Anais Seminário Casas de União
Maria da Graça Hahn
José Miguel Quedi Martins
Lucas Kerr de Oliveira
(organizadores)
I Seminário
CASAS DE UNIÃO
Políticas Públicas e Regiões de Fronteira
Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE)
Rua 24 de outubro, 850/310
Bairro Moinhos de Vento
CEP: 90510-000
Porto Alegre, RS, Brasil
Fone: (51) 30846175
Capa: Júlia Oliveira Rosa
Editoração: Bruno Gomes Guimarães
Revisão técnica: Helena Marcon Terres, Bruno Magno, Laís Helena
Andreis Ttrizotto, Luiza Costa Lima Corrêa, Júlia Simões Tochetto, Bruna
Coelho Jaeger, Marília Bernardes Closs, Gustavo Henrique Feddersen,
Giovana Esther Zucatto, Raul Cavedon Nunes, Guilherme Henrique
Simionato dos Santos, Ivan Nunes, Osvaldo Alves Pereira Filho, Vinícius
Lanzarini, João Arthur Reis
Imagens: Humberto Genehr de Carvalho
Impresso pela Gráfica da UFRGS
© 2014 Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
Seminário Casas de União (1. : 2013 : Florianópolis, SC)
I Seminário Casas de União: Políticas Públicas e Regiões de Fronteira ;
Maria da Graça Hahn, José Miguel Quedi Martins, Lucas Kerr de Oliveira
(Org.). — Porto Alegre : Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia,
2014.
x 120p.: Il. ; 21cm
Série: Anais Seminários Casas de União
ISBN 978-85-65135-11-5
ISBN 978-85-65135-10-8 (e-book)
1. Gestão Associada. 2. Federalismo Cooperativo 3. Casas de União
4. Convênios 5. Consórcios. I. Hahn, Maria da Graça. II. Martins, José Miguel
Quedi.
III. Oliveira, Lucas Kerr. IV. Instituto Sul-Americano de Política e
Estratégia.
V. Título. VI. Série.
CDU 355
Responsável: Biblioteca Gládis W. do Amaral, Faculdade de Ciências
Econômicas da UFRGS
Os organizadores, autores e a equipe técnica do Seminário Casas
de União manifestam aqui os seus agradecimentos às instituições
realizadoras do projeto: a Escola da Advocacia-Geral da União (EAGU),
a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), ao Centro
de Estudos Internacionais sobre Governo da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (CEGOV/UFRGS), ao Instituto Sul-Americano de
Política e Estratégia (ISAPE).
Em segundo lugar, nossos mais profundos agradecimentos às
instituições apoiadoras do projeto: à Faculdade de Ciências Econômicas
da UFRGS (FCE/UFRGS) e ao Departamento de Economia e Relações
Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina
(DERI/UFSC).
Por fim, mas não menos importante, nosso reconhecimento
público e gratidão às instituições de fomento sem as quais a participação
ativa e decisiva do corpo discente neste projeto teria sido impossível: a
Pró-reitoria de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(PROREXT/UFRGS), a Pró-reitoria de Pesquisa da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (PROPESQ/UFRGS) e a Fundação de
Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS).
Nossos sinceros agradecimentos.
A responsabilidade pela elaboração da Introdução e da Conclusão
compete unicamente aos organizadores. Os autores dos textos, que
sintetizam as palestras proferidas no Seminário, não foram consultados
e, tampouco, tiveram qualquer acesso ao disposto na introdução e na
conclusão deste antes da publicação. Igualmente, as opiniões,
impressões ou dados contidos nos textos assinados são de mérito e
responsabilidade exclusiva de seus autores e não da equipe de revisão
técnica e edição.

Os Seminários Casas de União são resultados da parceria entre a
EAGU, o Centro de Estudos Internacionais Sobre Governo (CEGOV)
da UFRGS, a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército
(ECEME), o Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE) e
a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
A iniciativa consiste em evento realizado anualmente com a
publicação de anais contendo os debates empreendidos em cada
seminário. O principal objetivo dos seminários é apresentar o conceito
“Casas de União” à sociedade (setor público, privado e terceiro setor) e,
a partir da troca de saberes, aprimorar sua formulação para que se torne
possível sua implementação como política pública.
As Casas de União se propõem a dar consecução ao princípio da
gestão associada prevista no artigo 241 da Constituição Federal, a partir
do compartilhamento de infraestrutura (servidores, instalações prediais,
material de consumo e material permanente) entre distintos entes
federados pertencentes a diferentes órgãos. Procura-se facultar o
aumento da presença do Estado em todo território nacional de forma
flexível, com economia de recursos, garantindo uma maior efetividade
às políticas públicas.
As Casas de União viabilizariam fisicamente a realização de
consórcios públicos e convênios de cooperação, possibilitando, ainda, a
composição de conflitos ou terminação de litígios envolvendo as dívidas
dos entes federados. O compartilhamento de instalações físicas e
servidores, por sua vez, permitirá economia expressiva aos cofres da
União, estados e municípios. Ao mesmo tempo, oportuniza-se melhor
prestação de serviços ao cidadão através da capilarização da
Administração em seus diversos níveis (Federal, Estadual e Municipal),
materializando, assim, o princípio do Federalismo Cooperativo. Elucidar
o conteúdo normativo das Casas de União é parte do esforço de
formulação de que tratam os seminários.
Com efeito, recente pesquisa do IBGE, analisando a presença em
território nacional de instituições federais com considerável capilaridade
(Justiça Federal, INSS, Receita Federal, entre outras), constatou que
60% dos municípios brasileiros não possuem nenhum posto de
atendimento de relevantes órgãos federais.1 O cidadão, nestes casos,
precisa se deslocar para municípios vizinhos para ter acesso ao serviço
público. Esta pesquisa deixa claro, de um lado, que as emancipações
ocorridas no início dos anos 1990, ao favorecer a fragmentação políticoadministrativa, criou um número elevado de municípios de pequena
dimensão, que dispõem de poucos recursos humanos e materiais
enquanto, paradoxalmente, as atribuições institucionais e de prestação
de serviços em áreas como saúde, educação e na administração de
programas sociais foram ampliadas. De outro lado, fica patente a
dificuldade da União de se fazer, efetiva e concretamente, presente em
todo o território nacional. Daí, a conclusão de que iniciativas como as
Casas de União e suas parcerias podem responder a desafios como o
registrado na pesquisa do IBGE.
O I Seminário Casas de União
Nosso primeiro encontro versou sobre a temática “Políticas
Públicas e Regiões de Fronteira”, realizou-se no dia 23 de setembro de
2013, no Auditório do Centro Socioeconômico da UFSC, em
Florianópolis, e contou com a presença de noventa e quatro (94)
1
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Perfil dos
Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro: Ministério do Planejamento, Gestão e
Orçamento, 2013.
participantes quase todos pertencentes ou representando órgãos
públicos. Dentre os presentes pode se destacar a representação estadual
do DNIT e da ANVISA, além do Ministério do Planejamento, da Polícia
Rodoviária Federal, da ADESG, da Petrobrás, entre outros.
A abertura do evento contou com participação de Pedro Brites,
Diretor-Geral do ISAPE; e Maria da Graça Hahn, idealizadora das Casas
de União e Procuradora da Fazenda Nacional em exercício na Escola da
Advocacia-Geral da União (AGU) em Santa Catarina. O seminário foi
constituído por duas mesas, que trataram das temáticas “Políticas
Públicas e Regiões de Fronteira em Debate” e “Os Desafios e as Ações
do Governo Federal nas Regiões de Fronteira”. A primeira foi moderada
pelo Prof. Dr. Carlos Arturi (CEGOV), incluiu as exposições do Ten.
Cel. Clynson de Oliveira (ECEME), da Profª Dra. Graciela Pagliari
(UFSC) e de Rodrigo Cardoso (CAPES). A segunda , moderada pelo
Prof. Dr. José Miguel Martins (UFRGS), incluiu as apresentações do
Prof. Dr. Lucas Kerr de Oliveira (UNILA) e de Fernando Sebben
(Senado Federal). Esses anais procuram relatar o conteúdo destas
palestras.
O artigo que abre estes anais, de autoria do Ten. Cel. Clynson,
reveste-se de uma importância especial: permite aos organizadores deste
volume reconhecer e homenagear o esforço daqueles brasileiros
pioneiros, civis ou militares, estadistas ou soldados, que zelaram (e
zelam) por nossas fronteiras. Seria impossível nomear a todos; talvez
caiba uma referência ao esforço do Marques do Pombal que, ainda no
seculo XVIII, pela primeira vez construiu uma rede de fortes ao longo
do Rio Amazonas, que permitiu o povoamento da região e que este
vasto território permanecesse em mãos luso-brasileiras. Mais
recentemente, temos o esforço sintetizado no projeto Calha Norte, do
qual, em mais de um sentido, as Casas de União sentem-se tributárias.
Isto se torna particularmente evidente quando o Cel. Clynson descreve
sua experiência pessoal junta aos Pelotões Especiais de Fronteiras, o
“Pavilhão de Terceiros” e o Barco PAI – Pronto Atendimento Itinerante
–, antecipações das Casas de União, que prestam assistência inestimável
às populações ribeirinhas e aos contingentes de brasileiros sediados ao
longo das regiões de fronteira. Como as regiões de fronteira são o tema
deste primeiro Seminário, nada mais natural que se reporte esta
experiência pregressa e, que na pessoa do Cel. Clynson, se homenageie
e preste-se tributo a todos aqueles, ilustres ou desconhecidos, que
mantém na fronteira o patrimônio de todos os brasileiros.
Se o artigo do Cel. Clynson nos fala sobre a importância da
cidadania para a manutenção da própria soberania, resultado da
experiência na região da Cabeça do Cachorro, o artigo seguinte, de
autoria da Prof. Dr. Graciela Pagliari (RI/UFSC), trata do desafio
representado pelo ilícitos transnacionais como afeto à todas fronteiras.
Trata-se do tráfico de armas, minerais, seres humanos e drogas, além da
lavagem de dinheiro e corrupção. A exposição da magnitude do
problema deixa evidente a impossibilidade de qualquer solução
simplificadora. Mais que um problema nacional, a região de fronteira
suscita a ação integrada não apenas de diferentes órgãos, mas também
de diferentes entes federados e requer, em igual amplitude, a cooperação
internacional. O artigo serve como fundamento acerca da importância do
emprego da imaginação institucional2 para a formulação de soluções
complexificadoras, multidimensionais, que envolvam todos níveis do
poder nacional para dar conta do enfrentamento aos ilícitos
transnacionais, já que seu reflexo é conhecido de todos: violência e
insegurança nos grandes centros urbanos. Caso não se possa despertar a
empatia com a questão dos ilícitos transnacionais, por razões de
segurança humana ou nacional, resta o argumento egoísta: trata-se de
perseguir o elementar autointeresse.
Rodrigo Bertoglio trata da fronteira norte, próxima a tríplice
fronteira: a que compartilham Brasil, Guiana e Venezuela. Trata-se do
resultado de uma pesquisa feita em campo e em arquivos, e que,
originalmente, permitiu ao hoje analista de Ciência e Tecnologia da
CAPES concluir seu mestrado com distinção. Trata-se de uma outra
fronteira; além das questões já levantadas por Clynson e Graciela,
2
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Transição Tributária: Introdução à
Justiça Fiscal Consensual. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 15.
há — comparativamente ao conjunto da Amazônia — um intenso fluxo
humano que leva à Fronteira Norte situações as quais seriam em tudo
análogas às da Fronteira Oeste.
Este é o tema do artigo de Fernando Sebben, aqui o aspecto que
chama atenção, em plena era da globalização, da integração — ou talvez
devido precisamente devido a isto —, é o risco da guerra local. O hoje
analista legislativo do Senado apresenta e atualiza aquilo que foi seu
objeto de estudos durante os anos em que se debruçou sobre sua
dissertação de mestrado e de suas visitas a região. A magnitude do
problema da Meia Lua mostra que para além de soluções inovadoras e
multidimensionais, permanecem os “velhos” problemas de segurança
relacionados à preparação militar, à aquisição do material bélico e à
capacidade de projetar força além-fronteira; até mesmo como um
quesito para afiançar o processo de integração. O artigo de Fernando
traz à tona uma dimensão presente, porém subentendida nos artigos
precedentes. A importância do processo produtivo, da base industrial de
defesa, exposto no decreto 6.703/2008 que dispõe sobre a Estratégia
Nacional de Defesa (END) e o papel da mobilização nacional
(SINAMOB), exposto no decreto 6.592/2008. Em suma, vislumbra-se,
por inferência, a dimensão econômica e produtiva que, paradoxalmente,
está presente na reforma do Estado. Serve, portanto, para dar conta da
presença de formas inovadoras de parcerias e de financiamento que
integram a reforma do Estado para além do aspecto político.
Esta perspectiva fica mais visível na abordagem de Lucas Kerr,
que nos brinda com uma interessante e significativa associação: a
importância da reforma do Estado, da infraestrutura e da integração para
a construção da sustentabilidade energética. Lucas Kerr, que atualmente
é o Coordenador do curso de Relações Internacionais da UNILA,
desenvolveu este tema ao longo de sua tese de doutorado. Neste artigo,
explora com desenvoltura os aspectos normativos da questão energética
e sua interface com as políticas públicas de Estado. Naturalmente, entre
as conclusões do autor, a importância de mecanismos ad hoc, como
Casas de União, Consórcios e Convênios para servir como ferramentas
administrativas e institucionais que permitam uma ação integrada de
governo nos três níveis e, eventualmente, sirva como suporte adicional à
própria cooperação técnica internacional.
Por fim, deixamos os leitores com os artigos, na expectativa de
que, de algum modo, possa se ter contribuído no esforço de dar
continuidade à Reforma do Estado no Brasil.
Os Organizadores
Porto Alegre, novembro de 2014
Introdução
O presente artigo tem como objetivo geral expor alguns dos
principais desafios e oportunidades relativos à implementação e ao
sucesso de políticas públicas na Fronteira Amazônica, especialmente na
região da Cabeça do Cachorro, uma zona de difícil acesso e ainda pouco
explorada. Visa-se apresentar a atuação do Exército Brasileiro (EB)
como um dos principais representantes do Estado nessa região, a partir
da sua inserção nas políticas públicas, e, por fim, delinear algumas das
possibilidades de implementação do projeto Casas de União como uma
solução possível para a presença deficiente do Estado na área.
As Casas de União são fundamentadas na ideia de que deveria
existir uma infraestrutura compartilhada entre os distintos entes
federados. Esta infraestrutura abrigaria diversas agências (dos diversos
entes), que partilhariam dos mesmos recursos — servidores, materiais e
instalações prediais —, dando consecução ao princípio de gestão
associada contido no Art. 241 da Constituição de 1988, e na Lei
11.107/2005 e no Decreto 6.017/2007 — os quais regulamentam a
instituição de consórcios públicos no Brasil. O presente artigo
apresentará algumas iniciativas com propostas similares, que podem ser
vislumbradas como precedentes às Casas de União, com o intuito de
apontar oportunidades de inserção do projeto na região da Fronteira
Amazônica.
O texto está dividido em quatro seções. Na primeira, são
apresentadas as especificidades da região amazônica que interferem
diretamente na implementação das políticas públicas. Na segunda,
buscou-se clarificar a relação fundamental entre cidadania, soberania e
desenvolvimento, que perpassa todo o artigo. A terceira seção apresenta
a distribuição das unidades do exército no território amazônico. A quarta
e última sessão trata das principais iniciativas públicas com
envolvimento das unidades militares do EB na região, buscando-se
expor oportunidades para as Casas de União. Por fim, tem-se, na
conclusão, a retomada dos tópicos anteriores, relacionando-os mais
fortemente à temática das Casas de União.
Especificidades da Região Amazônica
Existem fatores geográficos que dificultam a implementação de
políticas públicas na região amazônica. Como se sabe, a região é vasta
(mais de cinco milhões de quilômetros quadrados) e pouco povoada
(densidade populacional média de 4,14 hab/km²) (SUDAM, 2014).
Além disso, se trata de uma área coberta por uma densa floresta
equatorial, cortada por diversos rios e onde predomina um clima quente
e úmido. Esses fatores são determinantes no estabelecimento de uma
infraestrutura na região, visto que tornam difícil o acesso local e a
própria construção civil.
Ademais, a grande distância entre os principais centros urbanos
da região — em média, tem-se uma distância de 100 km entre as cidades
— e a carência de estradas que os conectem — apenas 110.000 km de
estradas, sendo apenas 13.000 km asfaltados (Ministério dos
Transportes, 2014) — configuram uma barreira natural ao
desenvolvimento. As grandes distâncias aumentam os custos da conexão
entre as cidades, enquanto a falta de acesso local interfere no transporte
de suprimentos, energia e serviços para essas regiões, dificultando o
exercício da cidadania e a própria presença do Estado. Como ilustração
dessa distância, tem-se a Tabela 01, que compara as distâncias entre
algumas das principais cidades da região com as distâncias entre cidades
extrarregionais. Procura-se evidenciar, assim, o difícil acesso da região
em comparação com o restante da nação, que em alguns casos faz com
que as viagens entre as cidades se prolonguem em até sete vezes o
tempo normal de viagem para a mesma distância em outras regiões do
país.
Ainda, quase 45% das terras amazônicas são Terras Indígenas
(TI) ou Unidades de Conservação (UC), de forma a oferecer uma maior
proteção ao meio ambiente (VERÍSSIMO et al, 2011). Entretanto, a
sobreposição de legislações (as diversas legislações dos entes federados
e as legislações específicas para essas localidades especiais) gera
algumas dificuldades burocráticas em torno da implementação de
políticas públicas. As dificuldades advindas da intersecção entre
legislação indígena e ambiental vigentes no país geram entraves ao
estabelecimento de infraestrutura e indústrias nessas regiões.
Apenas na Região Amazônica, o Brasil faz fronteira com sete dos
doze países sul-americanos, totalizando mais de 12.000 km de limites na
região (COELHO, 1992). Assim, outro fator que dificulta a
implementação de políticas públicas na região é a grande
permeabilidade das linhas de fronteira. Por ser uma extensa região
pouco povoada, coberta por uma densa floresta e com pouca
infraestrutura física, há uma grande dificuldade no controle da passagem
de pessoas entre o Brasil e seus vizinhos amazônicos. Nesse contexto,
indivíduos de outras nacionalidades podem ser atingidos por políticas
públicas implementadas pelo Brasil. Assim, torna-se difícil elaborar um
bom planejamento de políticas públicas, posto que o número de
indivíduos que de fato serão atingidos será maior do que o idealizado, o
que pode acarretar falta de recursos quando da consecução dessas
políticas. De forma análoga, o sub-registro civil, um problema real na
região, também se torna um empecilho para o planejamento de políticas
públicas eficientes na região. Ainda, dada a carência de registro civil
naquela área, é muito provável que haja dificuldades em recrutar
residentes locais para servirem ao município ou ao estado via concurso
público, por exemplo.
Assim, outro aspecto que dificulta a implementação de políticas
públicas na região é a fixação/recrutamento de pessoal em uma região
de tão difícil acesso e com tão pouca infraestrutura. Tal dificuldade é
relacionada ao isolamento e subdesenvolvimento da área em questão, o
que a torna pouco atrativa à transferência de pessoal. Ao mesmo tempo,
por ser tratar de regiões com baixo IDH, dificulta-se o recrutamento de
mão de obra local, tendo em vista o baixo nível de escolaridade e o
baixo treinamento às tecnologias mais recentes — aspectos que, no
longo prazo, estão sendo amenizados pelos programas interministeriais
que serão apresentados na penúltima seção deste artigo.
A permeabilidade das fronteiras também influi em outra questão
importante concernente à região de fronteira: o tráfico transfronteiriço.
Com a dificuldade de monitoramento da passagem de pessoas, ficam
facilitados diversos ilícitos, como o tráfico de drogas, armas, minérios,
madeira, assim como a fuga de criminosos através da fronteira. A
eficácia de políticas públicas para tratar desses ilícitos depende, em
parte, da cooperação institucional com outros países da região, posto
que estas questões perpassam diversas soberanias.
A dificuldade de instalação gerada por essas condições
obstaculiza a presença do Estado na zona de fronteira. Isso porque,
dadas as condições naturais, e a ausência infraestrutura de fato para o
estabelecimento de órgãos, de redes bancárias e de energia elétrica é
dificultada a maior parte das políticas públicas e dos programas de
transferência de renda do governo federal. Além disso, com o
planejamento obstaculizado pela dificuldade de cálculo a respeito da
população a ser atingida, muitas políticas públicas não se inserem
eficientemente na região. Quando não atingida pelas políticas públicas, a
população não se sente cidadã, pertencente ao Estado, e o Estado, por
sua vez, não logra cumprir suas funções de controle, monitoramento,
presença e planejamento na fronteira amazônica.
Cidadania, Soberania e Desenvolvimento
Soberania e cidadania são dois princípios fundamentos da
Federação Brasileira intimamente relacionados nas regiões de fronteira,
especialmente na região amazônica. A presença do Estado nos principais
pontos de fronteira com o Norte da América do Sul é dificultada por
uma série de fatores, abordados na seção acima. A carência de serviços
básicos à população local, como serviços médicos e odontológicos,
educação, serviços bancários e registro civil, conferem à região um
baixo índice de desenvolvimento socioeconômico. A carência de
cartórios, por exemplo, implica alta taxa de nascimentos sem registro, o
que inviabiliza o acesso de grande parte da população aos projetos do
Governo Federal, como os programas de distribuição de renda. Sem
registro civil, o indivíduo não goza de cidadania, não sendo atingido
pelas políticas públicas. Essa condição de desassistência implica um
sentimento de não pertencimento à nação, ao Estado brasileiro, o que
problematiza a defesa nacional.
De forma análoga, desenvolvimento e cidadania são dois
conceitos indissociáveis. Não se pode pensar em cidadania sem que se
pense em acesso aos principais frutos trazidos pelo desenvolvimento,
seja ele econômico ou social. A recíproca é verdadeira: não se pode
pensar em desenvolvimento social sem cidadania. Assim, ao mesmo
tempo em que o desenvolvimento traz avanços em cidadania, o próprio
exercício da cidadania traz desenvolvimento. A população brasileira
ribeirinha, por exemplo, retira do meio ambiente o necessário para sua
sobrevivência. Há poucas vagas para o trabalho formal e muitas relações
comerciais são as mesmas praticadas há séculos atrás, como, por
exemplo, o escambo. Há um processo visível de encadeamento entre a
provisão de serviços básicos, desenvolvimento socioeconômico e
soberania nessas regiões. Com registro civil, por exemplo, o cidadão
passa a ter acesso às políticas públicas e aos programas governamentais
de inclusão, vislumbrando a possibilidade de ter sua renda ampliada. Os
programas de distribuição de renda, por sua vez, exigem a presença de
bancos na região para a transferência dos benefícios, o que demanda
uma infraestrutura energética considerável. A elevação da renda de um
município de fronteira, por outro lado, fomenta o mercado local,
ampliando a demanda, para além dos serviços básicos, de bens e
produtos de consumo. Amplia-se, dessa forma, comércio local que terá
de ser regulamentado por órgãos públicos. De tal maneira, para que haja
melhoria na qualidade de vida na área de fronteira é necessário fomentar
o desenvolvimento da economia local, o que passa necessariamente pela
ampliação da cidadania.
Ainda, os conceitos de desenvolvimento e soberania têm uma
relação de interdependência: o desenvolvimento econômico-social, ao
assumir papel de indutor da cidadania e, ao mesmo tempo, sendo
induzido por ela, amplia a presença do Estado no território em questão.
A maior representatividade de órgãos federais nos rincões mais
afastados proporciona o maior controle estatal sobre o território lindeiro.
No entanto, por ora, a presença do Estado na região amazônica é
efetivada majoritariamente pela atuação EB, que viabiliza a prestação de
diversos dos serviços públicos relacionados à cidadania e ao
desenvolvimento nas regiões mais isoladas da fronteira amazônica.
Distribuição das Unidades Militares do Exército
Considerando-se a presença escassa do Estado e os diversos
problemas na implementação de políticas públicas na região, o EB
representa o Estado na fronteira com o Norte da América do Sul em
diversos aspectos. Pela necessidade estratégica de se manter unidades
nas regiões de fronteira nacional para fins da própria defesa da região e
da soberania nacional, o Exército leva a essas regiões parte da
infraestrutura que o Estado não consegue fornecer. Considera-se que sua
presença vai além da segurança pelas armas, tangenciando também o
aspecto de manutenção da cidadania nas áreas de fronteira. Assim, o EB
proporciona diversos serviços públicos (que tradicionalmente seriam
fornecidos pelo Estado) às populações locais.
Dessa forma, para uma atuação que efetive os objetivos de
soberania nacional e extensão da cidadania na área de fronteira, o EB
tem aumentado e diversificado sua presença na região. Em 1980, o
Exército tinha apenas 6.000 homens na região; hoje, tem mais de
22.000. Esses homens estão distribuídos em mais de oitenta
organizações militares, posicionadas estrategicamente nas entradas
fluviais e terrestres do Brasil.
Dentre essas organizações militares estão os Pelotões Especiais
de Fronteira (PEF). Os PEF são cerca de trinta pequenas organizações
militares na Fronteira Norte e Oeste da Amazônia, compostas por
setenta soldados acompanhados por suas famílias e comandados por
jovens tenentes. Suas tarefas são as de manter a soberania brasileira
sobre o solo nacional, contribuir com o desenvolvimento e cumprir
tarefas administrativas e rotineiras. Via de regra, os PEF se estabelecem
próximos a pequenas comunidades indígenas, com cerca de cem
famílias, e são as únicas estruturas que disponibilizam saúde, energia,
segurança e água potável às comunidades no seu entorno.
Pode-se afirmar que o EB tem um papel essencial como
representante do Estado Brasileiro na Amazônia, de forma a levar
serviços e cidadania à região, não somente a partir dos PEF mas também
das diversas iniciativas que o EB capitaneia na região. Assim, é
fundamental que o projeto Casas de União busque parcerias com o
Exército para sua inserção na região amazônica. Ainda, as Casas de
União poderiam ser facilitadoras para a cooperação do pr´óprio EB com
outros órgãos públicos ou privados. Programas e iniciativas conduzidas
em grande medida pelo EB, além das oportunidades de inserção das
Casas de União nos mesmos, serão apresentados nas próximas sessões.
Inserção do EB nas Políticas Públicas e Oportunidades às Casas de
União
O EB, junto a outras instâncias do Poder Público, já realiza na
região uma série de iniciativas que buscam suprir o vácuo de cidadania
na região. Apesar de não serem substitutos à presença ostensiva do
Estado no território do país, o Projeto Calha Norte (PCN), os Pelotões
Especiais de Fronteira (PEF), o Barco do Pronto Atendimento Itinerante
(PAI), além das iniciativas interministeriais demonstram como atuações
sinérgicas podem ser implementadas na região de modo a combater os
desafios de maneira eficiente. Esta seção buscará elencar alguns
elementos de sucesso dessas iniciativas a fim de demonstrar a
viabilidade das Casas de União, bem como delinear nas experiências as
lições iniciais para este projeto através dos desafios já enfrentados nos
pontos longínquos de nosso território nacional.
O Projeto Calha Norte tem como objetivo principal contribuir
com a manutenção da soberania na Amazônia e com o ordenamento do
seu desenvolvimento. Ele foi criado em 1985 e visa aumentar a presença
do poder público na sua área de atuação e as capacidades de Defesa
Nacional. A filosofia do programa é aumentar a vigilância das fronteiras
por intermédio da fixação de homens na região amazônica. Além disso,
PCN proporciona ações de desenvolvimento socialmente justas e
ecologicamente sustentáveis, devendo aliar o conceito de Defesa
Nacional ao de cidadania.
O PCN, contudo, carece da apresentação de projetos consistentes
voltados para a cidadania, quer seja pelo desconhecimento dos estados e
municípios sobre sua existência, quer seja por falta de capacitação
administrativa de pessoal para levá-los a contento. A oportunidade que
se apresenta para as Casas de União é de que uma parte desse montante
de recursos subaproveitados poderia ser empregada para financiar a
iniciativa, afim de promover políticas inclusivas e que assegurem
maiores direitos à população local.
O PCN estabeleceu pequenas unidades militares, os PEFs, na
região, a fim de vigiar a fronteira brasileira e levar cidadania aos mais
longínquos rincões da Amazônia. Os PEFs são localizados em pontos
estratégicos de entrada no território nacional, seja por via fluvial e/ou
terrestre. São compostos em média por setenta (70) militares e
obedecem a um mesmo padrão de construção. Ao lado dessas
organizações militares, via de regra, há uma pequena vila ou
comunidade, muitas vezes indígena. Por possuir uma infraestrutura
mínima de energia, saúde, saneamento e de suprimento logístico
rotineiro, é comum que a população lindeira seja beneficiada. Mais de
90 % do atendimento de saúde feito nos PEF é realizado em proveito da
comunidade e não da família militar, como seria intuitivo (COMANDO
MILITAR DA AMAZÔNIA, 2012).
Cada PEF possui um pavilhão construído com o intuito de abrigar
diversas agências governamentais. Esse pavilhão, batizado como
“Pavilhão de Terceiros”, foi projetado para dar condições de trabalho e
de permanência a representantes dos Ministérios da Justiça (FUNAI e
Polícia Federal); da Fazenda; da Agricultura; do Meio Ambiente e
quaisquer outras instituições públicas. Mesmo possuindo alguma
infraestrutura básica, ainda há grande carência de serviços essenciais
nesse pavilhão. Muitos dos PEFs não possuem luz durante todo o dia,
apenas geradores de energia que funcionam de acordo com a
disponibilidade de combustível, que varia entre quatro (04) e doze (12)
horas dependendo da acessibilidade. Há limitações para o
armazenamento de víveres, infraestrutura elétrica, de comunicações e de
mobiliário, tendo em vista que o acesso a quatorze (14) dos vinte e oito
(28) PEFs só se dá por via aérea ou fluvial.
Sobre o acesso fluvial há que se destacar dois aspectos
pertinentes. O primeiro é a capacidade limitada das embarcações
orgânicas das unidades militares. Em sua maioria, as embarcações não
podem exceder a lotação de 500kg entre pessoal e material. Isso quer
dizer que, levando-se três pessoas, sobram cerca de 200kg para serem
equacionados entre víveres e combustível. O segundo aspecto é a
existência de cachoeiras, que exigem que toda a carga, inclusive os
motores, seja retirada dos barcos, carregada manualmente por cerca de
500m a 1.000m, e depois seja remontada para que se possa seguir
viagem. Alguns trajetos logísticos possuem mais de quatorze cachoeiras
entre os dois pontos, como é o caso da ligação fluvial entre a sede do 5º
Batalhão de Infantaria de Selva, em São Gabriel da Cacheira-AM, e o 2º
PEF em Querari-AM (583 km de rio).
Portanto, a oportunidade proporcionada pelos PEF é a de ser uma
estrutura capaz de prover um mínimo de segurança, alojamento e
condições de trabalho, e para levar a cidadania a essa população
desassistida pelas agências governamentais, de forma permanente e
presente. Os PEF podem ser a base sobre a qual se estabelecerão as
Casas de União no território de fronteira. Por já disponibilizarem alguns
serviços básicos e de infraestrutura compartilhada, a experiência do
Pavilhão de Terceiros pode dar base à cooperação dos entes federados
para outros serviços públicos e destes com o setor privado para a
contratação de serviços.
Onde não há essa infraestrutura a situação é mais complicada.
Nessas regiões precárias de fronteira, a maioria da população não possuí
sequer registro civil. Isso significa, na prática, que elas não gozam dos
benefícios dos serviços públicos aos quais os cidadãos brasileiros
devidamente registrados têm acesso. Virtualmente, essas pessoas não
existem para o Estado, pois sua esfera administrativa não logra alcançálas. Isso se reflete negativamente também na percepção dos indivíduos
para com a nação, ou seja, na consciência dessa população de
pertencimento à nação brasileira, uma das condições necessárias para o
pleno exercício da soberania. Os moradores sem registro, sem as
contrapartidas normais da cidadania, não têm motivos para se
considerarem brasileiros. E como a experiência histórica mostra, não há
civilização ou país que tenha conseguido defender sua soberania e suas
fronteiras sem que seus cidadãos tivessem participado efetivamente com
sua vontade de lutar e vencer pela nação. Assim sendo, torna-se capital
que o Estado seja o responsável por levar a cidadania aos seus nativos
da fronteira. Daí a necessidade da representatividade de órgãos públicos
federais nessas regiões desassistidas. A presença desses órgãos pode se
dar de forma flexível e com eficiente alocação de recursos se efetivada a
partir dos princípios das Casas de União, seja o federalismo cooperativo,
seja a gestão associada.
A título de exemplificação de uma atuação flexível, pode-se
apresentar a iniciativa do Barco de Pronto Atendimento Itinerante
(Barco PAI). Criou-se o Barco PAI, em 2003, para que o Estado pudesse
atuar em locais com infraestrutura precária ou inexistente. Desde então,
o Barco PAI já promoveu milhões de atendimentos em mais de
cinquenta e seis municípios. O projeto conta com as parcerias do
Exército, INSS, Funai, Caixa Econômica, Correios, secretarias de saúde
(Susam), Trabalho (Setrab), Segurança Pública (SSP), Procon e Tribunal
de Justiça do Amazonas (TJA). Os serviços oferecidos no Barco PAI
vão desde emissão de documentos pessoais (RG, CPF, CTPS e Certidão
de Nascimento) na área de cidadania, tratamento médico, até palestras
educativas sobre prevenção de DSTs e saúde bucal. Mais tarde, em 06
de dezembro de 2007 (Decreto n° 6.289) foi instituído o “Compromisso
Nacional pela Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento e
Ampliação do Acesso à Documentação Básica” e o “Comitê Gestor
Nacional do Plano Social Registro Civil de Nascimento e
Documentação Básica”, para ampliar o esforço de pleno registro de
todos nacionais brasileiros. Nesse ínterim, várias iniciativas do governo
do estado do Amazonas têm sido apoiadas pelo EB. Há dois convênios
que tratam do apoio logístico do Exército às ações de erradicação do
sub-registro civil e do apoio em pessoal de saúde e do serviço militar no
Barco PAI. O Exército tem apoiado logisticamente agências como a
FUNAI ou a Secretaria de Direitos Humanos e Assistência Social
(SEAS-AM) para reconhecer os cidadãos brasileiros, fornecer o registro
civil ou fazer o cadastro de outros documentos básicos, proporcionando
condições de acesso daquela população aos programas sociais do
governo.
As oportunidades apresentadas em que o Exército Brasileiro é o
proponente ou um dos principais parceiros figuram como programas de
sucesso, cuja referência pode ser aproveitada em sua íntegra para a
realização das Casas de União.
Por fim, o governo brasileiro possui iniciativas nos mais diversos
campos, por intermédio de seus Ministérios. Essas iniciativas financiam
projetos de investimento em áreas carentes em todo o território nacional.
Na questão da infraestrutura de dados, o projeto Cidades Digitais do
Ministério das Comunicações contribui na modernização do acesso aos
serviços públicos dos municípios, construindo redes de fibras ópticas
que possibilitem a conexão entre os órgãos públicos e o acesso à
população de serviços eletrônicos do governo (MINISTÉRIO DAS
COMUNICAÇÕES, 2014). A infraestrutura de suporte às comunicações
levada à fronteira atende à população e às demandas de Defesa na
região. Em paralelo, o programa TI Maior (Programa Estratégico de
Software e Serviços de Tecnologia da Informação) do Ministério da
Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) ajuda a proporcionar melhores
condições de acesso à informação à população da fronteira. Isso é
operacionalizado através do fomento de tecnologia nacional para o setor
de TI, sinérgico ao desenvolvimento de comunicações seguras para o
sistema de defesa da soberania. Há também outros esforços notáveis do
MCTI, como Inclusão Social e Digital, cujo foco é o desenvolvimento
de competências, nos municípios brasileiros, do acesso à tecnologia e o
incentivo à pesquisa permitindo o desenvolvimento social local e
contribuindo para a melhoria da qualidade de vida das populações
carentes. Em termos práticos, isso realiza a capacitação de pessoal para
operar equipamentos de informática e serviços públicos essenciais, o
que coaduna a face social à digital das iniciativas. Para viabilizar todos
esses objetivos, o programa Luz para Todos do Ministério das Minas e
Energia busca erradicar a exclusão elétrica no país e proporcionar
energia elétrica para suportar a infraestrutura de serviços públicos e de
Defesa.
A oportunidade que se apresenta para as Casas de União é de
verificar a complementaridade dos programas de governo, capitaneados
pelos diversos Ministérios, e gerar uma estratégia que permita buscar
financiamentos específicos para cada necessidade, permitindo um fluxo
de recursos contínuo e diversificado. Ainda, há a necessidade de se
estabelecer uma gestão eficiente desses projetos, a fim de otimizar
recursos e facilitar a atuação conjunta dos diversos órgãos das esferas
públicas e privadas e dos entes federados.
Considerações Finais — Estratégias de Implementação e Gestão e as
Casas de União
O sucesso dos importantes projetos na fronteira brasileira
depende, em grande medida, da estratégia adotada na sua
implementação e gestão. Em sua maioria, os programas e projetos do
governo dispõem de verbas para investimentos iniciais, ficando o
custeio desassistido.1 Dessa forma, a contratação de pessoal e sua
1
Custeio x Investimento: Investimento é toda a aquisição que aumente o
capacitação para operar o sistema das Casas de União não podem ser
financiadas somente pelos programas e projetos de governo
supracitados. Uma possível solução para tal dificuldade, idealizada no
projeto Casas de União, é a realização de consórcios públicos e
convênios entre a esfera pública e privada que facilitem a gestão dos
projetos e diminuam os seus custos no médio e longo prazo. Assim, o
custeio de pessoal e a manutenção de estruturas utilizadas podem ser
gerenciados através de convênio com empresas prestadoras de serviços
ou por consórcios entre os entes federados. Neste sentido, as Casas de
União atuariam como promotoras de consórcios e convênios a fim de
desenvolver a capacidade estatal na região a partir da gestão associada
de recursos públicos.
Um mecanismo que minimizaria os problemas com o custeio para
a implementação das Casas da União seria o Convênio entre os
governos Federal, estadual e municipal e empresas privadas. Já existem
iniciativas viabilizadas por convênios, como o da erradicação do subregistro civil, do qual fazem parte o governo do estado do Amazonas e o
Ministério da Defesa por intermédio do Exército Brasileiro, cuja
materialização é o apoio prestado ao barco PAI. Um outro mecanismo
possível seria o Consórcio, em que a cooperação entre as esferas
constituiria uma pessoa jurídica que gerenciaria os recursos necessários
para a implementação das políticas públicas para a região.
Em qualquer uma dessas formas, a capacitação de Recursos
Humanos e a sua fixação, e a captação de pessoal na faixa de fronteira
são os fatores críticos de sucesso. Sem que isso ocorra não haverá
continuidade dos projetos propostos, nem padronização de seus
procedimentos, o que prejudicaria a qualidade dos serviços prestados à
população, o desenvolvimento socioeconômico e a própria soberania.
Sem infraestrutura de energia e comunicações também não haverá
sucesso na prestação dos serviços. Nesse sentido, as Casas de União
podem promover a parceria necessária pra que se estabeleça uma
patrimônio. Assim, o investimento se faz mais permanente. Enquanto isso, o
custeio diz respeito aos custos de manutenção, incluindo o pagamento de
salários.
infraestrutura mínima para a execução dos projetos governamentais.
Para além disso, cabe destacar que as diversas iniciativas já
existentes tanto no âmbito do Ministério da Defesa (materializadas
através do Exército) quanto por programas de outros Ministérios
demonstram a viabilidade das Casas de União. Muitas dessas iniciativas
podem apoiar a implementação das Casas de União, tanto por facilitar a
construção da infraestrutura necessária quanto por, em alguns casos,
poder abrigá-las. Dessa forma, é fortalecido o princípio da gestão
associada constante na Constituição através das parcerias com projetos e
programas governamentais já existentes.
As Casas de União têm, assim, a capacidade de integrar
representações de diversos órgãos federais e ampliar a abrangência de
políticas públicas na região, ao mesmo tempo em que poupa recursos de
custeio através da gestão associada e do compartilhamento de
infraestrutura. Torna-se, assim, mais factível a presença do Estado na
região, com o benefício da ampliação da cidadania, posto que o acesso a
políticas públicas e a diversos serviços prestados pelo governo serão
estendidos a uma parte da população que por ora não é contemplada.
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Introdução
Este artigo trata dos desafios enfrentados pelo poder público na
região de fronteira. Em sua maioria eles têm origem em ilícitos como:
tráfico de armas, minérios, pessoas e, principalmente, drogas. Estes
crimes encontram santuário em regiões com pouca presença do Estado,
no caso brasileiro, principalmente as regiões de fronteira. O
aprofundamento deste problema é um reflexo da aceleração do processo
de globalização no início da década de 1990, que facilitou e ampliou os
fluxos transnacionais. Por esta razão, tais vicissitudes não devem e nem
podem ser tratadas apenas a partir de iniciativa local, mas devem ser
respondidas por meio de ações conjuntas, envolvendo os diversos níveis
de governo, agentes das sociedades e, principalmente, os países
vizinhos.
Dessa forma, essa breve análise se baseia em três proposições (a)
De que os crimes relacionados à fronteira como lavagem de dinheiro,
corrupção, tráfico de armas, minerais, seres humanos e drogas são
correlacionados, porém possuem no último seu ponto de origem; (b) O
tratamento destes problemas depende da concertação entre os países da
região; e (c) Os problemas relativos às fronteiras se caracterizam por um
alto nível de complexidade, não sendo possível enfrentá-los apenas com
a securitização ou militarização da questão.
Considerando-se a realidade internacional a partir dos últimos
anos do séc. XX e que perdura hodiernamente, vemos que se abriu
espaço para a alteração da agenda de segurança, afastando-se daquela do
período da bipolaridade. A partir desse período o debate sobre segurança
saiu do âmbito das ameaças convencionais e passou a enfatizar as
ameaças subestatais, como o terrorismo e ilícitos comuns, incluindo o
tráfico de drogas (BUZAN, 1997).
Dentre os motivos para a alteração do enfoque no debate e nas
políticas de segurança está a intensificação do processo de globalização,
proporcionado com o fim da guerra fria. Este processo contribuiu nas
últimas décadas para o avanço nos fluxos de informação, capitais,
pessoas e bens. No entanto, esse deslocamento facilitado possui também
uma faceta perversa, a proliferação de ilícitos como tráfico de armas e
drogas, contrabando e lavagem de dinheiro.
Muito embora essa forma de configuração de problemas de
segurança esteja diretamente relacionada com a transnacionalidade, os
reflexos para os diferentes países da região podem ser mais intensos
e/ou mais profundos dependendo do país avaliado. Por exemplo, no
México e na Colômbia o problema do tráfico de drogas passou a ser
militarizado, tornando o exército e as forças armadas o principal
instrumento para o seu enfrentamento.
Esses problemas encontram espaço para o seu desenvolvimento
especialmente na América do Sul, pois se apoiam em vulnerabilidades
internas que seus Estados possuem. Entre essas debilidades se podem
citar como principais facilitadores para o desenvolvimento destes ilícitos
a pobreza, as desigualdades, a péssima distribuição de renda, o difícil
acesso à mobilidade social — muito embora exista atualmente um
acesso mais facilitado à educação — condições de higiene e saúde
precárias, violência policial e urbana. Soma-se a isso, a inabilidade do
Estado em estabelecer ou criar condições que alterem essa conjuntura.
Todos esses fatores resultam em um caldo de cultura que fornece as
condições favoráveis para a proliferação do contrabando, tráfico de
drogas e de armas, entre outros ilícitos.
Além disso, as fronteiras porosas dificultam o controle destes
fluxos transnacionais que imbricam o interno e o externo, tornando
difícil delimitar as questões domésticas e externas deste fenômeno.
Dessa forma, não se pode estabelecer o limite da questão apenas na
segurança estatal, deve-se buscar a implementação de uma política de
longo prazo adequada ao problema como um todo, de modo a não tornar
seus resultados mais preocupantes do que as suas causas iniciais.
Estas questões são enfrentadas também pelo Brasil, entretanto de
forma diversa e com um agravante: boa parte da área de fronteira
constitui-se de locais caracterizados por pouca presença do Estado, quer
dizer, as políticas públicas são de difícil implementação considerando
que os mecanismos de atuação e controle do Estado não chegam ou
chegam muito pouco a tais locais.
Este trabalho irá propor como uma possível abordagem para o
Brasil ampliar a presença do Estado na fronteira a cooperação entre os
países vizinhos e os diferentes níveis de governo. Esta proposta é
sintetizada a partir do projeto das Casas de União que visa promover
essa cooperação através dos consórcios públicos.
O Tráfico Ilícito de Drogas
Os principais ilícitos relacionados às regiões de fronteira são o
contrabando, o tráfico de pessoas, armas e drogas. Porém, este artigo se
concentra especialmente no último, tendo em vista que, por um lado,
contrabando e tráfico de armas, violência urbana e lavagem de dinheiro
são fortemente relacionadas e parcialmente decorrentes do narcotráfico,
por outro, esta é, das questões transnacionais, a que mais capacidade de
políticas públicas cooperativas apresenta.
As drogas ilícitas assumiram lugar destacado na agenda de
segurança em face do aumento da demanda tanto em termos globais
quanto regionais. A cooperação multilateral acerca desse tema remonta
ao início do século XX a partir do tráfico de ópio. Com a criação da
ONU, o controle das drogas ilícitas passou a se dar sob seus auspícios, a
partir de um regime internacional baseado em políticas de repressão.
Porém, a ONU também destaca que a cooperação internacional
para combater o problema mundial da droga é baseada no princípio da
responsabilidade compartilhada, com compromisso mútuo entre os
Estados de buscar objetivos comuns e a determinação para empreender
uma política complementar e ação conjunta (UNODC, 2008). É com
base nessas regras multilaterais que se estabelece a cooperação entre
Estados nos demais planos regionais e sub-regionais, bem como são as
referências nas quais se baseiam as políticas nacionais de combate às
drogas ilícitas.
O Escritório das Nações Unidas contra as Drogas e o Crime
(UNODC) reconhece uma série de consequências negativas inesperadas
decorrentes das convenções, como a criação de um mercado paralelo
lucrativo e violento, controlado pelo crime organizado. A repressão não
produziu diminuição da oferta, pois os cultivos são transferidos para
outras regiões. Da mesma forma, coibir um tipo de substância provoca o
deslocamento do consumo para outras substâncias (UNODC, 2008).
O tráfico de drogas se configura como um problema regional ou,
se quisermos seguir o que refere o UNODC em seu relatório The threat
of narco-trafficking in the Americas, de 2008, é um problema de
segurança hemisférica, pois nenhum país passa ao largo dos efeitos
decorrentes das drogas. Pagliari (2009), a partir dos dados da UNODC,
destaca que a região andina (Colômbia, Peru e Bolívia) é responsável
pela produção da folha de coca que gera a maior parte da cocaína
consumida em todo mundo; enquanto países como México (por onde
passa entre 74% e 90% da cocaína para os EUA), Venezuela e Equador
(trânsito para a Europa e também EUA) são rotas de passagem; e a
América do Norte é o mercado consumidor de quase a metade da
produção (os Estados Unidos têm aproximadamente 6 milhões de
consumidores de cocaína).
A América Latina e a Política Punitiva de Combate às Drogas
A região do subcontinente sul-americano tem sido diretamente
afetada pelo narcotráfico, pois abriga países produtores de coca e,
devido a política internacional que tem sido aplicada à questão, a área
vem sofrendo os efeitos nefastos de uma política que privilegia o
combate à oferta.
Conforme as informações da Comisión Latinoamericana sobre
Drogas y Democracia em seu relatório Drogas y Democracia: hacia un
cambio de paradigma (2009), estes efeitos estão relacionados a questões
como:
-
O aumento da violência, boa parte associada ao tráfico de
drogas;
-
Uma parcela das forças do Estado deixou-se corromper pelo
crime organizado;
-
O dinheiro proveniente do tráfico de drogas fomenta o tráfico
de armas e a corrupção;
-
Milhares de jovens e policiais são vítimas fatais das guerras
internas travadas pelo controle deste comércio ou nos
combates com as forças do Estado;
-
Problemas de deslocamento da população rural (mais de dois
milhões de deslocados internamente e milhares de refugiados
colombianos), segundo o CODHES (2004);
-
O estigma sobre o cultivo da coca, tradicional nas culturas de
Bolívia e Peru;
-
Problemas ambientais causados pela fumigação dos cultivos,
ainda que não tenham sido completamente dimensionados.
A transnacionalização mais vigorosa do narcotráfico a partir das
últimas décadas do século passado provocou o aumento da violência
urbana (Brasil e Colômbia são países que lideram historicamente esse
indicador, com o determinante mais visível para o tráfico de drogas). E
para que a teia de produção, processamento e distribuição funcione, se
estabelecem outros ilícitos como corrupção, lavagem de dinheiro, tráfico
de armas e precursores químicos. Como resultado a América Latina é a
líder mundial na taxa de homicídios (WAISELFISZ, 2008).
A cooperação tornou-se um imperativo para alcançar resultados
positivos, tanto em termos de diminuição da oferta, quanto da redução
da demanda. Eis que a demanda vem aumentando em toda a região, as
estimativas apontam o crescimento do consumo de cocaína na América
do Sul, sendo Brasil e Argentina os maiores mercados (UNODC, 2008).
Não apenas o consumo preocupa, mas também a produção, pois a
América Latina - que tem sido a maior exportadora mundial de cocaína
e maconha - passou também a produzir heroína, ópio e drogas sintéticas.
Portanto, o enfrentamento precisa ser tanto em relação ao tráfico
internacional de drogas quanto ao comércio para consumo interno.
A política repressiva e punitiva de combate às drogas, que vem
sendo empregada mundialmente, apresentou suas piores consequências
para a América Latina. A Comisión Latinoamericana sobre Drogas y
Democracia (2009) destaca que a América Latina tem sido a região mais
afetada com as consequências negativas da guerra às drogas. Esta
questão enseja preocupações para os países da região não apenas quanto
à escalada da violência interna e o enfraquecimento das instituições, mas
também em relação à defesa (resguardo das fronteiras, não-ingerência e
respeito à soberania nacional), visto que as políticas de repressão
indiscriminada securitizaram o problema das drogas e militarizaram o
seu combate.
A Colômbia, nas últimas décadas, tem sido o país mais afetado
pelo problema das drogas na América do Sul. O narcotráfico encontrou
ali um cenário ideal para prosperar: um conflito armado interno em
curso, a escassa presença do Estado em algumas áreas e problemas de
governabilidade. O deslocamento da produção da folha de coca de Peru
e Bolívia para a Colômbia na década de 90 se deu justamente nas zonas
controladas por grupos guerrilheiros. Mas, com o Plano Colômbia,
passou a haver um deslocamento da produção, ou o “efeito balão”,
espalhando o problema para outros países da América Latina. Ou seja,
muito embora a Colômbia tenha sofrido e continue a sofrer as maiores
consequências decorrente da questão das drogas, o país não é o único a
enfrentar esse problema.
No Brasil a região mais afetada por este spillover é a região
amazônica. O Brasil atribui essa região como uma das áreas prioritárias
de sua política de defesa. Ela está diretamente relacionada com a
questão das drogas que atinge o arco amazônico e nossa fronteira.
Assim, muito embora não se configure uma situação na qual um Estado
ameace a soberania do outro, o que se apresenta é um temor do resultado
da baixa atuação ou pouca presença do Estado naquela região fazendo
com que haja pouca capacidade de lidar com as eventuais externalidades
negativas que se desenvolvem a partir do grande problema inicial que é
o narcotráfico.
Os Desafios à Segurança e a Coordenação Multilateral
Durante certo tempo os países sul-americanos temeram que o
conflito colombiano espalhasse seus efeitos pela região a partir das
políticas de combate ao narcotráfico implementadas internamente.
Contudo, o que ocorreu não foi o spillover do conflito como um todo e
sim o de determinados efeitos negativos, que repercutiram nos vizinhos
criando focos de instabilidade, seja em decorrência dos deslocamentos
da população (especialmente para Equador, Venezuela e Panamá), seja
em face do cultivo dos ilícitos na fronteira ou mesmo do tráfico de
drogas.
O Brasil, como país limítrofe, inquieta-se não somente em
relação a eventuais invasões do território por grupos armados, mas
também com as ramificações estabelecidas com os ilícitos, como tráfico
de drogas e armas, contrabando e crime organizado. Os efeitos dessas
conexões repercutem, sobretudo, nas grandes cidades brasileiras, tanto
em relação aos reflexos das redes do crime organizado, quanto aos
índices de violência e problemas sociais.
O receio com as questões relacionadas à segurança pública é
especialmente relevante na região sul-americana, dada a
interdependência entre os Estados. Esses problemas são agravados pela
inexistência de políticas estatais para controlar a escalada da violência,
pelo ainda insuficiente fortalecimento das instituições e de fatores
estruturais. As ações no Brasil, em termos de segurança pública, são no
sentido de manter o tratamento político do tema, evitando a
securitização dessas questões e o seu tratamento unicamente via
emprego das forças armadas (militarização). Por isso o Brasil, como
uma importante rota do tráfico de drogas internacional (um dos países
líderes no trânsito de cocaína produzida nos países vizinhos), trabalha
para fortalecer ações de prevenção, de redução da demanda, conciliando
com métodos de repressão. As ações se desenvolvem por meio das
polícias, contando com suporte das forças armadas.
Questões transnacionais como o tráfico de drogas desafiam a
capacidade dos Estados sul-americanos de desenvolverem políticas
multilaterais. Desafiam Estados e governos a trabalharem conjuntamente
na implementação de ações que minimizem os impactos desses
problemas. O Brasil se preocupa com o crime organizado como
correlato do tráfico de drogas, que gera aumento da violência e lavagem
de dinheiro.
Além disso, se tem especial atenção com o resguardo das
fronteiras nacionais, sobretudo, na região amazônica, que se caracteriza
por ser uma área de difícil controle devido às suas dimensões, à falta de
recursos humanos e materiais para dotar os órgãos de controle e
fiscalização de todos os meios necessários, por isso, há uma insuficiente
presença do Estado na área.
De acordo com a Constituição Federal, a faixa de fronteira do
Brasil possui 150 km a partir da linha divisória. Esse território inclui
710 municípios, sendo que, destes, 122 são limítrofes, correspondendo a
27% do território nacional. A extensão das linhas de fronteira brasileiras
é de 16.886 km, sendo 7.363 de fronteira seca. Temos 11 estados de
fronteira: Amapá, Pará, Roraima, Amazonas, Acre, Rondônia, Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do
Sul. Nossos países vizinhos são: Guiana Francesa, Suriname, Guiana,
Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai 1.
Assim, a zona de fronteira brasileira possui uma área considerável que,
portanto, requer atenção do poder público tanto no que diz respeito às
estruturas institucionais quanto às populações que ali vivem.
1
Fonte: IBGE http://cod.ibge.gov.br/233XJ.
Os novos desafios à segurança, em vista da variedade dos
potenciais de conflito, requerem uma combinação de medidas de âmbito
militar, financeiro, econômico, político e policial, além da coordenação
de esforços nacionais, regionais e internacionais. Neste sentido, são
importantes as medidas coordenadas, bilateral e regionalmente, adotadas
pelos países sul-americanos, que tem crescido nos últimos anos, embora
essas ações não possam ser consideradas como definitivas para a
solução do problema.
Tem-se como exemplo de cooperação em combate ao
narcotráfico o acordo assinado com a Bolívia em 2011, que objetiva a
formulação de uma estratégia regional contra as drogas para ações
conjuntas de polícias, com o suporte das forças armadas, para localizar e
destruir laboratórios e pistas de pouso clandestinas e trocar informações
acerca do tráfico.
Uma importante ação que deve ser destacada é o Plano
Estratégico de Fronteiras que foi implementado a partir de junho de
2011 a fim de reforçar a presença do Estado na fronteira terrestre e, com
isso, inibirem a incidência de ilícitos nas zonas fronteiriças e evitar
entrada de armas e drogas2. O Plano Estratégico de Fronteiras visa
produzir ações de modo integrado entre os diversos ministérios
envolvidos. Como uma das principais formas de ação do Plano
Estratégico de Fronteiras tem-se as Operações Ágatas, sendo que a
Ágata 7, realizada em 2013, foi a maior ação militar voltada para a
segurança pública nos últimos anos. Esse patrulhamento da fronteira
resultou num aumento de mais de 300% nas apreensões de drogas e
quase 500% nas apreensões de armas (sem contar os números da
Operação Ágata 7).
Esse tipo de operação está na linha do que acreditamos ser
necessário e um caminho indicado para combater os ilícitos
transnacionais: cooperação nas ações e operações entre os diferentes
Ministérios e agentes responsáveis ou que podem atuar para produzir
respostas positivas em termos de avanço ao combate dos ilícitos - pelo
2
Para maiores informações sobre o Plano Estratégico de Fronteiras ver:
http://agata8.defesa.gov.br/plano-estrategico-de-fronteiras.shtm.
Ministério da Defesa: as forças armadas (Exército, Marinha e
Aeronáutica); pelo Ministério da Justiça: Polícias Federal e Rodoviária
Federal e Força Nacional de Segurança Pública; e pelo Ministério da
Fazenda: Secretaria da Receita Federal.
Além disso, a operação Ágata 7 contou, por exemplo, com a
mobilização de tropas militares de Peru e Colômbia ao longo dos 11 mil
quilômetros da fronteira Norte e teve um volume de apreensões de
drogas recorde (25 toneladas de maconha e 657 kg de cocaína, crack e
haxixe).
As Casas de União como Resposta
Entretanto, para o aprofundamento de ações de cooperação, seja
entre Estados vizinhos, seja entre os diferentes níveis de governo e os
atores da sociedade, é necessário que seja possível tornar a presença do
Estado permanente nessas regiões. Um caminho possível é o das Casas
de União.
As Casas de União constituem em proposta para dar consecução
ao princípio da gestão associada contida no artigo 241 da Constituição
Federal, a partir do compartilhamento de infraestrutura (servidores,
instalações prediais, material de consumo e material permanente) entre
distintos entes federados pertencentes a diferentes órgãos, a fim de
aumentar a presença do Estado em todo território nacional.
Este compartilhamento se daria por meio da realização de
consórcios públicos em que estados e, sobretudo, municípios, podem
amortizar suas dividas através da cessão de instalações prediais, material
de consumo, servidores e do compartilhamento de material permanente.
Estas possibilidades já estão previstas na Lei 11.107/2005, o marco
regulatório da gestão associada. Dessa forma, oportuniza-se melhor
prestação de serviços ao cidadão através da capilarização da
administração em seus diversos níveis (Federal, estadual, municipal),
materializando, assim, o princípio do Federalismo Cooperativo.
Enfrentar a vulnerabilidade nas fronteiras — através da parceria
da União com estados e municípios pode-se dispor, a partir das
capacidades já instaladas, de bases operacionais para as atividades de
controle de fronteiras. Sobretudo as ligadas às atribuições do Ministério
da Defesa (Forças Armadas), Ministério da Justiça (Polícia Federal) e
Ministério da Fazenda (Receita Federal). Trata-se de ampliar o
enfrentamento ao tráfico de entorpecentes; de armas de fogo, munições
e explosivos; ao contrabando, pirataria e descaminho; à evasão de
divisas; à exportação ilegal de veículos; ao tráfico de pessoas; aos
crimes ambientais e desmatamento ilegal nos estados amazônicos
fronteiriços do Brasil. A mera presença, circulação e sociabilidade dos
agentes do poder público federal nas regiões de fronteira criariam canais
próprios, ad hoc, para coleta de dados e produção de inteligência acerca
dos ilícitos mencionados.
Os consórcios públicos também podem ser úteis para uma
cooperação permanente entre os Estados vizinhos na região amazônica.
O Brasil através do Mercosul e do FOCEM, já incentiva a criação de
consórcios públicos entre cidades gêmeas e regiões que compartilham
fronteiras no âmbito do bloco3. Devido à ausência de um mecanismo
institucional como o FOCEM na região norte da América do Sul é
necessário a criação de um guarda-chuva institucional que permita a
criação de uma massa crítica para a formulação de contratos de
consórcio e para formulação de políticas públicas para a região; as Casas
de União podem representar esse mecanismo.
As Casas de União podem ser o instrumento que viabilize a
presença do Estado em zonas carentes, não só com forças de segurança
pública, mas também com prestação de serviços públicos, inclusão
social e cidadania. Projetos semelhantes já são executados pelo Exército
Brasileiro e outros órgãos federais nas regiões da fronteira, como por
exemplo, o “Pavilhão de Terceiros”, ou o Barco de Pronto Atendimento
Itinerante (PAI), que leva às populações locais distintos serviços sociais
— desde o atendimento médico até o Registro Civil. Contudo, através
3
Um exemplo é o financiamento que o FOCEM oferece a projetos no âmbito das
mercocidades.
da cooperação entre os diferentes níveis de governo e dos Estados
vizinhos através de consórcios públicos, existe a possibilidade de
ampliar consideravelmente a abrangência dessas iniciativas e tornar
permanente a presença do Estado nessas regiões. As Casas de União
podem replicar estes projetos bem-sucedidos nas regiões de fronteira
física também em centros urbanos, em conjunto com outros níveis da
administração pública com os demais entes federados. Fazendo com que
as iniciativas tomadas pelo Estado para reocupar territórios degradados
não se deem apenas com forças policiais, mas também com a inclusão
social.
Considerações Finais
Como foi analisado, o poder público enfrenta grandes desafios
nas regiões de fronteira, em especial na fronteira norte. Estes desafios
em grande parte são o reflexo de problemas advindos do narcotráfico. O
tráfico de drogas ampliou o seu efeito desestabilizador a partir dos anos
1990, devido a continuidade das políticas de combate à oferta de
entorpecentes promovida pela comunidade internacional através da
ONU e da promoção de uma nova agenda de segurança, que securitizava
questões antes consideradas ilícitos comuns, entre elas o tráfico de
drogas.
A América do Sul é uma das regiões mais afetadas por este
problema, por ser um dos principais produtores de cocaína e maconha
do mundo e ser uma importante escala da rota internacional do tráfico.
Esse problema é particularmente preocupante na região da fronteira,
onde a pouca presença do Estado, em parte incentivada pela própria
configuração geográfica desta região, facilita a ação de narcotraficantes
e agudiza ainda mais problemas sociais.
Entretanto, a solução para o problema não reside na securitização
do problema, esse modo de ação já se mostrou ineficaz e, geralmente,
acaba por disseminar a produção e os problemas advindos do tráfico por
toda região. O combate a esse problema passa por ampliar a presença do
Estado nas regiões de fronteira e, apesar das dificuldades, esse caminho
se torna viável a partir da cooperação entre os países vizinho e entre os
diferentes níveis de governo e de administração pública. Para isso,
propõe-se como um caminho possível as Casas de União. Esse projeto
se baseia na disseminação de consórcios públicos para a efetiva
cooperação entre os diferentes níveis de governo e os países vizinhos, a
exemplo do que já acontece na região sul com o incentivo do Mercosul e
do FOCEM.
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Introdução
O presente artigo tem o objetivo de informar o leitor acerca da
realidade da fronteira norte do Brasil, em particular em seus aspectos de
segurança, e sensibilizá-lo para a necessidade de políticas públicas,
como as Casas de União, que sejam eficientes e garantam a presença do
Estado em regiões lindeiras. O perfil do texto é predominantemente
descritivo e totalmente subsidiado de fontes oficiais, documentos
públicos e relatórios ostensivos. Esse estilo informativo, com
significativa base documental, permite caracterizar a vulnerabilidade em
dois segmentos da fronteira norte (Brasil/Venezuela e Brasil/Guiana) tão
precisamente quanto possível a um pesquisador acadêmico.
Apresentam-se, nas considerações finais, uma análise dos fatos expostos
e uma relação destes com novas e antigas ações da administração
pública na zona de fronteira. Busca-se, ainda, indicar a aplicabilidade
das Casas de União nas regiões analisadas.
1
Esse artigo é parte integrante, editada porém não modificada em seus
argumentos e dados, de pesquisa realizada para dissertação de mestrado do
Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (PPG-POL/UFRGS), financiada com recursos da CAPES.
Segurança na Fronteira com a República Bolivariana da Venezuela
Essa seção trata de algumas das principais questões de segurança
ocorridas na fronteira entre o Brasil e a Venezuela entre os anos de 2003
e 2008 e está dividida em (a) tráfico seres humanos, (b) tráfico de armas
e drogas e (c) mineração ilegal.
(a) O tráfico de seres humanos — Na fronteira, o tráfico de
seres humanos foi uma prática crescente durante todo o período em
estudo, levando principalmente mulheres e adolescentes brasileiras a
serem aliciadas para fins de exploração sexual na Venezuela. O perfil
médio destas mulheres indica origens humildes, baixa escolaridade e
residência em espaços urbanos periféricos com carência de saneamento,
transporte, educação e saúde (LEAL; LEAL, 2002). No mercado de
trabalho, estariam inseridas nos ramos de prestação de serviços e
comércio em funções “mal remuneradas, sem carteira assinada, sem
garantia de direitos, de alta rotatividade e que envolvem uma prolongada
e desgastante jornada diária, estabelecendo uma rotina desmotivadora e
desprovida de possibilidades de ascensão e melhoria” (LEAL; LEAL,
2002, p. 58). O recrutamento para o tráfico internacional ocorreria sob a
promessa de melhoria das condições de vida, especialmente através de
redes de entretenimento adulto, agências de modelo, serviços de
telessexo, agência de emprego, recrutamento para frentes de
assentamentos agrícolas, construção de rodovias, hidrovias, mineração
(garimpos) e outros (LEAL; LEAL, 2002, p. 62-70).
No caso específico da fronteira binacional, o problema envolveria
mais frequentemente adolescentes e mulheres adultas, oriundas de
capitais da região norte (Manaus, Boa Vista, Macapá, Rio Banco e
Belém) rumo à região de fronteira ou às cidades do litoral venezuelano
(Caracas, Porto La Cruz, Lechería). O aliciamento seria facilitado não
apenas pela falta de oportunidades nos locais de origem, mas também
pelo destacado envolvimento das redes de tráfico de pessoas em
território venezuelano. De acordo com relatório anual do Departamento
de Estado dos EUA, a Venezuela seria local de origem, destino e trânsito
de mulheres e crianças com o objetivo de trabalhos forçados e
exploração sexual, recebendo indivíduos da região (especialmente de
Peru, Colômbia e Brasil) e de países asiáticos. Em 2004, o país foi
rebaixado no ranking norte-americano de classificação para o combate
ao tráfico de seres humanos (Tier 3), indicando o não atendimento aos
requisitos mínimos de proteção às vítimas e a insuficiência dos esforços
governamentais para solucionar o problema (BRASIL, 2004a; USA,
2005, p. 226-7).
Pesquisas brasileiras também referem um intenso fluxo de
mulheres em direção à Venezuela para fins de exploração sexual,
indicando pelo menos dez rotas internacionais de tráfico de pessoas
(LEAL; LEAL, 2002, p. 78, 96):
Ações conjuntas para o combate ao tráfico de pessoas graçaram
durante todo o período. Em 2003, autoridades brasileiras e venezuelanas
firmaram o Pacto de Pacaraima, um acordo de cooperação bilateral para
o combate ao tráfico fronteiriço de pessoas. No ano de 2005, os países
do MERCOSUL e membros associados assinaram a Declaração de
Montevidéu contra o Tráfico de Pessoas, prevendo a cooperação policial
e o intercâmbio de informações sobre o tráfico humano, especialmente o
tráfico ligado à prostituição (USA, 2004, p. 249).
Em 2006, a Declaração de Montevidéu ganhou um significado
prático com a adoção de um Plano de Ação, que identifica pontos focais
dentro de cada governo responsável pela sua implementação e institui
campanhas informativas, troca de informações, capacitação de atores
governamentais e não-governamentais e assistência às vítimas do tráfico
de pessoas (MARREY; RIBEIRO, 2010). Em maio de 2008, realizou-se
a I Reunião de Autoridades Nacionais e Regionais entre a República
Bolivariana da Venezuela e a República Federativa do Brasil, em
Matéria de Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres, Adolescentes e
Crianças, primeiro encontro bilateral especificamente dedicado ao
assunto (BRASIL, 2008). Não há dados suficientes que permitam
afirmar o êxito ou o fracasso dessas iniciativas no combate ao tráfico de
pessoas.
(b) O tráfico de drogas e de armas — Na fronteira entre Brasil e
Venezuela, o tráfico de drogas e de armas está bem menos documentado
em artigos científicos, relatórios e arquivos públicos, tornando bastante
escassas e segmentadas as informações a esse respeito. Especula-se que
a natureza dessas atividades dificulte o levantamento de dados e requeira
dos agentes públicos envolvidos em seu combate um elevado grau de
sigilo. Apesar das contingências, é possível afirmar categoricamente que
ambas atividades possuem grande penetração na região. O tráfico de
armas na fronteira norte deslocaria principalmente fuzis, pistolas e
cartuchos com destino à Colômbia, passando por território brasileiro em
pelo
menos
três
grandes
rotas
internacionais
(RoterdãSuriname Colômbia,
PanamáParaguaiColômbia
e
ChinaColômbia). Embora em menor volume, essas armas também
abasteceriam a Venezuela cruzando o território nacional (BRASIL,
2006a, p. 55-62). O tráfico de drogas na região teria como objetivo
primário a exportação de estupefacientes produzidos nos países andinos
(esp. Colômbia) para os grandes mercados consumidores dos Estados
Unidos e Europa.2 Os territórios brasileiro e venezuelano seriam
crescentemente utilizados como rota ou plataforma de exportação das
drogas, sobretudo cocaína e maconha, consolidando as redes do crime
organizado e aumentando a quantidade de drogas disponível
internamente.3
O tráfico de armas e munições entre Brasil, a Colômbia e
a Venezuela é muito grande. Há uma estreita vinculação
entre o tráfico internacional de drogas e o crescimento do
comércio ilegal de armas e munições. (...) Armamentos
são comprados diretamente [na Colômbia], e na
Venezuela através de ouro. São dois garimpos na
Venezuela, o SIAPA e o ACAPANA. O ouro também é
vendido livremente. Lá a troca é constante e realizado
qualquer tipo de câmbio. Os índios são usados por
traficantes para carregarem drogas e também são usados
para exploração sexual dos comandantes das quadrilhas
que atuam naquela fronteira. E algo que chama a atenção
não somente na região da Colômbia, mas na região da
Guiana e Venezuela. Toda fronteira é um raio de tráfico de
seres humanos, de drogas e de armas e munições
(BRASIL, 2006a, p. 61-62, grifo nosso).
2
3
Sobre a origem e destino das drogas que circulam na América do Sul, o World
Drug Report da ONU argumenta que “Colombian cocaine dominates the
markets to the east of Colombia. In 2002, Venezuela reported that all cocaine
seized originated in Colombia. Brazil estimated that about 70% of the cocaine
originated in Colombia, 20% in Bolivia and 10% in Peru (2000). In Suriname
about 60% of the cocaine seized in 2002 could be traced back to Colombia, 20%
to Venezuela and 20% to Brazil. Suriname is one of the few countries in South
America where the bulk of the cocaine seized was not going to the USA (20%)
but to Europe (Netherlands 80%).” (UNODC, 2004, p. 106).
Informações do World Drug Report 2008: “The territory of Brazil is increasingly
exploited by international organized crime groups looking for transit points for
cocaine shipments from Colombia, Bolivia and Peru to Europe. This is likely to
have brought more cocaine to the local market.” (UNODC, 2008, p. 87).
Por outro lado, tem sido frequentes as detenções de
brasileiros envolvidos com o narcotráfico na Venezuela,
país normalmente utilizado como trânsito para chegar a
Europa e aos Estados Unidos. Recentemente, os
brasileiros detidos no Aeroporto de Maiquetia, com
cocaína em seus estômagos, iam para a Espanha via
Lisboa ou Paris, configurando-se, possivelmente, uma
nova rota de comércio de estupefacientes. Recordo que,
em anos anteriores, vários brasileiros foram presos com
entorpecentes nos Países Baixos, procedentes de Caracas,
e, invariavelmente, eram deportados para esta capital, de
onde foram repatriados para o Brasil (BRASIL, 2007e,
grifo nosso).
Ações de cooperação para o combate de atividades ilícitas
também foram desenvolvidas nesse segmento (tráfico de armas e
drogas) durante o período em estudo. A VI Reunião da Comissão Mista
de Drogas Venezuela-Brasil, realizada em setembro de 2003, foi um
exemplo de iniciativa de pauta ampla na luta contra o crime organizado
na fronteira. Na Reunião, discutiram-se operações policiais conjuntas
em áreas vulneráveis, intercâmbio eficiente e seguro de informações,
medidas para o combate ao contrabando de armas, desenvolvimento de
inteligência estratégica conjunta, controle de espaço aéreo e fluvial para
interdição do tráfico de drogas, ações para redução do impacto social da
drogadicção (prevenção, tratamento, reabilitação e reincorporação social
de dependentes químicos), controle de fármacos e precursores químicos
e fontes de financiamento alternativo para programas de combate ao
tráfico de drogas (BRASIL, 2003d). Além de reuniões temáticas, houve
solicitações de informação de parte a parte sobre indivíduos sob
investigação e registro de linhas telefônicas utilizadas na prática de
atividades ilícitas, em pelo menos duas ocasiões (BRASIL, 2003e;
2003a). Contudo, ainda que as reuniões e o intercâmbio de informações
representem per se um ganho na cooperação entre autoridades
brasileiras e venezuelanas, não há referências posteriores que indiquem
continuidade das iniciativas propostas ou impacto positivo no combate
ao tráfico de drogas e armas.
(c) Mineração ilegal — A questão da mineração ilegal diz
respeito ao garimpo ilegal de ouro venezuelano por parte de brasileiros,
em especial na intersecção dos estados homônimos do Amazonas. Sabese que o garimpo é uma prática muito antiga na região, porém a limitada
presença do Estado em ambos os lados da fronteira não permite aferir a
data exata do início dessas atividades. A partir 1989, entretanto, a
questão teria ganhado evidência por força de uma súbita incursão de
garimpeiros brasileiros em território venezuelano. 4 A mineração ilegal
representaria grave inconveniente para as autoridades venezuelanas pela
degradação ambiental e pelos danos às comunidades indígenas presentes
na região, além de questões de segurança relacionadas à região de
fronteira. A mineração ilegal traria, ainda, consequências negativas para
as relações bilaterais em função da falta de coordenação das ações de
repressão. Em janeiro de 1992, por exemplo, a Guarda Nacional da
Venezuela abateu um avião Cessna com cinco garimpeiros brasileiros a
bordo, matando dois passageiros da aeronave. O caso teve implicações
político-militares adicionais: “[n]o dia 27 do mesmo mês, quatro caças
venezuelanos invadiram o espaço aéreo brasileiro, segundo informou a
Funai, e, na madrugada do dia 28, aviões venezuelanos bombardearam
uma área, a cerca de dez quilômetros da fronteira com o Brasil, onde
trabalhavam ilegalmente garimpeiros brasileiros” (LOSS, 2007, p. 5666). A questão gerou um grande mal-estar entre os dois países e deixou
clara a urgência de uma solução definitiva para o problema.
O caráter estratégico das relações entre Brasil e Venezuela
recomenda [que] seja dada absoluta prioridade à execução
de medidas com vistas à erradicação das atividades de
4
Documentos do GT de Mineração Ilegal da COBAN situam os primeiros casos
de garimpeiros brasileiros em território venezuelano em fins da década de
1980.“Los antecedentes de este Grupo de Trabajo se remontan al año de 1989,
fecha en la cual se da a conocer a luz pública, las primeras denuncias del
descubrimiento de invasiones de mineros ilegales de nacionalidade brasileña a
território venezuelano, especificamente en el Cerro Delgado Chalbaud en las
cabeceras del río Orinoco” (COBAN, 1999). Poucos anos depois (1994),
documentos da diplomacia brasileira já referiam que “milhares de garimpeiros
brasileiros (...) ingressavam clandestinamente em território venezuelano” para o
exercício da atividade (BRASIL, 1999).
mineração ilegal em território venezuelano. Tal
constatação decorre da circunstância de que cabe ao
Brasil tomar iniciativa de exercer controle efetivo
daquelas atividades em seu território, impedindo, assim,
que a persistência de incidentes na região de fronteira
venha a contaminar a agenda diplomática bilateral, com
sérios prejuízos para o relacionamento futuro entre ambos
os países (BRASIL, 1994, p. 1).
Entre o surgimento do problema e o início do período em estudo
(2003), diversas ações foram levadas a cabo para tentar solucionar a
questão. Por ocasião da II Reunião do Mecanismo Político de Consulta
Brasil-Venezuela, realizada em maio de 1994, os Vice-Chanceleres de
ambos os países decidiram constituir um Grupo de Trabalho ao qual
incumbiria formular propostas de ações concretas para combater e
erradicar a mineração ilegal. Em julho daquele ano, realizou-se em
Brasília a primeira reunião do grupo, ocasião em que se procedeu a um
levantamento das medidas implementadas à luz dos compromissos
anteriores e à identificação de ações pendentes. Nos anos seguintes, o
GT de Mineração Ilegal da COBAN liderou os esforços de combate ao
garimpo na fronteira entre Brasil e Venezuela, coordenando operações
de inutilização de pistas de pouso clandestinas, retirada de garimpeiros e
missões de autoridades às áreas degradas com vistas à erradicação
daquela prática ilegal (BRASIL, 1999; 2003g).5 O resultado dessas
ações foi bastante positivos, de modo que a VI Reunião do GT de
Mineração Ilegal (Caracas, 22 a 23 de maio de 1999) pode constatar
significativa redução do garimpo na fronteira e uma abordagem menos
politizada do problema. 6 Entretanto, apesar dos avanços logrados no
5
6
Em novembro de 2000, o Grupo de Trabalho organizou uma missão às áreas
afetadas pela mineração ilegal em território venezuelano. A missão foi integrada
por autoridades e técnicos da administração pública de ambos os países e serviu
para averiguar in loco os prejuízos socioambientais decorrentes daquela
atividade (INSPECCIONAN..., 2000).
Um relatório do corpo diplomático brasileiro, escrito logo após a VI Reunião do
GT de Mineração Ilegal, avaliava que “o problema da mineração ilegal na região
fronteiriça era particularmente sério, em virtude da presença no local de milhares
de garimpeiros brasileiros, muitos dos quais ingressavam clandestinamente no
território venezuelano para a prática de tal atividade [...]. Diferentes medidas
tema, ainda eram conhecidos sítios ativos de mineração ilegal na região
de Serra Parima, na fronte binacional, em 2000.
Em 2003, o assunto retornou à pauta bilateral em função da
“suposta ampliação da área de mineração ilegal e da consequente
degradação ambiental, com a participação de garimpeiros brasileiros, da
cabeceira do rio Orinoco, (...) Estado Amazonas, para a região do rio
Caroní, no Estado Bolívar.” (BRASIL, 2003b). Na ocasião, não foi
possível comprovar a expansão das atividades de garimpo para o norte
da fronteira comum, porém ficou claro que a mineração ilegal ainda
representava um problema que não fora devidamente equacionado. 7 Em
2005, durante o julgamento de cidadãos brasileiros acusados de garimpo
ilegal e crimes correlatos, diplomatas brasileiros puderam ter uma noção
mais clara da gravidade da situação. Constatou-se, por meio dos
depoimentos, que a mineração ilegal estaria sendo “organizada por
grupos com atuação internacional (...) com ramificações na Colômbia,
na capital venezuelana e no Brasil” e que a atividade possuiria um
sistema de organização complexo, envolvendo mineradores,
supervisores e fornecedores de serviços (alimentos, remédios e artigos
de primeira necessidade) (BRASIL, 2005d). Além disso, esses grupos
teriam à disposição equipamentos modernos como telefones satelitais e
rádios de comunicação VHF de longo alcance e teriam capacidade para
7
foram tomadas entretanto com relação ao problema, tais como as operações de
retirada de garimpeiros das áreas vizinhas à Venezuela, o que contribuiu para
reduzir a prática de mineração ilegal de maneira considerável. Tais medidas,
associadas a um desenvolvimento sem precedentes das relações BrasilVenezuela em variados campos nos últimos cinco anos, melhoraram o
tratamento dispensado à questão, que passou a merecer enfoque mais técnico e
cooperativo e menos reivindicatório do que no passado” (BRASIL, 1999, p.1).
“Foram então mostradas fotografias oficiais que, segundo os venezuelanos,
retratariam equipamentos e locais de mineração ilegal. No entanto, a maioria das
imagens referiam-se a localidades do parque Nacional de Yapacanes, no Estado
Amazonas. No caso do Estado Bolívar foram apresentadas diversas matérias
jornalísticas, em particular do ano de 2001, sobre a existência, na cabeceira do
rio Caroní, de cerca de 200.000 garimpeiros ilegais, grande parte proveniente do
Brasil, Colômbia e Guiana, segundo tais reportagens. Consultado, o Senhor
Planchalt disse ter conhecimento de número real inferior ao de 1.000 brasileiros
no local” (BRASIL, 2003b, p.2).
burlar rotineiramente importantes postos de vigilância da Guarda
Nacional Venezuelana (BRASIL, 2005d).
Assim como havia sido feito no passado, foram realizadas novas
ações conjuntas entre Brasil e Venezuela com o objetivo de combater a
mineração ilegal. Entre elas, destacou-se a atuação dos Grupos de
Trabalho da Comissão Binacional de Alto Nível (COBAN), que
figuraram como fórum de discussão e coordenação para a maior parte
das iniciativas do período. A VII Reunião do GT de Mineração Ilegal,
realizada nos dias 26 e 27 de agosto de 2003, se propunha a retomar as
“fórmulas de cooperação para a detecção, vigilância, verificação e
controle das atividades ilegais de mineração na zona de fronteira”
através de zoneamentos ecológicos, controle e penalização de delitos
ambientais, missões técnicas às áreas atingidas e cooperação técnica em
gestão de recursos ambientais e monitoramento terrestre via satélite
(BRASIL, 2003c). O encontro reuniu grandes delegações dos dois
países, com a presença de técnicos e ministros envolvidos no combate à
mineração ilegal, e serviu para avaliar as perspectivas de cooperação no
setor (BRASIL, 2003c). A V Reunião de Representantes Policiais e
Militares, realizada em 29 e 30 de julho de 2005, concentrou-se nas
possíveis contribuições de agentes de segurança brasileiros e
venezuelanos para o combate à mineração ilegal e deixou clara a
possibilidade de iniciativas conjuntas em diversas frentes (BRASIL,
2005h). A despeito dos esforços empreendidos, a mineração ilegal
continuou ativa durante todo o período, causando prejuízos às
comunidades indígenas, degradação ambiental e comoção política
(AUTORIDADES..., 2010; BUTLER, 2008; VENEZUELA..., 2009).
Além dos transtornos previamente mencionados, a mineração
ilegal ainda contribuiu para o aumento do número de brasileiros presos
na Venezuela “sob a acusação de prática de garimpagem em áreas
proibidas, porte ilegal de armas, formação de quadrilha e contrabando”
(GABINETE..., 2004). Segundo os dados disponíveis até 2007, seriam
pelo menos 30 indivíduos de nacionalidade brasileira detidos naquele
país, cidadãos geralmente desprovidos de recursos financeiros e com
educação formal bastante limitada (BRASIL, 2005d). Não bastasse a
carência desses indivíduos, as instalações penitenciárias venezuelanas
apresentariam ainda condições precárias de assistência aos detentos,
infraestrutura insuficiente e falta de segurança (apesar dos controles,
muitos detentos possuiriam armas) (BRASIL, 2005g). Para remediar a
situação, o corpo diplomático brasileiro entregou regularmente artigos
de higiene pessoal, alimentos, medicamentos e cartões telefônicos e
contratou um advogado para que os casos pudessem ser devidamente
acompanhados (BRASIL, 2005d; 2005g). Vale lembrar, ainda, que a
abertura do Vice-Consulado do Brasil em Puerto Ayacucho teve como
uma de suas principais justificativas a assistência consular aos presos
(BRASIL, 2005a; 2005b; 2005c; 2005e; 2005f).
Segurança na Fronteira com a República Cooperativista da Guiana
Essa seção trata de algumas das principais questões de segurança
na fronteira entre o Brasil e a Guiana entre os anos de 2003 e 2008 e está
dividida em (a) tráfico de drogas, (b) tráfico seres humanos, (c)
mineração ilegal e (d) outros ilícitos transfronteiriços.
(a) O tráfico de drogas — Na fronteira entre Brasil e Guiana, o
tráfico de drogas seguiu um padrão bastante semelhante ao encontrado
na fronteira com a Venezuela durante o período em estudo. Tratar-se-ia
principalmente de cocaína, oriunda dos países andinos (esp. Colômbia),
que cruzaria os territórios brasileiro e guianense em direção aos grandes
mercados consumidores da Europa e Estados Unidos. A passagem das
drogas fortaleceria os grupos criminosos que atuam na região e
aumentaria a disponibilidade de narcóticos dentro dos países que servem
de rota internacional para o tráfico (UNODC, 2008, p. 87). Além desses
efeitos perversos, o comércio de entorpecentes ainda se associaria a
outras atividades ilícitas (e.g. tráfico de pessoas, armas, munições),
formando uma rede de criminalidade que desestruturaria a sociedade e
rivalizaria com o poder do Estado. 8 Não é possível precisar a dimensão
8
O relatório final da CPI das Armas, já citado anteriormente, afirma que “Lá [na
fronteira norte do Brasil] a troca é constante e realizado qualquer tipo de câmbio.
Os índios são usados por traficantes para carregarem drogas e também são
usados para exploração sexual dos comandantes das quadrilhas que atuam
naquela fronteira. E algo que chama à atenção não somente na região da
do tráfico de drogas na região, porém há evidências de que foram
bastante frequentes as apreensões de cocaína proveniente da Guiana em
portos europeus e norte-americanos no período (ADDICTED..., 2009).
Um dos principais motivos mencionados para o agravamento da
situação é a falta de policiamento na extensa faixa de fronteira
(BRASIL, 2007b); porém, também devem ser considerados o crescente
papel da região como escoadouro de drogas após o Plano Colômbia e as
limitações de ambos os Estados em se fazerem presentes na região
(BRASIL, 2004d).
A Guiana vem, assim, se transformando rapidamente em
teatro de operações do narcotráfico, que logrou infiltrar os
setores público e privado do país, em busca de novas
alternativas, à medida que os Governos de Bogotá e dos
Estados Unidos da América, através da ‘Operação
Colômbia’, intensificaram o controle sobre rotas
tradicionais. A ação dos narcotraficantes, que operam,
ademais, esquemas de lavagem de dinheiro e apoiam
esquadrões da morte [...] é facilitado pela falta de
policiamento nas fronteiras, sobretudo com a Venezuela,
pela prática da corrupção e pela morosidade do sistema
jurídico, que gera impunidade (BRASIL, 2004d, p. 1;
2003g).
O combate ao tráfico de drogas contou exclusivamente com
iniciativas unilaterais durante quase todo o período. No Brasil, há
registro de operações para destruição de pistas de pouso clandestinas
usadas por traficantes na região norte da Amazônia (BRASIL, 2003g).
Na Guiana, o governo lançou o Plano de Estratégia contra Drogas
(20052009) para coordenar as ações de repressão ao tráfico de
entorpecentes (BRASIL, 2005i). Apenas em novembro de 2007 foi
realizada a I Reunião da Comissão Mista Bilateral Antidrogas, que
buscou discutir operações conjuntas em cidades fronteiriças,
Colômbia, mas na região da Guiana e Venezuela. Toda fronteira é um raio de
tráfico de seres humanos, de drogas e de armas e munições.” (BRASIL, 2006a,
p. 61-62). Há diversas menções nesse sentido em outras fontes, e.g. Leal e Leal
(2002, p. 29), Brasil (2007b) e USA (2003, p. 11).
colaboração na redução e prevenção da demanda por drogas, controle de
medicamentos e precursores químicos, assistência bilateral para
aperfeiçoar e fortalecer agências antinarcóticos, combate à lavagem de
dinheiro, treinamento policial e cooperação judicial (BRASIL, 2007c).
Os principais resultados da reunião foram o avanço nas negociações
para operações conjuntas de patrulhamento, para as quais “autoridades
policiais de Roraima informaram sua disposição em dar início
prontamente [...] a partir das cidades fronteiriças de Normandia e
Bonfim”, e a apresentação de tecnologias brasileiras utilizadas na
repressão ao narcotráfico, tais como o esquema de controle de
precursores químicos e o software avançado para monitoramento de
ligações telefônicas usado pela Polícia Federal (BRASIL, 2007d).
Entretanto, não há informações suficientes para apurar a evolução dessas
iniciativas nem tampouco subsídios para avaliar possíveis impactos
sobre o fluxo de drogas que atravessa a fronteira comum.
(b) O tráfico internacional de seres humanos — o tráfico
internacional de seres humanos entre Brasil e Guiana vitimou, durante o
período em estudo, especialmente mulheres e adolescentes de ambas as
nacionalidades, aliciadas para fins de exploração sexual no exterior. Na
Guiana, mulheres brasileiras seriam atraídas com falsas promessas de
emprego e forçadas a trabalhar como prostitutas em casas noturnas da
capital. De acordo com os arquivos diplomáticos, seria “notória a
existência, em Georgetown, de estabelecimento que emprega cidadãs
brasileiras para espetáculos e facilita encontros com os frequentadores”
(BRASIL, 2004c, p. 2). Além das ocorrências relatadas em grandes
cidades, cidadãs brasileiras seriam contratadas por mineradores para
prestar serviços domésticos e vender produtos brasileiros no interior do
país, eventualmente apelando à prostituição. Contudo, nestes casos não
haveria indícios de aliciamento ou cativeiro forçado, mantendo estas
mulheres a liberdade de ir e vir (BRASIL, 2004c). Ainda, o território
guianense seria usado pelo tráfico de mulheres como rota de passagem
para os demais países caribenhos (USA, 2008, p. 134). No Brasil, por
sua vez, “há um fluxo migratório típico, que ocorre no sentido inverso,
ou seja, da Guiana para o Brasil, no qual predominam as profissionais
do sexo que se dirigem para Boa Vista” (LEAL; LEAL, 2002, p. 79).
Em agosto de 2003, o Setor Consular recebeu denúncia de
que cidadã brasileira estava sendo mantida no referido
local [casa de shows], contra a sua vontade, após ter sido
atraída por aliciante, com falsas promessas de emprego;
contactada [sic], a responsável pelo estabelecimento
negou aliciamento, mas confirmou que uma ‘profissional’
estava sendo impedida de deixar o país, em virtude de
dívidas que havia contraído; após a imediata e incisiva
intervenção da Embaixada, a interessada embarcou, no
mesmo dia, para Boa Vista (BRASIL, 2004c).
Não há registro disponível do número aproximado de mulheres e
adolescentes nessa situação, nem foram mapeadas as principais rotas
que conectam os dois países. O Trafficking in Persons Report 2004
menciona a presença de mais de 100 pessoas submetidas à exploração
sexual forçada em regiões isoladas da Guiana, porém este dado, além de
antigo, não inclui as zonas urbanas — onde se supõe que se concentre o
maior número de brasileiras aliciadas (USA, 2004). Também não há
registro de qualquer reunião bilateral, acordo ou fórum que tenha
abordado a questão de forma integrada entre os dois países no período
em estudo.
(c) A mineração ilegal — A mineração ilegal em território
guianense ocorreu, no período, sob condições especiais. Ao contrário da
Venezuela, onde o garimpo figura majoritariamente como problema
político e ambiental, a indústria da mineração da Guiana representa a
segunda maior atividade econômica do país, atrás apenas da agricultura
(IHRC, 2007, p. 4). Desse modo, o governo guianense buscou incentivar
o desenvolvimento controlado da atividade, regularizando a condição
trabalhista dos mineradores e procedendo a uma “mudança de atitude
em relação à comunidade brasileira [...] (cerca de 1.500 mineradores),
que, de invasores, imigrantes ilegais e poluidores do meio ambiente,
passaram a ser reconhecidos como parceiros e coadjuvantes no
desenvolvimento econômico” (BRASIL, 2007a; 2004b). Essa postura
cooperativa não impediu, entretanto, que alguns setores da população se
mantenham desconfiados em relação aos brasileiros, cuja principal
ocupação na Guiana é justamente o garimpo (BRASIL, 2003f). A
postura governamental tampouco eliminou completamente as
irregularidades na prática da mineração, tais como o exercício laboral
sem visto apropriado, o garimpo em local proibido e os impactos
ambientais negativos da atividade (BRASIL, 2006b). Com efeito, a
mineração em pequena e média escala causaria aumento drástico de
sedimentos nos rios, alteração do fluxo fluvial pelo surgimento de
bancos de areia, contaminação por mercúrio, desmatamento e epidemias
de malária (IHRC, 2007, p. 11-17). Além disso, a presença massiva de
homens jovens e desacompanhados nos sítios de mineração estaria
fortemente associada à prostituição, tráfico de mulheres e abuso sexual
de menores indígenas (IHRC, 2007, p. 18-20).
Apesar dos esforços de pesquisa, as fontes à disposição são
bastante limitadas em alguns aspectos. Não se conhece a prevalência da
ilegalidade sobre as atividades de mineração, as rotas de escoamento do
metal clandestino, os valores envolvidos ou a associação com outros
crimes. Tampouco é consensual que o impacto socioambiental das
atividades de garimpo seja realmente elevado: representantes da Guyana
Gold and Diamond Miners Association acreditariam que “os danos
ambientais por ela causados são relativamente pequenos e objeto de
exageros eitos pela imprensa” e que “este país precisaria receber um
fluxo de cerca de 30 mil novos garimpeiros do Brasil para desenvolver
adequadamente sua indústria da mineração” (BRASIL, 2006d). Da
mesma forma, não há registro no período de nenhum acordo, fórum
permanente ou reunião entre Brasil e Guiana especificamente dedicados
a tratar da mineração ilegal na fronteira comum.
(d) Outros ilícitos transfronteiriços — outros ilícitos como
tráfico de armas, roubo de veículos, contrabando de gasolina e tráfico de
diamantes, completam a rede de criminalidade que atuou na fronteira
entre Brasil e Guiana durante o período em estudo. O tráfico de armas
presente na região se caracterizou principalmente pelo comércio de
pequenas armas de fogo manufaturadas no Brasil, que entram na Guiana
para abastecer o crime organizado local. Os compradores estariam
associados a outros crimes, em especial o tráfico drogas, contribuindo
para a elevação dos índices de criminalidade (alta de 36% em 2008) e da
taxa de homicídios (26,1/100.000 hab. em 2008) na Guiana
(GUYANA'S..., 2008; GUNS..., 2009; EXIT..., 2008; QUANBALGOBIN-HACKETT, 2008). A atividade seria facilitada pela
permeabilidade da fronteira, pela falta de policiamento e pelo
entrosamento com as demais redes de ilícitos:
Commenting on the problems of illegal firearms, the
expert said in addition to Guyana’s long unpatrolled
border with Brazil, one of the world’s largest
manufacturers of small arms, this country had a serious
problem with organized contraband. ‘We have massive
smuggling of people, fuel and drugs in areas in the
Corentyne and North West District and it is through these
means persons were bringing in guns,’ the expert
declared. He said unless law enforcement authorities were
able to stamp out smuggling it would be difficult for the
authorities to arrest the guns problem. The expert
explained that there was evidence that some of the
persons involved in drugs and fuel smuggling as well as
those engaged in high seas piracy were actually the
gunrunners. ‘While they bring in their uncustomed goods
they bring in weapons also,’ the security official said
(ILLEGAL…, 2008).
O roubo de veículos na fronteira consistiu no furto de motos e
carros brasileiros no estado de Roraima, em especial na cidade de Boa
Vista, que seriam ilegalmente transportados e revendidos na Guiana
(TRAJANO, 2009; NASCIMENTO, 2009; LADRÕES..., 2009). Essa
atividade criminosa foi bastante comum no período, levando autoridades
a negociar um acordo para pronta recuperação de veículos roubados à
semelhança dos assinados entre Brasil, Bolívia e Paraguai (BRASIL,
2007d). A iniciativa, porém, nunca foi adiante. O contrabando de
gasolina parece ter afetado especialmente Suriname e Venezuela,
produtores do combustível repatriado para a Guiana. Entretanto, o
tráfico ocorreria com particular ênfase em regiões próximas ao Brasil e
haveria indícios de envolvimento de cidadãos brasileiros no descaminho
de combustível. A fronteira entre Brasil e Guiana ainda abrigaria ainda
um esquema para fraudar certificações internacionais de diamante bruto,
que previnem que o mineral financie guerras e abusos aos direitos
humanos nos locais de origem. Relatórios internacionais confirmam que
“vinte por cento dos diamantes existentes na Guiana é contrabandeado
para Boa Vista, no Brasil, misturado a diamantes provenientes
ilegalmente da Venezuela e devolvidos à Guiana, onde obtém falsos
Certificados Kimberley” (BRASIL, 2006c).
Mais uma vez, há uma escassez crônica de dados sobre esses
assuntos. Não foi possível encontrar fontes seguras que informassem o
volume ou valores do comércio ilegal, média anual de ocorrências, rotas
mais utilizadas, informações precisas sobre procedência e destino das
mercadorias ou cobertura geográfica/demográfica dessas atividades.
Tampouco há registro de iniciativas bilaterais direcionadas
especificamente ao combate dos ilícitos transfronteiriços mencionados
(i.e. tráfico de armas, roubo de veículos, contrabando de gasolina e
tráfico de diamantes).
Breve Análise Perspectiva
Uma breve análise permite concluir que os dois segmentos da
fronteira norte analisados estiveram marcados pelos ilícitos
transfronteiriços durante todo o período. O fenômeno não é recente e
parece estar relacionado à omissão do Estado brasileiro, problema
conhecido e bem documentado em diversas fontes (Política de Defesa
Nacional9, Programa Calha Norte10, arquivos diplomáticos 11). O
9
10
A Política de Defesa Nacional afirma que “A garantia da presença do Estado e a
vivificação da faixa de fronteira são dificultadas pela baixa densidade
demográfica e pelas longas distâncias, associadas à precariedade do sistema de
transporte terrestre, que condiciona o uso de hidrovias e do transporte aéreo
como principais vias de acesso. Essas características facilitam a prática de
ilícitos transnacionais e crimes conexos, além de possibilitar a presença de
grupos com objetivos contrários aos interesses nacionais. (...) O adensamento da
presença do Estado, e em particular das Forças Armadas, ao longo das nossas
fronteiras, é condição necessária para conquista dos objetivos de estabilização e
desenvolvimento integrado da Amazônia.” (BRASIL, 2005j).
A brochura institucional do Programa Calha Norte reconhece que “Entre os
principais problemas, figura o esvaziamento demográfico das áreas mais remotas
argumento principal é que a falta de controle sobre regiões isoladas, que
inclui desprovimento de serviços públicos 12, vigilância limitada do
espaço aéreo, fronteiras desguarnecidas, baixa densidade demográfica e
condições geográficas desfavoráveis (extensão do terreno, vegetação
cerrada e abundância de hidrovias), facilitam a atuação clandestina de
grupos criminosos. Com efeito, essa situação de vulnerabilidade
contribuiu para o florescimento de atividade ilegais na fronteira comum.
O tráfico de mulheres está bem estabelecido na região norte do
Brasil, e há rotas internacionais conhecidas que conduzem mulheres e
adolescentes brasileiras para a prostituição na Venezuela e na Guiana. O
tráfico de armas e de drogas também têm raízes profundas na região.
Embora o Brasil não seja o destino principal dos itens traficados, o
trânsito dessas mercadorias pelo território nacional resultou em aumento
da oferta interna de drogas e armas, corrupção policial e fortalecimento
do crime organizado. O tráfico de drogas, por exemplo, dá indícios de
penetrar progressivamente na região, não apenas para escoar a produção
de entorpecentes como também para aproveitar o potencial de consumo
11
12
e a intensificação e o espraiamento dos ilícitos transfronteiriços. Nesse contexto,
crescem, igualmente, as necessidades de vigilância da fronteira”. Sugere-se
como solução “aumentar a presença do Poder Público na região do programa
Calha Norte, contribuindo para a Defesa Nacional, proporcionando assistência
às suas populações e fixando o homem na Região.” (BRASIL, s.d., p.1).
“A geografia da zona fronteiriça entre o Brasil e a Venezuela, em grande parte
inóspita e de difícil acesso (com exceção da área de Vila Pacaraima/Santa Elena
de Uiarén), associada à baixa densidade demográfica, explicam a escassa
presença governamental na região. [...] [A] persistência do problema do garimpo
ilegal, sugere a necessidade de uma agenda de fomento à cooperação entre os
dois países naquela área.” (BRASIL, 1995).
Realizei viagem aos municípios roraimenses de Normandia, Uiramutã e
Pacaraima nos meses de janeiro e fevereiro de 2009. Na ocasião, pude conversar
com políticos e servidores públicos, e ouvir relatos de cidadãos residentes da
área, muito do que ficou registrado em fotos, anotações e gravações de áudio.
Além disso, foi possível acompanhar uma reunião entre integrantes do
Ministério Público estadual, lideranças indígenas e autoridades locais sobre a
administração pública neste municípios fronteiriços. Dessa experiência, pôde-se
constatar que os municípios fronteiriços do estado de Roraima sofreram, em
maior ou menor grau, com a precariedade da infraestrutura de rodagem,
problemas de abastecimento elétrico, limitações orçamentárias para contratar
técnicos (contadores, advogados, técnicos agrícolas), etc. durante todo o período
em estudo.
dos países sul-americanos13. O tráfico de armas, por sua vez, encontra
no conflito interno da Colômbia um mercado seguro para a armas de
fogo e munições14, de modo que o fim do comércio clandestino passa
pelo apaziguamento social naquele país. A mineração ilegal representa
um complicador adicional na região, reforçando as redes de ilegalidade
e causando constrangimento às relações bilaterais. Os demais ilícitos
transfronteiriços (i.e. roubo de veículos, contrabando de gasolina, tráfico
de armas e diamantes) possuíram menor representatividade no período,
mas não sofreram medidas de repressão eficazes e, dessa forma,
contribuíram para consolidar a rede de criminalidade na região.
Considerações Finais
Uma análise perspectiva dessa situação, considerando as
limitações materiais e políticas dos Estados em desenvolvimento para
investir recursos em vigilância territorial em sentido amplo, sugere que
uma abordagem exclusivamente militar para os problemas
13
14
O World Drug Report das Nações Unidas indica o Brasil como maior
consumidor de drogas da região, porém em níveis ainda inferiores a outros
mercados consolidados como Europa Ocidental e Estados Unidos. O relatório
refere, ainda, em vários anos da publicação, um aumento generalizado no
consumo de drogas na América do Sul. “While there are indications that the
expansion of cocaine consumption is losing some of the momentum it had in the
1990s, and while traditional markets such as the USA and Mexico are
stabilizing, new markets continue to emerge. According to UNODC's Drug
Abuse Trend Index, cocaine use has increased dramatically in Southern America,
Central America and the Caribbean since 1995. Abuse levels are high and
increasing in Brazil and Colombia. There are exceptions to this trend in Bolivia
and Peru.” (UNODC, 2004, p. 51).
De acordo com a CPI das Armas, do Congresso Nacional brasileiro, “A
Colômbia é sempre o destino final das rotas do tráfico internacional de armas e
munições. Isto se dá em conseqüência [sic] daquele país ter os melhores e
maiores compradores de armas e munições e de ser grande fornecedora de
cocaína. As organizações paramilitares e as chamadas Forças Armadas
Revolucionárias entraram no comércio ilegal de armas e munições e fazem esta
disputa usando a cocaína como moeda de troca e de pagamento. Um exemplo
disso é o que aconteceu no município de Cucu [...], onde militares brasileiros
prenderam em flagrante os colombianos: Justo Alexander Ramirez e William
Norbey Nagles Cespedes [...]. Estes colombianos são acusados de pertencerem
às FARC” (BRASIL, 2006a, p. 61).
supramencionados é pouco efetiva. As Forças Armadas são a principal
instituição nacional encarregada de dar expressão prática à soberania
brasileira nas regiões de fronteira. Entretanto, sua presença exclusiva é
insuficiente para garantir a continuidade da presença do Estado, e a
militarização de todos os aspectos da vida civil (abastecimento,
eletrificação, arbitragem de disputas particulares, etc.) não é uma
situação desejável. Como consequência, iniciativas que gerem economia
dos recursos públicos e, desse modo, viabilizem financeira e
logisticamente o provimento de serviços públicos em zona de fronteira
são essenciais para coibir a difusão de ilícitos fronteiriços. Nesse
ínterim, abre-se espaço para as Casas de União.
As Casas de União se propõem a aumentar a presença do Estado
no território nacional de forma flexível, uma vez que preveem a
elaboração de consórcios e convênios entre os diversos entes da
federação (municípios, estados e União), garantindo a capilarização da
administração das políticas públicas no médio e longo prazo. Isso busca
evitar que a cooperação internacional e/ou subnacional se perca no
decorrer do tempo. Ao mesmo tempo em que viabilizariam a
implementação de políticas públicas eficientes, as Casas de União
propõem uma atuação com economia de recursos, já que dentre seus
princípios incluem-se a gestão associada e o Federalismo Cooperativo.
Assim, maior presença do Estado se daria também pelo
compartilhamento de instalações físicas e servidores entre os entes da
federação brasileira.
As Casas de União facilitariam o controle das fronteiras
brasileira, seja com Venezuela, Guiana, ou qualquer outro Estado sulamericano, tanto pela maior presença e atuação do Estado brasileiro,
quanto pela inclusão social. No decorrer da pesquisa, fez-se claro que as
regiões atingidas pelos diversos tipos de ilícitos transnacionais carecem
de serviços básicos como educação, saúde, saneamento e trabalho
formal. Implica entender que a baixa qualidade de vida das zonas de
fronteira assegura um ambiente propício à proliferação desses ilícitos.
Assim, uma política para a região demanda não somente a cooperação
entre os Estados sul-americanos, mas também a administração dessa
cooperação pelos entes subnacionais, o que garantiria maior acesso das
populações locais a serviços fundamentais. De tal forma que as Casas de
União podem somar-se aos esforços do Estado para fazer frente aos
desafios das regiões de fronteira: a permeabilidade das fronteiras, a falta
de policiamento em sua extensão, a escassez de dados sobre os ilícitos
transnacionais, a percepção de omissão do Estado brasileiro, a falta de
controle sobre as zonas de fronteira e o desprovimento de serviços
públicos à população local.
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
Introdução
Este trabalho apresenta um panorama econômico, político e
social da Bolívia com especial ênfase no movimento separatista
nucleado no país. Destaca condicionantes históricos bem como as
principais características do separatismo boliviano. A seguir, analisa as
principais implicações que esse movimento pode gerar para o Brasil em
caso de uma escalada do conflito. Por fim, evidencia a iniciativa das
Casas da União e seu potencial como uma ferramenta institucional capaz
de aumentar eficácia, eficiência e efetividade das ações governamentais.
O Separatismo Boliviano
A Bolívia é um dos países mais pobres da América do Sul, o que
pode ser observado a partir do exame de alguns indicadores
socioeconômicos. Por exemplo, embora a porcentagem de pobreza
apresente tendência de queda desde 2004, quase dois terços da
1
Este artigo é baseado na dissertação de mestrado apresentada em 2010:
SEBBEN, Fernando D.O. Bolívia: Logística Nacional e Construção do Estado.
PPG em Ciência Política. UFRGS, 2010.
população ainda vive abaixo da linha da pobreza.2 Ademais, cerca de
70% do trabalho ocorre em condições de informalidade (CUNHA, 2004,
p. 13).3 Um terço da população vive em comunidades com 250 pessoas
ou menos, ao passo que metade da população está concentrada nas
cidades de La Paz, Cochabamba e Santa Cruz (VAN COTT, 2000, p.
333).4 Estima-se que três milhões de bolivianos não têm acesso à
eletricidade e, no inverno, usam lenham para aquecer-se. Também é
notável a ausência de infraestrutura e de saneamento básico, como rede
de esgotos e de água tratada.5 Verifica-se que a pobreza e a indigência
são de 50 a 100% maiores entre a população rural (CUNHA, 2004, p.
14). Segundo Gustavo Saavedra, ex-embaixador da Bolívia no Brasil,
“no mundo andino, viver nas zonas rurais equivale a viver na miséria.
Na Bolívia, 95% da população rural sobrevive abaixo da linha da
pobreza” (SAAVEDRA, 2004:99).
Em termos políticos, a Bolívia apresenta-se historicamente
marcada por violência social e instabilidade. Durante o século XX, teve
a média de um presidente a cada dois anos. Segundo Hofmeister (2004,
p. 273), foram mais de 200 golpes e trocas de governo com uso da força.
A pesquisadora Donna Lee Van Cott registra mais de 190 tentativas de
golpe desde a independência (VAN COTT, 2000, p. 331). Houve
intervenções militares frequentes durante a segunda metade do século
XX. De 1952 a 1982, por exemplo, houve 20 governos, apenas seis
constitucionais (SANTORO, 2007, p. 32). Para Guimarães, Domingues
e Maneiro (2005, p. 11), “A história da Bolívia independente evidencia
uma instabilidade quase sem paralelo internacionalmente. A república
conheceu mais golpes militares que aniversários em sua existência”.
2
3
4
5
Segundo Taborga, a pobreza afeta 76% da população e a extrema pobreza 50%
(TABORGA, 2005, p. 9). Ainda segundo o autor, um a cada quatro bolivianos
reside no exterior (TABORGA, 2005, p. 17).
Alguns autores chegam a afirmar que cocaína é a principal fonte de renda do
país, sendo responsável por uma renda anual de mais de meio bilhão de dólares
(VAN COTT, 2000, p. 346).
População total da Bolívia: nove milhões. La Paz (incluindo El Alto) —
1.4436.000. Santa Cruz de la Sierra a — 1.135.00. Cochabamba — 517.000.
Somando a população das três cidades, tem-se um total de cerca de três milhões,
ou seja, cerca de um terço da população nacional (cf. JANE'S, 2008).
Além disso, a Bolívia não é autossuficiente em comida (JANE'S, 2008).
Para além desse quadro social, econômico e político crítico,
existe na Bolívia um movimento separatista com diversas implicações
estratégicas. No país, os anos 2000 foram marcados por uma ampliação
da desigualdade de renda entre uma elite exportadora das terras baixas e
os indígenas pobres do altiplano (VAN COTT, 2000, p. 348).
Impulsionado pelo crescimento econômico do período, o movimento
separatista da região da Meia-Lua ressurgiu com força. Trata-se de uma
reemergência, visto que o movimento tem suas raízes na própria origem
do Estado boliviano. A clivagem étnica, econômica e social adquiriu
contornos políticos. As diferentes demandas regionais polarizaram-se e
os grupos sociais passaram a “se enfrentar cara a cara”, nos termos de
Huntington (1975, p. 208). Proliferam-se as demandas por maior
autonomia, seja ela de indígenas ou dos cambas6. Instaurou-se uma crise
de hegemonia e o Estado fragmentou-se, processo galvanizado pela
inédita chegada à presidência de um indígena, Evo Morales, em 2006.
A reemergência do separatismo foi protagonizada pela região da
Media Luna. A Meia Lua é composta pelos departamentos de Santa
Cruz de la Sierra, Beni, Pando e Tarija. A região é responsável por 80%
do PIB boliviano, corresponde a quase dois terços do território e abriga
cerca de 58% dos quase dez milhões de bolivianos (MALAMUD;
ENCINA, 2008). A região da Meia Lua, além de sediar a produção de
gás, também conta com recursos madeireiros e uma pujante produção de
soja, liderada tanto por grandes produtores do oriente boliviano quanto
por ruralistas brasileiros, os quais aproveitam o relativo baixo preço do
hectare e uma oferta de terras pouco explorada. 7 Outros departamentos
bolivianos, como La Paz, Oruro e Potosí apresentam condições muito
mais precárias. Potosí e Chuquisaca apresentam níveis de renda e
desenvolvimento humano semelhantes aos da África Subsaariana
6
7
Camba é o termo utilizado para se referir à população da Meia-Lua, situada no
Oriente boliviano. Trata-se de uma construção sociológica, baseada em aspectos
culturais da região. Para mais detalhes, conferir a descrição a seguir.
Cerca de 200 mil brasileiros residem na Bolívia, a maior parte envolvida na
produção de soja da região oriental (SANTORO, 2007, p. 15). Não obstante, a
maior comunidade de emigrantes bolivianos no mundo está na Argentina
(VIZENTINI, 2004, p. 378).
(Cunha, 2004:14). Por outro lado, na região da Meia-Lua vivem aqueles
que se autodenominam cambas; no altiplano, residem os kollas.8
É comum a crença de que Evo Morales constitui um fator de
desestabilização na Bolívia e na América do Sul. Todavia, foi eleito com
53,7% dos votos em dezembro de 2005, na eleição com maior
participação eleitoral da história boliviana (84,51% dos eleitores
habilitados) (CÂMARA, 2007, p. 65). Morales foi referendado em 2008
por mais de 67% dos eleitores que o confirmaram no cargo, em um
processo cuja correção e legitimidade foram ressaltadas pelos
observadores internacionais e pela Organização dos Estados Americanos
(OEA). Ademais, em 2009 não só logrou aprovar o projeto Constituição
da coalizão que representava, com cerca de 60% dos votos, como
também venceu o opositor Manfred Reyes com 63% dos votos.
Portanto, o veredicto do próprio povo boliviano parece contrastar com
aquele conferido a Evo pelo senso-comum brasileiro e até mesmo por
parcelas da mídia nacional.
Além dos quatro departamentos da Meia-Lua, Chuquisaca e
Cochabamba também somaram vozes nos pedidos por mais autonomia
por algum tempo. Cochabamba ensaiou um alinhamento às demandas
autonômicas por meio da figura de seu ex-prefeito Cap. Manfred Reyes
Villa 9, um dos principais opositores de Evo Morales, derrotado nas
eleições de 2009. A pressão de movimentos sociais, todavia, acabou
resultando na perda do mandato de Villa no referendo revogatório de
8
9
A população boliviana é formada por 35% de indivíduos descendentes do grupo
Quéchua e 25% do grupo aymara (VAN COTT, 2000, p. 333), o que resulta em
mais de 50% do total da população como descendente de indígenas. De uma
população de cerca de 10 milhões, 2,1 milhões falam quéchua e dois milhões
aymara; porém, a grande maioria também fala espanhol. A pluralidade de grupos
sociais tem sido utilizada pelas elites para justificar uma “fraqueza originária”,
um “defeito congênito” que impediu a Bolívia de ganhar guerras contra seus
vizinhos (cf. WASSERMAN, 2004, p. 320).
Manfred Reyes Villa é ex-militar formado na Escola das Américas, no Panamá,
quando era chefe de segurança na ditadura do general Luís Garcia Mesa Tejada
(1980-1981) (cf. BANDEIRA, 2007). Destaque na política boliviana, em 2002
obteve o terceiro lugar nas eleições presidenciais, com 20% dos votos
(HOFMEISTER, 2004, p. 301).
2008.10 De Chuquisaca, a governadora Savina Cuellar exerceu forte
oposição ao governo. Ex-membro do MAS, elegeu-se com apoio dos
votos da capital (Sucre), posto que nas áreas rurais o candidato
governista teve votação superior.
A elite de Santa Cruz de la Sierra, centro político do separatismo,
depende historicamente dos incentivos governamentais da Bolívia 11.
Desde a década de 1950, parte significativa dos excedentes tributados a
partir das atividades de mineração, comércio e indústria foram aplicados
no desenvolvimento do Oriente boliviano. Tanto regimes autocráticos
quanto democráticos investiram na infraestrutura da região, construindo
ferrovias, rodovias e investindo maciçamente no agronegócio
(BARRIENTOS, 2008). Isenções tributárias e facilidade de crédito
impulsionaram o crescimento da região.
Segundo Bernardo Barrientos (2008), o montante de subsídios à
atividade de soja representa 40% do valor total das exportações do
produto que, segundo o autor, foram de cerca de 470 milhões de dólares
em 2007. Ainda de acordo com o economista boliviano, “enquanto a
superfície dedicada à produção de soja cresceu 94% entre os triênios
1994-1996 e 2004-2006, registrou-se simultaneamente um declínio de
14% no rendimento da produção” (BARRIENTOS, 2008). Verifica-e,
portanto, que a expansão da produção é acompanhada de uma queda da
produtividade da commodity.
Ademais, é preciso ressaltar que a produção de soja do Oriente
boliviano é extremamente dependente das preferências tarifárias da
Comunidade Andina. Não fosse o mercado do bloco (Peru, Equador,
Colômbia)12, a economia local dificilmente resistiria à competição das
10
11
12
Antes da consulta, ocorreram vários choques entre manifestante pró-MAS,
revoltados contra a ideia de Villa promover separatismo, e a favor do prefeito, o
que resultou em alguns mortos e centenas de feridos.
A cidade de Santa Cruz de la Sierra é a capital do departamento Santa Cruz.
A Venezuela anunciou sua formalmente sua saída da Comunidade Andina em
2006, passando a pleitear seu ingresso no Mercosul, do qual se tornou parte em
2012. Todavia, firmou naquele mesmo ano, juntamente com Bolívia e Cuba, o
Tratado de Comércio dos Povos (TCP), pelo qual se comprometeu a comprar
regularmente a soja boliviana. Por meio da adesão a este tratado, a Bolívia
passou a fazer parte também da ALBA (Alternativa Bolivariana para as
produções da Argentina e do Brasil, com melhores solos e maior nível
de mecanização (BARRIENTOS, 2008).
Na prática, configura-se uma elite rentista (dependente dos
incentivos governamentais), com latifúndios de produção pouco
competitiva e uma estrutura de poder oligárquica.13 A ascensão desta
elite acabou resultando na polarização do país, marcada por conflitos
entre grupos sociais, notadamente a referida elite oriental e partidários
do governo do MAS (movimentos indígenas, sindicatos, operários, etc.).
No Oriente boliviano, encontra-se, pois, um setor rural prémoderno que apresenta uma elite tradicionalmente dependente do
Estado mais um sem número de camponeses sem-terra e miseráveis, o
que contribui para que o país seja um dos mais pobres da América do
Sul. Como resposta à ideia de Estado plurinacional, a elite da Meia Lua
lançou mão de uma estratégia bidimensional: tentou aumentar seu poder
de barganha enquanto consolidava o separatismo. Língua e etnicidade
são critérios mutáveis, opacos, vazios (HOBSBAWM, 1991:15), mas,
no caso da Meia Lua, foram instrumentalizados de acordo com o
interesse econômico do gás. O critério de abrangência da nação foi
moldado de acordo com o interesse da elite local. Neste caso,
manipulou-se e projetou-se a identidade em torno de um conflito, o que
também contribuiu para aumentar a coesão social do grupo reclamante.
Ser cruceño tornou-se um privilégio de poucos escolhidos.
Na arena legislativa, o governo parece disposto a negociar e fazer
concessões. Todavia, caso a negociação fracasse e ocorram novos atos
de violência, pode ter início uma espiral de violência de difícil
estabilização. Há, na Bolívia, uma inversão da expressão de O’Donnell.
Na concepção do cientista político argentino, havia nos EUA manchas
13
Américas), em 2009 rebatizada como Alianza Bolivariana para los Pueblos de
Nuestra América .
E vale lembrar que é justamente “(...) a fatal coligação de uma forte elite
proprietária e de uma burguesia fraca que (...) tem sido a origem social dos
regimes e movimentos autoritários de direita na Europa e na Ásia.” (MOORE,
1983, p. 424).
hobbesianas14 em um universo poliárquico. Na Bolívia, opera-se uma
inversão: há manchas poliárquicas em um universo hobbesiano.
Talvez sejam dois os principais motivos que fazem de Evo uma
figura odiada pela elite oriental: primeiro, o fato de ser indígena, o
primeiro a governar o país. Segundo, o fato de ter promovido a
nacionalização dos hidrocarbonetos. Ao passar o setor para as mãos do
Estado boliviano, Morales praticamente impossibilitou as chances de os
separatistas terem o mercado de produção de gás em suas mãos,
associando-se ao setor privado diretamente. Assim, diminuiu-se também
consideravelmente a possibilidade do advento de uma nova economia de
enclave — um Estado camba que iria se resumir à exportação de gás em
uma conjuntura de crise energética, visto que Argentina e Chile
costumam sofrer carência de gás natural.15 Com a nacionalização dos
hidrocarbonetos, dificultou-se a associação das elites da Meia Lua com
as empresas estrangeiras exploradoras de petróleo e gás. Até porque,
É através do processo político que uma classe ou grupo
econômico tenta estabelecer um sistema de relações sociais que lhe
permita impor ao conjunto da sociedade um modo de produção próprio,
ou pelo menos tenta estabelecer alianças ou subordinar os demais
grupos ou classes com o fim de desenvolver uma forma econômica
compatível com seus interesses e objetivos. Os modos de relação
econômica, por sua vez, delimitam os marcos em que se dá ação política
(CARDOSO; FALETTO, 1977, p. 23).
Em termos de ação política, as elites orientais têm procurado
justificar o seu direito à maior autonomia. Os grupos mais radicais,
como o Nação Camba, utilizam-se do argumento da autodeterminação
dos povos, princípio consagrado pela Carta da ONU (Art.1º). Esta é,
14
15
Fenômenos que indicam, em geral, a ausência de governo, tanto em termos de
proteção legal como de prestação de serviços. Por exemplo, o desemprego
estrutural, a subclasse, as minorias excluídas, as migrações, os riscos de anomia.
Segundo Carra (2008, p. 120), “O aproveitamento das reservas (ou introdução)
de gás natural na matriz energética faz parte dos planos de todos os países da
América do Sul. Ainda segundo o autor, o Chile importa quase todos os
hidrocarbonetos de que necessita” (CARRA, 2008, p. 132).
aliás, a defesa universal dos movimentos separatistas.16 Entretanto, há
uma clara deturpação da ideia. Aqui vale retomar o estudo de Charles
Tilly, demonstrando a diferença entre Estado nacional e Estado-nação e
ressaltando a real existência de poucos casos deste último:
Durante a maior parte da história, os estados nacionais
— aqueles que governam múltiplas regiões adjacentes e
as suas cidades por intermédio de estruturas centralizadas,
diferenciadas e autônomas — surgiram muito raramente.
A maioria deles eram [sic] não-nacionais: impérios,
cidades-estado, ou algo semelhante. Para nosso pesar, o
termo “estado nacional” não significa necessariamente
estado-nação, um estado cujo povo compartilha uma
forte identidade lingüística [sic], religiosa e simbólica.
Embora alguns estados, como a Suécia e a Irlanda, se
aproximem hoje desse ideal, pouquíssimos estados
nacionais da Europa se qualificaram algum dia como
estados-nação. A Grã-Bretanha, a Alemanha e a França —
estados essencialmente nacionais — por certo nunca
passaram por este teste (TILLY, 1996, p. 47).
Mais adiante, o autor afirma:
Se todos os povos em nome de quem se fizeram
exigências de um estado separado obtivessem seus
próprios territórios, o mundo passaria dos 160 e tantos
estados reconhecidos atualmente para milhares de
entidades similares a estados, a maioria deles diminutas e
economicamente inviáveis (TILLY, 1996, p. 48).
16
No Brasil, por exemplo, há o Movimento Pampa (que busca a restauração da
República Rio-Grandense) ou, em uma versão mais “includente”, abrangendo
Santa Catarina e Paraná, o movimento “o Sul é o meu país”. Outros movimentos
separatistas no Brasil são o Movimento São Paulo Independente (MSPI), e o
Movimento República de São Paulo (MRSP). Cf. http://www.patria-sulista.org/;
http://www.pampalivre.info/; http://www.mspi.cjb.net/; http://mrsp.110mb.com/
(Último acesso para todos: 29/07/2009).
A reemergência do movimento separatista gera problemas de
segurança regionais. Grupos mais radicais, como o Nación Camba,
deixam de formular suas preferências por meio de instituições e passam
a usar a coerção. O fenômeno guarda alguma semelhança com o
pretorianismo (HUNTINGTON, 1975): há uma politização geral da
sociedade, cujos agentes passam a atuar de forma direta, não mediada,
em um contexto de sobrecarga de demandas. Entretanto, o conceito não
se aplica simetricamente ao caso boliviano: o descompasso entre
modernização econômica e política não trouxe como resultado, no
contexto atual, intervenção das Forças Armadas. Ademais, não se
verifica na Bolívia ausência de instituições ou incapacidade para criá-las
(características típicas da sociedade pretoriana).
Na Bolívia, há instituições políticas e elas continuam a surgir. Há
intensa participação, seja no altiplano seja no oriente, mas reduzido grau
de intermediação e de moderação entre as demandas dos grupos. “As
forças sociais se enfrentam cara a cara” (HUNTINGTON, 1975, p. 208).
Entretanto, algumas delas (os grupos radicais) recorrem ao uso da força
e, até mesmo, à contratação de mercenários estrangeiros. Estes grupos
possuem poder de conexão com outros Estados e grupo sociais de outros
países, o que impacta diretamente na questão da segurança regional.
Conforme ressalta Antonio Mitre (2008, p. 82), “[e]sse quadro,
assombrado pelas eclosões de racismo, pode degenerar em conflito
aberto e guerra”. Não tendo suas demandas atendidas, recorrem à
destruição do Estado boliviano (tomadas de prédios públicos, greves,
manifestações violentas). Existe, portanto, um problema se segurança
regional que pode afetar o Brasil e, em especial, a região de fronteira
com a Bolívia.
Separatismo: riscos do transbordamento para o Brasil
A ascensão do movimento separatista na Bolívia desperta
importantes preocupações para a estabilidade da região e para a
manutenção do regime democrático no país.
A Meia Lua possui uma importância estratégica. Fornece 90% do
gás enviado ao Brasil (VALENTE, 2007). O gás boliviano chegou a ser
responsável, no início dos anos 2000, pelo abastecimento de cerca de
50% do parque industrial do Brasil, especialmente importante para a
indústria paulista (SANTORO, 2007, p. 14). Tal fornecimento seria
inevitavelmente ameaçado em caso de escalada de um conflito para uma
guerra local. Ressalte-se que é na fronteira entre os dois países que passa
boa parte do gasoduto Brasil-Bolívia.
A fronteira do Brasil com a Bolívia é sensível à segurança
brasileira por várias razões. A região Centro-Oeste é a maior porta de
entrada do narcotráfico para o Brasil.17 Lá está situada a Reserva
Roosevelt, área ocupada pelos índios cinta-larga que, estima-se, abriga a
maior reserva de diamantes do mundo. O Centro-Oeste abriga três das
dez cidades com maiores taxas de homicídio do Brasil.18 Há risco de a
região tornar-se valhacouto do crime transnacional e mesmo de forças
mercenárias estrangeiras.
A hipótese de uma guerra local tendo como epicentro o
separatismo boliviano foi desenvolvida em outro trabalho (SEBBEN,
2007). Por ora, cumpre ressaltar que uma guerra civil na Bolívia
confrontaria os diferentes projetos para a América do Sul, como é o caso
do bolivarismo da ALBA, liderada pela Venezuela, e do livre-comércio
da “ALCA fatiada”, tendo Chile e Colômbia como protagonistas (Área
de Integração Profunda — AIP). A Venezuela apresenta-se como aliada
da Bolívia. O Chile, inimigo histórico da Bolívia, tem interesses no gás
boliviano e no lítio. No passado recente (Era Pinochet e 2005-06), foi
acusado de patrocinar o separatismo boliviano. Em relação à Colômbia,
há quem afirme que paramilitares colombianos (AUC’s), ligados ao
governo Uribe, apoiam os separatistas de Santa Cruz (VALENTE,
2007).
17
18
Cerca de 80% da produção boliviana de narcóticos passa pelo Brasil e vai para a
África, chegando, finalmente, até a Europa, seu mercado final (JANE'S, 2008).
Os dados referem-se ao período de 2002 a 2006. As cidades são: Colniza (2º),
Itanhangá (3º) e Juruena (8º). Suas taxas de homicídio são, respectivamente:
106,4; 105,7; 91,3 (número por 100 mil habitantes) (cf. WAISELFISZ, 2008).
Restaria a Brasil e Argentina o papel de mediadores. Nesse
sentido, a hipótese de guerra local representa tanto uma ameaça à
unicidade da Bolívia quanto ao projeto de integração regional
pretendido pelo Brasil. A possibilidade de divisão da região boliviana
poderia levar à conflagração alianças rivais entre os países sulamericanos: em síntese, liberais e separatistas de um lado, e
desenvolvimentistas e integracionistas de outro. Ademais, conforme se
afirmou, o separatismo da região da Meia Lua traz várias implicações à
segurança da América do Sul, dado o risco do estabelecimento do tráfico
de drogas, armas e pedras preciosas.
Este ponto de vista é corroborado por Francisco Teixeira da Silva
(2008, p. 53), para quem, “o movimento autonomista denominado
Nación Camba representa, ao nosso ver, o maior risco real e concreto
para a segurança hemisférica no momento” (TEIXEIRA DA SILVA,
2008, p. 53).
O problema do separatismo na Bolívia, embora tenha passado à
resolução institucional, não parece de todo solucionado. Em abril de
2009, a polícia boliviana efetuou uma operação em que matou três
mercenários e prendeu outros dois em Santa Cruz de la Sierra.19 Em
uma entrevista à televisão húngara (BOLÍVIA OPINA, 2009) antes de
viajar à Bolívia, o líder do grupo, Eduardo Flores, sabendo que sua vida
estaria em risco, contou que fora chamado por bolivianos para
estabelecer um sistema de milícias a fim de defender a região Oriental
da Bolívia. Por mais que Flores tenha argumentado que o propósito
19
Seu líder, Eduardo Rózsa-Flores, boliviano nascido em Santa Cruz de la Sierra,
serviu na Guarda Nacional Croata durante a década de 90 em meio à guerra civil
na Iugoslávia. Os outros dois óbitos foram Árpád Magyarosi, húngaro, e
Michael Martin Dwyer, irlandês. Foram presos Mario Tadic, croata, e Előd
Tóásó, húngaro. Dentre as várias acusações, descobriu-se que os cincos tinham
um plano para assassinar o presidente Evo Morales. Seriam apenas uma célula
de um grupo muito maior que envolveria, por exemplo, dois generais; o
governador da província de Santa Cruz, Rubén Costas; o ex-presidente do
Comitê Cívico, Branco Marinkovic; Guido Nayar, pecuarista da mesma região e
ex-ministro de Governo do ditador Hugo Bánzer.
dessas milícias era estritamente defensivo, é sempre preocupante que a
política continue por outros meios, neste caso, a guerra — segundo a
máxima de Clausewitz (2003, XCI).
De um modo geral, verifica-se que as diversas ameaças
ocasionadas pelo separatismo boliviano impactam o Brasil, em especial
suas regiões de fronteira. Portanto, faz-se necessário ampliar a presença
do Estado na região Centro-Oeste e na Amazônia, para o que a
iniciativa das Casas da União tem papel fundamental.
A Iniciativa das Casas da União
As Casas da União buscam propiciar uma maior a presença do
Estado em todo território nacional de forma flexível, com economia de
recursos, garantindo uma maior efetividade às políticas públicas. Elas
consistem no compartilhamento de recursos, humanos e materiais, entre
diferentes entes federados. Trata-se de dar consecução ao princípio da
gestão associada contida no artigo 241 da Constituição Federal. Ao
mesmo tempo, de oportunizar a realização de consórcios e convênios
que ponham em prática a legislação infraconstitucional já vigente acerca
do tema. Além de permitir o intercâmbio de conhecimento e
experiências entre diferentes servidores, bem como oportunizar uma
economia de material de consumo, a iniciativa traz benefícios que
importam diretamente para o caso boliviano e suas possíveis
implicações para o Brasil.
Viu-se que a hipótese de transbordamento de uma guerra em
torno do separatismo na Bolívia poderia envolver, entre outros: a) tráfico
de drogas, muito presente na fronteira Brasil-Bolívia; b) pedras
preciosas (haja vista às reservas pouco conhecidas na região, como a
Reserva Roosevelt); c) ameaça ao fornecimento de gás natural (gasoduto
BrasilBolívia); d) ameaça ao processo de integração regional (hipótese
de confronto entre os três principais projetos: ALBA, ALCA fatiada
(AIP) e Unasul); e) risco de a região tornar-se valhacouto do crime
transnacional e mesmo de forças mercenárias estrangeiras.
As Casas da União permitiriam que os agentes públicos tivessem
sua capacidade de ação plenamente otimizada diante dessas ameaças.
No caso de uma escalada no conflito da Bolívia, a presença das Casas da
União fortaleceria o controle de fronteiras. Ao reunir, por exemplo,
Ministério da Justiça (Polícia Federal), Ministério da Defesa (FFAA) e
Ministério da Fazenda (Receita Federal), poder-se-ia compartilhar o
conhecimento e a experiência de cada uma das áreas de modo a
fortalecer a vigilância da fronteira e controlar o tráfico de todo tipo de
ilícito. Tais unidades não só teriam ganhos informacionais, como
também a eficácia e a eficiência de suas ações seriam ampliadas.
Missões conjuntas, por exemplo, teriam maiores chances de êxito.
Embora tenham diferentes atribuições e competências legais, a ação
conjunta e combinada fornece um alcance e uma sinergia para a ação
total que as unidades, isoladas, não teriam. Ademais, a experiência de
compartilhamento entre entes federados é também um protótipo para
preparar os Estados a um futuro aprofundamento da integração regional
por meio da Unasul. A cooperação dos Estados e dos entes subnacionais
facilitada pelas Casas de União conformariam um ambiente propício à
integração Sul-Americana.
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jan.
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O objetivo deste capítulo é tratar brevemente da relação entre
algumas variáveis de grande relevância para a compreensão dos
problemas políticos e estratégicos contemporâneos, especialmente a
problemática das fronteiras, e sua relação com a questão da integração
regional e da formação de blocos regionais. Ainda pretende-se abordar o
problema das transformações tecnológicas, especialmente a temática das
tecnologias e da infraestrutura de geração, distribuição e consumo de
energia. Pretende-se, também, abordar uma possível solução
institucional inovadora para tais temáticas: o projeto Casas de União.
A ideia de Casas de União é baseada no princípio da gestão
associada (Art. 241 da CF/88) de recursos pelas diferentes entidades e
esferas do Estado. As Casas de União são consórcios públicos entre
entes e órgãos da Federação, utilizando de infraestrutura compartilhada
de forma a economizar recursos e custeio. São apresentadas como uma
forma de propiciar o aumento da presença do Estado em regiões isoladas
e garantir maior efetividade às políticas públicas.
A integração regional e os processos de formação de blocos
regionais são uma variável central para este debate, posto que possuem
elevada capacidade de impactar as relações internacionais, assim como
as relações políticas, econômicas e sociais nos níveis regional, nacional
e subnacional. Nos últimos séculos surgiram novos padrões de
competição econômica e geopolítica que ampliaram a necessidade de
grandes mercados para sustentar a escala de produção industrial
moderna. Consolidaram-se grandes Estados Nacionais, de dimensões
continentais e muitas vezes multinacionais, com grandes populações e
significativos parques industriais, que acabaram por alterar
definitivamente os termos da competição interestatal internacional
(ARRIGHI, 1996; OLIVEIRA, 2012; MODELSKI; THOMPSON,
1996; MODELSKI, 2005; RASLER; THOMPSON, 1994).
Nas últimas décadas, a tendência à integração de mercados e
cadeias produtivas regionais, especialmente dentro dos blocos regionais
de poder ou econômicos , estabeleceu um novo ciclo de ampliação da
competição interestatal internacional. Os processos de formação de
blocos de poder têm sido acelerados pela integração da infraestrutura
(energia transportes e comunicações) e das instituições
(intergovernamentais e supranacionais), a construção de cadeias
produtivas interdependentes e mercados consumidores progressivamente
interconectados. Contudo, tudo indica que o aprofundamento da
integração no campo político-institucional e a concomitante construção
de uma política de defesa comum entre os Estados de um mesmo bloco
regional, tornaram-se críticos para assegurar algum grau de autonomia e
soberania a estes Estados. Principalmente considerando que os ciclos de
intensificação da competição internacional, especialmente entre as
grandes potências, têm se mostrado, ao longo dos últimos séculos, uma
variável central para compreender a instabilidade e a tendência à guerra
no sistema internacional. Nesse sentido, a formação de blocos regionais
de poder parece ser a única forma de reduzir desconfianças e rivalidades
regionais, enquanto amplia a autonomia destes mesmos Estados frente
às crescentes ameaças das grandes potências.
O problema das transformações e transições tecnológicas
apresenta-se como crítico, especialmente porque inclui a questão da
transição energética , ou seja, das perspectivas de mudanças na matriz
energética. As transformações tecnológicas e, em especial, as mudanças
na composição da matriz energética — incluindo as tecnologias de
geração, distribuição e consumo de energia, em última instância, a
capacidade de controlar a energia — apresentam grandes implicações no
mundo contemporâneo, impactando os diversos setores da sociedade
tanto de forma positiva quanto negativa. Isto porque mudanças nas
tecnologias de energia impactam desde os sistemas produtivos — e
portanto, a geração de emprego e renda — até a infraestrutura (de
energia, transportes e comunicações), passando pelos setores da
agricultura, comércio e serviços, afetando até mesmo as instituições, a
política e a guerra.
Importa destacar que historicamente, os Estados que acumularam
mais poder na Era Industrial e tornaram-se grandes potências, foram os
que conseguiram construir os maiores parques industriais e, também,
tornaram-se os maiores produtores e consumidores de energia do
mundo. Neste contexto, as transformações tecnológicas, em especial as
ligadas à transição energética, apresentam implicações relevantes para
compreendermos as principais crises no sistema internacional
contemporâneo, na medida em que afetam o equilíbrio de poder entre os
Estados nacionais, o que é especialmente crítico entre as grandes
potências.
Por sua vez, a problemática das fronteiras é abordada aqui
considerando a importância estratégica das faixas e “regiões de
fronteira” no mundo contemporâneo e, em especial, para o Brasil e sua
relação com os países sul-americanos. A relevância destas regiões
revela-se, principalmente, através do extenso e controverso debate sobre
o papel das regiões de fronteira no mundo contemporâneo. Muitas
fronteiras no mundo são áreas distantes dos grandes centros urbanos,
industriais e políticos; áreas de reduzida presença dos Estados e de
infraestrutura deficiente, onde a cidadania é frequentemente fragilizada.
Concomitantemente, assistimos o choque entre as forças
centrífugas e centrípetas da globalização, com resultados divergentes em
cada região: a regionalização e integração resultando no fortalecimento
de alguns Estados através da formação de blocos regionais e, ainda, o
enfraquecimento dos que não se integram a um bloco regional, muitas
vezes tornando-se objetos das disputas fratricidas entre as grandes
potências, sofrendo com a falência de governos e até mesmo a
balcanização e implosão de Estados, que são mergulhados no caos e na
fragmentação. Nesta polarização, de um lado estão as abordagens que
tratam as fronteiras como uma região que pode ser vetor para facilitar e
acelerar a integração regional; de outro, como uma região
intrinsecamente problemática. Assim, questões como o aumento da
presença das instituições estatais nas regiões de fronteira, assim como o
desenvolvimento dessas áreas (incluindo a construção da infraestrutura
da integração regional e de cadeias produtivas regionalmente
integradas), passam pela abordagem das regiões de fronteira enquanto
vetor para a integração regional.
Para o Brasil e a América do Sul este não é um debate secundário.
Ao pensarmos a integração regional em termos continentais,
considerando a América do Sul uma região-continente, mostra-se ímpar
considerar os desafios tecnológicos, produtivos, infraestruturais e
energéticos que enfrentamos hoje. Faz-se necessário considerar o
desafio da interiorização do desenvolvimento e da infraestrutura; da
construção de uma infraestrutura energética e logística mais eficiente e
sustentável, que viabilize e acelere a integração regional e o
desenvolvimento de regiões historicamente esquecidas pelos seus
respectivos governos. Nota-se que o enfrentamento do conjunto desses
desafios passa necessariamente pela identificação das regiões
fronteiriças como centrais para a integração regional.
Nesse contexto, quando pensamos, nessa grande região — a
América do Sul — identificamos inúmeras fronteiras que foram
consolidadas historicamente através de conflitos e guerras, deixando
marcas e rivalidades que hoje ainda dificultam ou a integração regional.
Ao longo dos últimos séculos, assistimos inúmeras disputas pela
delimitação das fronteiras sul-americanas, entre diferentes povos e
países, entre povos originários e colonizadores, entre Estados
consolidados e povos sem Estado. Os colonizadores portugueses e
espanhóis, muitas vezes, digladiaram-se para controlar regiões
estratégicas, especialmente as bacias hidrográficas, rios centrais ou áreas
de acesso aos grandes rios, que, historicamente, eram os vetores de
transporte de longo alcance pelo interior dos continentes. Controlar as
bacias hidrográficas significava controlar o acesso aos continentes e ao
escoamento de qualquer tipo de produto que fosse extraído ou produzido
no interior do continente.
Historicamente, as grandes disputas sul-americanas deram-se em
torno da Bacia Platina e da Bacia Amazônica. Enquanto a Bacia
Amazônica acabou sendo controlada, predominantemente, pelos
portugueses, a Bacia Platina, foco das tensões e disputas mais intensas,
ao menos até o séc. XIX, pode ser considerada o centro das disputas do
Cone Sul do continente. No séc. XX, a situação das disputas de
fronteira, no Cone Sul, se mantém relativamente estável, apesar de
algumas oscilações e períodos de maior tensão na região. As rivalidades
fronteiriças acabaram sendo gradativamente substituídas pelas
geopolíticas, especialmente disputas por influência entre Brasil e
Argentina na Bacia Platina. Comparativamente, na Amazônia, não
haviam grandes tensões ou disputas geoestratégicas tão intensas, ao
menos até o século XIX.
A partir dos anos 1960 e 1970, essa situação começa a se inverter,
à medida em que boa parte das atenções e das tensões que o Brasil passa
a considerar em termos de fronteira, voltam-se para a questão da
Amazônia e de suas fronteiras. Em grande medida, isso é fruto da
intensificação dos discursos de líderes das grandes potências em defesa
da internacionalização da Amazônia. Por outro lado, essa mudança foi
resultado, também, do fim das últimas grandes disputas pelo controle
dos rios e das bacias hidrográficas que compõem a grande Bacia Platina.
As disputas com o Paraguai foram solucionadas nos anos 1960, com a
assinatura da Ata das Cataratas (1966), que resolveu o litígio territorial
entre os dois países prevendo que a área contestada seria inundada sob a
represa de Itaipu. As tensões com a Argentina, em torno da questão do
uso dos recursos hídricos da Bacia do Paraná, acabaram solucionadas
através do Tratado Tripartite Itaipu-Corpus, assinado em 1979. Esses
processos acabaram por solucionar algumas das tensões com os
vizinhos, principalmente as ligadas às questões fronteiriças,
especificamente a questão do uso dos recursos hídricos transfronteiriços.
O fim destas tensões foi determinante para viabilizar a
reaproximação entre esses países, que hoje são parceiros estratégicos do
Brasil no MERCOSUL. Com o fim destas disputas, ocorre uma lenta e
gradativa melhoria nas relações do Brasil com a Argentina, que se
aprofundou ao longo dos anos 1980. O processo de distensionamento
das relações Brasil e Argentina se acelera ainda mais a partir da Guerra
das Malvinas (1982), apenas três anos após a assinatura do Tratado
Tripartite. A partir deste período assistimos, na prática, uma aliança
entre o Brasil e a Argentina, que permanece até hoje. Esta aliança
viabilizou as negociações de acordos econômicos nos anos 1980 e
posteriormente sustentou a criação do MERCOSUL. É interessante
notar como esses dois países que talvez fossem os maiores rivais dentro
da América do Sul, no âmbito geopolítico, passaram a cooperar e se
tornaram aliados ao acordarem sobre o compartilhamento de recursos
naturais estratégicos antes disputados (água). Obviamente, o apoio do
Brasil à Argentina na Guerra das Malvinas teve um peso significativo,
mesmo que tenha sido bastante discreto. A cooperação no âmbito
estratégico, com acordos na área nuclear e aeroespacial, apenas
consolidou a aliança nos anos 1980, que culmina, na formação do
MERCOSUL.
Concomitantemente, cresceu o receio brasileiro de que disputas
antigas, por exemplo, no Norte, especificamente em suas fronteiras,
fossem reavivadas pelas potências europeias, em meio à intensificação
do discurso pró-internacionalização da Amazônia. Vale lembrar que as
relações do Brasil com as potências europeias passaram por ciclos de
tensões e aproximações bastante significativos e intensos nos últimos
séculos, especialmente considerando-se as disputas fronteiriças entre
Brasil e Inglaterra e França, nas fronteiras da Amazônia brasileira com
as Guianas Inglesa e Francesa. Essas tensões nos anos 1960 e 1970 com
esses países podem ser consideradas descontínuas, mas marcadas por
momentos ou crises de grande tensão. É o caso da “Guerra da Lagosta”,
em que Brasil e França quase entraram em uma conflagração militar
devido à pesca ilegal francesa no litoral brasileiro.
A ameaça de uma guerra em duas frentes, marítima e terrestre,
com uma potência europeia, naquele contexto, mostrou-se um desafio
bastante complexo e possivelmente devastador. O papel dos discursos
dos líderes das potências europeias, como Inglaterra e França, na defesa
da internacionalização da Amazônia, nos anos 1960 e 1970, viria apenas
consolidar a região Amazônica como foco das preocupações dos
estrategistas brasileiros naquele período. Desde então, notamos uma
clara mudança na percepção de ameaça principal por parte do Brasil. O
país começava a superar a percepção de que a principal ameaça poderia
vir dos países vizinhos, para consolidar a percepção de que o maior
perigo à integridade territorial e à sobrevivência do Estado brasileiro,
era a possibilidade de uma invasão ou confrontação militar com
potências extrarregionais.
Essa mudança no foco das preocupações brasileiras se consolida
através da busca de soluções inovadoras para tais ameaças. Naquele
contexto, ocorreu uma intensificação na busca pela solução de
controvérsias com os países vizinhos, assim como pela assinatura de
tratados de cooperação bilateral e multilateral, que culminou com as
primeiras iniciativas contemporâneas de integração regional através da
criação de novas organizações. Dentre essas iniciativas, destacam-se,
especialmente, o Tratado de Cooperação Amazônica (1978) e a
aproximação com a Argentina, incluindo a série de tratados que dariam
origem ao MERCOSUL. O estabelecimento de acordos de cooperação
nuclear e espacial com a Argentina, destaca-se naquele contexto, por
estabelecer a estratégia de construção de um bloco regional como meio
central para enfrentar a ameaça de potências extrarregionais.
Além disso, esta mudança na percepção de ameaça foi central
para impulsionar o desenvolvimento inicial de uma indústria voltada
para a produção de tecnologia estratégica; a indústria de defesa,
tecnologias estratégicas no âmbito das telecomunicações (incluindo a
fabricação de fibra ótica, equipamentos eletrônicos e satélites), assim
como o desenvolvimento inicial de uma indústria de informática
nacional, todos meios necessários para dotar o país de capacidade para
se defender no caso de um confronto com uma grande potência.
Também foi naquele contexto que se fortaleceu a estratégia de
desenvolvimento das faixas de fronteira do país, através do aumento da
presença do Estado nestas regiões, o que foi pensado através de diversas
iniciativas: desde a criação de novas unidades militares nas faixas de
fronteira, das quais se destacam as do Projeto Calha Norte (1985),
passando pela construção de infraestrutura física (transportes, energia e
comunicações) ligando os grandes centros econômicos do país até as
zonas fronteiriças, até a ampliação de serviços públicos básicos, como
saúde e educação. No que tange à educação, destacaram-se as iniciativas
de interiorização das instituições federais de ensino superior, com a
criação de novas Universidades Federais nas regiões de fronteira, como
os casos das que foram criadas nos estados fronteiriços da Amazônia: no
Acre (1974), em Rondônia (1982), Amapá (1986) e Roraima (1989).
Entretanto, grande parte dessas iniciativas acabaram sendo
abandonadas ou significativamente esvaziadas nos anos 1990, quando a
hegemonia do neoliberalismo apregoava que o Estado não deveria mais
atuar como indutor do desenvolvimento, pois partia da hipótese de que
as forças de mercado o fariam. O resultado foi uma década de
progressivo abandono das regiões de fronteira, apesar do sucesso
relativo da integração regional, que deixou de ser estratégica para se
limitar à integração meramente comercial (BANDEIRA, 2002;
LOUREIRO, 2007, VIZENTINI, 2005). Somente ao fim de uma década,
esboçaram-se as primeiras reações significativas àquela lógica, como a
criação da IIRSA, a Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional
Sul-Americana, em 2000. Embora tivesse como objetivo coordenar e
integrar centenas de projetos de construção de infraestrutura entre os
países sul-americanos, em sua primeira versão, a IIRSA ainda era muito
fortemente influenciada pela lógica do mercado, típica dos anos 1990.
Apenas com a incorporação da IIRSA ao COSIPLAN da
UNASUL , esta realidade começou a ser alterada, e os projetos passaram
a ser coordenados a partir das necessidades político-estratégicas dos
países sul-americanos. Como disposto no estatuto do COSIPLAN:
No marco do COSIPLAN, será dada prioridade ao
desenvolvimento interno da região, com o fortalecimento
do vínculo existente entre os países membros. O conceito
dos EIDs foi ampliado, de forma a privilegiar o
desenvolvimento sustentável e a atuar na redução das
assimetrias existentes na região. Assim sendo, a
concepção dos projetos do COSIPLAN deverá levar em
conta a contribuição para o desenvolvimento endógeno
regional e para a melhoria das condições de vida das
populações existentes nas áreas de influência dos
empreendimentos (COSIPLAN, 2011, p. 3).
Apesar dessa primeira mudança ser significativa, o volume dos
recursos destinados aos projetos da integração infraestrutural sulamericana ainda são muito reduzidos. Especialmente quando se
considera a dimensão continental dos desafios para a construção da
infraestrutura da integração regional e para a interiorização do
desenvolvimento na América do Sul.
Como pode-se observar através do Mapa 1 da América do Sul à
noite, que evidencia a infraestrutura energética do continente, fica claro
que a integração está diretamente ligada à questão do desenvolvimento
das regiões de fronteira. Destaca-se não apenas o problema da
urbanização desigual, da distribuição desigual das cidades e da malha
urbana, mas de indicadores básicos de desenvolvimento, como o acesso
à energia elétrica. A concentração populacional e industrial se dá,
majoritariamente, nas regiões próximas ao litoral, tanto do lado do
Pacífico como do lado do Atlântico, com pequenas exceções de cidades
industriais no interior do continente. Em grandes porções do interior do
continente, pode-se visualizar a quantidade reduzida de cidades e zonas
industriais. Manaus é uma das poucas cidades que pode-se identificar
com facilidade no centro da Amazônia. Igualmente, são poucas as
cidades bolivianas, como La Paz, que podem ser identificadas com
facilidade. Concomitantemente, é possível identificar grandes áreas do
interior da Bolívia e do norte do Paraguai, assim como vastas porções
amazônicas do Brasil, do Peru, da Bolívia, Colômbia e Venezuela, onde
a infraestrutura básica de energia é insignificante ou inexistente.
Se considerarmos que, na atualidade, a energia moderna
(eletricidade e combustíveis) tornou-se fundamental para o
desenvolvimento de qualquer setor da economia (especialmente da
indústria) e para a prestação de serviços públicos básicos, isso significa
que vastas regiões do interior do continente encontram-se hoje, não
apenas privadas de desenvolvimento, mas desconectadas do mundo
moderno. Isto porque sem eletricidade não temos como oferecer
serviços públicos básicos de qualidade, desde o saneamento básico, até a
educação e a saúde; um Posto de Saúde moderno simplesmente não
funciona, pois não é possível manter vacinas refrigeradas; não é possível
ligar computadores, nem viabilizar o acesso à internet para as
populações destas áreas; em diversas regiões do interior da Amazônia, a
ausência de infraestrutura adequada de energia elétrica inviabiliza até
mesmo procedimentos básicos de segurança alimentar, como o
processamento e congelamento de alimentos.1 O próprio tratamento de
água em larga escala, dependemos do uso da energia elétrica para tratar
e bombear a água encanada. Por isso a disponibilidade de água tratada
per capita em grandes partes do interior da Amazônia mostra-se menor
do que a da Arábia Saudita.
Importa ressaltar que uma grande quantidade de estudos destaca a
elevada correlação entre consumo de energia e indicadores de
desenvolvimento, indicadores sociais e de qualidade de vida
(OLIVEIRA, 2012): desde a renda per capita (CIMA, 2004, p. 110-11) e
índices compostos como o IDH1 (GOLDEMBERG, 1998;
GOLDEMBERG; LUCON, 1998; CIMA, 2004, p. 28-30, 109) até
indicadores sociais como as taxas de analfabetismo, mortalidade
infantil, expectativa de vida ao nascer e fertilidade (GOLDEMBERG,
1998, p. 7-15). Estas correlações entre energia e desenvolvimento
levaram a Agência Internacional de Energia a propor a análise do
desenvolvimento dos países utilizando-se um “Índice de
Desenvolvimento Energético” (IEA, 2010). De acordo com o IDE, os
países mais ricos do mundo, membros da OCDE, dispõem de 100% de
acesso à eletricidade para suas populações. Em contrapartida, os 50
países mais pobres do mundo (classificados pelo PNUD como
subdesenvolvidos pela baixa renda per capita), possuem uma média de
apenas 20% de acesso à eletricidade entre suas respectivas populações,
1
Estes processos são extremamente úteis para assegurar a segurança alimentar em
regiões que dependem, muitas vezes, da pesca de peixes cuja disponibilidade
varia enormemente ao longo das estações do ano, em função das grandes
oscilações do clima e do fluxo dos rios.
dos quais 46 países apresentam mais de 50% da população sem
eletricidade e 38 países tem mais de 80% sem acesso à energia elétrica
(UNDP; WHO, 2009, p. 13-14).
A disponibilidade de energia elétrica abundante e barata é, neste
contexto, vital para viabilizar o desenvolvimento de atividades
industriais, que vão desde a industrialização de produtos primários
típicos de determinada região até a produção de bens intensivos em alta
tecnologia. As implicações para o Brasil, assim como para a América do
Sul e América Latina são significativas: infelizmente, a realidade de
grande parte das fronteiras brasileiras com seus vizinhos sul-americanos
é de profundas deficiências ou mesmo a completa ausência de
infraestruturas críticas essenciais, como saneamento básico, energia
elétrica e de comunicação. Ao todo o Brasil tem mais de 15 mil
quilômetros de fronteiras, sendo que temos 588 municípios localizados
em 11 estados diferentes, especificamente na faixa de fronteira (de 150
quilômetros a partir da linha de fronteira).
Nota-se no Mapa 2 que, na faixa de fronteira, a maior parte das
cidades e aglomerações urbanas estão concentradas próximas às
fronteiras do Brasil na Região Sul. Essa é a região fronteiriça mais
desenvolvida e integrada aos países vizinhos, onde destacam-se
fronteiras
com países
membros-fundadores
do Mercosul.
Comparativamente, rumo ano norte, na região Centro-Oeste, nota-se que
a malha urbana vai tornando-se progressivamente mais rarefeita. No
norte da Amazônia, temos uma densidade urbana ainda mais reduzida,
com o número de cidades próximas à faixa de fronteira tornando-se
perigosamente rarefeito. Consequentemente a infraestrutura que integra
estas cidades à malha urbana nacional é, em muitos casos, insignificante
ou até mesmo, inexistente.
Algumas dessas cidades de fronteira têm cidades gêmeas, o que
se sobressai também nas fronteiras com os países membros-fundadores
do Mercosul, onde temos várias cidades gêmeas, algumas das quais
parcialmente ou totalmente conurbadas. Essas regiões conurbadas estão
entre as mais estratégicas do ponto de vista do aprofundamento da
integração regional; muitas vezes, as cidades de fronteira são separadas
apenas por ruas ou pontes sobre rios. Estas são fronteiras extremamente
porosas; na prática, temos cidades funcionando como efetivas áreas de
livre circulação de pessoas e de livre comércio no nível local. Os
moradores dessas cidades gêmeas muitas vezes trabalham ou estudam
em um lado da fronteira e são residentes no outro, fazendo compras e
utilizando serviços públicos dos dois lados da fronteira. Apesar de todas
as deficiências de infraestrutura, os residentes dessas regiões muitas
vezes vivenciam a integração regional no dia a dia como algo real e
consolidado. São áreas críticas para a ampliação da infraestrutura da
integração regional, para o aprofundamento do turismo e da livre
circulação de pessoas, e, especialmente, para a consolidação de cadeias
produtivas integradas, com capacidade para gerar emprego e renda de
ambos os lados da fronteira.
O Brasil tem ao todo 15.179 km de fronteiras, sendo que as
maiores fronteiras, algumas das quais consideradas as mais críticas,
estão ligadas à Amazônia sul-americana, onde estão 11 mil km das
fronteiras brasileiras. Nossa maior fronteira, a Brasil-Bolívia, tem 3,4
mil km e é uma fronteira vital para o Brasil e para a Integração SulAmericana (SEBBEN, 2010; 2014).
A título de comparação, 3 mil quilômetros de comprimento
equivale à fronteira dos Estados Unidos com o México. Contudo, apesar
de os Estados Unidos serem a maior potência militar e econômica do
mundo, estes têm tido algumas dificuldades para controlar efetivamente
esta fronteira com o México, mesmo sendo formada por vastos desertos
e rios com perigosas corredeiras; é uma fronteira extremamente
militarizada, com uma verdadeira muralha de paredes, muros, sensores,
câmeras eletrônicas, vigilância via satélite vigiando em toda a região e
uma elevada densidade de diferentes tipos de forças policiais dos dois
lados da fronteira.
Em comparação, a fronteira dos Estados Unidos com o Canadá
que tem mais de 6,4 mil km contínuos, equivalendo à soma das
fronteiras do Brasil com a Bolívia, o Peru e a Guiana Francesa.
Somando-se a fronteira do Canadá com o Alasca temos mais 2,4 mil km,
quase o tamanho da fronteira BrasilVenezuela (2,2 mil km). Enquanto
a fronteira EUA-México tem 3.141km, a soma das fronteiras
descontínuas dos EUA com o Canadá totalizam 8.891km. Apesar disso,
a fronteira dos Estados Unidos com o Canadá não é militarizada, não
apresenta muros, nem alta densidade de forças policiais, posto que não é
considerada um problema de segurança para os Estados Unidos: não
apresenta problemas de tráfico de drogas e armas do Canadá para os
Estados Unidos, nem fluxos de imigrantes ilegais canadenses.
Estes são alguns dos indícios de que o tamanho das fronteiras não
é necessariamente fonte de problemas, e que a insegurança advém de
outros fatores. Essa é uma constatação importante, pois a economia
canadense é extremamente integrada à economia estadunidense: 90% do
comércio do Canadá é com os Estados Unidos, as cadeias produtivas
dos dois países são altamente integradas, assim como suas
infraestruturas logística e energética. O Canadá é o maior fornecedor de
energia para os EUA, somando-se combustíveis, petróleo, gás e
eletricidade. A migração predominante é no sentido inverso, pois os
americanos migram mais para o Canadá do que os canadenses para os
EUA. Isto ocorre porque as condições de vida são melhores no Canadá,
os indicadores sociais são melhores, os índices de violência são
menores, o sistema de previdência pública e os serviços públicos básicos
(saúde e educação), são muitas vezes melhores do que os similares nos
EUA, e, até mesmo o consumo de energia per capita no Canadá é
superior ao dos EUA.
Este é um ponto crítico, pois demonstra duas estratégias
diferentes que os EUA adotaram ao longo do século XX para suas
fronteiras. A estratégia foi de integração com o Canadá e fechamento da
fronteira com o México, visto como um risco ou ameaça histórica.
Enquanto a integração com o Canadá vem se aprofundando ao longo do
século XX, e os EUA aparecem como os maiores investidores no país
desde a II Guerra Mundial, a estratégia para o México foi de integração
econômica mínima, adotando-se uma política de isolamento e
recrudescimento da fronteira, percebida historicamente como fonte de
problemas. O resultado destas duas estratégias é bastante claro: a
fronteira com o México é percebida como um problema geopolítico e
fonte de insegurança, enquanto a fronteira com o Canadá é cada vez
mais aberta e integrada.
Esta comparação é relevante, pois apresenta implicações bastante
complexas para a Grande Estratégia Brasileira e, especificamente para a
Política Externa brasileira para a América do Sul e para a Integração
Regional sul-americana. A sociedade brasileira e os tomadores de
decisão ainda não têm uma visão clara sobre o perfil de entorno
estratégico que queremos ter, nem sobre como trataremos nossas
fronteiras e nossos vizinhos. Ainda não é consensual a importância da
integração regional sul-americana, nem a disposição do Brasil para arcar
com seus custos no presente momento. Afinal, que perfil de fronteiras o
Brasil pretende constituir nas próximas décadas?
Se considerarmos as projeções do Goldman Sachs (O’NEILL,
2001; 2012), o Brasil será a 4ª maior economia do mundo até 2050.
Entre 2040 e 2050, o país estará disputando com o Japão o posto de 4ª
ou 5ª maior economia do mundo. Assim, considerando um cenário para
2050, por exemplo, podemos imaginar basicamente dois tipos de
fronteiras, dependendo dos rumos da Integração Regional SulAmericana. Caso a integração regional não tenha prioridade, corremos o
sério risco de crescer desconectados dos países vizinhos; de chegarmos
em 2050 como uma espécie de “ilha de riqueza” cercada de Estados
pobres e desiguais ou países com grandes e problemáticos bolsões de
pobreza. Neste cenário, esses países tornar-se-ão progressivamente
instáveis, podendo se tornar fontes de todo tipo de insegurança para o
Brasil.
Os riscos tornam-se elevados considerando a instabilidade
internacional e a competição inter-regional, tendo em vista que grandes
potências extrarregionais poderão explorar a pobreza e as desigualdades
dos nossos vizinhos para dividir e desestabilizar toda a região, com
impactos seriamente negativos para o Brasil – o risco que representará
uma guerra civil em um ou mais países vizinhos, com o surgimento de
facções de insurgentes armados ou terroristas financiados e armados por
potências extrarregionais é evidenciado por Sebben (2009; 2010; 2014).
Se hoje tal cenário se mostra “altamente” indesejável, dentro de poucas
décadas suas consequências poderiam inviabilizar definitivamente as
perspectivas de integração regional e de uma inserção internacional mais
soberana e autônoma do Brasil e da América do Sul no cenário
internacional.
No cenário inverso, o Brasil poderá priorizar a integração
regional nas próximas décadas, irá ver seus vizinhos como aliados, arcar
com os custos da integração da infraestrutura, de cadeias produtiva e
comercial que favoreça esses vizinhos. Neste cenário o Brasil poderá
integrar progressivamente esses países a sua economia, suas cadeias
produtivas; o crescimento brasileiro poderá favorecer a expansão do
mercado de trabalho, através da geração de emprego e renda e,
subsequentemente, ampliar o mercado consumidor dos nossos vizinhos.
Esta estratégia, apesar de representar custos no curto prazo, tem o
benefício de incalculáveis retornos no longo prazo, posto que a melhoria
das condições de vida e do poder aquisitivo dos países sul-americanos
significará ganhos para todos, inclusive para o Brasil.
Destarte, o Brasil enfrenta hoje um problema prático para
resolver no curto prazo, na medida em que temos fronteiras onde a
presença do Estado é bastante reduzida, a infraestrutura é insuficiente e
a integração com os vizinhos é insignificante. São fronteiras que
mostram-se absolutamente porosas, muitas das quais estão se tornando,
lentamente, fontes de problemas e insegurança. É inviável que a
militarização dessas fronteiras, por si só, resolva algum problema de
longo prazo.
Nas nossas fronteiras do Centro-Oeste e da Amazônia, muitas
vezes, os marcos de fronteiras estão dentro de vilas ou pequenas
aglomerações urbanas, ou dentro de propriedades rurais em que o
proprietário é dono de terras de ambos os lados. Neste contexto destacase que o Brasil tem tido dificuldades reais para controlar, por exemplo,
até mesmo o fluxo de gado nas suas fronteiras com a Bolívia, ao longo
das últimas décadas. A solução para controlar a febre aftosa,
inicialmente adotada pela Secretaria da Agricultura e Pecuária do Mato
Grosso, e hoje adotada pelo MAPA, Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento, foi de vacinar gratuitamente o gato boliviano.
Vacinamos o gado boliviano para controlar a febre aftosa do lado
brasileiro da fronteira, pois o gado transita o tempo todo entre os
dois lados. Se não conseguimos controlar o fluxo de gado com países
vizinhos, é possível imaginar o quão catastrófico podem vir a ser os
efeitos de uma possivelmente longa, sangrenta e fratricida guerra civil
em um de nossos vizinhos.
A principal lição que podemos tirar da análise destes cenários é
que a estabilidade social, política e econômica dos nossos vizinhos
interessa, e muito, ao Brasil. No curto e médio prazos, tal estabilidade é
fundamental para evitar cenários de guerra civil ou de guerra entre dois
ou mais países vizinhos, que nos afetariam diretamente. No longo prazo,
é central para garantir a questão da estabilidade do continente sulamericano e as perspectivas de crescimento e desenvolvimento
socioeconômico do Brasil e de toda a região, progressivamente mais
integrada.
O planejamento desta integração precisa levar em consideração as
diferenças regionais,pois enquanto em alguns lugares as fronteiras são
quase desabitadas, em outros, identificamos formações urbanas que
permitiram caracterizar essas fronteiras como zonas metropolitanas
fronteiriças. Considerando, por exemplo, a região da tríplice fronteira
Foz de IguaçuCiudad Del EstePorto Iguaçu, que tem quase 800 mil
habitantes, mais as cidades próximas, num raio de 150 km, pode ser
considerada uma zona metropolitana em formação, com mais de 1
milhão de habitantes. A tríplice fronteira conta com a maior ponte entre
Brasil e Paraguai, a Ponte da Amizade, além de três aeroportos
internacionais. Nela também está localizada a maior hidrelétrica do
mundo; a primeira hidrelétrica binacional e marco símbolo da integração
energética regional, assim como um dos maiores polos turísticos do
Brasil: a Hidrelétrica de Itaipu, em Foz do Iguaçu. Essa região possui
um potencial enorme de desenvolvimento, está localizada no centro da
Bacia do Paraná e no centro do Aquífero Guarani – se os cálculos
estiverem certos a respeito do Aquífero, não é só um dos maiores do
mundo em volume de água potável, mas também pode ser uma das
maiores reservas mundiais de deutério2. Contudo, mesmo com toda a
infraestrutura de pontes, aeroportos, hidrelétricas e portos secos, existe
2
O deutério é considerado um dos mais prováveis combustíveis para viabilizar,
no futuro, a fusão nuclear, caso esta se torne técnica e economicamente viável.
uma imensa demanda reprimida por outras formas de infraestrutura; de
portos, canais e eclusas, passando pelo saneamento básico, o transporte
público, a habitação, até serviços públicos federais de saúde e educação.
Só muito recentemente, em 2010, foi instalada a primeira Universidade
Federal nessa região3. Também verifica-se grande demanda por novos
hospitais na região, na medida em que, muitas vezes a população de um
lado atravessa a fronteira para ser atendida em hospitais do outro lado.
Observando retrospectivamente, nota-se o quão central foi até
agora a construção de infraestrutura para o desenvolvimento desta
região. Antes da construção da Ponte da Amizade, Foz do Iguaçu e
Ciudad del Leste, tinham cerca de 30 mil habitantes cada uma.
Cinquenta anos depois, a região tem 1 milhão de habitantes e é um polo
econômico e comercial significativo. Nesse sentido, a visão que
estabelecemos de uma fronteira mostra-se crítica: se vista como uma
barreira, vai continuar sendo uma fronteira tradicional; mas, se for
tratada como um vetor da integração regional pode tornar-se fonte de
riqueza e desenvolvimento. Para que isso se concretize, é necessário
também superar a visão tradicional e simplista da integração regional,
entendida apenas como integração comercial. É fundamental repensar a
integração regional e incorporar os desafios da integração na esfera da
política e das instituições; da integração da infraestrutura ou da
integração no campo da segurança e da defesa.
Portanto é pertinente destacar as peculiaridades dos desafios e
perspectivas de desenvolvimento e integração de cada região e subregião das nossas fronteiras. Afinal, se o acesso à energia elétrica está
praticamente resolvido na fronteira sul do país, na fronteira norte ainda é
um desafio a ser superado. Enquanto algumas regiões têm potencial para
sustentar atividades industriais complexas e centros de pesquisa,
gerando empregos qualificados para técnicos, engenheiros e
pesquisadores de todo tipo, outras regiões não possuem qualquer tipo de
infraestrutura; encontram-se sem acesso adequado a eletricidade, sem
internet e, portanto, sem bancos ou serviços públicos modernos; as
3
A Universidade Federal da Integração Latino-Americana, UNILA.
comunidades locais vivem em uma situação de absoluta subsistência,
muitas vezes dependendo essencialmente dos gastos locais do soldo da
tropa de um pelotão de fronteira.
No entanto, quando debatemos um macroprojeto de
desenvolvimento para a imensa região da Amazônia, é necessário
incorporar a diversidade de realidades das fronteiras e das zonas do
interior, muitas vezes isoladas de grandes metrópoles como Manaus ou
Belém. Para efetivamente implementar projetos de desenvolvimento e
integração regional que incorporem as fronteiras amazônicas, é
necessário, por exemplo, considerar a necessidade de constituir
mecanismos de desenvolvimento sustentável que favoreçam a
urbanização e industrialização, em sinergia com o combate ao
desflorestamento e desmatamento predatórios. Por isso, compreender as
causas do desmatamento pode se mostrar central para debater as
soluções de desenvolvimento mais sustentáveis para cada região da
Amazônia. Por exemplo, se considerarmos os dados das últimas
décadas, podemos verificar que a construção de cidades, estradas,
hidrelétricas e atividades de mineração e indústria, somadas,
corresponderam a apenas 0,8% das causas de desmatamento. Em
contrapartida, cerca de 75% das terras já desmatadas da Amazônia são
utilizadas para diferentes formas de pecuária, agricultura (comercial e de
subsistência) ou agropecuária (TERRACLASS, 2011). Portanto, para
que atividades como a agropecuária extensiva e o extrativismo
madeireiro tornem-se economicamente secundárias nesta região, é
fundamental priorizar projetos urbanos e industriais, que concentram os
impactos ambientais em uma região geograficamente reduzida e de mais
fácil controle.
Destarte,
é
necessário
consolidar
alternativas
de
desenvolvimento, para que a população local não precise atuar em
atividades ilegais, como o desmatamento. Mesmo no setor da
agropecuária e silvicultura pode-se adotar medidas simples, como
priorizar projetos para o financiamento da produção de culturas vegetais
típicas da Amazônia em vez de culturas agrícolas exóticas. É possível
financiar projetos de reflorestamento com silvicultura de plantas típicas
amazônicas, de elevada produtividade de alimentos, biocombustíveis ou
outras matérias-primas – a produção de látex, castanhas, cupuaçu,
guaraná e cacau; até palmáceas de alta produtividade para o setor
alimentício, de cosméticos e de biocombustíveis, como o açaí, o babaçu
e a macaúba. A macaúba, por exemplo, produz cerca de 10 vezes mais
óleo por hectare/ano do que a soja, podendo sustentar vastas regiões
produtoras de biocombustíveis de elevada produtividade.
Também é necessário viabilizar meios de transporte de baixo
custo para tornar tais projetos economicamente sustentáveis. Nesse
sentido, a região amazônica já conta com a maior rede de rios
navegáveis do país, muitos dos quais podem tornar-se navegáveis a
baixos custos, com projetos de eclusas, canais, ou hidrelétricas com
eclusas, que podem viabilizar a navegação plena destes rios a custos
bastante reduzidos. Temos projetos para a construção de novas
hidrelétricas binacionais; por exemplo na fronteira Brasil-Bolívia, uma
hidrelétrica com eclusa pode viabilizar a navegação do Madeira desde a
Bolívia até o Amazonas e, portanto, dar à Bolívia o acesso ao Atlântico
através do meio de transporte mais barato que existe, o hidroviário.
Devido a redução dos custos logísticos, as hidrovias têm um
grande potencial para viabilizar o desenvolvimento local. Por isso, o
transporte hidroviário também se mostra basilar para reduzir os custos
da integração regional, consolidando a integração de cadeias produtivas
e reduzindo os custos logísticos, econômicos e ambientais do comércio e
transporte de pessoas. Mais precisamente, as hidrovias podem ser
essenciais para tornar possível a integração de cadeias produtivas
complexas, desde a agroindústria até setores intensivos em tecnologia.
Tais setores, mostram-se fundamentais para que o Brasil e a América do
Sul possam enfrentar uma transição tecnológica energética profunda,
que provavelmente afetará não apenas o setor energético, mas os
transportes e a indústria.
É importante, também, permitir a geração de emprego e renda de
maior qualidade nestas regiões, o que só será assegurado ao agregar
valor aos produtos locais, industrializando-os na região em que são
produzidos. Hoje, produtos como a castanha-do-pará e o guaraná em
estado bruto têm um valor médio de mercado situado em torno de 20 a
25 vezes o da soja. Quando industrializados, o valor destes produtos
pode ser multiplicado dezenas de vezes, no setor alimentício, ou até uma
centena de vezes, nas indústrias de cosméticos e farmacêutica. Contudo,
para industrializar esses produtos na Amazônia, é necessário dispor de
meios de transporte de baixo custo e de energia abundante e barata.
Novamente, o uso combinado de meios de transporte e fontes de energia
renováveis pode ser determinante para assegurar a sustentabilidade
ambiental e econômica de iniciativas desta natureza. O uso combinado
de hidrovias como meio de transporte principal, e de hidroeletricidade e
biomassa (bioeletricidade) como fontes de energia primária para as
indústrias pode viabilizar cadeias produtivas mais eficientes e
sustentáveis, que agregam maior valor à produção e geram empregos e
renda na região.
Concomitantemente, as mesmas hidrovias que podem ser
determinantes para o desenvolvimento mais sustentável da Amazônia,
incluindo suas regiões de fronteira, podem ser considerados vetores
essenciais para a integração regional. A perspectiva de integrar, a partir
das grandes hidrovias da América do Sul, as economias desses países
aparece como uma oportunidade única, talvez, na nossa história: a
integração de toda a América do Sul, levando desenvolvimento
sustentável para o interior do continente, ou seja, justamente para as
regiões mais pobres da América do Sul. É possível vislumbrar a
perspectiva de se agregar o máximo possível de valor aos produtos
amazônicos na própria região onde o produto é produzido ou extraído.
Dentre os exemplos mais interessantes, pode-se citar a cadeia
produtiva do alumínio4. O alumínio, produzido da bauxita, hoje é
industrializado no Brasil, mas, por décadas, exportou-se a bauxita em
estado bruto. Foi a construção de complexos hidrelétricos como o de
Tucuruí, que tornaram viável todo um complexo de polos
eletrometalúrgicos da indústria do alumínio na Amazônia Oriental.
Contudo, o país não chegou a completar as cadeias produtivas ligadas a
estes polos eletrometalúrgicos de alumínio e, hoje a maior parte das
ligas de alumínio exportadas são de média tecnologia. Entretanto,
existem inúmeras indústrias modernas que precisam de grandes
quantidades de alumínio: desde a indústria naval, onde a produção de
catamarãs de alta velocidade, hovercrafts e lanchas depende de
alumínio, até a indústria aeroespacial, que consome alumínio de alta
tecnologia. A construção de um polo aeroespacial capaz de produzir e
consumir ligas de alumínio de alta tecnologia e elevada resistência, é
apenas um exemplo de estrutura que poderia se beneficiar da produção
local desses insumos, posto que eles podem ser utilizados desde a
fabricação de aviões civis, hidroaviões, até aviões militares e
instrumentos espaciais, passando pela indústria automobilística e a
indústria de bens de produção energética, como a fabricação de turbinas
eólicas; todas utilizam ligas de alumínio de alta resistência.
4
Importa destacar que a indústria eletrometalúrgica do alumínio pode ser
considerada central para outras indústrias desenvolvidas na Terceira Revolução
Industrial, especialmente a aeroespacial. O processo de produção de alumínio
depende basicamente de energia elétrica abundante e barata, necessária para
produzir o derretimento das ligas de alumínio, processo que corresponde a cerca
de 1/3 do custo da produção deste metal. Neste sentido é interessante notar que o
uso da eletricidade como insumo energético na metalurgia representa uma
transformação tecnológica substancial quando comparada à metalurgia e a
siderurgia tradicionais, que durante milhares de anos utilizaram basicamente a
queima de combustíveis sólidos para produzir a energia necessária para derreter
e moldar as ligas metálicas.
Destaca-se que essas cadeias produtivas podem ser facilmente
integradas e compartilhadas com os países vizinhos da América do Sul,
caso se consolide a construção de redes de hidrovias e outros modais,
além de outras redes de energia e comunicações regionalmente
integradas. Neste sentido, podemos ter, no futuro, várias modalidades de
indústrias
integradas
regionalmente,
que
viabilizem
um
desenvolvimento menos desigual na América do Sul, com maior geração
de emprego e renda, especialmente através de empregos mais
qualificados no interior do continente. Para consolidar esses projetos,
será necessário avançar na cooperação técnica e no desenvolvimento
científico e tecnológico de setores críticos para a integração regional,
como a área de comunicações. Em sinergia com a infraestrutura de
energia, a infraestrutura de comunicações é essencial, não apenas para
conectar as redes de Internet e telecomunicações dos países sulamericanos sem a necessidade de intermediários extrarregionais 5, mas,
também, para viabilizar que o interior do continente, incluindo as
regiões de fronteira, tenha acesso a troncos de fibra ótica de grande
velocidade.
A infraestrutura de comunicações pode ser considerada
determinante para a integração nacional (HERZ, 1987; 1994) e regional
(CEPIK; ARTURI, 2011), assim, como para a segurança nacional na Era
da Digitalização da Guerra (MARTINS, 2009), ou ainda para a
estruturação da política industrial de um país (CHANDLER, 2002;
CASTRO; SCHRÖDER, 2009; HERZ, 1996; 2003). Conclui-se que
estas redes podem ser utilizadas para acelerar sensivelmente os
processos de integração regional, dando sustentação para o processo de
criação e estruturação de novas instituições transnacionais,
intergovernamentais ou supranacionais (MANTOVANI, 2006). Pode-se
dizer, que, sinteticamente, essa modalidade de infraestrutura é
absolutamente básica para trazer as regiões mais pobres do país e do
continente para a “Era da Informação”.
5
Atualmente a infraestrutura de fibra ótica que liga o Brasil ao Peru ou ao
Equador, por exemplo, passa antes pelo Caribe, vai até a Flórida e volta pelo
litoral do Pacífico até esses países, ampliando os custos e aumentando a
insegurança destas comunicações.
Esta seria uma contribuição bastante significativa para consolidar
a cidadania em muitas das regiões de fronteira hoje abandonadas. Isto
porque a interiorização da infraestrutura de comunicações moderna é um
pré-requisito básico para levar serviços públicos essenciais: acesso a
cartórios, tabelionatos e ao Judiciário, ou a serviços bancários, à
educação a distância e a universalização do acesso à internet. Embora
nem sempre seja viável construir a infraestrutura de troncos de fibra
ótica de alta velocidade até as pequenas cidades e comunidades de
fronteira, esta infraestrutura se torna viável quando pensada como parte
de uma rede muito maior, voltada para a integração regional. Construir
troncos de fibra ótica integrando o continente do Atlântico ao Pacífico,
implica na construção de uma infraestrutura que vai, necessariamente,
passar pelas regiões de fronteira do interior. Assim, estas deixam de ser
regiões isoladas, para se tornarem centros, partes essenciais de um
processo de desenvolvimento integrado continental.
O desafio de incluir as regiões de fronteira e as regiões mais
pobres e isoladas do interior da América do Sul na Era da Informação,
passa pela necessidade de construção de outras formas de
infraestruturas estratégicas, como, por exemplo, centros de pesquisa e
universidades federais. Na última década, o Governo Brasileiro voltou a
criar novas universidades federais nas regiões de fronteira, como, por
exemplo, a UFGD, a UFFS, a UNIPAMPA, e a UNILA, a Universidade
Federal da Integração Latino-Americana. Este último caso destaca-se
pela localização na Tríplice Fronteira Brasil-Paraguai-Argentina, e por
ser um projeto voltado para assegurar o acesso de um grande
contingente de alunos dos países vizinhos da América do Sul e da
América Latina e Caribe.
Isoladamente, estas iniciativas podem parecer pequenas, mas em
conjunto e no longo prazo podem contribuir não apenas para a
segurança das nossas fronteiras do interior, mas para consolidar uma
integração regional pacífica, mais harmoniosa e menos desigual. É nesse
contexto que importa destacar a relevância de instituições regionais
como o MERCOSUL e a UNASUL, que podem aprofundar e
impulsionar a integração regional, colaborando para a interiorização do
desenvolvimento nas regiões em que este é mais crítico: as de fronteira.
Para isso, é necessário criar e operacionalizar novos mecanismos e
instituições capazes de viabilizar a cooperação nos diferentes níveis da
federação, e, ainda, entre os diferentes tipos de governos nacionais e
subnacionais, permitindo que a cidadania seja ampliada no nível local,
especialmente nas faixas de fronteira.
Dentre os mecanismos de engenharia institucional inovadores que
vêm sendo pensados e discutidos na atualidade, destaca-se o projeto das
Casas de União. O projeto mostra elevado potencial para complementar
e produzir sinergia entre os diferentes processos aqui debatidos, tanto
para a integração regional no nível interestatal quanto para a integração
local, nas faixas de fronteira. No nível interestatal, o papel das Casas de
União seria o de fomentar a cooperação técnica internacional e a
integração das burguesias nacionais a partir da contratação de empresas
sul-americanas no âmbito dos consórcios estabelecidos. Já no nível local
(regiões de fronteira), as Casas de União têm o potencial de manter a
soberania através da garantia da cidadania nessas regiões críticas. Se por
um lado é central o papel das organizações regionais, como a UNASUL
e MERCOSUL, também é essencial construir mecanismos
institucionalizados para lidar com problemas locais, especialmente nas
regiões fronteiriças, que precisam de políticas e instituições específicas.
O aprofundamento da integração regional dependerá da
capacidade do Brasil de arcar com seus custos. Por conseguinte, a
consolidação de uma liderança regional brasileira só será possível e
legítima se conseguirmos resolver problemas básicos de cidadania
dentro do nosso próprio território, especificamente, assegurar a
cidadania plena para todos os seus cidadãos, mesmo nas regiões de
fronteira mais isoladas. Estas demandas não são concorrentes nem uma
é pré-requisito temporal para a outra, pois, como foi discutido, é
necessário estabelecer uma estratégia abrangente, que produza sinergia
entre a interiorização do desenvolvimento e da cidadania até as nossas
fronteiras, com a integração regional e a consolidação de um bloco
regional sul-americano.
Considerando a dimensão continental desses desafios, pode
parecer difícil estabelecer uma estratégia operacionalizável para
transformar esses projetos em uma realidade palpável, que
concretamente leve mais cidadania para os rincões do Brasil e
corroborem, simultaneamente, a integração regional sul-americana.
Destarte, a proposta das Casas de União aqui debatida é mais do que um
mecanismo de operacionalização de cooperação para políticas públicas
nas faixas de fronteira; é uma estratégia de longo prazo, pensada para
que possamos superar nossos desafios internos em sinergia com as
perspectivas de construirmos uma integração regional, que seja,
progressivamente, mais segura e estável, e que assegure o
fortalecimento da cidadania também nos países vizinhos. É uma visão
de longo prazo para viabilizar a sinergia entre a estratégia voltada para
busca por soberania, democracia e cidadania e, simultaneamente, para
fazer frente ao continental desafio da integração regional com nossos
vizinhos, partindo da realidade de que ambas passam, necessariamente,
pelas nossas fronteiras.
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Estes anais procuraram oferecer ao leitor um panorama do estágio
inicial do debate acerca das Casas de União. Seus textos traduzem o
estado da arte do debate na ocasião, em que ainda tateávamos no escuro,
procurando conectar nossas diferentes experiências intelectuais e
administrativas com o tema em tela. É fácil compreender este momento
pela ligação, às vezes ainda precária, que as temáticas desenvolvidas e
as Casas de União guardam entre si.
Como se pode constatar, antes de pretender representar qualquer
tipo de panaceia — longe disso — as Casas de União procuram apenas
sistematizar e generalizar a experiência administrativa já existente.
Trata-se de uma proposta de inovação cautelosa perfeitamente
enquadrada dentro do marco legislativo e legal brasileiro.
O artigo do Cel. Clynson serve para mostrar o quanto, mesmo
com recursos escassos e atuando praticamente sozinho, o Exército faz
pela cidadania nas regiões de fronteira e, ao mesmo tempo, a pouca
adesão dos próprios órgãos federais frente ao apelo representado pelo
Pavilhão de Terceiros.
Evidencia-se a necessidade de mediações administrativas para
que os programas (eg. Bolsa Família) efetivamente cheguem aos confins
do Brasil ou às regiões de fronteira. Como referido, em muitos locais,
inexistem municípios ou, mesmo onde estes se fazem presentes, falta o
material humano e os recursos administrativos para a execução de ações
que permitam ao cidadão ter acesso aos programas da União.
Esta dimensão, de obter-se a necessária sinergia entre órgãos do
próprio Poder Público Federal para atuar em regiões de fronteira em
parceria com estados e municípios, fica evidente — e sua necessidade é
ricamente ilustrada — através da situação retratada nos artigos de
Graciela Pagliari e Rodrigo Cardoso. O mesmo pode ser dito acerca da
demanda por soluções multidimensionais que envolvem diferentes
órgãos e até governos.
Fernando e Lucas, de seu turno, ainda que partindo de
perspectivas diversas (defesa e energia), trazem a dimensão econômica e
produtiva: a possibilidade de constituir-se as Casas de União em uma
espécie de facilitador — incubadora, diriam alguns — de convênios e,
quando for o caso, consórcios públicos, encarregado de oferecer know
how e segurança jurídica para a construção desses mecanismos. Mais
que modernização administrativa, trata-se de uma nova interface;
relacionada à possibilidade de alavancar a produção e, com ela, a
geração de emprego e renda.
Importa que se entenda a importância destas tecnologias nãofísicas, de alternativas modestas, como a encarnada na proposta do
Casas de União. A despeito de seu aspecto despretensioso, soluções
incrementais como esta entram no âmago de questões axiais como é o
caso do Pacto Federativo, da Reforma Fiscal e Tributária, do
atendimento ao cidadão, da presença do Estado no território nacional.
Em suma, o artifício aplica-se a temas que vão desde a prestação de
serviços à cidadania, passando pelo processo produtivo, pelo
federalismo cooperativo, enfim, procura-se criar alternativas ad hoc para
a conciliação administrativa entre entes federados e uma dinâmica
informal para resolver dívidas de estados, sobretudo municípios com o
aumento — e não a redução —, da prestação de serviços e da promoção
da cidadania.
Neste sentido, apesar dos Seminários Casas de União
constituírem-se em uma experiência recente e estreitamente ligado ao
impulso juvenil dos acadêmicos de Relações Internacionais da UFRGS,
nós, os Organizadores deste volume, somos gratos a toda a influência
benfazeja, oriunda de elementos que constituíram o Brasil no passado e
que, temos certeza, graças a sua generosidade e amplitude de horizonte,
irão continuar — juntamente com as novas gerações — sendo
imprescindíveis ao Brasil no presente e futuro.
No curso destes anos, obteve-se avanços significativos. Contudo,
ainda estamos longe de termos elucidado completamente o problema.
Importa mencionar que, entre as regiões de fronteira e as zonas urbanas
— que será tema dos próximos anais —, conseguiu-se conectar as Casas
de União como parte integrante do processo de reforma administrativa.
Trata-se de uma resposta a ideia de propriedade pública não-estatal,
apresentada pelo então Ministro Bresser-Pereira em sua exposição ao
Senado em 1997. As Casas de União ajustam-se à ideia de uma esfera
pública não-estatal um elemento de emulação às parcerias entre o setor
público e o privado e a própria formação de um terceiro setor. A
ampliação do debate, igualmente, permitiu uma aproximação maior com
o estado da arte da reforma administrativa: as parcerias públicoprivadas, convênios e consórcios.
Hoje o debate está mais uniforme e objetivo do que é retratado no
âmbito desses anais. Entretanto, há ainda um longo caminho a ser
percorrido. É preciso estudar, discutir e sistematizar a já rica experiência
brasileira em convênios e consórcios. Segundo o Portal da
Transparência (2014), entre 1996 e 2014, foram celebrados 452.543
convênios pelo Governo Federal; ainda, segundo Caldas e Cherubine,
em 2013, já havia 637 consórcios públicos ativos no Brasil.1
Sem dúvida, todos gostariam de poder ter feito mais. Mas
procurou-se obter o possível deste processo coletivo e multifacetado
com experiências tão diversas como a suscitada pelos órgãos e entidades
que integram os Seminários Casas de União.
Esperamos, ainda, que estes anais, como os próximos, cumpram a
função de informar mais os brasileiros a respeito das realidades do
1
CALDAS, Eduardo de Lima; CHERUBINE, Marcela Belic. Condições de
Sustentabilidade dos Consórcios Intermunicipais. In: CHERUBINE, Marcela;
TREVAS, Vicente (orgs.). Consórcios públicos e as agendas do Estado
Brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013, p. 62.
Brasil — ainda hoje são poucos os que tem presente que os maiores
bolsões de miséria encontram-se nas regiões de fronteira.
Do mesmo modo, esperamos despertar a suscetibilidade entre
acadêmicos, professores e funcionários de carreira (tanto civis quanto
militares) sobre a importância da iniciativa e da atitude pró-ativa do
serviço público. Do papel tanto da inovação, do empreendedorismo,
quanto da importância em se pensar a inclusão e a participação social a
partir de uma perspectiva relacionada ao incremento do processo
produtivo.
Sem dúvida, as Casas de União traduzem tanto do ponto de vista
intelectual quanto material pluralidade e ecletismo. Mas, acima de tudo,
uma visão ecumênica que procura congregar sob as cores do Brasil
diferentes visões, perspectivas ou filiações partidárias.
Os Organizadores.
Clynson Silva de Oliveira é Doutor e coordenador da área de pesquisa
de especialização em Operações Militares da Escola de Comando e
Estado-Maior do Exército. Atualmente está nomeado pelo
Comandante do Exército para comandar o 3º Batalhão de Infantaria
de Selva em Barcelos-AM no biênio 2015-16.
Graciela De Conti Pagliari é professora de Relações Internacionais da
Universidade Federal de Santa Catarina. Possui graduação em
Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1994),
especialização em Integração e Mercosul (1999) e em Direito
Internacional (2001) e mestrado em Relações Internacionais (2004)
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorado em
Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (2009). É
autora do livro O Brasil e a Segurança na América do Sul (2009).
Rodrigo Bertoglio Cardoso é analista de Ciência e Tecnologia da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior
CAPES; possui graduação em Relações Internacionais pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestrado em
Ciência Política pela mesma instituição.
Fernando Dall'Onder Sebben é analista Legislativo do Senado Federal
e Doutorando em Estudos Estratégicos Internacionais no PPGEEIUFRGS. Possui mestrado em Ciência Política e bacharelado em
Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Membro associado ao Instituto Sul-Americano de Política e
Estratégia (ISAPE).
Lucas Kerr de Oliveira é professor adjunto da Universidade Federal da
Integração Latino-Americana (UNILA), onde atualmente exerce a
Coordenação do curso de Relações Internacionais e Integração.
Doutor em Ciência Política, com ênfase em Política Internacional, e
mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Graduação em Psicologia pela
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Pesquisador
colaborador no Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia
(ISAPE) e no Centro de Estudos Internacionais sobre Governo
(CEGOV).
Maria da Graça Hahn é procuradora da Fazenda Nacional, em
exercício na Escola da Advocacia-Geral da União de Santa Catarina
(EAGU/SC). É Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Possui PósGraduação em Política e Estratégia pela ADESG/RS, especialização
em Processos Regionais de Integração e Mercosul pela UFRGS e
Mestrado em Relações Internacionais pela mesma instituição.
José Miguel Quedi Martins é professor adjunto da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor em Ciência Política
pela mesma instituição. Possui mestrado em História pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e
especialização em Integração Regional e Mercosul pela UFRGS. É
pesquisador do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia
(ISAPE), do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais
(NERINT-UFRGS) e do Grupo de Trabalho de Políticas de Defesa,
Inteligência e Segurança do Centro Estudos Internacionais Sobre
Governo (CEGOV/UFRGS), com ênfase nos temas Integração
Regional, Conflitos Internacionais, Guerra Local e Digitalização.
O Lançamento dos Anais do I Seminário Casas de União: Políticas Públicas e Regiões de Fronteira
é um marco importante na reflexão sobre o pacto federativo, desenvolvimento e segurança no Brasil.
Realizado em setembro de 2013 na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o evento do qual
resultam estes anais discutiu a aplicação das Casas de União como política pública em regiões de fronteira
e apresentou a sua relevância em diversas frentes, como na economia de recursos dos estados, dos municípios
e da União; na redução da dívida de estados e municípios; na redução da litigiosidade; no controle de
fronteiras; na segurança energética; na segurança pública; no combate à fome e à miséria; na proteção à
indústria nacional e na possibilidade de reforço à segurança pública para eventos de grande porte, como as
Olimpíadas de 2016.
As Casas de União sintetizam uma proposta de políticas públicas para o planejamento, a
articulação e a orientação administrativa para a execução associativa de serviços públicos. As Casas de
União viabilizariam fisicamente a prestação desses serviços, possibilitando, ainda, a prevenção e eventual
resolução de litígios envolvendo as dívidas dos entes federados. Neste sentido, as Casas de União são uma
proposta de mediação entre os possíveis partícipes de consórcios públicos e convênios de cooperação. Com
elas oportuniza-se uma melhor prestação de serviços ao cidadão através da capilarização da administração
em seus diversos níveis (Federal, estadual, municipal), materializando, assim, o princípio do Federalismo
Cooperativo.
Marco A. Chaves Cepik
Diretor do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo (CEGOV/UFRGS)
PROMOÇÃO:
APOIO:
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I Seminário Casas de União