Relato de Experiência: Iniciativas Acadêmicas
PRIMEIRO PASSO
Elaboração de um jornal de bairro em comunidade do interior
do Rio Grande do Sul
PARZIANELLO, Geder
Universidade Federal do Pampa
RESUMO
Projeto desenvolvido por alunos, professores e profissionais da Comunicação oferece a
experiência de jornal popular em comunidade do interior do Rio Grande do Sul.
Iniciativa integra proposta curricular do Curso de Jornalismo da Universidade Federal
do Pampa e comprova que o jornalismo impresso pode ser uma alternativa de
comunicação em comunidades periféricas de forma autosustentável. O relato dessa
experiência é aqui exposto em suas características, desafios e superações, no objetivo de
que sirva de estímulo a outras iniciativas similares no País.
Palavras-chave: jornalismo impresso; jornalismo popular; cidadania.
Há uma necessidade permanente, no ambiente acadêmico, de se criar um
espaço de reflexões e trocas de idéias, de conceitos e experiências. O projeto de
Extensão que aqui descrevemos nesse relato de experiência tem esta característica, ao
mesmo tempo em que alia também outros desafios da formação de novos jornalistas na
proposta político-pedagógica do Curso de Comunicação Social ofertado pela
Universidade Federal do Pampa (Unipampa) em seu Campus de São Borja. Município a
pouco mais de 700 km da capital gaúcha, na fronteira com a Argentina.
Trata-se de um momento de construção coletiva, e de práticas experimentais.
O projeto traduziu-se na oportunidade de acadêmicos
colocarem em prática as
postulações teóricas que compreendem a formação de suas matrizes curriculares e,
ainda e mais importante, oferecerem sua contribuição de competência profissional para
o desenvolvimento de suas comunidades.
Concernente o desafio da Universidade de se oferecer também como resposta
a demandas sociais e em vista do desejável melhoramento das condições de vida de suas
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populações, o projeto se reconheceu como uma inegável contribuição comunitária,
desde que criado, em 2008, e reafirmou a missão da Unipampa no seio da comunidade
que a acolheu.
A Universidade Federal do Pampa, Unipampa, aponta como princípios
norteadores de sua filosofia, desde a sua criação, em 2006, o compromisso social e
comunitário. Associada ao projeto do governo Lula de expansão do ensino superior
(2007-2010), a Unipampa já nasceu compromissada com os ideais de promoção do
desenvolvimento das comunidades mais distantes dos grandes centros e com o potencial
transformador que se deseja que elas tenham.
As atividades de ensino, pesquisa e extensão, que são o tripé da Universidade,
respondem, assim, muito mais do que a um anseio de um pesquisador, ou professor,
posto que respondem a
toda uma expectativa de uma comunidade por melhores
condições de vida, desejosa que estão estas comunidades de que a Universidade possa
de fato promover transformações favoráveis em suas realidades.
Uma ação acadêmica não pode, portanto, ser vista apenas como a ação de um
professor, de um curso, de um Campus ou de uma instituição. Ela é sempre uma ação
pública; uma pesquisa que pertence à comunidade, um projeto de extensão que só tem
razão nela mesma, na comunidade, porque a Universidade tem o compromisso de tornar
público, de socializar, de partilhar mesmo, tudo aquilo que consegue descobrir na sua
prática científica.
Porque a Unipampa é uma universidade pública, amplia-se ainda mais a
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necessidade de que ela seja capaz de oferecer contribuições a esta sociedade, de
apresentar respostas que a sociedade espera para problemas que ela seja capaz de
perceber, de ressignificar e resolver. Respostas, enfim, capazes de promover o
desenvolvimento, e um desenvolvimento sustentável, com suficiente reflexão ética,
associado a políticas de inclusão social e de responsabilidade cidadã.
O desafio que estava colocado de forma concreta no problema específico deste projeto
de Extensão era o da relação da comunidade com a mídia impressa local, objetivando
superar obstáculos na formação de um público leitor. Consideramos, em tese, haver uma
relação direta entre desenvolvimento social e acesso à informação, pelo que pensamos
ser possível transformar-se a realidade se modificadas as relações dos sujeitos com os
jornais.
Como suportes a este projeto de Extensão, realizamos uma pesquisa, intitulada
“Primeiro Passo”, enquanto uma proposta de investigação para o mapeamento da
realidade de leitores no bairro do Passo, no município de São Borja (RS), onde funciona
a sede local da Unipampa e onde também se situa o Curso de Comunicação SocialJornalismo da instituição. Estimava-se que, por razões econômicas, mas também
socioculturais, os jornais impressos não tenham quase leitores nessa comunidade,
formada por mais de mil famílias, muitas delas sem emprego e renda. A presente
pesquisa identificou que razões culturais eram bem mais decisivas para a formação do
leitor que razões econômicas, como suposto no senso comum. A pesquisa foi realizada
com bolsista do Programa de Bolsas de Desenvolvimento Econômico PBDA e apoiada
em projeto de ensino das disciplinas de Teoria e Método da Pesquisa e Comunicação
Comunitária.
Conhecendo a realidade e atuando sobre ela na forma de ações pontuais,
acreditou-se ser possível um cenário diferente na relação entre jornais impressos e
leitores, como 'primeiro passo' no bairro do Passo, em direção a uma sociedade melhor.
A comunidade do bairro do Passo, no município de São Borja, região Oeste do Rio
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Grande do Sul, concentra mais de mil famílias, segundo dados informais das
comunidades católicas que atuam em políticas de base comunitária naquela localidade.
Sem dados precisos sobre sua realidade, o bairro vive há anos do estigma criado no
senso comum, de ser um dos mais pobres do município, com grande concentração de
desempregados e famílias com reduzido poder aquisitivo, a quase totalidade subsistindo
de um salário mínimo. Considera-se que, em parte por conta desse cenário, o bairro
apresenta um distanciamento muito grande de todas as práticas intelectuais como a
leitura e a escrita, de toda reflexão mais sistemática e de toda produção de
conhecimento.
Foi preciso, no entanto, que se estudasse de fato essa comunidade para
compreender o processo de exclusão midiática a que ela parece submetida. Ser capaz de
refletir sobre dados empíricos de modo a poder ressignificar a realidade, ajudando a
comunidade a reconhecer melhor a si mesma. O caráter público da Universidade
reforçava a relevância da proposta de investigação, considerando não apenas que as
práticas jornalísticas sejam tomadas como possibilidade efetiva de transformação de
uma sociedade, mas também e principalmente, porque preciso descrever aquela
realidade no sentido de ultrapassar o estágio atual, de dados meramente presumidos
sobre como vivem aqueles moradores e qual sua relação com a informação.
É preciso quantificar o universo de leitores, as práticas de leituras e propor
caminhos para suplantar as barreiras que impedem o esclarecimento das comunidades,
suas consciências cidadãs e sua dignidade humana. Após cumprida esta etapa,
compreendida dentro de projeto de pesquisa com auxílio de bolsista, e apoiada a
proposta em projeto de ensino, a idéia foi a de organizar a publicação de um jornal
impresso do Bairro, a ser distribuído gratuitamente para a população do bairro, como
proposta de comunicação contra-hegemônica, comunitária portanto, e alternativa, em
favor da cidadania daquela comunidade.
Mobilizar a comunidade para a consciência de sua participação na construção coletiva
dos destinos do bairro, organizar e motivar a participação dos moradores na elaboração
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e produção de um jornal comunitário, desenvolver através da iniciativa do jornal a
formação de estados de lucidez na comunidade e mobilização política em defesa de seus
direitos e em favor de melhorias de suas condições de vida todos estes eram objetivos
do projeto.
A metodologia usada no projeto foi a técnico-experimental de produção de
pautas, textos e entrevistas, com apoio fotográfico, gráfico e editorial de um jornal
impresso, nas características, formatos e custos a serem pensados e planejados pela
comunidade.
Todas as despesas com o projeto foram custeadas de forma a garantir que ele
se mantivesse auto-sustentável. A contrapartida da Unipampa na proposta deste projeto
de Extensão tem sido primeiro, com a disponibilização de seus estudantes na forma de
ações de ensino, pesquisa e extensão, e eventual equipamento fotográfico, já existente
no Campus e de seus professores como orientadores das práticas laboratoriais e em
segundo plano, com dedicação de professores e estudantes em oficinas comunitárias. A
comunidade oferece uma sala específica para redação do jornal, que funcionar como
sede de contato com a comunidade, dispondo de internet e telefone. Os jornais são
distribuídos gratuitamente para a comunidade do bairro, sendo seus custos quase totais
financiados por ações comunitárias em apoio ao projeto.
O jornal tem periodicidade irregular e é impresso em gráfica cooperativa.
Impresso em papel jornal, formato tablóide, 8 páginas, com capa em cores, tem sido
impresso em média a cada bimestre e já conta com alguma identidade comunitária. A
Associação de Moradores do Bairro tornou-se, neste terceiro ano do projeto, a principal
parceira e incentivadora da proposta, tendo sido articuladora, inclusive, de uma série de
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ações decisivas para a garantia de recursos destinados ao custeio do jornal.
Trabalham na proposta cerca de 10 pessoas da Universidade e outras tantas
duas dezenas de estudantes e profissionais, moradores do bairro, que cooperam a cada
nova edição. O chamamento a estas cooperações se dá de formas variadas, através do
trabalho em escolas e mesmo através da própria Associação de Moradores. Igrejas e
comunidades paralelas também tem feito grande ajuda ao projeto, inserindo-se no
cenário de uma comunicação alternativa.
O projeto do Jornal Primeiro Passo passou por diferentes momentos de vida
nestes quase três anos de existência, enfrentando, principalmente, a dificuldade bastante
comum em projetos congêneres que é a de mobilização das lideranças comunitárias e o
envolvimento de moradores do bairro em tarefas mais específicas de gestão.
O grande desafio atual do Jornal Primeiro Passo, superadas algumas
dificuldades anteriores por conta desses desafios, é criar uma regularidade na produção
do veículo, e sensibilizar um grupo mais atuante a assumir efetivamente a parte
executiva do projeto. A comunidade tem respondido favoravelmente ao desafio de
sugerir, criticar e apreciar o jornal como sendo um produto legitimamente criado no
bairro, pelo bairro e para o bairro, todavia, não parece disposta com o mesmo empenho
a um trabalho de coordenação e planejamento.
Algumas ações vêm sendo feitas pelos agentes fundadores do projeto,
principalmente os estudantes e professores que desde o seu surgimento atuam na tarefa
de coordenar aquele trabalho. Algumas destas ações dizem respeito ao incentivo dado
em escolas por professores e por pais em suas casas a moradores, estudantes, sobretudo,
que parecem evidenciar algum grau maior de lucidez e comprometimento com as causas
públicas.
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O jornal Primeiro Passo revigora-se a cada nova edição também pela
qualidade e natureza de suas pautas, pela característica singular de seu projeto editorial
e de sua expressão textual e tem feito presença forte até mesmo diante de meios
convencionais da cidade, chegando a disputar algumas frentes de produção de pauta e
alertar profissionais de comunicação para temas mais cotidianos e histórias de vida de
pessoas comuns, gente simples e o cotidiano das comunidades periféricas.
Não fosse tão somente o desafio institucional no que se reconhece firmada a
Unipampa que também tem curta história ainda de vida, esta iniciativa soma como
pontos favoráveis ao seu mérito de iniciativa comunitária a comprovação de que a
vontade, a disposição, afinal, para fazer acontecer um projeto de mídia alternativa e
cidadã é o capital maior de quem trabalha com jornalismo social.
Não tem sido fácil conviver com incerteza de uma edição futura sem garantias
de recursos quaisquer, mas ainda que se pague um alto preço de dificuldade de firmar
credibilidade por conta de uma eventual irregularidade em nossa circulação, nenhuma
soma em dinheiro, nenhuma garantia prévia, sustentaria mais forte um jornal com o
propósito deste que temos, que a satisfação da liberdade com que o grupo trabalha, sem
compromissos político-partidários, e fazendo a comunidade sentir-se dona do próprio
jornal efetivamente e não apenas em uma jogada de marketing editorial.
Temos a certeza de que o jornal pode contribuir decisivamente para a
formação de leitores e reverter o quadro atual, a que chamamos de exclusão midiática
porque afora o rádio e a televisão, menos de 2% da população tem internet e menos de
30% é leitora de mídia impressa, contra quase 90% de telespectadores e mais de 93% de
ouvintes de rádio, conforme pesquisa feita por estudantes de Jornalismo da Unipampa.
Resta saber se a comunidade acolhe o desafio de mudar esta realidade
estatística. Queremos crer que sim, pelo que entendemos um jornal só não é mais lido
porque seus leitores tem pouca identificação com o produto em primeiro lugar e com a
leitura propriamente dita, em segundo. Isto é, a inserção dos jornais impressos em
comunidades interioranas, de pouca escolaridade, é muito antes uma questão cultural e
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sociológica que propriamente econômica, como já afirmamos.
Os sujeitos implicados no processo precisam ter consciência desse papel
transformador que executam e cumprem em suas comunidades, sob pena de as práticas
em mídia popular tornaram-se produto de tecnicismo ou empiricismo, sem causa, sem
motivação e sem reflexão sobre si mesmas.
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