Pº R. P. 196/2009 SJC-CT- Aceitação da herança – forma expressa ou tácita.
Irrevogabilidade. Registo dos bens imóveis integrantes da herança a favor de todos os
herdeiros. Repúdio.
I – Relatório
DELIBERAÇÃO
1 – Na conservatória referenciada em epígrafe foi requisitado um registo de
aquisição da posição detida por Maria Eduarda na inscrição efectuada a coberto da
ap.108/2006, a favor da filha Patrícia …, respeitante às fracções autónomas AJ e AN
do prédio descrito sob o n.º 1…/…. na Conservatória do Registo Predial de…..
O aludido pedido, anotado no Diário sob a ap.9…./200…., foi instruído, inter
alia, com uma certidão da escritura de repúdio de herança outorgada pela referida
Maria Eduarda e marido.
1.1 – A situação registral respeitante (e comum) às referidas fracções com
pertinência para o caso no momento em que é apresentado o acto de registo
recusado, e ora impugnado, é a seguinte:
Ap.108/2006… – Aquisição em comum e sem determinação de parte ou
direito a favor de Manuel…, divorciado, e de Maria Eduarda casada no regime de
comunhão geral com José …, por sucessão Albino …e de Ivone…1;
Ap.33/2008… – Recusada a aquisição;
Ap. 34/2008… – Averbamento de transmissão do direito do Manuel …a favor
da Filipa e do Tiago, por sucessão hereditária;
Ap. 35/2008… – Aquisição [provisória por natureza – artigo 92.º, n.º 2, alínea
d)]2 a favor da Filipa e do Tiago, por partilha extrajudicial da herança de Albino …e
de Ivone ….
1
O extracto desta inscrição dá-nos ainda conta da existência de uma cláusula de
incomunicabilidade aos cônjuges dos herdeiros e da obrigação destes conservarem os bens
imóveis para os transmitirem, por morte, para os netos do autor da herança, havidos à data
do seu falecimento, sem que funcione o direito de acrescer, e a obrigação de conservarem os
bens da herança da Ivone para que, por sua morte, revertam a favor dos seus descendentes.
2
Esta inscrição foi efectuada como provisória por natureza apenas nos termos do
disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 92.º do CRP devido à sua dependência da recusa do
registo pedido a favor da Patrícia (filha da repudiante), a que coube a ap. 33/2008…, cujo
prazo para interpor recurso hierárquico ou impugnação judicial ainda não tinha decorrido.
1
2 – Sobre o aludido pedido de registo foi proferido despacho de recusa no
qual foram expendidos os seguintes motivos:
O pedido de registo foi instruído com uma escritura de repúdio de herança de
Albino …e Ivone …verificando-se que a aquisição já se encontra registada em
comum e sem determinação de parte ou direito a favor da repudiante, Maria
Eduarda, e de Manuel… .
Da análise dos autos resulta que este registo já tinha sido pedido – ap.
33/2008… –, e que o mesmo foi recusado pelo facto de se encontrar efectuado o
referido registo em comum e sem determinação de parte ou direito.
Face ao exposto e porque perfilha o entendimento constante do despacho de
recusa então proferido3, entende que a herança foi aceite pois a requerente ao
subscrever o pedido de registo assumiu a qualidade de herdeira.
Ora, sendo a aceitação da herança irrevogável por força do disposto no artigo
2061.º do Código Civil, a escritura de repúdio viola um norma de carácter
imperativo, pelo que a recusa é inevitável.
Invoca, de direito, os artigos 68.º e 69.º, n.º 1, alínea d), do CRP.
3 – O requerente, inconformado, interpõe recurso hierárquico contra a
aludida decisão, nos termos e com os fundamentos que aqui se dão por
integralmente reproduzidos, e dos quais destacamos particularmente os seguintes:
3.1 – O n.º 2 do artigo 2056.º do Código Civil exige, cumulativamente, que a
interessada assuma o título de herdeira e a intenção de adquirir a herança.
3
O despacho que recaiu sobre o aludido pedido é do seguinte teor «Recusado o registo
de aquisição nos termos dos artigos 68.º e 69.º, n.º 1, alínea d), porquanto a escritura de
repúdio viola uma norma de carácter imperativo – artigo 2061.º do Código Civil, a qual
refere que a aceitação da herança é irrevogável.
Entendemos que a herança foi aceite, pois o registo em comum e sem determinação
de parte ou direito a favor da repudiante e de Manuel…, registado pela ap. 108/2006…, foi
requerido e assinado pela própria repudiante, não obstante ela não ter tido intervenção na
escritura de habilitação de herdeiros, pois esta foi feita por três declarantes, mas ao requerer
o registo com base naquela escritura aceitou a herança.
No caso presente e tendo em atenção o artigo 2056.º, n.º 2, do Código Civil será que
não estamos mesmo perante um caso de aceitação expressa? Há um documento escrito, a
requisição de registo, no qual se assume a qualidade de herdeiro.»
2
3.2 – A aceitação da herança deve caracterizar-se por actos inequívocos e
rigorosos. Ora, a repudiante não manifestou a intenção de adquirir a herança e tal
não se pode extrair da mera subscrição do pedido de registo, enquadrável nos
actos de administração da herança, visto que lhe competia o exercício das funções
de cabeça de casal.
3.3 – Assim, ao tempo, o acto praticado tinha que ser obrigatoriamente
requerido com vista ao estabelecimento do trato sucessivo bem como para
possibilitar a celebração de actos subsequentes.
Consequentemente, o registo em causa deve ser efectuado em conformidade
com o pedido.
4 – A Senhora Conservadora sustentou a decisão prolatada, procedendo ao
desenvolvimento
da
posição
anteriormente
assumida
com
invocação
dos
fundamentos que aqui se dão por integralmente reproduzidos, e dos quais resulta,
em síntese, que o acento tónico é colocado, sobretudo, na existência de factos que
claramente evidenciam a aceitação tácita da herança.
II – Saneamento
Observamos liminarmente que o processo é o próprio, as partes têm
legitimidade, o recurso é tempestivo e inexistem questões prévias ou prejudiciais
que obstem à apreciação do mérito.
III – Pronúncia
Assim, descrita a factualidade pertinente e sumariadas as posições do
recorrente e da recorrida, passamos à apreciação do presente recurso hierárquico
que vai expressa na seguinte
Deliberação
I – A abertura da sucessão determina o chamamento imediato à
titularidade das relações jurídicas do falecido dos sucessíveis que reúnam,
nesse momento, os pressupostos da vocação sucessória4.
4
Como resulta da análise conjugada do disposto artigos 2031.º e 2032.º do Código
Civil, a abertura da sucessão e a vocação sucessória ocorrem normalmente no momento do
óbito do de cuius, não obstante a primeira preceda logicamente a segunda – Cfr., para mais
desenvolvimentos sobre o ponto, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, in Direito das Sucessões, 3.ª
edição, págs. 89 e segs.
3
II – A aceitação da herança, como manifestação de vontade positiva,
pode ser expressa ou tácita5, sendo irrevogável6. Será tácita quando
decorra da prática de algum acto de que necessariamente se deduza a
intenção do herdeiro aceitar, ou seja de tal natureza que só pode ser
praticado por quem tenha a qualidade de herdeiro.
III
–
A
subscrição
do
pedido
de
registo
em
comum
e
sem
determinação de parte ou direito dos bens integrantes da herança a favor
dos herdeiros insere-se na prática dos actos de mera administração da
herança7.
5
A aceitação da herança é um acto jurídico unilateral e receptício, que corresponde ao
exercício do direito de suceder conferido ao herdeiro e que se traduz na manifestação da sua
vontade em adquirir efectivamente a herança em causa.
A aceitação diz-se expressa quando em algum documento escrito o sucessível
chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a
adquirir (cfr. o disposto no n.º 2 do artigo 2056.º do C.C.); tácita quando resulta de factos
concludentes, segundo as regras gerais (art. 217.º, n.º 1). – Veja-se, quanto a esta
temática, RABINDRANATH CAPELO
DE
SOUSA, in Lições de Direito das Sucessões, II, 1980, págs.
27 e segs.
Como vimos, a lei define a aceitação expressa, mas guarda absoluto silêncio no que
concerne à aceitação tácita ao contrário do que acontecia na vigência do direito pregresso.
Com efeito, o Código de Seabra prescrevia, no seu artigo 2027.º, § 2.º, que: «É tácita,
quando o herdeiro pratica algum facto de que necessariamente se deduz a intenção de
aceitar, ou de tal natureza, que ele não poderia praticá-lo senão na qualidade de herdeiro».
Esta definição é da maior valia, devendo, ainda hoje, considerar-se como exacta na
medida em que estabelece rigorosamente os contornos da aceitação tácita da herança.
6
O entendimento expresso pelos doutrinadores, entre os quais figura INOCÊNCIO GALVÃO
TELLES (in ob. cit., pág. 109), vai no sentido de que «quem aceita ou repudia uma sucessão
toma uma decisão definitiva: não pode voltar atrás, repudiando depois de ter aceite ou
aceitando depois de ter repudiado».
Para além da irrevogabilidade prevista no artigo 2061.º do Código Civil, a aceitação
reveste ainda as seguintes características: é um acto individual, pessoal (artigo 2051.º),
puro e simples (artigo 2054.º) e indivisível (artigos 2054.º, n.º 2, e 2055.º). Algumas destas
características são, também, comuns ao repúdio, designadamente, a irrevogabilidade (artigo
2066.º) a retroactividade (artigo 2062.º), e a indivisibilidade (artigo 2064.º).
7
No caso dos autos temos, por um lado, a habilitação de herdeiros (que considerada
isoladamente não constitui indício seguro da aceitação da herança, visto que além de não ser
celebrada com intervenção da repudiante mas com base em declaração de três pessoas
consideradas dignas de crédito pelo notário – artigo 83.º, n.º 1, do Código do Notariado – a
4
IV – Consequentemente, tal acto, por si só, não é apto a demonstrar a
intenção de o herdeiro aceitar a herança pese embora a peculiar natureza
que reveste aquele pedido que apenas pode ser praticado por quem seja
herdeiro (chamado à sucessão) atento o que dispõem os artigos 37.º, n.º
1, e 49.º8 do Código do Registo Predial9.
habilitação significa apenas que o indivíduo é investido na qualidade de herdeiro, não
definindo a sua posição relativamente à herança) e, por outro, o registo dos bens em comum
e sem determinação de parte ou direito a favor da herdeira habilitada, o qual foi elaborado
na sequência do pedido (que consubstancia a declaração identificativa dos bens e dos
autores da sucessão) por esta subscrito, mas este acto insere-se nos actos de mera
administração da herança pelo que dele não decorre qualquer definição quanto à aceitação
da herança.
Veja-se, no que concerne aos actos de mera administração da herança, ISABEL PEREIRA
MENDES, in Código do Registo Predial Anotado, 2006, pág. 214.
8
Ao tempo, para a elaboração do registo de aquisição em comum e sem determinação
de parte ou direito, além do documento comprovativo da habilitação, exigia-se que fosse
proferida uma declaração que identificasse os bens a registar (mesmo que descritos) como
fazendo parte da herança – cfr. o que dispunha o artigo 49.º do CRP, antes das alterações
introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho.
9
Decorre de todo o exposto que a Maria Eduarda ao subscrever a requisição de registo
praticou um acto do qual não se pode deduzir, com a indispensável segurança, a intenção de
aceitar a herança, pese embora este acto, pela sua natureza, só possa ser praticado por
quem detenha a qualidade de herdeiro.
Nestes termos, já de depreende que a argumentação aduzida pelo recorrente no que
concerne à inclusão de tal acto nos poderes que a herdeira deveria praticar como
administradora da herança merece acolhimento, visto que tal acto se insere na categoria dos
actos respeitantes à mera administração da herança, parecendo-nos excessivo transportá-lo
para o plano da aceitação tácita da herança, como pretende a recorrida.
Devemos, contudo, admitir que a questão não é inteiramente pacífica sendo que na
jurisprudência do Supremo expressa no acórdão de 10 de Dezembro de 1997, publicado no
BMJ n.º 472, págs. 443 e segs. (aliás, citado no despacho de sustentação), se defendeu que
a aceitação da herança é tácita quando resulta de factos concludentes, quando o herdeiro
pratica qualquer acto de que necessariamente se deduza a intenção de aceitar. A inscrição
no registo predial levada a cabo pelos interessados revela, sem dúvida, esta última intenção
– de aceitação tácita.
A propósito dos actos concludentes da aceitação tácita da herança veja-se o
entendimento expresso na Deliberação tomada por este Conselho no proc.º R.P.5/2007DSJCT, homologado em 3 de Agosto de 2007, disponível na Intranet.
5
V – A declaração de repúdio da herança10, na sucessão legal,
desencadeia o direito de representação a favor dos descendentes de quem
10
Como é sabido, no âmbito da sucessão legal, a declaração de repúdio da herança
manifestada, nos termos da lei, desencadeia o direito de representação a favor dos
descendentes do repudiante (artigos 2039.º e 2042.º, n.º 1, do C.C.), retroactivamente,
considerando-se como não chamado, salvo para efeitos de representação (artigo 2062.º do
C.C.).
Contudo, a este propósito, PIRES
DE
LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado,
Volume VI, pág. 106, referem que «havendo os pressupostos necessários à representação, a
despeito de ter havido repúdio o repudiante não é tido como não chamado. Pelo contrário,
ele é tido como chamado, para o efeito da sucessão dos seus descendentes através do canal
da representação. É, com efeito, procedendo como se o repudiante tivesse sido chamado,
que não só se calcula a quota dos representantes, a partir do quinhão do representado,
como se determinam os deveres de colação e os ónus de imputação e de restituição por
inoficiosidade». Veja-se também, no que concerne aos pressupostos do direito de
representação, PEREIRA COELHO, in Direito das Sucessões, 1992, pág. 231.
O repúdio da herança deve, em regra, ser expresso, tendo em conta os efeitos legais
que lhe estão associados – o direito de representação ou, inexistindo este, o direito de
acrescer para os outros co-sucessíveis (artigos 2301.º a 2307.º do CC).
O repúdio importa quase sempre uma perda para o património do repudiante, daí que
a lei, para o proteger de impulsos, tenha subordinado o repúdio à celebração de escritura,
sempre que da herança façam parte bens cuja alienação só possa ser validamente celebrada
através daquela – cfr., de novo, PEREIRA COELHO, in ob. cit., págs. 261 e segs.
6
não pôde ou não quis aceitar a herança11, considerando-se como não
chamado aquele que repudia, salvo para efeitos de representação12.
Nos termos expostos, entendemos que o presente recurso hierárquico
não merece provimento.
Deliberação aprovada em sessão do Conselho Técnico de 18 de Dezembro de
2009.
Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, relatora.
Esta deliberação
08.01.2010.
11
foi
homologada
pelo
Exmo.
Senhor
Presidente
em
Ora tal determina que se proceda à habilitação dos representantes do repudiante
como herdeiros do de cujus, visto que da declaração de repúdio resulta a necessidade de
verificar os pressupostos de representação a favor dos descendentes de quem repudia,
donde no caso em apreço o registo peticionado (cujo pedido se encontra também
incorrectamente formulado) não possa ser efectuado visto que não está titulado nos
documentos apresentados.
Não obstante esta questão não tenha sido suscitada no despacho de qualificação, a
entidade ad quem não está vinculada à delimitação objectiva do recurso podendo conhecer
oficiosamente das deficiências existentes desde que as mesmas possam conduzir à feitura de
registos nulos. É um imperativo inerente aos próprios fins do registo que visam a segurança
do comércio jurídico imobiliário, como é proclamado logo no artigo 1.º do Código do Registo
Predial.
Veja-se,
em
conformidade,
a
doutrina
firmada
pelo
Conselho
Técnico,
designadamente no parecer constante do proc.º n.º 2/92R.P.4, in BRN n.º 5/96, II, págs. 6 e
segs.
12
No caso em apreço nos autos, como decorre da cláusula de substituição
fideicomissária inserida na inscrição efectuada a coberto da ap.108/20060227, os herdeiros
encontravam-se obrigados a conservar a herança para que, à morte deles, reverta a favor
dos netos dos autores da herança – artigos 2286.º e segs. do Código Civil.
Havendo repúdio por parte de um destes herdeiros pode equacionar-se a possibilidade
da substituição se converter de fideicomissária em directa nos termos previstos no n.º 3 do
artigo 2293.º do Código Civil, mas tal só se apurará em confronto com as disposições
testamentárias.
7
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