Terceira Turma
RECURSO ESPECIAL N. 887.131-RJ (2006/0170895-7)
Relator: Ministro João Otávio de Noronha
Recorrente: Bolsa de Valores do Rio de Janeiro - BVRJ
Advogados: Joarez de Freitas Heringer e outro(s)
Carlos Eduardo Caputo Bastos
José Ricardo Pereira Lira e outro(s)
Advogada: Beatriz Donaire de Mello e Oliveira e outro(s)
Recorrente: Celton Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda
Advogado: Gian Maria Tosetti
Recorrido: Os mesmos
EMENTA
Processual Civil e Comercial. Corretora de valores. Regime de
liquidação extrajudicial. Embargos de declaração. Omissão. Súmula
n. 211-STJ. DL n. 7.661/1945. Art. 44, VI. Aplicação. Correção
monetária. Cabimento. Súmula n. 43-STJ. Ato ilícito absoluto e ato
ilícito relativo. Juros de mora. Citação.
1. Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito
da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal
a quo (Súmula n. 211-STJ).
2. Decretado o regime de liquidação extrajudicial de corretora de
valores, aplicável o disposto no art. 44, V, da antiga Lei de Falências
(DL n. 7.661/1945) às vendas a termo de títulos e valores mobiliários,
se tanto a comitente vendedora, atuando como intermediária, quanto
a compradora deixam de efetuar o pagamento respectivo no tempo e
na forma pactuados.
3. “É entendimento consolidado da Corte que a evolução dos
fatos econômicos tornou insustentável a não-incidência da correção
monetária, sob pena de prestigiar-se o enriquecimento sem causa
do devedor, constituindo-se ela imperativo econômico, jurídico e
ético indispensável à plena realização dos danos e ao fiel e completo
adimplemento das obrigações” (REsp n. 247.685-AC, relator Ministro
Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 5.6.2000).
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4. O enunciado da Súmula n. 43-STJ refere-se tanto ao ato ilícito
absoluto (extracontratual) quanto ao ato ilícito relativo (contratual).
Precedentes.
5. Conforme disposto no art. 18, alínea d, da Lei n. 6.024/1974,
decretada a liquidação extrajudicial da empresa, não há fluência de
juros enquanto não integralmente pago o passivo. No caso, porém,
não tendo havido recurso da parte interessada quanto ao ponto,
deve ser mantido o entendimento adotado no acórdão recorrido,
que determinou a incidência da norma contida no art. 219 do CPC
e, como consequência, fixou a fluência dos juros moratórios desde a
citação válida.
6. Recurso da primeira recorrente conhecido e parcialmente
provido. Recurso da segunda recorrente parcialmente conhecido e
desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal
de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir,
prosseguindo no julgamento, por unanimidade, conhecer do recurso especial
da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro - BVRJ e dar-lhe parcial provimento;
e, conhecer em parte do recurso especial da Celton Corretora de Títulos e
Valores Mobiliários Ltda e, nessa parte, negar-lhe provimento, nos termos do
voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso
Sanseverino e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator. Impedido o
Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Dr. Ricardo Ramalho Almeida, pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro BVRJ
Brasília (DF), 16 de maio de 2013 (data do julgamento).
Ministro João Otávio de Noronha, Relator
DJe 14.10.2013
328
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
VOTO-VISTA
O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1.- Foram dois processos, relativos a duas
ações ordinárias, envolvendo as mesmas partes, a BVRJ - Bolsa de Valores do
Rio de Janeiro e a Celton Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda, ambas
as ações em 1º Grau julgadas separadamente, contudo (embora antes declarada
a conexão, para julgamento conjunto, fls. 2.256), pelo mesmo Magistrado
(sentenças a fls. 2.275 e fls. 2.330-2.333) e, em 2º Grau, em um só julgamento
conjunto (Acórdão, fls. 2.460-2.468), pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro.
As ações são ligadas à crise ocorrida na bolsa de valores e mercado de ações
em junho de 1989.
No fulcro da controvérsia, segundo o relato da BVRJ, a Celton teria sido
uma ativíssima protagonista do escândalo conhecido por “Operações D-Zero”,
mediante operações denominadas “Zé com Zé”, artifício segundo o qual o
mesmo investidor vendia e comprava as mesmas ações para si mesmo, causando
prejuízos aos investidores de boa-fé, ante a inadimplência de corretoras de
títulos e valores mobiliários, entre as quais se destacaria a Celton, tendo a BVRJ
reparado seus prejuízos com haveres próprios e de seu Fundo de Garantia, mas,
tendo diversos investidores dado ordem de venda de ações por intermédio da
Celton, a DTVM - Capitânia Distribuidora de Títulos e Valores Imobiliários,
comprometeu-se a adquirir essas ações, mas, na data do vencimento, não
lhes pagou o preço, de modo que aludidos investidores vieram a ter as ações
restituídas pelo Fundo de Garantia da BVRJ, pela diferença entre a cotação
média das ações no dia anterior à restituição e o preço convencionado nas
operações de venda a termo, corrigido monetariamente.
Ainda no fulcro da controvérsia, a Celton alegou que a BVRJ, agindo de
má fé, teria lançado falácias contra ela visando a acobertar sua parcialidade no
agir em 1989, quando teria buscado soluções atípicas, privilegiando algumas
corretoras, bem como que havia sido reconhecida superavitária pela Comissão
de Inquérito do Bacen - Banco Central do Brasil, afastando-lhe a provocação de
danos ou prejuízos, e, ainda, por fim, levantando a indisponibilidade dos bens de
seus ex-administradores (cf. doc. fls. 205).
2.- No primeiro processo (Autos n. 1993.001.072495-3, sent. fls. 2.3302.335, datada de 27.2.2004), ação movida pela BVRJ contra a Celton, ação em
que interposto o presente Recurso Especial n. 887.131, tendo como recorrentes
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
e recorridas as mesmas litigantes BVRJ e Celson, na primeira ação, repita-se,
movida pela BVRJ contra a Celton, pediu a BVRJ “na forma e para os fins
previstos no artigo 27 da Lei n. 6.024/1974”, a procedência da ação “para
efeito de serem reconhecidos os aludidos créditos, no valor global histórico
de NCz$ 16.132.941,71 (...), para o devido pagamento, com o acréscimo de
correção monetária e juros legais a partir de quando incorridos pela Bolsa e/
ou da data em que se tornaram devidos, com a plena integração de todos os
montantes no quadro geral de credores da Ré” (fls. 30). Essa primeira ação,
foi julgada procedente por sentença (datada de 27.2.2004, fls. 2.330-2.333),
rejeitados Embargos de Declaração interpostos pela Celton, “para declarar o
reconhecimento do crédito em favor da autora (a BVRJ) e, via de consequência,
condenar a ré ao pagamento de NCZ$ 16.132.941,72, monetariamente
corrigida a partir do ajuizamento desta ação, mais juros legais de 0,5% (...) ao
mês, estes a contar da citação (...)” (fls. 2.333).
Interpostos apelação pela Celton (fls. 2.364-2.381) e recurso adesivo pela
BVRJ (fls. 2.387-2.389), foram ambos os recursos improvidos, com rejeição de
Embargos de Declaração de ambas as partes (fls. 2.494-2.500) pelo Acórdão ora
atacado (fls. 2.287-2.293) por intermédio dos presentes recursos especiais (sob o
n. 887.231-RJ), interpostos por ambas as partes.
3.- No segundo processo (autora a Celton, Autos n. 1996.001.006184-3,
fls. 2.449-2.557, sentença datada de 29.4.2004, fls. 2.549-2.557 ou 181-189),
movida pela Celton contra a Valia - Fundação Vale do Rio Doce de Seguridade
Social e Outras, entre as quais a Bolsa de Valores, ação de que provém o Agravo de
Instrumento n. 818.185-RJ, ora em julgamento conjunto (agravo esse que visa a
determinar a subida a este Tribunal de recurso especial interposto pela autora),
sustentou a ora Recorrente Celton que “antes do processo de liquidação extrajudicial adquiriu várias ações preferenciais nominativas da primeira empresa
demandada, depositando as denominadas ‘margens’ relativas a essa compra”,
mas “a Vale do Rio Doce logo após a referida liquidação solicitou ao liquidante
que promovesse a restituição das ações aos investidores”, porém, “mesmo após a
negativa do liquidante e antes da manifestação do Bacen, a Bolsa de Valores do
Rio de Janeiro, uma das empresas demandadas, em conluio com as demais, em
manifesta desobediência à lei, celebrou com elas, entre outubro e novembro de
1989 o denominado ‘termos de recebimento e outras obrigações’, mediante os
quais dispôs das ações da Vale do Rio Doce que integravam o ativo da sociedade
liquidada, devolvendo-as às fundações”, de modo que pretendeu “a declaração
de nulidade dos contratos e instrumentos negociais; entrega a massa liquidanda
330
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
de todas as ações que constituíam a carteira depositada na custódia da Bolsa de
Valores, ou, na sua impossibilidade, o valor de mercado dessas ações; pagamento
de dividendos que renderam as ações em questão desde o recebimento das
aludidas ações; e, por último, o ressarcimento solidário de perdas e danos e
lucros cessantes” (relatório da sentença, datada de 29.4.2004, fls. 2.549-2.550 –
ou fls. 181-182).
Essa ação movida pela Celton foi julgada improcedente, por sentença
diversa da proferida na primeira ação, mas que veio a ser confirmada pelo
mesmo Acórdão, em julgamento conjunto.
4.- No presente Recurso Especial, sustenta a recorrente Celton, como
resumido pelo voto do E. Relator, que:
VI) Dos recursos especiais
No Recurso Especial da Celton (fls. 2.502-2.533), fundado na alínea a do
permissivo constitucional, busca-se a reforma do r. acórdão a quo, sustentandose ofensa aos arts. 165, 458, I e II, do CPC, 145, IV, do CC/1916 (atual art. 166, V, do
CC/2002), 185 do CC, 31 da Lei n. 6.024/1974, 44 do Decreto-Lei n. 7.661/1945, 5º,
LX, e 93, IX, da CF.
Aduz, em síntese, que padece de nulidade a sentença por ter omitido, no
seu relatório, a menção à apresentação de contestação pela Celton e à suma
das razões ventiladas nessa peça e por ter incluído a contestação “juntamente
com os documentos a ela acostados, como se tivesse vindo e fizesse parte de
documentos da Autora, aqui Recorrente (BVRJ). Tudo foi englobado na seguinte
frase: ‘com a petição inicial vieram os documentos de fls. 32-2.259’ e, assim,
nenhuma referência existe naquela sentença sobre a resposta (contestação) da
ré/recorrente {Celton}, que está às fls. 255-302” (fl. 2.505).
Afirma-se, ademais, que a Bolsa de Valores não poderia, sem prévia autorização
da Celton, ter alienado “bens mobiliários da recorrente” {Celton} que estavam na
sua custódia” (fl. 2.507).
No apelo nobre da Bolsa de Valores (fls. 2.538-2.553), fundado nas alíneas a e c
do permissivo constitucional, busca-se a reforma da r. acórdão a quo, sustentandose ofensa à Súmula n. 43-STJ, ao princípio da vedação do enriquecimento ilícito e
aos arts. 458, II, 535, II, do CPC, 1º do Decreto-Lei n. 1.477/1976, 960 do CC/1916,
além de dissídio jurisprudencial.
Aduz-se, em síntese, que o acórdão a quo padece de omissões quanto aos arts.
46 da ADCT, 18, a, 27 da Lei n. 6.024/1974, 1º do Decreto-Lei n. 1.477/1976 e 960
do CC/1916. Anota-se que ele também possui contradições quanto à fixação do
termo inicial da correção monetária a partir do ajuizamento da ação, a despeito
da vedação do enriquecimento ilícito e da Súmula n. 43-STJ.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Assevera-se, ainda, que não há fundamento legal para que a correção
monetária do crédito da Bolsa de Valores incida a partir do ajuizamento da
presente ação, pois o seu termo inicial deve corresponder à data em que o crédito
se tornou exigível.
Insurge-se, outrossim, contra a incidência dos juros de mora a partir da citação
da Celton.
Às fls. 2.637-2.640, a Celton apresentou as suas contrarrazões, ao passo que a
Bolsa de Valores ofereceu as suas contrarrazões às fls. 2.642-2.663.
VII) Do fato novo:
Posteriormente, o Sr. Raul Pedroza Aguinaga, na qualidade de sóciocontrolador da recorrente Celton juntou petição e documento alegando fato
novo, em razão de o Banco Central do Brasil ter cessado a liquidação extrajudicial
e requer, ao final, a exclusão da recorrente Celton no polo passivo da ação (fls.
2.792-2.805).
5.- O voto do E. Relator, Min. Massami Uyeda, na trilha do que antes
julgara em decisão monocrática, dá provimento ao Recurso Especial, anulando o
processo a partir da sentença, sob a ementa que se segue:
Recurso especial. Nulidade da sentença e do v. acórdão estadual. Alegação
da segunda recorrente de violação aos artigos 165 e 458 do CPC na sentença.
Ocorrência. Alegação da primeira recorrente de violação dos artigos 458, inciso
II e 535, inciso II, do CPC no v. acórdão estadual. Prejudicado, embora pertinente,
ante a nulidade da sentença. Recurso especial da segunda recorrente provido e
prejudicado o recurso especial da primeira recorrente.
I - A apreciação e análise da contestação, quando do julgamento da ação
é essencial para a adequada apreciação imparcial e equânime por parte do
magistrado sentenciante.
II - Não é apropriado e não respeita a boa técnica processual, após a provocação
via embargos de declaração, remeter-se para a segunda instância matéria que
não foi tratada na sentença, suprimindo-se o duplo grau de jurisdição. Essa
prática. Essa prática ofende ao contido nos artigos 165 e 458 do CPC e ao devido
processo legal.
III - O efeito devolutivo da apelação, com o qual se possibilita que a Segunda
Instância possa reapreciar todos os pontos da lide (inicial, contestação e provas),
não afasta ou supre a necessidade de que a sentença de Primeiro Grau julgue a
matéria, pois somente pode haver o rejulgamento do que já foi julgado.
IV - A utilização de fundamento no sentido de que: “O relator não está obrigado
ao exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas apresentadas
pelas partes, quando já tenha formado juízo de convencimento, ainda que
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
contrário a tese da embargante.”, não pode servir de escudo para o julgamento
deixar de se pronunciar sobre questões relevantes, a exemplo de preliminares e
de prejudiciais de mérito.
V - A saudável prestação jurisdicional consiste no pronunciamento do
magistrado a respeito dos pontos fundamentais da ação, apresentados pelo autor
(inicial e provas do autor) e pelo réu (contestação e provas do réu), em especial
nas instâncias ordinárias, nas quais o conjunto fático-probatório é examinado,
pois para o e. Superior Tribunal de Justiça estão reservadas as eventuais
violações legais e de divergência jurisprudencial (art. 105, inciso III, letras a e b da
Constituição Federal), não se adentrando no exame de fatos, provas e cláusulas
contratuais (Súmulas n. 5 e 7-STJ).
VI - Recurso especial da segunda recorrente (Celton) provido e prejudicado o
recurso especial da primeira recorrente (Bolsa de Valores).
6.- O Voto do E. Min. Relator dá provimento ao Recurso Especial da
Celton, declarando a “nulidade da sentença de fls. 2.330-2.333 para que nova
seja proferida em seu lugar, em obediência ao contido nos artigos 165 e 458
do CPC, tornando-se sem efeito o v. acórdão recorrido, o qual não supriu as
nulidades acima apontadas, restando prejudicado o exame do recurso especial da
recorrente Bolsa de Valores”.
É o que se acrescenta ao Relatório do E. Min. Relator.
7.- Meu voto, com o maior respeito pelo cuidadoso voto do E. Min.
Relator, diverge, afastando as alegações de nulidade da sentença – e, indo além,
também de nulidade do Acórdão – de modo que, afastando a preliminar de
nulidade, entende dever-se passar ao julgamento das demais questões, como de
Direito, de modo a superar-se de vez o longo processo em que se digladiam as
partes há décadas.
A sentença, efetivamente, poderia ter sido mais explícita em enfrentar
as diversas e complexas questões trazidas pelo questionamento entre as
partes, mas a verdade é que contém todos os elementos necessários à validade
da manifestação jurisdicional, não se olvidando que, a seguir, veio acórdão
extremamente detido em examinar todas as questões existentes nos autos.
As críticas da recorrente Celton à sentença foram fixadas pelas alegações dos
Embargos de Declaração, que lhe apontaram os pretensos defeitos. Essas críticas,
no resumo do voto do E. Relator, que acolhe a alegação de nulidade, resumemse à omissão de enfoque do seguinte: “i) da contestação; ii) das preliminares
suscitadas na contestação; iii) da audiência de instrução; iv) da determinação de
prosseguimento em conjunto com os autos da Ação n. 96.001.006.184.184-3
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
movida pela Celton contra a Bolsa de Valores (despacho de fls. 2.256), proferindo
a sentença quando os autos da referida ação encontravam-se fora de Cartório;
v) a exclusão do valor já inscrito no quadro geral de credores; vi) sobre a prova
testemunhal e laudo dos assistentes”.
O acórdão analisou e rejeitou todas essas alegações, com cuidado e detalhe,
em julgamento bem motivado, que deve subsistir, afastando-se a perspectiva
de anulação de processo que vem de há longo tempo – causa mais que madura,
diante do que as partes devem encontrar o desfecho final do penoso digladiar.
i) Arguida na apelação a falta de referência explícita à sentença, o Acórdão
expressamente pronunciou-se sobre a alegação de nulidade, rejeitando-a e
consignando que a falta de referência não causou prejuízo às partes (fls. 2.461),
como, efetivamente, não causou.
O Acórdão, ainda, ao rejeitar Embargos de Declaração, esclareceu que,
tendo havido extravio dos autos, a ora Celton não juntou a cópia da contestação,
o que foi certificado pelo Cartório, só tendo essa cópia vindo aos autos trazida
pela Bolsa de Valores, como documento anexo à inicial de restauração de autos
(Acórdão, fls. 2.495).
De qualquer forma, ainda que sem referência expressa à contestação, a
verdade é que a sentença não decretou a revelia da Celton, nem lhe atribuiu
o grave efeito da confissão de matéria de fato (CPC, art. 319), nem julgou
antecipadamente com fundamento na revelia (CPC, art. 330, I).
Ao contrário, a sentença julgou detendo-se em examinar provas, analisando,
especificamente, a perícia, e efetuando expressa opção pelas informações
periciais constantes do resumo contábil tomado de empréstimo do trabalho
pericial produzido no outro processo (fls. 2.331-2.332 – com expressa referência
ao número das folhas desse documento, fls. 1.593, 8º Vol., fls. 2.332).
A sentença cuidou de expor que o julgador realizava opção assegurada pelo
princípio da liberdade na interpretação da prova, acolhendo a prova pericial que
destacou, invocando como arrimo o disposto nos arts. 131 e 436 do Cód. de
Proc. Civil.
Além disso, analisando o núcleo da questão central de que se originou
o processo, a sentença ressaltou que “cai por terra a assertiva lançada pela
empresa demandada quando tenta sustentar que os cancelamentos efetuados
pela empresa demandante não restituíram as partes ao statu quo ante” e frisou
que “de acordo com o laudo elaborado pelo expert, quem frustrou o retorno dos
334
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
litigantes ao estado anterior foi a própria empresa demandada, quando deixou
de restituir à autora as importâncias despendidas com a operação rotulada de
‘zé-com-zé’, objeto exatamente do pedido formulado na petição inicial” (fls.
2.332).
Ademais, o Acórdão ora recorrido voltou a examinar as matérias centrais,
cujo enfrentamento, aliás, consta da própria exaustiva ementa do Acórdão (fls.
2.460).
E afastou, com convicção, a sustentação de nulidade: “A douta sentença,
a despeito de relatar sucintamente, tendo em vista os numerosos volumes que
integram os autos, respondeu, suficientemente, às teses deduzidas pelas partes,
respeitou o contraditório e procedeu a instrução implementando provas pericial
e testemunhal requeridas pelas partes, considerando, afinal, suficientemente
provados os fatos constitutivos do direito do autor” (...). “Em tais circunstâncias,
não havendo prejuízo causado às partes, como no caso destes autos, incide
a norma do art. 250, parágrafo único, do CPC, que proclama: ‘pas de nulitté
sans grief’. / Por conseguinte, a r. sentença não profana os princípios basilares
do contraditório e ampla defesa (art. 5º da CRFB/1988), nem o provimento
em separado causou qualquer prejuízo às partes (art. 250, parágrafo único, do
CPC), razões pelas quais se rechaçam, desde logo, as preliminares deduzidas no
recurso” (fls. 2.461).
ii) As preliminares que se vêm na contestação, resumidas pela peça (fls.
255), não poderiam jamais vingar, entrosando-se com o mérito, enfrentado pela
sentença e pelo Acórdão, e tornando-se, diante das conclusões deste, aniquiladas,
glabras, inaptas a grassar vivas diante da força das conclusões vindas do mérito –
tal como fixado pela análise fulcral realizada pela sentença e pelo acórdão.
Como extrair ilegitimidade passiva ad causam (item I, fls. 255) da Celton,
se da análise pericial se extraía sua responsabilidade? Qual o efeito prático
que se poderia imaginar da intimação do Banco Central do Brasil (item II,
fls. 255)? De que valeria a intimação da C.V.M., sob invocação do art. 31 da
Lei n. 6.385/1976 (item III, fls. 255)? Denunciação da lide – genericamente
referida no art. 70 CPC, sem indicação do inciso – para quê? Qual o resultado
que se obteria neste processo – e que, aliás, não pudesse ser perseguido em ação
autônoma (item V, fls. 255)?
iii) Audiência e eventuais outras provas eram de solar inexpressividade,
diante da perícia e da massa de documentos trazidos ao processo, analisados
pelos julgados e base das conclusões a que chegaram.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
335
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O Acórdão, ademais, salientou que “o deslinde da demanda pelo douto
Juízo monocrático lastrou-se em prova pericial e documental, afigurando-se de
menor relevância, no contexto, a prova oral, motivo pelo qual não perece censura
o não destaque na r. sentença da prova testemunhal colhida em audiência,
considerando a natureza e a essência da lide destes autos assentar-se em prova
escrita e na lei” (fls. 243).
iv) Nem se deixe de ressaltar que, além de a sentença haver enfrentado o
cerne das alegações da Celton, veio, o mesmo Juízo, julgando o processo movido
por esta contra várias acionadas, inclusive a Bolsa de Valores, cuja apelação foi
julgada em conjunto pelo Acórdão ora recorrido, veio, a sentença, a debruçarse detida e mais alongadamente sobre as alegações da Celton, afastando-as –
julgamento aquele que não passou despercebido do Acórdão ora recorrido, o
qual assinalou que “Demais, a r. sentença do Feito n. 1996.001.006184-3, em
ação conexa proposta pela Apelante 1, proferida em separado, com fotocópia
juntadas a estes autos (fls. 2.322-2.330), não causou nenhum prejuízo às partes,
impondo sua apensação (fls. 2.334), a seguir, para fim de julgamento conjunto
das apelações interpostas” (fls. 2.461).
Na rejeição dos Embargos de Declaração, aliás, o Tribunal de origem
reafirmou, analisando detidamente, a inexistência das nulidades alegadas (fls.
2.494-2.500).
8.- Matéria superada, pois, na origem, deve, com o mais elevado respeito
ao voto do E. Relator, ser afastada a preliminar de nulidade, passando-se ao
julgamento das demais questões trazidas pelos recursos.
VOTO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Srs. Ministros, com a vênia do
eminente Ministro Massami Uyeda, acompanho integralmente o Sr. Ministro
Sidnei Beneti, seja quanto ao não conhecimento dos segundos embargos
declaratórios opostos pelo terceiro interessado, seja quanto à solução dada ao
recurso especial.
Inviável acolher-se a preliminar de nulidade por irregularidade constante
no relatório da sentença, quando esta já havia sido substituída pelo acórdão do
Tribunal, que enfrentou a questão, reconhecendo que o fato de a sentença não
ter mencionado a contestação e deixado de arrolar as alegações ali vertidas não
teria trazido prejuízo para a parte.
336
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Possível, então, prosseguir-se no julgamento, com enfrentamento das
demais questões trazidas pelos recursos.
Com renovadas vênias do eminente Ministro Massami, acompanho
integralmente o voto do Sr. Ministro Sidnei Beneti.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Trata-se, na origem, de ação
ordinária proposta em 1993 por Bolsa de Valores do Rio de Janeiro (BVRJ) contra
Celton Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda., na Vigésima Oitava
Vara Cível do Rio de Janeiro - RJ. Pretende a autora, primeira recorrente, o
reconhecimento de créditos que afirma ter em relação à segunda recorrente
e a consequente condenação desta ao pagamento da importância de NCZ$
16.132.941,72 (dezesseis milhões, cento e trinta e dois mil, novecentos e
quarenta e um cruzados novos e setenta e dois centavos), mais juros, correção
monetária e demais consectários legais (Processo n. 1193.001.072495-3).
Parte dos créditos reclamados seria resultante de saldo negativo coberto
pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro e verificado em conta-corrente da Celton
na data da decretação de sua liquidação extrajudicial. Referido sistema de contacorrente é adotado costumeiramente nas bolsas de todo o mundo e é utilizado
para liquidação financeira de operações. Nele as bolsas creditam e debitam,
diariamente, os valores referentes às operações realizadas nos seus pregões.
No caso dos autos, essa conta-corrente era mantida no BANERJ em razão de
convênio firmado entre a instituição financeira, a Bolsa de Valores do Rio de
Janeiro e as corretoras.
Outra quantia refere-se a desembolso feito pelo Fundo de Garantia da
Bolsa de Valores do Rio de Janeiro para cobrir dívidas decorrentes de operações
a termo de responsabilidade da Celton perante investidores.
Finalmente, a última parcela corresponderia a uma chamada de capital
deliberada em assembleia geral extraordinária por meio da qual as corretoras
integrantes da Bolsa – entre as quais se encontrava a Celton – obrigaram-se, cada
uma, a aporte financeiro no valor de NCZ$ 300.000,00, montante que não foi
pago pela recorrida.
Relata a primeira recorrente, Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, que tais
créditos teriam sido habilitados no procedimento de liquidação extrajudicial a
que foi submetida a recorrida, mas foram indeferidos pelo liquidante.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
337
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Já em juízo, o pedido foi julgado procedente em primeiro grau, com a
condenação da Celton ao pagamento do valor reclamado, monetariamente
corrigido a partir do ajuizamento da ação, mais juros legais de 0,5% ao mês a
contar da citação, além de custas e honorários de sucumbência.
Ambas as partes apelaram, sendo adesivo o recurso interposto pela Bolsa
de Valores. Em julgamento realizado em 23.8.2005, a Nona Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por unanimidade, prolatou
acórdão em cuja ementa se lê:
APELAÇÃO n. 33.280. Bolsa de Valores. Corretora. Operações fraudulentas. A
BVRJ ao invés de liquidar suspendeu e depois cancelou as operações rotuladas
Zé com Zé, no pregão de 2.6.1989, por terem sido consideradas fraudulentas, na
forma do artigo 89, da Resolução CMN n. 922/84, conforme comprovou a perícia.
Atendendo às instruções da Celton à Bolsa, os valores devidos por ela foram
repassados ao BMC, efetuando-se a sub-rogação na garantia representada pelas
ações bloqueadas em custódia como garantia do crédito da Bolsa em relação
à Celton, sendo o produto da venda levado a crédito da Celton, abatendo, em
parte o valor da dívida, levado a conhecimento do liquidante. Revela a perícia
que os débitos das operações canceladas foram efetuados até a data de 16.6.1989
gerando vultosos débitos da Celton no sistema BANERJ, cobertos com recursos
da Bolsa “Tudo, porém, antes da liquidação extrajudicial da Corretora, decretada
em 21.6.1989” detalhando que: “o cancelamento das operações só foi possível após
sindicâncias da BVRJ, da CVM e do Banco Central, sendo o registro contábil efetuado
posteriormente, porém, retroativamente à data da compensação; já os registros
bancários em conta corrente Convênio eram feitos no momento da compensação”.
Por isso, afiguram-se certos, líquidos e exigíveis o crédito cobrado na alínea a da
inicial. O recurso adesivo não merece prosperar, eis que, cuidando-se de dívida
de dinheiro, portanto ilícito relativo e não absoluto (Súmulas n. 43 e 54, do E.
STJ), impõe-se a correção monetária do valor apurado em liquidação, a partir do
ajuizamento da ação, para impedir-se o locupletamento injusto do devedor e
dos juros de mora, a contar da citação, por determinação legal (art. 219, do CPC),
observando-se a disposição do artigo 406, do Código Civil, desde o início de sua
vigência. APELAÇÃO n. 33.278. Revelam os autos que a autora/Celton não se
desincumbiu do ônus de demonstrar os alegados fatos que seriam constitutivos
de seu alegado direito (art. 333, I, do CPC), qual seja, a efetiva aquisição e
pagamento das ações cuja indenização reivindica nestes autos, evidenciando,
ao contrário, que nunca foi proprietária dos títulos cuja indenização pretende
receber. Não comprovou, ainda, em nenhum momento, o aporte de qualquer
soma para o pagamento das ações, nem tampouco depositou as margens de
segurança, razões pelas quais não consta consolidado no acervo patrimonial
abrangido pelo regime de indisponibilidade criado pela liquidação extrajudicial,
crédito de ações em seu nome, como bem proclamou a r. sentença destes autos.
Rejeição das preliminares. Desprovimento dos recursos.
338
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Não foram providos os embargos de declaração opostos por ambas as
partes. Transcreve-se a ementa respectiva:
Embargos declaratórios. Obscuridade, contradição e omissões inexistentes.
Rediscussão do julgado no intuito de fazer prevalecer as teses dos embargantes. Via
imprópria. Desprovimento dos recursos.
Contra o acórdão proferido na apelação, integrado por aquele relativo aos
embargos de declaração, foram interpostos recursos especial e extraordinário
também por ambas as partes.
Os recursos apresentados pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro foram
admitidos. Já os da Celton foram inadmitidos. O agravo de instrumento
interposto para destrancar o recurso especial foi, após marchas e contramarchas,
provido por meio de decisão proferida pelo Ministro Humberto Gomes de
Barros (Agravo de Instrumento n. 808.390-RJ), ratificada em agravo regimental
julgado em 25.8.2009, com acórdão publicado em 11.9.2009, transitado em
julgado.
Abro parêntese para registrar alguns fatos relativos a uma ação proposta
por Celton Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda. contra a Fundação Vale
do Rio Doce de Seguridade Social (Valia) e outros, entre os quais figura a Bolsa
de Valores do Rio de Janeiro, cuja tramitação ocorreu também na Vigésima Oitava
Vara Cível do Rio de Janeiro (Processo n. 1996.001.006184-3).
Nessa ação, a Celton afirmava que a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro,
mesmo após a decretação da liquidação extrajudicial pelo Banco Central do
Brasil e sem o consentimento do liquidante nomeado, em ofensa à lei, portanto,
devolvera às demais rés 530.000 ações preferenciais nominativas da Cia. Vale
do Rio Doce integrantes do acervo patrimonial da sociedade liquidanda que se
encontravam custodiadas na Bolsa.
Afirmava ainda a Celton que adquirira tais ações poucos dias antes da
decretação da sua liquidação extrajudicial e que depositara também as “margens”
relativas a essas compras, esclarecendo que ditas margens correspondem a
depósito exigido para garantir oscilações na cotação das ações quando as
compras se realizam a termo.
Pedia a Celton, ao final, fosse reconstituída sua carteira de ações, com as
bonificações e os desdobramentos ocorridos, ou indenização correspondente,
e com juros, dividendos e lucros cessantes decorrentes, segundo ela, do ilícito
praticado.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
339
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O registro que ora faço é importante porque, na ação proposta pela Bolsa
de Valores do Rio de Janeiro contra a Celton, cujo recurso ora se aprecia, discute-se
essa questão da devolução das ações à Valia e a outros investidores que foram
os vendedores das ações negociadas a termo. No item 2.1.2 das razões deste
recurso especial, a própria Celton afirma serem essas ações as “mesmíssimas”
referidas em ambas as demandas.
Eventual procedência do pedido da Celton, por isso, teria implicações
diretas no resultado da ação cujo recurso se encontra em julgamento.
O pedido foi julgado improcedente, no entanto. Foi interposta apelação
pela Celton.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro decidiu, num mesmo
acórdão, os recursos de apelação referentes a ambas as ações, conforme se viu
da transcrição da ementa feita anteriormente (vide referências às Apelações n.
33.280 e 33.278, sendo a última a que diz respeito à ação proposta pela Celton).
Contra o acórdão regional e o dos embargos de declaração opostos, foi
interposto recurso especial pela Celton, que foi inadmitido. Do agravo de
instrumento apresentado contra o despacho que inadmitiu o recurso especial
não se conheceu por ausência de peças obrigatórias, decisão adotada no AgRg
no AgRg no Ag n. 818.185-RJ, já transitada em julgado.
Em resumo: transitou em julgado o acórdão regional na parte relativa
à Apelação Cível n. 33.278. Menciono, porque importante também para o
deslinde do recurso especial em julgamento, excerto do voto do relator (fls.
2.580):
Em tais circunstâncias, revelam os autos que a autora/Celton não se
desincumbiu do ônus de demonstrar os alegados fatos que seriam constitutivos
de seu alegado direito (art. 333, I, do CPC), qual seja, a efetiva aquisição e
pagamento das ações cuja indenização reivindica nestes autos, evidenciando,
ao contrário, que nunca foi proprietária dos títulos cuja indenização pretende
receber.
Não comprovou, ainda, em nenhum momento, o aporte de qualquer soma
para o pagamento das ações, nem tampouco depositou as margens de segurança,
razões pelas quais não consta consolidado no acervo patrimonial abrangido pelo
regime de indisponibilidade criado pela liquidação extrajudicial, crédito de ações
em seu nome, como bem proclamou a r. sentença (fls. 2.556-2.557) destes autos.
Feito o registro, fecho o parêntese.
340
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Esse o relatório que entendi necessário e suficiente para o bom
equacionamento da controvérsia.
VOTO
O Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Passo à análise do REsp n.
887.131-RJ, em que ambas as litigantes atacam o acórdão estadual na parte
relativa à Apelação Cível n. 33.280.
Aprecio, em primeiro lugar, o recurso especial interposto por Celton
Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda., segunda recorrente.
O recurso especial foi interposto com base no art. 105, III, alínea a,
da Constituição Federal e fundamenta-se na contrariedade aos seguintes
dispositivos: arts. 165 e 458, II, do Código de Processo Civil; 145 e 145, VI,
do antigo Código Civil (arts. 166 e 166, V, do atual Código Civil); 31 da Lei
n. 6.024/1974; 44 do DL n. 7.661/1945 (Lei de Falências vigente à época).
Sustenta-se ainda ofensa ao disposto nos arts. 5º, LV, e 93, IX, da Constituição
Federal.
Relativamente à pretensa violação dos dispositivos do Código de Processo
Civil e do Código Civil referidos, com base no que se pediu a anulação do
acórdão impugnado, observo que a controvérsia já foi definida na sessão de
julgamento de 9.10.2012, quando ainda integrava esta Turma e atuava como
relator do processo o Ministro Massami Uyeda, oportunidade em que, por
maioria, decidiu-se pela superação daquela preliminar e pelo retorno dos autos
ao relator para apreciação do mérito.
Com a aposentadoria do Ministro Massami, o feito foi a mim atribuído.
No que toca à alegada ofensa aos dispositivos da Constituição Federal,
anoto que a discussão não cabe em sede de recurso especial, mas em recurso
próprio a ser encaminhado ao Supremo Tribunal Federal. A jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça é pródiga nesse sentido, o que torna despicienda a
transcrição de precedentes. Nada a prover no ponto.
Verifico, quanto à alegação de negativa de vigência do art. 31 da Lei n.
6.024/1974, que a matéria não está prequestionada. Embora arguida nas razões
de apelação da segunda recorrente, o decisum objurgado deixou de apreciar a
questão em termos expressos ou mesmo com a profundidade necessária para
se tê-la como implicitamente debatida. Incidência da Súmula n. 282-STF (“É
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
341
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a
questão federal suscitada”).
Com efeito, não basta que a parte invoque a aplicação de dispositivos
legais que entende pertinentes à solução do conflito. É necessário que sobre
eles se manifeste expressamente o órgão julgador (prequestionamento explícito)
ou, ao menos, que a matéria neles tratada seja ampla e claramente discutida
(prequestionamento implícito) para que do recurso especial se conheça.
No caso dos autos, embora de maneira vaga, a segunda recorrente tentou,
por meio de embargos de declaração, que o Tribunal de origem se manifestasse
a respeito de diversos pontos que, a seu ver, ficaram sem solução, entre os quais
eventual “negativa de vigência das normas da Lei n. 6.024/1974”.
Veja-se que, nem mesmo naquela peça processual, a segunda recorrente
aduziu, de forma precisa, quais dispositivos da Lei n. 6.024/1974 o órgão
julgador deveria abordar.
A Turma julgadora, ao entendimento de que o acórdão hostilizado não
padecia dos vícios de obscuridade, contradição ou omissão, negou provimento
aos referidos embargos de declaração e em nenhum momento promoveu debate
sobre o dispositivo legal invocado pela parte.
Caberia à recorrente, nessas circunstâncias, buscar a declaração de nulidade
do acórdão por violação do art. 535 do CPC, ao invés de alegar a negativa
de vigência do dispositivo legal não prequestionado. Não o fazendo, atraiu a
aplicação do disposto na Súmula n. 211-STJ (“Inadmissível recurso especial quanto
à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo
tribunal a quo”).
De qualquer forma, só teria sentido discutir a aplicação da norma contida
no art. 31 da Lei n. 6.024/1974 se as ações que a segunda recorrente alega
terem sido indevidamente retiradas dos seus ativos fossem realmente de sua
propriedade.
Eis o texto do mencionado dispositivo legal:
Art. 31. No resguardo da economia pública, da poupança privada e da
segurança nacional, sempre que a atividade da entidade liquidanda colidir com
interesses daquelas áreas, poderá o liquidante, prévia e expressamente autorizado
pelo Banco Central do Brasil, adotar qualquer forma especial ou qualificada de
realização do ativo e liquidação do passivo, ceder o ativo a terceiros, organizar ou
reorganizar sociedade para continuação geral ou parcial do negócio ou atividade
da liquidanda.
342
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
No entanto, conforme consta do acórdão recorrido na parte que cuida da
Apelação Cível n. 33.278 e que tem por objeto “as mesmíssimas” ações tratadas
no presente recurso, nas palavras da própria Celton, ficou evidenciado que esta
“nunca foi proprietária dos títulos cuja indenização pretende receber”, tendo atuado
apenas como intermediária nas operações de compra e venda a termo das ações
preferenciais da Cia. Vale do Rio Doce.
A propósito do tema, o Ministério Público Federal, em parecer da lavra do
professor GUSTAVO TEPEDINO, assim se expressou no Recurso Criminal
n. 99.02.09052-4, interposto contra decisão que rejeitara denúncia formulada
contra os representantes da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro por, supostamente,
terem negociado os títulos em referência que se encontravam custodiados
naquela associação (fls. 2.331-2.338 dos autos da Apelação Cível n. 33.278):
Posta a questão nestes termos, vê-se que andou bem o juízo monocrático, ao
rejeitar a denúncia, restando evidente, por outro lado, terem sido induzidos em
clamoroso erro a Justiça Pública e o renomado criminalista signatário do parecer
em que se fundamentou a denúncia.
O equívoco decorre da falsa premissa segundo a qual a corretora Celton,
intermediária das seis operações a termo destinadas à venda de papéis à
Capitânea, e que sofreu liquidação extrajudicial, seria proprietária das ações
objeto do contrato de compra e venda, custodiadas junto à Bolsa de Valores.
Dito diversamente, considerou-se que as ações objeto da venda pertenciam aos
ativos da Corretora no momento da decretação pelo Banco Central da liquidação
extrajudicial.
[...] Ora, no direito brasileiro, como é de correntia sabença, os contratos
translativos de propriedade não têm eficácia real, limitando-se a produzir efeitos
obrigacionais. Vale dizer que, com a compra e venda, o vendedor se obriga
a transferir os bens no termo pré-fixado e mediante o pagamento do preço,
sendo somente a traditio, em se tratando de bens móveis, ou o registro do título
translativo – a transcrição do título, como se afirma com base no sistema anterior
– no caso de bens imóveis, capazes de transferir o domínio.
Tais considerações, que por tão elementares dispensam a remissão aos artigos
do Código Civil pertinentes, suscitam duas inarredáveis conclusões. Em primeiro
lugar: as ações postas em custódia junto a Bolsa de Valores, no contrato a termo,
permanecem na propriedade dos vendedores até o momento em que, com o
adimplemento do preço, são transferidas aos compradores. Em segundo lugar – e
mais importante: a Bolsa de Valores, diante do não pagamento do preço pelos
compradores no vencimento antecipado, ao restituir aos vendedores as ações que
lhe pertencem, não deflagrou o tipo penal supracitado, já que entregou os bens
aos seus proprietários, sendo impossível, por isso mesmo, falar-se tecnicamente
em negociação, como quis, na previsão do tipo, o legislador penal.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
343
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Já no que diz respeito à alegação de negativa de vigência do art. 44 da
antiga Lei de Falências, subsidiariamente aplicável às liquidações extrajudiciais,
observo que o Tribunal estadual adotou a correta interpretação do dispositivo
legal no caso concreto.
Com efeito, realizada a venda a termo das ações da Cia. Vale do Rio Doce,
tendo como intermediária a Celton e como compradora a Capitânea Distribuidora
de Títulos e Valores Mobiliários, sobrevindo o inadimplemento de ambas, a Bolsa
de Valores do Rio de Janeiro, atendendo a pedido das vendedoras, devolveu-lhes
os títulos que estavam sob sua custódia e as indenizou pela diferença entre o
valor daqueles títulos na data do contrato de compra e venda e aquele vigente na
data da devolução, utilizando recursos do seu fundo de garantia, sub-rogando-se
o direito das vendedoras.
O procedimento adotado pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro foi
completamente aderente ao que diz o art. 44, V, da Lei de Falências, in verbis:
Art. 44 - Nas relações contratuais, abaixo mencionadas, prevalecerão as
seguintes regras:
[...]
V - Tratando-se de coisas vendidas a termo, que tenham cotação em Bolsa
ou mercado, e não se executando o contrato pela efetiva entrega daquelas e
pagamento do preço, prestar-se-á a diferença entre a cotação do dia do contrato
e a da época da liquidação.
Manifestando-se nos autos na qualidade de amicus curiae, afirmou a
Comissão de Valores Mobiliários (fls. 2.372-2.376 dos autos da Apelação Cível
n. 33.278):
[...] o que a BVRJ fez foi atender à reclamação dos lesados, mediante pedido
ao Fundo de Garantia, conforme a legislação prevê. É um procedimento
administrativo regular. Ressarciu os vendedores do prejuízo e se sub-rogou no
seu direito, na massa da liquidanda. [...] Não há irregularidade na atuação da BVRJ.
Por sua vez, o Ministério Público Federal, no parecer do professor
GUSTAVO TEPEDINDO, já mencionado, concluiu:
[...] Visto por outro ângulo, verifica-se que a restituição, praticada pela Bolsa
de Valores, equivale à espécie de obrigação de dar, determinada pelo DecretoLei n. 7.661/1945, no art. 44, inciso V, consistente na entrega do bem ao seu
proprietário, não se confundindo com a disposição, associada à transferência de
propriedade.
344
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Também quanto a esse aspecto, nada há a prover.
Acrescente-se que o acórdão recorrido, em todas as questões levantadas nas
razões de apelação, pautou sua fundamentação em premissas fáticas basicamente
extraídas da perícia realizada. Incabível, também por isso, a revisão do julgado,
como decorrência do contido na Súmula n. 7-STJ (“A pretensão de simples
reexame de prova não enseja recurso especial”).
Ante o exposto, conheço em parte do recurso especial interposto por Celton
Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda. para negar-lhe provimento.
Analiso, agora, o recurso interposto pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro
com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal.
Ao apreciar a apelação adesiva interposta pela ora recorrente, a Turma
julgadora assim se manifestou:
Pugna a apelante 2, em recurso adesivo (fls. 2.285-2.289) a reforma da
r. sentença, para que dela conste que o valor da condenação corrigido,
monetariamente e juros legais, na forma postulada na inicial, a partir do momento
em que o débito da Celton se tornou exigível, conforme, identificado no laudo
pericial, tão logo foi franqueada à Bolsa a cobrança judicial contra a Celton, no
prazo e na forma determinados na Lei n. 6.024/1974.
Cuidando-se de dívida de dinheiro, portanto, ilícito relativo e não absoluto
(S. 43 e 54, do E. STJ), impõe-se a correção monetária do valor apurado em
liquidação, a partir do ajuizamento da ação, para impedir-se o locupletamento
injusto do devedor e dos juros de mora, a contar da citação, por determinação
legal (art. 219, do CPC), observando-se a disposição do art. 406, do Código Civil,
desde o início de sua vigência.
Contra essa decisão, argui a recorrente violação dos arts. 458, inciso II, e
535, inciso II, do CPC, bem como negativa de vigência do art. 18, letra a, da Lei
n. 6.024/1974, do art. 1º do Decreto-Lei n. 1.477/1976 e do art. 960 do Código
Civil de 1916, além de divergência jurisprudencial.
Sustenta a primeira recorrente que, durante quase quatro anos, ficou
impedida de acionar judicialmente a recorrida em obediência à norma contida
no art. 18, letra a, da Lei n. 6.024/1974, que veda o ajuizamento de ações contra
a sociedade liquidanda enquanto não houver sido publicado o quadro geral de
credores definitivo.
Argumenta que, de 1989 a 1993, quando finalmente pôde ajuizar a presente
demanda, a variação do INPC foi superior a seis milhões por cento e que privá-
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
345
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
la da correção monetária desse período importaria em propiciar à recorrida
injustificável enriquecimento sem causa.
Invoca, em prol da sua tese, ainda a Súmula n. 43-STJ (“Incide correção
monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo”).
Quanto aos juros, lembra que o próprio acórdão teria reconhecido a
existência, a certeza e liquidez dos créditos devidos pela Celton e argumenta que
“as parcelas que compõem a dívida da Recorrida deveriam ter sido por esta honradas
na ocasião em que efetuados os correspondentes lançamentos a débito na contacorrente do Sistema BANERJ de liquidação financeira de operações, constituindo-se a
Recorrida em mora, diariamente, em função dos saldos negativos por ela não honrados
e cobertos com aportes de recursos da Recorrente”.
E continua: “[...] ainda que assim não fosse, isto é, ainda que a constituição
em mora dependesse de ato posterior (o que não foi o entendimento do v. acórdão,
como se verá a seguir), o fato é que a própria habilitação do crédito da Recorrente no
processo de liquidação extrajudicial, ocorrida logo em seguida à decretação do regime
de liquidação, em 21.6.1989, já teria, de todo o modo, caracterizado plenamente uma
interpelação, isto é, um ato de cobrança da dívida e de constituição do devedor em
mora, na forma do disposto na segunda parte do mesmo artigo 960 do Código Civil
de 1916 (‘Não havendo prazo assinado, começa ela [a mora] desde a interpelação,
notificação ou protesto’)”.
Entendo caber parcial razão à recorrente.
De fato, é entendimento antigo deste Tribunal que a correção monetária
nada acresce ao valor do débito, mas evita a corrosão do poder aquisitivo da
moeda pelo processo inflacionário. São célebres as decisões de lavra do Ministro
Sálvio de Figueiredo Teixeira nesse sentido. Cito, como exemplo:
Direitos Processual Civil e Econômico. Seguro de vida. Correção monetária.
Atualização. Termo a quo. Recurso Especial. Pressupostos. Ausência. Recurso não
conhecido.
I - Sendo a correção monetária mero mecanismo para evitar a corrosão do
poder aquisitivo da moeda, sem qualquer acréscimo do valor original, impõese que o valor segurado seja atualizado desde a sua contratação, para que a
indenização seja efetivada com base em seu valor real, na data do pagamento.
II - É entendimento consolidado da Corte que a evolução dos fatos econômicos
tornou insustentável a não-incidência da correção monetária, sob pena de
prestigiar-se o enriquecimento sem causa do devedor, constituindo-se ela
imperativo econômico, jurídico e ético indispensável à plena indenização dos
346
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
danos e ao fiel e completo adimplemento das obrigações. (REsp n. 247.685-AC, DJ
de 5.6.2000.)
Ademais, no caso dos autos, o ajuizamento da ação só se tornou possível
quatro anos após o desembolso dos valores pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro,
dada a demora na publicação do quadro geral de credores da recorrida, havendo
impossibilidade legal de acionamento da devedora antes daquela data, em razão
do disposto da Lei n. 6.024/1974, como apontado pela primeira recorrente.
A Súmula n. 43-STJ ampara plenamente a pretensão, uma vez que seu
enunciado refere-se tanto ao ato ilícito absoluto (extracontratual) quanto ao ato
ilícito relativo (contratual), ao contrário do que decidiu o Tribunal estadual. Cito
como precedentes os acórdãos proferidos nos REsp n. 24.865-0-SP e 31.094-9SP, ambos relatados pelo Ministro Nilson Naves.
Como consequência, entendo que a correção monetária deverá incidir
a partir da ocorrência de saldos devedores não cobertos na conta-corrente da
Celton, mantida, à época, no BANERJ.
No que diz respeito aos juros de mora, no entanto, deve-se manter o
entendimento adotado no acórdão recorrido.
Na verdade, estabelece o art. 18, alínea d, da Lei n. 6.024/1974:
Art. 18. A decretação da liquidação extrajudicial produzirá, de imediato, os
seguintes efeitos:
[...]
d) não fluência de juros, mesmo que estipulados, contra a massa, enquanto
não integralmente pago o passivo.
No entanto, como não houve recurso por parte da Celton quanto à data
do início da contagem dos juros de mora, deve ser mantida aquela definida no
acórdão recorrido, entendimento que, aliás, não discrepa da jurisprudência desta
Corte, como se vê da ementa abaixo:
Liquidação Extrajudicial. Correção monetária. Juros.
1. Os débitos resultantes de decisão judicial, das empresas submetidas a
liquidação extrajudicial, devem ser corrigidos desde o vencimento da obrigação
ou do ajuizamento da ação. Princípio geral da Lei n. 6.899/1981, que não sofreu
restrição com a superveniência do Dec. Lei n. 2.278/1985.
2. Ajuizada ação de adimplemento de obrigação descumprida pela empresa
em liquidação, incide a regra processual sobre a mora (art. 219 CPC) e, como
consequência, fluem os juros moratórios desde a citação válida.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
347
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Recurso não conhecido. (REsp n. 48.606-8-SP, relator Ministro Ruy Rosado de
Aguiar, DJ de 29.8.1994.)
Ante todo o exposto, conheço parcialmente do recurso interposto por Celton
Corretora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda. e nego-lhe provimento. Conheço
do recurso interposto pela Bolsa de Valores do Rio de Janeiro e dou-lhe parcial
provimento, na forma estabelecida na fundamentação retro.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.152.849-MG (2009/0157602-6)
Relator: Ministro João Otávio de Noronha
Recorrente: Lucas Monteiro Machado Neto e outros
Advogado: Rita Câmara Elian e outro(s)
Recorrente: Maternidade Octaviano Neves S/A
Advogado: Rafael Alkmim Sousa e outro(s)
Recorrido: Os mesmos
EMENTA
Recurso especial. Direito Societário. Violação do art. 535 do
CPC. Não ocorrência. Sociedade anônima. Assembleia geral. Assunto
omisso na publicação da ordem do dia. Nulidade da deliberação.
Higidez da assembleia. Ações preferenciais. Voto contingente.
Desnecessidade de publicação da aquisição de direito a voto. Acordo
de acionistas. Acordo de voto em bloco. Limitação aos votos de
vontade. Impossibilidade quanto aos votos de verdade.
1. Não viola o art. 535 do CPC acórdão que, integrado por
julgado proferido em embargos de declaração, dirime, de forma
expressa, congruente e motivada, as questões suscitadas nas razões
recursais.
348
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
2. Da convocação para a assembleia geral ordinária deve constar
a ordem do dia com a clara especificação dos assuntos a serem
deliberados.
3. A votação de matéria não publicada na ordem do dia implica
nulidade apenas da deliberação, e não de toda a assembleia.
4. Quando da convocação para a assembleia geral ordinária,
não há necessidade de publicação da aquisição temporária do direito
de voto pelas ações preferenciais (art. 111, § 1º, da LSA – voto
contingente).
5. O detentor da ação preferencial que não recebeu seus
dividendos conhece essa situação e deve, no próprio interesse, exercer
o direito que a lei lhe concede. Ao subscrever quotas de capital, o
acionista precisa conhecer as particularidades das ações que adquire,
não podendo arguir o desconhecimento dos termos da lei.
6. O acordo de acionistas não pode predeterminar o voto sobre
as declarações de verdade, aquele que é meramente declaratório da
legitimidade dos atos dos administradores, restringindo-se ao voto no
qual se emita declaração de vontade.
7. Recurso especiais desprovidos.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal
de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por
unanimidade, negar provimento aos recursos especiais, nos termos do voto do
Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo
Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Sidnei Beneti.
Brasília (DF), 7 de novembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro João Otávio de Noronha, Relator
DJe 18.11.2013
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
349
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RELATÓRIO
O Sr. Ministro João Otávio de Noronha: Trata-se de recursos especiais
interpostos por Lucas Monteiro Machado Neto e Outros e por Maternidade
Octaviano Neves S/A, ambos com fundamento no art. 105, inciso III, alínea a, da
Constituição Federal.
Na origem, os primeiros recorrentes, acionistas da referida maternidade,
ajuizaram ação para ver anuladas as deliberações tomadas na assembleia geral
ordinária (AGO) realizada em 29.4.2005. Apontaram as seguintes nulidades:
a) irregularidade na convocação da AGO: omissão sobre a deliberação da
destinação do lucro e distribuição de dividendos na ordem do dia;
b) vício na convocação e instalação da AGO: ausência de publicidade no
que se refere à aquisição do direito de voto pelos acionistas preferenciais;
c) aprovação irregular das contas da administração: aprovação mediante
votação dos próprios administradores por meio de acordo de acionistas; e
d) nulidade da deliberação quanto à distribuição de dividendos.
Em primeira instância, o pedido foi julgado parcialmente procedente
para declarar a nulidade das deliberações no que se refere à distribuição de
dividendos e à aprovação das contas dos administradores.
Ambas as partes apelaram, e o Tribunal a quo manteve a sentença em
acórdão assim ementado:
Declaratória. Sociedade anônima. Assembléia geral ordinária. Convocação
pública. Ordem do dia. Omissão de matéria a ser deliberada. Votação. Questão
decidida. Nulidade. Ação preferencial. Direito ao sufrágio. Prazo legal decorrido.
Aquisição imediata. Acordo de acionistas. “Voto de verdade”. Aprovação de contas.
Vedação. O regime de convocação pública tem por finalidade permitir que o sócio
tome conhecimento prévio da realização da AGO - Assembléia Geral Ordinária,
possibilitando que os titulares das quotas verifiquem a conveniência ou não de
sua presença, razão pela qual, deve ser dada ciência aos interessados quanto às
questões que serão deliberadas no conclave. Caso ocorra a votação de alguma
matéria que não foi mencionada no edital, somente aquela questão específica
deve ser considerada nula, permanecendo hígidas as demais decisões tomadas
em atendimento às determinações legais. Nas ações preferenciais, transcorrido o
prazo estipulado no artigo 111, § 1º, da Lei n. 6.404/1976 sem que haja rateio dos
dividendos, a aquisição do direito ao sufrágio é automática e imediata. É vedado
ao acordo de acionistas o chamado “voto de verdade”, como, por exemplo, aquele
que aprova as contas da administração (e-STJ, fl. 402).
350
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Os dois embargos declaratórios subsequentemente opostos foram
rejeitados (e-STJ, fls. 422 e 435).
Sustentam os primeiros recorrentes (autores) as seguintes teses:
a) violação do art. 535, II, do CPC, uma vez que o acórdão recorrido
não deliberou acerca de dois pontos: i) a omissão na pauta de publicação da
AGO quanto a alguns dos itens gera prejuízo na deliberação dos demais; e ii) a
publicidade é um princípio informativo da Lei n. 6.404/1976;
b) ofensa aos arts. 124, 132 e 135 da Lei das S.A. em razão do vício
na convocação para a AGO; o edital foi silente acerca da distribuição de
dividendos, mas houve deliberação acerca da matéria;
c) contrariedade ao art. 111, § 1º, da Lei das S.A., tendo em vista o vício na
convocação e instalação da assembleia, que foi realizada sem devida publicidade
acerca da aquisição do direito de voto pelas ações preferenciais.
Requer seja declarada a nulidade total da AGO de 29.4.2005.
As contrarrazões foram apresentadas (e-STJ, fls. 479-485).
A segunda recorrente alega afronta ao art. 118 da Lei das S.A., que admite
o acordo de voto em bloco para aprovação de contas.
Contrarrazões apresentadas às fls. 487-494.
Admitidos os recursos na origem (e-STJ, fls. 503-505), ascenderam os
autos ao STJ.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro João Otávio de Noronha (Relator): No presente caso,
autores e réu interpuseram recurso especial. O acórdão recorrido decretou
a nulidade de duas deliberações tomadas em assembleia geral ordinária:
distribuição de dividendos e aprovação das contas da administração.
Os primeiros recorrentes pretendem a declaração de nulidade de toda a
assembleia; a segunda recorrente pretende que seja mantida a aprovação das
contas.
Passo à análise dos recursos especiais:
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
351
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO ESPECIAL DE LUCAS MONTEIRO MACHADO
NETO e OUTROS
I - Art. 535, II, do CPC
Afasto a alegada ofensa ao art. 535, II, do CPC, porquanto a Corte
de origem examinou e decidiu, de modo claro e objetivo, as questões que
delimitaram a controvérsia, não se verificando nenhum vício que possa nulificar
o acórdão recorrido.
O órgão colegiado tratou das questões que lhe foram submetidas e foi
expresso ao negar a nulidade de toda a assembleia em razão de omissão pontual
na convocação. Foi expresso também ao reconhecer a importância da publicidade
dos atos.
Assim, ateve-se aos pontos relevantes e necessários ao deslinde do litígio,
adotando fundamentos cabíveis à prolação do julgado, ainda que que a parte não
concorde com as conclusões firmadas.
II - Arts. 124, 132 e 135 da Lei das S.A.
Os recorrentes afirmam que duas questões de direito deverão ser debatidas
no especial: a) “saber se a omissão quanto a algumas das matérias objeto
de deliberação em AGO importa na na nulidade de toda a AGO ou só na
deliberação tomada”; e b) “se, por ser a publicidade um princípio informativo da
6.404/1976, a aquisição do direito de voto na hipótese do artigo 111, § 1º da Lei
n. 6.404/1976 deve ser publicada” (e-STJ, fls. 444-445).
As instâncias ordinárias reconheceram que houve a convocação para a
assembleia geral ordinária. Contudo, a ordem do dia foi omissa em relação a
um ponto: a deliberação sobre a destinação do lucro líquido do exercício e a
distribuição de dividendos. Apesar da omissão, tais matérias foram discutidas na
reunião, por isso a sentença decretou a nulidade da deliberação com a devolução
dos dividendos efetivamente distribuídos.
A convocação para a AGO foi realizada adequadamente, havendo omissão
quanto a uma das matérias tratadas no concílio. Por óbvio, não se pode anular
toda a assembleia, mas tão somente aquele ponto acerca do qual não foi dada a
necessária publicidade.
Houve o chamamento público e foi dada aos acionistas a oportunidade de
avaliar o interesse em comparecer ao ato. Apenas a discussão referente ao lucro
352
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
líquido e dividendos não foi levado ao conhecimento prévio dos interessados,
razão pela qual somente essa deliberação deve ser invalidada.
A ocorrência da assembleia, em si, não foi prejudicada, tendo em vista que
os demais assuntos tratados constaram da ordem do dia. É nítido que a hipótese
retratada nos autos é de nulidade da deliberação, e não de toda a assembleia.
III - Art. 111, § 1º, da Lei das S.A.
Quanto à ausência de divulgação do direito de voto pelas ações
preferenciais, também não há reparos a fazer.
Como contrapartida das prerrogativas patrimoniais que detêm em face
das ações ordinárias do capital da empresa, as ações preferenciais, em princípio,
possuem restrições quanto ao direito de voto. Todavia, adquirem esse direito
na hipótese do art. 111, § 1º, da Lei das S.A., ou seja, quando “a companhia,
pelo prazo previsto no estatuto, não superior a 3 (três) exercícios consecutivos,
deixar de pagar os dividendos fixos ou mínimos a que fizerem jus”. O direito é
conservado até o pagamento dos dividendos atrasados.
No caso dos autos, essa ausência de pagamento foi verificada nos exercícios
de 2001, 2002 e 2003. Logo, foi descumprida a prioridade patrimonial, sendo
concedido aos preferencialistas o direito a voto até então limitado ou suprimido.
Todavia, não se exige que a aquisição do direito ao voto seja divulgada
por ocasião da convocação da AGO. Além do cumprimento das formalidades
do art. 133 da Lei n. 6.404/1976, o art. 124 arrola as informações que devem
constar da convocação para a assembleia e não inclui a informação pretendida
pelos recorrentes:
Art. 124 - A convocação far-se-á mediante anúncio publicado por 3 (três) vezes,
no mínimo, contendo, além do local, data e hora da assembléia, a ordem do dia, e,
no caso de reforma do estatuto, a indicação da matéria.
A publicidade que informa o regramento das sociedades diz respeito à
divulgação de atos e informações, e não de direitos legalmente expressos.
Como bem explicitado na sentença, o chamado voto contingente é
adquirido pela simples configuração fática da hipótese legal (art. 111, § 1º, da
Lei das S.A.). Transcorrido o prazo sem que haja pagamento dos dividendos, o
direito de voto é adquirido de forma automática e imediata, sendo desnecessário
informar aos acionistas por ocasião da convocação para a assembleia.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
353
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O detentor da ação preferencial que não recebeu seus dividendos conhece
essa situação e deve, no próprio interesse, exercer o direito que a lei lhe concede.
Ao subscrever quotas de capital, o acionista precisa conhecer as particularidades
das ações que adquire, não podendo arguir o desconhecimento dos termos da lei.
Logo, a não comunicação do direito de voto aos detentores das ações
preferenciais não enseja a nulidade da assembleia realizada.
IV - Conclusão no tocante ao recurso dos autores
Todas as questões abordadas no recurso especial foram primorosamente
tratadas na sentença e no acórdão, julgados que devem ser mantidos na sua
inteireza, com o desprovimento do presente recurso.
RECURSO ESPECIAL DE MATERNIDADE OCTAVIANO
NEVES S/A
I - Art. 118 da Lei das S.A.
O acórdão recorrido decidiu pela nulidade da aprovação de contas,
questão deliberada na AGO ora arguida. A recorrente pretende a reforma desse
entendimento, aduzindo ser permitido aprovar contas dos administradores por
voto do acordo de acionistas.
O acordo de acionistas, expressamente permitido no art. 118 da Lei das
S.A., é o pacto celebrado por acionistas em que é definido como cada parte
deve exercer determinados direitos sociais. O acordo possibilita a convergência
dos interesses dos acionistas da sociedade anônima, assegurando-lhes poder de
controle.
Leciona Modesto Carvalhosa:
Trata-se o acordo de acionistas de um contrato submetido às normas comuns
de validade de todo negócio jurídico privado, concluído entre acionistas de
uma mesma companhia, tendo por objeto a regulação do exercício dos direitos
referentes a suas ações, tanto no que se refere ao voto como à negociabilidade
das mesmas. (Acordo de Acionistas. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 9.)
O acordo pode ser de comando e defesa, de bloqueio ou de votos em bloco.
No presente caso, merece atenção o conteúdo do objeto do acordo de acionistas
para votos em bloco.
354
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
O voto é o instrumento de aferição do entendimento predominante
entre os acionistas com direito de participar das deliberações sociais. Há
distinção entre o voto de vontade, que envolve manifestação de vontade, e o
voto de verdade, que envolve a apreciação do sócio quanto à correspondência do
documento em apreciação e a realidade do objeto correspondente:
Acerca do tema, Fábio Ulhôa leciona:
Nem todo voto é uma manifestação de vontade. Quando a apreciação tem por
objeto as demonstrações financeiras, as contas dos administradores e os laudos
de avaliação, o voto exterioriza, a rigor, o entendimento do acionista quanto à
correspondência entre o conteúdo desses documentos e a realidade. A aprovação
significa que o acionista os considera fiéis ao respectivo objeto (o balanço retrata
o patrimônio e seus desdobramentos, a prestação de contas indica a regularidade
dos atos de administração, o laudo apresenta o valor de mercado do bem avaliado
etc.), e a reprovação, o inverso. Em vista disso, podem-se configurar dois tipos de
voto de acionistas, o de vontade e o de verdade. A distinção é muito importante,
porque possibilita distinguir entre a negociação lícita do exercício do direito de
voto (que somente pode dizer respeito à manifestação de vontade) e o crime de
venda de voto, tipificado no art. 177, § 2º, do CP (referente à de verdade). (Curso
de Direito Comercial, vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 309.)
Adiante, sintetiza:
O voto pode ser “de vontade” ou “de verdade”. No primeiro, o acionista manifesta
sua opção pela alternativa que mais lhe interessa entre as abertas na apreciação
da matéria. No último, exterioriza o seu entendimento acerca da fidelidade, ou
não, do documento em apreciação ao seu correspondente objeto.
Ao dispor acerca do acordo de acionistas, o jurista apregoa:
Em princípio, os acionistas podem contratar sobre quaisquer assuntos relativos
aos interesses comuns que os unem, havendo, a rigor, um único tema excluído
do campo de contratação válida: a venda de voto. É nula a cláusula de acordo
de acionista que estabeleça, por exemplo, a obrigação de votar sempre pela
aprovação das contas da administração, das demonstrações financeiras ou do
laudo de avaliação de bens ofertados à integralização do capital social. Também
é nula a estipulação de um acionista votar segundo a determinação de outro.
Quanto ao mais, inexiste vedação legal. Assim, sobre o exercício do voto de vontade
e demais aspectos das relações societárias, os acionistas podem livremente entabular
as tratativas que reputarem oportunas à adequada composição dos seus interesses
(op. cit., p. 315).
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
355
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A doutrina declara a invalidade do acordo de acionistas que tenha por
objeto o chamado voto de verdade, aquele que declara a legitimidade dos atos
dos administradores.
Essa é a linha de entendimento de Modesto Carvalhosa:
[...] a convenção de voto não pode ter por objeto voto de verdade, ou seja, aquele
que é meramente declaratória da legitimidade dos atos dos administradores. Tal
convenção constitui fraude à lei, pois não se pode predeterminar, através do voto,
a aprovação de atos de gestão, no pressuposto de sua inconformidade com o
interesse social, o interesse do estado e dos acionistas uti socii.
Restrito o objeto do acordo ao voto de vontade, este poderá abranger qualquer
matéria de natureza funcional [...], política [...] ou estrutural [...] (op. cit., p. 77).
Tratando das matérias que podem ser objeto do acordo de acionistas, José
Waldecy Lucena também discute a vedação aos acordos das declarações de
verdade:
Filiamo-nos à segunda corrente, assim entendendo que quaisquer matérias
podem ser objeto de acordos entre os acionistas, contanto que, como pactos
parassociais que são, obviamente não alterem o estatuto social, e, muito menos,
contenham disposições contra legem.
Costumam os autores, outrossim referir-se às matérias que não podem ser
objeto de acordo de acionistas. Assim, Celso de Albuquerque Barreto listou os
seguintes casos: (...) acordos que tenham por objeto as declarações de verdade
(aprovação de contas, etc.). (Das sociedades anônimas, vol. 1. Rio de Janeiro:
Renovar, 2009, p. 1.135-1.136.)
Não se pode permitir a predeterminação do voto sobre as declarações de
verdade, pois, tratando-se de forma de fiscalização dos atos de administração,
não deve ser exercida nos interesses de determinado grupo de acionistas.
Constatado que o voto do acordo de acionistas foi pela aprovação das
contas dos administradores da recorrente, deve ser reconhecida a sua nulidade,
nos termos do acórdão recorrido.
II - Conclusão no tocante ao recurso da maternidade
Deve ser mantido o acórdão atacado com o desprovimento do recurso
especial.
356
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
CONCLUSÃO
Ante o exposto, nego provimento aos recursos especiais.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.161.941-DF (2009/0204609-0)
Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
Recorrente: Juliana Almeida e Araújo e outro
Advogado: Renato Oliveira Ramos
Recorrido: Casanova Trajes A Rigor e Promoções S/C Ltda
Advogado: André Vicente Achefer Quintaes e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Direito do Consumidor. Indenização por danos
morais e materiais. Entrega de vestido de noiva defeituoso. Natureza.
Bem durável. Art. 26, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor.
Prazo decadencial de noventa dias.
1. A garantia legal de adequação de produtos e serviços é direito
potestativo do consumidor, assegurado em lei de ordem pública (arts.
1º, 24 e 25 do Código de Defesa do Consumidor).
2. A facilidade de constatação do vício e a durabilidade ou não
do produto ou serviço são os critérios adotados no Código de Defesa
do Consumidor para a fixação do prazo decadencial de reclamação de
vícios aparentes ou de fácil constatação em produtos ou serviços.
3. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil
constatação caduca 30 (trinta), em se tratando de produto não durável,
e em 90 (noventa) dias, em se tratando de produto durável (art. 26,
incisos I e II, do CDC).
4. O início da contagem do prazo para os vícios aparentes ou de
fácil constatação é a entrega efetiva do produto (tradição) ou, no caso
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
357
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
de serviços, o término da sua execução (art. 26, § 1º, do CDC), pois
a constatação da inadequação é verificável de plano a partir de um
exame superficial pelo “consumidor médio”.
5. A decadência é obstada pela reclamação comprovadamente
formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e
serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser
transmitida de forma inequívoca (art. 26, § 2º, inciso I, do CDC), o
que ocorreu no caso concreto.
6. O vestuário representa produto durável por natureza, porque
não se exaure no primeiro uso ou em pouco tempo após a aquisição,
levando certo tempo para se desgastar, mormente quando classificado
como artigo de luxo, a exemplo do vestido de noiva, que não tem uma
razão efêmera.
7. O bem durável é aquele fabricado para servir durante
determinado transcurso temporal, que variará conforme a qualidade
da mercadoria, os cuidados que lhe são emprestados pelo usuário,
o grau de utilização e o meio ambiente no qual inserido. Por outro
lado, os produtos “não duráveis” extinguem-se em um único ato de
consumo, porquanto imediato o seu desgaste.
8. Recurso provido para afastar a decadência, impondo-se o
retorno dos autos à instância de origem para a análise do mérito do
pedido como entender de direito.
ACÓRDÃO
A Terceira Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial,
nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Nancy Andrighi,
Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha.
Brasília (DF), 5 de novembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator
DJe 14.11.2013
358
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Trata-se de recurso especial
interposto com fundamento no artigo 105, inciso III, alínea a, da Constituição
Federal, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito e Territórios assim
ementado:
Civil. Indenização por danos materiais e morais. Relação de consumo. Alegação
de entrega pelo fornecedor de vestuário - Vestido de noiva com defeito. Bem não
durável. Art. 26, I, do CDC. Decadência.
1 - Nos termos do art. 26, I, do CDC, o consumidor tem 30 dias para reclamar pelos
vícios aparentes ou de fácil constatação em se tratando de serviço ou de produto não
durável, sob pena de decair do direito de fazê-lo.
2 - Recurso não provido (e-STJ fl. 162 - grifou-se).
Na origem, Juliana Almeida e Araújo e Outra, ora recorrentes, ajuizaram
ação declaratória de inexistência de débito cumulada com indenização por
danos morais e materiais em desfavor de Casanova Trajes A Rigor e Promoções
S/C Ltda., sob a alegação de que a empresa foi contratada para confeccionar
um vestido de noiva, entregando mercadoria com inúmeros defeitos, diverso do
produto encomendado e de qualidade inferior à contratada.
As autoras aduziram na inicial que
(...) A primeira Autora, em razão do seu casamento realizado no dia 5.8.2006,
comprou da Ré, sob encomenda, um vestido de noiva branco em zibeline e renda
cashmere, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).
O referido valor foi dividido em 6 (seis) parcelas, sendo a primeira de R$
2.000,00 (dois mil reais) e as restantes em R$ 1.600,00 (hum mil e seiscentos reais. E
o pagamento foi efetuado por intermédio de cheques emitidos pela segunda
Autora, mãe da primeira, todos com data de vencimento para o dia 15 de cada
mês, a partir de abril/2006 (doc. 02).
Chegando aqui, as Autoras foram obrigadas a contratar, urgentemente, um
respeitado estilista em Brasília - Sr. Paulo Araújo - para reparar e reformar o vestido,
especificamente para substituir o tecido, aplicar plissé e refazer o acabamento em
todo o contorno da barra, conforme se vê da nota fiscal em anexo (...) Em suma,
diante da má qualidade do serviço prestado, as Autoras sustaram o pagamento
dos últimos cheques entregues à Ré, no valor total de R$ 3.200,00 (três mil e
duzentos reais) e desembolsaram R$ 3.900,00 (três mil e novecentos reais) para
reparar e deixar o vestido em perfeito estado (e-STJ fl. 6 - grifou-se).
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
359
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Afirmaram que na “última prova, dia 27.7.2006”, constataram graves
defeitos no vestido contratado, e, apesar da reclamação, não houve nenhum
reparo imediato, motivo pelo qual, após a cerimônia de casamento, notificaram
formalmente a ré, em 21.8.2006, acerca dos alegados vícios. A contranotificação
da fornecedora, negando a existência de possíveis vícios, foi conhecida pelas
autoras em 31.8.2006, tendo sido a presente ação judicial proposta em 4.9.2006.
Ao final, requereram a procedência dos pedidos para ver declarada a
inexistência de crédito em favor da ré, a anulação dos dois últimos cheques
emitidos em pagamento dos serviços, a condenação da requerida ao pagamento
da quantia de R$ 700,00 (setecentos reais) a título de danos materiais ou,
subsidiariamente, ao pagamento de R$ 3.900,00 (três mil e novecentos reais),
caso não anulados os cheques sustados, bem como indenização por danos
morais no valor de R$ 3.000,00 (três mil reais) para cada parte lesada (noiva e
mãe da noiva).
O juízo de primeira instância extinguiu o feito, com resolução do mérito,
por reconhecer a decadência do direito das autoras, com fulcro no art. 269, IV,
do Código de Processo Civil, em virtude da caducidade do direito pleiteado,
à luz do art. 26, inciso I, do CDC, que prevê o prazo de 30 (trinta) dias para
reclamação de vícios aparentes em produtos e serviços não duráveis, conclusão
que restou mantida pelo Tribunal de origem, nos termos da ementa já transcrita.
Os embargos de declaração opostos foram rejeitados (e-STJ fls. 181-185).
Nas razões do recurso especial alegam as recorrentes, em síntese, violação
dos seguintes dispositivos legais e suas respectivas teses:
(i) artigo 535, do Código de Processo Civil, por ausência de negativa
jurisdicional;
(ii) artigo 26, incisos I e II, do Código de Defesa do Consumidor,
sustentando que artigo de vestuário não se enquadra na classificação de bem não
durável, tido como aquele que se extingue pelo mero uso, situação incompatível
com a descrita nos autos, que versa sobre defeitos ocasionados em um vestido
de noiva, bem durável por natureza. Assim, incidiria, no caso concreto, o prazo
decadencial de 90 (noventa) dias, não havendo falar em caducidade;
(iii) artigo 26, § 2º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor,
alegando que a notificação extrajudicial que encaminharam à recorrida obstaria,
de todo modo, o curso do prazo decadencial - que não se confundiria com causa
suspensiva. E, concluem, que o direito de agir somente surgiria no momento
360
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
do recebimento da contranotificação da ré, ou seja, com a expressa negativa da
recorrida em solucionar o problema, restando afastada, de um modo ou de outro,
a decadência.
Sem as contrarrazões, e admitido o recurso especial, ascenderam os autos a
esta Corte.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): O recurso merece
prosperar.
Quanto à alegada violação do art. 535 do Código de Processo Civil, ao que
se tem, o Tribunal de origem motivou adequadamente sua decisão, solucionando
a controvérsia com a aplicação do direito que entendeu cabível à hipótese. Não
há falar, portanto, em negativa de prestação jurisdicional apenas pelo fato de o
acórdão recorrido ter decidido em sentido contrário à pretensão da parte.
No mérito, assiste razão às recorrentes.
Como se sabe, a garantia legal de adequação de produtos e serviços é
direito potestativo do consumidor, porquanto assegurado em lei de ordem
pública (arts. 1º, 24 e 25 do Código de Defesa do Consumidor.
A professora Cláudia Lima Marques, ao mencionar o regime jurídico dos
vícios no Código de Defesa do Consumidor, afirma que “o novo dever legal
afasta a incidência das normas ordinárias sobre vício redibitório, assim como
o dever legal de informar e cooperar afasta as normas ordinárias sobre o erro.
O vício, enquanto instituto do chamado direito do consumidor, é mais amplo e seu
regime mais objetivo: não basta a simples qualidade média do produto, é necessária a
sua adequação objetiva, a possibilidade de que aquele bem satisfaça a confiança que o
consumidor nele depositou, sendo o vício oculto ou aparente. Da mesma maneira, os
legitimados passivamente, isto é, os responsáveis, são agora todos os fornecedores
envolvidos na produção e não só o cocontratante”. (Comentários ao Código de
Defesa do Consumidor - Editora Revista dos Tribunais, 3ª Edição - art. 18 - p.
483 - grifou-se)
A facilidade de constatação do vício e a durabilidade ou não do produto ou
serviço representam no Código de Defesa do Consumidor os critérios legais
para a fixação do prazo decadencial para reclamação de vícios aparentes ou de
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
fácil constatação. Assim, se o produto for durável, o prazo será de 90 (noventa)
dias, caso contrário, se não durável, o prazo será de 30 (trinta) dias, como se vê
da literalidade do seguinte dispositivo:
Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação
caduca em:
I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não
duráveis;
II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos
duráveis.
§ 1º Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do
produto ou do término da execução dos serviços.
§ 2º Obstam a decadência:
I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o
fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que
deve ser transmitida de forma inequívoca;
II - (Vetado).
III - a instauração de inquérito civil, até seu encerramento.
§ 3º Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em
que ficar evidenciado o defeito.
O acórdão recorrido, ao valorar as premissas fáticas postas nos autos,
assentou que o vestuário teria natureza de bem não durável, motivo pelo qual
aplicou o prazo decadencial de 30 (trinta) dias previsto no art. 26, inciso
I, do CDC, extinguindo o feito com resolução do mérito por terem sido
ultrapassados 4 (quatro) dias daquele prazo, como se afere da fundamentação
que ora se transcreve:
(...) Todavia, todos os bens, sejam duráveis ou não, se extinguem com o
uso, mesmo que seja a longo prazo. Tal classificação, que não está explícita
na legislação, mas fora elaborada pela jurisprudência, estabelece os lindes da
questão, adotando o entendimento de que o vestuário se subsume à categoria de
bem não durável, embora, por certo, não se possa falar em extinção imediata da
coisa.(...) Nessa linha de entendimento, adotando o critério de ser o vestuário produto
não durável, mormente em se tratando de vestido de noiva cujo uso se extingue
com a realização da cerimônia e sendo a autora consumidora final do produto,
não havendo falar portanto em reutilização do vestido, correto o entendimento
monocrático no sentido de ter ocorrido a decadência: “Neste contexto fático-legal,
tem-se evidenciada a caducidade do direito vindicado na presente ação, mesmo
a se considerar a notificação encaminhada pelas autoras como causa suspensiva
362
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
do curso do prazo decadencial, reiniciando, por sua vez, após a contra-notificação
conhecida pelas autoras em 31.8.2006” (fl. 122), haja vista o determinado pelo art.
26, I do CDC (e-STJ fl. 165 - grifou-se).
Tal conclusão, contudo, não se sustenta no ordenamento pátrio.
Entende-se por produto durável aquele que, como o próprio nome
consigna, não se extingue pelo uso, levando certo tempo para se desgastar. Ao
consumidor é facultada a utilização do bem conforme sua vontade e necessidade,
sem, todavia, se olvidar que nenhum produto é eterno, pois, de um modo ou de outro,
todos os bens tendem a um fim material em algum momento, já que sua existência está
atrelada à sua vida útil.
O aspecto de durabilidade do bem impõe reconhecer que um dia todo
bem perderá sua função, deixando de atender à finalidade à qual um dia se
destinou. O bem durável é aquele fabricado para servir durante determinado
tempo, que variará conforme a qualidade da mercadoria, os cuidados que lhe
são emprestados pelo usuário, o grau de utilização e o meio ambiente no qual
inserido. Portanto, natural que um terno, um eletrodoméstico, um automóvel ou
até mesmo um livro, à evidência exemplos de produtos duráveis, se desgastem
com o tempo, já que a finitude, é de certo modo, inerente a todo bem.
Por outro lado, os produtos não duráveis, tais como alimentos, os remédios
e combustíveis, em regra in natura, findam com o mero uso, extinguindo-se em
um único ato de consumo. O desgaste é, por consequência, imediato.
Na hipótese dos autos, há que se reconhecer que o bem em objeto de análise
é um vestido de noiva, incluído na classificação de bem de uso especial, tidos
como “aqueles bens de consumo com características singulares e/ou identificação
de marca, para os quais um grupo significante de compradores está habitualmente
desejoso e disposto a fazer um especial esforço de compra (exemplos: marcas e
tipos específicos de artigos de luxo, peças para aparelhos de alta fidelidade,
equipamento fotográfico”. ( José Geraldo Brito Filomeno, Manual de Direitos
do Consumidor, 10ª Edição, São Paulo, Editora Atlas S.A., 2010, p. 47)
Logo, o vestuário, mormente um vestido de noiva, é um bem “durável”, pois
não se extingue pelo mero uso. Aliás, é notório que por seu valor sentimental
há quem o guarde para a posteridade, muitas vezes com a finalidade de vê-lo
reutilizado em cerimônias de casamento por familiares (filhas, netas e bisnetas)
de uma mesma estirpe.
Por outro lado, há pessoas que o mantém como lembrança da escolha de
vida e da emoção vivenciada no momento do enlace amoroso, enquanto há
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
aquelas que guardam o vestido de noiva para uma possível reforma, seja por
meio de aproveitamento do material (normalmente valioso), do tingimento da
roupa (cujo tecido, em regra, é de alta qualidade) ou, ainda, para extrair lucro
econômico, por meio de aluguel (negócio rentável e comum atualmente).
Desse modo, o vestido de noiva jamais se enquadraria como bem não
durável, porquanto não consumível, tendo em vista não se exaurir no primeiro
uso ou em pouco tempo após a aquisição, para consignar o óbvio. Aliás, como
claramente se percebe, a depender da vontade da consumidora, o vestido de
noiva, vestimenta como outra qualquer, sobreviverá a muitos usos.
Com efeito, o desgaste de uma roupa não ocorre em breve espaço de tempo,
em especial quando cediço que um dos elementos estimuladores do consumo é
a qualidade da roupa. Não é inapropriado dizer que muitas vezes há roupas mais
duradouras que produtos eletroeletrônicos (também considerados duráveis) e,
não por outro motivo, as roupas, em geral, possuem instruções de uso e lavagem
a fim de lhe permitir longa vida útil, ou seja, maior durabilidade. De fato, tanto
as roupas são bens considerados duráveis que, não raro, são objeto de doações,
pois, mesmo já gastas ainda preservam o estado de uso, em especial para aqueles
com menor capacidade econômica, o que deve ser sempre estimulado em um
país cuja miserabilidade cresce a cada dia.
Ademais, é inegável existirem roupas que têm valor sentimental
incomensurável por terem pertencido a membros da família, muitos já falecidos,
ou ainda, por terem sido adquiridas na infância.
No particular, impõe-se reconhecer que todo produto possui uma “vida
útil”. Todavia, o produto durável não tem uma vida efêmera, muito “embora não
se exija que seja prolongada, na medida em que é do próprio capitalismo que
vivemos que cedo ou tarde todos e qualquer produto ou serviço seja substituído
por uma nova aquisição que venha alimentar o ciclo de consumo”. (Caio
Augusto Silva Santos e Paulo Henrique Silva Godoy, em obra Coordenada por
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, O Novo Código Civil – Interfaces
no Ordenamento Jurídico Brasileiro – Editora Del Rey, Belo Horizonte, 2004,
p. 99)
Registre-se, por oportuno, os inúmeros exemplos de resistência ao tempo
das roupas, citando-se, a título ilustrativo: o manto do imperador D. Pedro II,
até hoje peça das mais apreciadas do acervo do Museu Imperial de PetrópolisRJ; os vestidos de Carmen Miranda, expostos, inclusive, no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro (MAM); as vestimentas oficiais do ex-Presidente
364
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Juscelino Kubitschek mantidas no Museu do Catetinho, em Brasília-DF, e,
ainda, as vestes intactas do Papa João XXIII, cujo corpo está em exposição
permanente em um sarcófago de vidro na Basílica de São Pedro no Vaticano.
Em consequência, o prazo decadencial incidente no caso em apreço é o
aplicável aos bens duráveis, qual seja, o de 90 (noventa) dias, versando hipótese
de vício aparente ou de fácil constatação na data da entrega (tradição), conhecido
como aquele que não exige do consumidor médio nenhum conhecimento
especializado ou apreciação técnica (perícia), por decorrer de análise superficial
do produto (simples visualização ou uso), cuja constatação é verificável de plano,
a partir de um simples exame do bem ou serviço, por mera experimentação ou
por “saltar aos olhos” ostensivamente sua inadequação.
Por outro lado, o CDC estabelece que o prazo decadencial se inicia a partir
da entrega efetiva do produto ou do término da execução do serviço (art. 26, §
1º, do CDC), diferentemente dos vícios ocultos, em que o prazo começa a partir
de sua manifestação (art. 26, §§ 1º e 3º do CDC).
Alegam as autoras que o vestido de noiva entregue não estava em perfeito
estado de uso, nem mesmo representava o modelo previamente combinado
pelas partes, frustrando as justas expectativas da consumidora às vésperas do
evento. Desse modo, por apresentar defeitos substanciais de confecção, precisou
buscar outro profissional para realizar os consertos indispensáveis à utilização da
roupa pela noiva na cerimônia de casamento. Dentre os defeitos alegados pelas
autoras, destacam-se: “o decote foi abaixado, a frente do vestido foi trocada, o
forro foi todo trocado, foi usado outro véu, foi colocado cetim sem costura, o
babado foi adaptado, alguns tecidos foram trocados (estavam do lado avesso),
entre outras alterações” (e-STJ fl. 7)
São irrefutáveis a angústia e a frustração de qualquer pessoa que contrate
um vestido para uma ocasião especial, tal como o dia da cerimônia do casamento,
cujos preparativos permeiam expectativas e sonhos das partes envolvidas,
inclusive de familiares e amigos.
A situação de inadequação que desafia a responsabilidade por vícios do
produto ou serviço apta a merecer reparos pode se referir tanto à quantidade
como à qualidade da mercadoria cuja utilização se reputa imprópria ao consumo,
estando estampadas nos artigos 18 a 25 do Código de Defesa do Consumidor
as alternativas de substituição do produto, o abatimento proporcional do preço,
a reexecução do serviço, ou até mesmo a resolução do contrato, com a restituição
do preço.
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A tradição da mercadoria defeituosa foi realizada uma semana antes do
matrimônio, afirmando as recorrentes que o resultado do objeto do contratado
violou a garantia legal de adequação inerente a qualquer produto posto no
mercado, deixando de satisfazer a necessidade do destinatário final, o consumidor
(art. 24 do CDC), o que deve ser demonstrado na instrução do feito.
Saliente-se que tal insurgência há de ser exercida dentro dos exíguos
prazos previstos no CDC (art. 26, incs. I e II). No caso, as autoras insurgiram-se
tempestivamente, motivo pelo qual não merece guarida a tese da decadência.
Esta Corte já teve a oportunidade de se manifestar sobre a incidência dos
prazos decadenciais nas hipóteses de produtos duráveis e não duráveis, que são
distintos no Código de Defesa do Consumidor, como se vê da seguinte ementa:
Direito do Consumidor. Ação de preceito cominatório. Substituição de
mobiliário entregue com defeito. Vício aparente. Bem durável. Ocorrência de
decadência. Prazo de noventa dias. Art. 26, II, da Lei n. 8.078/1990. Doutrina.
Precedente da Turma. Recurso provido.
I - Existindo vício aparente, de fácil constatação no produto, não há que se falar
em prescrição quinquenal, mas, sim, em decadência do direito do consumidor de
reclamar pela desconformidade do pactuado, incidindo o art. 26 do Código de Defesa
do Consumidor.
II - O art. 27 do mesmo diploma legal cuida somente das hipóteses em que
estão presentes vícios de qualidade do produto por insegurança, ou seja, casos em
que produto traz um vicio intrínseco que potencializa um acidente de consumo,
sujeitando-se o consumidor a um perigo iminente.
III - Entende-se por produtos não-duráveis aqueles que se exaurem no
primeiro uso ou logo após sua aquisição, enquanto que os duráveis, definidos
por exclusão, seriam aqueles de vida útil não-efêmera (REsp n. 114.473-RJ, Rel.
Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 24.3.1997, DJ
5.5.1997 - grifou-se).
Em outra oportunidade, a Ministra Fátima Nancy Andrighi, em
laborioso voto, sintetizou, de forma didática, as regras do CDC ora em estudo,
reconhecendo o direito do consumidor de exigir, dentro do prazo legal, a
superação de eventuais vícios de qualidade ou quantidade, bem como que a
garantia legal de adequação não afasta nem conflita com a garantia contratual
eventualmente pactuada entre as partes:
Consumidor. Responsabilidade pelo fato ou vício do produto. Distinção. Direito
de reclamar. Prazos. Vício de adequação. Prazo decadencial. Defeito de segurança.
366
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Prazo prescricional. Garantia legal e prazo de reclamação. Distinção. Garantia
contratual. Aplicação, por analogia, dos prazos de reclamação atinentes à garantia
legal.
- No sistema do CDC, a responsabilidade pela qualidade biparte-se na exigência
de adequação e segurança, segundo o que razoavelmente se pode esperar dos
produtos e serviços. Nesse contexto, fixa, de um lado, a responsabilidade pelo
fato do produto ou do serviço, que compreende os defeitos de segurança; e de
outro, a responsabilidade por vício do produto ou do serviço, que abrange os
vícios por inadequação.
- Observada a classificação utilizada pelo CDC, um produto ou serviço apresentará
vício de adequação sempre que não corresponder à legítima expectativa do
consumidor quanto à sua utilização ou fruição, ou seja, quando a desconformidade
do produto ou do serviço comprometer a sua prestabilidade. Outrossim, um produto
ou serviço apresentará defeito de segurança quando, além de não corresponder à
expectativa do consumidor, sua utilização ou fruição for capaz de adicionar riscos
à sua incolumidade ou de terceiros.
- O CDC apresenta duas regras distintas para regular o direito de reclamar,
conforme se trate de vício de adequação ou defeito de segurança. Na primeira
hipótese, os prazos para reclamação são decadenciais, nos termos do art. 26 do
CDC, sendo de 30 (trinta) dias para produto ou serviço não durável e de 90 (noventa)
dias para produto ou serviço durável, ambos os prazos contadas da entrega efetiva
do produto ou do término da execução do serviço. A pretensão à reparação pelos
danos causados por fato do produto ou serviço vem regulada no art. 27 do CDC,
prescrevendo em 05 (cinco) anos.
- A garantia legal é obrigatória, dela não podendo se esquivar o fornecedor.
Paralelamente a ela, porém, pode o fornecedor oferecer uma garantia contratual,
alargando o prazo ou o alcance da garantia legal.
- A lei não fixa expressamente um prazo de garantia legal. O que há é prazo para
reclamar contra o descumprimento dessa garantia, o qual, em se tratando de vício de
adequação, está previsto no art. 26 do CDC, sendo de 90 (noventa) ou 30 (trinta) dias,
conforme seja produto ou serviço durável ou não.
- Diferentemente do que ocorre com a garantia legal contra vícios de
adequação, cujos prazos de reclamação estão contidos no art. 26 do CDC,
a lei não estabelece prazo de reclamação para a garantia contratual. Nessas
condições, uma interpretação teleológica e sistemática do CDC permite integrar
analogicamente a regra relativa à garantia contratual, estendendo-lhe os prazos
de reclamação atinentes à garantia legal, ou seja, a partir do término da garantia
contratual, o consumidor terá 30 (bens não duráveis) ou 90 (bens duráveis) dias
para reclamar por vícios de adequação surgidos no decorrer do período desta
garantia. Recurso especial conhecido e provido (REsp n. 967.623-RJ, julgado em
16.4.2009, DJe 29.6.2009 - grifou-se).
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367
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Extrai-se dos autos que a última prova do vestido ocorreu no dia 27.7.2006,
quando o vestido supostamente danificado foi entregue às consumidoras, tendo
a empresa recorrida sido notificada extrajudicialmente dos alegados vícios em
21.8.2006. Por sua vez, as autoras foram cientificadas da contranotificação em
31.8.2006, tendo sido a presente ação judicial proposta em 4.9.2006.
Como se vê, qualquer que seja a interpretação que se confira ao verbo
obstar constante do art. 26 do CDC, no presente caso não há falar em
decadência, porquanto não transcorrido o prazo de 90 (noventa) dias. Portanto,
independentemente de se reconhecer a suspensão ou a interrupção da noventena
legal, o prazo foi efetivamente “obstado” pela reclamação formalizada pela
notificação extrajudicial da recorrida.
Consigne-se que a reclamação deve ser comprovada pelo consumidor
para que possa se valer do benefício, não exigindo a lei meios específicos para
tanto. Segundo Héctor Valverde Santana, “não há uma forma preestabelecida para
realizar a reclamação. Efetivamente, pode o consumidor, ou quem o represente
legalmente, apresentar sua reclamação perante o fornecedor por todos os meios
possíveis, seja verbal, pessoalmente ou por telefone, nos Serviços de Atendimento ao
Cliente (SAC), por escrito, mediante instrumento enviado pelo cartório de títulos e
documentos, carta registrada ou simples, encaminhada pelo serviço postal ou entregue
diretamente pelo consumidor, e-mail, fax, dentre outros” (Prescrição e Decadência
nas Relações de Consumo, São Paulo, RT, 2002, p. 128).
É recomendável que a reclamação “seja documentada (carta com aviso
de recebimento - AR), podendo ser feita junto a qualquer fornecedor que,
de alguma forma, interveio na cadeia de consumo e tenha se beneficiado da
venda (produtor, comerciante, importador, fabricante), não havendo na lei
qualquer ressalva a respeito”. (Fábio Henrique Podestá, Código de Defesa do
Consumidor Comentado, Editora Revista dos Tribunais, p. 171)
Contudo, esta Corte já se manifestou no sentido de que “a reclamação verbal
seria suficiente a obstar os efeitos da causa extintiva (decadência) se efetivamente
comprovada” (REsp n. 156.760-SP, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Quarta
Turma, julgado em 4.3.2004, DJ 22.3.2004 - grifou-se), desde que direcionada
à quem interessa, já que “não obsta a decadência a simples denúncia oferecida
oferecida ao Procon, sem que se formule pretensão, e para a qual não há cogitar
de resposta” (REsp n. 65.498-SP, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, Terceira
Turma, julgado em 11.11.1996, DJ 16.12.1996).
368
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
No tocante à controvérsia doutrinária acerca do real significado da
expressão “obstam a decadência” (art. 26, § 2º do CDC) a melhor doutrina
assegura maior amplitude à tutela dos consumidores, cuja hipossuficiência, em
regra, norteia as opções do legislador.
Portanto, assiste razão àqueles que entendem que o termo “obstar” versa
sobre uma modalidade de interrupção do prazo decadencial, a exemplo de
Cláudia Lima Marques, Luiz Edson Fachin, Luiz Daniel Pereira Cintra e
Odete Novais Carneiro Queiroz, já que o prazo anterior seria desconsiderado,
beneficiando, sobremaneira, o consumidor, que disporia novamente do prazo
por completo para exercitar seu direito.
Nesse sentido, Rizzatto Nunes observa que “a inserção do termo ‘obstam’
foi justamente para ‘fugir da discussão – especialmente doutrinária – a respeito
da possibilidade ou não de que um prazo decadencial pudesse suspender-se ou
não, interromper-se ou não, o legislador, inteligentemente, lançou mão do verbo
‘obstar’”. (Curso de Direito do Consumidor, Editora Saraiva, São Paulo, 2005,
p. 368)
A propósito, Héctor Valverde Santana apresenta forte argumento em favor
da tese da interrupção, como salientado por Leonardo de Medeiros Garcia:
(...) Segundo o autor, o parágrafo único do art. 27 do CDC foi vetado pelo
Presidente da República por reconhecer nele grave defeito de formulação. O
dispositivo censurado dizia que seria interrompida a prescrição nas hipóteses
do § 1º do art. 26 do CDC (houve um erro de remissão, já que pretendia se referir
às causas obstativas do § 2º do art. 26 do CDC). (Direito do Consumidor, Editora
Impetus, Niterói, RJ, 2008, p. 167)
Não se olvida, ademais, que a interpretação que entende como suspensão,
por ser mais prejudicial aos consumidores, deve ser descartada, como
acertadamente aponta lição do Ministro Herman Benjamin:
(...) Em que pese a dificuldade que a matéria comporta, a melhor posição,
considerando a finalidade de proteção ao consumidor, e que os prazos
decadenciais do CDC são bastante exíguos, é no sentido de se reiniciar a
contagem dos prazos decadenciais a partir da resposta negativa do fornecedor
(incido I) ou da data em que se promove o encerramento do inquérito civil (inciso
III). Obstar, portanto, tem o sentido de invalidar o prazo já transcorrido, o que se
assemelha ou se aproxima das hipótese de interrupção. (Manual de direito do
consumidor, Revista dos Tribunais, 2008, p. 165)
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
369
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Dessa forma, afasto as conclusões do juízo de primeira instância, mantidas
pelo Tribunal de origem, de que,
(...) Neste contexto, fático-legal, tem-se evidenciada a caducidade do direito
vindicado na presente ação, mesmo a se considerar a notificação encaminhada
pelas autoras como causa suspensiva do curso do prazo decadencial, reiniciado, por
sua vez, após a contra-notificação conhecida pelas autoras em 31.8.2006.
Conforme elucida o Eminente Juiz de Direito James Eduardo de Moraes de
Oliveira, em seu Código de Defesa do Consumidor, Ed Atlas 2005, “A reclamação
formulada pelo consumidor acerca dos vícios constatados no produto ou no
serviço e o inquérito civil instaurado pelo Ministério Público constituem causas
suspensivas - e não interruptivas - da decadência. Isso significa que, uma vez
expirada a causa obstativa, o prazo decadencial retoma seu curso até alcançar
os 30 ou 90 dias previstos no caput do art. 26”. Na verdade, com o reinício da
contagem do prazo mencionado, as autoras ajuizaram a demanda em 8.9.2006,
portanto, a destempo vez que o prazo fatal terminou em 4.9.2006 (...) (e-STJ fls.
124-126 - grifou-se).
Desse modo, afasto a decadência do direito potestativo de reclamar os
eventuais vícios do vestido de noiva, reputado impróprio ao uso (arts. 18, § 6º,
e 20, § 2º, do CDC), equivocadamente declarada pelo Tribunal de origem, por
incidir, no caso concreto, o prazo de 90 (noventa) dias pertinentes aos “bens
duráveis”, nos termos do art. 26, inciso II, do CDC.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial e determino o retorno
dos autos às instâncias de origem, para que analise o mérito do pedido de
indenização material e moral como entender de direito.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.191.612-PA (2010/0078010-9)
Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino
Recorrente: Sociedade Civil Instituto Vera Cruz
Advogado: Marcelo Augusto Teixeira de Brito Nobre e outro(s)
Recorrido: Associação Universitária Interamericana
Advogado: Haroldo Guilherme Pinheiro da Silva e outro(s)
370
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
EMENTA
Recurso especial. Direito Marcário. Colidência entre nome
empresarial e marca. Nome empresarial. Proteção no âmbito do
Estado em que registrado. Princípio da anterioridade do registro no
INPI. Mitigação pelos princípios da territorialidade e da especialidade.
Recurso especial provido.
1 - Conflito em torno da utilização da marca “Vera Cruz” entre
a empresa sediada em São Paulo que a registrou no INPI em 1986 e a
sociedade civil que utiliza essa denominação em seu nome empresarial
devidamente registrado na Junta Comercial do Estado do Pará desde
1957.
2 - Peculiaridade da colidência estabelecida entre a marca
registrado no INPI e o nome empresarial registrado anteriormente na
Junta Comercial competente.
3 - Aferição da colidência não apenas com base no critério da
anterioridade do registro no NPI, mas também pelos princípios da
territorialidade e da especialidade.
4 - Precedentes específicos desta Corte, especialmente o acórdão
no Recurso Especial n. 1.232.658-SP (Rel. Ministra Nancy Andrighi,
Terceira Turma, julgado em 12.6.2012, DJe 25.10.2012): “Para a
aferição de eventual colidência entre marca e signos distintivos
sujeitos a outras modalidades de proteção - como o nome empresarial
e o título de estabelecimento - não é possível restringir-se à análise do
critério da anterioridade, mas deve também se levar em consideração
os princípios da territorialidade e da especialidade, como corolário da
necessidade de se evitar erro, dúvida ou confusão entre os usuários”.
5 - Recurso especial provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, A
Terceira Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos
termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas
Cueva, Nancy Andrighi e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
371
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha.
Brasília (DF), 22 de outubro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator
DJe 28.10.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Trata-se de recurso especial
interposto por Sociedade Civil Instituto Vera Cruz com fundamento no artigo 105,
inciso III, alíneas a e c da Constituição da República contra acórdão proferido
pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará, que restou assim ementado (fl. 282):
Processual Civil. Apelação cível. Propriedade e registro de marca. Princípio da
anterioridade. Direito adquirido, ato jurídico perfeito e segurança jurídica.
I Apelada utilizava marca desde 1957, mas nunca requereu no órgão
competente o respectivo registro;
II Apelante tem registro de propriedade da marca em questão desde 1979,
circunstância que não foi impugnada pela recorrente;
III Notificação extrajudicial entregue à recorrida datada de 1993.
IV Decurso in albis do prazo para apelada impugnar o registro requerido pela
recorrente. Registro válido. Utilização indevida. Indenização cabível. Decisão
Unânime.
Opostos embargos de declaração, estes restaram rejeitados nos seguintes
termos (fl. 324):
Processual Civil Embargos de declaração Conhecimento e parcial provimento
para efeitos aclaratórios
I Os embargos declaratórios não devem ser utilizados para rediscussão de
matéria já abordada na decisão embargada;
II Conhecimento do recurso, já que presentes os pressupostos de
admissibilidade;
III Parcial provimento em mero efeito aclaratório, acatando a sugestão do votovista da lavra da Exma. Desembargadora Maria de Nazaré Saavedra Guimarães;
IV Unânime.
372
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Consta dos autos que Associação Universitária Interamericana ajuizou ação
ordinária de abstenção de uso de marca c.c. perdas e danos em desfavor de
Sociedade Civil Instituto Vera Cruz.
O juízo de primeiro grau julgou improcedente o pedido formulado na
petição inicial, condenando a autora ao pagamento das custas e honorários
advocatícios.
Interposta apelação, o Tribunal de origem deu provimento ao recurso
para determinar a cessação do uso da marca pela requerida e o pagamento de
indenização a ser calculada por meio de liquidação, conforme a ementa retro
transcrita.
No presente recurso especial, o recorrente sustentou violação dos art. 8º
do Decreto n. 5.772/1975 e do art. 59 da Lei n. 5.772/1971, além de dissídio
jurisprudencial.
Asseverou que tanto o registro da marca no Instituto Nacional de
Propriedade Industrial - INPI quanto o registro do nome comercial na Junta
Comercial competente asseguram proteção ao seu titular e que, na hipótese de
conflito de registros, prevalece o realizado em primeiro lugar.
Aduziu que a jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que não
há ilícito e nem dever de indenizar quando o nome comercial foi registrado na
Junta Comercial em momento anterior ao registro da marca perante o INPI.
Requereu o provimento do recurso especial.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Eminentes Colegas,
o recurso especial merece guarida.
Inicialmente, vejamos o que asseverou o Tribunal de Justiça paraense
quando do julgamento do recurso de apelação (fls. 284-289):
(...)
A Associação autora possui propriedade industrial da marca Vera Cruz desde
1986, conforme documentos acostados aos autos e, em 1993, foi feita notificação
extrajudicial para que o Colégio Vera Cruz se abstivesse da utilização da referida
marca. Ocorre que, consoante prova dos autos, o Colégio Vera Cruz não se
manifestou sobre a notificação e continuou a utilizar a marca.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
373
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Em 1986, a legislação vigente (Lei n. 5.772/1971) determinava:
Art. 59. Será garantida no território nacional a propriedade da marca e o
seu uso exclusivo aquele que obtiver o registro de acordo com o presente
Código, para distinguir seus produtos, mercadorias ou serviços, de outros
idênticos ou semelhantes, na classe correspondente à sua atividade.
Parágrafo único. A proteção de que trata este artigo abrange o uso da
marca em papéis, impressos e documentos relativos à atividade do titular.
(SIC)
Art. 64. São registráveis como marca os nomes, palavras, denominações,
monogramas, emblemas, símbolos, figuras e quaisquer outros sinais
distintivos que não apresentem anterioridades ou colidências com registros
já existentes e que não estejam compreendidos nas proibições legais. (SIC)
Restou claro que o pleito da inicial é referente à marca registrada Vera Cruz
e não ao nome comercial utilizado pela instituição de ensino paraense. No que
concerne a esse assunto, importante diferenciar os institutos.
Conforme definição da Lei n. 9.279/1996, marca é o designativo que identifica
produtos e serviços, não se confundindo com o nome empresarial ou comercial,
que designa, por sua vez, o empresário e o título do estabelecimento, referido ao
local da atividade econômica, ou seja, o nome jurídico da personalidade jurídica
da empresa, de forma a identificar o sujeito que exerce o comércio. (http://
www.carula.hpg.ig.com.br/comercial2.htmlhttp://www.carula.hpg.ig.com.br/
comercial2.html).
Nesse diapasão, a discussão é a utilização da marca Vera Cruz, pelo
estabelecimento comercial paraense, em produtos como uniformes escolares, livros,
apostilas, etc., já que permitiria a confusão entre as empresas que, inclusive, estão
no mesmo ramo comercial. Analisando a situação por esse aspecto, é visível a
probabilidade de confusão.
Constam dos autos documentos comprobatórios do registro no Instituto
Nacional de Propriedade Industrial da marca Vera Cruz pela apelante. Além disso,
restou provado que o Colégio Vera Cruz, apelado, foi fundado em 1957, ou seja,
em data anterior ao registro da marca. E, por fim, as provas concluem, pelo laudo
pericial, que a recorrida reproduz total e intencionalmente a marca registrada
pela recorrente.
Se levarmos em consideração o sistema utilizado no Brasil, o atributivo,
a prioridade é estabelecida pela data do depósito no órgão público competente.
Acontece que, existem exceções a essa regra, utilizando-se o sistema declarativo, que
tem em conta a utilização para aquisição da propriedade.
(...)
374
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Assim sendo, pelo exposto, a propriedade da marca em questão seria de direito
do Colégio Vera Cruz, quem primeiro utilizou o termo para designar seus serviços e
materiais.
Deve-se, entretanto, aplicar princípios legais, como direito adquirido, prescrição e
ato jurídico perfeito, com o fito de garantir a segurança jurídica do ordenamento. Em
virtude disso, determina-se limite temporal à preferência citada no artigo supra
transcrito. Assim, a partir da ciência, pelo primeiro usuário da marca, de que esta
é utilizada por outrem, devem ser tomadas providências no sentido de garantir
seu direito com base na anterioridade de uso. Esse prazo é contado de formas
diferentes por correntes doutrinárias divergentes:
(...)
Percebe-se, com isso, que o sistema pátrio protege o direito de precedência,
desde que respeitados os prazos legais, afinal de contas o direito também deve
primar pela segurança jurídica, garantindo os princípios constitucionais do ato
jurídico perfeito e do direito adquirido.
In casu, a apelada foi fundada com o nome Vera Cruz em 1957, porém, data de
1979, o primeiro registro do INPI em nome de empresa que foi incorporada pela
apelante. E somente em 1993 a apelada foi notificada pelo uso irregular de marca
pertencente a outrem, não tomando providências a respeito.
Considerando a legislação vigente à época, qual seja, o Código de 1971,
sublinha-se a jurisprudência abaixo transcrita:
Marca. Registro. Promovido junto ao INPI. Prevalência sobre a “utilização
prolongada”. Decorrente da adoção do nome comercial. Marca e nome
submetidos a regimes jurídicos diversos.
- (...)
- Pelo sistema adotado pela legislação brasileira, afastou-se o
prevalecimento do regime da “ocupação” ou da “utilização prolongada”
como meio aquisitivo de propriedade da marca. O registro no INPI é
quem confere eficácia erga omnes, atribuindo àquele que o promoveu
a propriedade e o uso exclusivo da marca. Precedentes do STJ. Recurso
especial conhecido e provido parcialmente. (STJ, Quarta Turma, Recurso
Especial n. 52.106-SP, Relator: Barros Monteiro, data do julgamento:
17.8.1999).
Pelo exposto, levando em conta o lapso temporal decorrido e a legislação
vigente, restou clara a ausência de direito da apelada em requerer registro da
marca Vera Cruz, já devidamente registrada pela recorrente. Deve, portanto,
ser reformada a sentença no sentido de dar provimento a ação proposta,
determinando a cessação de utilização, pela recorrida, da marca em questão e,
ainda, o pagamento da indenização equivalente, a ser calculada conforme artigos
41, 44 e 208 da Lei n. 9.279/1996, por meio de liquidação. (grifei)
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
375
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Verifica-se, assim, do trecho do acórdão recorrido destacado, que o Tribunal
de origem entendeu que, não obstante a Sociedade Civil Instituto Vera Cruz
(nome de fantasia Colégio Vera Cruz e Escolinha Vera Cruz) estar registrada
desde o ano de 1957, este uso não lhe atribuiu a propriedade da marca, sob os
fundamentos de que a parte adversa levou a efeito o registro da marca no INPI
em 1986 e que, apesar de notificada em 1993, a recorrente restou silente.
Por sua vez, a recorrente vergasta o decisum recorrido com arrimo em
dois argumentos. Inicialmente, a ocorrência de divergência jurisprudencial,
demonstrando dissídio do acórdão recorrido com dois precedentes desta Corte
que julga favoráveis a tese por ela defendida, quais sejam, Recurso Especial n.
306.363-SC, de Relatoria do Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira e o Recurso
Especial n. 67.173-PE, de relatoria do Min. Costa Leite.
Por fim, sustenta a violação das normas do art. 8º do Decreto n. 5.772/1975
e do art. 59 da Lei n. 5.772/1971, ao argumento de que a legislação acima
indicada protege o nome comercial, ainda que não registrado.
Dessa forma, a matéria posta nos presentes autos, cinge-se em determinar
se o registro anterior do nome empresarial garante o direito de uso da expressão
“Vera Cruz” pela recorrente em seus produtos (uniformes escolares, livros e
apostilas) em desfavor da recorrida que realizou o registro da marca junto ao
INPI.
A questão, portanto, é peculiar, não versando acerca do conflito entre
marcas ou da colidência entre nomes empresariais, matérias já exaustivamente
debatidas por esta Corte.
Assim, para melhor análise da questão controvertida, necessário se faz uma
breve análise dos institutos em debate.
Inicialmente, destaca-se que a lei define como marca “os sinais distintivos
visualmente perceptíveis, não compreendidos nas proibições legais” (art. 122
da Lei de Propriedade Industrial). O detentor da marca possui a prerrogativa
de utilizá-la, com exclusividade, no âmbito de sua especialidade, em todo o
território nacional pelo prazo de duração do registro no INPI.
Por sua vez, o nome comercial consiste na expressão que identifica o
empresário em suas relações jurídicas, ou seja, no âmbito do exercício da
atividade empresarial.
O art. 1.155, caput, do Código Civil estabelece textualmente que “considerase nome empresarial a firma ou a denominação adotada, de conformidade com
este Capítulo, para o exercício de empresa.”
376
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Ainda em relação ao nome empresarial, é cediço que, desde o DecretoLei n. 7.903/1945 (Código de Propriedade Industrial), passando pelas Leis
n. 4.726/1965 e 8.934/1994, predomina a orientação de que a proteção do
nome comercial se circunscreve à unidade federativa de competência da Junta
Comercial em que arquivado, podendo ser estendida a todo o território nacional
apenas se, à época de vigência do Decreto-Lei n. 7.903/1945, fosse feito registro
simultâneo no Departamento Nacional da Propriedade Industrial (atual INPI)
e, a partir da vigência da Lei n. 4.726/1965, realizado pedido complementar de
arquivamento nas demais Juntas Comerciais.
Nesse sentido o magistério de Rubens Requião (Curso de Direito Comercial,
São Paulo, Saraiva, 1998, p. 198):
(...)
No regime da Lei n. 4.726, de 13 de julho de 1965, que dispunha sobre o
registro do comércio (e que foi revogada pela Lei n. 8.934/1994), c.c. o Código de
Propriedade Industrial, seu contemporâneo, havia o sistema do duplo registro,
um assegurando a proteção do uso exclusivo no âmbito territorial da respectiva
Junta Comercial, e, o outro, de âmbito nacional, consequente do registro no
Departamento Nacional de Propriedade Industrial, hoje Instituto Nacional de
Propriedade Industrial, órgão executivo do sistema de propriedade industrial.
E arremata o ilustre doutrinador:
Como foi dito, a matéria sobre proteção do nome comercial é, finalmente,
objeto de legislação ordinária. A Lei n. 8.934/1994, nos arts. 33 e 34 dispôs que a
proteção ao nome empresarial decorre automaticamente do arquivamento dos
atos constitutivos de firma individual e de sociedade, ou de suas alterações. O
nome empresarial obedecerá aos princípios da veracidade e da novidade.
Ressalte-se, ainda, que os dois institutos possuem proteção constitucional,
conforme assevera o art. 5º, inciso XXIX, da Constituição da República, in
verbis:
XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário
para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das
marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o
interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;
Por fim, a atual Lei de Propriedade Industrial (Lei n. 9.279/1996), seguindo
o mandamento da Constituição, estabeleceu proteção aos nomes empresariais e
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
377
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
às marcas, conforme previsão dos arts. 124, inciso V e 129, respectivamente,
daquele diploma legal, cujo teor é o seguinte:
Art. 124. Não são registráveis como marca:
(...)
V - reprodução ou imitação de elemento característico ou diferenciador de
título de estabelecimento ou nome de empresa de terceiros, suscetível de causar
confusão ou associação com estes sinais distintivos;
Art. 129. A propriedade da marca adquire-se pelo registro validamente
expedido, conforme as disposições desta Lei, sendo assegurado ao titular seu uso
exclusivo em todo o território nacional, observado quanto às marcas coletivas e
de certificação o disposto nos arts. 147 e 148.
Estabelecidos os contornos jurídicos dos institutos em conflito, passo à
análise do caso vertente.
No caso dos autos, conforme consta do acórdão recorrido e anteriormente
esclarecido, a recorrente (Sociedade Civil Instituto Vera Cruz) registrou seu ato
constitutivo na Junta Comercial do Estado do Pará no ano de 1957, sendo certo,
ainda, que a Associação Universitária Interamericana registrou a marca “Vera
Cruz” junto ao INPI em 1986 no Estado de São Paulo.
Não obstante a recorrida tenha realizado o registro da marca “Vera Cruz”
no INPI, órgão próprio para esse fim, esse registro não tem o condão de
interferir no nome empresarial da recorrente que, consoante o próprio Tribunal
de origem reconheceu, está devidamente registrado desde 1º de fevereiro de
1956.
Com efeito, restando provado que a recorrente tem o seu nome empresarial
devidamente registrado na Junta Comercial do seu Estado (Pará), razão não há
para que seja compelida a afastar de sua atividade a denominação “Vera Cruz”
nesse âmbito territorial.
Em primeiro lugar, a expressão “Vera Cruz” não caracteriza a existência de
marca notória, a qual, nos termos do art. 67, caput, da Lei n. 5.772/1971 (antigo
Código de Propriedade Industrial), já gozava de proteção especial, impedindo o
registro de marcas idênticas ou semelhantes em todas as demais classes e itens,
in verbis:
A marca considerada notória no Brasil, registrada nos termos e para os efeitos
deste Código, terá assegurada proteção especial, em todas as classes, mantido
378
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
registro próprio para impedir o de outra que a reproduza ou imite, no todo ou em
parte, desde que haja possibilidade de confusão quanto à origem dos produtos,
mercadorias ou serviços, ou ainda prejuízo par a reputação da marca.
No mesmo sentido a previsão do art. 126 e parágrafos, da Lei n. 9.279/1996:
Art. 126. A marca notoriamente conhecida em seu ramo de atividade nos
termos do art. 6º bis (i) da Convenção da União de Paris para Proteção da
Propriedade industrial, goza de proteção especial, independentemente de estar
previamente depositada ou registrada no Brasil.
§ 1º A proteção de que trata este artigo aplica-se também às marcas de serviço.
§ 2º O INPI poderá indeferir de ofício pedido de registro de marca que produza
ou imite, no todo ou em parte, marca notoriamente conhecida.
Destarte, inexistindo qualquer tipo de notoriedade da expressão, não é
possível determinar a abstenção do uso da expressão pela recorrente que, repitase, está devidamente registrada no âmbito local desde 1º de fevereiro de 1956.
Em segundo lugar, conforme o entendimento desta Corte, a eventual
colidência entre nome empresarial e marca não pode ser resolvida apenas sob a
ótica do princípio da anterioridade do registro, devendo-se ter em conta outros
dois princípios, quais sejam:
a) princípio da territorialidade, relativo ao âmbito geográfico de proteção;
b) o princípio da especificidade, referente ao tipo de produto o ou serviço.
Nesse sentido, os seguintes precedentes:
Comercial. Marca. Proteção. Limites. Aproveitamento parasitário. Requisitos.
Colidência com signos distintivos sujeitos a outras modalidades de proteção.
Aferiação.
1. A proteção conferida às marcas, para além de garantir direitos individuais,
salvaguarda interesses sociais, na medida em que auxilia na melhor aferição da
origem do produto e/ou serviço, minimizando erros, dúvidas e confusões entre
usuários.
2. Essa proteção varia conforme o grau de conhecimento de que desfruta a
marca no mercado. Prevalecem, como regra, os princípios da territorialidade e da
especialidade. Esses princípios, no entanto, comportam exceções, notadamente
quando se verifica o fenômeno do “extravasamento do símbolo”, ou seja, marcas
cujo conhecimento pelo público e/ou mercado ultrapassa o âmbito de proteção
conferido pelo registro.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
379
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
3. A LPI reconhece duas formas de “extravasamento do símbolo”, atuando no
sentido de mitigar princípios informadores do registro de marcas. Na primeira
hipótese temos o que o art. 125 da LPI denomina marca de alto renome, em que
há temperamento do princípio da especialidade e no segundo caso o que o art.
126 da LPI chama de marca notoriamente conhecida, em que há abrandamento
do princípio da territorialidade.
4. Exceção feita ao caso de alto renome, o registro da marca não confere ao
titular a propriedade sobre o signo ou sinal distintivo, mas o direito de dele se
utilizar, com exclusividade, para o desenvolvimento de uma atividade dentro de
um determinado nicho de mercado.
5. A caracterização do aproveitamento parasitário - que tem por base a noção
de enriquecimento sem causa prevista no art. 884 do CC/2002 - pressupõe,
necessariamente, a violação da marca.
6. Para a aferição de eventual colidência entre marca e signos distintivos
sujeitos a outras modalidades de proteção - como o nome empresarial e o título de
estabelecimento - não é possível restringir-se à análise do critério da anterioridade,
mas deve também se levar em consideração os princípios da territorialidade e da
especialidade, como corolário da necessidade de se evitar erro, dúvida ou confusão
entre os usuários.
7. Recurso especial a que se nega provimento.
(REsp n. 1.232.658-SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
12.6.2012, DJe 25.10.2012) grifei.
Propriedade industrial. Mandado de segurança. Recurso especial. Pedido
de cancelamento de decisão administrativa que acolheu registro de marca.
Reprodução de parte do nome de empresa registrado anteriormente. Limitação
geográfica à proteção do nome empresarial. Art. 124, V, da Lei n. 9.279/1996.
Violação. Ocorrência. Cotejo analítico. Não realizado. Similitude fática. Ausência.
1. Apesar de as formas de proteção ao uso das marcas e do nome de empresa
serem diversas, a dupla finalidade que está por trás dessa tutela é a mesma:
proteger a marca ou o nome da empresa contra usurpação e evitar que o
consumidor seja confundido quanto à procedência do produto.
2. A nova Lei de Propriedade Industrial, ao deixar de lado a linguagem
parcimoniosa do art. 65, V, da Lei n. 5.772/1971 - corresponde na lei anterior ao
inciso V, do art. 124 da LPI -, marca acentuado avanço, concedendo à colisão
entre nome comercial e marca o mesmo tratamento conferido à verificação de
colidência entre marcas, em atenção ao princípio constitucional da liberdade
concorrencial, que impõe a lealdade nas relações de concorrência.
3. A proteção de denominações ou de nomes civis encontra-se prevista como
tópico da legislação marcária (art. 65, V e XII, da Lei n. 5.772/1971), pelo que o
exame de eventual colidência não pode ser dirimido exclusivamente com base no
380
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
critério da anterioridade, subordinando-se, ao revés, em atenção à interpretação
sistemática, aos preceitos legais condizentes à reprodução ou imitação de marcas,
é dizer, aos arts. 59 e 65, XVII, da Lei n. 5.772/1971, consagradores do princípio da
especificidade. Precedentes.
4. Disso decorre que, para a aferição de eventual colidência entre denominação
e marca, não se pode restringir-se à análise do critério da anterioridade, mas
deve também se levar em consideração os dois princípios básicos do direito
marcário nacional: (i) o princípio da territorialidade, ligado ao âmbito geográfico
de proteção; e (ii) o princípio da especificidade, segundo o qual a proteção da
marca, salvo quando declarada pelo INPI de “alto renome” (ou “notória”, segundo
o art. 67 da Lei n. 5.772/1971), está diretamente vinculada ao tipo de produto
ou serviço, como corolário da necessidade de se evitar erro, dúvida ou confusão
entre os usuários.
5. Atualmente a proteção ao nome comercial se circunscreve à unidade
federativa de jurisdição da Junta Comercial em que registrados os atos
constitutivos da empresa, podendo ser estendida a todo território nacional se
for feito pedido complementar de arquivamento nas demais Juntas Comerciais.
Precedentes.
6. A interpretação do art. 124, V, da LPI que melhor compatibiliza os institutos
da marca e do nome comercial é no sentido de que, para que a reprodução ou
imitação de elemento característico ou diferenciado de nome empresarial de
terceiros constitua óbice ao registro de marca - que possui proteção nacional
-, necessário, nessa ordem: (i) que a proteção ao nome empresarial não goze
somente de tutela restrita a alguns Estados, mas detenha a exclusividade sobre
o uso do nome em todo o território nacional e (ii) que a reprodução ou imitação
seja “suscetível de causar confusão ou associação com estes sinais distintivos”.
Não sendo essa, incontestavelmente, a hipótese dos autos, possível a convivência
entre o nome empresarial e a marca, cuja colidência foi suscitada.
7. O dissídio jurisprudencial deve ser comprovado mediante o cotejo analítico
entre acórdãos que versem sobre situações fáticas idênticas.
8. Recurso especial provido, para restabelecer a sentença proferida pelo juízo
do primeiro grau de jurisdição, que denegou a segurança.
(REsp n. 1.204.488-RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
22.2.2011, DJe 2.3.2011)
Dessa forma, inexistindo, na hipótese dos autos, qualquer risco de confusão
entre os produtos e/ou serviços das litigantes ou um possível desvio de clientela,
em razão da divergente disposição geográfica existente entres as partes, mostrase perfeitamente possível a convivência do nome empresarial Sociedade Civil
Instituto Vera Cruz e a marca Vera Cruz utilizada e registrada pela Associação
Universitária Interamericana.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nesse sentir, considerando que deve ser efetivada a devida proteção ao
nome empresarial e que, igualmente, não pode ficar sem tutela jurídica a marca
devidamente registrada, é de rigor o conhecimento do presente recurso especial
para declarar que a recorrente possui direito ao uso da expressão “Vera Cruz”
apenas no âmbito territorial em que registrado o seu nome empresarial na Junta
Comercial do Estado do Pará.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para restabelecer a
sentença do juízo de primeiro grau.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.321.655-MG (2012/0090512-5)
Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino
Recorrente: Luiz Cláudio Teixeira Generoso
Advogado: Alexandre Pimenta da Rocha de Carvalho e outro(s)
Recorrido: Teresa Perez Viagens e Turismo Ltda - Empresa de pequeno
porte
Advogado: Luciana Rodrigues Atheniense e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Direito Civil e Consumidor. Rescisão
contratual. Pacote turístico. Pagamento antecipado. Perda integral dos
valores. Cláusula penal. Abusividade. CDC. Inexistência.
1. Inocorrência de maltrato ao art. 535 do CPC quando o acórdão
recorrido, ainda que de forma sucinta, aprecia com clareza as questões
essenciais ao julgamento da lide.
2. Demanda movida por consumidor postulando a restituição
de parte do valor pago antecipadamente por pacote turístico
internacional, em face da sua desistência decorrente do cancelamento
de seu casamento vinte dias antes da viagem.
382
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
3. Previsão contratual de perda total do valor antecipadamente
pago na hipótese de desistência em período inferior a vinte e um dias
da data do início da viagem.
4. Reconhecimento da abusividade da cláusula penal seja com
fundamento no art. 413 do Código Civil de 2002, seja com fundamento
no art. 51, II e IV, do CDC.
5. Doutrina e jurisprudência acerca do tema.
6. Recurso especial provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, A
Terceira Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos
termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas
Cueva, Nancy Andrighi e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha.
Brasília (DF), 22 de outubro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator
DJe 28.10.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Trata-se de recurso especial
interposto por Luiz Cláudio Teixeira Generoso com fundamento no art. 105,
inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo
Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, assim ementado (fl. 206):
Rescisão de contrato. Viagem turística. Cerceamento de defesa. Indeferimento
de produção de prova. Prova inútil. Nulidade inexistente. Contrato atípico. Cláusula
penal lícita. Cancelamento da viagem imotivada. Devolução do preço. - A prova se
destina ao convencimento do magistrado, se as provas acostadas aos autos são
suficientes a resolução da lide qualquer requerimento de produção de novas
provas devem ser indeferidas porque restariam inúteis. Não obstante o contrato
de viagem turística ser modalidade dos chamados contratos inominados ou
atípicos, a questão recursal se resume à licitude da multa para o cancelamento da
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
383
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
viagem, que se amolda a figura regulada pela lei civil como cláusula penal. É lícita
a estipulação contratual de cláusula penal para o inadimplemento total ou parcial
do contrato desde que não exceda o valor da obrigação principal.
Opostos embargos de declaração, estes restaram rejeitados nos seguintes
termos (fl. 253):
Embargos de declaração. Omissão, contradição e obscuridade. Inexistência.
Reapreciação do caso. Impossibilidade. Rejeitar os embargos.
- Não vislumbro qualquer omissão, contradição ou obscuridade a ser suprida
no acórdão.
- Nos termos do artigo 535, do CPC, os embargos de declaração são
modalidade de recurso especialíssima destinada exclusivamente a suprir
eventuais contradições, omissões e obscuridades apresentadas no julgado. Não
se prestam, pois, à reapreciação das teses defendidas pelas partes a fim de
modificar o acórdão ou para o simples pré-questionamento da matéria.
Na Comarca de Belo Horizonte, o autor Luiz Cláudio Teixeira Generoso,
ora recorrente, propôs ação de rescisão contratual cumulada com repetição do
indébito contra Tereza Perez Tour, postulando a restituição de parte do valor
pago antecipadamente por pacote turístico de 14 dias para Turquia, Grécia
e França, no montante de R$ 18.101,93, em face do cancelamento de seu
casamento.
Na sentença, o Juiz de Direito julgou procedentes os pedidos para declarar
a rescisão do contrato e determinar a restituição ao autor de 90% do valor total
pago.
O Tribunal de Justiça, provendo a apelação da empresa requerida, julgou
improcedentes os pedidos.
Nas suas razões do recurso especial, a parte recorrente alegou violação do
art. 535, incisos I e II, do Código de Processo Civil, ao argumento de que houve
negativa de prestação jurisdicional.
No mérito, o recorrente alegou a contrariedade ao art. 51, incisos II e IV,
do Código de Defesa do Consumidor, sob o argumento de que é nula a cláusula
penal que estabelece a perda integral do preço pago, tendo em vista que constitui
estipulação abusiva e de que resulta enriquecimento ilícito, circunstância vedada
pelo ordenamento jurídico pátrio.
O recurso especial foi admitido na origem.
É o breve relatório.
384
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
VOTO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Inicialmente, não há
negativa de prestação jurisdicional no acórdão que decide de modo integral e
com fundamentação suficiente a controvérsia posta.
Ademais, o juízo não está obrigado a se manifestar a respeito de todas as
alegações e dispositivos legais suscitados pelas partes.
Nesse sentido:
Agravo regimental no recurso especial. Ofensa ao art. 535 do CPC não
configurada. Fundamentação deficiente. Necessidade de indicação de dispositivo
de lei federal no recurso especial interposto pela alínea c. Súmula n. 284-STF.
1. Não se verifica ofensa ao art. 535 do CPC, tendo em vista que o acórdão
recorrido analisou, de forma clara e fundamentada, todas as questões pertinentes
ao julgamento da causa, ainda que não no sentido invocado pela parte.
2. A jurisprudência desta Corte orienta-se no sentido de que, para ser
apreciado o recurso especial interposto pela alínea c do art. 105 da Constituição
Federal, cabe ao recorrente indicar o dispositivo de lei federal violado, pois o
dissídio jurisprudencial baseia-se na interpretação divergente da norma federal.
Aplica-se, por analogia, o disposto na Súmula n. 284 do Excelso Pretório diante da
deficiência na fundamentação do recurso, na espécie, caraterizada pela ausência
de indicação da norma federal tida por violada.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no REsp n. 1.099.762-RJ, Rel. Min. Vasco Della Giustina (Desembargador
convocado do TJ-RS), Terceira Turma, julgado em 12.5.2009, DJe 25.5.2009)
SFH. Correção monetária do saldo devedor. TR. Execução extrajudicial. DecretoLei n. 70/1966. Constitucionalidade.
- Prevista no contrato, é possível a utilização da Taxa Referencial, como
índice de correção monetária do saldo devedor, em contrato de financiamento
imobiliário.
- É pacífico em nossos Tribunais, inclusive no Superior Tribunal de Justiça e em
nossa mais alta Corte, a constitucionalidade do Decreto-Lei n. 70/1966.
- Não merece provimento recurso carente de argumentos capazes de
desconstituir a decisão agravada.
(AgRg no Ag n. 945.926-SP, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Terceira
Turma, julgado em 14.11.2007, DJ 28.11.2007, p. 220)
Quanto ao mérito, assiste razão ao recorrente.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
385
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O Tribunal de Justiça a quo considerou válida a cláusula penal que
estabelecia a perda integral do valor antecipadamente pago pelo recorrente
(R$ 18.101,93) em virtude de desistência de viagem de turismo internacional
(Turquia, Grécia e França) em decorrência do cancelamento do casamento do
recorrente.
Observe-se o seguinte trecho do acórdão recorrido (fls. 210-211):
No caso presente, o apelado celebrou com a apelante contrato de viagem
turística em que lhe seria fornecida excursão por algumas cidades da Europa com
transporte e hospedagem incluídas, por motivo de sua lua de mel.
Conforme prova dos autos, o apelado buscou a rescisão do contrato 20 dias
antes do início da prestação dos serviços, por causa do cancelamento de seu
casamento. Tal fato não pode ser tido como caso fortuito ou força maior de que
disciplinam o art. 393, do CC. O fato não se subsume a definição do parágrafo
único do dispositivo citado. Pelo contrário, decorre de manifestação negativa de
vontade.
Descabido divagar sobre os motivos do rompimento do relacionamento do
apelado. O fato é que havia um contrato celebrado entre o apelado e a apelante,
e nele estava estipulada a cláusula penal de 100% (cem por cento) do valor pago
pela viagem para o caso de cancelamento da prestação dos serviços até 21 dias
até a data de seu início. Ele buscou o cancelamento 20 dias antes da viagem, o
que impossibilita a restituição dos valores pagos aos fornecedores estrangeiros,
em função das políticas de não reembolsar, comprovada pelos documentos de fls.
66-67, devidamente traduzidos em fls. 68-69.
Por sua vez, sustentou o recorrente que a cláusula penal que estabelece a
perda da integralidade do preço pago em caso de cancelamento da prestação dos
serviços constitui estipulação abusiva, que resulta em enriquecimento ilícito.
Assiste razão ao recorrente.
Com efeito, o valor da multa contratual estabelecido em 100% (cem por
cento) sobre o montante pago pelo pacote de turismo é flagrantemente abusivo,
ferindo a legislação aplicável ao caso seja na perspectiva do Código Civil, seja
na perspectiva do Código de Defesa do Consumidor, que é a fundamentação do
recurso especial.
No Código Civil de 2002, a redução da cláusula penal é regulada pelo seu
art. 413, verbis:
Art. 413. A penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a
obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade
386
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do
negócio.
Note-se que a regra correspondente ao art. 413 do CC/2002 era o artigo
924 do Código Civil de 1916, que facultava ao Juiz a redução proporcional da
cláusula penal na hipótese de cumprimento parcial da obrigação, sob pena de
afronta ao princípio que veda o enriquecimento sem causa.
A redação do dispositivo era a seguinte:
Art. 924. Quando se cumprir em parte a obrigação, poderá o juiz reduzir
proporcionalmente a pena estipulada para o caso de mora, ou de inadimplemento.
O Código Civil de 2002 alterou a disciplina da cláusula penal, pois,
em seu artigo 413, passou a determinar que o juiz deve proceder à redução
eqüitativamente, se a obrigação já tiver sido cumprida em parte, ou se o montante
da penalidade for manifestamente excessivo.
Analisando as referidas normas, Jorge Cesa Ferreira da Silva
(Inadimplemento das Obrigações - Comentários aos arts. 389 a 420 do Código Civil
- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007 - P. 279-280) preleciona:
A propósito do art. 924 do Código Civil de 1916, não eram raras as vozes
no sentido de ser dispositiva a norma nele contida. Assim, por exemplo,
manifestaram-se Clóvis Bevilaqua (op. cit., p. 72), Pontes de Miranda (op. cit., p.
80), Caio Mário da Silva Pereira (op. cit., p. 110) e Orlando Gomes (op. cit., p. 161).
Partia-se do pressuposto de que cabia à autonomia privada deliberar sobre a
multa, além do fato de que a natureza penal da cláusula seria mais bem atendida
pela possibilidade de afastar a norma que admitia minorá-la.
No plano do direito comparado, tal posição não se sustenta. No direito francês,
após a reforma de 1975, os arts. 1.152 e 1.231 expressamente afirmam a sua
cogência, do mesmo modo que o faz o art. 812º do Código Civil português. Para
o direito italiano, o art. 1.384, tido como excepcional por admitir a revisão judicial,
é assim também compreendido (cf. Giorgio De Nova, op. cit., p. 381), no que se
assemelha ao § 343 do BGB, cujo texto se mantém vigente desde 1990 (cf. Dieter
Medicus, op. cit., p. 225)
Com relação ao Código de 2002, parece ser esta, e não aquela, a melhor
interpretação. Não se trata aqui exclusivamente da utilização da autonomia
privada, mas sim de outros valores especialmente tutelados pelo novo
Código. O art. 413 sustenta-se no equilíbrio e na vedação ao excesso, que são
especialmente garantidos no novo texto (cf., p. ex., arts. 187, 317, 478), sempre
de modo cogente. No mesmo sentido, é da natureza da noção de pena - que,
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
387
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
como se buscou demonstrar, representa o elemento conceitual básico da cláusula
penal - que ela se ajuste às circunstâncias concretas do caso. Ademais, partindose do pressuposto de que a regulação da cláusula penal a estrutura de modo
proporcionado ao dano sofrido, caso a norma fosse afastável pela vontade das
partes, a situação de inadimplemento parcial poderia facilmente apresentar-se
muito mais vantajosa ao credor do que a de adimplemento, o que revelaria um
contra-senso. Por fim, não é de ser esquecida a mudança do verbo empregado pelo
legislador. Ao contrário da faculdade posta no art. 924 do Código de 1916, o art. 413
refere agora a dever judicial (“deve ser reduzida”).
Na mesma linha, em comentário ao aludido dispositivo legal, Hamid
Charaf Bodine Jr. assevera (Código Civil Comentado: Doutrina e Jurisprudência:
5ª ed. Barueri-SP: Ed. Manole, 2011, p. 469):
Diversamente do que estabelecia o art. 924, do Código Civil revogado, o
dispositivo é incisivo: o juiz tem o dever, não a possibilidade de reduzir, ao contrário
do que constava do diploma legal revogado. A norma é de ordem pública, não
admitindo que as partes afastem sua incidência, dispondo que a multa prevista
é irredutível.
(...)
O presente artigo impõe ao juiz a obrigação de reduzir a penalidade nas
hipóteses em que ela for superior à legal e aplica-se à multa moratória e à
compensatória. Em se tratando de de disposição de ordem pública, nada impede
que o juiz a aplique de ofício.
Dessa forma, o entendimento adotado pelo Tribunal de origem
merece reforma, pois não se mostra possível falar em perda total dos valores
antecipadamente pagos por pacote turístico, sob pena de se criar uma situação
que, além de vantajosa para a empresa de turismo (fornecedora de serviços),
mostra-se excessivamente desvantajosa para o consumidor.
Nesse sentido, trago à colação os seguintes precedentes:
Recurso especial. Contrato de cessão de uso de imagem. Inadimplemento
parcial. Cláusula penal compensatória. Redução com base no art. 924 do CC/1916.
Possibilidade.
1. Ação de cobrança referente ao valor de cláusula penal compensatória
ajustada em contrato de cessão de uso de imagem diante do inadimplemento de
metade das prestações ajustadas para o segundo ano da relação contratual, que
se renovara automaticamente.
2. Redução do valor da cláusula penal com fundamento no disposto no artigo
924 do Código Civil de 1916, que facultava ao Juiz a redução proporcional da
388
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
cláusula penal nas hipóteses de cumprimento parcial da obrigação, sob pena de
afronta ao princípio da vedação do enriquecimento sem causa.
3. Doutrina e jurisprudência acerca das questões discutidas no recurso especial.
4. Recurso especial parcialmente provido. (REsp n. 1.212.159-SP, de minha
relatoria, Terceira Turma, julgado em 19.6.2012, DJe 25.6.2012)
Recurso especial. Contrato bilateral, oneroso e comutativo. Cláusula penal.
Efeitos perante todos os contratantes. Redimensionamento do quantum debeator.
Necessidade. Recurso provido.
1. A cláusula penal inserta em contratos bilaterais, onerosos e comutativos
deve voltar-se aos contratantes indistintamente, ainda que redigida apenas em
favor de uma das partes.
2. A cláusula penal não pode ultrapassar o conteúdo econômico da obrigação
principal, cabendo ao magistrado, quando ela se tornar exorbitante, adequar o
quantum debeatur.
3. Recurso provido.
(REsp n. 1.119.740-RJ, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em
27.9.2011, DJe 13.10.2011)
Em situação semelhante, esta Corte tem o firme entendimento de que, nos
contratos de promessa de compra e venda de imóvel, é cabível ao magistrado
reduzir o percentual da cláusula penal com o objetivo de evitar o enriquecimento
sem causa por parte de qualquer uma das partes.
A propósito:
Agravo regimental. Recurso especial. Promessa de compra e venda. Rescisão
contratual. Inadimplência dos promitentes compradores. Cláusula penal. Perda
da totalidade das prestações pagas. Desproporcionalidade. Contrato anterior à
vigência do Código de Defesa do Consumidor. Incidência do art. 924 do Código
Civil/1916. Possibilidade.
I - Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor a contrato celebrado
antes da sua vigência.
II - Possibilidade de o juiz, com fundamento na regra do art. 924 do Código
Civil/1916, reduzir a pena convencional estatuída a um patamar razoável,
mormente quando se verifica a perda de todas parcelas pagas.
III - Limitação da retenção das parcelas pagas ao percentual de 25% (vinte e
cinco), em favor da promitente vendedora.
IV - Precedentes específicos, em casos similares, deste Superior Tribunal de
Justiça III. Agravo regimental provido
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
389
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(AgRg no REsp n. 479.914-RJ, de minha relatoria, Terceira Turma, julgado em
5.10.2010, DJe 15.10.2010)
Agravo regimental. Recurso especial. Civil e Processo Civil. Liquidação de
sentença. Juros de mora. Ausência de fixação na decisão liquidanda. Súmula
n. 254 do STF e art. 293 do CPC. Compromisso de compra e venda de imóvel.
Rescisão contratual. Devolução de parcelas pagas. Termo inicial dos juros
moratórios. Trânsito em julgado da decisão condenatória.
1. É de ordem pública a matéria atinente à fixação dos juros de mora nas
decisões judiciais. Inocorrência de afronta ao art. 517 do CPC.
2. “Incluem-se os juros moratórios na liquidação, embora omisso o pedido
inicial ou a condenação” (Súmula n. 254 do STF). Incidência do art. 293 do CPC.
3. A Segunda Seção deste Tribunal Superior sufragou o entendimento de
que “na hipótese de resolução contratual do compromisso de compra e venda
por simples desistência dos adquirentes, em que postulada, pelos autores, a
restituição das parcelas pagas de forma diversa da cláusula penal convencionada,
os juros moratórios sobre as mesmas serão computados a partir do trânsito em
julgado da decisão” (REsp n. 1.008.610-RJ, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJe
3.9.2008), porquanto somente a partir daí é que surgiu a mora da promitentevendedora.
4. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no REsp n. 759.903-MG, Rel. Ministro Vasco Della Giustina
(Desembargador convocado do TJ-RS), Terceira Turma, julgado em 15.6.2010, DJe
28.6.2010)
No que tange ao Código de Defesa do Consumidor, está efetivamente
evidenciada a violação ao art. 51, incisos II e IV, conforme alegado pelo
recorrente, cujas disposições estatuem o seguinte:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais
relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
I - (...)
II - subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos
previstos neste código;
III - (...)
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o
consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou
a eqüidade;
Deve-se, assim, reconhecer a abusividade da cláusula contratual em questão
seja por subtrair do consumidor a possibilidade de reembolso, ao menos parcial,
390
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
como postulado na inicial, da quantia antecipadamente paga, seja por lhe
estabelecer uma desvantagem exagerada.
Merece ainda lembrança o disposto no art. 51, § 1º, inciso III, que
complementa o disposto no inciso IV do mesmo dispositivo legal do CDC:
Art. 51.
§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
(...)
III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a
natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias
peculiares do caso.
Precisa, como sempre, a lição Sérgio Cavalieri Filho (Programa de Direito do
Consumidor, 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 172) sobre o aludido dispositivo legal:
O dispositivo deixa claro, em primeiro lugar, que a onerosidade excessiva
terá que ser apurada no caso concreto (não em abstrato), atentando o julgador
para as circunstâncias particulares do caso, entre as quais a natureza e o
conteúdo do contrato, bem como o interesse das partes. Em segundo lugar,
que a excessividade deve ser aferida com no desequilibrio do contrato ou na
desproporção das prestações das partes, uma vez que ofendem o princípio da
equivalência contratual, princípio esse instituído no art. 4º, inciso III - “sempre com
base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidor e fornecedor” -, bem
como no art. 6º, inciso II - “asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas
contratações”.
Por fim, é de se ressaltar que o cancelamento de pacote turístico contratado
constitui risco do empreendimento desenvolvido por qualquer agência de
turismo, não podendo esta pretender a transferência integral do ônus decorrente
de sua atividade empresarial a eventuais consumidores.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para determinar a
redução do montante estipulado a título de cláusula penal para 20% sobre o
valor antecipadamente pago, conforme postulado alternativamente na petição
inicial, incidindo correção monetária desde o ajuizamento da demanda e juros
de mora desde a citação.
Como essa pretensão foi articulada na petição inicial, arcará a empresa
requerida com as custas e honorários do procurador do autor, que fixo em 15%
sobre o valor atualizado da condenação.
É o voto.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
391
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO ESPECIAL N. 1.323.410-MG (2011/0219578-3)
Relatora: Ministra Nancy Andrighi
Recorrente: Paulo Roberto Gomes Ferreira e outro
Advogados: Márcio Gabriel Diniz e outro(s)
Dalton Max Oliveira e outro(s)
Recorrido: Geraldo Magalhães Gomes - Espólio
Representado por: Maria José Mesquita Gomes - Inventariante
Advogado: Fernanda Corrêa Machado Mourão e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Ação renovatória de contrato. Locação
comercial. Accessio temporis. Prazo da renovação. Artigos analisados:
art. 51 da Lei n. 8.245/1991.
1. Ação renovatória de contrato de locação comercial ajuizada
em 9.6.2003. Recurso especial concluso ao Gabinete em 7.12.2011.
2. Discussão relativa ao prazo da renovação do contrato de
locação comercial nas hipóteses de “accessio temporis”.
3. A Lei n. 8.245/1991 acolheu expressamente a possibilidade
de “accessio temporis”, ou seja, a soma dos períodos ininterruptos dos
contratos de locação para se alcançar o prazo mínimo de 5 (cinco)
anos exigido para o pedido de renovação, o que já era amplamente
reconhecido pela jurisprudência, embora não constasse do Decreto n.
24.150/1934.
4. A renovatória, embora vise garantir os direitos do locatário
face às pretensões ilegítimas do locador de se apropriar patrimônio
imaterial, que foi agregado ao seu imóvel pela atividade exercida
pelo locatário, notadamente o fundo de comércio, o ponto comercial,
também não pode se tornar uma forma de eternizar o contrato de
locação, restringindo os direitos de propriedade do locador, e violando
a própria natureza bilateral e consensual da avença locatícia.
5. O prazo 5 (cinco) anos mostra-se razoável para a renovação
do contrato, a qual pode ser requerida novamente pelo locatário ao
final do período, pois a lei não limita essa possibilidade. Mas permitir
392
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
a renovação por prazos maiores, de 10, 15, 20 anos, poderia acabar
contrariando a própria finalidade do instituto, dadas as sensíveis
mudanças de conjuntura econômica, passíveis de ocorrer em tão longo
período de tempo, além de outros fatores que possam ter influência na
decisão das partes em renovar, ou não, o contrato.
6. Ouando o art. 51, caput, da Lei n. 8.2145 dispõe que o locatário
terá direito à renovação do contrato “por igual prazo”, ele está se
referido ao prazo mínimo exigido pela legislação, previsto no inciso
II do art. 51, da Lei n. 8.245/1991, para a renovação, qual seja, de 5
(cinco) anos, e não ao prazo do último contrato celebrado pelas partes.
7. A interpretação do art. 51, caput, da Lei n. 8.245/1991,
portanto, deverá se afastar da literalidade do texto, para considerar
o aspecto teleológico e sistemático da norma, que prevê, no próprio
inciso II do referido dispositivo, o prazo de 5 (cinco) anos para que
haja direito à renovação, a qual, por conseguinte, deverá ocorrer, no
mínimo, por esse mesmo prazo.
8. A renovação do contrato de locação não residencial, nas
hipóteses de “accessio temporis”, dar-se-á pelo prazo de 5 (cinco)
anos, independentemente do prazo do último contrato que completou
o quinquênio necessário ao ajuizamento da ação. O prazo máximo da
renovação também será de 5 (cinco) anos, mesmo que a vigência da
avença locatícia, considerada em sua totalidade, supere esse período.
9. Se, no curso do processo, decorrer tempo suficiente para
que se complete novo interregno de 5 (cinco) anos, ao locatário
cumpre ajuizar outra ação renovatória, a qual, segundo a doutrina, é
recomendável que seja distribuída por dependência para que possam
ser aproveitados os atos processuais como a perícia.
10. Conforme a jurisprudência pacífica desta Corte, havendo
sucumbência recíproca, devem-se compensar os honorários
advocatícios. Inteligência do art. 21 do CPC c.c. a Súmula n. 306-STJ.
11. Recurso especial parcialmente provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
393
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar parcial provimento ao
recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs.
Ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram
com a Sra. Ministra Relatora. Ausentes, justificadamente, o Sr. Ministro Sidnei
Beneti e, ocasionalmente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha.
Brasília (DF), 7 de novembro de 2013 (data do julgamento).
Ministra Nancy Andrighi, Relatora
DJe 20.11.2013
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de Recurso Especial
interposto por Paulo Roberto Gomes Ferreira e Outro, com base no art. 105, III,
a da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do
Estado de Minas Gerais (TJ-MG).
Ação: renovatória de contrato de locação comercial ajuizada por Paulo
Roberto Gomes Ferreira e Outro em face de Geraldo Magalhães Gomes - Espólio,
alegando que exploram atividade de revenda de combustíveis e derivados de
petróleo e álcool, no imóvel dos réus, tendo o primeiro contrato sido firmado em
23.12.1993 e renovado em 23.4.1999, com previsão de término em 23.12.2003.
Pretendem a renovação da locação pelo prazo de 10 (dez) anos.
Contestação: Geraldo Magalhães Gomes - Espólio sustentou,
preliminarmente, a inépcia da petição inicial e, no mérito, (i) o desinteresse na
renovação do contrato, pois pretende construir galerias de lojas no local; (ii) que
a renovação só poderia ocorrer pelo prazo máximo de 56 meses, que é o tempo
da avença anterior, devendo, nesse caso, ser fixado o aluguel provisório no valor
de R$ 6.500,00 (seis mil e quinhentos reais).
Sentença: julgou procedente o pedido, para “renovar a locação não
residencial celebrada entre as partes, no período de 24 de dezembro de 2003 até
23 de dezembro de 2011, cujo valor do aluguel será de R$ 4.942,37 (quatro mil,
novecentos e quarenta e dois reais e trinta e sete centavos”, valor esse que deverá
ser descontado no período de 4 em 4 meses, nos valores equivalentes aos índices
do IGP ou IGPM, bem como sofrerá aumento também de 4 em 4 meses,
sempre tomando-se por base o mês de setembro de 2008 (e-STJ fls. 273-278).
394
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Acórdão: deu parcial provimento à apelação dos recorridos para reduzir o
prazo da renovação da locação ao tempo do último contrato firmado; e negou
provimento ao recurso de apelação interposto pelos recorrentes, nos termos da
seguinte ementa (e-STJ fls. 347-391):
Civil e Processual Civil. Apelação. Ação renovatória de contrato de locação.
Agravo retido. Prova oral dispensável. Recurso não provido. Inépcia da inicial.
Inocorrência. Revelia. Não verificação. Renovação da locação. Requisitos legais.
Presença. Pedido procedente. Prazo da renovação. Limitação ao prazo do último
contrato renovado. Locativo. Perícia conclusiva. Prevalência. Necessidade.
Apelações conhecidas, primeira provida em parte e segunda não provida.
- Não induz cerceamento de defesa a dispensa das provas inúteis ao
julgamento da lide. - Agravo retido conhecido e não provido.
- É apta à formação do contencioso a inicial que cumpre os requisitos do art.
282 do CPC e que é acompanhada de documentos que acobertam as teses nela
narradas.
- O comparecimento do réu, antes de sua citação, pedindo vista dos autos, não
dá ensejo à abertura do prazo de 15 dias para contestar se o requerimento foi por
procurador sem poderes para receber citação e se sequer foi apreciado o pedido
de vista pelo MM. Juiz, não havendo se falar em revelia. - Em se tratando de ação
renovatória, cabe ao locatário a prova dos requisitos exigidos pelos artigos 51
e art. 71 da Lei n. 8.245/1991. Se cumpridos os requisitos legais, o pedido de
renovação do contrato de locação deve ser julgado procedente.
- O prazo para a renovação locatícia é aquele previsto no último contrato,
sendo de no máximo cinco anos à luz do caput do art. 51 da Lei n. 8.245/1991,
devendo ser reduzido se na sentença foi fixado prazo maior. - Havendo laudo
pericial válido e conclusivo, é de se adotá-lo para a fixação do valor dos aluguéis.
- Recursos conhecidos, primeiro provido em parte e segundo não provido.
Embargos de Declaração: os interpostos por Paulo Roberto Gomes Ferreira
e Outro (e-STJ fls. 394-400), foram rejeitados. Os interpostos por Geraldo
Magalhães Gomes - Espólio (e-STJ fls. 403-405), foram acolhidos em parte,
apenas para alteração da distribuição dos ônus da sucumbência (e-STJ fls. 426447).
Recurso especial: interposto por Paulo Roberto Gomes Ferreira e Outro
com base na alínea a do permissivo constitucional (e-STJ fls. 450-464), sustenta
violação dos seguintes dispositivos legais:
(i) art. 51 da Lei n. 8.245/1991, alegando, em síntese, que o prazo da
renovação do contrato locatício não deve ser limitado ao prazo do último
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
395
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
contrato a ser renovado, devendo-se levar em consideração o tempo de
tramitação do processo, sendo desnecessário que o locatário ajuíze nova ação
renovatória em virtude da demora na entrega da tutela jurisdicional;
(ii) arts. 20 e 21 do CPC, pois tendo sido reconhecido o direito à renovação
do contrato, não houve sucumbência recíproca, devendo ser redimensionados os
respectivos ônus.
Exame de admissibilidade: o recurso foi inadmitido na origem pelo TJMG (e-STJ fls. 482-483), tendo sido interposto agravo contra a respectiva
decisão denegatória, ao qual dei provimento para determinar o julgamento do
recurso especial.
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a controvérsia a
definir qual o prazo da renovação de contrato de locação comercial, considerando
a “accessio temporis”.
1. – Do prazo de renovação da locação (art. 51 da Lei n. 8.245/1991).
01. Pelo que se depreende da leitura das decisões recorridas, em 23.12.1993,
Geraldo Magalhães Gomes - Espólio firmou contrato de locação não residencial
com Comercial Gomes e Lage Distribuidora de Petróleo Ltda., cujo prazo de
vigência era até 23.12.2000.
02. Referido contrato, contudo, vigeu efetivamente até 23.4.1999, data em
que foi celebrado um segundo contrato de locação, com os recorrentes Paulo
Roberto Gomes Ferreira e Outro, sócios da locatária originária, cujo prazo de
vigência era de 23.4.1999 a 23.12.2003 – 4 anos e 8 meses, portanto.
03. O Tribunal de origem, após analisar a documentação apresentada
pelas partes, que retratava a evolução da locação, entendeu que houve cessão do
contrato, sendo, por conseguinte, possível a soma dos prazos com a finalidade de
pleitear a renovação do contrato:
Como o primeiro contrato teve vigência real de 23.12.1993 a 23.4.1999 – 5 anos
e 4 meses – e o segundo foi firmado para o período de 23.4.1999 a 23.12.2003 – 4
anos e 8 meses, a soma dos prazos resulta em 10 anos, restando preenchido o
requisito mínimo de 5 anos, previsto no art. 51, II, da Lei n. 8.245/1991 (e-STJ fl. 373).
396
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
04. Por força das Súmulas n. 5 e 7 do STJ, não cabe a essa Corte rever os
fatos e as provas produzidas. Assim, as premissas que devem nortear o presente
julgamento são aquelas já definidas nas instâncias ordinárias.
05. A questão que se coloca, portanto, é unicamente em relação ao prazo
pelo qual o contrato de locação deve ser renovado, tendo em vista o disposto no
art. 51, da Lei n. 8.245/1992 e a “accessio temporis”.
06. O acórdão recorrido entendeu que o art. 51 da Lei de Locações,
quando menciona que o locatário tem direito à renovação do contrato “por
igual prazo”, está fazendo referência ao prazo do “contrato renovando e não ao
prazo resultado da soma dos períodos de vigência dos contratos consecutivos
e ininterruptos”. Assim, a renovação deveria se dar por 4 (quatro) anos e oito
meses – de 23.12.2003 a 23.8.2008 (e-STJ fls. 380).
07. Afirma o TJ-MG, outrossim, que é totalmente desinfluente, para se
definir o prazo da renovação do contrato, o fato da sentença de primeiro grau ter
sido proferida apenas no ano de 2009, porque (i) a renovação por novo período
exige ação própria e (ii) nada impedia que os locatários a ajuizassem antes do
julgamento definitivo da presente ação.
08. Os recorrentes, por sua vez, sustentam que a renovação da locação
deve ser deferida por prazo superior “ao daquele referido no dispositivo legal
pertinente [art. 51, II, da Lei n. 8.245/1991]” (e-STJ fl. 461), devendo, ainda, ser
considerado o tempo de tramitação do processo, que, na hipótese, foi superior
a 6 (seis) anos. Pleiteiam, assim, a manutenção da sentença de primeiro grau, a
qual concedeu a renovação do contrato até 23.12.2011.
09. A ação renovatória do contrato de locação comercial remonta ao início
do século passado, tendo sido regulada pelo Decreto n. 24.150/1934 (conhecido
como a “Lei de Luvas”), visando proteger o “fundo de comércio” das investidas
abusivas do locador, que, quase sempre, exigia do locatário o pagamento de altos
valores (“luvas”) para renovar o contrato.
10. A Lei n. 6.649/1979 que, posteriormente, veio dispor sobre as regras
da locação predial urbana, não tratou do tema da renovatória, que permaneceu
regulada pelo Decreto n. 24.150/1934, conforme determinado no art. 1º, § 2º da
própria lei.
11. Assim, conforme a “Lei de Luvas”, exigia-se como requisitos para a
renovação, que (i) o contrato de locação dissesse respeito a imóvel comercial ou
industrial; (ii) fosse firmado por prazo determinado e de, no mínimo, 5 anos;
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(iii) a atividade comercial ou industrial fosse exercida pelo locatário por no
mínimo 3 anos ininterruptos.
12. Com a entrada em vigor da nova Lei de Locações (Lei n. 8.245/1991),
que, por sua vez, tratou expressamente do tema, ampliou-se o direito à renovação,
que deixou de visar apenas à proteção do fundo de comércio, para também
proteger as outras atividades empresariais, e até as sociedades civis que não
têm como objeto a atividade empresarial, desde que visem o lucro. É o caso das
escolas, das clínicas, consultórios, etc.
13. Além disso, a novel legislação acolheu expressamente a possibilidade de
“accessio temporis”, ou seja, a soma dos períodos ininterruptos dos contratos de
locação para se alcançar o prazo mínimo de 5 (cinco) anos exigido para o pedido
de renovação, o que já era amplamente reconhecido pela jurisprudência, embora
não constasse do Decreto n. 24.150/1934.
14. Contudo, a redação do caput do art. 51 da Lei n. 8.245/1991, ao dispor
que “Nas locações de imóveis destinados ao comércio, o locatário terá direito
a renovação do contrato, por igual prazo” - desde que preenchidos os demais
requisitos legais, cumulativamente, previstos nos respectivos incisos -, acabou
por suscitar discussões e diferentes interpretações doutrinárias e jurisprudenciais
sobre qual seria esse prazo de renovação, principalmente, nas hipóteses de
“accessio temporis”.
15. Com efeito, a dúvida que surgiu está relacionada ao alcance da expressão
“por igual prazo”. Discute-se, nesse sentido, se ela estaria se referindo (i) ao
prazo de 5 (cinco) anos exigido para que o locatário tenha direito à renovação
(inciso II do art. 51 da Lei n. 8.245/1991); ou (ii) à soma dos prazos de todos
os contratos celebrados pelas partes; ou (iii) ao prazo do último contrato, que
completou o quinquênio.
16. A Súmula n. 178-STF editada sob a égide do antigo Decreto n.
24.150/1934, mencionava ser de 5 (cinco) anos o prazo máximo da renovação
contratual, ainda que o prazo previsto no contrato a renovar fosse superior. E
a doutrina aponta como principal justificativa, para essa limitação temporal, as
questões inflacionárias da época, que tornariam inviável a renovação por período
de tempo maior, sem prejuízo do próprio locador.
17. Ademais, vale consignar que a renovatória, embora vise garantir os
direitos do locatário face às pretensões ilegítimas do locador de se apropriar
patrimônio imaterial, que foi agregado ao seu imóvel pela atividade exercida
pelo locatário, notadamente o fundo de comércio, o ponto comercial, também
398
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
não pode se tornar uma forma de eternizar o contrato de locação, restringindo
os direitos de propriedade do locador, e violando a própria natureza bilateral e
consensual da avença locatícia.
18. Nesse contexto, 5 (cinco) anos mostra-se um prazo razoável para a
renovação do contrato, a qual pode ser requerida novamente pelo locatário
ao final do período, pois a lei não limita essa possibilidade. Mas permitir a
renovação por prazos maiores, de 10, 15, 20 anos, poderia acabar contrariando
a própria finalidade do instituto, dadas as sensíveis mudanças de conjuntura
econômica, passíveis de ocorrer em tão longo período de tempo, além de outros
fatores que possam ter influência na decisão das partes em renovar, ou não, o
contrato.
19. Esse entendimento propagou-se na jurisprudência pátria, tendo essa
Corte, em inúmeros julgados, também decidido pelo limite máximo de 5 (cinco)
anos para a renovação contratual. Observe-se nesse sentido: AR n. 4.220-MG,
Rel. Min. Jorge Mussi, 3ª Seção, DJe de 18.5.2011; REsp n. 693.729-MG, Rel.
Min. Nilson Naves, DJU 23.10.2006; REsp n. 267.129-RJ, Rel. Min. José Arnaldo
da Fonseca, DJU 6.11.2000; REsp n. 170.589-SP, Rel. Min. Edson Vidigal, DJU
12.6.2000; REsp n. 202.180-RJ, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU 22.11.1999; REsp
n. 195.971-MG, Rel. Min. Felix Fischer, DJU 12.4.1999.
20. Mesmo diante da redação do art. 51, caput, da Lei n. 8.245/1991,
vozes importantes da doutrina permaneceram defendendo o prazo máximo
de 5 (cinco) anos para a renovação, cumprindo mencionar nesse sentido: José
Roberto Neves Amorim, Revisional e Renovatória de Locação, in Francisco
Antonio Casconi e José Roberto Neves Amorim (coord.), Locações Aspectos
Relevantes, aplicação do Novo Código Civil, São Paulo: Método, 2004, p. 113121; Sylvio Capanema de Souza, A Lei do Inquilinato Comentada, 6ª ed., Rio de
Janeiro: GZ Editora, 2009, p. 215.
21. Não se desconhece, por outro lado, o entendimento de alguns
doutrinadores, no sentido de que, se o contrato inicial já fora celebrado por
prazo superior e o art. 8.245/91, caput, afirma que a renovação deve-se dar por
igual prazo, não haveria razão para limitá-lo a 5 (cinco) anos, sob pena de ferir
a própria autonomia das partes. Nesse sentido: Silvio de Salvo Venosa, Lei do
Inquilinato Comentada – Doutrina e Prática, São Paulo: Atlas, 2010, p. 228; José
Carlos de Moreira Salles, Ação Renovatória de Locação Comercial, 2ª ed, São
Paulo: RT, 2002, p. 61.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
399
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
22. Contudo, pelas razões já expostas, notadamente, a contrariedade à
própria finalidade do instituto, bem como o perigo de eternização do contrato
de locação, aliados à própria praxe comercial, no sentido de que há direito à
renovação da avença locatícia por 5 (cinco) anos, não vejo razão para alterar esse
entendimento, inclusive já firmado por esta Corte.
23. Por essa razão, a pretensão inicial dos recorrentes, no sentido de que a
renovação do contrato deveria se dar por 10 anos, haja vista ser esse o resultado
da soma da vigência dos dois contratos celebrados pelas partes, não merece
prosperar. Repita-se: o prazo máximo da renovação é de 5 (cinco) anos. Nesse
sentido, outrossim, a lição de José Carlos de Moreira Salles:
De fato, firmando contratos sucessivos e com prazos inferiores a cinco anos,
locador e locatário manifestaram, inicialmente, a intenção de não submeter a
locação ao regime do art. 51 da Lei n. 8.245/1991. Se, posteriormente, por desídia
ou até por mudança de intenção, o locador aquiesceu em firmar um último
contrato, sabendo que a soma do prazo deste com os prazos dos anteriores
faria a locação cair sob o domínio da ação renovatória, não se eximirá ele dos
efeitos desta. Porém, não será justo que, nesta hipótese, se submeta à renovação
por prazo superior ao de cinco anos porque nunca, nos contratos anteriores,
se sujeitou sequer ao prazo mínimo para o exercício daquela ação (cinco
anos). Também não será justo que o locatário – que pelos contratos anteriores,
isoladamente considerados, não tinha nenhum direito à renovação – passe, pela
soma dos prazos contratuais, a ter esse direito e, ainda, por prazo superior ao
mínimo exigido pela lei para o exercício da ação renovatória” (Op. Cit. p. 61)
24. Estabelecido o prazo máximo da renovação na hipótese, resta definir
qual deve ser o prazo mínimo. A questão ganha relevância quando é necessária
a soma dos prazos dos contratos para se chegar ao mínimo de 5 anos (“accessio
temporis”).
25. Com efeito, nessas hipóteses, o último contrato de locação, que serviu
para completar o prazo, pode ter sido firmado por períodos reduzidos de tempo,
como 1 (um), 2 (dois) anos, ou até menos.
26. Nesse particular, ao interpretar o art. 51, caput, da Lei n. 8.245/1991, a
3ª Seção desta Corte firmou entendimento no sentido de que a renovação devese dar pelo prazo previsto no último contrato, seja ele qual for. Assim é o teor
dos julgados já mencionados no item 20 supra.
27. Todavia, quando o artigo de lei supramencionado dispõe que o locatário
terá direito à renovação do contrato “por igual prazo”, entendo que ele esteja se
referido ao prazo mínimo exigido pela legislação, previsto no inciso II do art.
400
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
51, da Lei n. 8.245/1991, para a renovação, qual seja, de 5 (cinco) anos, e não ao
prazo do último contrato celebrado pelas partes. É esse, no meu sentir, o espírito
da lei.
28. Admitir o contrário implicaria termos de conviver com situações
absurdas, como aquela apontada por Sylvio Capanema de Souza:
Se o último contrato, que é objeto da renovação e que completou o
quinquênio, foi celebrado pelo prazo de um ano, por exemplo, qual deverá ser o
prazo do contrato novo?
Se adotarmos uma interpretação literal, o novo contrato será, também, de um
ano, para se respeitar o mesmo prazo.
Mas isso nos levará a situações absurdas, contrárias ao espírito da lei e que
colidem, inclusive, com o princípio da economia processual.
Se a renovação, no exemplo acima formulado, se fizer por um ano, teria o locatário
que ajuizar ações renovatórias semestrais, assoberbando o Poder Judiciário, e criando
um grande tumulto processual, já que as ações se atropelariam, em pleno curso
(Op. Cit., p. 214) (sem destaque no original)
29. A interpretação do art. 51, caput, da Lei n. 8.245/1991, portanto,
deverá se afastar da literalidade do texto, para considerar o aspecto teleológico e
sistemático da norma, que prevê, no próprio inciso II do referido dispositivo, o
prazo de 5 (cinco) anos para que haja direito à renovação, a qual, por conseguinte,
deverá ocorrer, no mínimo, por esse mesmo prazo.
30. No mesmo sentido, a lição de Amador Paes de Almeida, Locação
Comercial – Ação renovatória, 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 53; José Carlos
de Moreira Salles, Ação Renovatória de Locação Comercial, 2ª ed., São Paulo: RT,
2002, p. 57; José Roberto Neves Amorim, Revisional e Renovatória de Locação,
in Francisco Antonio Casconi e José Roberto Neves Amorim (coord)., Locações
Aspectos Relevantes, aplicação do Novo Código Civil, São Paulo: Método, 2004,
p. 113-121; Silvio de Salvo Venosa, Lei do Inquilinato Comentada – Doutrina
e Pratica, São Paulo: Atlas, 2010, p. 228; e o Enunciado n. 6 do extinto 2º
Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo.
31. Em síntese, nos termos do art. 51 da Lei n. 8.245/1991, a renovação
do contrato de locação não residencial, nas hipóteses de “accessio temporis”,
dar-se-á pelo prazo de 5 (cinco) anos, independentemente do prazo do último
contrato que completou o quinquênio necessário ao ajuizamento da ação. O
prazo máximo da renovação também será de 5 (cinco) anos, mesmo que a
vigência da avença locatícia, considerada em sua totalidade, supere esse período.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
401
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
32. Outrossim, no que tange ao argumento dos recorrentes de que deve
ser levado em consideração o tempo de tramitação da ação renovatória, para se
definir o prazo de renovação do contrato, podendo, em razão disso, ser superado
o limite de 5 (cinco) anos, conforme entendeu a sentença de primeiro grau, não
merece prosperar.
33. Nesse ponto, o acórdão foi preciso: “ao Juiz não é dado renovar por
período que exige ação própria”. E, conquanto demorado, nada impedia que, no
curso do processo, os locatários ajuizassem nova ação renovatória.
34. Com efeito, o art. 51, § 5º, da Lei n. 8.245/1991 dispõe sobre o
prazo decadencial para propositura da ação renovatória, que, como todo prazo
decadencial, não se interrompe nem se suspende.
35. Consequentemente, se, no curso do processo, decorrer tempo suficiente
para que se complete novo interregno de 5 (cinco) anos, ao locatário cumpre
ajuizar outra ação renovatória, a qual, segundo a doutrina, é recomendável
que seja distribuída por dependência para que possam ser aproveitados os atos
processuais como a perícia. Nesse sentido, mencione-se Silvio de Salvo Venosa,
Lei do Inquilinato Comentada – doutrina e Pratica, São Paulo: Atlas, 2010, p.
228; e Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe, Locação Questões Processuais e
Substanciais, São Paulo: Malheiros, 5ª ed., 2009, p. 215.
36. Diante de todo o exposto, o acórdão recorrido deve ser reformado
para que a vigência do contrato renovado seja de 5 (cinco) anos, ou seja, de
23.12.2003 a 23.12.2008.
2. Dos honorários advocatícios (violação dos arts. 20 e 21 do CPC)
37. Sustentam os recorrentes que, na hipótese, a sucumbência não foi
recíproca, mas parcial, não podendo, assim, ser igualmente distribuídos os ônus e
compensados os honorários.
38. Contudo, conforme o acórdão recorrido, na hipótese, houve
sucumbência dos recorrentes quando ao prazo de renovação do contrato e
também quanto ao valor do aluguel oferecido, justificando-se a distribuição
equitativa dos respectivos ônus.
39. Esse entendimento coaduna-se com a jurisprudência pacífica desta
Corte, no sentido de que, havendo sucumbência recíproca, devem-se compensar
os honorários advocatícios. Inteligência do art. 21 do CPC c.c. a Súmula n. 306STJ.
402
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
40. Assim, ausente qualquer violação dos arts. 20 e 21 do CPC.
Forte nestas razões, dou parcial provimento ao recurso especial apenas para
alterar o prazo de vigência do contrato renovado, nos termos do voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.351.005-RJ (2012/0225898-0)
Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
Recorrente: Inducom Comunicações Ltda
Advogados: Herlon Monteiro Fontes
Márcio Vieira Souto Costa Ferreira e outro(s)
Frederico Jose Ferreira
Recorrente: Telecomunicações Brasileiras S/A - Telebrás
Advogados: Gabriel Francisco Leonardos
Elisa Bastos Mutschaewski e outro(s)
Rafael Lacaz Amaral e outro(s)
Recorrido: Os mesmos
Recorrido: Instituto Nacional de Propriedade Industrial INPI
Advogado: Márcia Vasconcelos Boaventura e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Direito Civil. Propriedade industrial. Invenção.
Patente. Sistema Automático para Chamadas Telefônicas a Cobrar.
Ação anulatória do cancelamento do registro da patente. Violação do
art. 58 da Lei n. 5.772/1971. Falta de prequestionamento. Novidade.
Suficiência descritiva do depósito. Reexame de provas. Inadequação da
via. Súmula n. 7-STJ. Compartilhamento da titularidade da invenção
entre o autor e terceiro. Pedido não compreendido nos limites da lide.
Julgamento extra petita. Arts. 128 e 460 do CPC. Saneamento do
vício. Art. 257 do RISTJ.
1. A ausência de prequestionamento da matéria suscitada no
recurso especial, a despeito da oposição de embargos declaratórios,
impede o conhecimento do recurso especial (Súmula n. 211-STJ).
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
403
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2. O conhecimento do recurso especial, no que se refere à aferição
da natureza de novidade da invenção objeto do depósito de patente,
bem como da suficiência descritiva deste, demanda nova incursão
fático-probatória, inviável tendo em vista a incidência da Súmula n.
7-STJ.
3. O interesse em recorrer resulta da conjugação de dois fatores: (i)
da utilidade da interposição do recurso - que consiste na possibilidade
de obtenção pelo recorrente de um resultado que corresponda à
situação mais vantajosa, do ponto de vista prático, do que aquela
resultante da decisão recorrida e (ii) da necessidade de sua utilização
- que se revela por sua imprescindibilidade para que o recorrente
alcance a vantagem almejada.
4. Carece de interesse recursal a parte ré quanto à pretensão de
extipar do acórdão impugnado matéria estranha, configuradora de
julgamento extra petita, mas que não lhe diz respeito por versar sobre
relação jurídica distinta - havida entre a parte autora da demanda e
terceiro não chamado a integrar a lide.
5. Reconhecido o cabimento do especial, cumpre ao Superior
Tribunal de Justiça julgar a causa aplicando o direito à espécie, a teor
do art. 257 do RISTJ.
6. Consoante o disposto pelo art. 128 do CPC, o autor fixa os
limites da lide e da causa de pedir na petição inicial, cabendo ao juiz
decidir de acordo com esse limite. É justamente por tal motivo que
não é dado ao julgador proferir sentença acima, fora ou aquém daquilo
que foi postulado.
7. Estando o pedido autoral adstrito à anulação da decisão
administrativa do INPI, que, a pedido da Telebrás, cancelou o registro
da patente do “Sistema Automático para Chamadas Telefônicas a
Cobrar”, não é dado ao julgador, sob pena de incorrer em julgamento
extra petita, decidir sobre a existência de relação jurídica diversa,
relativa à eventual necessidade de divisão da titularidade do registro
entre a parte autora e empresa distinta, que não pretendeu tal solução
em juízo e sequer chegou a integrar a presente lide.
8. Recurso especial da Telebrás não conhecido e recurso especial
da Inducom provido para, aplicando o direito à espécie, afastar do
acórdão recorrido o capítulo que configurou julgamento extra petita.
404
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
ACÓRDÃO
A Terceira Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso
especial de Inducom Comunicações Ltda e não conhecer do recurso especial
de Telecomunicações Brasileiras S/A - Telebrás, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator. Os Srs. Ministros João Otávio de Noronha, Sidnei Beneti
e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente,
justificadamente, a Sra. Ministra Nancy Andrighi.
Dr(a). Frederico Ferreira, pela parte recorrente: Inducom Comunicações
Ltda
Brasília (DF), 1º de outubro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator
DJe 7.10.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Trata-se de dois recursos
especiais, o primeiro interposto por Inducom Comunicações Ltda. (e-STJ fls.
2.080-2.087) e o segundo interposto por Telecomunicações Brasileiras S.A. Telebras (e-STJ fls. 2.093-2.113), ambos com fulcro na alínea a do artigo 105,
inciso III, da Constituição Federal, contra acórdão prolatado pelo Tribunal
Regional Federal da 2ª Região.
Consta dos autos que, em junho de 1980, Adenor Martins de Araújo, então
empregado da Telecomunicações de Santa Catarina - TELESC (subsidiária, à
época, do sistema Telebras) depositou no Instituto Nacional de Propriedade
Industrial - INPI pedido de registro de patente de invenção a que denominou
“Sistema Automático para Chamadas Telefônicas a Cobrar”, que também se
tornou conhecida como “DDC” - abreviação de “discagem direta a cobrar”.
Durante o processamento do pedido de registro da patente, o depositante,
pretenso inventor do sistema, transferiu sua titularidade à primeira recorrente
- Inducom Comunicações Ltda. Esta, tão logo concedido o registro da patente
(por despacho publicado em janeiro de 1984), passou a contactar as diversas
empresas de telefonia do Brasil objetivando estabelecer negociações para fins de
recebimento dos royalties que lhe seriam devidos pelo uso do invento patenteado.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
405
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ocorre que, em 17.1.1985, a segunda recorrente - Telebras - protocolizou
no INPI pedido de cancelamento da carta patente expedida (de n. 8003673-0).
Naquela oportunidade, a então requerente fundou seu pleito em dois principais
argumentos: (i) que a suposta invenção, na data do depósito, não teria a
característica da novidade, por já estar compreendida no estado de técnica e (ii)
que o relatório descritivo apresentado pelo depositante seria insuficiente para a
concessão da patente, por tornar inexequível o sistema por técnico no assunto.
Após o regular trâmite administrativo, mais especificamente em 2.7.1985,
deferiu-se o pedido de cancelamento da patente. Referida decisão foi objeto,
ainda, de recurso administrativo, indeferido por decisão publicada em 13.1.1987.
Diante dos fatos narrados, Inducom Comunicações Ltda. ajuizou, em maio
de 1988, a ação que deu origem aos presentes autos, objetivando única e
exclusivamente a anulação da decisão administrativa de cancelamento, para que
seja a patente considerada em plena valia.
O Juízo de primeiro grau julgou procedente o pedido formulado na
exordial para declarar “nulo o ato administrativo do INPI, através do qual
cancelou a Carta Patente n. 8003673 (depósito), de 24.1.1984, bem como os
atos administrativos posteriores, ao depósito vinculados” e reconhecer “a validade
da carta patente, n. do depósito 8003673, desde a sua expedição em 24.1.1984”.
Na ocasião, condenou o INPI e a Telebras ao pagamento das custas judiciais e
dos honorários periciais e sucumbenciais, estes últimos fixados em 20% (vinte
por cento), incidentes sobre o valor atualizado da causa (e-STJ fl. 1.276).
Inconformados, INPI e Telebras interpuseram recursos de apelação (e-STJ
fls. 1.292-1.295 e 1.309-1.353).
A Corte de origem, por maioria de votos, deu provimento aos apelos
interpostos, bem como à remessa necessária, para, reformando a sentença,
concluir pela legalidade do ato administrativo de cancelamento da patente,
invertendo os ônus sucumbenciais (e-STJ fls. 1.677-1.772).
A autora da demanda - Inducom - interpôs embargos infringentes (e-STJ
fls. 1.831-1.867), pretendendo fazer prevalecer o voto vencido, que negava
provimento aos apelos e à remessa necessária, para confirmar a sentença primeva
(e-STJ fls. 1.764-1.765).
A Primeira Seção Especializada do TRF da 2ª Região, também por maioria
de votos, deu parcial provimento aos embargos em aresto assim ementado:
Propriedade industrial. Patente. Invenção. Novidade. Estado da técnica.
Inventor. Definição.
406
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
1. Nos embargos infringentes, o órgão julgador não está adstrito às razões
invocadas no voto minoritário, não obrigando, com isso, o recorrente a proceder
a uma repetição dos fundamentos esposados no voto vencido. Assim, o que
prevalece efetivamente é a divergência entre a conclusão dos votos vencedores e
vencidos e não, exclusivamente, fundamentos.
2. A novidade de um determinado pedido de patente é excluída pelo uso
anterior ou pela divulgação anterior do seu objeto. No caso vertente, o voto
vencedor menciona o fato de que vários jornais haviam se manifestado sobre o
invento em si e que isso seria suficiente para revelar o conteúdo do pedido da
patente. Ocorre que, uma leitura das aludidas notícias jornalísticas demonstra que
estas guardavam um cunho meramente informativo e comercial, não divulgando
dessa forma, os pontos característicos da patente.
3. Define-se estado da técnica como tudo aquilo tornado acessível ao público
antes da data do pedido de patente, por uso ou por qualquer meio no Brasil ou
no exterior. Tornar público um conhecimento implica necessariamente em se
constatar suficiência na divulgação, isto é, uma transmissão de conhecimento da
regra técnica que não esteja subordinada a uma obrigação de guardar segredo,
ainda que implícita, vez que o direito à proteção não pode ser afetado por fatos
que configuram a própria dinâmica da inovação.
4. Quando o INPI define que há suficiência descritiva, que é um dado
objetivo, não pode, posteriormente, modificar a sua opinião, principalmente se
a insuficiência descritiva era em relação a aspectos meramente formais. Se fosse
um aspecto material, ainda seria razoável, mas não em se tratando de um aspecto
meramente formal.
5. À causa em análise deve ser aplicado o art. 42 do antigo CPI, considerando
que o empregado desenvolveu um invento de moto-próprio, sem qualquer
colaboração, mas ele precisou do empregador para proceder aos testes, ou seja,
ele precisou de recursos, dados, meios, materiais, instalações, equipamentos, do
empregador para empregar nos testes. Assim, seria o caso de se dividir meio a
meio qualquer ganho relacionado ao invento.
6. Embargos infringentes parcialmente providos (e-STJ fls. 2.029-2.030).
Ao assim decidir, a Corte de origem, consoante se extrai da parte dispositiva
do voto condutor do julgado, anulou o ato administrativo que cancelou a Carta
Patente n. 8003673, determinando, contudo, a aplicação do art. 42 da Lei n.
5.772/1971 para dividir os ganhos advindos da invenção entre a pessoa de
seu inventor e sua empregadora à época do invento, Telecomunicações de Santa
Catarina - TELESC (a que o Tribunal Regional afirmou ter sido sucedida pela
Telebras).
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
407
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Contra o julgado, tanto a Telebras quanto a Inducom opuseram embargos
de declaração (e-STJ fls. 2.036-2.044 e 2.048-2.051).
Em suas razões de embargar, a Telebras apontou a existência de
obscuridades, objetivando, nesse particular, conferir efeitos infringentes ao aresto
embargado. Afirmou a existência de erro material, visto que, ao contrário do
decidido, a TELESC (empregadora do suposto inventor do sistema cuja patente
se discute) teria sido sucedida pela Brasil Telecom S.A., parte que sequer figurou
na demanda. Sustentou, ainda, que a Corte de origem promoveu julgamento
extra petita, haja vista não estar a questão relativa à necessidade de divisão dos
ganhos oriundos da patente compreendida no pedido autoral, mesmo porque
diz respeito à relação jurídica existente entre autora e pessoa jurídica distinta,
que não foi chamada a integrar o polo passivo da demanda.
A Inducom, por sua vez, afirmou omisso o julgado no tocante à distribuição
dos ônus sucumbenciais. Pugnou, ainda, que fosse levado em consideração, para
o afastamento da incidência do art. 42 da Lei n. 5.772/1971, o teor de despacho
proferido pelo então Diretor de Operações da TELESC, no qual se revelaria a
abdicação, por parte da empresa, de quaisquer direitos pelos testes do sistema
“DDC” ali realizados.
A Corte de origem acolheu parcialmente ambos os embargos apenas para:
(i) com relação aos primeiros, admitir a existência de erro material na indicação
da sucessora da TELESC, reconhecendo como tal a Brasil Telecom S.A., e (ii)
com relação aos segundos, fixar a distribuição dos ônus sucumbenciais.
Segue a ementa do aresto dos aclaratórios:
Processual Civil. Embargos de declaração em apelação cível.
1. Os embargos de declaração não são meio próprio ao reexame da causa,
devendo limitar-se ao esclarecimento de obscuridade, contradição ou omissão.
2. O acórdão incorreu em erro material, uma vez que a Telecomunicações
Brasileiras S/A - Telebrás, ao contrário do afirmado no acórdão embargado, não é
sucessora da TELESC, papel que cabe, na verdade, a Brasil Telecom S/A. Além disso,
o acórdão incorreu em omissão em relação à fixação dos ônus de sucumbência,
razão pela qual, considerando que o acórdão concluiu por dar parcial provimento
aos embargos infringentes, mostra-se razoável a fixação do pagamento de custas
e honorários de sucumbência no patamar de 10% (dez por cento) sobre o valor
atualizado da causa, pro rata.
3. Embargos de declaração parcialmente providos (e-STJ fl. 2.076).
408
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Diante de tais circunstâncias, deu-se a interposição dos recursos especiais
que ora se apresentam.
Em suas razões (e-STJ fls. 2.080-2.087), a primeira recorrente - Inducom
Comunicações Ltda. - aponta ofensa ao art. 42 da Lei n. 5.772/1971 (atual art. 91
da Lei n. 9.279/1996), sob dois fundamentos: (i) porque “a melhor interpretação
da norma em referência não pode permitir que a simples execução de testes pelo
empregador se equipare aos mecanismos facilitadores descritos no texto legal”,
não se justificando, assim, a divisão da propriedade da patente entre a TELESC
- empregadora - e seu empregado, o inventor (e-STJ fl. 2.085) e (ii) porque o
referido dispositivo legal não teria aplicação à hipótese por força de despacho
proferido pelo superior hierárquico do empregado inventor nos seguintes
termos: “o teste poderá ser executado e a aplicação pela TELESC do projeto
não implicará em direitos por parte da mesma e sim como mero consentimento
pelo inventor” (e-STJ fl. 2.087).
Por seu turno, a segunda recorrente - Telecomunicações Brasileiras S.A.
- Telebras - aduz, em seu arrazoado recursal (e-STJ fls. 2.093-2.113), estar
configurada a violação dos arts. 6º, caput e §§ 1º e 2º, 7º e 55, alínea a, todos da
Lei n. 5.772/1971. Nesse ponto específico, insiste na alegação de que o invento,
quando do depósito, não era mais patenteável. Reafirma que os testes públicos
do sistema “DDC” realizados pela TELESC, com autorização de seu pretenso
inventor, em momento anterior ao depósito da patente, retiraram sua novidade,
requisito legalmente indispensável para o registro, que, desse modo, teria sido
acertadamente cancelado pelo INPI.
Afirma que a Corte de origem negou vigência ao art. 58 da Lei n.
5.772/1971, tendo em vista que este autorizaria o cancelamento, pelo INPI, do
registro da patente não só pela falta de novidade suscitada, mas, também, pela
constatada insuficiência do relatório descritivo do depósito da patente.
Ao final, aponta como violado o art. 460, caput, do Código de Processo
Civil, porquanto configuraria julgamento extra petita a incursão promovida pelo
aresto recorrido na questão relativa à eventual divisão dos ganhos resultantes do
reconhecimento da validade da Carta Patente n. 8003673 entre o empregado
inventor e a TELESC. Sustenta, nesse particular, que o objeto da presente ação
está adstrito à discussão a respeito da validade da patente e, que, além disso,
a Brasil Telecom S.A., sucessora da TELESC, sequer figurou como parte na
demanda.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
409
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Apresentadas contrarrazões (e-STJ fls. 2.218-2.232 e 2.234-2.246), e
admitidos ambos os apelos nobres, ascenderam os autos a esta Corte Superior.
O Ministério Público Federal emitiu parecer (e-STJ fls. 2.268-2.271),
opinando pelo não conhecimento dos recursos.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): Antes de proceder
à análise das pretensões encartadas nas razões dos dois recursos especiais ora
trazidos à apreciação, impõe-se discorrer brevemente sobre as premissas fáticas
da demanda e que, seja porque incontroversas, seja porque definitivamente
dirimidas pelas instâncias ordinárias com esteio no acervo probatório carreado
aos autos, devem ser tomadas por verdadeiras.
No final da decáda de 70, o Sr. Adenor Martins de Araújo, então empregado
da TELESC, inventou, com recursos próprios, o sistema que permite a realização
de chamadas telefônicas a cobrar de forma totalmente automatizada. Com ele,
permitiu-se ao usuário do serviço de telefonia que, na realização de chamada
telefônica, a partir da inclusão do dígito 9 (nove) ao número de telefone
chamado precedido do prefixo nacional (zero) e do código de área de destino
(composto de dois outros dígitos), conseguisse realizar chamada que, de modo
automático, possibilitasse ao destinatário assumir o ônus de custear a ligação
que recebia, o que se dava pelo simples fato de o destinatário permanecer “na
linha”, aguardando a reprodução da gravação: “Chamada a cobrar. Para aceitá-la,
continue na linha após a identificação”.
A invenção, antes de ter seu uso massificado, foi objeto de testes realizados
em Municípios do interior de Santa Catarina, com autorização concedida ao
inventor pela própria TELESC.
O Sr. Adenor, em junho de 1980, depositou o requerimento do registro da
patente, que foi concedida e anos depois cancelada pelo INPI. Cancelamento
este que se deu a requerimento da Telebras.
A ação que deu origem aos presentes recursos especiais foi ajuizada em
maio de 1988 e encerra, tão somente, a pretensão da empresa Inducom (que
adquiriu do inventor - Sr. Adenor - a titularidade dos direitos da patente) de ver
reconhecida a nulidade da decisão que, administrativamente, cancelou a Carta
Patente n. 8003673-0, relativa ao invento supra descrito.
410
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Integram o polo passivo da demanda somente o INPI e a Telebras.
Após mais de 22 anos em curso, a causa foi definitivamente julgada
pela Primeira Seção Especializada do TRF da 2ª Região que, ao dar parcial
provimento aos embargos infringentes interpostos pela empresa autora,
reconheceu a procedência do único pedido formulado na exordial - de nulidade
do cancelamento do registro e, consequentemente, da declaração de validade da
Carta Patente n. 8003673-0). No entanto, foi além, decidindo também sobre
a necessidade de aplicação à hipótese da inteligência do art. 42 do revogado
Código da Propriedade Industrial (Lei n. 5.772/1971), dividindo, assim, entre a
autora da demanda e a TELESC (na condição de empregadora do inventor) a
titularidade da patente.
O objeto de ambos os recursos especiais que se afiguram é o aresto naquela
ocasião exarado.
Feita a breve introdução, passa-se à apreciação pontual de cada um dos
recursos, a começar pelo especial intentado pela Telebras, apenas para facilitar o
desencadeamento lógico de ideias.
DO RECURSO ESPECIAL DE TELECOMUNICAÇÕES
BRASILEIRAS S.A. - TELEBRAS (e-STJ fls. 2.093-2.113).
Consoante o já relatado, a irresignação recursal da Telebras está assentada
nas alegações de supostas ofensas aos seguintes dispositivos legais com as
respectivas teses:
(i) arts. 6º, caput e §§ 1º e 2º, 7º e 55, alínea a, da Lei n. 5.772/1971
- porque resultaria evidente das provas colhidas nos autos que o sistema
“DDC”, quando do depósito não era mais patenteável. Isso porque os testes
públicos realizados pela TELESC, com autorização de seu pretenso inventor,
em momento anterior ao depósito da patente, retiraram sua novidade,
requisito legalmente indispensável para o registro que, deste modo, teria sido
acertadamente cancelado pelo INPI;
(ii) art. 58 da Lei n. 5.772/1971 - porque este dispositivo legal autorizaria
o cancelamento, pelo INPI, do registro da patente não só pela falta de novidade
suscitada, mas, também, pela constatada insuficiência do relatório descritivo de
seu depósito, e
(iii) art. 460, caput, do Código de Processo Civil - pois configuraria
julgamento extra petita a incursão promovida pelo aresto recorrido no ponto
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
411
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
relativo à eventual divisão dos ganhos resultantes do reconhecimento da validade
da Carta Patente n. 8003673 entre o empregado inventor e a TELESC, matéria
que não está adstrita ao pedido formulado na inicial, além de ser de interesse
de pessoa jurídica que não integrou a lide, a empresa Brasil Telecom S.A., real
sucessora da TELESC.
Como se vê, cingem-se as pretensões da recorrente ao cancelamento da
patente e ao reconhecimento de que a Corte de origem promoveu julgamento
extra petita ao avançar sobre a discussão acerca da aplicação ao caso do art. 42 da
Lei n. 5.772/1971.
Não merecem acolhida as pretensões recursais. Isso porque, o apelo nobre
não se faz merecedor de conhecimento.
Com efeito, no tocante à aludida violação do art. 58 da Lei n. 5.772/1971,
verifica-se que a matéria versada no referido dispositivo legal - relativa à
possibilidade de cancelamento administrativo do privilégio da patente - não foi
objeto de debate pelas instâncias ordinárias, sequer de modo implícito, apesar
da oposição de embargos declaratórios. Por esse motivo, ausente o requisito do
prequestionamento, incide o disposto na Súmula n. 282-STF: “É inadmissível
o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão
federal suscitada”.
Desatendido, portanto, o requisito do prequestionamento também nos
termos da Súmula n. 211-STJ: “Inadmissível recurso especial quanto à questão
que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo
Tribunal a quo”.
Nesse sentido:
Agravo regimental. Agravo de instrumento. Recurso especial. Execução.
Princípio da menor onerosidade. Interesse do credor. Prequestionamento. Súmula
n. 211-STJ. Reexame de provas. Súmula n. 7-STJ.
1.- O princípio da menor onerosidade ao devedor deve estar em harmonia
com o interesse do credor.
2.- O prequestionamento, entendido como a necessidade de o tema objeto
do recurso haver sido examinado pela decisão atacada, constitui exigência
inafastável da própria previsão constitucional, ao tratar do recurso especial,
impondo-se como um dos principais requisitos ao seu conhecimento. Não
examinada a matéria objeto do especial pela instância a quo, mesmo com a
oposição dos embargos de declaração, incide o Enunciado n. 211 da Súmula do
Superior Tribunal de Justiça.
412
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
(...).
4.- Agravo Regimental improvido.
(AgRg no AREsp n. 158.707-SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma,
julgado em 22.5.2012, DJe 5.6.2012).
Agravo regimental. Agravo de instrumento. Ausência de prequestionamento.
Súmula n. 211-STJ. Ação rescisória. Violação à coisa julgada. Verificação.
Impossibilidade. Reexame de provas. Súmula n. 7-STJ.
1. Carece do necessário prequestionamento a matéria não debatida pelo
Tribunal de origem, ainda que opostos embargos de declaração.
Incidência da Súmula n. 211-STJ.
(...).
3. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no Ag n. 1.327.008-GO, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira
Turma, julgado em 15.3.2012, DJe 21.3.2012).
Ademais, não há como aferir, na via especial, se existente a suscitada ofensa
aos arts. 6º, caput e §§ 1º e 2º, 7º e 55, alínea a, da Lei n. 5.772/1971.
Isso porque, nesse ponto específico, a pretensão da recorrente repousa
no anseio de ver infirmadas as conclusões da Corte de origem pela novidade
da invenção e suficiência descritiva do depósito. Tais requisitos, acaso
afastados, revelariam a viabilidade do cancelamento pretendido pela Telebras
administrativamente.
Todavia, da simples leitura do voto condutor do julgado hostilizado, extraise que as mencionadas conclusões resultaram do exame de provas e fatos que
permearam a demanda.
A propósito, merece destaque o seguinte excerto do aresto impugnado:
Inicio a minha análise pela avaliação do requisito da novidade.
Uma breve cronologia dos fatos revela que, em outubro de 1979, ocorreu o
pedido do Sr. Adenor Martins de Araújo à Telecomunicações de Santa Catarina S.A.
- TELESC S.A. para realização dos testes, tendo estes se iniciado em dezembro de
1979, e, em 12 de junho de 1980, o pedido da patente de invenção foi depositado.
Com efeito, a novidade de um determinado pedido de patente é excluída pelo
uso anterior ou pela divulgação anterior do seu objeto.
Em relação às notícias de jornal, a douta Juíza Federal convocada Márcia Helena
Nunes, menciona, no voto vencedor, que vários jornais haviam se manifestado sobre
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
413
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
o invento em si e que isso seria suficiente para revelar o conteúdo do pedido da
patente.
Ocorre que, uma leitura das aludidas notícias jornalísticas demonstra que estas
guardavam um cunho meramente informativo e comercial, não divulgando, dessa
forma, os pontos característicos da patente.
Em outras palavras, as características essenciais da patente não foram
desvendadas a ponto de um técnico no assunto poder, efetivamente, produzir o
mesmo objeto. Tal circunstância está, inclusive, disposta na resposta ao quesito n. 6
do laudo do perito judicial (fls. 1.090).
Assim, entendo que, com relação às noticias publicadas nos jornais, não houve
ferimento à obrigatoriedade da novidade.
Já com relação aos testes realizados pela Telecomunicações de Santa Catarina
S.A. - TELESC S.A., o voto vencedor se pronunciou nos seguintes termos:
(...) Que os testes tenham sido realizados em Blumenau (15.1.1980 central 22), até então concordo com a autora e com o perito: era necessário.
Entretanto, creio que a situação escapou ao controle de Adenor, na
medida em que, de acordo com o noticiado nos autos do procedimento
administrativo, antes mesmo do depósito da patente, o sistema já havia
sido instalado comercialmente em várias cidades do Estado de Santa
Catarina, com Brusque, Itajaí, Balneário de Camboriú, Itapema, Porto Belo
e Piçarras (desde 15.2.1980), Florianópolis (desde 10.4.1980, e também
6.5.1980, central 44) e Criciúma (também 6.5.1980), tudo conforme as
notícias no jornal catarinense O Estado, de 15.12.1980 (fl. 106 do apenso),
de 10.4.1980 (fls. 107-8 do apenso) e 6.5.1980 (fl. 109 do apenso).
Além disso, a matéria no jornal O Estado dizia que: ‘Este sistema foi
testado e aprovado em Blumenau e até o final do ano a Telesc pretende
implantá-lo em todos os municípios do estado que dispõe de DDD (fls.
1.634-1.635).
Resta, pois, definir se os testes feitos pela TELESC correspondem, efetivamente, a
uso, considerando que a questão está sob a égide do antigo Código de Propriedade
Industrial, uma vez que os fatos datam de 1980.
Nessa seara, observa-se que, com base no antigo Código de Propriedade
Industrial, assim como o faz a LPI, a definição do que seja novidade exclui o teste.
Define-se estado da técnica como tudo aquilo tornado acessível ao público
antes da data do pedido de patente, por uso ou por qualquer outro méio no Brasil
ou no exterior.
Tornar público um conhecimento implica necessariamente em se constatar
suficiência na divulgação, isto é, uma transmissão do conhecimento da regra
técnica que não esteja subordinada a uma obrigação de guardar segredo, ainda
414
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
que implícita, vez que o direito à proteção não pode ser afetado por fatos que
configuram a própria dinâmica da inovação.
Nesse sentido, inexiste, nos autos, prova de que o produto tenha sido divulgado a
terceiros que não à TELESC, demonstrando, ainda que implicitamente, a existência de
uma obrigação de segredo travada entre esta e o inventor.
Ademais, um teste não pode ser tido como a mesma coisa que uso, ou seja, esses
dois conceitos não podem ser equiparados.
Desta forma, entendo que o teste feito pela TELESC não impede a concessão da
patente de invenção.
Passo, em seguida, a avaliar se a questão saiu realmente do controle do inventor,
assim como entendeu a douta Juíza Federal Convocada Márcia Helena Nunes no voto
vencedor.
Com efeito, teria saído do controle apenas se tivesse havido exploração comercial,
o que não ocorreu na hipótese em tela, na qual houve apenas a continuação dos
testes.
Outro aspecto alegado é a insuficiência descritiva.
Nesse particular, o voto do eminente Desembargador Federal Sérgio Feltrin
Côrrea bem abordou a questão:
O relatório descritivo contém a definição do invento, sua área de aplicação,
o estado da técnica considerado pelo depositante, a solução proposta para o
problema técnico existente, bem como as vantagens do invento.
Observa-se que o INPI, inicialmente, entendeu que o relatório descritivo era
suficiente, tanto que deferiu a patente e, posteriormente, chegou à conclusão de
que a descrição era insuficiente.
Ocorre que, como bem ponderado no voto vencido, as exigências realizadas
pelo INPI possuíam aspecto meramente formal, como, por exemplo, deslocar uma
reivindicação de um item para outro.
Cumprida a exigência, o parecer final do INPI foi dados nos seguintes termos:
O depositante cumpriu, satisfatoriamente, as exigências publicadas na
RPI n. 632 e o pedido se encontra agora em condições de obter o privilégio
requerido. Opinamos pelo deferimento, devendo integrar a carta-patente
os seguintes documentos (...)
Assim, os aspectos meramente formais foram amplamente superados, tanto que o
parecer da autarquia marcária foi favorável, ou seja, o examinador do INPI analisou e
entendeu que houve a suficiência descritiva.
Destaque-se que a suficiência descritiva se constitui em um dado objetivo do
processo administrativo.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
415
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Partindo dessa premissa, surge a pergunta: se objetivamente o INPI entendeu
que havia suficiência descritiva, um outro técnico, em um, momento posterior,
pode concluir por sua inexistência, tratando-se de um dado objetivo?
Parece-me que se sujeitar a diversas opiniões, sobretudo quando
diametralmente opostas, em situações limites, significaria nunca dar fim ao
processo. Cada vez que um servidor examinasse, ia achar que havia suficiência e
um outro achar que havia insuficiência.
Dessa forma, creio que, quando o INPI define que há suficiência descritiva, que é
um dado objetivo, não pode, posteriormente, modificar a sua opinião, principalmente
se a insuficiência descritiva era em relação a aspectos meramente formais.
Se fosse um aspecto material, ‘ainda seria razoável, mas não em se tratando de
um aspecto meramente formal (e-STJ fls. 2.021-2.025 - grifou-se).
Assim como posta a matéria, a verificação da procedência dos argumentos
expendidos no recurso - pela ausência de novidade da invenção no momento do
depósito ou pela insuficiência descritiva deste - exigiria que esta Corte Superior
promovesse, na via especial, profundo reexame de matéria fático-probatória, o
que é vedado pela Súmula n. 7-STJ, consoante iterativa jurisprudência desta
Corte.
No tocante à alegação de que malferido o art. 460, caput, do CPC, a
pretensão da recorrente de extipar do acórdão impugnado matéria estranha,
configuradora de julgamento extra petita, encontra óbice em sua falta de
interesse recursal para tanto.
Como consabido, a noção de interesse processual está diretamente
relacionada à conjugação da utilidade da providência judicial almejada e da
necessidade da via escolhida para que tal providência seja alcançada.
O interesse da parte em recorrer é aferido a partir dessa mesma ótica,
sendo oportuna, nesse particular, a lição de José Carlos Barbosa Moreira,
para quem o interesse em recorrer “resulta da conjugação de dois fatores: de
um lado, é preciso que o recorrente possa esperar, da interposição do recurso,
a consecução de um resultado a que corresponda situação mais vantajosa, do
ponto de vista prático, do que a emergente da decisão recorrida; de outro lado,
que lhe seja necessário usar o recurso para alcançar tal vantagem” (Comentários
ao Código de Processo Civil, 12ª ed., Rio de Janeiro, Forense, p. 298).
Com efeito, a incursão da Corte de origem no debate acerca da possibilidade
de divisão dos ganhos advindos da patente entre o empregado inventor e sua
empregadora TELESC não atinge em nada os direitos da Telebras, fato que, por
si só, já revela sua ausência de interesse recursal quanto ao tema.
416
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
O eventual provimento do presente recurso, para que fosse ceifada do
acórdão atacado a discussão referente à aplicação ou não do art. 42 da Lei n.
5.772/1971, não resultaria, do ponto de vista prático, em situação mais vantajosa
para a Telebras. Além disso, não se pode admitir que seja por ela formulada
pretensão em defesa de direito alheio, no caso, eventual direito da Brasil Telecom
S.A. de, na condição de sucessora da TELESC, demandar a titularidade da
patente em tela através do ajuizamento de ação própria.
Desse modo, também no que diz respeito à suscitada ofensa ao art. 460
do CPC, não merece conhecimento o recurso especial, desprovido que é de
utilidade prática aos interesses da Telebras.
Antecipe-se, todavia, que a questão relativa à ocorrência, no caso em
apreço, de julgamento extra petita não está completamente superada. Será
retomada logo adiante, quando da apreciação do recurso especial interposto por
Inducom Comunicações Ltda.
DO RECURSO ESPECIAL DE INDUCOM COMUNICAÇÕES
LTDA. (e-STJ fls. 2.080-2.087).
Versa o recurso especial de Inducom Comunicações Ltda. apenas sobre
a suposta violação do art. 42 da Lei n. 5.772/1971 (atual art. 91 da Lei n.
9.279/1996).
Pretende a recorrente afastar a conclusão da Corte de origem pela divisão
da titularidade da patente entre ela (atual titular dos direitos do empregado
inventor) e a Brasil Telecom S.A. (sucessora da TELESC - empregadora do
inventor). Para tanto, firma sua irresignação recursal no fundamento de que “a
melhor interpretação da norma em referência não pode permitir que a simples
execução de testes pelo empregador se equipare aos mecanismos facilitadores
descritos no texto legal” (e-STJ fl. 2.085).
Aduz, ainda, que o referido dispositivo legal não teria aplicação à hipótese
vertente por força de despacho proferido pelo superior hierárquico do empregado
inventor nos seguintes termos: “o teste poderá ser executado e a aplicação pela
TELESC do projeto não implicará em direitos por parte da mesma e sim como
mero consentimento pelo inventor” (e-STJ fl. 2.087).
Impõe-se destacar, inicialmente, que aberta está a via especial. O recurso
preenche os requisitos de admissibilidade. É tempestivo, teve regularmente
realizado seu preparo e a matéria federal inserta no dispositivo legal apontado
como malferido encontra-se devidamente prequestionada.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
417
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Reconhecido o cabimento do especial, cumpre ao Tribunal julgar a causa
aplicando o direito à espécie, a teor do art. 257 do Regimento Interno desta
Corte Superior.
Importante firmar tal premissa porque, no caso concreto, o exame acurado
dos autos chama a atenção para a peculiaridade de que o único tema ventilado
no especial diz respeito à questão que, por não estar compreendida nos limites
da lide, não deveria ter sido apreciada pela Corte Regional.
Consoante o disposto pelo art. 128 do CPC, o autor fixa os limites da lide
e da causa de pedir na petição inicial, cabendo ao juiz decidir de acordo com
esse limite. É justamente por tal motivo que não é dado ao julgador proferir
sentença acima, fora ou aquém daquilo que foi postulado. Dessa ordem de ideias
é que resulta a inteligência do art. 460 do CPC, segundo o qual “É defeso ao
juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como
condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi
demandado.
Na ação anulatória em apreço, o pedido formulado pela recorrente, a
autora, se restringiu única e exclusivamente à anulação da decisão administrativa
que cancelou o registro da patente do “Sistema Automático para Chamadas
Telefônicas a Cobrar”. O debate a ser promovido durante o processamento
e julgamento da demanda deveria, assim, permanecer adstrito a saber se o
procedimento administrativo que concedeu o registro originário da patente
carregava mácula que ensejasse seu posterior cancelamento pelo INPI.
O juízo de origem, como já relatado, julgou procedente o pedido autoral.
Reconheceu ser nulo o ato administrativo de cancelamento da Carta Patente n.
8003673, restabelecendo sua plena valia.
A Corte de origem, em sede apelação e remessa necessária, entendeu de
modo diametralmente oposto, mantendo hígida a decisão administrativa de
cancelamento.
Até então, ambas as instâncias ordinárias mantiveram-se adstritas ao
pedido, situação que se altera quando do julgamento dos embargos infringentes.
A Primeira Seção Especializada do TRF da 2ª Região, ao dar parcial
provimento aos embargos infringentes interpostos pela empresa autora,
reconheceu a procedência do único pedido formulado na exordial - de nulidade
do cancelamento do registro e, consequentemente, da declaração de validade da
Carta Patente n. 8003673-0.
418
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Nesse ponto, não se pode imputar ao julgado nenhum vício relativo à
observância da necessidade de restringir a decisão ao pedido e à causa de pedir.
Ocorre, porém, que a Corte Regional foi além do que devia, decidindo, por
equívoco - provavelmente decorrente do fato de acreditar ser a Telebras e não a
Brasil Telecom S.A. a sucessora da TELESC - sobre a necessidade de aplicação
à hipótese da inteligência do art. 42 do revogado Código da Propriedade
Industrial (Lei n. 5.772/1971), dividindo entre a autora da demanda e a
TELESC (na condição de empregadora do inventor) a titularidade da patente.
Ao assim decidir, a Corte de origem extrapolou os limites da demanda,
proferindo julgamento extra petita, pois, repita-se, o pedido formulado
pela recorrente se restringiu única e exclusivamente à anulação da decisão
administrativa que cancelou o registro da patente, consoante se extrai da peça
inaugural:
(...) B) Se desacolhida a preliminar, no mérito, seja a ação julgada procedente,
para o fim de ser anulada a decisão administrativa e seja considerada a patente, em
plena valia, com condenação daquelas na forma da lei (e-STJ fl. 34 - grifou-se).
Ademais, a um só tempo, impôs à autora da demanda o ônus de dividir
a patente com empresa que nunca formulou tal pretensão e retirou desta, que
sequer integrou a lide, o direito de pretender a integral titularidade do registro
em ação própria.
É clara a ofensa ao art. 460 do CPC. Impõe-se chamar o presente feito a
ordem e extirpar daquele julgado, por óbvio, apenas aquilo que excedeu o pedido
e a causa de pedir insculpidos na petição inaugural.
Solução nesse sentido importa no reconhecimento da procedência do
pedido autoral para, tal como fez o juízo de primeiro grau, (i) declarar “nulo
o ato administrativo do INPI, através do qual cancelou a Carta Patente n.
8003673 (depósito), de 24.1.1984, bem como os atos administrativos posteriores
ao depósito vinculados”; (ii) reconhecer “a validade da carta patente, n. do
depósito 8003673, desde a sua expedição em 24.1.1984” e (iii) condenar o INPI
e a Telebras ao pagamento das custas judiciais e dos honorários periciais e
sucumbenciais, estes últimos fixados em 20% (vinte por cento) incidentes sobre
o valor atualizado da causa (e-STJ fl. 1.276).
Não se afigura razoável entendimento distinto, que imporia a esta Corte
Superior a tarefa de decidir sobre a aplicação do art. 42 da Lei n. 5.772/1971
e definir se existente ou não eventual direito de compartilhamento da patente
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
419
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
entre a autora e a Brasil Telecom S.A., que não é parte na presente demanda.
Título judicial nesse sentido, por estar carregado do vício de descumprimento do
princípio da correlação entre pedido e sentença, se revelaria ineficaz, porquanto
incapaz de produzir os efeitos da coisa julgada.
Assim, reconhecida, de ofício, a ofensa ao art. 460 do CPC, e decotado do
aresto recorrido a parte relativa ao julgamento extra petita, fica prejudicada a
análise acerca da suposta violação do art. 42 da Lei n. 5.772/1971.
DO DISPOSITIVO.
Ante o exposto, não conheço do recurso especial interposto por
Telecomunicações Brasileiras S.A. - Telebras (e-STJ fls. 2.093-2.113) e conheço do
recurso especial interposto por Inducom Comunicações Ltda. (e-STJ fls. 2.0802.087) para, aplicando-se o direito à espécie, dar-lhe provimento para afastar
do acórdão recorrido o capítulo que configurou julgamento extra petita, pelo
que fica reconhecida a higidez da Carta Patente n. 8003673, com a condenação
das partes recorridas, solidariamente, ao pagamento das custas processuais e
honorários periciais e advocatícios, estes últimos fixados em 20% (vinte por
cento) do valor atualizado da causa.
É como voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.370.109-DF (2011/0151132-8)
Relator: Ministro Sidnei Beneti
Recorrente: Emília Silva Mello e outros
Advogado: Antônio Carlos de Oliveira e outro(s)
Recorrido: ASMUT - Associação dos Mutuários e Consumidores de
Imóveis e outros
Advogado: Claudio Maranhao Queiroz e outro(s)
EMENTA
Direito Processual Civil. Ação de prestação de contas. Interesse
de agir. Interesse de agir. Adequação da via eleita.
420
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
1.- A ação de prestação de contas não comporta a decretação de
rescisão ou resolução contratual ou a anulação de negócios jurídicos
nem tampouco a condenação pela prática de atos ilícitos.
2.- Não há que se falar em inadequação da via eleita, porém,
quando se discute se o desconto dos valores repassados pelo advogado
ao seu cliente correspondiam, de fato, aos honorários contratuais
avençados.
3.- Admite-se, no âmbito da ação de prestação de contas, o
acertamento das questões fáticas e jurídicas relacionadas à alegação de
descumprimento contratual.
4.- Recurso Especial provido em parte.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto do
Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo
Villas Bôas Cueva votaram com o Sr. Ministro Relator.
Impedida a Sra. Ministra Nancy Andrighi.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha.
Brasília (DF), 22 de outubro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Sidnei Beneti, Relator
DJe 4.11.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1.- Emília Silva Mello e Outros interpõem
Recurso Especial com fundamento nas alíneas a e c, da Constituição Federal,
contra acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, Relator
o Des. Jose Divino de Oliveira, assim ementado (fls. 290):
Processo Civil. Ação de prestação de contas. Serviços advocatícios. Propósito
de discutir as cláusulas relativas aos percentuais de êxito sobre as demandas
propostas.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
421
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Inadequação da via eleita. Extinção do processo.
1- A ação de prestação de contas não é a via adequada para discutir eventual
abusividade de cláusulas relativas a contrato de prestação dos serviços
advocatícios.
11 - Negou-se provimento.
2.- Os Embargos de Declaração foram rejeitados (e-STJ fl. 305-306).
3.- Os recorrentes alegam que o Tribunal de origem teria violado o artigo
535 do Código de Processo Civil ao deixar de se manifestar adequadamente
sobre os temas suscitados nos embargos de declaração.
Alegam ofensa ao artigo 551 do Código de Processo Civil, porque a
revisora teria recebido os autos em um dia e no dia seguinte, pedido dia para
julgamento, o que demonstra, segundo sustentam, que ela não teria estudado o
processo e, portanto, não teria exercido com critério o papel de revisora. Ressalta
que o seu voto não foi suscinto, mas inexistente.
Argumentam que a ação de prestação de contas seria via adequada para
discutir a distribuição e recebimento de verba honorária entre advogados e
cliente, sendo que que o Tribunal de origem, assim não entendendo, teria violado
os artigos 914; 915, I; e 917 do Código de Processo Civil e ainda divergido do
entendimento fixado em precedente desta Corte indicado como paradigma.
4.- Não admitido na origem, o Recurso Especial teve seguimento por força
de Agravo provido em sede de Agravo Regimental (fls. 424).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 5.- Consta dos autos que os
Recorrentes, condôminos do edifício Place Vendôme, teriam contratado os
Recorridos para ajuizar três ações judiciais contra o Grupo OK:
A primeira delas, uma ação cautelar, tinha por objetivo consignar as
prestações que alguns adquirentes deviam ao Grupo OK. A segunda ação, a
principal, visava a condenar o Grupo OK a indenizar defeitos de construção. A
terceira ação, tinha por objetivo a outorga das escrituras públicas referentes às
unidades habitacionais.
6.- Nesta última ação foi concedida tutela antecipada, determinadose a expedição das escrituras públicas, sob pena de multa diária. Transitada
422
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
em julgado a sentença que confirmou a antecipação de tutela, deu-se início
à execução da multa, com levantamento pelos Recorridos, da quantia de R$
173.482,56, dos quais teriam sido repassados aos Recorrentes, após descontados
os honorários advocatícios contratados, apenas R$ 21.616,79.
7.- Os Recorrentes ajuizaram, então, ação de prestação de contas contra
os Recorridos (fls. 05-16), alegando que estariam estes cobrando honorários
indevidos. Argumentam que o contrato celebrado entre as partes estipulava
estipulava a remuneração dos Recorridos com base em duas cláusulas de êxito:
uma correspondente a 3% sobre o valor venal dos imóveis e outra de 10% sobre
o montante que eventualmente viesse a ser recebido pelos Recorrentes, em razão
do trabalho contratado.
Afirmaram que não poderia ser cobrada a remuneração referente à 3%
sobre o valor venal dos imóveis, porque, segundo contratado, isso somente seria
possível depois que estivessem resolvidas todas as pendências existentes sobre a
documentação dos imóveis, o que não teria ocorrido.
Da mesma forma sustentaram que não poderia ter siso cobrada a verba
correspondente a 10% sobre o montante recebido a título de multa cominatória,
porque esse percentual remuneratório, estava relacionado aos valores que
eventualmente viessem a ser recebidos na ação principal de indenização por
vícios de construção, e não na ação proposta com o objetivo de receber as
escrituras públicas dos imóveis.
Além disso, a cláusula em referência teria sido revogada por outro contrato,
não escrito, que estipulava a incidência do percentual de 10% sobre o valor dos
imóveis indicados no IPTU ou no ITBI, e não sobre o valor venal do imóvel.
8.- A sentença extinguiu o feito sem julgamento do mérito, afirmando que
os Autores, ora Recorrentes, pretendiam, em última análise, revisar as cláusulas
do contrato, o que seria inviável em sede de ação de prestação de contas (fls.
232-234).
9.- O Tribunal de origem negou provimento ao recurso de apelação, sob o
fundamento de que a ação de prestação de contas não era via adequada para se
discutirem a validade e a forma de incidência das cláusulas contratuais relativas
à remuneração dos serviços contratados.
10.- O Recurso Especial colhe êxito apenas em parte.
11.- Não prospera a indicada ausência de prestação jurisdicional, porquanto
a matéria em exame foi devidamente enfrentada, emitindo-se pronunciamento
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
423
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
de forma fundamentada e sem contradições. A jurisprudência desta Casa é
pacífica ao proclamar que, se os fundamentos adotados bastam para justificar
o concluído na decisão, o julgador não está obrigado a rebater, um a um, os
argumentos utilizados pela parte.
12.- Também não se acolhe a alegação de ofensa ao artigo 551 do Código
de Processo Civil. A alegação de que o revisor não poderia ter pedido dia
para julgamento da apelação no dia seguinte ao do recebimento do processo
não serve para sustentar a tese de ofensa à regra prevista naquele dispositivo
legal, muito pelo contrário serve para ratificar que o procedimento formal foi
regularmente observado.
O que ocorre é que os Recorrentes, muito embora tenham apontado como
violado o artigo 551 do Código de Processo Civil questionam, na verdade, a
própria fundamentação ou ausência de fundamentação do voto revisor e, nesse
sentido, o artigo tido por violado é insuficiente. Incide, assim, nesse particular, a
Súmula n. 284-STF.
13.- A matéria de fundo merece aprofundamento maior.
14.- A ação de prestação de contas apresenta, como se sabe, duas fases. Na
primeira fase, diz o caput do artigo 915 do Código de Processo Civil: “Aquele
que pretender exigir a prestação de contas requererá a citação do réu para, no
prazo de 5 (cinco) dias, as apresentar ou contestar a ação”.
Nessa fase, que é a do presente processo, o que se decide, portanto, ao
menos em princípio, é apenas se o réu da ação está ou não obrigado a prestar as
contas exigidas pelo autor, ou seja, se as partes estão ligadas em relação jurídica
de que decorra, por sua natureza, o dever de prestar contas e, bem assim, se tal
obrigação foi descumprida de modo a justificar a exigência judicial.
Na segunda fase é que cabe, propriamente, examinar as contas apresentadas
de modo a definir a eventual existência de saldo credor em favor de alguma das
partes. A sentença que encerra essa segunda fase é que vai, não só declarar a
conta certa, mas também criar a certeza quanto à existência de saldo devedor,
afirmando quem é credor e quem é devedor desse saldo.
Enquanto a natureza condenatória da sentença proferida na primeira fase
dessa peculiar ação funda-se, eminentemente, em declaração de obrigação de
fazer - de prestar contas, a natureza condenatória daquela proferida na segunda
fase estabelece concretamente, uma obrigação de pagar, inclusive com eficácia
executiva.
424
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
15.- No caso dos autos, o pedido de prestação de contas é dirigido a
Advogados que teriam recebido, em nome dos autores recorrentes, valores a
estes devidos.
Não há dúvida, portanto, de que, ao menos em princípio, está configurada
a obrigação de prestar contas resultante do princípio universal segundo o qual
todos aqueles que administram ou têm sob sua guarda bens alheios, devem
contas do fruto de sua gestão ao titular do direito administrado. No caso
específico do profissional Advogado, essa obrigação ainda mais se impõe ante
o disposto no artigo 34, XXI, da Lei n. 8.906/1994 (Estatuto da Ordem dos
Advogados do Brasil), nos termos do qual constitui infração disciplinar do
advogado “recusar-se, injustificadamente, a prestar contas ao cliente de quantias
recebidas dele ou de terceiros por conta dele”.
16.- As instâncias de origem, como relatado, extinguiram o processo sem
julgamento de mérito, por falta de interesse de agir.
16.1.- A mera existência de uma relação jurídica material de gestão de
bens ou interesses alheios não basta, como se pode imaginar, para afirmar que
a prestação de contas deva sempre ser feita em juízo. Se as partes se dispõem
ao acerto direto ou extrajudicial das contas, faltará, por óbvio interesse de agir,
configurando-se hipótese de carência de ação.
Havendo, porém, recusa de prestar contas, ou, ainda, verificada controvérsia
sobre a composição das verbas que hajam de integrar a o acerto, aí sim estará
presente o interesse de agir, assim entendido como o interesse-necessidade.
No caso dos autos, não há notícia de que as contas prestadas
extrajudicialmente tenham sido aceitas pelos Recorrentes, o que permite
concluir pela presença, em concreto, do interesse-necessidade no ajuizamento da
ação de prestação de contas.
16.2.- Também não falta aos Recorrentes interesse de agir sob a perspectiva
da utilidade no ajuizamento da ação (interesse-utilidade). Admitindo-se que
a segunda fase da prestação de contas pode resultar em provimento judicial
condenatório passível de execução, é de se concluir, por força de consequência,
no sentido de consubstanciar-se posição jurídica favorável aos Recorrentes.
16.3.- Finalmente, no que concerne à adequação da via eleita (interesseadequação) é de se reconhecer que, ao contrário do que afirmado pelas instâncias
de origem, a pretensão deduzida não está voltada, ao menos não em sua
integralidade, à revisão de cláusulas contratuais.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
425
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A sentença, destaca uma passagem da petição inicial (tópico 15) para
sustentar que a pretensão deduzida tem caráter revisional (fls. 09): Não assiste
razão aos réus quando pretendem receber 3% sobre o valor dos imóveis de cada um dos
autores; além de pretender mais 10% sobre o montante eventualmente recebido pelos
autores, a título de cláusula de êxito.
A interpretação de uma peça processual não pode ser feita, todavia, a partir
de partes estanques, devendo-se buscar o pedido e a causa de pedir manifestados
pela parte a partir da interpretação conjunta de toda a petição inicial.
No caso, não se podem desconsiderar as seguintes passagens (fls. 09-10):
15. Não assiste razão aos réus quando pretendem receber 3% sobre o valor dos
imóveis de cada um dos autores; além de pretender mais 10% sobre o montante
eventualmente recebido pelos autores, a título de cláusula de êxito.
16.- A uma, porque nos contratos de prestação de serviços advocatícios
firmados pelas partes a cláusula de êxito tem a seguinte redação:
(...)
16.- Ora, está evidente que a obrigação assumida pelos réus foi de resolver
todas as pendências existentes sobre a documentação dos imóveis em questão,
inclusive a indisponibilidade determinada (...).
18.- A duas, porque os autores não firmaram contrato com os réus para
pagamento desta cláusula de êxito de 10% sobre eventual recebimento de
quantias. É importante destacar que esta cláusula de êxito de 10% sobre eventuais
recebimentos de quantias ficou estipulada para a propositura da ação principal
que teve por objeto a indenização por defeitos de construção nas áreas comuns
do Condomínio e também nas áreas privativas das unidades (...)
19.- Assim, os réus, valendo-se dessa situação, tentam confundir os autores
para cobrar honorários que são indevidos. (...)
Como se vê, a tônica do pedido não remete à pretensão de revisão de
cláusulas. O que os Recorrentes sustentaram na petição inicial, em síntese, foi
que os Recorridos retiveram a título de honorários contratuais, valor superior
àquele que, nos termos do próprio contrato, estavam autorizados a reter.
Afirmou-se que os Recorridos não poderiam reter 3% sobre o valor venal
dos imóveis, na ação destinada à regularização da situação registrária relativa a
eles, porque esse seria o percentual devido em caso de adimplemento integral
das obrigações assumidas para aquele feito. Assim, se não foi realizado o serviço
contratado, não seria possível cobrar o percentual integral. A questão, como se
426
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
vê, não suscita revisão do contrato, mas a apuração do alegado descumprimento
contratual.
Afirmou-se, também, que, igualmente, não poderia ser retido o valor
correspondente a 10% sobre o valor recebido, porque essa era a remuneração
contratualmente estipulada para o êxito da ação em que se discutia os vícios
de construção do empreendimento. Assim, havia uma remuneração prevista
de forma independente, para caso de êxito de cada ação. Também aqui
inexiste qualquer pretensão revisional, sendo o caso, unicamente, de saber se
os Recorridos estavam ou não autorizados, por contrato, a reter o valor em
referência.
14.- HUMBERTO THEODORO JÚNIOR ensina que o objeto do
procedimento especial em análise não comporta a definição de situações
complexas, como as que envolvem a decretação de rescisão ou resolução
contratual ou a anulação de negócios jurídicos. Tampouco seria possível obter,
em sede de ação de prestação de contas, acrescenta o autor, a condenação pela
prática de atos ilícitos. Esses acertamentos devem ser todos realizados pelas
vias ordinárias (Curso de Direito Processual Civil. v. III. 42ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2010. p. 82).
Esta Corte já teve a oportunidade de reconhecer essa circunstância,
conforme, aliás, bem identificado pelo próprio Tribunal de origem, no
julgamento do AgRg no Ag n. 276.180-MG, 4ª Turma, Relator o E. Ministro
Aldir Passarinho, cujo acórdão recebeu a seguinte ementa:
Processual Civil. Ação de prestação de contas.
Propósito de discutir a validade de cláusulas contratuais.
Impropriedade da via eleita.
I. Configurado, segundo o quadro fático dos autos delineado na instância
a quo, o real propósito da autora em discutir a própria validade das cláusulas
contratuais, inservível a tanto o uso da ação de prestação de contas.
II. Agravo improvido.
(AgRg no Ag n. 276.180-MG, 4ª Turma, Relator o E. Ministro Aldir Passarinho, DJ
de 5.11.2001).
No caso dos autos, porém, como assinalado, não se busca solucionar
questão de elevada complexidade. A pretensão formulada, ao menos em sua
maior parte, não é de revisar, nem de anular, nem de rescindir o contrato. O que
se pede, essencialmente, que se seja verificado os Recorridos estavam ou não
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
427
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
autorizados, pelo próprio contrato, a reter a título de remuneração pelos serviços
prestados, o valor que efetivamente retiveram.
Com efeito, a única parte da petição inicial em que se veicula, realmente
uma pretensão revisional, é aquela, em que os Recorrentes afirmam que a
remuneração correspondente a 3% sobre o valor do imóvel deveria tomar por
base o valor do bem indicado no IPTU, e não o valor venal, como consta do
contrato escrito, porque assim, acordado verbalmente.
Quanto ao mais, o acertamento das questões fáticas e jurídicas envolvidas
na causa está absolutamente compreendido nos parâmetros normais que,
ordinariamente, se apresentam em uma ação de prestação de contas, não
havendo, por isso, que se falar em falta de interesse de agir, por inadequação da
via eleita.
15.- Ante o exposto, dá-se parcial provimento ao Recurso Especial,
determinando-se o retorno dos autos ao Juízo de 1º Grau a fim de que, superada
a preliminar de carência de ação, prossiga no julgamento da causa como entender
de direito.
RECURSO ESPECIAL N. 1.371.842-SP (2012/0218194-1)
Relator: Ministro Sidnei Beneti
Recorrente: Ricardo Nicotra
Advogados: Reinaldo José Fernandes
André Luis Bergamaschi e outro(s)
Recorrido: União Central Brasileira da Igreja Adventista do Sétimo Dia
Advogados: Misael Lima Barreto Júnior
Adriana C F L de Carvalho
José Sérgio Miranda e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Ação de revogação de doação com restituição
de valores. Dízimos e outras contribuições. Improcedência do pedido.
428
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
1.- A contribuição do dízimo como ato de voluntariedade,
dever de consciência religiosa e demonstração de gratidão e fé não
se enquadra na definição do contrato típico de doação, na forma em
que caracterizado no art. 538 do Código Civil, não sendo, portanto,
suscetível de revogação.
2.- Ademais, a doação lato sensu a instituições religiosas ocorre
em favor da pessoa jurídica da associação e não da pessoa física do
pastor, padre ou religioso que a representa. Desse modo, a rigor, a
doação não pode ser revogada por ingratidão, tendo em vista que o
ato de um membro - pessoa física - não tem o condão de macular
o pagamento do dízimo realizado em benefício da entidade, pessoa
jurídica.
3.- Recurso Especial improvido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator.Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas
Bôas Cueva e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João Otávio de Noronha.
Dr(a). José Sérgio Miranda, pela parte recorrida: União Central Brasileira
da Igreja Adventista do Sétimo Dia
Brasília (DF), 19 de novembro de 2013 (data do julgamento).
Ministro Sidnei Beneti, Relator
DJe 17.12.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1.- Ricardo Nicotra interpôs Recurso
Especial fundamentado nas alíneas a e c do permissivo constitucional, contra
Acórdão unânime do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Rel. Des.
Alvaro Passos), assim ementado (e-STJ fls. 360):
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
429
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Revogação de doação c.c. restituição de valores. Improcedência. Contribuição
do dízimo. Dever de consciência religiosa que não tem natureza de doação.
Pagamentos que se constituíam em obrigação. Devolução. Descabimento.
Quantias que foram dadas em cumprimento a regra estabelecida pela igreja
e aceita espontaneamente pelo fiel. Ratificação dos fundamentos do decisum.
Aplicação do art. 252 do RITJSP. Recurso improvido.
2.- Houve a interposição de Embargos de Declaração (e-STJ fls. 367-370),
que foram rejeitados (e-STJ fls. 372-376).
3.- As razões recursais alegaram violação dos arts. 538 e 557, III, do
Código Civil, além de dissídio jurisprudencial, sustentando, em síntese, que
as doações realizadas pelo recorrente à igreja são passíveis de revogação por
ingratidão.
4.- Contra-arrazoado (e-STJ fls. 468-480), o recurso não foi admitido
(e-STJ fls. 485-486), ensejando a interposição de Agravo (e-STJ fls. 491-499),
o qual foi improvido (e-STJ fls. 511-513), tornando-se sem efeito essa decisão,
com a determinação de reautuação do Agravo como Recurso Especial, em juízo
de reconsideração em Agravo Regimental (e-STJ fls. 539-540).
É o breve relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 5.- Narram os autos que o
autor, ora recorrente, frequentou a igreja ré, ora recorrida, para a qual destinou
contribuições em dinheiro, no período compreendido entre 16.12.1992 e
1.12.1999, atingindo a importância de R$ 34.179,70 (já acrescidos de juros de
6% ao ano e correção monetária), e que a partir do ano de 2000, teria deixado de
fazer as referidas contribuições.
6.- Todavia, em 23.3.2002, um pastor da igreja ter-lhe-ia dirigido palavras
ofensivas, quando saía de um culto na companhia da namorada, ocasião em que
teria sido chamado de “diabo, invejoso e vagabundo”, vindo a ser expulso da
instituição religiosa.
7.- Afirmou que o comportamento do representante da igreja teria sido
causado por um artigo denominado “Pastor do Milhão”, publicado na internet,
cuja autoria lhe teria sido equivocadamente imputada.
8.- Sustentou que os fatos narrados o levaram a solicitar a instauração de
inquérito policial para apuração de crime contra a honra, o qual foi arquivado, e
430
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
a ajuizar ação de indenização por danos morais no Juizado Cível, bem como a
propor a presente ação de revogação das doações, com a consequente restituição
das quantias doadas.
9.- Julgado improcedente o pedido (e-STJ fls. 314-319), o autor, ora
recorrente, apelou (e-STJ fls. 321-329), tendo sido o recurso improvido pelo
Tribunal estadual, aos seguintes fundamentos (e-STJ fls. 363):
(...).
Como sustentado com singular precisão na r. sentença apelada, os pagamentos
ao longo dos anos se deram em razão do cumprimento de preceito religioso,
apoiado na crença do autor que o levou a aceitar e a se submeter ao pagamento
de dízimo como prova, justamente, de sua fé e aceitação dos mandamentos de
sua igreja. Neste sentido, os pagamentos vão muito além de meras doações, feitos
por liberalidade ou gratidão. Eram mais do que isso, constituíam-se em obrigação
e como tal foram cumpridas.
10.- Duas são as finalidades deduzidas no presente recurso: primeiro,
definir a qualificação jurídica das contribuições feitas por fiéis a entidades
religiosas – em especial da contribuição denominada “dízimo” – como sendo
contrato de doação; e, segundo, determinar a consequência da revogação por
ingratidão.
11.- O art. 5º , VI, da Constituição Federal consigna que é inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos
cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e às
suas liturgias.
12.- Por sua vez, a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação com base na Religião ou
Crença, adotada em 1981, documento fundamental que protege os direitos
religiosos, inclui entre os direitos relativos à liberdade de pensamento, consciência
e religião, o de solicitar e receber contribuições financeiras voluntárias e outras
de indivíduos e instituições.
13.- É longa a história do denominado dízimo religioso, cujas características
vem se ajustando nos diversos sistemas jurídicos. Clássicas exposições históricas
colhem-se em MANUEL DE ALMEIDA E SOUSA DE LOBÃO (“Dízimos
Eclesiásticos e Oblações Pias”, Lisboa, Imprensa Nacional, 1867) e DOM
OSCAR DE OLIVEIRA, Arcebispo de Mariana (“Os Dízimos Eclesiásticos
do Brasil nos Períodos da Colônia e do Império”, Belo Horizonte, Universidade
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
431
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
de Minas Gerais, 1964). Inquestionáveis nos tempos históricos, “a partir do
século XIII, o poder laico inicia contra os dízimos uma luta, de que se encontram
abundantes traços nos estudos comunais” (Enciclopedia Italiana di Scienze,
Lettere ed Arti”, Istituto Giovanni Treccani, MCMXXXXI-X, p. 461, Verbete
“Le Decime Ecclesiatiche”).
Na “História da Igreja em Portugal”, de FORTUNATO DE ALMEIDA,
anota-se que “era antiga na igreja e foi tirada do Antigo Testamento a tradição
dos dízimos eclesiásticos, aos que se deu também o nome de décimas, por
consistirem no pagamento da décima parte dos frutos” (“História da Igreja em
Portugal, Porto, Portucalense Editora, Nova Edição preparada e dirigida por
Damião Peres, Nova ed., vol. 1, p. 114).
14.- Ressalta JOSÉ FERNANDO SIMÃO (Natureza jurídica do dízimo
e da doação: aparente semelhança, mas grandes e insuperáveis diferenças, RIDB,
Ano 2 (2013) n. 9, 10.357) que “Ao lado das ofertas, sacrifícios ou oferendas de
cunho religioso, cujo primeiro registro bíblico sobre o tema aponta Caim trazendo
à Divindade os frutos que plantara, e Abel, as primícias do seu rebanho (Gen. 4,
3-4), um dos registros mais antigos do ato de dizimar encontra-se também na Torah,
constituída pelos Cinco Livros de Moisés (Pentateuco), livro considerado sagrado pelos
hebreus e fonte primeira do direito da-quela nação (cerca de 1500 anos antes da era
cristã), conforme ensina Vicente Ráo, e verifica-se no fato de Abraão – considerado
pai dos hebreus e dos árabes –, após sair-se vitorioso em batalha que empreendera
contra cinco reis que haviam levado cativo seu sobrinho Ló juntamente com diversos
morado-res e bens de cidades adjacentes, como ato de gratidão pelo êxito na libertação
dos cativos e recuperação de seus bens, ao ser saudado e abençoado por Melquisedeque,
rei de Salém, mencionado também como ‘sacerdote do Deus Altíssimo’, entregou-lhe o
dízimo de tudo quanto possuía (Gen. 14, 12-20). obra “Ao lado das ofertas, sacrifícios
ou oferendas de cunho re-ligioso, cujo primeiro registro bíblico sobre o tema aponta
Caim trazendo à Divindade os frutos que plantara, e Abel, as primícias do seu
rebanho (Gen. 4, 3-4), um dos registros mais antigos do ato de dizimar encontrase também na Torah, cons-tituída pelos Cinco Livros de Moisés (Pentateuco), livro
considerado sagrado pelos hebreus e fonte primeira do direito da-quela nação (cerca
de 1500 anos antes da era cristã), conforme ensina Vicente Ráo, e verifica-se no fato
de Abraão – considerado pai dos hebreus e dos árabes –, após sair-se vitorioso em
batalha que empreendera contra cinco reis que haviam levado cativo seu sobrinho
Ló juntamente com diversos moradores e bens de cidades adjacentes, como ato de
gratidão pelo êxito na libertação dos cativos e recuperação de seus bens, ao ser saudado
e abençoado por Melquisedeque, rei de Salém, mencionado também como ‘sacerdote do
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Deus Altíssimo’, entregou-lhe o dízimo de tudo quanto possuía (Gen. 14, 12-20).”
(ob. cit, p. 10.362 e ss).
15.- Nesse norte histórico, extrai-se que a contribuição realizada pelos
membros das igrejas, como regra, decorre de um dever de consciência religiosa,
representado por ato que caracteriza como manifestação da própria fé, bem
como da gratidão pelas dádivas recebidas, sendo de se salientar que nenhuma
instituição religiosa teria condições de manter as suas atividades sem as
contribuições financeiras dos fiéis.
16.- Diante da sua origem no dever religioso, avulta a dificuldade de se
inserir o pagamento do dízimo no conceito de doação, previsto no Código Civil
como o “contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio
bens ou vantagens para o de outra.”
É de se ter presente que o vocábulo doação admite duas acepções: a
doação em sentido amplo, assim como é entendido pelo senso comum, e o
negócio jurídico denominado doação, este último, como contrato típico, é objeto
do dispositivo legal retro transcrito. Em sentido amplo, qualquer atribuição
patrimonial a alguém, sem contrapartida, pode ser considerada doação, mas no
sentido estrito, só a doação como contrato típico sujeita-se às disciplinas deste,
entre as quais a revogabilidade.
17.- Uma doação que ocorre como cumprimento de um dever de
consciência, porém, como é o caso das contribuições realizadas às instituições
religiosas, é, sob o aspecto jurídico, fruto de liberalidade derivada da consciência
religiosa. Lembre-se que, segundo o magistério de J. M. CARVALHO
SANTOS, nem toda liberalidade é doação:
De fato, a liberalidade não é incompatível com o pagamento, mas este o é com
a doação, o que é coisa muito diversa, de vez que nem toda liberalidade é doação.
Para que haja doação, é essencial que a liberalidade seja toda espontânea, sem
nenhum resquício de constrangimento nem de violência. Por isso mesmo, onde
há o cumprimento de uma obrigação, não é de doação, em suma, embora seja
liberalidade, exige mais alguma coisa do que esta.
Essa alguma coisa que ela exige é precisamente que o doador não empobreça
ou desfalque seu patrimônio, enriquecendo o do donatário.
Ora, na hipótese de pagamento de uma obrigação de consciência, em rigor,
não há o enriquecimento do credor, por isso que, ele, para ser havido como
credor, embora sem direito à ação para exigir o pagamento, algum serviço
prestou, alguma importância desembolsou.
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433
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Quer dizer: pagando uma obrigação de consciência, não faz uma doação o
devedor. Cumpre um dever, faz uma liberalidade, que não é doação.
(Código Civil Brasileiro Interpretado, vol. XVI, 1986, Ed. Livraria Freias Bastos,
12ª ed., p. 322).
18.- Nessa linha de entendimento, deve-se concluir que o pagamento do
dízimo não constitui contrato típico de doação, o qual pressupõe a existência
do animus donandi, ou seja, o desejo do doador de que a vantagem implique em
enriquecimento do donatário.
19.- Em verdade, no caso em análise, corretamente ressaltou o Juiz
sentenciante, Alexandre David Malfatti: “quando o autor contribuiu com os
chamados ‘dízimos santos’ para a igreja ré (fls. 25-80), o fez como parte de sua
fé e dentro de uma liberalidade sua, mas para satisfação dos preceitos de sua
religião. Poderia se dizer, fora do campo da pura liberalidade, que cumpriu uma
obrigação religiosa - aliás, o dízimo é figura comum a várias religiões, como é
cediço.” (e-STJ fls. 317)
Anote-se, destacando a exaustiva fundamentação, Acórdão de natureza
penal do Superior Tribunal Militar, concluiu, com a maior largueza, que “o
Estado não pode controlar dízimos” (Rel. Min. Maria Elizabeth Guimarães
Teixeira Rocha, DJe 22.2.2011, em “Ciência Jurídica”, ano XXV, vol. 159, Maio/
junho/2011, p. 99-138).
20.- Há que se considerar, outrossim, que a doação lato sensu a instituições
religiosas ocorre em favor da pessoa jurídica da associação e não da pessoa física
do pastor, padre ou da autoridade religiosa que a representa. Nesse contexto, a
doação não pode ser revogada por ingratidão, tendo em vista que o ato de um
membro - pessoa física - não tem o condão de macular a doação realizada em
benefício da entidade, pessoa jurídica, como dever de consciência religiosa.
Nessa esteira, quanto à Igreja Adventista do Sétimo Dia, ora recorrida,
veja-se que no art. 8º, § 1º, do seu Estatuto Social dispõe:
A União Central é a única entidade patrimonial, sendo vedado aos Órgãos
Administrativos Regionais e demais estabelecimentos formalizar a aquisição em
nome destes.
21.- Em suma, o que se deve concluir é que o dízimo como ato de
voluntariedade fundado no dever de consciência religiosa e demonstração de
gratidão e fé não se enquadra na definição de doação, como contrato típico, na
434
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
forma do que dispõe o art. 538 do Código Civil, não sendo suscetível, portanto,
de revogação.
Assim, em que pese a injúria já submetida a julgamento no âmbito penal,
não cabe, no presente caso, impor a devolução das quantias que foram dadas
em cumprimento à regra estabelecida pela igreja e aceitas espontaneamente em
razão da crença religiosa.
22.- Destaque-se, todavia, que o presente julgamento atém-se aos
fundamentos jurídicos e ao pedido em que formulados, os quais fornecem a
identificação da lide ora julgada, não abrangendo outros eventuais fundamentos
jurídicos e pedidos diversos, ensejados pela questão relativa a pagamento de
dízimo (p. ex., vício de ato jurídico, coação moral irresistível etc), matéria
passível de variada espécie de questionamentos (p. ex., por todos, LUIZ
FELIPE RIBEIRO COELHO, “O Dízimo Ilegal”, Direito & Justiça, Correio
Braziliense, 6.10.2008, p. 3), de modo que outras eventuais questões que
em outros processos porventura se apresentem sobre a matéria deverão ser
solucionadas ao exame de cada caso concreto.
23.- Pelo exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial.
RECURSO ESPECIAL N. 1.413.192-RJ (2013/0219831-9)
Relatora: Ministra Nancy Andrighi
Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro
Recorrido: Clube de Regatas do Flamengo
Advogados: Rafael Cavalcanti Cid
Andre Toste Van e outro(s)
EMENTA
Civil. Consumidor. Estatuto do Torcedor. Recurso especial.
Programa Sócio Torcedor. Passaporte rubro-negro. Validade.
1. Ação coletiva de consumo ajuizada pelo recorrente em
fevereiro de 2010. Recurso especial distribuído em 27.8.2013. Decisão
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
determinando a reautuação do agravo em recurso especial publicada
em 9.10.2013.
2. Recurso especial no qual se discute a validade de parte do
programa de relacionamento do Clube de Regatas Flamengo, e seus
torcedores, denominado “cidadão rubro-negro”, notadamente do
chamado passaporte rubro-negro, que outorga facilidades na aquisição
de ingressos para jogos de futebol, entre outras prerrogativas.
3. O torcedor, frente ao ordenamento protetivo, acha-se
resguardado, primeiro, por Lei específica (Lei n. 10.671/2003 Estatuto do Torcedor) e também, pelo CDC - Lei n. 8.078/1990 -, a
segunda sendo utilizada em caráter subsidiário, tanto na sua aplicação
principiológica, quanto normativa – quando não houver regulação
específica.
4. Os programas de relacionamento entre clubes e torcedores,
têm, por característica comum, a fidelização do torcedor aos eventos
do clube – mormente às partidas de futebol nas quais o mando de
campo pertença ao time – sendo esse o objetivo primário perseguido
pela agremiação desportiva, da qual decorrem, por óbvio, acréscimos
financeiros diretos – oriundos das contribuições dos torcedores e do
aumento da freqüência aos estádios –, e indiretos – como aumento
no valor de quotas de transmissão televisiva e de negociações de
patrocínios, existindo vantagens, também para o torcedor, que além
do imaterial amor ao clube, recebem como estímulo, para a filiação ao
programa, descontos na compra de ingressos, facilidades na obtenção
desses, pagamento direto na catraca, no dia do jogo, etc.
6. As balizas para a verificação de possível perpetração de
ilegalidade, passa então pela análise, in casu, de possível agressão
dos contornos garantistas preconizados nos arts. 13 e 20, § 2º, da
Lei n. 10.671/2003 – o primeiro exigindo a segurança dos locais
das competições antes, durante e depois dos eventos, e o segundo
prevendo a agilidade e acesso à informação, na venda de ingressos.
7. Essa proteção é impositiva, mas a circunstância de um
determinado programa de fidelização prever facilidades outras,
não o torna discriminatório, ou ilegal, tão só pelo plus que agrega.
É necessário se constatar a existência de vulneração ao mínimo,
legalmente ou contextualmente, fixado.
436
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
8. A singela homogeneização de tratamento entre os sócios
torcedores e os demais torcedores, ou possíveis expectadores de um
determinado jogo de futebol, frustra a implementação desse válido
sistema de apoio ao Clube, pois, os programas que premiam, de alguma
forma, a participação do torcedor na vida financeira do seu clube
têm, por ínsito, a outorga de vantagens aos sócio-torcedores, essas
tidas como qualquer elemento diferenciador em relação aos demais
torcedores não participantes do programa, que superam os padrões
legais mínimos, pois esses são garantias mínimas, não vantagens.
9. Possível inadequação do clube em relação ao legal dever de
qualidade no fornecimento do serviço deve ser discutida judicialmente,
de forma solteira, sem o indevido atrelamento ao lídimo programa de
relacionamento estabelecido pelo clube recorrido.
10. Recurso não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao
recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.Os Srs. Ministros
Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram
com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro João
Otávio de Noronha.
Brasília (DF), 19 de novembro de 2013 (data do julgamento).
Ministra Nancy Andrighi, Relatora
DJe 29.11.2013
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto
por Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, fundamentado na alínea a do
permissivo constitucional.
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437
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Ação: coletiva de consumo, com pedido liminar, ajuizada pelo recorrente,
em face de Clube de Regatas do Flamengo, pela qual se busca fixar obrigação
de fazer consistente na disponibilização a todos os torcedores interessados,
sem custo prévio, do cartão pré-pago, recarregável, denominado passaporte
rubro-negro, assim bem como, a devolução do que já foi cobrado dos atuais
possuidores do referido cartão.
Sentença: julgou improcedente o pedido.
Acórdão: negou provimento à apelação interposta pelo recorrente, em
julgado assim ementado:
Apelação Cível. Ação Civil Pública. Sentença de improcedência. Práticas
abusivas por Clube de Futebol não comprovadas. Programa que visa benefícios
para o torcedor filiado. Sentença que se mantém. Desprovimento do recurso.
Embargos de declaração: interpostos pelo recorrente, foram rejeitados.
Recurso especial: alega violação dos arts. 6º do CDC; 13, 20 e 21 do
Estatuto do Torcedor.
Sustenta que a prática de condicionar a venda com facilidades à aquisição
do passaporte rubro-negro fere a igualdade nas contratações de onde se origina
sua abusividade.
Aponta também, que as referidas vantagens ofertadas não se
consubstanciam como tal, porquanto são serviços que deveriam ordinariamente
ser oferecidos aos torcedores.
Parecer do Ministério Público Federal: de lavra do Subprocurador-Geral
da República Moacir Guimarães Morais Filho, pelo não provimento do recurso
especial.
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): 1. Cinge-se a controvérsia em
dizer da validade de parte do programa de relacionamento do Clube de Regatas
Flamengo, e seus torcedores, denominado “cidadão rubro-negro”, notadamente
do chamado passaporte rubro-negro que outorga facilidades na aquisição de
ingressos para jogos de futebol, entre outras prerrogativas.
438
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
1. Do prequestionamento
2. Embora o acórdão recorrido seja extremamente sintético na apreciação
da insurgência construída pelo Ministério Público Estadual, na origem, é
possível se vislumbrar o debate que é mote central deste recurso especial, o que
basta para suprir a exigência de prequestionamento da matéria.
3. De outro turno, a questão, tal qual formulada no recurso especial,
não atrai o empeço da S. n. 7-STJ, pois se trata, na essência de se discutir a
possibilidade, frente às leis de defesa dos torcedores e dos consumidores, de se
criar prerrogativas para alguns destes, mediante paga e filiação à programa de
relacionamentos clube-torcedor.
2. Lineamentos gerais
4. Os programas de relacionamento que atualmente proliferam entre os
clubes e seus torcedores, de regra, estabelecem uma determinada contribuição ao
Sócio-Torcedor que, além de obter algumas vantagens como compra antecipada
de ingressos e descontos variados no valor dos mesmos, proporciona-lhe o
retorno imaterial de estar ajudando seu clube.
5. Colhe-se, do site do recorrido, os padrões de regulamentação do
programa de relacionamentos que mantém, atualmente denominado Nação
Rubro-Negra:
O que é o Nação Rubro-Negra?
É a chance de cada um dos 40 milhões de torcedores fazer a diferença. Você
assina e ajuda o Flamengo a se transformar no time que você sempre quis ver
em campo: com muitos títulos para o Mengão! E ainda ganha uma série de
benefícios, como compra de ingressos, promoções exclusivas e acesso à rede de
descontos do Movimento por Um Futebol Melhor.
Para onde vai o dinheiro do pagamento do Nação Rubro-Negra?
O Nação Rubro-Negra é uma nova fonte de receitas do Mengão para investir
em contratações e infraestrutura. Com a sua assinatura e a da massa rubro-negra
seremos a grande potência esportiva do planeta.
O que eu ganho ao me tornar um integrante do Nação Rubro-Negra?
Além de colaborar para o Flamengo voltar a ser o maior time de futebol do
mundo, você também recebe benefícios como: compra online antecipada de
ingressos, acesso à rede de descontos do Movimento Por Um Futebol Melhor,
cartão ingresso personalizado, perfil no site oficial do clube e participação em
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
promoções exclusivas. Os integrantes dos planos +Paixão, Paixão e +Amor
também tem direito a uma comunicação direta sobre informação de abertura de
venda de ingressos e countdown de fechamento das vendas.
(Disponível em “https://www.nrnoficial.com.br/site/faq/categoria/1”).
6. Em seu recurso especial, o Ministério Público Estadual pugnou pela
declaração da ilegalidade do chamado “passaporte rubro-negro” item constante
do programa de relacionamento, sobre o qual discorre:
(...) é manifesto o equívoco do posicionamento adotado. Não colhe argumentar
que se trata de mero programa de estreitamento de laços com o clube. Dúvida
não padece que o Flamengo pode instituir um programa de relacionamento
(Cidadão Rubro Negro) com seus torcedores, concedendo benefícios àqueles que
se associarem. No entanto, ao estipular entre as vantagens do referido programa
o “Passaporte Rubro Negro”, cartão recarregável que possibilita a aquisição de
ingressos para os jogos com, no mínimo, dois dias de antecedência da abertura
das vendas na bilheteria e que pode ser usado diretamente nas catracas dos
estádios, mediante a cobrança de R$ 396,00, o Clube recorrido está outorgando
ao portador do passaporte aquilo que tem a obrigação legal de conceder a todos
os torcedores: a compra do seu ingresso com agilidade, segurança, racionalidade
e conforto. (fls. 312-313, e-STJ).
3. Da validade do passaporte rubro negro – violação dos arts. 13, 20 §
2º e 21 da Lei n. 10.671/2003 – Estatuto do Torcedor –, e art. 6º, II e IV do
CDC.
7. A validade dos programas de relacionamento entre clubes de futebol
e seus torcedores, como bem salientou o próprio recorrente, nas razões de seu
recurso, não é questionada neste recurso especial, que apenas se volta contra uma
fração desse programa implementado pelo recorrido.
8. No entanto a matriz orientadora da criação desses programas tem
reflexos em todos os aspectos do seu desenvolvimento, repercutindo, in casu,
inclusive no denominado passaporte rubro negro.
9. Vislumbrando, por primeiro, a condição do torcedor frente ao
ordenamento protetivo, vê-se que, embora haja umbilical aproximação entre
o torcedor e o consumidor, que é dessumida, inclusive, do amarrilho feito
pelo legislador quando equiparou, por exemplo, a entidade organizadora
da competição e a agremiação detentora do mando do jogo, a fornecedores
caracterizados pela Lei n. 8.078/1990 (art. 3º da 10.671/2003), impossível não
440
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
se reconhecer que o torcedor ostenta traços distintivos, que exigem ponderações
próprias, tanto assim que mereceram legislação protetiva particular.
10. Fração desses peculiares estigmas é vislumbrada na redação do art. 2º
do Estatuto do Torcedor, onde se fixa que “Torcedor é toda pessoa que aprecie,
apóie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe a
prática de determinada modalidade esportiva” (sem grifos no original).
11. As várias facetas admitidas como forma de ser torcedor: o apreciador,
o apoiador, o associado ou o mero expectador que obtém informações ou assiste
aos eventos esportivos pela televisão, dão o tom singular desses relacionamentos,
pois a cada um se reservam expectativas protegidas legalmente, e outras tantas
não amparadas pela lei consumerista, pois dizem respeito às peculiaridades
desse microcosmo.
12. Note-se, não se está repudiando a aplicação do CDC à espécie, mas tão
só, dando-lhe caráter subsidiário, tanto na sua aplicação principiológica, quanto
normativa – quando não houver regulação específica.
13. Assim, cabe se analisar a existência da alegada abusividade ou
vulneração da obrigatoriedade de igualdade nas contratações, sob o foco
conjugado do Estatuto do Torcedor e suas singularidades e do Código de
Defesa do Consumidor.
14. Rizzato Nunes, tratando do tema isonomia, em sua obra sobre o
Direito do Consumidor, afirma que:
Mas para aferição da adequação ao princípio da igualdade é necessário levar
em conta outros aspectos. Todos eles têm de ser avaliados de maneira harmônica:
se adotado o critério discriminatório, este tem de estar conectado logicamente
com o tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade apontada. Além
disso, há que existir afinidade entre essa correição lógica e os valores protegidos
pelo ordenamento constitucional. Ou seja, nenhum elemento, isoladamente,
poderá ser tido como válido ou inválido para verificação da isonomia. É o conjunto
que poderá designar o cumprimento ou não da violação da norma constitucional
(NUNES, Rizzato, in: Curso de direito do Consumidor, 7ª ed., São Paulo: Saraiva,
2012, p. 74).
15. E sob esse enfoque, solve-se a controvérsia, não pela vedação de
situações distintas – essas não impedidas por lei –, mas pela verificação sobre a
efetividade dos padrões legais mínimos de atendimento para qualquer torcedor
– circunstância que fragilizada, daria ensejo à declaração de abusividade ou de
agressão à igualdade.
RSTJ, a. 26, (233): 325-445, janeiro/março 2014
441
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
16. Além dessa questão, também merece crivo a justificativa lógica da
desigualdade verificada, porque somente atendido esse requisito, se perquirirá
sobre o anterior. E quanto a esse, de se dizer que a fórmula de marketing
denominada de “marketing de relacionamento dirigido” se calca em três
elementos básicos, descritos por Tatiana de Albuquerque como triplo pilar:
O primeiro é o relacionamento, que estabelece um canal de comunicação
direta com o cliente, uma relação interativa. O outro pilar é o reconhecimento,
a oferta de benéficos que diferencie o cliente dos demais, que o faça se sentir
parte de um grupo especial, e por último, a recompensa, que oferece prêmios
proporcionais ao seu consumo, visando incentivar o cliente a aumentar o seu
consumo tradicional. (disponível em: http://www.mktdireto.com.br/mrd.html).
17. Tratando especificamente de programas de relacionamento entre
clubes e torcedores, têm, por característica comum, a fidelização do torcedor
aos eventos do clube – mormente às partidas de futebol nas quais o mando
de campo pertença ao clube – sendo esse o objetivo primário perseguido pela
agremiação desportiva, da qual decorrem, por óbvio, acréscimos financeiros
diretos – oriundos das contribuições dos torcedores e do aumento dos torcedores
em estádios –, e indiretos – como aumento no valor de quotas de transmissão
televisiva e de negociações de patrocínios.
18. De parte do torcedor, também existem vantagens consubstanciadas no
que o excerto denomina de vantagens, que além do imaterial amor ao clube, vêm
como estímulo à filiação ao programa, e se traduzem em descontos na compra
de ingressos, facilidades na obtenção desses, pagamento direto na catraca, no dia
do jogo, etc.
19. Recente matéria jornalística, analisando esse fenômeno que cada vez
mais se dissemina no desporto nacional, traduziu bem esse relacionamento:
Ser torcedor fiel de um time se tornou bom negócio dentro e fora dos
estádios. Frequentadores habituais dos jogos de seus clubes têm vantagens
como preferência na compra dos ingressos, que em muitas situações podem
ser adquiridos com desconto. E mesmo quem não tem o hábito ou não pode
acompanhar o time in loco tem benefícios. Dispõe, por exemplo, de descontos no
preço de centenas de produtos e de vários serviços.
Para isso, é preciso fidelidade, estar ligado ao clube por meio de um plano de
sócio-torcedor. Tais programas já existem há alguns anos no País e atualmente
são adotados pelos principais clubes. Têm passado por mudanças constantes,
dentro de um processo de aperfeiçoamento, e em janeiro deste ano ganharam
442
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
um significativo empurrão: o lançamento do Movimento por um Futebol Melhor,
que agregou benefícios aos projetos tocados pelos clubes.
(Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/esportes, clubes apostam-em-programas-de-socio-torcedor-como-fonte-de-renda,1085059,0.
htp).
20. Agrega-se a todos esses dados, um elemento imaterial que talvez seja
a principal força motriz desses programas: a paixão do torcedor pelo seu clube,
fato que, não raras vezes, leva-o a se associar a um programa de relacionamento,
tão-só para ajudar seu clube financeiramente.
21. Assim, não é possível se divisar nesses programas de relacionamento
– mesmo quando tisnam alguns torcedores com algumas vantagens – alguma
abusividade ou vulneração da obrigatoriedade de igualdade nas contratações (art.
6º, II e IV do CDC), pois dizem de relacionamento ímpar, onde a motivação
nem sempre é a obtenção de regalias, mas sim de contribuição efetiva com a
melhoria do clube.
22. Bordas objetivas, que transpassadas, inquinem um desses programas
com ilegalidade, somente ocorrerão se os serviços mínimos preconizados em lei
não forem disponibilizados a todos, e sim, somente aos associados a determinado
programa de relacionamento.
23. Vem daí os contornos garantistas dos arts. 13 e 20, § 2º, da Lei n.
10.671/2003 – o primeiro exigindo a segurança dos locais das competições
antes, durante e depois dos eventos, e o segundo prevendo a agilidade e acesso à
informação, na venda de ingressos.
24. Essa proteção é impositiva, mas a circunstância de um determinado
programa de fidelização prever facilidades outras, não o torna discriminatório,
ou ilegal, tão só pelo plus que agrega. É necessário, repita-se, constatar-se a
existência de vulneração ao mínimo, legalmente ou contextualmente, fixado.
25. E aqui, em subsunção do contexto fático à tese firmada, o sintético
acórdão recorrido consignou que:
como bem salientado pelo juízo a quo, “ao contrário do afirmado na inicial, não
constitui condição para aquisição do ingresso, pela internet ou pelo call center, a
prévia aquisição do Passaporte Rubro Negro”.
Não há duvida de que o passaporte não é um cartão pré-pago, tanto que o
torcedor de posse do referido passaporte terá que recarrega-lo para comprar o
ingresso. (fls. 287-288, e-STJ).
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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
26. Vê-se, do excerto, que diferentemente do que foi afirmado pelo
Ministério Público estadual, os torcedores mesmo sem aderirem ao programa
de relacionamento do clube recorrido, continuam tendo acesso à compra de
ingressos, tanto fisicamente quanto por meio eletrônico.
27. Frise-se, pela apreciação dos fatos na origem, o programa de
relacionamento não cria, por meio do referido passaporte rubro-negro, empeço
intransponível ou dificuldade maior na aquisição dos ingressos, tanto assim,
que dificilmente se verifica a completa lotação dos estádios de futebol e, mesmo
quando essa ocorre, não se veda a aquisição de ingressos àqueles que não tenham
o passaporte, mas apenas os remete para os meios comuns.
28. De outra banda, não se descura das dificuldades hoje existentes para
o cidadão adquirir ingressos para determinados espetáculos esportivos, tanto
assim, que Luiz Flávio Gomes, e outros, afirmam sobre o tema que:
O que se vê, na maioria das vezes, é o sacrifício do torcedor-consumidor em
filas enormes, casos de violência causada pela desorganização das vendas e o
assédio de cambistas que usam dos mais condenáveis artifícios para achacar
torcedores e “obrigá-los” a optar pela compra por preços escorchantes, ao invés
de busca-los nos pontos de venda oficiais e previamente estabelecidos. (GOMES,
Luiz Flávio ...[et al.], in: Estatuto do Torcedor comentado, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011, p. 63).
29. Porém, se esse serviço ofertado ao torcedor é tão deficiente quanto
pugna o recorrente, a solução passa por pedido expresso de cumprimento das
determinações do Estatuto do Torcedor, notadamente dos próprios dispositivos
citados, e não pela homogeneização de tratamento entre os sócios torcedores
e os demais torcedores, ou possíveis expectadores de um determinado jogo de
futebol.
30. A própria norma é o fiel para verificação das garantias mínimas do
torcedor: disponibilização de ingressos com o mínimo de 72 h (art. 20, caput,
da Lei n. 10.671/2003); implementação de sistemas de facilitação de compra
de ingressos (art. 20, § 2º, da Lei n. 10.671/2003); pulverização dos pontos de
venda (art. 20, § 2º, da Lei n. 10.671/2003) etc.
31. As prerrogativas que venham a ser instituídas em favor do sóciotorcedor, personagem, que como dito anteriormente, representa relevante aporte
de recursos diretos e indiretos ao clube, não infirmam esse mínimo legal.
32. Os programas que premiam, de alguma forma, a participação do
torcedor na vida financeira do clube têm, por ínsito, a outorga de vantagens aos
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Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
sócio-torcedores, essas tidas como qualquer elemento diferenciador em relação
aos demais torcedores não participantes do programa, devendo ainda, superarem
os padrões legais mínimos, pois esses são garantias, não vantagens.
33. Atendidos esses pressupostos, não se vislumbra a ilegalidade do
denominado passaporte rubro-negro.
34. Possível inadequação do clube em relação ao legal dever de qualidade
no fornecimento do serviço deve ser discutida judicialmente, de forma solteira,
sem o indevido atrelamento ao lídimo programa de relacionamento estabelecido
pelo clube recorrido.
35. Forte em tais razões, nego provimento ao recurso especial.
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