria
americana, o que significa que o surgimento de um filme se dá dentro de um
determinado quadro cultural, que sua produção está sujeita a
condicionamentos históricos e a história narrada por ele foi emoldurada por
determinado quadro ideológico.56
Um filme não é uma produção neutra, ele traz consigo uma carga de valores e
idéias, sendo testemunha de seu tempo e das mudanças sociais. 57 Assim, o filme é
um documento histórico contemporâneo, que variante ao gênero que pertença,
somente alcançara o seu objeto de interpretação e de análise se estiver associado
aos outros documentos de cunho historiográfico. Sobre as particularidades do objeto
fílmico como fonte histórica o professor e pesquisador Antônio Penalves Rocha
(1993, p. 77) ressalta que:
55
O historiador Marc Ferro cita que: “desde os fins do século XIX, já há câmeras filmando pessoas e
acontecimentos, notadamente as famílias reinantes. ”Procedimento este que passou a ser muito
freqüente após a Primeira Guerra Mundial.” Cf: FERRO, M. Cinéma et histoire. Paris: Denoel
Gonthier, 1977, p. 83.
56
Cf: ROCHA, A. P. “O filme: um recurso didático no ensino da história?”. In: FALCÃO, A. R;
BRUZZO, C. Coletânia lições com cinema. São Paulo: FDE, 1993, p: 75.
57
Para o crítico Martin A. Jackson, “o cinema deve ser considerado como um dos depositários do
pensamento do século XX, na medida em que reflete amplamente a mentalidade dos homens e
mulheres que fazem filmes. Do mesmo modo que a pintura, a literatura e as artes plásticas, o cinema
ajuda a compreender o espírito de nosso tempo.” Cf: JACKSON, M. A. “El historiador y El cine.” In:
ROMAGUERRA, J; RIAMBAU, E. (ed). La historia y el cine. Barcelona: Fontamara, 1983, p: 14.
Apud (ROCHA, A. P., op cit., p. 76)
O historiador nunca deverá contar com algo que o cinema jamais poderá
proporcionar-lhe o caráter de documento único para pesquisa, ou seja, o
filme é tão somente uma das fontes do trabalho historiográfico; este só
atingirá seu objetivo de analisar uma sociedade, ou mesmo um dos seus
aspectos, se complementar as informações contidas no cinema com as de
outros documentos. O principal motivo desta “limitação” como fonte histórica
reside na sua própria riqueza: por se tratar de uma arte, o cinema não tem
compromisso com a realidade, apesar de nos múltiplos aspectos de
qualquer filme estarem presentes as inscrições históricas do mundo em que
ele nasceu.
A História tem sido muito utilizada pela indústria cinematográfica. Nesse
processo, a representação audiovisual da história refere-se à expressão do passado
através da linguagem fílmica. Com isso, o estudioso do mundo das imagens fílmicas
não pode exigir uma fidelidade da produção do objeto fílmico em relação as suas
fontes de informação.58 Neste sentido, na relação da história com o cinema,
destacamos que a indústria cinematográfica auxiliou na interpretação do passado
histórico, tornando-a mais próximo da população em geral. Sobre a representação
cinematográfica da história, Antônio Penalves Rocha (1993, p. 79) nos exemplica
ainda dizendo que:
[...] Tomemos, em primeiro lugar, o filme de ficção com uma determinada
ambientação histórica, seja ele drama (inclusive político), aventura, seja
comédia. A trama elaborada para a realização de um filme deste gênero
será mergulhada na linguagem cinematográfica, para que a sua narrativa
passe ao espectador a “impressão de realidade”; assim, a reconstituição
histórica forjará o cenário dentro do quais atores desempenharão os papéis
requeridos para o desenvolvimento da trama de uma história que será
filmada. É verdade que, na maior parte das vezes, o filme histórico conta
com a assessoria do historiador para a reconstituição de aspectos da vida
de uma época: arquitetura, figurinos, vida política etc.
58
Por isso mesmo, o crítico Angelo Moscariello, ao se perguntar se o filme, recorrendo aos meios que
lhe são particulares, pode contribuir para a explicação histórica, responde categoricamente que não –
porque sendo uma “arte concreta e ligada ao presente o cinema não pode em caso algum realizar a
obra de conhecimento histórico”. Isto se deve ao fato de que a “representação” do passado pelo filme
só permite a visualização do seu “aspecto fenomênico e não também do segredo inerente às relações
entre os fatos singulares.” Cf: MOSCARIELLO, A. Como ver um filme. Lisboa: Presença, 1985, p: 82
e 83. Apud (ROCHA, A. P., op cit., p. 82)
A imagem fílmica é um ponto de referência cultural e não uma referência da
realidade. Ao analisarmos uma produção audiovisual fazemos por meio das funções
construtivas da atividade mental.59 Estas questões são fundamentais para
compreendermos a natureza das relações entre história e cinema e como que a
história tem realizado a leitura dos rituais cotidianos do mundo clássico ao
contemporâneo. A construção dos rituais cotidianos na sociedade pode ser
determinada através do diálogo entre Petrônio e Fellini. A representação simbólica
dos rituais cotidianos no Satyricon constitui o objeto central de análise deste
trabalho.
Joseph Campbell, um estudioso de mitologia e religião, afirma que “a
mitologia nos ensina o que está por trás da literatura e das artes, ensina sobre nossa
própria vida”.60 Com este pensamento, os rituais e suas representações devem ser
compreendidos dentro de seu próprio contexto social e cultural. Assim, os ritos e
suas práticas se constituem como um caminho para se alcançar o mito, o historiador
e romancista Mircea Eliade61 na relação entre o mito e o rito cita que: [...]
conhecemos os mitos como “documentos” literários e artísticos e não como fontes,
ou expressões, de uma experiência religiosa vinculada a um rito.
59
FRANCASTEL, P. “Objeto fílmico e objeto plástico.” In: Imagem, visão, imaginação. São Paulo:
Martins fontes, 1990, p: 177. Ressalto ainda que Jean Mitry conceba a imagem fílmica como o
resultado de um processo de “autoconcentração” do mundo representado. A marca do realizador
reduzir-se-ia então a uma espécie de analogon, essencialmente de significação provisória e de
sentido imanente. Cf: MITRY, J. Esthétique et Pscychologie di Cinéma. Paris: Editions
Universitaires, 1963, p: 121-124. O pesquisador Antoine Ayfre escreve, por sua vez, reafirmando o
sentido da construção subjetiva, que “a imagem seria então o testemunho de uma presença
encarnada do real e que o realizador faria surgir através de um trabalho de seleção e de ordenação”.
Cf: AYFRE, A. Conversion aux images? Paris: Denoel, 1979, p: 29-34 Apud (SALIBA, E.T. “A
produção do conhecimento Histórico e suas relações com a narrativa fílmica.” In: FALCÃO, A. R;
BRUZZO, C. Coletânea Lições com cinema. São Paulo: FDE, 1993, p. 95.
60
CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Ed. Palas Athena, 1990, p: 12. A palavra mito é
conferida por (AUMONT, J; MARIE, M., op cit., p: 190-191.), como sendo uma fábula, uma narrativa
imaginária pertencente à mitologia, porém, desde o fim do século XIX, a palavra designa também
uma representação idealizada (da idéia, de um ser, de um acontecimento), ou uma “imagem
simplificada, no mais das vezes ilusória.” Nesses sentidos modernos ampliados, ela não está longe
do que designa, em sua acepção pejorativa, a palavra “ideologia”: a idéia simplista, enganosa, que
determinado grupo ou determinada sociedade se faz de um fenômeno de civilização. Mircea Eliade
cita que “todas as grandes religiões mediterrâneas e asiáticas possuem mitologias. Contudo, é
preferível não iniciar o estudo do mito tomando como ponto de partida a mitologia grega, egípcia ou
indiana [...] sendo preferível começar por estudar o mito nas sociedades arcaicas e tradicionais
reservando para uma análise ulterior as mitologias dos povos que desempenharam um papel
importante na história.” Cf: ELIADE, M. Mito e Realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1991, p: 10.
Apud (BISSON, M. P. Mito: o sagrado no cinema contemporâneo: o caso “Drácula” de Coppola.
Dissertação de Mestrado – Multimeios/Instituto de Artes. Campinas: UNICAMP, 1997, p: 19).
61
ELIADE, M. Mito e Realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1991, p. 138.
Dessa maneira, se aceitarmos que o rito é o “cumprimento” de um mito,
somos levados a crer que a participação em um ritual nos tornam seres participantes
do próprio mito. Ao estudar “os rituais cotidianos no Satyricon de Petrônio e Fellini”
detectaremos como que muitos estudiosos narram às antigas celebrações dos rituais
observando o seu predomínio na sociedade contemporânea, manifestadas através
da diversidade cultural.
A partir deste prisma, os capítulos que se seguem concentram a atenção na
relação entre a construção do significado da obra de “Petrônio e Fellini” sob a luz da
interpretação teórica do campo imagético. Ao delinear o perfil de ambos os “sátiros”,
chegamos à consolidação da proposta desse estudo que se dará a partir da análise
do objeto fílmico, o Satyricon de Fellini, sem perder de vista a contribuição literária
de Petrônio. A postura interdisciplinar que norteia as fronteiras metodológicas deste
trabalho se pauta na análise bibliográfica e estrutural da narrativa fílmica e literária.
O capítulo que se segue é a ponta do novelo de Ariadne rumo à saída do
labirinto, na tentativa de decifrar o homem pelo homem em seu universo
historicizante.
O cinema não deveria entrar no museu nem
integrar instalações. O museu, como o teatro, é
a sociedade burguesa. O cinema é uma arte
popular, ele exige a sala escura, na qual
podemos nos esconder num canto, onde estamos
protegidos
pela
escuridão,
onde
não
há
entreato, nem coquetel, nem casacos de péle,
nem olhares – salvo áqueles que circulam
entre a tela e os espectadores. E quando o filme
termina, e as luzes ainda não estão acesas, nós
nos levantamos e vamos embora.
(Eugenio Renzi - crítico de cinema italiano
em comentário ao longa biográfico de Agnès
Varda – Les Plages d’Agnès)
1 AS FONTES: PETRÔNIO E FELLINI
Onde o ouro é todo-poderoso, de que servem as
leis? / Se não tem dinheiro, o pobre perde seus
direitos / O cínico, que é tão frugal e severo em
público, / secretamente negocia com a verdade.
/ Até mesmo, Têmis se vende e, em seu tribunal,
/ a balança pende conforme o vil metal.
(Petrônio, Satíricon - ano 63)
1.1 O SATYRICON DE PETRÔNIO
Romano do século I d.C., Petrônio (Caius Petronius Arbiter) viveu sobre a
égide do governo de Nero. Assim, Paul Harvey62 situa Petrônio como sendo um
cônsul e governador da Bitínia, ocupando posteriormente a convite do próprio Nero o
cargo de árbitro de elegância (elegantiae arbiter), fazendo parte do restrito círculo de
amigos do Imperador.
Tácito, historiador latino descreve Petrônio como um homem refinado e
apreciador do luxo. Na vida privada gostava de praticar o ócio, que o preparava para
a prática da vida pública, retratando a perversão e a depravação. As informações
que nos chegam sobre sua vida pública, mostram que Petrônio era um exímio
administrador, característica atribuída a ele em decorrência da sua capacidade de
atuar e a influência que tinha no meio Imperial. Sobre o relato de Tácito, ver Anais,
XVI, 18:63
62
Cf. HARVEY, P. Dicionário Oxford de Literatura Clássica Grega e Latina. Rio de Janeiro: Zahar,
1987.
63
Tradução do latim é de Paulo Leminski, Cf: LEMINSKI, P. Satyricon. São Paulo: Brasiliense, 1987,
p: 181 Apud. (GARRAFONI, R.S. Bandidos e Salteadores: concepções da elite romana sobre a
transgressão social. Dissertação de Mestrado apresentado ao Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas/IFCH. Campinas: Unicamp, 1999) e FAVERSANI, F. A Pobreza no Satyricon de Petrônio.
Dissertação apresentada ao curso de mestrado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP, S.P., 1995, p. 17.
De C. Petrônio não há muito que dizer. Dormia o dia inteiro e dedicava à
noite para seus trabalhos e prazeres. Muitos ficavam famosos por seus
empenhos (indústria). Ele era famoso por sua preguiça (ignavia). Não era
considerado um homem que corre atrás do proveito, mas dos prazeres sutis
(erudito luxo). Tudo que dizia e fazia era descontraído e sem esforço, e sua
simplicidade cativava como uma gentileza. Mas soube ser energético
quando no serviço público, primeiro como pro cônsul na Ásia, depois como
cônsul. A seguir, retirou-se para a vida privada e seus vícios favoritos e,
como tal, foi aceito no círculo mais íntimo do Imperador Nero, onde reinou
como um verdadeiro árbitro da elegância (elegantiae arbiter). Nero nada
fazia sem antes consultar seu sofisticado cortesão. Isso suscitou a inveja de
Tigelino, outro cortesão, que contra Petrônio arma uma intriga, envolvendo
seu nome com conspiradores.
Nesse âmbito, por pertencer à elite romana, a leitura de seus escritos devem
ser feitas de forma cuidadosa, pois retratam o olhar por vezes oficial da corte do
Imperador. Sua obra, Satyricon, é escrita em prosa intercalada com versos que
narram às aventuras de três personagens trapaceiros, sendo eles, Encólpio, Ascilto
e Gíton.64 Assim, no Satyricon, Petrônio vai retratar a vida privada do Imperador, dos
prazeres, da vida cotidiana, do vinho, dos banquetes, dos jogos, das orgias, do
bacanal, dos banhos públicos, os abusos das termas, nas quais se discutiam
política, ostentavam-se fortunas e maquinavam-se assassinatos. O sociólogo
Fernando de Azevedo65 destaca que:
A Roma dos Césares, tão decaída de sua ancianidade gloriosa, não é
senão esta cidade retratada por Petrônio, pintor de costumes, e de que,
conhecendo-a, como ninguém, dotado de poder de dissecção moral, deu,
em dois rasgos de mestre, o quadro verdadeiro, de cujos horrores não se
assustavam o seu espírito penetrante e céptico há um tempo. A tela traz por
baixo o título de Crotona, mas é de Roma a pintura fiel. Quando esse
escritor singular, o „arbitro da elegância‟, no tempo de Nero, aguçou os bicos
de pena ou afiou o estilo para esfarrapar o manto de púrpura, sob que se
velavam as chagas de uma sociedade corrupta, o que tinha diante dos
olhos era, de fato, a cidade arquejante sob a maré de prazeres, que,
avolumando-se das cidades da Campânia, sempre inclinadas aos excessos
da lascívia, rompera todos os diques das leis moralizantes e já entestava as
sete colinas.
64
Nesta dissertação, optou-se pela tradução para o português de todos os nomes apresentados na
obra literária.
65
Cf: AZEVEDO, F. de. No tempo de Petrônio. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 1962, p. 23.
A cidade romana, no período do principado, já se mostrava influenciada pelos
costumes estrangeiros, pois com o desenvolvimento do processo de conquista
imperial a cidade de Roma tornou-se um centro de atração. A tradição, os costumes
romanos praticados pelos ancestrais, bem como a religião romana, dividiam seu
espaço com os diversos tipos de culturas e crenças. Sobre os personagens e o
comportamento do homem romano podemos citar as dezesseis Sátiras de Décimo
Júnior Juvenal, satirista e literato do século I d.C, que ao enfatizar sobre os motivos
que o levaram a escrever suas Sátiras, destaca o descaso com àqueles que
detinham o saber, do pouco que se pagava para obtê-lo e dos subterfúgios de uma
Roma que se encontrava envolta da criminalidade, da oposição entre os contrastes
do dia e da noite; de uma Roma multifacetada. Dessa forma, Juvenal se perguntava
“esta cidade criminosa vendo, que férreo coração silêncio guarda!”. (JUVENAL,
Sátira I, p. 38 e 39) 66
A Roma do poeta Décimo Júnio Juvenal era marcada por estes contrastes,
durante o dia, nas ruas se presenciava uma agitação intensa, pessoas andando por
todos os lados, se acotovelando, um barulho infernal se fazia presente. As tabernas,
os barbeiros, os donos de botequim, todos disputavam fregueses, boa parte no grito.
Nas esquinas era fácil avistar cambistas, curiosos encantados com apresentações
artísticas, encantadores de serpentes, mendigos, suplicando por esmolas, enfim,
uma população que se esquadrinhava em meio à agitação e o corre-corre do dia-adia. Durante a noite todo este barulho era substituído por outro, muitas algazarras
causadas em sua grande parte por jovens romanos, que depredavam, e praticavam
violência contra os bens e as pessoas, movimentos de carros de toda a espécie,
boêmios, malandros e vagabundos que andarilhavam pelas ruas. Prostitutas e
“garotos de programa” ficavam a espreita de novos clientes. E eram em meio a este
cotidiano, que o literato buscava desvendar os segredos que a cidade romana
guardava.67
66
67
Cf: JUVENAL, D. J. Sátiras. São Paulo: Edições Cultura, 1943.
Cf: CARCOPINO, J. Roma no Apogeu do Império. São Paulo: Cia. das Letras, 1990, p: 69-70; Cf.
também: SALLES, C. Nos submundos da Antigüidade. São Paulo: Brasiliense, 1987, p: 190-200 e
SILVA, N. O. O Clientelismo nas Sátiras de Décimo Júnio Juvenal. Iniciação Científica. Maringá:
UEM, 2003.
A “cidade de tijolos” reconstruída por Caio Júlio César Otaviano e
transformada na “cidade de mármore” revelava uma sociedade parasitária, entregue
aos prazeres e a extrema volúpia.68 Os prostíbulos, os desregramentos da família
Imperial, a devassidão do povo romano e a concupiscência das festas,
representadas pela ostentação do luxo e das esplêndidas mesas, eram retratadas
nas pinturas e nos mosaicos eróticos das paredes romanas. Com efeito, a obra de
Petrônio traz muitos elementos do mundo sagrado e do profano, como os rituais
míticos e as orgias.
A história tem muitos elementos de uma extravagância Hollywoodiana:
Nero, orgias, salas de mármore, o poder do Palácio e do Fórum Romano,
rituais, banquetes, dançarinas nuas, excessos sexuais, em suma, tudo
levemente mencionado nos mistérios do Apocalipse de João e referido
como a raiz de todo mal pelos televangelistas americanos. 69
As discussões tecidas levam-nos a afirmar que, em meio à sociedade
romana, os cidadãos estavam entregues aos prazeres da vida, todos tinham seu
respectivo valor, ou seja, „assem habeas, assem valeas’ (valia cada um quanto
tinha). Com isso, a sociedade estava dividida entre os ricos e aqueles que não
68
O surgimento de Otaviano no cenário político é marcado por intensos conflitos pessoais
direcionados a Marco Antonio, principalmente após o assassinato de Julio César. Quando Roma
entrou em guerra com o Egito, Otaviano obteve uma vitória decisiva. Marco Antonio, que considerava
Cleópatra como sua rainha, tinha como objetivo transformar o Império Romano em uma monarquia
helenística, com capital no Egito. Esse objetivo não foi alcançado o que levou Marco Antonio e
Cleópatra, por volta do ano 30 a.C. a cometer suicídio. Pela primeira vez, um único homem mantinha
sua supremacia no mundo romano, era Otaviano. O senado proclamou-o Imperador, chegando ao fim
o sistema republicano, dando lugar ao Império Romano. O senado passaria a chamar Otavaino de
Augusto, que significa “o venerado”. O governo de Caio Julio César Otaviano (27 a.C. – 14 d.C) foi
lembrado como uma Idade de Ouro. Cf: FEIJÓ, M.C. Roma Antiga. São Paulo: Editora Ática, 1996;
GRIMAL, P. O Império Romano. Lisboa: Edições 70, 1999; ALFÖLDY, G. A História Social de
Roma. Lisboa: Presença, 1989; DE MARTINO, F. Storia Economica di Roma Antica. Firenze:
Nuova Italia, 1979; GARNSEY, P & SALLER, R. The Roman Empire: economy, society and
culture. London: Duckworth, 1987.
69
Cf. “The story has many elements of a Hollywood extravaganza: Nero, orgies, marble halls of power
on the palatine and in the Forum, riotous banquets, nude dancing, girls, sexual excesses, in short
everthing hinted at in the mysteries of the Revelation of John and referred to as the root of all evil by
American televangelists.” Cf: SCHEMELING, G. “The Satyrica of Petronius.” In: The novel in the
Ancient World. New York: E. J Brill, 1996, p: 457. As traduções presentes nesse estudo são do
próprio autor (tp – tradução própria)
tiravam os olhares da fortuna alheia.70 O sociólogo Fernando de Azevedo (1962, p.
24) completa dizendo que:
A devassidão que, desde a manhã, rompia, a céu aberto, no Coliseu, nos
espetáculos do Circo Máximo, e no teatro de Marcelo, esgueirava-se, nos
ardores da sesta, pelas salas de banhos das termas, para, ao cair da tarde,
desenfrear-se, na crueza íntima das cenas lúbricas, a que se armava toda a
magnificência asiática dos festins, em que os convivas, refartos dos
prazeres da mesa, adormeciam, até noite velha, em coxins de plumas de
cisne, nos braços de senhoras de alta estirpe, confundidas, nos extremos da
crápula, com as mais belas escravas arrebanhadas de remotas províncias.
A historiografia moderna ressalta que somente uma pequena parte dessa
obra latina chegou ao nosso conhecimento, o episódio mais destacado e estudado
no Satyricon refere-se ao Banquete de Trimálquio, cujo manuscrito foi descoberto no
século XVII. Nesse episódio, Petrônio descreve Trimálquio como sendo um “novo
rico” vulgar, que aceita receber os “aventureiros” para um banquete. Ao falar sobre o
acontecimento, descreve o ambiente, as iguarias oferecidas aos convidados, os
incidentes grotescos que ocorrem durante o jantar, as conversas cômicas, e a
embriaguez de Trimálquio. Petrônio relata ainda as histórias contadas por ele,
sempre fazendo uso do recurso satírico. Assim, o autor do Satyricon acabou sendo
condenado ao suicídio em 66 d.C por Tigelino,71 que acusou Petrônio de
conspiração contra o Imperador.
Todavia, o Satyricon é uma obra polêmica, o que tem despertado o interesse
de muitos estudiosos sobre o assunto, principalmente no que concerne a sua
datação, título e autoria. A historiadora e Prof. Drª. Renata Senna Garrafoni em seu
estudo intitulado “Bandido e Salteadores: Concepções da Elite Romana sobre a
transgressão social”, a partir da análise do Satyricon e das Metamorfoses de Apuleio
ressalta sobre a particularidade do estudo de ambas, destacando as suas
características literárias e seus conflitos sociais. Vejamos o que Garrafoni (1999, p:
38) nos observa sobre Petrônio e o Satyricon:
70
71
Cf. JUVENAL., Sátira I, 112-115
Ofônio Tigelino foi um político romano de origem grega, que exerceu o cargo de prefeito do pretório
(62 d.C) sendo um influente conselheiro do imperador Nero.
Há uma grande discussão entre os pesquisadores modernos para
determinar com maior precisão quem seria seu autor, o período em que foi
escrita e seu título original. [...] A biografia de Petrônio é bastante imprecisa
e desde o período do Renascimento há uma grande dificuldade para se
determinar quem foi este homem. A maioria dos pesquisadores concorda
que o autor do Satyricon é o Petrônio descrito por Tácito em sua obra Anais
(XVI: 18-19) e mencionado, mais brevemente, em algumas passagens de
Plínio, o Velho e Plutarco. É bem verdade que, nos outros dois, mencionouse Tito. Apesar desta diferença, ao que tudo indica, os três falavam da
72
mesma pessoa e, segundo Walsh , é bem provável que Tácito tenha se
equivocado. Diante desta situação, considera-se que o nome completo do
autor seria Tito Petrônio Níger, cônsul romano durante o ano de 62 d.C., e
conhecido como arbiter elegantiae (árbitro da elegância), já que estabelecia
padrões de elegância na corte de Nero.
Sobre as incertezas que pairam sobre a produção do Satyricon, cabe
ressaltar o estudo do historiador Fábio Faversani73, que completa a citação acima
afirmando que:
Se há alguma característica que podemos atribuir ao Satyricon com
absoluta certeza é a de obra polêmica. É quase impossível encontrar um
consenso significativo sobre ela. Sua datação, sua autoria, seu título, os
locais em que se ambientam os episódios, a influência do autor e do
ambiente literário, sua trajetória de preservação, seu valor literário, a
fidedignidade do texto hoje estabelecido em relação ao original, o peso das
possíveis interpolações, o tipo de linguagem empregada e, mais do que
tudo, o estilo, seu potencial enquanto fonte historiográfica e as intenções do
autor foram objeto de franca e aberta polêmica no passado. Mesmo agora,
nenhum destes pontos obteve um consenso, ainda que esta ou aquela
perspectiva de análise em relação a alguns tópicos tenha atingido hoje uma
forte hegemonia.
Ao enfatizarmos estas questões, percebemos o quanto Petrônio era moderno
para o seu tempo, apesar de muitos estudiosos tendo levantado dúvidas quanto à
datação da sua obra. Seus relatos refletem os anos de 63-65 d.C, por expor
características econômicas e apresentar personagens diversos, próprios do seu
tempo, tais como, os gladiadores, os novos ricos, os tocadores de liras com suas
72
Cf: WALSH, P.G. The Roman Novel. Grã-Bretanha: Cambridge University Press, 1995, p: 244
Apud (GARRAFONI, R.S., op cit., p. 38)
73
Cf: FAVERSANI, F. A pobreza no Satyricon de Petrônio. Dissertação de Mestrado apresentado à
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: USP, 1995, p. 14.
paródias e sátiras, o que leva-nos a considerá-lo um contemporâneo de seus
escritos.74 Fernando de Azevedo (1962, p. 34) cita que:
Nas páginas do Satyricon, para as quais a pena de Petrônio esparrinhou
salpicos de lama da Roma dos Césares, encontram-se, não engranzados ou
concatenados entre si, mas esparsos, pensamentos de um lúcido vigor e
conceitos imprevistos pela sua delicadeza requintada, que fazem de
Petrônio „um contemporâneo do futuro‟. Tem sua filosofia própria, que,
espírito refratário à sistematização, não reduziu a corpo a doutrina. Não era
um moralista. Ao contrário, céptico, não tinha temperamento para
apostolizar convicções ou fulminar, à maneira de Catão, dogmas rígidos de
ética e sabedoria. Era antes um semeador de idéias, que tanto sabia pintar
ao vivo quadros de corrupção de seu tempo, como da sua pena deixava
cair, com certo descupido elegante, as pérolas de fino quilate de sentenças
rivais de Sêneca e Públio Siro.
O escritor latino revelava em seus versos as máximas das questões que
permeavam o pensamento romano. A brevidade da vida levou-o a se aproximar da
filosofia epicurista. Assim sendo, o poeta aconselhava a cada um procurar ocupar-se
do que lhe fosse mais agradável fazer, pois não existia sequer algo que pudesse
agradar a todos de forma homogênea. O tédio era o mal da filosofia estóica. 75
74
Este período é datado pela historiografia como referente ao governo do Imperador Nero (54-68
d.C). Sucessor do imperador Cláudio, o governo de Nero revelou uma época marcada pela
depravação e a crueldade. Durante a sua administração, Roma fora incendiada. Muitos historiadores
contemporâneos atribuíram este episódio a sua própria loucura. Ainda em seu governo, realizou
constantes perseguições aos cristãos, o que acarretou a crucificação de São Pedro no muro central
do Circo de Nero e a decapitação de São Paulo na Via Ostiense. A luz desse quadro, Nero foi o
último governador da dinastia Júlio-Claudiana, filho de Agripina (sobrinha e segunda esposa do
Imperador Cláudio) com Domício Aenobardo. Sua conduta degenerada, os constantes assassinatos,
entre eles, o da própria mãe, forçou o filósofo Sêneca, seu preceptor, a cometer o suicídio. Os
atributos de Nero fizeram com seu governo degringolasse. A entrada de cultos orientais e o confisco
de bens dos ricos e nobres levaram o Estado à beira da ruína, em grande medida pelo abuso da
luxúria e dos caprichos pessoais. Cf: Cf. REQUEJO, J. M. “Introducción general & Introducción”. In:
TÁCITO, C. Diálogo sobre los oradores. Madrid: Editorial Gredos, 1999. p: 8; SUETÔNIO. A vida
dos doze Césares. São Paulo: Athena, 1950; VANDENBERG, P. Nero: Imperador e deus, artista e
bufão. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1986.
75
O estoicismo é uma escola filosófica fundada por Zanão (336-264 a. C), que defendia a austeridade
física e moral, fundada na resistência do homem perante os sofrimentos e as adversidades da vida. O
estoicismo opõe-se ao epicurismo, como vimos, pois para os estóicos, o único bem do homem não é
o prazer, ou a felicidade, mas sim a virtude. O sábio estóico deve buscar o aniquilamento da paixão,
até a apatia, pois esta é a causa do desejo, do vício e da dor. Cf: BRUN, J. O estoicismo. Lisboa:
edições 70, 1986. Vêr também as teorias do filósofo Claude Adrien Helvétius, no qual postulava que o
comportamento do homem era fundamentado no interesse, visto como um impulso para a obtenção
do prazer e a eliminação da dor. Cf: MORA, J. F. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2001,
p. 1314 e 1315.
Petrônio levou uma vida boêmia, alternando entre os prazeres e os encargos, as
virtudes e os vícios, a indolência e o trabalho.
Toda essa característica mostra-se na construção dos personagens do
Satyricon em relação às aventuras vividas pelos epicuristas na obra de Petrônio, em
grande parte pela busca do prazer e do gozo proporcionados pela vida.
Neste paralelo, o filósofo da linguagem Mikhail Bakhatin considera o Satyricon
como um “Romance de aventuras e de costumes”,
76
sendo convenientemente
empregada essa terminologia por muitos estudiosos da obra. Visualizamos abaixo o
que o próprio Bakhatin77 nos revela ao falar sobre o Satyricon em comparação com
O “Asno de Ouro” de Apuleio:
Passemos ao segundo tipo de romance antigo que convencionamos chamar
de „romance de aventuras e de costumes‟. Relacionam-se com esse tipo,
em sentido restrito, apenas duas obras: Satyricon de Petrônio (que chegou
até nós em fragmentos relativamente pequenos) e O Asno de Ouro de
Apuleio (que chegou inteiro), apesar de que elementos essenciais desse
tipo tenham sido representados por outros gêneros, principalmente as
sátiras e também a diatribe helenística.
Mesmo tendo chegado ao nosso conhecimento apenas os fragmentos, como
bem nos confere o poeta e escritor francês Raymond Queneau na apresentação do
Satyricon78, é possível ter uma visão geral da obra, por meio de uma coerência
76
Esse termo também foi empregado por outros autores, tais como: GRIMAL, P. “Une intention
possible de Pétrone dans le Satyricon”.In: Bulletin de L‟Association Guillaume Budé. 3, oct., 1972,
p: 297-310; VEYNE, P. “Le „je‟ dans le Satyricon”. In: Revue des Études Latines, 1964, v. 42, p: 301324; CALLEBAT, L. “Strutures narratives et modes de representation dans le Satyricon de Pétrone.”
In: Revue des Études Latines, v. 52, 1974, p: 281-303. Nesse aspecto, estudos sobre o gênero de
SILVA, G.J. da. Aspectos de cultura e gênero na Arte de Amar, de Ovídio, e no Satyricon, de
Petrônio: representações e relações. Campinas: Unicamp, 2001, p: 97 e (GARRAFONI, R.S., op
cit., p. 35).
77
BAKHATIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Ed.
UNESP, Hucitec, 1988, p. 234.
78
Neste trabalho optou-se por utilizar como fonte a obra literária PETRÔNIO. Satyricon. São Paulo:
Cosac Naify, 2008. Sobre Raymond Queneau, vejamos: “Sem chegar a pensar (como Bürger e Bloch,
além de mim mesmo, aliás) que só nos resta a trigésima quinta parte, os mais otimistas calculam que
nos faltem pelo menos dois terços do Sayricon.” Cf: PETRÔNIO. Satyricon. São Paulo: Cosac Naify,
2008, p. 09.
narrativa, a maior dificuldade que se apresenta no que tange aos próprios
historiadores, é mapear o que seria “falsificação” e “interpolações”. A partir dessa
visão, o historiador Faversani (1995, p. 30) ressalta os “códices” da obra, pois alguns
tradutores trazem à tona uma parte extensa dos seus escritos. Entretanto, muitos
outros textos de Petrônio nos são apresentados somente por meio de pequenos
pedaços. A construção do enredo como conhecemos na atualidade, deve-se a
contribuição dos eruditos, que buscaram ordenar a narrativa ao mais próximo do
contexto original. Como podemos observar na citação que se segue:
Do mesmo modo, não há nenhum códice que traga o Satyricon sem lacunas
ou interpolações e são relativamente raras as sobreposições possíveis de
mesmas passagens existentes em códices diversos. Nota-se ainda que,
além dos códices do próprio Satyricon, há também breves citações feitas
por outros autores e pequenos fragmentos constantes de alguns códices
cuja autoria é atribuída a Petrônio. Estes elementos são, em geral, tão
parcelares, que é muitas vezes impossível alocá-los com a mínima
segurança, daí eles comporem uma documentação à parte, que não nos
propusemos a analisar por seu caráter extremamente fragmentário e pelas
incertezas que se poderiam levantar quanto a real autoria e datação destes.
Com esse pensamento, o termo Satyricon levantou hipóteses sobre o seu real
significado. Assim, Satyrikos, Satura, Satirae ou Saturae, são formas latinas híbridas
greco-romanas, que representavam aqueles que viviam do prazer sexual, a forma
latina caracterizava-se como um meio de exegese da sociedade romana, de poder
interpretá-la e compreender os indivíduos oriundos de seu próprio contexto social. 79
79
Cf. DIHLE, A. Greek and Latin Literature of the Roman Empire. Londres: Routledge, 1994, p:
126-131. Apud (GARRAFONI, R.S. op cit., p: 39). Ainda sobre as principais características do
Satyricon, vêr: (C. Marcheri, E. Paratore, G. Devoto, E. V. Marmorale, E. Auerbach etc); PETRONIO.
Satyricon. A cura de Luca Canali. Texto latino a fronte. Milão: Tascabili Bompiani, 1991. p: XXIIIXXX; PETRONIO. Satyricon. Introduzione, traduzione e note di Andréa Aragosti. Texto latino a
fronte. Milão: Biblioteca Universidade Rizzoli, 1995, p: 79-90. Apud (SILVA, G. J. da. Aspectos da
cultura e gênero na Arte de Amar de Ovídio e no Satyricon de Petrônio: representações e
relações. Campinas: Unicamp, 2001, p: 101). Cf. GONÇALVES, C. dos R. A cultura dos libertos no
Satyricon: uma leitura. Dissertação de mestrado. História. UNESP-FCL/Assis, 1996. Para Walsh, a
obra petroniana não deveria ser encarada como a descrição das características físicas de um
determinado percurso. Será antes um roteiro burlesco e autobiográfico do herói e dos seus amigos
através do “mundo da sátira romana”. Cf; WALSCH, P. G. “The Roman novel.” In: The „Satyricon‟ of
Petronius na the „metamorphoses‟ of Apuleius. Cambridge, 1995, p: 10. Apud (FERREIRA, P. S.
Os elementos Paródicos no Satyricon de Petrônio e o seu significado. Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra: Edições Colibri, 2000, p. 33).
Nesse sentido, ressaltamos ainda que, no final do terceiro século a.C., os
escritores romanos desenvolveram um estilo literário próprio, sendo elas a poesia
instrutiva, a História e a Sátira. Universalizada, popularizada e perpetuada, a sátira
seria o instrumento de manejo mais plausível e acessível diante dos “instruídos
políticos”.
A sátira induz ao interesse genérico e literário, despertando a curiosidade
para estudos relacionados aos usos e costumes, festas, características físicas,
assuntos políticos e morais.
Dessa forma, a sátira passou a adquirir uma fisionomia de “caricatura
literária”, ou seja, não se distinguindo muito da caricatura como conhecemos nos
dias atuais, pautada pela „deformação‟ dos fenômenos de ordem física (gênero de
desenho deformado, mas não obrigatoriamente cômico, mas que consistia em
reproduzir, geralmente em termos gráficos, a aparência de uma pessoa, animal ou
coisa; uma cena ou episódio, exagerando-se certos traços com intenção satírica,
burlesca ou crítica), como um nariz grande, barriga avantajada e calvície, existindo
também sátiras que se ocupavam de assuntos relacionados ao campo espiritual,
outras ainda com críticas voltadas ao relacionamento social e afetivo.
Todas as formas satíricas possuíam a intenção de elevar os “pormenores
humanos”, ampliando as dimensões do lado cômico. Assim, no campo literário, a
sátira faz uso do recurso da comicidade com base em caracteres da representação
daquilo que poderia ser o “grotesco”. Este “grotesco” seria conseqüência direta do
emprego de figuras de linguagens, tais como a hipérbole.
Petrônio nos conduz às manifestações sociais e ao panorama cotidiano dos
romanos, construindo um roteiro que vai além do literário, expondo profundas
reflexões sobre a filosofia da história, da crítica sociológica e dos diversos conceitos
satíricos. A arte literária que visa “censurar ou ridicularizar” traz na língua latina seus
instrumentos de comicidade, fazendo parte os trocadilhos, os paradoxos, o estilo
arguto e a ironia.
Particularmente, o lúgubre panorama que Petrônio traça de Roma é
demonstrado pelo seu estilo natural, direto e agudo. Revelando-se uma pessoa
crítica da sociedade romana, do meio em que se encontrava e de sua própria
condição de poeta.
Levando em consideração o subjetivismo e a experiência social de Petrônio,
passamos a questionar o que os seus escritos nos informam. Assim sendo,
utilizamos o discurso Satírico para extrair temas que denunciam o comportamento
do homem romano buscando compreender as relações políticas no interior desta
sociedade.
No estudo do texto satírico e com base em sua relação com o público, o que a
sátira provoca no leitor? O riso sarcástico ou o riso ingênuo? Na maioria das vezes,
o ato de rir vem acompanhado por algo ou alguma coisa que lhe tenha provocado.
Portanto, o riso não é algo abstrato. Segundo o estruturalista russo Vladimir Propp, o
riso pode ser80:
[...] alegre ou triste, bom e indignado, inteligente e tolo, soberbo e cordial,
indulgente e insinuante, depreciativo e tímido, amigável e hostil, irônico e
sincero, sarcástico e ingênuo, terno e grosseiro, significativo e gratuito,
triunfante e justificativo, despudorado e embaraçado. Pode-se, ainda,
aumentar esta lista: divertido, melancólico, nervoso, histérico, gozador,
fisiológico, animalesco. Pode ser até um riso tétrico!
O riso encontra-se ligado a certos aspectos e atos do homem que levam à
construção e a encenação de uma comédia, mas o rir natural de algo que seja
engraçado torna-se diferente quando este ato é aplicado à arte literária. Este riso
literário é o “riso da zombaria”, facilmente identificado dentro de uma reunião de
amigos, por meio de piadas e ironias. O “riso de zombaria” aproxima-se muito da
comicidade, e tanto a comicidade quanto o riso da ridicularização são focalizados
dentro da esfera do satírico. Com isso, por que e do quê as pessoas riem? O que
pode ser cômico? O que provoca o riso? Vladimir Propp (1992, p. 29) dá-nos a
resposta, dizendo que:
80
PROPP, V. Comicidade e Riso. São Paulo: Ética, 1992, p: 27-28.
Aqui vemos que é possível rir do homem em quase todas as suas
manifestações. Exceção feita ao domínio dos sofrimentos, coisa que
Aristóteles já havia notado. Pode ser ridículo o aspecto da pessoa, seu
rosto, sua silhueta, seus movimentos. Podem ser cômicos os raciocínios em
que a pessoa aparente pouco senso comum; um campo especial de
escárnio é constituído pelo caráter do homem, pelo âmbito de sua vida
moral, de suas aspirações, de seus desejos e de seus objetivos. Pode ser
ridículo o que o homem diz, como manifestação daquelas características
que não eram notadas enquanto ele permanecia calado. Em poucas
palavras, tanto a vida física quanto a vida moral e intelectual do homem
podem tornar-se objeto de riso.
Portanto, identificar o cômico depende tanto do gênero de quem olha quanto
da própria pessoa que se olha. O sujeito como indivíduo pode revelar
involuntariamente seu lado humorístico ou então, revelar quando outro o identifica
ao zombá-lo. Dentro desta lógica, suscitar o riso no cotidiano é o mesmo que
suscitá-lo na arte. O riso da grande maioria das obras literárias é exatamente o meu
e o seu riso, ou seja, o riso do dia-a-dia.
Com efeito, a comicidade consiste num agrupamento da ação de dados
objetivos do homem, como já visto, o riso acontece quando algo cômico ocorre, mas
nem sempre o cômico provoca o riso, este depende ainda de condições de ordem
histórica, social e pessoal: “É evidente que no âmbito de cada cultura nacional,
diferentes camadas sociais possuirão um sentido de humor e diferentes meios para
expressá-lo”.81
Neste sentido, o Satyricon revela sua importância para o estudo do mundo
romano. A linguagem empregada por Petrônio chama a atenção sobre sua própria
existência material composta por uma narrativa própria, de interação entre texto e
contexto. Suas palavras podem ser usadas como expressão de pensamentos,
objetos e sentimentos que foram representativos de seu tempo, isto é, século I d.C.
Sublinhamos ainda que, imersos a essa visão teórica, a obra literária
Satyricon não é um romance realista, pois se apresenta como um discurso satírico,
com caracteres lingüísticos específicos, tais como o emprego de paródias, com
81
PROPP, V., op cit., p: 32.
discursos cômicos e irônicos. O filólogo alemão e crítico de literatura Erich
Auerbach82 nos completa dizendo que:
Na sátira conservou-se certamente bastante coisa que segue o mesmo
sentido, mas a representação não é tão amplamente disposta, mas antes
moralista; tende mais à crítica de alguma característica viciosa ou ridícula. O
romance, finalmente, fábula milesiaca, gênero ao qual pertence, no fim das
contas, a obra de Petrônio, está, em outros fragmentos ou obras que
conservamos tão fortemente carregado de elementos mágicos, aventurosos,
mitológicos e, sobretudo, eróticos, que de maneira alguma pode ser
considerado uma imitação da vida quotidiana de então – sem falar da
estilização irreal e retórica da linguagem.
Com base nessas afirmações, a obra mostra-se como um “retrato” teatral da
vida romana na época de Nero. Ao expor os diálogos do banquete de Trimálquio,
Petrônio nos oferece subsídios para compreender o modo em que viviam as
camadas mais baixas da corte do Imperador, principalmente ao expor as expressões
e as gírias latinas do período Imperial. O romance é narrado em primeira pessoa,
pelo personagem Encólpio, que juntamente com Gíton viajam pela Itália sem um
destino definido, perseguidos pela ira do deus Príapo, que o torna impotente pela
difamação ao culto do “deus menor”. O Professor e pesquisador de Literatura
Clássica Cláudio Aquati nos diz que83:
Nos trechos remanescentes, o Satíricon conta as aventuras e desventuras
de dois rapazes que perambulam pelo sul da Itália, nas imediações de
Pompéia e Nápoles. Mas é possível que, nas partes perdidas, eles tenham
começado sua viagem bem mais ao norte, na cidade de Massília (hoje,
Marselha). Um deles é Encólpio, o narrador e personagem principal. Jovem
bissexual, ciumento, covarde e violento, é um estudante que aparentemente
conhece as letras, a retórica em particular. Acompanha-o Gitão, adolescente
que tem por volta de dezesseis anos, um homossexual efeminado, volúvel e
dissimulado. [...] Assim, presume-se que, partindo de Massília, em
determinado momento Encólpio tenha profanado o culto de Príapo, deus da
permanente ereção, e, por isso teria incorrido em sua ira. Logo após essa
ofensa, o rapaz teria conhecido Gitão, por quem se apaixonou. Depois
disso, é sempre o ciúme que parece mover Encólpio. Esse sentimento,
como tudo indica, fora lhe instilado como parte da própria vingança de
Príapo. Além desse ciúme doentio, Príapo castigara Encólpio com uma
82
Cf: AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:
Perspectiva, 1987, p: 26.
83
AQUATI, C. “Pósfácio”. In: Petrônio. Satyricon. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p: 224 e 225.
impotência sexual intermitente. Dirigindo-se para o sul da Itália,
provavelmente num movimento de fuga, como só ia acontecer em todo o
Satíricon, os moços ter-se-iam encontrado com os lascivos Trifena e Licas –
que aparecerão novamente na parte conhecida - , personagens que eles
teriam de alguma forma lesado, roubando-os e traindo sua confiança. Já na
Itália meridional, na região da Campânia, aceitariam a companhia de Ascilto,
com quem formariam um tumultuado triângulo amoroso. Nessa altura,
teriam tomado contato com um certo Licurgo, que acabaria morto e
assassinado pelo ciumento Encólpio.
Dessa forma, nas andanças de aventura, contracenam com vários
personagens, tais como Ascilto, que passa a interferir na relação de Gíton com
Encólpio; pelos caminhos encontram ainda: “Agamêmnon, Eumolpo, Licas, bruxas,
as sacerdotisas do deus Príapo84, libertos, ricos e pobres”. A narrativa é permeada
de histórias de naufrágios, roubos, bruxarias, prazeres gastronômicos e orgias.
Sobre o que foi dito, justificamos com as observações do sociólogo Fernando de
Azevedo (1962, p. 42):
Petrônio foi um dos precursores do romance popular, é criar tipos capazes
de viverem, daí por diante, a vida intensa da arte, personificando um
caráter, um temperamento, um vício ou um feito de espírito. Todos os que o
lêem, sofrem o encanto de uma sensibilidade flexível e viva, que vai até o
fundo dos caracteres e de uma intuição psicológica com que parece
envolver e prolongar as suas personagens. Ele é sempre fremente e
humano. As figuras que põe em cena, homens e mulheres, pensam e
sentem, falam e agem de acordo com o seu meio social, de que ele registra
as mais ligeiras palpitações de vida, com uma arte de abreviações, em que
as coisas se tomam objetivamente e bastam alguns toques essenciais para
evocar uma fisionomia, fixar um tipo ou apanhar em flagrante um aspecto da
sociedade de seu tempo. O Satyricon, com a sua mistura de simbólico e
burlesco, com o seu realismo cortante aliado a um gosto delicado das
coisas transparentes, e com suas notações pitorescas, constitui o estudo
dos costumes e das idéias, da vida intelectual e social, e de algum modo a
história interna e moral de Roma, no tempo de Petrônio.
84
Na mitologia grega era o deus da fertilidade. Assim, Príapo apresentava como característica o falo
ou o membro genital enorme. O culto provavelmente surgiu no século IV na Ásia Menor, na cidade de
Lâmpsaco. Hoja chamada Lampsaki, situa-se às margens do Helesponto, estreito que fica no
Quersoneso, região da Trácia, que corresponde ao atual estreito de Dardanelos, na Turquia. A figura
de Príapo originou-se das imagens fálicas diante das quais se realizavam as orgias dionísíacas. Nas
festividades de Dionísio, ocorria a falofória, procissão em que um enorme falo era transportado pelo
falófaro, sacerdote “que porta o falo”. O culto sacro e profano de que Príapo foi objeto em Roma
abrangeu todas as ordens sociais e foi preponderantemente privado. Entretanto, considerado como
uma “divindade humilde” foi religiosamente muito cultuada entre as ordens sociais mais baixas. Cf.
OLIVA NETO, J. A. Falo no Jardim: priapéia Grega, priapéia latina. Campinas: Editora da
Unicamp, 2006, p. 15-32
O
Satyricon
constitui
um
importante
documento
histórico
para
se
compreender as minúcias da vida do povo romano, da expressão da alma popular
latina por intermédio dos contos populares, dos mitos e símbolos, das lendas, das
canções, do folclore. Com relação à divisão dos episódios no romance, adotamos as
ações descritas por Fábio Faversani. À luz desse quadro, destacamos:
Primeira parte – Puteoli ou outra cidade da Campânia (?), próxima a
Nápoles. Aqui ocorrem as primeiras aventuras de Encolpius – que narram
em primeira pessoa – e dois companheiros: Acyltos e Giton. Aparecem, de
forma destacada, dois episódios: o do combate retórico no pórtico (cc. 1-25,
e o da sacerdotisa Quartilla. Outras cenas se desenrolam em prostíbulos,
albergues, pequenos mercados e outros cenários urbanos (cc. 1 a 25)
Segunda parte – Cena Trimalchionis. Constitui praticamente a única parte
explorada pela historiografia. Introduz o leitor na casa de Trimalchio, um
liberto milionário, que oferece um lauto banquete no transcorrer do qual,
além de explicar a origem de sua fortuna, expõe suas idéias, hábitos e
cultura. Nesse trecho, falam escravos, libertos ricos e pobres, além de
personagens de origem livre (cc. 25 a 78)
Terceira parte – Na praia com Eumolpus. Ascyltos deixa de compor o trio
de Protagonistas e aparece Eumolpus, um velho poeta, que o integrará.
Esta cena se dá em um lugar próximo ao mar (talvez o Golfo de Nápoles).
Dois episódios se destacam: no primeiro, passam por uma pinacoteca e
examinam a arte clássica e, no segundo, se envolvem em um conflito dentro
de uma hospedaria (cc. 89 a 115).
Quarta parte – Caminho de Crotona. Os protagonistas embarcam em um
navio que pertence a Lichas, do qual fugiam Encolpius e Gíton. A
embarcação naufraga. Eumolpos escreve um extenso poema, o da Guerra
Civil (c. 125 a 141).
Quinta parte – Crotona. O trio consegue enriquecer através de uma farsa
que ilude toda a cidade. São descobertos e Eumolpos é morto ritualmente
pela população. Encolpius e Giton escapam. Final (c. 125 a 141) 85
O Satyricon é tributário da “Odisséia”, pois se estima que a obra completa
seja maior que os “dezesseis livros” conhecidos, podendo chegar a vinte livros, com
um volume aproximado de mil páginas.86 O Professor de Estudos Clássicos Gareth
85
86
Cf: FAVERSANI, F., op. cit., p: 15-16 e Apud (GARRAFONI, R.S., op cit., p: 41)
Sobre a influência da Odisséia no Satyricon, cabe ressaltar que como na obra de Homero, o herói
do Satyricon empreende-se a uma longa jornada. E tal qual como na Odisséia, o protagonista do
Satyricon de Petrônio se vê perseguido por um deus. No que diz respeito a certos episódios, a
Schmeling cita que essa idéia de que a obra original de Petrônio estaria dividida
entre vinte livros, podendo chegar também a vinte e quatro livros é especulativa, pois
as informações sobre sua produção original são fragmentárias. Sobre esse parecer,
e apesar das especulações Schemeling confere a divisão da obra em vinte e quatro
livros. Observemos a citação com a divisão da obra no original traduzido do latim
para o inglês proposta por ele:
A noção de que o Satyricon é constituído de 24 livros é altamente
especulativo. Não sabemos se Petrônio tinha concluído o Satyricon no
momento de sua morte em 66 d.C, ou mesmo se ele teve uma idéia de uma
sistemática da obra. Dentre os elementos de prova que podemos especular,
o Satyricon no original poderia ter algo parecido com isto:87
Porém, mesmo o Satyricon sendo uma obra fragmentária, serve como um
importante referencial para compreendermos a cultura da sociedade romana,
principalmente para o estudo dos “excluídos”. Petrônio inova a literatura latina ao
dirigir seus olhares para os mais diversos extratos da sociedade do período do
principado romano, por meio do referencial da fonética latina, isto é, do “latim
vulgar”.
A arte, quase pictural, com que, em quadros cheios de colorido e
movimento, recria a atmosfera e sacode de vida o ambiente e as figuras,
alia-se a uma observação psicológica, rica de malícias sutis e profundas, de
que o autor do Satyricon guarda o segredo, entre os latinos. Sentindo-se
bem na perfídia, e movendo-se entre os vícios com uma destreza tranqüila
que nunca outrem atingiu, na antiguidade, é implacável na condenação do
ridículo, que sabe surpreender, com olhar vigilante, ainda nos seus aspectos
fugitivos. O que, no entanto, empresta ao Satyricon um caráter de fino
humorismo e de ironia penetrante, é a impagável ingenuidade, com que
Petrônio narra às coisas mais torpes e ridículas.88
referência para com a Odisséia é irrefutável, como a cena em que a mulher com quem Encólpio tem
uma frustante experiência amorosa chama-se Circe, mesmo nome da deusa em Odisséia que
transforma os marinheiros de Ulisses em porcos. Após vinte anos de sua partida, Ulisses é
reconhecido na sua volta a Ítaca por uma velha ama, que o reconhece por meio de sua cicatriz
adquirida ainda na juventude. No Satyricon, dentro da barca de Licas, este reconhece Encólpio pela
genitália.
87
Cf. “The notion that the completed Satyrica consists of 24 books is highly speculative. We do not
know if Petronius had completed the Satyrica at the time of his death in A.D 66, or if he had even an
idea of a systematic Satyrica. From the evidence we can speculate that the Satyrica in the original
might have looked something like this:” (SCHMELING, op cit, p. 460) (tp) Vêr: Apêndice I.
88
AZEVEDO, F de.,op cit., p. 66.
Cabe ressaltar que Petrônio ao fazer uso do “exagero”, do recurso cômico, da
justaposição de elementos incompatíveis, constrói um tipo de realidade, mais voltado
à reflexão do que propriamente a “realidade do momento”. Assim, mediante os
diferentes olhares sobre os diferentes ângulos da obra, construímos a nossa própria
realidade sobre o olhar de Petrônio, sempre atento às fronteiras do anacronismo e
das incoerências da formação do texto histórico. O uso de uma metodologia
apropriada, específica é que permite o inovar da obra literária do Satyricon que
sobrevive há mais de dois mil anos, sempre propondo a cada estudo uma nova
forma de compreender não somente a Roma de Petrônio, mas os alicerces da
sociedade moderna ocidental. Para isso, consultamos as reflexões de Aquati (2008,
p. 235) e do pesquisador René Martin89 respectivamente:
Em relação a tradições literárias mais cristalizadas, o Satyricon inova ao
promover mudanças nas ações e emoções do herói, que perde todo o
senso sociopolítico e permanece com os valores pessoais individualizantes,
isto é, sem se importar com qualquer significado para a coletividade. Ao
assumir outra perspectiva ideológica, Petrônio constrói uma obra que
explora justamente as perturbações das relações humanas
O que ele pinta é a realidade de seu tempo; mas ele a via, como todo
criador, através do prisma de sua própria sensibilidade; ele procede, o mais
freqüentemente, à maneira de um caricaturista, aumentando os traços e
acentuando as características.
[...] Eu escuto e você diz, mas certamente, como Flaubert dizia: „Madame
Bovary sou eu.90
Assim, a obra de Petrônio representou um confronto às idéias tradicionais,
principalmente no que se refere à história da literatura antiga. Sua herança literária
pode ser verificada nos escritos do literato francês Gustave Flaubert em Madame
Bovary, do escritor francês Jacques Anatole François Thibault, do romancista JorisKarl Huysmans, do poeta irlandês William Butler Yeats e do escritor Oscar Wilde;
bem como do escritor francês Eugène Marcel Proust, do poeta e músico Ezra
Pound, da escritora James Joyce, do poeta modernista e crítico literário Thomas
Stearns Eliot, do escritor norte americano Henry Miller, do escritor Louis-Ferdinand
89
Cf: MARTIN, R. “La „Cena Trimalchionis‟: lês trois niveaux d‟um festin.” In: Bulletin de
l‟association Guillaume Budé, vol. 3, 1988, p: 239 Cf: MARTIN, R. Le Satyricon Pétrone.
Foundateurs Textes. Paris: Ellipses, 1999, p. 232-234.
90
FELLINI, F. Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew: Rios de Janeiro: Nova
Fronteira, 1995, p. 127.
Céline, Aldous Husley, também do escritor estadunidense Francis Scott Fitzgerald e
do romancista Gore Vidal.
O Satyricon também pode ser conferido no campo cinematográfico por
Federico Fellini, que ao fazer uma releitura do passado, usa de uma liberdade única,
deliberada pela crítica cinematográfica italiana como felliniana, pois mesmo usando
de um esboço da realidade de seu tempo, Fellini mantém aspectos originais da obra
de Petrônio. A produção data de 1969 e apresenta um convite a recompor o
passado clássico por meio do mundo moderno, o da cinematografia.
E assim, o mito de Petrônio começa. Sua morte é traduzida nos arquétipos
nobres da literatura popular romana, tornando-se um importante referencial
ainda em obras como Jeremy Taylor‟s em The Rule and Exercise of Holy
Dying (1978), Henryk Sienkiewicz‟ Quo Vadis (1896), Nicholas Blake‟s
mystery the Worn of Death (1961), e Federico Fellini com o filme Satyricon
(1969).91
Ao analisarmos uma produção cinematográfica em consonância com a obra
literária, salientamos a necessidade de se pensar nas particularidades do texto
verbal e de um não-verbal. Para compreendermos os rituais do Satyricon como uma
forma de Linguagem Simbólica, propomos o estudo da teoria dos símbolos por meio
da relação autor, público e obra.
[...] Relacionar texto e contexto: buscar os nexos entre idéias contidas nos
discursos, as formas pelas quais elas se exprimem e o conjunto de
determinações extra textuais que presidem a produção, a circulação e o
consumo dos discursos. Em uma palavra, o historiador deve sempre, sem
negligenciar a forma do discurso, relacioná-los ao social. A História é
sempre texto, ou mais amplamente, discurso, seja ele escrito, icnográfico,
gestual etc., de sorte que somente através desta descrição dos discursos
que exprimem ou contêm a História poderá o historiador realizar o seu
trabalho.92
91
Cf: “And so the myth of Petronius begins. His death is translated into the archetypal death of noble
Romans popular in literature an becomes an important part in such works as Jeremy Taylor‟s The
Rule and Exercise of Holy Dying (1978), Henryk Sienkiewicz‟ Quo Vadis (1896), Nicholas Blake‟s
mystery the Worn of Death (1961), and Federico Fellini‟s movie Fellini-Satyricon (1969).”
(SCHMELING, op cit., p. 459) (tp)
92
Cf: CARDOSO, C.F; VAINFAS, R. Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 378.
Com esta visão, passamos a tecer o Satyricon de Fellini, como um mediador
do mundo Clássico ao Contemporâneo, da busca pela intertextualidade, da leitura
da obra clássica por meio da produção fílmica, evidenciando novas abordagens de
leitura do passado romano e da singularidade do mundo moderno; o foco para
transitarmos entre um período e outro passa a ser o cineasta: Federico Fellini.
[...] a ficção não seria o avesso do real, mas
uma outra forma de captá-la, onde os limites
da criação e fantasia são mais amplos do que
aqueles permitidos ao historiador [...]. Para o
historiador a literatura continua a ser um
documento ou fonte, mas o que há para ler
nela é a representação que ela comporta [...] o
que nela se resgata é a reapresentação do
mundo que comporta a forma narrativa.
(Sandra J. Pesavento. Relação entre História
e Literatura e Representação das Identidades
Urbanas no Brasil - século XIX e XX).
[...] para a história, tanto a estrutura da
narrativa
como
seus
detalhes
são
representações da realidade passada. E mais:
fundamentalmente pretende que a narrativa
seja uma representação verdadeira [...], a
ficção não tem essa pretensão.
(Helena Bomeny. Encontro suspeito: História
e Ficção).
1.2 O SATYRICON DE FEDERICO FELLINI
Aceita-me tal como eu sou. Só então poderemos
descobrir-nos um ao outro.
(Federico Fellini)
Cinema-verdade? Prefiro o cinema mentira. A
mentira é sempre mais interessante do que a
verdade.
(Federico Fellini)
Federico Fellini ao compor o filme Satyricon realiza um esboço satírico da
revolução sexual dos jovens de seu período. O cineasta nos informa que ao reler
Petrônio, o enredo tinha lhe causado admiração, certo fascínio com a construção da
história, principalmente pelos fragmentos e as partes que estavam faltando da
mesma.
Com esse pensamento tomou a iniciativa de reconstruí-la, mas não de forma
positivista, documental, mas levando em consideração as influências do seu meio,
baseado em seu olhar cinematográfico sobre um período distante e que lhe
perseguia em seus sonhos.
A relação de Fellini com o mundo dos sonhos estava ligada pela necessidade
que tinha de buscar decifrar-se, não somente a si próprio, mas também àqueles que
o cercavam. No conjunto das relações entre a realidade e a fantasia Fellini (1995, p.
113) nos relata:
[...] No entanto a linguagem dos sonhos é a mesma de um filme e o filme é
um sonho. Podemos dilatar o espaço, dar saltos no tempo, fazer aparecer e
desaparecer as pessoas sem razão aparente. Assim que nos lembrarmos
de um sonho, pensamos nas perspectivas e nos personagens estranhos,
mas, sobretudo na luz indefinível, aquela que se associa a uma consciência
livre. Ainda mais quando essa luz revela e esconde nossas mais profundas
emoções; eu tento reproduzi-la no estúdio, na esperança de tornar meus
filmes „sonháveis‟.
A necessidade de nos conhecermos como seres transformadores do meio em
que estamos imersos, bem como as relações com o “outro” caracterizava a lógica de
Fellini de anularmos os limites entre a concepção de realidade e fantasia.
Para o cineasta é por intermédio dos sonhos que nos expressamos, somos o
que somos na expressão do “eu”, na psique do pensamento. Vejamos o que Fellini
(1986, p. 119) ainda nos fala dos motivos que o levaram a trazer o Satyricon do
universo literário para o mundo das telas:
Juntamente com Casanova, com o Decameron e o Orlando furioso.
Satíricon fazia parte, desde os tempos de Os Boas-vidas, dos filmes que
prometia aos produtores como uma satisfação, em troca pela Estrada e tudo
o mais que me interessava. Mas nunca tinha pensado em manter
verdadeiramente essa promessa. Durante a convalescença da pleurite
alérgica, reli Petrônio e fiquei fascinado por um particular que anteriormente
nem havia notado: as partes que faltavam, isto é, o escuro, entre um
episódio e outro. [...] Convalescendo em Manzina, na pequena biblioteca de
uma pensão, caiu em minhas mãos Petrônio, tornando a me provocar uma
grande emoção. Me faz pensar nas colunas, nas cabeças, nos olhos que
faltavam, nos narizes quebrados, em toda a cenografia sepulcral da Ápia
Antiga, ou em geral, aos museus arqueológicos. Fragmentos esparsos,
pequenas armas que reapareciam daquilo que ainda podia ser considerado
um sonho, em grande parte remoto e esquecido. Não uma época histórica,
filologicamente reconstruída sobre documentos, positivistamente acertada,
mas uma grande galáxia onírica, afundada no escuro, entre o brilho de
gelos flutuantes, boiando em nossa direção. Creio que fui seduzido pela
ocasião de reconstruir esse sonho, a sua transparência enigmática, a sua
clareza indecifrável. [...] O mundo antigo, disse a mim mesmo, não existe
mais, mas não há dúvidas de que sonhamos com ele. O esforço seria no
sentido de anular os limites entre sonho e fantasia, de inventar tudo e
depois objetivar essa operação fantástica para poder explorá-la como
qualquer coisa ao mesmo tempo intacta e irreconhecível.
Tendo em vista o que já foi dito sobre o Satyricon, enfatizamos que a obra
fílmica é composta por cores que tem como referencial a pintura do mural de
Herculano e Pompéia.93 Assim, a transposição do espaço pictural para o espaço
93
Pompéia (Pompéii) era uma antiga cidade da Campânia, ao sul da Itália. Fundada pelos Oscos foi
dominada pelos gregos no século VIII a.C e ocupada pelos etruscos no século VII. Sofreu invasão
dos Samnitas no final do século V a.C, aliando-se a Roma no século III. Ao participar da Guerra Civil
do século I a.C, tornou-se uma colônia romana. Em 79 a.C Pompéia foi destruída pela erupção do
vulcão Vesúvio. Herculano (Herculaneum) cidade menor que Pompéia também acabou sendo
arrasada pela erupção do vulcão Vesúvio. As escavações arqueológicas permitiram reconstruir o
cotidiano dos romanos na Antiguidade. O Satyricon de Petrônio faz referência aos usos e costumes
dos “novos-ricos” que moravam em Pompéia, anos antes da erupção do vulcão. A epigrafia tem-se
fílmico leva o espectador para o mundo romano proposto por Fellini. A função
estética elaborada pelo cineasta é resultado da mistura dos sons e das formas. A
filósofa e crítica da literatura, a Prof. Dr. Gilda de Mello e Souza nos esclarece
dizendo que94:
[...] Desde o início, quando a figura de Encólpio, em pé, ao lado dos
fragmentos do afresco, desliza graciosa, paralela ao muro, sentimos que
penetramos no espaço da pintura romana – restrito, emparedado, sem
escolamento de planos, onde lemos as formas linearmente, como um friso.
Logo as equivalências se sucedem felicíssimas, e o filme abandona
qualquer intenção arqueológica, para conservar, na obsessão ininterrupta
do fogo, o vermelho incandescente dos afrescos da Vila dos Mistérios; no
céu e no mar, os azuis intensos. A utilização da cor passa de abstrata a
violentamente emocional, mas a composição das cenas continua repetindo
com fidelidade o espaço retalhado dos interiores romanos, a desolação da
paisagem, na proximidade seca das rochas. Nesta perspectiva, a névoa e o
vento, recurso muito fácil, de que Fellini abusa, perdem o sentido de
conotação mecânica de mistérios e horror, para assumir a função estética
de esmaecer os sons e as formas: o equivalente de transparência azulada
da têmpera, na pintura da casa de Lívia, por exemplo.
Em seus filmes, Fellini não apenas priorizava a imagem em si, mas dava
uma singular importância também à sonorização. A expressão por meio da
dublagem era o que dava significado às suas “figuras”. Na relação da imagem com o
som, Fellini (1986, p. 72) diz que:
Provavelmente no início experimentei muito o condicionamento narrativo da
história, fazia um cinema mais paraliterário do que plástico. Seguindo
adiante, confiei mais na imagem, e cada vez mais tento prescidir das
palavras enquanto filmo. É durante a dublagem que volto a dar grande
importância aos diálogos. Nisto, sou diferente de Antonioni, que talvez, para
exprimir tudo mediante a imagem, insiste ostensivamente, com monótona
severidade, no objeto. Eu sinto necessidade de dar ao que é sonoro a
mesma expressividade da imagem, de criar uma espécie de polifonia. É por
causa disso que sou contrário, tão freqüentemente, a usar o mesmo ator, o
rosto e a voz. O importante é que o personagem tenha uma voz que o torne
ocupado em estudar os grafitos presentes nas paredes de Pompéia. Muitos dos grafitos tratam de
questões ligadas a propaganda eleitoral, aos anúncios de espetáculos, versos de poetas, sátiras aos
ricos avarentos, proprietários de tabernas que misturavam água ao vinho; alfabetos rabiscados por
crianças e grafitos que envolviam a sexualidade do homem na antiguidade. Sobre o cotidiano romano
em Pompéia Cf. CORNELL, T e MATTHEWS, J. “A vida urbana em Pompéia. In: Roma: legado de
um Império. Rio de Janeiro: Edições del Prado, 1996. v.1 p: 86 e 87.
94
Cf: SOUSA, G. de M. “Fellini e a Decadência”. In: Exercícios de Leitura. São Paulo: Duas
Cidades, 1980, p. 139-140.
ainda mais expressivo. Para mim, a dublagem é indispensável, é uma
operação musical com a qual reforço o significado das figuras. De nada me
serve a gravação direta. Muitos ruídos no som direto são inúteis. Nos meus
filmes, por exemplo, não se ouvem quase os passos. Estes são ruídos que
o espectador percebe apenas mentalmente, e portanto não há a
necessidade de sublinhá-los: assim, se eles são ouvidos realmente,
perturbam. Eis porque a trilha sonora é um trabalho para ser feito à parte,
depois de todo o resto, juntamente com a música.
Nesse sentido, a relação da imagem com o som para Fellini tinha muito a ver
com a construção da memória, do pensamento, da busca pela “identidade”. E a
memória estabelecia um jogo dialético com as lembranças, de conferir um som às
imagens que nos recordamos. Assim, por intermédio das lembranças ou através da
memória, ou das lembranças que “construímos” com a memória é o que nos destaca
como seres únicos e históricos.
[...] A lembrança pode ser real ou inventada, como é o caso da maioria das
minhas lembranças. A memória, ao contrário, é completamente diferente:
nós entramos numa dimensão entre o paranormal, o espiritual e alguma
coisa que vivemos desde sempre. A memória nem tem necessidade de se
exprimir através das lembranças. É um composto misterioso, quase
indefinível, mas que nos liga a alguma coisa que, às vezes nós mesmos nos
lembramos de tê-las vivido: os acontecimentos, as sensações que não
sabemos definir, mas que confusamente sabemos que existiram. Assim, um
artista – perdoe-me esta definição um pouco orgulhosa e desproporcionada
-, um criador tem um conhecimento verdadeiro da memória, que pode lhe
fazer lembrar que nunca apareceram de fato no contexto de sua vida.95
A teórica política alemã Hannah Arendt em seu texto “O conceito de História –
antigo e moderno”
96
relata a sua aproximação com o conceito “Histórico”, quanto se
trata da relação entre História e Memória. Com isto, tanto Hannah Arendt como o
filósofo e sociólogo Walter Benjamin 97 consideram que os vestígios passados
95
Cf: FELLINI, F., op cit., p. 24.
96
Cf: ARENDT, H. “O Conceito de História – antigo e moderno”. In: ARENDT, H. Entre o passado e
o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 43-126.
97
Cf: ARENDT, H. “Walter Benjamin”. In: ARENDT, H. Homens em tempos sombrios. São Paulo:
Cia das Letras, 1987, p: 133-176. Sobre o conceito de “História”. Cf também: BENJAMIN, W. “Sobre o
conceito de História”. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 222 e segs.
servem para elucidar os acontecimentos futuros. Nessa postura “Clássica” da
História comparam determinadas experiências históricas como pérolas que estão no
fundo do mar esperando um pescador trazê-las à superfície. O historiador seria este
pescador que vai até a profundidade da experiência humana e não para trás, como
no tempo cronológico.98
Para Arendt em diálogo com Benjamin, o tempo histórico, da memória
histórica é constituído por fragmentos, por rupturas e não formado por causalidades.
Com este pensamento, a concepção de memória e História para os gregos exercia a
função de salvar os feitos do homem do esquecimento, para que com isso possa ser
lembrado na posteridade.99 A professora Jacy Seixas100 da Universidade Federal de
Uberlândia (UFU), nos diz que a memória e a história nos estabelecem uma relação
conflituosa. Com isso, visualizamos:
Ao debruçar sobre a memória, a historiografia contemporânea pouco tem
recorrido às reflexões da filosofia ou da literatura, mas tem estabelecido
com a sociologia seu diálogo preferencial. De fato, é a sociologia da
memória de Maurice Halbwachs que se constitui na base teórica
fundamental à maioria dos trabalhos historiográficos. Neste sentido, é
importante assinalar a influência de Halbwachs – que elabora, em 1925,
uma sociologia da memória coletiva – sobre Pierre Nora, que no terreno
historiográfico elaborará a divisão e oposição entre memória e História.
Escreve Nora, em 1984, de forma provocativa: Memória, história: longe de
serem sinônimos, tomamos consciência de que tudo os opõe. Nora retoma
e se apropria das idéias básicas de Halbwachs – a oposição que estabelece
entre memória coletiva e história. À memória coletiva, Halbwachs confere o
atributo de atividade natural, espontânea, desinteressada e seletiva, que
guarda do passado apenas o que lhe possa ser útil para criar um elo entre o
presente e o passado, ao contrário da história que constitui um processo
interessado, político, e, portanto manipulador.
98
Apud (MAGALHÃES, M. B. Memória e História: Hannah Arendt em Estudos Ibero-Americanos.
PUCRS: Edição especial, n. 2, 2006, p. 49-60.)
99
100
Cf: BERGSON, H. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 70.
Cf: SEIXAS, J. “Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais”. In:
BRESCIANI, S; NAXARA, M. Memória e ressentimento: indagações sobre uma questão sensível.
Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p: 40 Apud (MAGALHÃES, M. B., op cit., p. 58)
Diante desta citação, para Arendt o historiador ou pesquisador ao construir a
narrativa histórica, tendo de enfrentar a relação entre história e memória, se impõe
em julgamentos dos fatos narrados, o que por sua vez realiza no momento da
narrativa, julgamento este distinto do moral e do jurídico, o que permite ao
historiador escapar dos dilemas entre objetivismo e relativismo cultural. A
historiografia segundo a historiadora Marionilde Brepohl de Magalhães da
Universidade Federal do Paraná cita que:
[...] tal entendimento, trata-se de depor como uma testemunha e não de
ditar sentenças, como um juiz. O historiador prestaria com seu trabalho, um
testemunho sobre aquilo que ele ouviu e viu, não a partir de uma expressão
vivida, mas através dos documentos que incitam sua imaginação e que o
leva a perguntar, como uma criança de sete anos na idade dos porquês –
aquilo que efetivamente aconteceu, porque foi assim e não de outra
maneira para distinguir, enfim, o certo do errado, o belo do feio.101
Para Fellini era comum inventar recordações com a ajuda de uma memória
que nunca existiu, ou seja, de uma memória que se fazia nascer a qualquer
momento. Fellini se reconhecia apenas por intermédio de seu trabalho, que adquiria
a função de espelho d’alma.102
101
102
Apud (MAGALHÃES, M. B., op cit., p. 59).
A idéia do “espelho d‟ alma” aqui proposto acha ligado ao artista francês Marcel Dunchamp, que
na década de 60 tornou-se um referencial no campo artístico. Ao deixar a pintura, buscou na arte
conceitual a superação da arte como “gosto” e como “cultura da estética na arte” e não intelectual.
Dessa forma, Duchamp “quis que a arte voltasse a ser uma expressão do intelecto não no sentido
lingüístico – discursivo, nem lógico – matemático, mas no genuíno – artístico. A Arte conceitual
baseia-se na polêmica, denunciando que a „idéia pura‟ idealizada pela filosofia não existe, pois
sempre carrega consigo uma imagem, assim, como a „imagem pura‟ não existe na arte: a natureza
morta serve de exemplo.” [...] Deste modo, “Ver, não significa enterrar o olho no objeto, mas perceber,
interrogar a outra parte que ele nos transmite. Trate-se, portanto de surpreender uma transmissão
chegada de um lugar inacessível – a frase do filósofo e matemático francês Daniel Sibony encontra a
idéia básica da natureza morta com Espelhos.” Cf: SCHMIDT, C. “Natureza morta com Espelhos ou a
natureza no seu próprio reflexo”. In: Cadernos da Pós-Graduação. Unicamp/IA. Campinas, p: 75-83,
s/d.
O cinema-verdade? Prefiro o cinema-mentira. A mentira é sempre mais
interessante do que a verdade. A mentira é a alma do espetáculo e eu gosto
do espetáculo. A ficção pode ir em direção de uma verdade mais aguda do
que a realidade cotidiana e aparente. Não é necessário que as coisas que
mostramos sejam autênticas. Em geral, é preferível que elas não o sejam. O
que deve ser autêntica é a emoção que sentimos ao mostrar e ao
exprimir.103
Essa característica deve-se ao fato de que seu trabalho era uma fuga do
mundo autobiográfico, apesar de muitos críticos e estudiosos enquadrarem sua
produção no campo autobiográfico. Por este motivo, em uma referência ao Satyricon
Fellini (1995, p. 30-31) nos esclarece que:
Porque o que constitui seu passado, constitui invariavelmente uma parte
íntima de você mesmo. [...] De fato, quando Satíricon passou pela primeira
vez numerosa foram os que o assistiram como um comentário sobre maio
de 1968. Penso que os filmes como Casanova e E La nave va podem ser
interpretados como sendo o reflexo de uma certa realidade, exatamente
como é o caso de Ginger e Fred.
Fellini busca em Delacroix a reflexão sobre a construção da “memória”: “As
coisas que são mais reais para mim são as ilusões que criei para minha pintura.
Todo o resto não passa de areia movediça.”
104
Nesse processo, a Rimini de Fellini
era o lugar onde tinha passado boa parte de sua infância, mas a “verdadeira” Rimini
tinha se afastado dele, existindo apenas uma imagem que figurava em seus filmes.
O “fazer” cinema para Fellini (1995, p. 38-40) consistia numa forma de existência e
não apenas de expressão.
103
104
Cf: Apud (STRICH, C ; KEEL, A., op cit., p. 86).
Cf: FELLINI, F. Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1995, p. 34.
[...] Viver fazendo filmes é, para mim, a forma mais próxima de identidade
na qual posso me encontrar. É no centro de minha história que me sinto no
centro de minha existência. [...] O estilo é o que une seja a memória, sejam
as lembranças, ou uma certa ideologia, um certo sentimento, a nostalgia, o
pressentimento e a maneira com que se exprime tudo isso.
O foco narrativo do filme é caracterizado pela primeira pessoa, marcado pela
constante presença de Encólpio em cena. A forma felliniana aproxima-se de Petrônio
por ser desconexa e fragmentada. A construção do filme foi feita por episódios tal
qual como a obra literária de Petrônio. O período registrado pelo poeta romano vai
ao encontro de Fellini através de um processo de identificação. A Prof. Drª. Gilda de
Melo e Souza (1980, p. 140) afirma:
Também o tema de Satyricon não é novo no universo felliniano. A
decadência é o tema central de La Dolce Vita, e se bem que na época seja
então a contemporânea, em vários momentos do filme o diretor alude ao
passado, para mostrar a dessacralização atual dos valores [...] Em La Dolce
Vita a comparação entre o presente e o passado visava o contraste; em
Satyricon, vale como identificação.
A identificação de Fellini acha-se muito próxima da relação entre História,
memória e da construção da “identidade”, uma identidade felliniana, sua filmografia
nos revela um cineasta que se encontrava por meio da produção de seus filmes. A
Doce Vida (1960), Os Clows (1970) e A Cidade das Mulheres são alguns dos
exemplos da filmografia de Fellini na qual o mesmo se realiza quanto diretor e
“personagem” cinematográfico.
Para compreendermos um pouco da construção da identidade felliniana
recorremos à produção do sociólogo espanhol Manuel Castells, que em sua obra “O
poder da identidade” traça um panorama dos movimentos sociais e da política, como
resultado da interação entre globalização e tecnologia na sociedade moderna. O
autor ainda trabalha com assuntos ligados as questões da formação dos diferentes
tipos de identidades e como estas se relacionam com o Estado, na sua concepção
de “Instituição”. A trajetória de Castells ocorre a partir das observações e das
práticas dos movimentos sociais em contexto culturais diversos. Por este motivo, a
idéia de identidade para Castells105 pode ser verificada por meio do significado e da
experiência de um determinado povo. Vejamos:
Não temos conhecimento de um povo que não tenha nomes, idiomas ou
culturas em que alguma forma de distinção entre o eu e o outro, nós e eles,
não seja estabelecida [...] O autoconhecimento – invariavelmente uma
construção, não importa o quanto possa parecer uma descoberta – nunca
está totalmente dissociado da necessidade de ser conhecido, de modos
específicos, pelos outros.
Assim, para Castells identidade é o processo de construção de significado de
uma determinada cultura. Nesta interpretação, tanto para uma sociedade quanto
para o indivíduo existem identidades múltiplas. A identidade torna-se significante ao
homem na medida em que o mesmo a constrói em seu processo de individualização.
Com isso, a identidade é oriunda do processo de construção de significados,
resultante do meio em que se encontra o indivíduo, nas relações institucionais,
produtivas, religiosas e nas relações de poder.
Ao tecer estas considerações sobre a questão da identidade, podemos dizer
que Federico Fellini aproxima-se mais da “Identidade de projeto” proposto por
Castells, uma vez que o autor elenca três possíveis formas de origem da construção
da identidade, sendo elas, a identidade legitimadora, que tem como objetivo
expandir e racionalizar o poder das Instituições dominantes no meio social, ligado as
questões do autoritarismo e do nacionalismo; a identidade de resistência, que luta
contra o processo de dominação das identidades dominantes e por sua vez a
“Identidade de projeto” que como Manuel Castells cita, é um instrumento na qual o
indivíduo se utiliza para redefinir sua posição em seu meio social. Sobre esta
questão, Castells (1999, p: 24) afirma:
[...] quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material
cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir
sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda
a estrutura social.
105
Apud (CASTELLS, M. O poder da identidade, Vol. II. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 22.)
Dessa forma, Federico Fellini em sua trajetória cinematográfica constrói uma
“identidade de cineasta” utilizando de um processo significante imerso na sua
relação entre o mundo do espetáculo fílmico e o da “Indústria Cultural” do cinema.
Seu papel na “Identidade de projeto” é com base na sua identidade reprimida, é em
seus filmes que Fellini torna-se “felliniano”, a marca do exagero.
A transformação social é o resultado de sua produção artística, da
receptividade do público, da construção do significado da obra fílmica de Fellini para
o coletivo. Com isso, cada espectador passa a ser atuante no processo da
construção da identidade, individualizada e coletiva.106
Os “desejos” são ao mesmo tempo coletivos e individuais. A identidade de
Fellini é o resultante de seu próprio processo criativo, da formação de um
personagem, da utilização de uma metodologia constituída por ele próprio e diluída
em seus discursos. Ao nos identificarmos com a produção fílmica de Fellini, por meio
de nossos desejos e anseios, passamos também a nos identificar com o
personagem felliniano, solidificado em seu mundo individualizado.
Esta postura da formação da identidade de Fellini, somente torna-se possível
graças à montagem fílmica107, da estruturação orgânica dos elementos do filme, isto
106
Individualizada no sentido da construção da própria identidade frente à obra fílmica e coletiva
referente ao significado cultural da obra sobre o meio social.
107
A definição técnica da montagem é simples. Trata-se de colar um após os outros, em uma ordem
determinada, fragmentos de filme, os planos, cujo comprimento foi igualmente determinado de
antemão. Essa operação é efetuada por especialista, o montador, sob a responsabilidade do diretor
(ou do produtor, conforme o caso). Cf: AUMONT, J; MARIE, M., op cit., p: 195-196. Assim sendo, “[...]
somos informados de todos os estágios da produção cinematográfica: a elaboração do roteiro, a
escolha do elenco, os ensaios, os copiões e assim por diante. O filme desmitifica o cinema, ao
escancarar todos os truques e efeitos utilizados na sua realização [...] Tomamos, assim,
conhecimento da importância do espaço fora-da-tela; tomamos enfim, conhecimento de que o cinema
pode criar ilusão ao retirar os objetos de seus contextos. Para desmitificar o cinema e, de maneira
indireta, o épico, existe forma melhor do que mostrar o próprio herói épico, não dentro do quadro,
isolado em sua glória, mas envolto e dependente de uma equipe de técnicos com suas gruas,
refletores, claquetes, câmeras e equipamentos de som?” Cf: SATAM, R. O espetáculo
interrompido: literatura e cinema de desmistificação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p: 31 e
32. Vêr também: AUMONT, J. et al. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1995 e LEONE, E;
MOURÃO, M. D. Cinema e montagem. São Paulo: Editora Ática, 1987.
é, do conjunto dos significados ordenados através do filme, tais como as imagens e
os sons.108
Ao adotarmos este ponto de vista, no processo de construção da identidade,
o indivíduo é levado a pensar sobre a formação da “memória” no aspecto coletivo e
individual. Nesse viés, a “memória individual” é caracterizada pelas recordações, das
lembranças de cunho privado, próprias da personalidade de cada um, e que
selecionamos a partir de nosso subjetivo.
A “memória coletiva” é caracterizada pelas lembranças impessoais, que
podem ser compartilhadas com o grupo conforme os interesses coletivos. Nesse
sentido, o sociólogo francês Maurice Halbwaches ressalta que:
A memória coletiva, por outro, envolve as memórias individuais, mas não se
confunde com elas. Ela evolui segundo suas leis, e se algumas lembranças
individuais penetram algumas vezes nela, mudam de figura assim que
sejam recolocadas num conjunto que não é mais uma consciência pessoal.
Com esta perspectiva, o cineasta apega-se as suas lembranças, nas
recordações de sua juventude vivida em Rimini para compor seu “personagem”.
Assim, no aspecto individual é limitado há um tempo e espaço. Halbwachs ainda
completa dizendo que: [...] minhas lembranças pessoais são inteiramente minhas,
pois estão inteiramente em mim. [...] é da própria lembrança em si mesma, é em
torno dela, que vemos brilhar de alguma forma sua significação histórica. 109
Este perfil de interpretação proposto por Maurice Halbwachs divide a memória
em dois momentos. Sendo uma interior e a outra exterior, ou então uma pessoal e a
outra social. Com isso:
108
109
Cf: LEBEL, J. P. Cinema e Ideologia. Lisboa: Editorial Estampa, 1975, p. 80.
Cf: HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice Editora Revista dos Tribunais,
1990, p. 55 e 63.
A primeira se apoiaria na segunda, pois toda história de nossa vida faz parte
da história em geral. Mas a segunda seria, naturalmente, bem mais ampla
do que a primeira. Por outra parte, ela não nos representaria o passado
senão sob uma forma resumida e esquemática, enquanto que a memória de
nossa vida nos apresentaria um quadro bem mais contínuo e mais denso.
[...] Os grupos dos quais faço parte nas diversas épocas não são mais os
mesmos. Ora, é do ponto de vista deles que considero o passado. É
preciso, então, que na medida em que estou mais engajado nesses grupos
e que participo mais estreitamente em sua memória, minhas lembranças se
removem e se completem.110
A identidade é o resultado do processo histórico, formados em situações e
momentos distintos, para Stuart Hall em “A Identidade Cultural na pós-modernidade”,
afirma que a identidade linear unificada é uma “fantasia” ou a aceitação de uma
“cômoda estória sobre nós mesmos”. Para Hall111:
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma
fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com
cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos
temporariamente.
Estas considerações nos fazem refletir sobre a “natureza da obra de arte”
112
,
se a mesma encontra-se ligada diretamente ao seu criador ou torna-se singular a
110
HALBWACHS, M., op cit., p: 55; 74 e 75. A relevância da produção de Federico Fellini para a
contemporaneidade com relação à história e memória cinematográfica se encerra na sua própria
produção. Assim: “Quando a memória de uma seqüência de acontecimentos não tem mais por
suporte um grupo, aquele mesmo em que esteve engajada ou que dela suportou as conseqüências,
que lhe assistiu ou dela recebeu um relato vivo dos primeiros atores e espectadores, quando ela se
dispersa por entre alguns espíritos individuais, perdidos em novas sociedades para as quais esses
fatos não interessam mais porque lhes são decididamente exteriores, então o único meio de salvar
tais lembranças, é fixá-las por escrito em uma narrativa seguida, uma vez que as palavras e os
pensamentos morrem, mas os escritos permanecem. Cf: HALBWACHS, M., op cit., p. 80-81.
111
112
Cf: HALL, S. A identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p. 13.
Conceituar o que é “arte” é um desafio, pois são muitos os critérios que concedem a uma “obra”
um valor artístico, no entanto, existe um consenso que valoriza e qualificam uma obra ou um artista,
valores estes que mudam segundo a relação espaço-tempo. Para tais características Cf: MORAIS, F.
Arte é o que eu e você chamamos Arte: 801 definições sobre arte e o sistema da Arte. Rio de
Janeiro: Record, 1998. Assim, “a arte é um produto da criatividade humana que, mediante
conhecimentos, técnicas e um estilo todo pessoal, transmite uma experiência de vida ou uma visão
de mundo, expressando verdades humanas e despertando emoções em quem a usufrui.” Cf: FEIST,
H. Pequena viagem pelo mundo da arte. São Paulo: Moderna, 2003, ver também: CUMMING, R.
Para entender a arte. São Paulo. Ed. Ática, 1996.
sua produção, ou seja, na medida em que uma obra de arte é “criada”, ela passa a
ser autônoma do seu criador ou é apenas um reflexo do mesmo?
Tal questionamento nos conduz pelos caminhos da subjetivação expressa
pelo mundo artístico, mas também nos confere o elemento significante da obra
artística, do condensamento da construção do pensamento sobre a mesma. Uma
obra artística, nesse caso, literária ou cinematográfica, torna–se Clássica por
apresentar caracteres atemporais, que perpassam a idéia linear do tempo histórico.
Muitos dos conceitos com relação à “arte” foram trabalhados pelo Prof. Dr.
Norberto Stori da Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM. Assim, para ele a
arte é sempre contemporânea ao seu próprio tempo, nesse viés, deparei-me com
alguns teóricos que buscaram uma definição para este termo tão complexo, tais
como o historiador da arte Ernst Hans Josef Gombrich, que cita:
Nada existe realmente a que se possa dar o nome de Arte. Existem
somente artistas. [...] desde que se conserve em mente que tal palavra pode
significar coisas muito diversas, em tempos e lugares diferentes, e que Arte
com A maiúsculo não existe. Na verdade, Arte com A maiúsculo passou a
ser algo como um bicho-papão, como um fetiche. Podemos esmagar um
artista dizendo-lhe que o que ele acaba de fazer pode ser excelente ao seu
modo, só que não é “Arte”. E podemos desconcertar qualquer pessoa que
esteja contemplando com deleite uma tela, declarando que aquilo que ela
tanto aprecia não é Arte, mas uma coisa muito diferente.113
Jorge Coli, professor de História da Arte e Cultura da Universidade Estadual
de Campinas - UNICAMP, afirma que dizer o que seja arte é coisa difícil, já que
inúmeros tratados sobre estética são contraditórios. O termo “arte” ou “obra de arte”
pode ser usado no sentido classificatório ou valorativo. No sentido classificatório,
não está em jogo se uma determinada obra de arte é boa ou não, mas pretende-se
apenas firmar se um determinado objeto ou produção se classifica como obra de
arte. O sentido valorativo tenta expressar o valor positivo ou negativo, bem ou ruim
113
Cf: GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LCT – Livros Técnicos e Científicos,
1999, p. 3.
de uma obra de arte114. Para o Prof. Dr. de Literatura Brasileira da Universidade de
São Paulo - USP, Alfredo Bosi, nos diz ainda que:
Se perguntarmos hoje a um homem de cultura mediana o que ele entende
por arte, é provável que na sua resposta apareçam imagens de grandes
clássicos da Renascença, um Leonardo da Vinci, um Rafael, um
Michelangelo: arte lembra-lhe objetos consagrados pelo tempo, e que se
destinam a provocar sentimentos vários e, entre estes, um, difícil de
precisar: o sentimento do belo. [...] Constatar, porém o uso social da pintura
e da música, ou a função de mercadoria, não deve impedir-nos de ver
antropologicamente a questão maior da natureza e das funções da arte. É
preciso refletir sobre este dado incontornável: a arte tem representado,
desde a Pré-História, uma atividade fundamental do ser humano. Atividade
que, ao produzir objetos e suscitar certos estados psíquicos no receptor,
não esgota absolutamente o seu sentido nessas operações. 115
As múltiplas visões sobre o elemento artístico é o que confere à obra o seu
“papel” artístico, a racionalização da mesma pelo “criador” é a perda da sua “aura”. A
desconstrução da análise e a priori de seu caráter artístico limita o processo de
subjetivação do expectador da obra de arte. O artista pode sugerir uma
interpretação, mas não conferir sua interpretação como única e legítima, pois corre o
risco de levar sua “criação” ao reducionismo. Segundo Federico Fellini (1995, p.
103):
[...] O único critério que eu aprovaria para julgar uma obra de arte não é
dizer „é bonito‟ ou „é feio‟, segundo certos parâmetros, segundo variáveis
estéticas estabelecidas, mas saber se ela é vital. É a definição que me é
mais próxima e que me permite entrar em contato com a expressão
artística. Se uma obra é vital existe nela uma vida misteriosa, uma vida
própria.
114
Cf: COLI, J. O que é arte. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995, p. 7.
115
Cf: BOSI, A. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ed. Ática, 2000, p. 7-8.
As novas técnicas de reprodutibilidade da obra de arte se aperfeiçoaram no
decorrer dos anos, fazendo com que o conceito de arte fosse alterado. Para
Benjamin:
Com o século XX, as técnicas de reprodução atingiram um tal nível que
estão agora em condições não só de se aplicar a todas as obras de arte do
passado e de modificar profundamente seus modos como também de que
elas mesmas se impunham como formas originais de arte.116
Mesmo que a reprodução da obra de arte seja próxima da obra original,
perde-se o caráter de originalidade. Sua identidade, o testemunho histórico do
momento da produção da obra pelo artista se descaracteriza por meio da
reprodução técnica.
Na reprodutibilidade técnica perde-se também o “caráter” da tradição, o que
era único torna-se um produto da massa, assim, a perda da “aura” da arte e
conseqüentemente da sua herança cultural se dá pelo uso de novas técnicas de
reprodução da mesma; no cinema Walter Benjamin sublinha que a produção fílmica
restringe o papel da “aura” quando reduz à personalidade do autor as necessidades
da indústria cinematográfica. Sobre a questão da perca da aura no campo da obra
fílmica, Benjamin nos reafirma que este fato somente ocorre quando se:
[...] constrói artificialmente, fora do estúdio, à personalidade do autor: oculto
da estrela, que favorece o capitalismo dos produtores cinematográficos,
protege essa magia da personalidade que há muito já esta reduzida ao
117
encanto pobre de seu valor mercantil.
De acordo com esta visão, o valor da obra de arte não está mais centrado no
original, no objeto em si, e sim na visibilidade que possa a vir adquirir. O público que
consome a arte produzida por meio do processo de reprodutibilidade, da técnica
116
117
Cf: BENJAMIN, W., op cit., p. 224
BENJAMIN, W., op cit., p. 239
industrial, passa a formar uma “cultura de massa”, não muito preocupada com a
qualidade.
Os críticos da cultura afirmam que o filme apontado como “representante
máximo da reprodutibilidade técnica da indústria cultural”, visto como objeto, não
possui um valor artístico. Entretanto, o que confere a “aura” a uma determinada
produção fílmica são os “nomes”, isto é, os atores e diretores envolvidos na
produção fílmica. Todavia a produção de um filme pode durar meses, o que por sua
vez não ocorre um contato direto com o público.
Para Walter Benjamin, a aura não pode ser encontrada na produção fílmica,
uma vez que entre o ator e o público existe uma aparelhagem para compor os
cenários, as tomadas e as edições; o que não ocorre com o teatro, na qual o público
acha-se cara a cara com o ator. Neste sentido, o cinema para Benjamin é uma forma
de expressão artística própria e direcionada para as massas. 118
Assim, o público do cinema é um examinador da obra de arte fílmica, porém
um examinador que se distraí. No conjunto do texto podemos dizer que o cinema é
uma forma artística composta por diversas técnicas, próprias da sua constituição
enquanto objeto fílmico.
Sua produção se dá não apenas por uma única pessoa, mas por um conjunto
de pessoas. Neste viés, sua reprodução não destrói a sua aura (sua pureza
artística), pois exerce a função de divulgação do trabalho de profissionais envolvidos
no processo de produção cinematográfica.
O processo de reprodutibilidade em voga no mundo moderno faz com que a
obra de arte acabe emancipando-se de seu campo ritualístico. Neste aspecto o
processo ritualístico refere-se ao valor do ritual de culto do objeto de arte. Assim
sendo, o que confere a aura a obra de arte são suas características que são
118
Walter Benjamin ao analisar a relação da obra de arte com a sociedade capitalista. O status da
arte é abalado em decorrência das técnicas da reprodução. A obra torna-se valiosa não pela
significação, mas pelo valor de mercado. O público espectador passa a exercer o papel de
consumidor quando as massas passam a consumir o objeto artístico, o autor torna-se um produtor tal
como um operário. A questão situa-se na reprodução, mais especificadamente na modalidade da
reprodução em série, na qual o original e a cópia se confundem. O sentido de autêntico e de
singularidade se dessacraliza. A indústria cultural tem como objetivo vender “cultura”, mas para
vendê-la é necessário atrair e agradar o público consumidor e não fazer o espectador refletir sobre o
“produto criado”, pois sua máxima é a distração.
singulares a própria obra, composta por elementos espaciais e temporais, o que a
torna única. O artista está na gênese da obra criada, mas o mundo em que ela se
instaura é variante ao próprio artista.119 Cabe ressaltar ainda que:
[...] A arte é uma necessidade: uma interpretação da vida, que abandonada
à própria sorte, nos aparecerá, provavelmente, desprovida de sentido,
monstruosa. A arte é o contrário disso, é alguma coisa que nos reconforta
nos tranqüiliza, nos fala da vida com termos extremamente protetores. Ela
nos faz refletir sobre a vida que por si só seria apenas um coração que bate,
um estômago que digere, pulmões que respiram, olhos que se enchem de
imagens desprovidas de sentido. Acredito que a arte é a melhor tentativa de
induzir no homem a necessidade de ter um sentimento religioso que a arte,
120
não importa qual arte exprime.
Da mesma forma, Fellini tece uma crítica as muitas adaptações literárias que
são realizadas para a tela do cinema, pois cada obra, tanto a literária quanto a
cinematográfica possuem linguagens distintas, que devem ser analisadas dentro de
seu contexto. Com isso, ao adaptar uma obra literária para o campo imagético, esta
não precisa ser necessariamente uma cópia do trabalho primário, sendo que o
universo literário, de característica verbal, pertence a “signos” distintos do não-verbal
que exigem leituras peculiares.
A adaptação fílmica passa para o viés da “tradução” diante de uma expressão
única, não ocorrendo transposição, mas recriando personagens com perfis
subjetivos ao do diretor e da obra cinematográfica.
119
Sobre a “lógica” que permeia o campo das humanidades, em especial na historiografia,
observamos o que Thompson nos fala ao defrontarmos com temporalidades e fontes diversas: “Cada
idade, ou cada praticante, pode fazer novas perguntas à evidência histórica, ou pode trazer à luz
novos níveis de evidência. Nesse sentido, a „história‟ (quando examinada como produto da
investigação histórica) se modificará, e deve modificar-se, com as preocupações de cada geração,
ou, pode acontecer de cada sexo, cada nação, cada classe social. Mas isso não significa
absolutamente que os próprios acontecimentos passados se modifiquem a cada investigador, ou que
a evidência seja indeterminada. As discordâncias entre os historiadores podem ser de muitos tipos,
mas continuarão sendo meros intercâmbios de atitudes, ou exercícios de ideologia, se não se admitir
que seja conduzida dentro de uma disciplina comum, que visa ao conhecimento objetivo”. Cf:
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 51.
120
Cf: FELLINI, F., op cit., p. 109-112
O que Fellini traz de novo para o campo cinematográfico é a contribuição
quanto à “forma” em que o filme foi produzido e pensado. Seu enredo, a construção
dos personagens, o preenchimento de lacunas, que ocorre dada a sua interferência
no meio social e cultural, abre um leque de leituras possíveis sobre o filme e a obra
original.121
Nenhum diretor de cinema me influenciou. Em todo caso, nem mais nem
menos que os demais. O cinema em seu conjunto influenciou-me, mas
igualmente influenciaram-me minha família, minha religião, minha educação,
meu casamento, meus amigos e assim por diante: tudo que pertence à
122
minha época, tudo que me tornou o que sou.
O filme foi construído dentro do “mundo de Fellini”.123 E com isso transposto
para diferentes realidades, com distintos olhares sobre um determinado ângulo. Esta
visão de Fellini refletiu também sobre a produção do filme “Satyricon”.
121
Federico Fellini era singular dentro do campo cinematográfico, justamente porque não existia uma
técnica específica para cada filme, a metodologia utilizada por ele, a “forma” do filme era construída
com o próprio filme que estava sendo rodado. O trabalho de Federico Fellini era “aberto”, e não já
posto anterior ao próprio filme, isto é, o trabalho de Fellini não era algo que se adaptava a uma
determinada técnica, mas ele mesmo construía a técnica do filme. Tendo em vista essa característica
Fellini dizia que: “Não admito, para mim, nenhum método rígido de trabalho. Mesmo que tivesse que
explicar como se divide meu trabalho, diria que a princípio sempre há um roteiro que coincide em
grande parte com a estrutura do filme, tal como está planejado.” Cf: STRICH, C; KEEL, A., op cit., p:
87. Mesmo Fellini afirmando sua elasticidade quanto ao uso do método, fica claro que ele possuía sim
um método para produzir e dirigir seus filmes, pois faz uso de recurso próprios do campo
cinematográfico, tais como o uso de técnicas sonoras, dublagem, som, iluminação, montagem do
estúdio, enredo, métodos específicos de filmagem e construção das personagens. O que o torna
referência como diretor, é a construção de seu próprio método frente ao roteiro, como sublinhado.
Assim, o uso da técnica é visível na construção do objeto fílmico.
122
Cf: STRICH, C; KEEL, A., op cit., p. 85.
Para Federico Fellini “não existia qualquer divisão entre a imaginação e a realidade.” (Cf: FELLINI,
F., op cit., p: 130). Esse movimento “felliniano” dentro dos mundos dos sonhos e da construção de
signos para explicar o mundo cinematográfico teve influência do psicanalista Cal Jung. Com relação à
leitura dos escritos de Jung, Fellini ressalta que: “Eu li algumas linhas de Jung*, mas não posso
discuti-lo com tal desenvoltura. Devo dizer também que jamais fui psicanalisado. Jung foi um
companheiro de viagem, um desses encontros providenciais que me alimentaram me cultivou. E
lendo os trechos que podem ser considerados os mais acessíveis, penso ter descoberto alguém que
me ajudou a compreender melhor os aspectos da criatividade, a relação com a realidade e com as
mulheres.” Cf: FELLINI, F., op cit. p: 133-134. * Carl Gustav Jung (1875 – 1961). Psiquiatra suíço foi o
fundador da Escola de Psicologia. Ampliou os estudos de Freud ao interpretar os distúrbios mentais e
emocionais. Na terapia Junguiana, explorou os sonhos e as fantasias por meio de um diálogo entre a
mente consciente e os conteúdos do inconsciente.
123
Ao observarmos estas características, podemos perceber que a obra fílmica
torna-se “Clássica” por assumir um caráter de autônoma frente à obra literária e
frente ao próprio diretor. Nesse jogo de relações, torna-se artística por exprimir sua
autenticidade entre uma e outra, entre a obra literária e a fílmica.
[...] Um sonho fica sempre fascinante se preservar seu lado misterioso.
Quando se explica um sonho, destrói-se sua razão de ser e ele se torna
banal. Levando em conta a importância das imagens na minha obra, elas
devem ser capazes de comunicar as emoções e as significações
necessárias, mesmo se elas são, às vezes, contraditórias. E é por isso que
estou feliz por não termos falado diretamente de meus filmes – longe disso!
Essa é uma coisa que eu detesto fazer.124
No entanto, a semelhança entre uma obra e outra, dentro dos arquétipos, dos
protótipos, das versões que se entrelaçam é que nos conferem a intensidade da
obra produzida. É dentro desse espaço que identificamos os “rituais cotidianos do
Satyricon”, pois é no conjunto da obra de Petrônio e de Fellini que se exprimem o
conceito de unidade.125
[...] Falei antes da dificuldade para um criador em distinguir com clareza o
passado, o presente, o futuro, em traçar uma linha precisa entre a nostalgia,
o remorso e o pressentimento, porque as coisas se apresentam no seu
126
conjunto.
O cineasta reconhecia a contribuição significativa do cinema americano, pois
era o cinema dos Estados Unidos que tinha inventado um tipo de “cultura” que
passaria a pertencer a todos. Um retrato desenhado por testemunhas de seu próprio
tempo.
124
Cf: FELLINI, F., op cit., p. 192.
125
Cf: BENJAMIN, W. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. In: Obras
Escolhidas, Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1996.
126
FELLINI, F., op cit., p. 58 e 59.
O cinema Italiano para Fellini era um cinema “culpado” porque além das
histórias contadas sobre Roma, de Nápoles e da Máfia da Sicília pouco se sabe da
cultura italiana como um todo, ou seja, do seu cotidiano, dos testemunhos, dos mitos
e folclores, bem como das particulares de cada região. Sobre estas características
peculiares, torna-se necessário redescobrir o “imaginário popular” romano que se
encontra presente na contemporaneidade e expô-las nas telas do cinema moderno.
[...] Durante os anos 30 e 40, os Estados Unidos contaram, de maneira
extraordinária, contos de fadas para adultos e crianças, que nos ajudaram a
ultrapassar a paralisia sufocante, neurótica, o pesadelo da vida sob a
ditadura fascista. Então, se escolhi fazer cinema, foi verdadeiramente
graças aos Estados Unidos. [...] Falo dos desenhos animados da época,
como Popeye e Les Katzenjammer Kids. Tentei até, bem mais tarde, em
Satiricon (Fellini-Satyricon) e Os Palhaços (I clows), encontrar as cores
típicas dos desenhos animados de minha juventude. Faço referência a um
país que se expressava pelo sorriso, de maneira humorística, enquanto em
nós tudo era sério, tudo era sacrifício, tudo era mortificação da carne e
exaltação totalmente delirante da romanidade. Os Estados Unidos foram
fábula providencial que nos permitiu sobreviver, não nos enfiarmos na
tristeza de uma vida completamente artificial, traída, camuflada por duas
ideologias católica, que considerava a vida como uma passagem e a carne
como alguma coisa imunda, e a ideologia fascista, segundo a qual era
preciso morrer pela pátria. Por sorte, havia Fred Astaire, May West, os
irmãos Marx, e Mickey! Então, minha simpatia total vai para a América. [...]
Nosso cinema é um cinema culpado porque, verdadeiramente, nada contou
da Itália. Da mesma maneira, a Itália é um país completamente
desconhecido por culpa de sua literatura. Roma foi um pouco contada.
Nápoles também, mas de maneira folclórica. A Sicília é sempre vista através
das histórias truculentas da Máfia. Quanto ao resto da Itália, onde, a cada
50 quilômetros há testemunhas de uma outra cultura, de outros mitos, de
outros ritos, ninguém fala. Verdadeiramente, é um país extraordinário.127
Nessa trajetória apresentada sobre a carreira Felliniana, bem como os
caracteres que fazem parte da produção e direção do filme Satyricon, observamos o
quanto o diretor encontrava-se ligado ao seu pensamento. No Satyricon, Fellini se
destacava pela maneira em que apresentava os personagens e no tratamento em
que dava ao sentimentalismo.
127
Cf: FELLINI, F. Eu sou um grande mentiroso, entrevista a Damien Pettigrew. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1995, p. 152-155.
Assim, o filme aproximava-se de certa transfiguração da obra literária, por
intermédio dos personagens que adquiriam características disformes, próxima da
característica caricatural.
O amor em Petrônio era algo sínico. O amor homossexual era considerado
uma conduta da natureza, enquanto que o heterossexual era visto como um desvio.
Para Fellini, o amor era visto como algo confuso, um paradoxo entre o ideal feminino
e o apelo a questão sexual.
É na atmosfera geral, na maneira de apresentar os personagens e no
tratamento que dá ao amor, que Fellini se afasta radicalmente da novela e
começa a perseguir os seus próprios fantasmas. O livro de Petrônio nos dá
uma visão satírica, mas jamais trágica dos acontecimentos. [...] No filme
tudo se transfigura. À crítica se substitui o pesadelo, à comicidade o
grotesco, à festa, a visão apolítica, às personagens o paroxismo das
máscaras. – Existirão mesmo personagens, no filme? A maioria, ou melhor,
a totalidade dos figurantes é tratada de maneira caricatural, disforme,
monstruosa – são máscaras apenas. [...] E serão personagens os dois
amigos, Encólpio e Ascylto, ou significam o desdobramento do herói, a
personagem e o seu duplo? E Gyton? Não será apenas o ideal amoroso,
um “eterno feminino” a seu modo?128 (SOUSA, 1980, p. 141)
Em última instância, percorrendo o perfil de Fellini fomos construindo o
Satyricon. A metodologia escolhida nos revelou o substrato da psique humana,
numa tentativa de desvendar os estratos mais profundos do inconsciente. O mundo
antigo de seus “sonhos” é original e confunde-se com os arquétipos relacionados à
imoralidade, ao grotesco, ao uso de máscaras. As cenas dantescas mostram a
lascívia do inconsciente reprimido do paganismo romano. O uso do método
semântico (estudo dos significados) através de uma perspectiva macrossemântica
(visão do conjunto) possibilita analisar o objeto fílmico por meio de três elementos,
tais como, o temático, o figurativo e o axiológico (estudo de alguma espécie de valor,
com destaque para os valores morais). A Prof. Drª Sandra de Cássia Araújo
Pelegrini ressalta que:
128
SOUSA, G de M., op cit., p. 141.
[...] Por envolver um amplo sistema de valores éticos, estéticos, políticos e
religiosos, o estudo semântico axiológico pode oferecer expressiva
contribuição ao trabalho do historiador, especialmente, porque evidencia a
euforização de determinados temas e conceitos, enquanto desnuda a
desforização de outros, de acordo com os interesses dos produtores e dos
129
diretores e os valores da época em que o filme foi elaborado.
Com isso, podemos identificar elementos carnavalescos e a natureza do
instinto espetacular. Fellini sentiu-se atraído pela obra de Petrônio porque a
decadência moral do período romano era muito semelhante ao do seu próprio
período. A narrativa do filme se completa por meio de um mosaico, composto por
fragmentos, mas que segue uma linha quase que “virtual” compondo as peças.
Assim sendo, Fellini foi atraído pela obra de Petrônio por sua natureza
fragmentária. Além de ser um filme que reflete muito do cineasta, também é um
filme com um viés histórico. As dificuldades em se realizar um filme que tem como
referencial uma obra literária condiz com a própria reconstrução de seu período, que
para Fellini era algo impossível. Satyricon não seria um filme propriamente histórico,
apesar de se referir a um determinado período do mundo Clássico, mas um filme de
ficção sobre o passado histórico, delimitado pelo Alto Império Romano. A obra de
Fellini não mostra uma Roma como ela era de fato, mas uma Roma pagã imaginada
pelo artista.
O trabalho cinematográfico busca pelo viés do imaginário resgatar o homem
romano que tinha se perdido no tempo. Fellini faz esse jogo, de ser contemporâneo
e buscar na arqueologia o homem antigo por meio do homem moderno. A distância
que nos separa do mundo antigo é amenizada com recursos da fantasia.
Assim, as discussões que se seguem nos elucidam sobre alguns aspectos da
imagem cinematográfica e dos pressupostos metodológicos deste trabalho com base
no pensamento de Karl Marx.
129
Cf: PELEGRINI, S. de C. A; ZANIRATO, S. H. (orgs). As dimensões da imagem: abordagens
teóricas e metodológicas. Maringá: Eduem, 2005, p: 132 Apud (CARDOSO, C. F; VAINFAS, R.
Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 132)
1.3 APONTAMENTOS SOBRE A IMAGEM CINEMATOGRÁFICA
“Ernst Bernhard, o psicanalista jungiano, fez
me compreender que a vida dos nossos sonhos
não é mais importante do que a nossa vida
acordada, especialmente para o artista”.
(Federico Fellini)
“Chamo de imagens em primeiro lugar as
sombras, depois os reflexos que vemos nas águas
ou na superfície de corpos opacos, polidos e
brilhantes e todas as representações do gênero”.
(Platão – République)
A produção de um filme parte de um projeto artístico, cultural e de mercado.
Sendo antes uma construção da visão de diferentes diretores, possuindo uma
linguagem específica, que difere da linguagem verbal. A construção da narrativa
fílmica ocorre por meio do processo de filmagem, do uso da tecnologia e de técnicas
próprias do mundo cinematográfico. Assim, o cinema é um produto industrial, na
qual trabalham diferentes pessoas que desconhece o todo da produção. O professor
e pesquisador Milton José de Almeida130 cita que:
[...] Mas o cinema não é um produto de um autor coletivo, social. É um
produto industrial, de fábrica, no qual trabalham pessoas que fazem
determinadas partes e não outras, num determinado momento da produção,
e não conhecem o todo do produto que está sendo fabricado [...] Ver filmes,
analisá-los, é a vontade de entender a nossa sociedade massificada,
praticamente analfabeta e que não tem uma memória de escrita.
130
Cf: ALMEIDA, M. J. de. Imagens e Sons: a nova cultura oral. São Paulo: Cortez, 1994, p. 12.
O cinema integra uma grande indústria que possui divisão de trabalho,
hierarquização, poder e interesses de mercado. O consumidor está distante da
produção fílmica, pois este não pode devolver o produto fílmico, pois “comprou
imagens projetadas durante certo tempo”.131
A imagem cinematográfica é um tipo de expressão que faz parte da
comunicação visual. O cineasta tem como propósito transportar o espectador de seu
mundo para o mundo criado pelo filme. Sobre a “linguagem do cinema”, vejamos o
que Milton José de Almeida ainda nos fala:
Uma tentativa de ver no cinema um sistema simbólico de produção,
reprodução de significações acerca do mundo, em que ambos os termos de
comparação vêem-se reduzidos. Mas pode-se tentar. O filme, como um
texto falado/escrito, é visto/ lido como num texto/fala que à primeira
letra/som sucedem-se outros, formando palavras que se sucedem em
frases, parágrafos, períodos, até lermos/ouvimos a última letra/som e
termos o texto/fala completo, o primeiro quadro, os seguintes, as cenas, as
seqüências, o filme completo. O significado de um texto/filme é o todo,
amálgama desse conjunto de pequenas partes, em que cada uma não é
suficiente para explicá-lo, porém todas são necessárias e cada uma só tem
significação plena em relação a todas as outras. 132
A partir desta visão sobre a “linguagem cinematográfica”, o espectador não vê
o cinema, mas o filme, que faz parte do tempo presente, o tempo da projeção.
O cinema existe antes e depois da projeção do filme. A indústria, o mercado
de filmes, o roteiro, argumento, locações, atores, produção e tantas outras
coisas fazem parte do cinema. E também as interpretações, as conversas
depois do filme são coisas do cinema. Os que o produzem e os que o
consomem encontram-se na sua projeção. [...] Só então discutimos e
falamos sobre ele, como cinema, não mais como filme, longe dele, como
memória, inextricavelmente ligado á nossa história, à história do mundo em
que vivemos, à história do cinema.133
131
Cf: ALMEIDA, M. J., op cit., p. 25.
Ibid., p. 28 e 29.
133
Ibid., p. 40 e 41.
132
Ao estudar o material visual não podemos tratar as imagens apenas como
ilustrações. Estas se encontram inseridas em contextos históricos e carecem de
debates apropriados.
A professora e pesquisadora Martine Joly em sua obra “Introdução à análise
da Imagem” remete-nos ao campo da análise das significações visuais, pertencentes
ao mundo das imagens e das suas problemáticas. É Joly quem nos diz que:
[...] a imagem é um meio de expressão e de comunicação que nos vincula
às tradições mais antigas e ricas de nossa cultura. Mesmo sua leitura mais
ingênua e cotidiana mantém em nós uma memória que só exige ser um
pouco reativada para se tornar mais uma ferramenta de autonomia do que
de passividade. [...] sua compreensão necessita levar em conta alguns
contextos de comunicação, da historicidade de sua interpretação e de suas
especificidades culturais.134
A partir da leitura de Martine Joly, percebemos que as imagens em geral são
sinônimos culturais e que relatam experiências históricas, sociais, psicológicas e até
fisiológicas. Assim, quando adentramos no universo icnográfico, a única certeza que
temos é que são inúmeros os pontos de vistas das quais se podem analisar e
interpretar uma produção imagética.
No caso da imagem cinematográfica, para compreendermos um pouco da sua
estruturação, torna-se viável decompor os elementos visíveis e constitutivos da
imagem. A pesquisadora Martine Joly ao estudar os conceitos que englobam as
estruturas da percepção imagética justifica o estudo da mesma ao afirmar que: “[...]
interessar-se pela imagem é também interessar-se por toda a nossa história, tanto
pelas nossas mitologias quanto pelos nossos diversos tipos de representações”.135
Assim sendo, a imagem em seu sentido primário (Bild, em alemão) está
ligada a representação, isto é, a uma reprodução de algo, de um objeto, de alguma
coisa que a visão, ou o olhar óptico captou. A imagem em seu aspecto sensível, no
134
135
Cf: JOLY, M. Introdução à análise da imagem. Campinas: Papirus, 1996, p. 135.
Ibid., p. 136.
conjunto com a atividade da mente humana é vista como uma expressão de uma
determinada idéia. Neste aspecto, encontram-se aqui as atividades relacionadas
com a memória e a imaginação. Pensando nessa discussão e sobre a importância
de se estudar a Imagem fílmica como um objeto de cunho historiográfico, que traz
aspectos e práticas representativas de uma determinada cultura, a historiadora e
Prof. Dr. Sandra de Cássia Araújo Pelegrini nos relata que:
[...] faz-se necessário reconhecer que o estudo embasado na fonte
imagética, mais precisamente no documento fílmico, não pode supor que a
mesma constitua uma verdade incontestável, nem configure um „reflexo‟
direto ou indireto da realidade a que se refere. Ela deve ser interpretada
como mais uma forma de manifestação das percepções humanas, inserida
no âmbito de práticas e representações culturais, políticas e ideológicas de
seu tempo.136
Segundo Jacques Aumont em sua obra “A Imagem” existem leis que
determinam os elementos do visível. Assim, as informações que chegam até nós por
meio da luz passam por etapas subseqüentes, que são processadas e codificadas.
A codificação nos permite interpretar os fenômenos característicos da luz, como sua
intensidade, seu comprimento de onda e sua distribuição no espaço. A percepção da
luz é caracterizada através da visualização da luminosidade, estabelecida entre as
relações do sistema visual com o objeto luminoso.
A percepção da cor encontra-se ligado as reações do comprimento da onda
emitidas e refletidas pelos objetos. Algumas superfícies absorvem determinados
comprimentos de onda e refletem somente outros, o que nos confere a impressão de
cor. Assim, os elementos de percepção nunca estão separados, mas encontram-se
vinculados um ao outro.
Nesse viés, a percepção da imagem cinematográfica abarca conceitos
relacionados à visualidade, como o “espaço representado”, que é diferente do
espaço cotidiano. Sendo antes, um espaço da superfície da imagem, num aspecto
tridimensional e ilusório. Depois de delimitado o espaço da ação fílmica, tem a
136
PELEGRINI, S. de C. A e ZANIRATO, S. H (orgs). “As dimensões da Imagem: abordagens
teóricas e metodológicas”. In: História e Imagem: a ficção teatral e a Linguagem cinematográfica.
Maringá: Eduem, 2005, p. 125
questão da câmera, que realiza o recorte do espaço fílmico, por meio do uso de
mecanismos técnicos da estruturação da visibilidade da imagem cinematográfica. 137
Após a estruturação da natureza da imagem cinematográfica, ocorre “a
atuação dos níveis estruturais”, que é a apreensão da visualidade fílmica em sua
forma final, neste componente está os elementos disruptivos, como a montagem, o
som e a direção de arte.138
Assim, na direção de arte encontra-se o roteiro, que é o indicador da
elaboração de idéias potencialmente visíveis. É a partir do roteiro que se define o
espaço fílmico e a temporalidade da obra produzida. Sobre a importância do roteiro
a pesquisadora Débora Lúcia Vieira Butruce nos diz que:
A partir da primeira leitura do roteiro, o diretor de arte procura se situar no
contexto geral do filme proposto, buscando encontrar sua potencialidade
visual e a intenção pretendida. Estas indicações iniciais o auxiliam nas
primeiras anotações concernentes à época, lugar, espaço, cor e textura, já
vislumbrando algumas diretrizes visuais existentes nestas indicações que
possibilitem que a ambientação da obra seja definida. Normalmente é feita
uma listagem de todos os locais e objetos contidos no roteiro e cada
seqüência, o que é denominado análise técnica mais detalhada será
realizada posteriormente quando todos os elementos já estiverem definidos
139
pelo diretor de arte.
137
Sobre a câmera, esta “não pode responder. Não pode fazer perguntas estúpidas. Não pode fazer
perguntas penetrantes que fazem você perceber que esteve errado o tempo todo. Ei, ela é uma
câmera! Mas, pode compensar um desempenho deficiente, pode melhorar um bom desempenho,
pode criar clima, pode criar feiúra, pode criar beleza, pode provocar emoção, pode captar a essência
do momento, pode parar o tempo, pode mudar o espaço, pode definir um personagem, pode
proporcionar explicação, pode fazer uma piada, pode fazer um milagre, pode contar uma história! Se
meu filme tem dois astros, sempre sei que realmente tem três. O terceiro astro é a câmera.” Cf:
LUMET, S. Fazendo Filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 75.
138
Grande parte da direção de arte e da concepção do figurino influi sobre o desempenho dos
intérpretes. Cf: LUMET, S., op cit., p. 100.
139
Cf: BUTRUCE, D. L. V. A Direção de arte e a imagem cinematográfica: sua inserção no
processo de criação do cinema brasileiro dos anos 1990. (Dissertação de Mestrado apresentado
ao curso de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação da Universidade Federal
Fluminense). Niterói: UFF, 2005. Para o cineasta estadunidense Sidney Lumet: “O roteiro ainda deve
manter-nos desequilibrados, surpresos, entretidos, envolvidos e, no entanto, quando é atingido o
desfecho, dar-nos ainda a sensação de que a história tinha de terminar daquela maneira”. Cf:
LUMET, S. Fazendo Filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Sobre a análise do roteiro Cf ainda:
SOARES, S. J. P. Cães de Aluguel: análise de um roteiro de Quentin Tarantino. Campinas:
Unicamp, 2001. (Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de Pós-Graduação em Multimeios) e
CAMPOS, F. de. Roteiro de cinema e televisão: A arte e a técnica de imaginar, perceber e narrar
uma estória. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
De acordo com esta citação, no processo de criação cinematográfica, o
roteiro constitui-se como um dos primeiros elementos concretos da produção fílmica.
Ainda dentro da direção de arte, encontra-se a pesquisa, que juntamente com o
diretor de fotografia realizam-se investigações na busca de informações para a
escolha de elementos para se compor o “visual” do filme; além da pesquisa, acha-se
ainda o processo de pré-produção, que é a fase efetiva de criação, com a
elaboração de projetos para a direção de arte e as etapas de realização. Outro
aspecto para a criação da imagem fílmica é a escolha das locações ou dos cenários
em estúdio. Após todas estas etapas checam-se todos os elementos em seus
pormenores, entre estes, a cor, as formas, as texturas dos objetos, disposições de
cenários etc, chegando ao limiar da pré-produção cinematográfica.140
[...] Cenários, roupas, conceito de câmera, roteiro, elenco, ensaios,
cronograma, financiamento, fluxo de caixa, exames do seguro, locações,
cover sets (interiores que filmamos se o tempo estiver ruim para uma
externa), cabelo, maquilagem, testes, compositor, montador, sonoplasta,
tudo já foi decidido. Agora estamos rodando o filme, afinal.141
Constatamos ainda que um filme seja constituído por seqüências, que são
unidades menores dentro do próprio filme. Cada seqüência é constituída por cenas.
O processo de decomposição do filme é chamado de decupagem142, que ocorre com
seqüências e as cenas em “planos”. O plano corresponde a cada tomada de cena,
sendo um segmento contínuo da imagem. Nesta mesma linha, o plano ainda
corresponde a certos pontos de vista concernentes ao que se está sendo filmado.
140
Para informações detalhadas das etapas de produção fílmica Cf: BUTRUCE, D. L. V., op cit., p.
21-55.
141
142
Cf: LUMET, S., op cit., p. 101.
A decupagem é antes de tudo um instrumento de trabalho. O termo surgiu no curso da década de
1910 com a padronização da realização dos filmes e designa a “decupagem” em cenas do roteiro,
primeiro estágio, portanto, da preparação do filme; ela serve de referência para a equipe técnica. [...]
Ela designa, então, de modo mais metafórico, a estrutura do filme como seguimento de planos e de
sequências, tal como o espectador atento pode perceber. É nesse sentido que André Bazin utiliza a
noção de “decupagem clássica” para opô-la ao cinema fundado na montagem; encontraremos a
mesma oposição em Jean-Luc Godard. Cf: AUMONT, J e MARIE, M. op cit., p: 71. Para Gilles
Deleuze, “a decupagem é a determinação do plano, e o plano a determinação do movimento que se
estabelece no sistema fechado, entre elementos ou partes do conjunto. DELEUZE, G. Cinema, a
Imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Assim, o teórico de cinema Ismail Xavier arrola uma escala de “planos”
143
. Vejamos
no quadro que se segue:
Em cenas localizadas em exteriores ou
Plano Geral
interiores amplos, a câmera
toma uma
posição de modo a mostrar todo o espaço da
ação.
Uso
Plano Médio ou Conjunto
aqui
para
situações
em
que,
principalmente em interiores (uma sala, por
exemplo), a câmera mostra o conjunto de
elementos
envolvidos
na
ação
(figuras
humanas e cenário). A distinção entre plano
de
conjunto
e
plano
geral
é
aqui
evidentemente arbitrária e corresponde ao
fato de que o último abrange um campo maior
de visão.
Corresponde ao ponto de vista em que as
Plano Americano
figuras humanas são mostradas até a cintura
aproximadamente,
em
função
da
maior
proximidade da câmera em relação a ela.
A
Primeiro Plano (Close-up)
câmera,
próxima
da
figura
humana,
apresenta apenas um rosto ou outro detalhe
qualquer que ocupa a quase totalidade da tela
(há uma variante chamada primeiríssimo
plano, que se refere a um maior detalhamento
– um olho ou uma boca ocupando toda a tela)
143
Cf: XAVIER, I. O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e
Terra, 2005, p: 27-28. Cf também: AUMONT, J e MARIE, M., op cit., p: 230-231 e PELEGRINI, S. de
C. A; ZANIRATO, S. H (Orgs). op cit., p. 123-132.
Para Edgar Morin, o filme é a junção de dois psiquismos: aquele que está
incorporado na película e o do próprio espectador. Assim, o ritual do filme seria o da
complementação, o ponto de cinética do imaginário numa pulsação de 24 imagens
por segundo.144
Com isso, a imagem cinematográfica é resultado da singularidade do fazer
cinema, do exercício do cineasta como obra criada. Como sujeito imerso na
sociedade de produção, o cineasta acha circunscrito ao seu período, aos seus
valores estéticos e recursos técnicos da qual pode dispor.145 Para Sidney Lumet:
Finalmente os filmes são uma arte. Acredito que nenhuma combinação dos
filmes de maior bilheteria atrairia a atenção que os filmes conseguem sem o
trabalho de Marcel Carné, King Vidor, Federico Fellini, Luz Bruñel, Fred
Zinnemann, Billy Wilder, Carl Dreyer, Jean-Luc Godard, Robert Altman,
David Lean, George Aikor, Willian Wellman, Preston Sturges, Yasujiro Ozu,
Carol Reed, John Huston, Satajit Ray, Orson Welles, Jean Renoir, Roberto
Rossellini, John Ford, Willian Wyler, Vittorio De Sica, Martin Scorsece,
Ingmar Bergman, Akira Kurosawa, Francis Ford Coppola, Elia Kazan,
Michelangelo Antonioni, Jean Vigo, Frank Capra, Bernardo Bertolucci, Ernst
Lubitsch, Buster Keaton, Steven Spielberg e tantos outros. Ao mesmo
tempo em que Batman, o retorno fatura quarenta milhões de dólares no fim
de semana de seu lançamento, Minha vida de cachorro leva quatrocentos e
vinte pessoas a rir e chorar em um pequeno cinema. A quantidade de
atenção dada ao cinema está diretamente relacionada com os filmes de
qualidade. Os filmes que são obras de arte é que criam esse interesse,
mesmo que não figurem com muita freqüência na lista das dez maiores
bilheterias.146
Para o escritor Roland Barthes a imagem consiste em um fenômeno
antropológico, a imagem fílmica institui uma temporalidade própria. O “fazer cinema”,
da produção imagética está cada vez mais complexa, pois abarca uma gama de
conceitos, símbolos, percepções, objetivos, estereótipos, seleções de seqüências de
144
MORIN, E. O Cinema e o homem imaginário. Lisboa: Ed. Porto, 1982, p. 241. Apud (D‟ ANGELO
BRAZ, C. As representações do imaginário: uma análise crítica a partir de três leituras fílmicas
de Orfeu. Campinas: Unicamp, 2003. (Dissertação de mestrado apresentado ao Programa de PósGraduaação em Multimeios).
145
Sobre a questão do sujeito histórico, próprio de seu tempo e espaço Cf: BAKHTIN, M. Marxismo e
filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
146
Cf: LUMET, S., op cit., p. 202.
cenas e linguagens específicas. O pesquisador Camilo D‟Angelo Braz diz em seu
estudo sobre a representação do imaginário na produção cinematográfica que:
O filme, como um tipo de documento, permite um recenseamento e uma
classificação daquilo que costumamos chamar “imaginário”, a partir de um
conjunto de imagens sujeitas ao tempo, cujos procedimentos da sua
produção e seu resultado final, enquanto obra autônoma ou vinculada a um
determinado estilo ou gênero, sofrerá diferentes contingências de aceitação
ou rejeição. Com essa possibilidade, inúmeros estudos envolvendo a
produção fílmica, em sintaxe e morfologia, os procedimentos metodológicos
de análise, estudos sobre as formas de representação (a imagem
perceptiva, imagem lembrança, a fac-símile de quadros históricos) ou
icônica (as figurações pintadas, desenhadas, esculpidas, fotografadas)
surgem para “decifrar” esse meio que, cada vez mais, agrega mais
147
disciplinas.
Com base no que foi dito acerca da imagem cinematográfica, na produção do
filme Satyricon, o cineasta Federico Fellini se expõe, direta e abertamente, porém
com certo requinte de elegância. Como bem nos informa o poeta e escritor Guido
Bilharinho em “O Cinema de Bergman, Fellini e Hitchcock”:
Satyricon, com suas cenas iniciais teatralizadas, contudo, não é simples
resultado de refazimento ou reação intelecto-criativo. É mais. Nesse mais
encontra-se o elemento perturbador. Quebrando as amarras de patente
pudicícia no tratamento das manifestações sentimentais e sexuais do ser
humano, Fellini as expõe, nesse filme, direta e abertamente, porém, com
148
requinte e elegância.
147
Cf: D‟ANGELO BRAZ, C., op cit., p: 34 e 35. O autor ainda nos exemplifica, dizendo: “Há, por
exemplo, o fascinante estudo icnográfico de Mikhail Rostovtzeff a respeito dos mosaicos antigos do
Império Romano. Também, alguns estudos de sociologia da arte, ou dela decorrentes, como os de G.
PLEKHANOV, G. LUKÁCS, E. FISCHER, Walter Benjamin, entre outros, envolvendo a relação arte e
vida social. Mais recentemente, os de Erwin Panofsky de iconologia, que visa a atingir o sentido
imanente da obra de arte, com visível influência do estudo das formas simbólicas de Ernst Cassirer,
que propõe que o espaço de representação da obra de arte seja uma totalidade das formas
simbólicas de uma sociedade. Entre os semióticos, começando por F. Saussure e Charles Sanders
Pierce, que influíram decisivamente no enfoque semiótico da imagem por meio da noção de signo
icônico. Foram seguidos por Charles W. Morris na década de 1960 e, finalmente, Umberto Eco, que
após críticas contundentes ao iconismo, suavizou aceitado que certos signos são culturalmente
codificados, sem serem totalmente arbitrários”, p. 35.
148
Cf: BILHARINHO, G. O Cinema de Bergman, Fellini e Hitchcock. Uberaba: Instituto Triangulino
de Cultura, 1999, p. 94 e 95.
O filme é “liberador e ampliativo do enfoque do cineasta”. As imagens
escolhidas por Fellini ressaltam uma amostragem de figuras hediondas, com
deformações físicas, inérticas diante da câmera. É a “repugnância do homem” que
se revela por meio das cenas.
Ao sair desse circo de horrores fisionômico-corporais, a câmera segue
fazendo uma abertura focal, captando os panoramas, espaços e paisagens
decorados do ambiente, é o encontro de Fellini com Petrônio, é o espaço do Mito,
dos Rituais cotidianos, da ironia, da Sátira, do moderno e contemporâneo que se
revela com a imagem cinematográfica. Vejamos:
A partir daí arrefece e chega a desaparecer a apresentação das
extravagâncias citadas, mas, pendularmente, extrapola a narrativa os limites
da focalização do relacionamento entre o protagonista e seu parceiro para,
dilatando consideravelmente sua abrangência, adentrar no vasto campo do
mito e da história em peripécias e ocorrências várias em que se envolvem o
protagonista e seu irmão nas quais até mesmo um poeta e um poetastro
têm destacado papel, em que são relevantes a ironia, a modicidade e o
agudo senso crítico de Petrônio (e de Fellini).149
A imagem cinematográfica do suicídio de um intelectual que corta seus pulsos
refere-se à reconstituição da morte de Petrônio, que foi condenado ao suicídio por
ter sido acusado de conspiração contra o Imperador Nero. As cenas e as tomadas
das imagens destacam-se pelo aspecto cromático e pictório, e “excepcionalmente
concebido e elaborado”. Assim, Guido Bilharino conclui dizendo que:
Apresenta o filme, em sua complexa tessitura de intenções, pelo menos três
linhas paralelas de realização: a estória dos dois irmãos e seu companheiro,
o quadro inicial de abjeções e as alusões ou inserção dos protagonistas nas
encruzilhadas onde se encontram, e às vezes se amalgamam, história e
mito, sobressaindo sobre seu conjunto à extrema beleza da imagem na
captação de décois e circunstâncias insólitas, muitas delas de evidente
fundo crítico.150
149
150
Ibid., p. 94 e 95.
BILHARINHO, G., op cit., p. 95.
Por fim, Satyricon de Fellini é uma mescla de beleza e criatividade do
cineasta, ao som do compositor italiano Nino Rotta o filme vai construindo o
panorama imagético dos planos, das cenas e do roteiro. Neste viés, as imagens
presentes no Satyricon podem ser comparadas a citação do sociólogo e filósofo
francês Jean Baudrillard, na qual ele declara: “É precisamente quando ela parece
mais verídica, mais fiel e mais em conformidade com a realidade, é que a imagem é
mais diabólica”.151
151
Cf: BAUDRILLARD, J. The evil demon of images. Saint Louis, E.U. A: Left. Bank Books, 1984.
Apud (XAVIER, I. O Cinema no século. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1996, p. 38.)
1.4 CARPE DIEM E O HEDONISMO EM EPICURO
“Mais vale aceitar o mito dos deuses do que ser
escravo do destino dos naturalistas: o mito pelo
menos nos oferece a esperança do perdão dos
deuses através das homenagens que lhes
prestamos ao passo que o destino é uma
necessidade inexorável”.
(EPICURO – “Carta sobre a Felicidade”)
O ponto de partida para se conceber o Hedonismo em Epicuro é o movimento
de formação do pensamento de Karl Marx. Com base em Epicuro, sua tese de
doutorado intitulada “A diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e
Epicuro”, expõe a teoria Marxista sobre o “materialismo epicuriano” tendo como
cerne as relações do mundo cinematográfico, da produção do objeto fílmico com o
processo de produção e direção de Federico Fellini visto dentro da conjuntura do
materialismo histórico.
Assim, a tese sobre “Epicuro” dará origem a teoria do Materialismo de Marx.
Com isso, escritos de Demócrito e Epicuro encontram-se ligados a filosofia
helenística. Cabe ressaltar que, este contato com o universo da cultura grega vai
estar presente por toda a via de Karl Marx.152
Com isto, tanto Epicuro como Demócrito afirmavam que toda realidade da
física era formada a partir da agregação de partículas mínimas, invisíveis e
indivisíveis, os átomos, que eram combinadas de formas específicas. Entretanto,
opondo-se ao filósofo Abdera (filósofo, historiador e cientista atomista grego, 460152
Sobre o período helenístico que influenciou os escritos marxistas, ressaltamos que “em finais do
século IV a.C., as cidades gregas ao perderem sua independência para os reis de Pérgamo (Antiga
cidade grega da Mísia, próxima ao mar Egeu, que ficou muito conhecida no período helenístico por
tornar-se a sede da dinastia Atálida. Foi nesta região que surgiu o pergaminho) Os Filósofos
passaram a valorizar o conhecimento sensível e a desenvolver a concepção materialista da realidade.
Assim, a filosofia centra suas discussões em volta do indivíduo e da obtenção da felicidade e do bem
estar. Os deuses são reduzidos a dimensão humana e as religiões adquirem uma natureza sincrética.
Destaque para as correntes filosóficas do estoicismo, epicurismo e ceticismo (atitude filosófica na
qual as pessoas escolhem examinar de forma crítica se o conhecimento e a percepção que possuem
são realmente verdadeiros). Para se aprofundar nestas questões e contrapor a leitura da teoria de
Karl Marx sobre Epicuro, recomenda-se a leitura do filósofo Olavo de Carvalho Cf: CARVALHO, O de.
O Jardim das Aflições. São Paulo: Realizações, 2000.
370 a.C), Epicuro não admitia que as agregações dos átomos fossem realizadas sob
uma determinação qualquer, externa ao próprio átomo, mas que no momento inicial,
os átomos apresentavam um movimento vertical no vazio levando-os a caírem. Se
os átomos mantivessem este movimento inicial, os átomos seguiriam infinitamente
em quedas paralelas sem jamais se agregarem em si, isto é, sem jamais
constituírem qualquer elemento da matéria perceptível aos sentidos.
No entanto, Epicuro afirmava que, os átomos possuíam uma potencialidade
imanente, variante a alguma atividade mecânica que poderia alterar o movimento
infinito de queda. Ao realizar este movimento chocavam-se e agregavam a outros
átomos, formando assim, um “mundo sensível”. O próprio Karl Marx em sua tese nos
confere que:
Todo o corpo concreto é em geral um complexo, e em Epicuro será mais
153
precisamente um complexo de átomos.
Mas enquanto Demócrito reduz o mundo sensível à aparência subjetiva,
Epicuro faz dele um fenômeno objectivo. Epicuro fá-lo conscientemente,
pois afirma partilhar os mesmos princípios, mas não fazer das qualidades
sensíveis simples objectos da opinião.154
A importância da tese de Karl Marx não está no materialismo do atomismo
epicuriano, mas na forma como esta teoria do atomismo se presta para análise das
formas da consciência. Em suma, na capacidade dos átomos em desviar-se da
trajetória mecânica e com isso criar “universos distintos”. Para Denis Collin,
professor do Lycée Aristide Briand d‟Evreaux:
[...] o lugar do átomo na filosofia epicuriana é completamente diferente do
que se verifica em Demócrito, o átomo é uma espécie de coisa em si, um
noumène que designaria o ser como tal, já em Epicuro, o átomo é um
princípio de representação. [...] Assim, Epicuro objetivou no átomo a
contradição entre a existência, enquanto Demócrito não faz senão
“conservar o aspecto material e propor hipóteses com fins empíricos”.
153
Cf: MARX, K. Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. Lisboa:
Editorial Presença, 1972, p. 25.
154
Cf: Ibid, p. 146.
[...] Marx, sem haver ainda rompido formalmente com o helenismo, faz do
materialismo epicuriano um momento decisivo da história da filosofia,
155
tomada como a história da consciência.
Ao realizarmos a leitura da teoria marxista tendo como concepção a teoria do
pensamento epicuriano, salientamos que o cineasta Federico Fellini não segue a
trajetória comum imposta pelo mercado audiovisual, da produção de um filme sobre
os moldes do sistema hollywoodiano, Fellini restringe seu público ao propor um filme
diegético, com particularidades de seu próprio “mundo cinematográfico”. Ao desviarse da trajetória “comum” da produção fílmica, permite que ele próprio possa
constituir uma narrativa, utilizando uma linguagem técnica específica própria do seu
universo fílmico.
Entretanto, todo discurso cinematográfico traz certa carga de ideologias,
próprias de quem o produziu. Mesmo Fellini não tendo realizado um filme
propriamente voltado para o grande público consumidor, o mesmo acha-se inserido
no modo de produção capitalista, pois depende deste modelo para “sustentar-se”
como “personagem felliniano” do cenário audiovisual. Estabelece aqui a dialética
marxista, entre o cineasta e sua obra enquanto “arte” e “objeto” vendável. A
representação do Fellini hedonista é característica de sua obra, o filme “Satyricon” é
uma festa para os olhos, principalmente pela fotografia de Guiseppe Rotunno, da
direção de arte e figurinos de Danilo Donati e da trilha sonora de Nino Rota.
Neste sentido, na leitura de Epicuro e do poeta e filósofo latino Lucrécio, a
filosofia Epicurista adverte que os homens devem amar a vida e aproveitar as
oportunidades de prazer que ela oferece, deixando de envenená-la com ódios,
paixões e os dissabores, sobretudo, não se amargurando inutilmente com o medo
da morte. “Devemos lançar longe de nós esse medo do Aqueronte, que
profundamente perturba a vida humana em seu próprio âmago, e, cobrindo tudo com
o negror da morte, não nos deixa nenhum prazer tranqüilo e puro”.156
155
Cf: COLLIN, D. “Epicuro e a formação do pensamento de Karl Marx”. In: POLITEIA: História e
Sociedade. Vitória da Conquista, v. 6, n. 1, p. 21 e 23.
156
“Et metus ille foras praeceps Acherontis agendus. Funditus humanam qui vitam turbat ab imo,
Omnia suffundens mortis nigrore; neque ullam. Esse voluptatem liquidam puramque reliquit.” Cf: De
A teoria atomista de Epicuro difere muito da teoria moderna. O homem é livre
porque existe a “declinação atômica”. Assim, ao ter posse dessa liberdade, o homem
pode decidir o seu destino, pode libertar-se de suas ambições, das preocupações do
dia-a-dia, para isto, o indivíduo não deve visar cargos políticos, nem invejar aqueles
que os detêm, nem preocupar-se com as riquezas. O filósofo Agostinho da Silva
completa dizendo que157:
No fundo, o epicurismo é uma ascese, que pretende deixar o espírito o mais
livre, o mais despojado, o mais puro possível para a apreensão dos
prazeres que são os únicos que vale a pena buscar: o prazer da leitura, da
contemplação da ordem do mundo ou da conversa entre amigos
esclarecidos, o sentimento da fraternidade que une os homens livres;
quando a morte vier, recebê-la-emos serenamente, primeiro porque tivemos
cada hora presente como um tesouro precioso, sem nunca chorarmos o
passado ou sonharmos o futuro, depois porque sabemos que a morte é o
grande sono sem sonhos de quem já falava Sócrates.
O filme Satyricon de Federico Fellini apresenta-se na forma de teatro,
permeado por rituais, que por vezes a narrativa do filme mescla-se com diálogos
teatrais. Um dos aspectos mais marcantes do filme diz respeito a sua descrição e
não propriamente a sua narrativa, fato verificado por meio da decoração e do
desprezo pela luz natural. A fotografia sugere ao público um ambiente exótico, da
busca pelo prazer e de uma filosofia epicurista. Sobre a filosofia Epicura, vejamos:
A própria alma, diz-se, tem os prazeres. Pois bem, que os tenha. Que seja a
sede de delícias e prazeres! Que se encha de tudo o que em geral encanta
os sentidos! Já que é capaz de rever o seu passado e se lembra dos
prazeres de outra com transporte, que se debruce sobre aqueles que hão
de vir, regule sobre isso as suas esperanças e, enquanto o seu corpo se
abandona à boa vida, incida os seus pensamentos nos prazeres futuros!
Tudo isso me parece tanto mais miserável, quanto é uma loucura tomar os
males por bens. Sem a saúde de espírito ninguém é feliz, e não é são
aquele que procura como sendo o melhor aquilo que lhe causa prejuízo. Por
isso é feliz o homem que tem um julgamento recto; é feliz aquele que se
contenta com o presente, seja ele qual for, e que ama aquilo que tem; é feliz
Rerum Natura, III, VS. 37 a 40 In: EPICURO E LUCRÉCIO. O Epicurismo e “Da Natureza”. São
Paulo: Editora Tecnoprint S.A, s/d.
157
Cf: SILVA, A da. “Prefácio”. In: EPICURO E LUCRÉCIO. O Epicurismo e “Da Natureza”. São
Paulo: Editora Tecnoprint S.A, s/d.
aquele que confia à razão a organização dos seus assuntos. Aqueles que
fazem do prazer o soberano bem, sabem muito bem o lugar vergonhoso em
que o colocaram. Dizem também que o prazer não pode ser separado da
virtude e afirmam que ninguém pode viver honestamente sem viver
agradavelmente, nem viver agradavelmente sem viver honestamente. Não
vejo como estes elementos podem caber no mesmo saco. Qual é, pois,
pergunto-vos, a razão pela qual o prazer não poderia ser separado da
virtude? Aparentemente o princípio de todo o bem está na virtude.158
No conjunto da tese de Marx, o filósofo apóia-se em Demócrito no aspecto da
racionalidade e em Epicuro no âmbito da subjetividade159. A idéia de liberdade para
Marx vai estar associada à teoria filosófica de Epicuro, que por sua vez vão delinear
o pensamento felliniano para uma “psicologia do cinema” (emoção e sensação)
160
.
Federico Fellini envolve o espectador na trama, trabalha mais com o
subjetivo, com a emoção. Com isso, o público é conduzido pelo filme, na própria
maneira de filmar. É a partir deste enfoque que passaremos a discutir os rituais
cotidianos no Satyricon, sua natureza e práticas. Nesta perspectiva, o próprio
conceito de ritual no Satyricon será construído por meio da leitura da obra fílmica e
literária.
158
Cf: EPICURO; SÉNECA. Carta sobre a Felicidade e Da vida Feliz. Lisboa: Sophia, 1994, p. 47 e
48.
159
“Os homens agem em condições determinadas, condições que eles não escolhem, mas nas quais
eles agem livremente. É esta liberdade essencial que Marx estima em Epicuro e é por causa dela que
seu atomismo é um atomismo não determinista, ou, mais exatamente, é por causa dela que é
possível delimitar um domínio do determinismo e um domínio da liberdade. Se o primeiro ponto não
nos afasta das posições tradicionalmente defendidas por numerosos marxistas; o segundo passa
despercebida pela maior parte deles, obcecados pela idéia de um marxismo científico no qual os
indivíduos desempenham tão-somente o papel determinado pelas infraestruturas. A nonchalance
epicuriana não tem lugar nesse sistema fechado da “ciência marxista”. Cf: COLLIN, D., op cit., p. 25.
160
Lado Direito do Cérebro: é o lado da emoção. No corpo este lado se manifesta na sua oposição –
lado esquerdo. Assim, na tela, tudo que vemos do lado esquerdo do enquadramento é captado pelo
nosso inconsciente, pela emoção.
Lado Esquerdo do Cérebro: é o lado da razão. No corpo este lado se manifesta na sua oposição: lado
direito. Assim, na tela, tudo que vemos do lado direito do enquadramento é captado pelo nosso
consciente, pela razão. Sobre esta questão o roteirista, dramaturgo, ator e escritor Jean-Claude
Carrière cita que: “Aqueles que estudaram o cérebro [...] dizem que o centro da linguagem está
situado no lado esquerdo, onde se encontram a razão, a lógica, a memória e a associação inteligente
de idéias e percepções. A faculdade da visão, por sua vez, situa-se no lado direito, junto com a
imaginação, a intuição e a música. A atividade normal do cérebro pressupõe que os dois hemisférios
funcionem em harmonia através de incontáveis, minúsculas e velozes conexões. Se isso é verdade,
então nenhum cérebro trabalha com maior amplitude e com mais intensidade do que aquele de um
grande cineasta, solicitando constantemente a fundir o verbal e o visual.” Cf: CARRIÈRE, J.C. A
linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 25.
EUMOLPO: É o amor ao dinheiro que causou
essa transformação. Nos tempos antigos,
quando se sabia apreciar a virtude por si
mesma, as artes liberais e a ciência floresciam,
e uma nobre emulação levava aos homens a
darem o melhor de si na busca de descobertas
que beneficiariam os séculos vindouros. Foi
assim que Demócrito extraiu o suco de todas as
ervas e folhas, e consumiu a vida em
experimentos visando revelar as propriedades
das plantas e minerais. [...] E nós, entretanto,
mergulhados no vinho e na perdição, não temos
sequer a determinação de estudar as artes que
nos foram legadas, e como detratores da
Antigüidade trilharmos um currículo de
decadência. Onde foi parar a dialética? E a
astronomia? Onde a estrada do saber? Quem
hoje em dia vai a um templo e faz uma
oferenda a um deus para conquistar a
eloqüência ou por um golpe na fonte da
filosofia? Nem mesmo mente sã em corpo são é
o que pedem, mas, assim que adentrarem o
templo promete oferendas em troca do prazer
de sepultar um parente rico, desenterrar um
tesouro ou amealhar sem esforço trezentos mil
sestércios. O próprio Senado, antigo guardião
das virtudes, faz votos de mil libras de ouro a
Júpiter no Capitólio, ornando o deus com seus
ouros e assim sansionando a ganância dos
mortais. Não admira, portanto, que a arte da
pintura tenha morrido, já que deuses e homens
encontram agora mais beleza em barras de
ouro do que nas obras-primas de Apeles e
Fídias.
(Petrônio - século I d.C)
2 UM OLHAR SOBRE OS RITUAIS DO SATYRICON
"Rituals are performative: they are acts done;
and performances are ritualized: they are
codified, repeatable actions. The functions of
theatre identified by Aristotle and Horace entertainment, celebration, enhancement of
social solidarity, education (including political
education), and healing - are also functions of
ritual. Rituals emphasize efficacy (...) Theatre
emphasize entertainment. (...) But these list of
differences (not oppositions) does not support
the tendency in Western scholarship to suppose
that ritual performance precedes or is at the
origin of theatre. Theatre and ritual are as
night and day, chicken and egg - neither has
priority over the other."
(Richard Schechner – Companion Encyclopedia
of Anthopology, p.613-614)
2.1 UMA DEFINIÇÃO DE RITUAL
Nosso cotidiano encontra-se marcado por diferentes rituais, que por vezes
passam despercebidos aos nossos olhares. Estudá-los é uma maneira de enfatizar
sua importância para a vida social, bem como resgatar sua relevância para a
formação individual, não relacionando “rituais” apenas a fenômenos de ordem
tradicional, formais ou arcaicos.
Este capítulo tem como propósito fazer uma “leitura” de três cenas ritualísticas
da obra fílmica Satyricon de Fellini, recorrendo à obra literária de Petrônio como
base teórica. Assim, o conceito de ritual do Satyricon se dará com o próprio estudo
das obras.
Para dialogar com a produção fílmica de Federico Fellini optei em seguir as
orientações da Prof. Drª. Mariza Peirano do Departamento de Antropologia da
Universidade de Brasília (UnB) com a obra “Rituais: Ontem e Hoje”.161
Ao adotar este percurso, a própria autora enfatiza que o conceito de ritual
deve ser etnográfico, isto é, deve-se levar em consideração a perspectiva do “outro”,
o que determinados grupos apreendem como sendo eventos ritualísticos.
Outro aspecto observado pela pesquisadora diz respeito à natureza dos
eventos ritualísticos, eles podem ser profanos, religiosos, festivos, formais, informais,
simples ou elaborados. Neste contexto, optei por fazer uma análise de três formas
de rituais do Satyricon de Fellini: o profano, o religioso e o festivo.
A escolha desses três elementos como forma de estudo deve-se ao próprio
hedonismo de Fellini e de sua característica “felliniana” de cineasta. Assim, o
profano, o religioso e o festivo nos apontam para as representações e valores de
uma sociedade. A Prof. Drª Mariza Peirano ressalta que ao observar tais
características, os rituais elucidam o que já é comum a um determinado grupo, pois
o que se encontra no ritual acha-se presente no dia-a-dia e vice-versa. Para a
antropóloga: “Rituais são bons para transmitir valores e conhecimentos e também
próprios para resolver conflitos e reproduzir as relações sociais”.162
De acordo com esta citação, podemos afirmar que os rituais cotidianos não
são definitivos ou imutáveis, sendo sua prática comum para várias finalidades.
Dessa forma, o conceito de “ritual” não pode ser fossilizado como algo formal ou
161
162
Cf: PEIRANO, M. Rituais: ontem e Hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
Cf: PEIRANO, M., op cit., p: 10. A professora e antropóloga Esther Jean Langdon da Universidade
Federal de Santa Catarina nos diz ainda que: “O cotidiano é marcado por momentos rituais, tais como
os cumprimentos (“Tudo bem”, “Tudo bom”) e as despedidas (“Foi um prazer”, “Igualmente”) que são
gestos externos convencionados e obrigatórios, comunicando pouco além de marcar as vindas e
saídas de nossos encontros. [...] Dentro do contexto atual, a importância da análise de ação ritual
como constitutiva dos processos sociais tem aumentado. Alguns autores introduziram a noção de
“performance cultural” ou “performance” para expressar a multiplicidade de formas rituais que
estruturam e permeiam a vida, estas incluem os ritos sagrados (cultos religiosos, formaturas,
cerimônias cívicas), as formas de entretenimento (teatros, circos, festivais, festas, espetáculos, jogos
e esportes) e os processos políticos (atos jurídicos e estaduais, manifestações étnicas, greves e até
os tumultos). Outros preferem continuar utilizando o conceito do rito. [...] O rito, ou performance
cultural, é um evento cívico, que é marcado por uma ruptura no fluxo da ação social, por um limite
temporal, e os atores sociais que estão, de alguma maneira, manifestando sobre seu mundo. Cf:
LANGDON, E. J. Rito como conceito chave para a compreensão de processos sociais. In:
Antropologia em primeira mão/Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Florianópolis:
UFSC, 2007, p. 1-14.
desprovido de sentido. Mariza Peirano completa suas observações ao adotar um
conceito estudado por um antropólogo, Staley Tambiah, na qual para ele os rituais
são fenômenos culturais de comunicação. Leiamos suas palavras:
O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica. Ele é constituído
de seqüências ordenadas e padronizadas de palavras e atos, em geral
expressos por múltiplos meios. Estas seqüências têm conteúdo e arranjo
caracterizados por graus variados de formalidade (convencionalidade),
estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição). A
ação ritual nos seus traços constitutivos pode ser vista como “performativa”
em três sentidos: 1) no sentido pelo qual dizer é também fazer alguma coisa
como um ato convencional (como quando se diz “sim” à pergunta do padre
em um casamento); 2) no sentido pelo qual os participantes experimentam
intensamente uma performance que utiliza vários meios de comunicação
(um exemplo seria o nosso carnaval) e 3), finalmente, no sentido de valores
sendo inferidos e criados pelos atores durante a performance,por exemplo,
quando identificamos como “Brasil” o time de futebol campeão do mundo.163
A partir destes indícios, observamos que os rituais podem ocorrer
individualmente ou coletivamente, mediando tradições culturais ou práticas
cotidianas. Dessa forma, considerando cada um dos fatores citados sobre as
representações e as percepções das práticas dos rituais, damos início à análise da
obra fílmica de Fellini.
163
Apud (PEIRANO, M., 2003, p. 11)
2.2 AS CENAS
Cabe ressaltar que as cenas escolhidas para o estudo dos rituais no Satyricon
levam em consideração o posicionamento do diretor, isto é, a expressão de Federico
Fellini enquanto cineasta e sua visão ideológica de sociedade.
Ao propor o estudo do profano, do religioso e do festivo visamos partir daquilo
que as próprias cenas nos mostram, buscando desvendar as zonas não visíveis do
imagético.
Assim, a própria narrativa fílmica, as organizações dos seus elementos nos
permitirão elucidar o “enquadramento” do diretor em relação aos personagens. O
fato de escolher determinadas cenas em função de outras, justifica-se pelas próprias
influências do cineasta, principalmente no que diz respeito ao contexto de produção
e a apropriação do texto fílmico.
Tendo em vista tais características, salienta-se o próprio discurso fílmico
adotado por Fellini. Quais os propósitos dos supostos erros de leitura do passado
entre a obra fílmica e literária? Haja vista que todo discurso é uma construção de
quem o realiza, e que os “erros de leitura do passado histórico são propositais.” O
escritor italiano Italo Calvino completa dizendo que:
[...] O excepcional encontro entre o expectador e um filme sempre pode
acontecer, por mérito da arte ou do acaso. No cinema italiano, pode-se
esperar muito do gênio pessoal dos diretores, mas pouquíssimo do acaso.
Esta deve ser uma das razões pelas quais algumas vezes admirei, muitas
vezes apreciei, mas nunca amei o cinema italiano. Sinto que ele tirou mais
do que deu prazer de ir ao cinema. Porque este prazer deve ser avaliado
não só com relação aos “filmes de autor”, com os quais tenho um
relacionamento crítico do tipo “literário”, mas também com relação às
produções médias e pequenas, com os quais tento estabelecer uma relação
de simples expectador.164
164
Cf: FELLINI, F. Fazer um filme. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 20.
A partir deste relato, o cinema apresenta-se como uma fonte imprescindível
para compreender aspectos de difusão de idéias e comportamentos, sendo capaz
de formar e deformar opiniões, levando a uma manipulação da realidade, por
representar aspectos do cotidiano, tais como a política, a guerra e em última
instância, a história.165
2.2.1 Rituais do Sagrado
“Devemos dar um fim, de uma vez por todas, a
fabula acerca do caráter sagrado da vida
humana”
(Leon Trotsky)
Os rituais dentro da esfera do sagrado encontram-se ligados as questões
religiosas ou aos sistemas religiosos. O aspecto formal do sagrado concede a
coletividade uma noção de controle ou de ordem que alcançam todos os indivíduos
da sociedade. Este controle social ocorre por meio dos valores morais e das visões
de mundo que o religioso coloca como a forma de legitimar seu poder e influência
nas questões da contemporaneidade.
A formalidade do ambiente religioso é caracterizada pela repetição, fato que
agrega diferentes formas de rituais no espaço sagrado, pois tudo que se repete no
sentido de ritual fornece aos indivíduos uma sensação de segurança.
Tomando como referencial teórico o livro de Mariza Peirano, deve-se levar em
consideração que para se analisar os rituais, neste caso, os rituais do sagrado, não
podemos considerar nossos valores racionais ou sociais, já que cada civilização
possui um tipo de cultura que é peculiar há seu próprio tempo e espaço.
165
Cf: LEITE, S. F. O cinema manipula a realidade? São Paulo: Paulus, 2003.
Os ritos166 de passagem que são marcados por rituais e que são muito
comuns em quase todas as culturas, como por exemplo, o nascimento, a entrada na
vida adulta, o casamento e a morte são acontecimentos culturalmente representados
e fundamentais para nossa vida. A antropóloga Adriane Luisa Rodolpho apresenta
em seus estudos uma visão sobre estes quatros ritos de passagem e que também
compõem o cenário do mundo sagrado. Para a pesquisadora:
Com relação ao nascimento, temos rituais tão variados quanto o da
“couvade” entre alguns grupos indígenas (após o parto é o homem que fica
de resguardo, enquanto a mãe logo já está se ocupando de seus afazeres
cotidianos), quanto o da circuncisão de meninos ou a excisão das meninas.
A atribuição do nome da criança é outro tema fundamental entre os rituais
do nascimento, significando na maior parte das vezes o ingresso ou
inclusão desta no grupo. Do mesmo modo, a morte não se relaciona
simplesmente com um cadáver, com o fim de uma vida, mas trata-se
igualmente de uma nova condição, uma nova iniciação à vida eterna, ao
reino dos mortos (dependendo das crenças de cada grupo sobre o destino
dos homens). Os rituais de sepultamento igualmente simbolizam a
separação do mundo dos vivos; estes devem zelar pelo bom
encaminhamento dos ritos segundo os costumes do grupo. O não
cumprimento destas prescrições pode ocasionar outros riscos para o mundo
dos vivos.167
Com isso, a antropóloga Adriana Luisa Rodolpho salienta ainda que ao
passar pelos “ritos de passagem”, o indivíduo deixa de ser o que era, contudo ainda
não é o que poderia ser como, por exemplo, um cadáver, que não está propriamente
morto, pois não passou pelos ritos de sepultamento. Este fator faz com que o
indivíduo passe a encontrar-se num estado de indeterminação. Este período, do pré
e pós ritual devem ser analisados como fases invariantes e que mudam de acordo
166
Para a etnóloga francesa Martine Segalen: “[...] o rito é caracterizado por uma configuração
espaço-temporal específico, pelo recurso a uma série de objetos, por sistemas de linguagens e de
comportamentos específicos e por signos emblemáticos cujo sentido codificado constitui um dos seus
bens comuns de um grupo [...] Enquanto conjuntos fortemente institucionalizados ou efervescentes,
os rituais podem ser considerados sempre como um conjunto de condutas individuais ou coletivas
relativamente codificadas, com suporte corporal (verbal, gestual e de postura), caráter repetitivo e
forte carga simbólica para atores e testemunhas. Cf: SEGALEN, M. Ritos e rituais
contemporâneos. Rio de Janeiro: FGV, 2002, p. 31-32.
167
Cf: RODOLPHO, A, L. Rituais, ritos de passagem e de iniciação: uma revisão da bibliografia
antropológica. In: Estudos Teológicos, v. 44, nº 2, 2004, p: 142 Apud (HELLERN, V; NOTAKER, H;
GAARDER, J. O Livro das religiões. São Paulo: Cia das Letras, 2000).
com os ritos culturais. Ao fazer referência a Gennep, pioneiro dos estudos sobre
rituais, o pesquisador e antropólogo Roberto da Matta completa dizendo que 168:
A grande descoberta de Van Gennep é que os ritos, como o teatro, têm
fases invariantes, que mudam de acordo com o tipo de transição que o
grupo pretende realizar. Se o rito é um funeral, a tendência das seqüências
formais será na direção de marcar ou simbolizar separações. Mas se o
sujeito está mudando de grupo (ou de clã, família ou aldeia) pelo
casamento, então as seqüências tenderiam a dramatizar a agregação dele
no novo grupo. Finalmente, se as pessoas ou grupos passam por períodos
marginais (gravidez, noivados, iniciação, etc), a seqüência ritual investe nas
margens ou na liminaridade do objeto em estado de ritualização.
Para o cientista social Émile Durkheim (1858 – 1917)169, a religião é a
expressão dos valores e da moral da sociedade via os atos rituais. Os significados
simbólicos das crenças organizam a sociedade, assim como o antropólogo Roberto
da Matta enfatizou ao citar Gennep. Cada cultura se organiza frente aos objetos em
estado de ritualização. Na discussão acerca da religião Durkheim expõe uma divisão
entre o sagrado e o profano, sendo antes, uma divisão fundamentada pelo próprio
homem. Com isso, o aspecto do sagrado conduziria os indivíduos para a formação
de uma moralidade social, coletiva e impessoal.
Com este parâmetro, é por meio do sagrado que os ritos, as crenças e os
símbolos se prevaleceriam no meio social, reforçando as expressões da sociedade.
Dessa forma, como positivista Durkheim defendia uma religião laica, desvinculada
do sagrado e voltada para o racionalismo. Os indivíduos seguiriam uma religião não
por temor das conseqüências que poderiam advir sobre o pecador, mas pelas regras
morais, baseadas na boa conduta do convívio em sociedade.170
168
Cf: GENNEP, A.V. Os ritos de passagem (apresentação de Roberto da Matta). Petrópolis: Vozes,
1978, p. 18.
169
170
Cf: DURKHEIM, E. As formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Paulus, 1989.
A certeza de Durkheim de que a religião era o centro da sociedade era tão grande que ele não
podia imaginar uma sociedade totalmente profana e secularizada. Onde estiver à sociedade ali
estarão os deuses e as experiências sagradas. E chegou mesmo a afirmar que existe algo de eterno
na religião que está destinado a sobreviver a todos os símbolos particulares nos quais o pensamento
religioso sucessivamente se envolveu. Cf: ALVES, R. O que é Religião? São Paulo: Loyola, 1999, p:
66.
2.2.2 Encontrando os rituais
A Morte
Figura 1
Cena do Satyricon – despedida – (Enquadramento: Plano Conjunto).
Figura 2
Cena do Satyricon – despedida (2) – (Enquadramento: Close/Front View: foco no personagem
de frente) – Câmera movimenta-se da direita para esquerda, imagem que remete a emoção)
Figura 3
Cena do Satyricon – despedida (3) – (Enquadramento: Close-Up)
A religião romana no período do principado romano, isto é século I d.C, era
formada por meio de uma relação “contratual” entre os cidadãos romanos e os
deuses, enquanto os romanos prestassem cultos e homenagens aos deuses, a
ordem e a paz estariam asseguradas. O sagrado para os romanos (sacer) não era
propriamente a presença de qualidades divinas em um objeto ou ser, mas este
objeto ou ser passava a ser propriedade do divino por meio da qualidade jurídica a
ele atribuída. Assim, como toda a propriedade pública é inviolável, a violação da
propriedade divina também possuía uma definição, o sacrilégio.171
Para John Scheid, estudioso da História Religiosa Romana (École des
haustes études em Scienses Sociales – EHESS), os deveres religiosos eram
impostos aos indivíduos pelo nascimento, pela obtenção da cidadania romana, em
caso de estrangeiro, ou pela profissão, sendo algo de cunho social e não individual,
existindo assim, tantas religiões quanto grupos sociais, tais como: a cidade, a legião,
os colégios de artesãos, os bairros, as famílias, etc.172
171
Cf: SCHEID, J. La Religion des Romains. Paris: Armand Colin, 1998, p: 2 Apud: (BARNABÉ, L.
E. Religião Romana: Revisões de conceitos e abordagens. In: Anais Eletrônicos da XII Semana de
História – “O Golpe de 1964 e os dilemas do Brasil Conteporâneo.” UNESP/Assis. Assis, 19 a 22 de
Outubro de 2004, p. 1)
172
Cf: SCHEID, J. La Religion des Romains. Paris: Armand Colin, 1998, p. 1.
A noção de particularidade associada à religião é algo formado na
contemporaneidade, entretanto nos identificamos como seres sociais através de
rituais coletivos, que são comuns a determinados grupos da qual passamos a fazer
parte, legitimando nossa forma de pensar e agir.
A identificação com algo sobrenatural se deve ao fato da necessidade do ser
humano de apegar-se a algo ou alguma coisa que lhe possa atribuir uma identidade,
a religião passa a exercer esta função cultural de formação social que simboliza todo
o processo de incultamento de valores e princípios morais.
E então, a religião e a morte sempre foram temas que despertaram interesse,
pois sem a morte não haveria religião ou deuses. Nesta tentativa de decifrar a morte,
o homem teria buscado na religião uma maneira de imortalizar-se.
Desta forma, este medo do desconhecido, dos deuses e da morte é que a
filosofia epicurista, do Carpe Diem veio para libertar. Esta doutrina permitia ao povo
romano traçar seu próprio destino, livrando-os do medo dos deuses e da morte. A
filosofia epicura defendia a tranqüilidade da alma, sem a necessidade de prestar
contas a religião tradicional. A felicidade estaria na aproximidade do homem com a
filosofia.
Nas figuras 1, 2 e 3 que retratam cenas do Satyricon, podemos perceber o
uso da emoção, o movimento da câmera do lado direito para o esquerdo, bem como
o uso do plano conjunto para o enquadramento do Close e Close-Up no rosto da
criança. Com isso, o Satyricon de Fellini trabalha com a emoção ao invés da razão
levando o expectador a fazer parte do cenário ou da trama fílmica.
Nesta cena de despedida, alusão a morte, na qual fica mais clara ao
visualizarmos a figura de número 4, filmado no plano conjunto, na qual a fala do
personagem indica a existência de um lugar melhor, avesso ao mundo terreno, que
denominamos de paraíso: lugar para onde vão os mortos em certas religiões; lugar
muito agradável.
Figura 4
Cena do Satyricon – despedida (4) – (Enquadramento: Plano Conjunto)
Na física epicurista, toda a matéria pode ser decomposta em átomos e é
efêmero, o homem é efêmero, sendo, portanto mortal, pois é composto por átomos.
Entretanto, os átomos são sólidos e indivisíveis, sendo eternos, e ao desintegrar a
matéria, separam-se para fundirem em outros corpos. Assim a morte seria a
desagregação do conjunto atômico, não existindo motivos para temê-la.
A fundamentação da teoria epicurista tem como propósito dissipar a angústia
mental que é causada pelos deuses ou pela religião. A necessidade de uma religião
sede lugar a espontaneidade da alma, a autonomia da vontade e a liberdade
humana.
É necessário que o homem romano afaste-se da ignorância (dominada pela
religião) para libertar-se do temor dos deuses e da morte. Não é o negar a existência
dos deuses, mas os considerar como representantes das forças da natureza, e esta
como o princípio e o fim de tudo que existe, até mesmo dos próprios deuses.
No epicurismo, o homem deve ser guiado pelas suas vontades, dedicando ao
estudo da natureza para libertar-se das superstições do mundo religioso, a morte
seria para a religião uma forma de controle social, uma coerção contra a vivência do
prazer que a vida pode oferecer. O homem vive na constante busca de poder, de
ascensão social, como se tudo que tivesse sido conquistado na vida pudesse
também acompanhá-lo na morte, ao temer a morte o homem cultiva a infelicidade.
Na obra de Petrônio e no filme de Fellini, torna-se notável a questão de
interesses em torno daqueles que possuíam dinheiro e poder, ou seja, aqueles na
qual o poder e a riqueza já era algo inerente; os que lhe desejavam a morte estavam
à volta na expectativa de usurparem alguma coisa, principalmente se estes não
tivessem herdeiros legítimos. Todos que gravitavam ao seu redor viviam na
esperança de serem contemplados no testamento. Sobre esta questão, vejamos:
Trimalquião procura controlar esse momento derradeiro através de
previsões e ensaios cênicos de quando e como será sua partida para o
mundo do Além. E o lugar que não terá no coração dos homens procura
garanti-lo na grandeza do seu monumentum fúnebre. Licas tenta fugir a um
destino marcado, observando com fervor religioso, presságios e
admonições divinas. No entanto, o mesmo vento que impelia as velas das
suas embarcações o empurra para o abraço mortal das vagas enfurecidas.
Não tem pai, mulher, filho que o chorem no momento da despedida. Mãos
inimigas lhe vão erguer a pira que resgate a passagem para outra
dimensão. Eumolpo toda a vida foi um aventureiro. A única riqueza com que
acenava era o brilho do intelecto, que amargos dissabores lhe causaram e
também algumas alegrias. Em Crotona, vai passar os últimos dias da vida
como rei que os heredipetae julgavam que ele era. E será, certamente,
recordado. Pelos companheiros de aventura, que simbolicamente liberta, à
hora da morte (talvez para uma existência menos atribulada); pelos
captatores, que nunca hão de ser capazes de digerir o ludíbrio, maior ainda
que a pretensa riqueza do velho. Três sendas rasgadas numa terra de
engano, de insegurança, de receio e de morte. É a visão panorâmica desse
mundo que interessa, por fim conhecer.173
Fellini em sua obra fílmica, busca dar uma ênfase nas características visuais,
como as cores, o cenário e os personagens. Na relação da morte com o sagrado, o
cineasta explora mais o lado psicológico, o temor que pairava sobre o desconhecido,
o apego nas coisas materiais que levaria ao interesse de muitos, a solidão do
173
Cf: LEÃO, D. F. As ironias da fortuna: Sátira e moralidade no Satyricon de Petrônio. Coimbra:
Edições Colibri (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), 1998, p. 116-117.
momento da morte, da despedida da vida, da falta de pessoas que pudesse
acompanhar o cortejo fúnebre.
Com este pensamento sobre as características apontadas na obra de Fellini,
o
Satyricon
foi
rodado
em formato
alargado,
vulgarmente
apelidado de
CinemaScope. Os formatos alargados obtêm-se por meio da utilização de uma lente
anamórfica na câmera, que vai comprimindo a imagem. Outra lente, colocada no
projetor realiza a função inversa.
O CinemaScope como citamos, foi introduzido em 1953 por meio do filme
“The Robe”, na qual os anúncios sobre ele divulgavam como um “milagre moderno
que era possível ver sem óculos” e com “som estereofônico de alta qualidade”. O
som estereofônico demorou a torna-se padrão na época do CinemaScope dada à
generalidade das salas de projeção.
Todos estes recursos cinematográficos eram utilizados por Fellini e aparecem
no Satyricon, às imagens eram projetadas em um quadro amplo e achatadas como
se fosse um antigo afresco retratado numa parede. Assim, o filme criado por Fellini a
partir de seu imaginário, foge a realidade de Petrônio, porém destaca-se pela
articulação daquilo que se considera ficção e do que pode se considerar como real
dentro da perspectiva historiográfica.
O filme apresenta-se de forma desconexa, em um ambiente de caos,
produzidos nos estúdios do Cinecittà. A música foi escolhida pelo próprio cineasta,
utilizando recursos sonoros no estilo metálico e eletrônico. Seguindo o caminho
oposto das produções hollywoodianas, Fellini não mostrou uma Roma nostálgica,
com base no sentimentalismo italiano, mas uma Roma baseada na perca do mos
maiorum: da tradição romana.
Os tradicionais defensores do mos maiorum – anciãos, aristocratas, casta
sacerdotal – abandonam essa função para protagonizarem, à sombra da
antiga fama, todos os actos que deveriam rejeitar. As mulheres, por sua vez,
há muito que se esqueceram o exemplo de Cláudia. Apenas Fortunata
continua a ecoar o domum seruauit com razoável eficácia. As demais
qualidades só na aparência estão presentes. Curiosamente, o grande
exemplo anunciado da leuitas feminina acaba por trazer uma lição
adjacente: a do triunfo do amor e da vida sobre a escuridão da morte. Algo
que Encólpio, quando tudo parecia apontar para a consumação plena, se vê
impotente para concretizar. Porque não ama, apenas deseja Circe; porque
dedica a atenção a uma pessoa sem identidade e sem caráter, que
congrega em si algumas qualidades femininas e todos os defeitos com outro
fruto que não seja engano, traição e dor. O amigo tem de sofrer tudo isso e
ainda a punição do deus, quando buscava trilhar outra via. Se o
desalentado Encólpio se vê sem meios para atingir os objectivos que se
tinha proposto alcançar, outras personagens há, no Satyricon, que, real ou
fingidamente, detêm um grande poder.174
O Satyricon de Fellini é considerado pelos críticos cinematográficos como um
filme de “contracultura” por ser uma adaptação livre da obra literária de Petrônio,
muitos dos personagens fellinianos foram associados aos Hippies da década de
1960. Os jovens aventureiros que iam à busca de aventuras sinalizavam para os
críticos contemporâneos como sendo semelhantes aos jovens do período moderno,
desapegados dos valores morais, abertos a sexualidade e contra as crenças
religiosas. Estes, assim como os aventureiros em Petrônio visavam o Carpe Diem
epicurista, da busca pela liberdade e de novos prazeres.175
Para Fellini, o Satyricon era o resgate do misterioso, do obscuro e etéreo
visual clássico do passado “arqueológico” de Petrônio com vistas às questões do
período moderno. Os fragmentos literários da obra de Petrônio permitiram ao
cineasta trazer aos olhos dos espectadores uma verdade inventada, rumo a Roma
Felliniana.176
174
Cf: LEÃO, D. F. As ironias da fortuna: Sátira e moralidade no Satyricon de Petrônio. Coimbra:
Edições Colibri (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), 1998, p. 96 e 97.
175
Essas características fizeram com que muitos estudiosos do Satyricon de Fellini e Petrônio
associassem também a obra Felliniana ao espetáculo “HAIR”, de grande sucesso na Broadway, que
conta a história de um grupo de jovens que vivem em Manhattan, New York, e praticam o amor livre,
além de abordarem temas relacionados à homossexualidade e as drogas. Cf: WYKE, M. Projecting
the past: ancient Rome, cinema, and history. New York: Routledge, 1997, p. 191.
176
Cf: Ibid., p. 189-192.
Figura 5
A morte de dois Patrícius, indireta homenagem a Petrônio que morreu conversando com seus
177
amigos – (Enquadramento: Close-Up)
177
Cf: FELLINI, F. Fellini Satyricon. Bologna: Cappelli Editore, 1969. Sobre a morte de Petrônio, o
historiador Claudiomar R. Gonçalves cita que: “Tácito constrói um jogo íntimo caracterizado por três
fases: uma elevação dramática; uma peripécia (atitude não passiva de Petrônio frente a morte) que
prepara o leitor para o grande final: a morte do personagem marcado pela contradição: Dia/Noite;
Luxo/Simplicidade; Ambição/Desprendimento; Morte Militar/Morte Filosófica; Morte Trágica/Morte
Normal, ou seja, criando uma espécie de anti-morte que demonstraria que sua ars vivendi estava de
acordo com sua ars moriendi.” Cf: GONÇALVES, C. R. A morte de Petrônio na narrativa Tacitiana. In:
Gérion. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2001, nº 19, p: 520. (texto apresentado no XVI
Simpósio Nacional de Estudios Clássicos “La muerte em el Mundo Grecolatino”. Buenos Aires:
Argentina, 26 a 29 de Setembro de 2000).
Figura 6
Veias abertas, referência a morte de Petrônio – (Enquadramento: Primeiro Plano)
As figuras 5 e 6 representam no personagem em foco a referência ao
momento da morte de Petrônio, que suicidou-se esvaindo-se em sangue pelas veias,
enquanto dialogava com seus amigos, sem se preocupar com questões ligadas a
imortalidade da alma ou a filosofia, o satirista entregou-se ao “sono” para que a
morte lhe parecesse algo natural. Assim sendo, a filosofia Epicurista era materialista,
buscava o prazer e não era religiosa. Foi à primeira filosofia a ser completamente
desenvolvida a nível intelectual. Epícuro afirmava que: “A morte não é nada para
nós, pois, quando existimos, não existe morte, e quando existe a morte, não
existimos mais”.
Os deuses
Figura 7
Rito de preparação para a morte, evocação dos deuses. O ambiente remete a serenidade (Enquadramento: Plano Conjunto)
Figura 8
No Templo, guardiões de Hermafrodita. (Enquadramento: Plano Conjunto) 178
178
A princípio havia três gêneros entre os homens, e não dois como hoje, o masculino e o feminino:
um terceiro era composto dos outros dois: o seu nome subsistiu, mas a coisa desapareceu: então, o
real andrógino, espécie e nome, reuniam num único ser o princípio macho e o princípio fêmea: agora
já não é assim e só o nome ficou, como uma injúria. […] Se havia três gêneros, e tais como eu disse,
era porque o primeiro, o macho, era originalmente filho do Sol, o segundo, fêmea, extraído da Terra, e
o terceiro, participante dos dois, da Lua, porque a Lua tem esta dupla participação. […] Zeus cortou
os homens em dois, […] uma vez realizada esta divisão da natureza primitiva, eis que cada metade,
desejando a outra, a procurava. […] De facto, é desde então que o amor mútuo é inato aos homens,
que recompõe a sua natureza primitiva, procura restitui a um a partir dos dois e curar essa natureza
humana ferida. Cf: Platão. O Banquete. Publicações Europa-América: Mem Martins, 1977, pp.47-50.
O mito do andrógino de Platão também é conhecido como a teoria dos três gêmeos, é a busca das
metades que faltam, estas ao se encontrarem ocorre uma fusão de corpos e desejos. A fusão pode
ser entre um homem e uma mulher, entre duas mulheres ou entre dois homens.
A religião romana na época de Petrônio sofreu influência de outros povos da
antiguidade, como os gregos e os povos do oriente. Em decorrência do processo de
conquista, muitos dos romanos passaram a acumular deuses e crenças religiosas
dos povos conquistados, até mesmo com o advento do cristianismo no século I d.C,
foi observado pelos romanos como sendo mais uma entre as muitas crenças já
existentes.
Ao fazer um estudo das Sátiras de Juvenal no Plano da Iniciação Científica
pude verificar que até mesmo o literato deferia uma crítica aos imperadores que
haviam deixado suas crenças em favor de outras advindas da expansão romana.
Assim, a religião era sinônimo das relações sociais e não podemos negar a
sua importância, Juvenal aproveitava deste importante instrumento social
para execrar aqueles que se serviam dela para alcançar objetivos poucos
elogiáveis, como os impostores e os indolentes. Apesar de se referir a
vários deuses, sua incredulidade é notável principalmente quando se refere
a estes para os acusá-los de inoperantes. Juvenal chama a atenção do
povo romano, que envolvidos com a inserção de religiões estrangeiras e
exóticas relegam para segundo plano a fé em seus próprios deuses. O
cosmopolismo apoiado pelos imperadores fez com que muitos dos romanos
se inclinassem ainda mais aos apegos nas superstições, a apatia e a
indiferença da elite, sem nada fazer em prol dos deuses legitimamente
romanos.179
Por meio destes apontamentos acerca das crenças ou do desapego das
tradições culturais, Fellini no Satyricon levanta questões contemporâneas referentes
à própria percepção cultural do momento da produção do filme, da política fascista
vigente, de uma indústria cultural que produzia arte distante da realidade e mais
próxima da propaganda política. Os personagens usados pelo cineasta não
representavam grandes personalidades romanas, como gladiadores ou imperadores,
mas eram pessoas comuns envoltas pela decadência da Roma Imperial, do
sentimento de frustração e do sarcasmo. Assim como a tradição ao culto dos deuses
romanos dava lugar aos deuses estrangeiros, a propaganda política tomava conta
do cenário artístico da indústria cultural italiana no período felliniano.
179
SILVA, N. O da. O Clientelismo nas Sátiras de Décimo Júnio Juvenal. Maringá: UEM, 2003.
(Iniciação Científica – orientador (a): Prof. Drª. Renata Lopes Biazotto Venturini), p. 40.
2.2.3 Rituais do Profano
“Construo um sentimento sagrado
Mas em busca de um ser profano
Que se entregue sem engano
Que transpire enquanto eu amo
Que liberte o doce encanto
De encontrar o sagrado no profano.”
(Helena Kluiser)
“O religioso e o profano juntos.
A mulher da vida também está num
Altar religioso.
Um santo pode aparecer de repente numa
Orgia felliniana.”
(João da Mata Costa)
Podemos definir o Profano como sendo tudo aquilo que não é sagrado, da
necessidade do ser humano de aproximar-se dos prazeres da vida, no seu aspecto
artístico e cultural são espaços representados pelo teatro, o circo, o cinema e o
carnaval. Assim, o termo profano originou-se do latim profanu, contrario as coisas
sagradas, estando ligado a algo secular ou leigo, pro fani – fora do templo.180
O Profano também é uma necessidade do ser humano. Na verdade o ser
humano precisa do momento da recreação pra cobrir o stress que a vida
moderna coloca. Então o profano acaba sendo o paralelo, é o lazer, só que
como ele não tem a conotação de identificação com o sobrenatural, ele
chega pra gente na condição de um complemento da vida. Enquanto você
tem a necessidade do sagrado pra poder continuar vivendo para fazer parte
da sociedade, para estar inserido na cultura. Enfim para viver em
comunidade.181
180
181
Cf: DEL PONTE, R. Dei e miti italici. Genova: ECIG, 1988.
Cf: SERRANO, R. Informação verbal, 2006 Apud (PROCÓPIO, A; MALHEIROS, A. P. de O. O
Sagrado e o Profano em dois monumentos. São João da Boa Vista: Centro Universitário da Boa
Vista – UNIFAE, 2006, p. 12.)
Os ritos auxiliam a construir uma temporalidade oposta ao tempo da rotina
social que estamos habituados. As festas carnavalescas, por exemplo, deslocam os
indivíduos de sua rotina social. Muitos dos elementos do carnaval podem ser
identificados em rituais ou festividades do mundo antigo. No Satyricon de Fellini é
característico o uso de recursos que se aproximam dos ritos tidos como “profanos”.
A variedade de cores, a utilização de máscaras e a sensualidade são características
libertadoras do indivíduo que o leva a extroversão.
A fartura da comida, a permissividade, a bebedeira, a música, a dança e a
liberação sexual são heranças dos festejos e cultos profanos próprios dos gregos e
romanos. Na Grécia era comum a celebração dos Bacanais, que eram realizados em
homenagem ao deus Baco (deus do vinho, filho de Júpiter e de Semele). Dessa
forma, a tradição grega relata que a rotina social sofreria uma alteração com
Dionísio, que era o deus da embriaguez, dos prazeres e perturbador da ordem
estabelecida.
O Carnaval, ou “carnelevamen” (prazer da carne) seria a herança destas
manifestações, da transformação da rotina diária em momentos de festa e alegria. O
recurso da fantasia, de um mundo inventado, de sonhos manifesta-se no Satyricon
como a inversão de valores, da reprodução das aventuras dos deuses e da
necessidade de realizar suas vontades. Assim sendo, o Satyricon é sinônimo do
Carnaval, do escárnio, do piadístico, dos valores reprimidos na vida diária, dos ritos
cotidianos.182 Vejamos: “Os rituais representam aspectos das relações da sociedade.
Uma técnica para mudanças de posição moral da pessoa, do sagrado para o
profano, do profano ao sagrado, tendo como base o cotidiano”.183
A figura de nº 9 nos revela uma cena na qual o cineasta remete a uma
representação da “Torre de Babel” (narrativa bíblica encontrada no Gênesis, sobre
uma torre construída com o objetivo de chegar ao céu). Federico Fellini inspirou-se
na obra pictória de Pieter Brueghel o velho, (“Torre de Babel”, ano de 1563, óleo
182
O Carnaval originou-se dos antigos rituais romanos, tendo sua origem nas Saturnália, celebrações
em homenagem a Saturno praticado, pelos menos, desde o século V a.C, o Tempio de Saturno em
Roma data de 497 a.C. Cf: BIZARRI, M. L‟aurea Aestas di Saturno i Saturnalia. Roma: Sydaco,
1988, p. 3.
183
Cf: DA MATTA, R. Carnavais, malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1997.
sobre painel 114x155 cm – museu Kunsthistorisches – Viena e “A Torre de Babel”,
de 1563, óleo sobre painel, 60 x 74.5 cm, museu Boymans – van Beuningen –
Roterdã), a referência a esta obra no Satyricon diz respeito ao problema da
incomunicabilidade humana na sociedade contemporânea. Observemos:
Figura 9
Torre de Babel – Insulae (Enquadramento: Plano Conjunto)
A crítica de Fellini sobre a incomunicabilidade humana mostra-se no Satyricon
por meio do crescimento da Urbs romana no mundo antigo. A perda dos valores, da
tradição e da superpopulação, gerava uma crise social. As insulae (prédios de vários
andares construídos de modo precário e que concentrava um alto índice de
moradores, na sua maioria miseráveis) eram construídas de modo precário,
favorecendo os desmoronamentos e incêndios. A população se aglutinava nos
andares, e as paredes dessas insalae eram tão finas que uma tempestade era
capaz de derrubá-las. As famílias que viviam na miséria incentivavam suas filhas a
prostituição.184
184
Cf: SALLES, C. Nos submundos da Antigüidade. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 157.
A prostituição e os prazeres da carne podem ser verificados na cena abaixo,
na representação do Jardim das Delícias, a erotização do ser humano acha-se
presente nas pinturas e mosaicos, Fellini busca inspiração no expressionismo de
Botticelli para retratar a cena.
Figura 70
Jardim dos prazeres – figuras eróticas do Oriente (Enquadramento: Plano Conjunto).
Assim, o filme de Fellini traz personagens que agem de acordo com sua
natureza, o filme lida com o excesso visual, mostrando um mundo de amoralidade,
crueldade, auto-aversão, sexualidade e paixão.
Na obra literária, Petrônio foi buscar na linguagem das ruas o que necessitava
para criticar seus pares. Sendo um literato da elite, utilizou-se da tragicomédia e do
grotesco teatro popular para descrever o ambiente romano dos novos-ricos, lascivos
e corruptos. Entretanto Fellini não teve a preocupação de dar uma lição moralizante
sobre o mundo pagão, tão pouco de esboçar uma representação do passado, visou
antes, dar vozes a personagens não ditos de uma sociedade em um dado momento
histórico, revelando com isso, os interditos das relações entre democracia e
totalitarismo.
2.2.4 Rituais festivos
“Assim que cumprirmos nossos deveres rituais,
retornamos à vida profana com mais energia,
mas
também
porque
nossas
forças
se
revigoram, ao viver, por alguns momentos,
uma vida menos tensa, mais agradável e mais
livre.”
(Émile Durkheim)
A idéia de “festa” ou de “rituais festivos” nos remete a noção de prazer, de
realização e satisfação. Assim, o conceito de festa encontra-se ligado a rupturas de
nossas rotinas, da vivência entre o tempo do trabalho e do momento lúdico do
festivo. Para o professor José Clerton de Oliveira Martins:
Um tempo se transforma em outro através de uma festa. As festas
representam a transição, expressando as mudanças da sociedade da qual é
reflexo. Quando a sociedade promove algum tipo de mudança, aí existe
uma festa.185
Neste sentido, a festa é uma ruptura dos ritos cotidianos, uma expressão
coletiva, por meio das festas que o indivíduo se renova para retornar ao tempo do
185
Cf: MARTINS, J. C de O. Festa e ritual, conceitos esquecidos nas organizações. In: Revista malestar e subjetividade. Fortaleza, v.II, nº 1, março, 2002, p: 118-128 Apud (VELASCO, H. M. Tiempo
de Fiesta. Madrid: Ed. Tres-Catorze-Diecisiete, 1992.)
trabalho. O professor José Clerton de Oliveira Martins completa ainda dizendo que:
“[...] os rituais festivo-lúdicos contribuem para o desenvolvimento do trabalho e a
existência da atividade efetiva da organização”.186
Nesse viés, o estudo das festividades dentro do campo da historiografia não é
algo imutável, pois novos elementos podem ser incorporados ou até mesmo
conceitos antigos podem ser revistos e analisados. Cabe ao pesquisador estar
atento as rupturas, as descontinuidades e as temporalidades dentro das análises
das festividades. O historiador francês Michel Vovelle cita que:
[...] assim como não há uma História imóvel, também não há uma festa
imóvel. A festa na longa duração, assim como a podemos analisar através
dos séculos, não é uma estrutura fixa, mas um continuum de mutações, de
transformações, de inclusão com uma das mãos e afastamentos com a
outra.187
O arqueólogo e professor de História Antiga da Universidade de São Paulo
(USP), Norberto Luiz Guarinello, ao realizar um estudo sobre “Festas”, nos diz que a
festa é um ato coletivo e que implica em uma determinada estrutura social de
produção. Dessa forma, ela deve ser:
[...] preparada, custeada, planejada e montada segundo regras elaboradas
no interior da vida cotidiana; envolve a participação coletiva na sociedade
em seu conjunto ou em grupos nos quais os participantes ocupam lugares
distintos e específicos; aparece como uma interrupção do tempo social,
suspensão temporária das atividades diárias; articula-se em torno de um
objeto focal: um entre real ou imaginário, um acontecimento, um anseio ou
uma satisfação coletiva; e, por fim, pode gerar produtos materiais ou
188
significativos, principalmente a produção de identidade.
186
Cf: MARTINS, J. C de O., op cit., p. 126.
187
Cf: VOVELLE, M. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 251.
188
Cf: GUERINELLO, N. L. Festa, trabalho e cotidiano. In: JANCSO, I; KANTOR, I (Orgs). Festa:
Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec; Edusp; FAPESP; Imprensa
Oficial, vol. 2, 2001, p: 969-975 APUD (COUTO, E. S. Devoções, festas e Ritos: algumas
considerações. In: Revista Brasileira de História das Religiões, ano I, nª I – Dossiê Identidades
Religiosas e História, s/d, p. 3)
O estudo dos rituais festivos justifica-se na medida em que o homem busca
por meio deste aliviar suas tensões e encontrar um espaço de quietude frente aos
conflitos sociais, e com isto, tornar os rituais cotidianos mais significativos. A figura
de número 11 traça um panorama do banquete realizado por Trimalquião (Cena
Trimalchionis)189. Vejamos:
Figura 11
O Banquete de Trimalquião (Enquadramento: Plano Conjunto)
189
Segundo os relatos históricos, o personagem de Trimalquião é visto como sendo um novo-rico, exescravo que se vangloriava de seus bens sem ostentar, contudo, uma equivalente riqueza cultural.
Esse trecho corresponde à maior parte do livro XV, é o mais bem estudado de todo o Satyricon, e
denomina-se “Cena Trimalchionis”, ou “O Banquete de Trimalquião”. Cf: AQUATI, C. “Posfácio”. In:
PETRÔNIO. Satíricon. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 225.
A Cena Trimalchionis trata-se de um banquete realizado na casa do liberto
Trimalquião, que tinha se enriquecido por meio da prática do comércio. Apesar de
ser um fragmento da obra literária de Petrônio, é o que mais nos chegou
conservado. Os convidados, mesmo alforriados, mantêm seus traços de origem
popular.
Esta “Cena” é muito estudada pela historiografia, uma vez que a mesma traz
registros de fatos do latim corrente, revelando a mentalidade da plebe romana de
seu tempo. Fellini ao trazer para as telas do cinema esta parte da obra literária,
retrata a megalomania do novo-rico, Trimalquião, que tal como o próprio nome
sugere, significa: “três vezes rei”.
O Cineasta enfatiza a personalidade tirânica de Trimalquião, que impedia os
convivas de qualquer meditação sobre o prazer. O ato ritualizado de partilhar a
comida e a bebida revela-se muito importante para firmar laços de amizade e vencer
barreiras de natureza social, além de ser uma ótima oportunidade de propaganda
política. Os banquetes mostravam-se como ambientes propícios as relações de
Clientelismo e Patronato que eram muito comuns no período romano.
Federico Fellini ao tratar sobre estes assuntos refere-se ao jogo político de
interesses que estavam envoltos ao seu próprio tempo e das relações de poder e
amizade nos estúdios do Cineccità, que tinha sido inaugurado pelo fascista Benito
Mussolini para a gravação das propagandas do Fascismo.
Tendo
em vista
estas
características
apontadas,
vemos
que
toda
comemoração constitui-se numa forma de comunicação, na qual se articulam
relações de poder, propaganda e memória. Os rituais festivos comungam
características que permeiam o mundo sagrado e o profano, na qual divulgam
mensagens de símbolos e mitos.
Portanto, as festas são signos e fazem parte de um ritual: não há sociedade
sem ritual e não há ritual sem festas, pois elas ajudam a legitimar o regime. 190
190
Cf: CAPELATO, M. H. R. Multidões em Cena. Campinas: Papirus, 1998, p. 19-59.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao iniciar a pesquisa sobre o cineasta Federico Fellini no ano de 2007, tendo
em mente a sua relação com a obra literária de Petrônio, muitas foram às questões
que se levantaram. Muitas destas questões versavam sobre a produção
historiográfica de Fellini e o Satyricon, tanto no que se refere à obra literária datada
do século I. d.C, como a produção fílmica de 1969. Dentre as questões levantadas
podemos citar: quais as fronteiras traçadas entre o cinema, a literatura e a História?
Quem foi Federico Fellini e qual a sua relação com o Satyricon de Petrônio? O que o
Satyricon de Fellini representou para o seu período? Qual a origem do termo
“felliniano”?
Para responder a estas questões, recorremos ao estudo dos rituais cotidianos
inseridos na obra fílmica o Satyricon. Os rituais sagrados, profanos e festivos
representados pela religião, pelos banquetes e pelas festas populares, serviram de
vertente para expressar a estética cinematográfica de Fellini. Com isso, inspirada
nos conceitos criados pelo próprio cineasta adotamos como metodologia a teoria
filosófica epicurista do Carpe Diem, bem como a leitura crítica da indústria cultural.
Com este espírito nos dirigimos aos estudos, diálogos e interpretações de
diferentes estudiosos sobre o Satyricon de Petrônio e Fellini, além de especialistas
sobre os estudos das imagens cinematográficas e suas relações com a História e a
Literatura. Cada estudioso citado neste trabalho serviu para rever conceitos e a partir
destes propor novos. Para compreender dois períodos distintos, tanto de Petrônio
quanto de Fellini tivemos que nos despir dos preconceitos vigentes, principalmente
com relação ao anacronismo.
Assim sendo, este estudo apresentou um caráter interdisciplinar confrontando
personagens distintos com características e preocupações próprias de seu tempo e
espaço. As páginas traçadas revelam um Fellini “sonhador”, e foi no estúdio do
Cinecittà em Roma, que o cineasta pode realizar todos os seus sonhos, fantasias e
delírios fellinianos. O que mais chamou a atenção de Federico Fellini no Satyricon de
Petrônio eram suas lacunas; fragmentos estes que possibilitaram que o mesmo
preenchesse com sua própria imaginação uma “Roma Antiga imaginada”. Sob este
ponto de vista, fizemos uso da fonte literária do Satyricon lançado pela editora
Cosacnaif (2008), que trouxe no prefácio de Raymond Queneau e no posfácio de
Cláudio Aquati o cotidiano histórico e literário, na qual a obra encontra-se inserida e
codificada, além de trazer uma versão descrita pelo historiador Tácito sobre a vida
do aristocrata Petrônio na época do imperador Nero.
O Satyricon de Petrônio por ser uma obra enigmática e pelo pouco que se
chegou ao nosso conhecimento possibilita aos estudiosos contemporâneos de
renovar-se a cada nova leitura da fonte histórica, pois novas questões são
levantadas, principalmente com relação ao contexto satírico, tais como: os costumes
da época, a narrativa, o discurso de gênero, a paródia, o uso do latim vulgar, a
decadência das instituições, a degradação da religião, da justiça, da retórica e da
moral, ou seja, a perca do mos maiorum, da tradição romana.
É neste romance, pelo fio da ironia e do sarcasmo que Federico Fellini
apresenta uma sociedade plural, uma crítica ao seu tempo, um devaneio sobre a
consciência humana, da perca dos valores, e da usurpação do Estado Totalitário
sobre a forma de pensar e agir do indivíduo. Uma das partes mais estudadas do
Satyricon de Petrônio diz respeito ao banquete de Trimalquião, que mostrava a
megalomania do novo-rico, representando a tirania. A adaptação de Fellini para as
telas do cinema mostra o mercado da indústria cinematográfica, associando
questões relativas à propaganda política e ao corporativismo.
Narrado em primeira pessoa, o Satyricon de Petrônio conta a história de três
personagens, um romance de aventura entre Encólpio, anti-herói que para superar o
castigo da impotência dado pelo deus Príapo, envolve-se com bajuladores e
libertinos, sempre se envolvendo em conflitos juntamente com seu companheiro
Gitão e o rival Ascilto. Um jogo de poder e interesses que caracterizavam toda uma
sociedade, na qual cada um tinha o seu valor.
Ao chegar neste ponto do estudo, percebi que o tema não se esgota em si
mesmo, mas muito há ainda para ser feito e estudado. Ressalto ainda que, tive a
oportunidade, por meio do Mackpesquisa, de visitar a Fundação Federico Fellini em
Rimini – Itália, fazendo o mesmo percurso de Fellini, conhecendo assim, sua cidade
natal e dirigindo a posteriori para Roma, centro da atividade artística e intelectual de
nosso personagem, uma “Torre de Babel” como ele mesmo havia observado, onde
se confluíam diferentes tipos de culturas.
Rimini é a cidade felliniana, tudo gira ao redor das recordações do cineasta,
ao percorrer pelas ruas de Rimini, pude vivenciar um pouco da memória do cineasta,
de sonhar por um instante o “sonho de Fellini”, do “eterno retorno a sua cidade de
origem”, onde tudo começou, ou seja, a “cidade dos sonhos”. Assim sendo, neste
trajeto entre Rimini e Roma fica a mensagem de Lucius Apuleius: Lector, intende:
laetaberis (As. Aur. 1.6.6): Leitor, presta atenção: vais divertir-te.
Carpe Diem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
REFERÊNCIAS FÍLMICAS
FELLINI, A História de um Mito. Direção: Gianni Paolucci. Elenco: Anouk Aimée,
Federuci Fellini, Giulietta Massina, Alberto Sordi, Marcelo Mastroiani, Sandra Milo,
Caterina Borato, Franco Fabrizi, Ciccio Ingrassia, Franco Interlenghi, Magali Noel,
François Perier. Gênero: Documentário. Distribuidora: Paris, 2006: 75 MIN
ROME. Criado por: John Milius, William J. MacDonald, Bruno Heller. Produtores:
John Milius, William J. MacDonald, Bruno Heller, Franck Doelger, Anne
Thomopoulos, John Melfi. Elenco: Kevin McKidd, Ray Stevenson, Polly Walker,
Kenneth Cranham, Tobias Menzies, Maz Pirkis, Indira Varma, Kerry Condon,
Lindsay Duncan, James Purefoy, Ciarán Hinds. Gênero: Drama. País de origem:
Estados Unidos, Reino Unido e Itália. Exibição: HBO, BBC, RAI, RTP2. Quantidade
de temporadas: 2, nº de episódios 22, 2007:55 MIN. (séries)
SATYRICON. Direção: Federico Fellini. Produção: Alberto Grimaldi. Roteiro:
Federico Fellini, Brunello Rondi, Bernardino Zapponi. Elenco: Martin Potter, Hiram
Keller, Max Born, Salvo Randone, Mario Romagnoli. França-Itália, 1969:138 MIN
A DOCE VIDA. Direção: Federico Fellini. Roteiro: Federico Fellini, Ennio Flaiano,
Tullio Pinelli, Brunello Rondi. Elenco: Marcelo Mastroianni, Anita Ekberg, Anouk
Aimée, Yvonne Furneaux, Magali Noël. França-Itália, 1960:174 MIN (Edição
Comemorativa versátil Home Video 10 anos – 1999-2009, p&b)
MULTIMÍDIAS
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