IV Seminário dos alunos do Programa de Pós-graduação em Lógica e Metafísica da
UFRJ
PROPOSTA DE COMUNICAÇÃO:
Título: A extensão filosófica do conceito dualista de acaso
Nome: Ana Maria Corrêa Moreira da Silva (Doutoranda PUC-RJ)
Resumo:
A pergunta sobre a existência do acaso, entendido como aquilo que é incausado
ou indeterminado, inquieta o pensamento filosófico desde as suas origens. Essa noção é de
cunho dualista. O acaso subjetivo aparece como essencialmente epistemológico, relacionado a
nosso conhecimento das causas de um fenômeno, podendo revelar-se provisório em relação a
alguns campos do saber humano. O acaso objetivo aparece como fundamentalmente
metafísico, mostrando-se como traço característico de alguns aspectos da realidade, de forma
independente de qualquer intervenção humana, bem como do acervo cognitivo de cada época.
Os acasos objetivo e subjetivo podem ainda ser relacionados com as noções de determinismo
e indeterminismo, que dizem respeito não apenas à presença ou ausência de um certo
mecanismo causal, como também à possibilidade ou impossibilidade de previsão do futuro, a
partir do conhecimento do passado. A fronteira entre ambos parece por vezes tênue, de forma
semelhante à fronteira que separa aquilo que sabemos daquilo que efetivamente ocorre.
Assim, pretendemos investigar a noção filosófica de acaso, em sua acepção dualista,
aplicando-a não apenas aos fenômenos físicos, mas também mentais, em busca de uma
melhor compreensão dos problemas da causalidade e da liberdade, que ainda permanecem
sem uma solução definitiva, no atual debate filosófico e científico.
A extensão filosófica do conceito dualista de acaso
Ana Maria Corrêa Moreira da Silva
A noção de acaso sempre despertou o interesse dos filósofos, diante da
constatação de que alguns acontecimentos parecem fortuitos, imprevisíveis ou mesmo
desnecessários. Os filósofos gregos que abordaram a ocorrência de uma aleatoriedade na
Natureza dividiam-se em dois grupos: para os atomistas Leucipo e Demócrito, existiria apenas
o acaso meramente subjetivo ou epistemológico, que se refere a eventos que não se podem
prever por ignorância de suas reais causas. Para eles, nada acontece aleatoriamente, mas sim
por alguma razão e por necessidade. Já Epicuro e Lucrécio consideravam que existe o acaso
objetivo ou verdadeiro, representado pela ausência de causas e pela negação de todo recurso a
antecedentes. Esse aspecto indeterminista da Natureza, representado por um desvio sem causa
dos átomos, permitiria a manutenção do livre-arbítrio (Citado por Bennett, 2003, p. 95-97).
Temos, assim, duas acepções para a noção de acaso, que se mantiveram ao longo
da história da filosofia: o acaso subjetivo, que apenas reflete a ignorância humana acerca das
reais causas determinantes da Natureza; e o acaso objetivo, que é intrínseco a algumas
estruturas ou fenômenos da Natureza, nas quais se constata a ocorrência de eventos
ontologicamente indeterminados ou governados por séries independentes ou não-causais
(ABBAGNANO, 2007, p. 11-13; LALANDE, 1993, p. 16-24). No entanto, à semelhança do
acaso objetivo, o acaso subjetivo também pode se apresentar como definitivo, caso se refira a
conjunções de causas cuja complexidade ou sensibilidade a condições iniciais seja inacessível
à apreensão do homem de modo absoluto. Além disso, talvez somente possamos afirmar com
certeza a existência de um acaso subjetivo, pois a extensão do acaso objetivo parece diminuir
na razão inversa da extensão de nosso conhecimento.
A idéia de que a natureza rege-se por um determinismo absoluto foi adotada por
Laplace, através da tese de que, se houver uma inteligência superior capaz de conhecer todas
as forças que animam a Natureza e o estado de todas as partes da qual ela seja composta, bem
como de analisar todos esses dados, essa inteligência poderia expressar o movimento dos
maiores corpos e dos menores átomos do universo, numa única fórmula, de modo que, para
ela, nada seria incerto – nem o passado, nem o futuro (LAPLACE, 1814, p. ii). De um modo
geral, se a Natureza é determinista, suas estruturas e fenômenos possuem causas
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determinantes que, se forem suficientemente conhecidas, permitem-nos descrevê-los, prevêlos e controlá-los completamente. Se a Natureza é indeterminista, suas estruturas e fenômenos
são objetivamente aleatórios, tendo um comportamento impossível de se descrever, prever e
controlar, pois causas idênticas e a repetição de estados iniciais geram efeitos diferentes dos
inicialmente observados, que são, assim, determinados de um modo totalmente fortuito.
Críticos do determinismo consideram que ele não é uma idéia a priori, sendo sua negação
igualmente concebível. A própria tese de que o determinismo, como uma evidência empírica,
pode ser verdadeiro já seria uma concessão a favor do indeterminismo (BARRET, 1964, p.
54, 56).
Uma possível interpretação do determinismo toma-o como a visão de que todos os
eventos, inclusive os mentais, são causados, isto é, governados por leis causais. Em
contraposição, o indeterminismo pode ser entendido como a visão de que há eventos que não
exigem eventos anteriores – o que, do ponto de vista das escolhas humanas, pode desembocar
na tese do livre-arbítrio. Afirmar que um evento é causado significa que ele está de tal modo
ligado a um outro evento precedente que, se este não ocorrer, aquele também não ocorrerá
(BLANSHARD, 1964, p. 20). Embora, em princípio, possamos associar determinismo e
indeterminismo com previsibilidade e imprevisibilidade, respectivamente, encontramos
imprevisibilidade também no determinismo, como na chamada teoria do caos determinista,
em que o sistema é determinado, mas imprevisível, por sua grande complexidade causal e
suscetibilidade às condições iniciais – caso em que pequenas causas podem produzir grandes
efeitos (GLEICK, 1989). Poincaré entende o acaso justamente como característica de um
acontecimento rigorosamente determinado, mas tal que uma diferença extremamente pequena
nas suas causas produz uma diferença considerável nos seus efeitos (Citado por LALANDE,
1999, p. 21).
Neste sentido, o acaso não deve ser identificado com a imprevisibilidade, pois,
embora não possamos prever com certeza se amanhã choverá, não afirmamos que o tempo
depende do acaso. Do mesmo modo, a causalidade não deve ser identificada com a
previsibilidade, pois o fato de um evento ser imprevisível não significa que ele não possua
causas, mas apenas que podemos não as conhecer de modo suficiente – o que nos remete ao
acaso na sua acepção subjetiva. Na medida em que o acaso subjetivo não exclui a causalidade,
mas apenas a desconhece, ele é compatível com o determinismo, ao passo que o acaso
objetivo, ao excluir a causalidade, pelo menos em princípio, é compatível com o
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indeterminismo. Ambos os acasos possuem a mesma incapacidade de descrever, prever ou
controlar a Natureza, só que por razões diversas.
Do ponto de vista filosófico, o problema da causalidade recebeu atenção especial
dos pensadores desde Aristóteles, que concedeu grande relevância metafísica à noção de
causa, classificando-a em quatro tipos: eficiente, formal, material e final (La Métaphysique,
Livro I, Cap. 3). Para ele, a noção de acaso seria compatível com a lei da causalidade,
aparecendo como uma desproporção ou desacordo entre a causa eficiente e a causa final. Ele
seria uma espécie de causa acidental que produz efeitos excepcionais ou acessórios que
revestem a aparência de finalidade; como um encontro acidental que se assemelha a um
encontro intencional (por exemplo, o credor que encontra por acaso o seu devedor); ou ainda
uma espécie de acidente tolerado pela ordem do mundo (La Physique, 197ª5, 12, 22). Neste
sentido, o acaso é o acidental, podendo ser visto como o acidente que é favorável ou
desfavorável a qualquer fim, sem que esse fim valha para qualquer coisa na sua produção. O
acaso ocorre quando procuramos uma intenção e só encontramos um mecanismo, como se
houvesse apenas causa eficiente, mas não final: como a seqüência totalmente mecânica das
causas que detêm a roleta num determinado número e nos faz ganhar; ou a força totalmente
mecânica do vento que atira uma telha contra a nossa cabeça (LALANDE, 1999, p. 21-23).
Essa definição de acaso assemelha-se à de Cournot, que o vê como característica
de um acontecimento ocorrido pela combinação ou encontro de fenômenos que pertencem a
séries independentes na ordem da causalidade. Cournot fala do acaso como o concurso de dois
ou mais acontecimentos contingentes, possuindo cada um deles as suas causas, de forma que
o seu concurso não possui nenhuma que se conheça (COURNOT, 1851, Cap. III). Essa
definição de acaso aproxima-se da acepção subjetiva, que não exclui a causalidade, mas a
torna complexa ou ramificada em séries independentes, a menos que consideremos que,
embora as séries sejam causadas, seu eventual encontro não o seja – o que aproxima a tese de
Cournot do acaso objetivo.
Neste sentido, podemos refletir sobre como a noção de causalidade insere-se na
reflexão sobre o acaso em sua acepção dualista. Como vimos, a distinção entre acaso
subjetivo e objetivo está vinculada à presença e à ausência de causas para um evento
qualquer, entendidas como eventos antecedentes que o determinam de modo necessário.
Como saber quando a causalidade está ou não presente, e isso tanto na esfera dos fenômenos
físicos quanto mentais? Intuitivamente parece difícil admitir que há eventos que não são
causados sob nenhuma forma e, por essa razão, o acaso objetivo mostra-se como
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problemático, pelo menos se implicar a recusa da causalidade como lei universal. No entanto,
essa foi a posição de muitos filósofos, como Hume e Russell, que em momentos distintos e
por razões próprias, abandonaram a causalidade como princípio de validade irrestrita. Para
Hume, o que chamamos de princípio da causalidade não é mais do que a inferência gerada
pelo costume ou hábito de se observar a sucessão contínua de eventos na natureza, numa
conjunção de objetos que pode ser arbitrária e acidental, tirando dessa inferência qualquer
base racional. Para ele, não se poderia inferir da correlação entre dois eventos que um fosse a
causa do outro. (HUME, 2006, Seção V).
Russell também considerou vaga e problemática a noção de causa, afirmando que
a ciência, especialmente a física, teria deixado de procurar por causas para seus fenômenos,
pelo simples fato de que tais supostas entidades não existem. Para ele, um dos problemas da
tradicional lei da causalidade é o de que ela cria uma oposição artificial entre o determinismo
e a idéia de liberdade de que somos internamente conscientes. Além disso, a definição da lei
causal prevê uma contigüidade temporal entre causa e efeito, como dois eventos com duração
temporal finita, que gera a pergunta de qual o lapso de tempo entre ambos, já que não há
intervalos de tempo infinitesimais. Aliado ao fato de que há causas e efeitos que são
simultâneos ou concomitantes, existe ainda o problema de que, se as causas são separadas de
seus efeitos por um finito intervalo temporal, então elas determinam seus efeitos quando já
deixaram de existir. Quanto ao sentido em que o passado e o presente determinam o futuro,
Russell considera que esse determinismo significa que, do mesmo modo que o passado não
poderia ser diferente do que foi, o futuro não pode ser diferente do que será, e isso como
garantia do princípio da não-contradição. O passado é determinado pelo simples fato de que
ele aconteceu, e temos consciência disso pela circunstância acidental de que a memória
funciona retrospectivamente; se ela funcionasse projetivamente, perceberíamos que o futuro é
igualmente determinado pelo fato de que acontecerá. Do mesmo modo que não podemos
alterar o passado, não podemos alterar nossos desejos presentes, nem o futuro que apenas
desconhecemos, e que será aquilo que ele será, como salvaguarda daquele princípio lógico
fundamental (RUSSELL, 1957, p. 174, 180-184, 195-196).
Um dos problemas que cerca a noção de causalidade refere-se à complexidade da
própria noção de causa e efeito, naquilo que está envolvido como enumeração exaustiva de
eventos abrangidos por um ou outro. Russell chamou a atenção para a existência de uma
pluralidade de causas que geram um único efeito (por exemplo, a morte de um homem), ou de
uma única causa que gera uma pluralidade de efeitos (como o estado total do universo, cinco
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minutos depois daquele evento). Se atribuirmos complexidade tanto às causas quanto aos
efeitos, isso não significará que a alegada falta de simetria entre ambos é meramente ilusória?
A oposição entre acaso subjetivo e objetivo manteve-se ao longo de toda a história
da filosofia ocidental, vinculado ao problema do determinismo e indeterminismo, na natureza
física e também na natureza humana. É na sua aplicação ao mundo mental, e não apenas ao
físico, que o problema do acaso torna-se mais grave, passando a exigir uma resposta adequada
da filosofia, pelos questionamentos que gera quanto à existência ou não de um livre-arbítrio
na esfera dos desejos e ações humanos. Vários filósofos debruçaram-se sobre essa questão,
que ainda se encontra pendente de uma resposta definitiva. Uma das perguntas que se faz é até
que ponto a imprevisibilidade eventual no comportamento das partículas subatômicas
estende-se para o comportamento dos organismos macroscópicos que delas são feitos. Em
outras palavras, se os processos psíquicos dependem dos processos físicos, o indeterminismo
destes é herdado por aqueles? (BLANSHARD, 1964, p. 26-27).
Vinculada a essa questão está o conceito de liberdade como não apenas “a
possibilidade de se fazer aquilo que se quer” (liberdade de ação), como também “a
possibilidade de se querer aquilo que se quer” (liberdade de volição). Enquanto a liberdade de
ação seria compatível tanto com o determinismo quanto com o indeterminismo, a liberdade de
volição seria compatível com o indeterminismo, revelando-se como a verdadeira liberdade,
presente em nossos desejos e não somente em nossas ações. Segundo os adeptos desse
segundo sentido de liberdade, o homem somente seria mestre de suas escolhas se elas lhe
fossem absolutamente indiferentes. Temos aqui a noção da liberdade de indiferença, que
significaria a total indeterminação de um indivíduo diante das escolhas de que dispusesse, que
o impediriam de pender para qualquer um dos lados.
Em sua crítica à atribuição de um acaso na natureza humana, Leibniz foi um dos
filósofos que rejeitou a existência da “liberdade da indiferença” ou “diferença de equilíbrio”,
em que o ser humano poderia prescindir de alguma causa ou razão para agir, pois as duas
alternativas que lhe fossem apresentadas seriam absolutamente idênticas em valor, sem uma
inclinação maior para nenhuma delas (LEIBNIZ, 1969, I, § 35, 46). Sua análise partiu do
sofisma escolástico do século XIV apresentado pelo filósofo Jean Buridan, denominado “o
asno de Buridan”, em que um animal faminto que tivesse diante de si duas medidas idênticas
de aveia acabaria morrendo de fome, pela impossibilidade de decidir por qualquer uma delas.
Para Leibniz, o acaso não existe, pois todo evento tem uma causa ou razão suficiente, de
acordo com o seu fundamental princípio da razão suficiente, que seria uma das bases de
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sustentação filosófica do determinismo. Ele afirma que na natureza há sempre razões que são
causa do que acontece, embora elas possam ser tão complexas ou imperceptíveis que geram a
aparência do acaso, isto é, de que algo ocorre sem ter sido determinado por nenhuma causa.
No caso dos homens, eles seriam conscientes de seus desejos e ignorantes das causas que os
determinam. E isso ocorre porque eles estão mais preocupados com o fim de suas ações, das
quais sua escolha é um meio, ou seja, com o futuro que se abre diante deles, do que com o
passado que abriga as forças ocultas que os fazem atuar. (BLANSHARD, 1964, p. 22-23).
Para Leibniz, o passado do indivíduo condicionaria a sua vontade do mesmo modo que o
presente, ou seja, o estado momentâneo de suas circunstâncias externas e internas. Desse
modo, ele seria adepto da tese que admite a existência apenas do acaso subjetivo, aplicado à
natureza física e humana.
Do mesmo modo, Hume também abraça a concepção do acaso subjetivo, que se
encontra na mente dos indivíduos, e não no mundo objetivo. Em seu Ensaio sobre o
Entendimento Humano, ele afirma que o que chamamos de acaso é apenas uma demonstração
da nossa ignorância com relação a todas as possibilidades que um evento carrega em si.
Temos o exemplo de um dado que contém 1000 faces, das quais 999 apresentam o mesmo
número (por exemplo, 1) enquanto apenas uma apresenta um outro número (por exemplo, 0).
Ao lançarmos esse dado por repetidas vezes, haverá uma probabilidade muito maior de o
resultado ser 1, levando nossa mente a acreditar que esse sempre será o resultado. Para Hume,
o acaso seria, nesse caso, o desconhecimento da única face do dado que tem em si o número 0
(HUME, 2006, Seção VI).
Os filósofos que admitem a existência apenas do acaso subjetivo reconhecem a
possibilidade de que a liberdade humana seja apenas parcial, sendo determinada por causas
que talvez jamais sejam conhecidas. Do mesmo modo que o problema do livre-arbítrio, o
problema da causalidade está estreitamente relacionado com a noção de acaso, estando ainda
pendente de uma solução acabada no debate filosófico. Uma defesa para a lei da causalidade
vem da própria história da ciência, que mostra que a ciência teria progredido no passado
justamente porque, quando da ocorrência de fenômenos cuja causa desconhecia, presumiu que
essas causas existissem (BLANSHARD, 1964, P. 26).
Novas descobertas da ciência reavivaram o debate filosófico sobre a questão, no
tocante à existência do acaso objetivo. Como vimos, este não tem relação com nossas
capacidades cognitivas, e talvez possa estar presente nos mais diversos campos do saber,
como na matemática (por exemplo, na teoria das probabilidades, na teoria dos jogos, nas
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equações diferenciais, na sucessão dos números nas casas decimais do π); na física (na
mecânica estatística, na teoria cinética dos gases, na termodinâmica e na física atômica); e na
biologia (nas mutações genéticas das teorias evolucionistas e na variabilidade genética
aleatória dos indivíduos).
A título de ilustração, podemos constatar, em vários experimentos da física atual,
a ocorrência de fenômenos que não podem ser previstos e para os quais não se pode
estabelecer uma única relação causal – o que equivale a dizer que eles são, até o momento,
indeterminados. Em conformidade com o princípio da incerteza de Heisenberg, é impossível
hoje fazer medições que permitam o cálculo exato da posição de uma partícula subatômica em
algum momento futuro. A sua posição e velocidade não nos estão acessíveis simultaneamente,
e o ato de adquirir um conhecimento, em si, perturba o objeto de conhecimento. É difícil
estabelecer uma linha divisória precisa entre o instrumento do conhecimento e o objeto do
conhecimento. Além disso, um conhecimento nunca tem lugar, a não ser em conjunção com
um sistema nervoso, cuja complexidade ainda não foi desvendada (BRIDGMAN, 1964, p. 67,
70, 86-87). Desse modo, torna-se árduo estabelecer claramente se um fenômeno é
determinista ou indeterminista, causado ou não-causado, a partir apenas de sua previsibilidade
ou imprevisibilidade.
Podemos nos perguntar quantas causas devem ser determinantes para um certo
efeito, por simples que este pareça, bem como até que ponto um efeito finito exige uma causa
igualmente finita, ainda que de enorme complexidade. Seja, por exemplo, a penetração de
uma bala num determinado tecido humano. Qual seria a causa desse evento? A deflagração da
pólvora, a pressão do dedo humano sobre o gatilho da arma, o ato cerebral que promoveu essa
pressão, ou a soma de todos esses eventos, e de mais outros que desconhecemos? Será que
não damos o título de causa a um evento sempre de um modo pragmático e intencional? Em
nosso exemplo, poderíamos dizer que, para o químico, a causa seria a reação dos corpos
explosivos; para o físico, o movimento do mecanismo que deu saída à bala; para o psicólogo,
as motivações do ato, e assim sucessivamente (LALANDE, 1944, p. 197-199). Quando
tentamos estabelecer com rigor as causas de um evento, talvez tenhamos que retroceder nossa
cadeia causal até o início dos tempos, de modo que, ao lado dos enumeráveis fatores causais
identificáveis, teríamos as séries imponderáveis, que poderiam tornar incerto o seu desfecho
(SCHWARTZ, 1999, p. 52-53).
O problema da aparente complexidade das causas e efeitos pode ser analisado à
luz da noção de causalidade múltipla de Stuart Mill, segundo a qual o que chamamos de
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causa é a soma de condições positivas e negativas consideradas em conjunto, isto é, a
totalidade de circunstâncias tais que, se ocorrem, a conseqüência lhes segue inevitavelmente
(MILL, 1867, p. 200). Essa concepção assemelha-se à que adota a substituição do causalismo
pelo chamado condicionalismo, em que não mais explicamos os fenômenos apenas por suas
causas, mas sim segundo um conjunto de fatores ou “condições”. Isso porque, quando se
encontra a causa de um fenômeno, este parece estar longe de estar perfeitamente explicado,
pois apenas se descobriu um único fator dos que o determinam. Segundo a concepção
condicionalista, no Universo, não há sistemas parciais insulados, pois nada depende
exclusivamente de uma única causa, mas sim de um grande número de condições. Todo
estado e fenômeno do Universo são determinados na sua existência específica por numerosos
outros estados e fenômenos, e não existiriam na sua forma específica, se faltasse um só dos
fatores de que dependem. Assim, a causa só produz o fenômeno, quando se realiza um certo
número de condições, as quais podem reunir-se em tempos diferentes, mas que são de igual
valor para a produção do fenômeno. Por essa razão, não se deve pensar que, dentre os
numerosos fatores, seja considerado como causa apenas aquele que é cronologicamente o
último a juntar-se aos outros. O condicionalismo entende como princípio de validade geral a
equivalência efetiva das condições de cada estado ou fenômeno, o qual é idêntico à soma
dessas suas condições, que são a sua essência (VERWORN, 1940, p. 15-24, 46, 50).
Podemos ainda recorrer à substituição do termo “causa” pelo de “condição
necessária e suficiente” para um determinado estado ou evento. Assim, uma propriedade F é
condição suficiente para uma propriedade G se e somente se, estando presente F, G também
está presente. E a propriedade H é condição necessária para a propriedade I, se e somente se
estando I presente, H também está presente. Se quisermos causas com o objetivo de produzir
um efeito, podemos buscar condições suficientes, e se quisermos causas com o objetivo de
eliminar um efeito, podemos buscar condições necessárias para esse mesmo efeito. Sendo
assim, ao tentarmos enumerar as causas para um determinado efeito, podemos alcançar as
condições necessárias, mas não as suficientes para que ele ocorra, cuja enumeração não
logramos exaurir (SKYRMS, p. 116-117).
Um dos indícios de que é insuficiente nosso conhecimento das causas que
governam um certo evento é nossa incapacidade de prevê-lo, determinando o seu
comportamento futuro a partir dos dados do presente. A fim de contornar de algum modo essa
imprevisibilidade, apelamos para a probabilidade, considerada por Hacking o triunfo
filosófico da segunda metade do século XX (HACKING, 1995, p. 22). Em suas leis, o cálculo
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das probabilidades tenta ser a medida do acaso ou de nossa incerteza, sendo uma espécie de
meio-caminho entre o acaso e a ordem, cujas leis estatísticas, no entanto, não conseguem
anular por completo esse acaso. Uma pergunta que se faz a esse respeito é até que ponto
aceitar a probabilidade como um fim significa abandonar a possibilidade de explicação da
Natureza. A probabilidade de um evento incerto é a relação entre o número de casos em que
ele ocorre (casos favoráveis) e o número de casos possíveis e considerados igualmente
prováveis (SCHWARTZ, 1999, p. 13-15). A probabilidade de um evento diz respeito ao
corpo de conhecimentos que se tem daquele evento e, por isso, ela é essencialmente subjetiva,
provindo da ignorância por parte do observador de algumas de suas condições determinantes.
Assim, a probabilidade de um fenômeno não produz uma estimativa que é fixada de uma vez
por todas, pois essa estimativa depende das informações então disponíveis (BOREL, 1966, p.
14).
Seja, por exemplo, um jogo de dados. Como sabemos, é de 1/6 a probabilidade de
que, numa jogada, apareça qualquer um dos números de suas seis faces. No entanto, mesmo
nesse lance de um dado “perfeito”, o acaso somente interfere antes do ato propriamente dito,
pois no instante em que o dado é lançado, é de 1 a probabilidade de que saia o número que
efetivamente sairá, e é de 0 (e não mais 1/6) a probabilidade de que os demais números saiam.
O efeito é necessário quando os dados são lançados, mas não antes. Dito de outro modo: cada
jogada específica é determinada pelas leis da física; no entanto, existem tantos aspectos
circunstanciais que envolvem a situação que o resultado é indeterminado. Ninguém pode
saber de antemão o resultado que será obtido. Ou seja, a física daquela situação causal é
determinista ou necessária quando acontece, mas indeterminista ou contingente antes de
acontecer. Se todas as condições iniciais da jogada do dado fossem conhecidas com uma
certeza de 100% (por exemplo, a posição da mão do jogador, o formato da mesa e do dado, a
força com que o dado é lançado, etc.), então o lance não seria aleatório. Temos, nesse caso,
um exemplo de acaso subjetivo, que estaria associado à existência de um conjunto de causas
muito pequenas ou muito complexas para que o resultado possa ser previsto. Como dizia
Monod, no caso do jogo de dados ou da roleta, o acaso é puramente operacional ou
metodológico, de modo distinto do chamado acaso essencial, inerente à independência total
de séries de acontecimentos, cujo encontro provoca um resultado imprevisto (MONOD, 1972,
p. 130-131). Temos aqui a concepção de Cournot, que vê o acaso como o encontro de séries
independentes na ordem da causalidade – o que nos levanta a questão de se o acaso objetivo
pode ser considerado como também referente a eventos governados por séries independentes,
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e não apenas por séries não-causais, cuja existência ainda é objeto de dúvida. Nesse ponto,
torna-se mais tênue a fronteira entre o acaso objetivo e o subjetivo, pois não se pode
determinar com certeza em que medida o acaso é metafísico e ontológico, e não apenas
epistemológico.
O problema da causalidade reaparece, por trás do aparente indeterminismo e da
imprevisibilidade dos fenômenos. Como se sabe, a noção de imprevisibilidade está associada
à existência de seres humanos que efetuam a previsão de acordo com seus objetivos e
conhecimentos disponíveis. De certo modo, o domínio da lei natural não é o domínio das
coisas objetivas, mas sim o das cognições. Um universo sem regularidades fundamentais
talvez não fosse compreensível, inclusive devido ao processo de funcionamento do cérebro
humano, cuja complexidade ainda constitui mistério. Assim, as leis naturais são definidas pela
ordenação das cognições que elas tornam possíveis, de um modo que pode tornar a relação
causal epistemologicamente necessária. (BRIDGMAN, 1964, p. 77).
Sendo assim, é possível pensar que talvez não haja um acaso “puro”,
independente do conhecimento humano e de sua expectativa com relação ao futuro. Como
palavra “negativa”, o acaso poderia não ser, assim, uma parte do mundo físico, mas antes uma
parte de sua descrição. Ao subdividir o acaso de acordo com nosso atual acervo cognitivo,
deparamo-nos com o problema epistemológico da causalidade, que pode explicar nossas
atribuições de imprevisibilidade e indeterminismo a certos fenômenos, recomendando-nos um
ceticismo que nos assegure ao menos a existência do acaso subjetivo, cujas conseqüências
filosóficas podemos estimar.
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Moreira da Silva, A.- A extensão filosófica do conceito du…