ESTRATÉGIAS EDUCATIVAS DE AGRICULTORES FAMILIARES EM NOVA UNIÃO,
RONDÔNIA 1
Vânia Beatriz Vasconcelos de Oliveira2
Geraldo Magela Braga3
1. RESUMO
O objetivo deste trabalho é apresentar alguns resultados e reflexões sobre estratégias
educativas4 empreendidas por agricultores familiares migrantes, a partir de pesquisa sobre as
estratégias de reprodução social de membros de 52 unidades familiares, estabelecidas, a partir
de 1971, em Nova União, município originado de área do Projeto Integrado de Colonização,
PIC Ouro Preto, no Estado de Rondônia. Uma das variáveis da pesquisa foi a análise das
“estratégias de encaminhamento dos filhos”, que inclui as estratégias familiares educativas.
A metodologia de história de vida tópica - aplicada à trajetória migratória das famílias
- associada a outras técnicas, permitiu obter um conjunto de informações sobre a inserção de
agricultores familiares no sistema educacional, ao longo de sua trajetória migratória; as
condições de estudo oferecidas pela comunidade; as aspirações dos pais quanto ao estudo dos
filhos; as estratégias dos pais e suas percepções quanto às vantagens em investir no capital
fundiário em oposição ao investimento cultural .
Desta forma, identificou-se uma diversidade de situações/problemas no âmbito da
unidade familiar e da comunidade estudada, que são indicativos da necessidade de
investimento em educação. Isto representa uma estratégia essencial para o desenvolvimento
rural, sobretudo pela
busca da permanência dessas famílias no meio rural, diante da
emergência de um novo paradigma para as atividades agropecuárias, baseado
na
sustentabilidade dos recursos naturais, que exige uma mudança fundamental no padrão de
ensino.
Palavras chaves: educação rural, estratégias familiares, estratégias educativas, agricultura
familiar.
1 Artigo elaborado a partir da dissertação de Mestrado em Extensão Rural, apresentada à UFV, Viçosa-MG, março 2000.
2 M.Sc. Extensão Rural, Pesquisador Embrapa Rondônia , Cx. Postal,406, CEP. 78900-970, Porto Velho-RO .
[email protected]
3 DS. Comunicação Rural. Universidade Federal de Viçosa. Depto. de Economia Rural. 36.570- Viçosa-MG.
[email protected]
4 Como estratégia de investimento cultural , Cf. Bourdieu (1990) .
2
2. INTRODUÇÃO
A migração para a Amazônia brasileira, nos anos 70, foi uma das estratégias
empreendida por grande número de pequenos produtores rurais, impulsionados pelo desejo de
obter um pedaço de terra para trabalhar e assegurar a sobrevivência de suas famílias,
desenvolvendo estratégias de reprodução social, num sistema de agricultura familiar.
A agricultura, em relação a outras esferas de produção econômica, possui
peculiaridades tais como a existência de relações sócio-históricas de produção. Como em
outros contextos históricos, a constituição do sistema de agricultura familiar no Estado de
Rondônia, tem como base o acesso a terra e a reprodução de formas particulares de produção
e de sociabilidade. O acesso à propriedade aconteceu no contexto social de um projeto
governamental de colonização da fronteira agrícola, que mobilizou para a região um grande
contingente humano.
A colonização agrícola em Rondônia ocorreu, acentuadamente, a partir da criação, em
1970, do Projeto Integrado de Colonização Dirigida – PIC Ouro Preto, na região central do
então Território, onde foram assentadas 5.162 famílias. Rondônia e Nova União, em
particular, como novos espaços de reprodução social, forjados pelo processo de colonização,
oferecem elementos para o estudo das estratégias educativas, no bojo das estratégias de
reprodução das famílias migrantes.
A família se reproduz biologicamente e sobretudo socialmente , através de um
conjunto de estratégias, isto é , ela visa “reproduzir as propriedades que lhe permitem
conservar sua posição , sua situação no universo social considerado” BOURDIEU (1990).
Para este autor, não há duvida que os grupos dominantes, e principalmente as grandes
famílias, asseguram sua perpetuação à custa de estratégias – entre as quais estão incluídas ,
em primeiro lugar,
as estratégias educativas como estratégias de investimento cultural.
Quanto a família rural, segundo NEVES (1988), a luta dos produtores agrícolas , no sentido
de alcançar determinados padrões sociais de consumo improdutivo , tende a aumentar os
gastos com a sua reprodução, incluindo aí a escolarização dos membros de sua família.
As estratégias educativas de agricultores familiares estão vinculadas principalmente à
perspectiva de permanência ou não dos filhos no campo. STANEK (1998) denomina de
estratégia de promoção social aquela em que a aspiração dos pais é dar aos filhos uma
educação superior para que consigam uma profissão com um status social mais elevado.
3
Na promoção do desenvolvimento rural, os serviços de Pesquisa Agropecuária e
Extensão Rural têm a atribuição de responder ao desafio da promoção do desenvolvimento
sócio-econômico da pequena agricultura.
Uma das estratégias de intervenção utilizada
consiste em iniciar o processo em nível das unidades de produção, valorizando, ao mesmo
tempo, a experiência dos produtores e os avanços da pesquisa. Neste sentido, torna-se
importante conhecer quem é esse agricultor familiar, suas lógicas produtivas e familiares e,
neste trabalho em particular, aquelas relacionadas as suas estratégias educativas.
3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
3.1 Descrição da Área de Estudo
O Município de Nova União , originário de área de colonização do PIC Ouro Preto ,
foi criado em 14 de junho de 1995. Antes, em 1982, foi instalado o Núcleo Urbano de Apoio
Rural (NUAR Nova União), que ocupava uma área de 40 hectares (ha), local em que se
concentravam os serviços básicos de saúde, educação, comércio, extensão rural e agências de
organismos governamentais. Este núcleo dava suporte aos colonos dos lotes rurais de nove
Linhas5. A área de abrangência do Município é de 58.892,95 ha, correspondendo a 0,2469%
do território do Estado de Rondônia (COOPAMNU,1996).
A população de Nova União é de 5.979 habitantes, com 4.935, residentes na área rural.
O cenário educacional é constituído por uma população de 26,98% de analfabetos; 43,54%
com escolaridade até a 4ª série do 1º grau; 2,74% com o 1º grau completo e; 1,15% com o
segundo grau concluído . Faltam escolas de 1º grau na zona rural, e de 2º grau no município,
resultando num significativo índice de déficit educacional. (COOPAMNU, 1996).
3.2 Coleta e Análise dos Dados
O trabalho foi desenvolvido em duas etapas. Na primeira, foi realizado um
diagnóstico participativo , em outubro de
1997, conforme metodologia descrita em
MONTEIRO et al. (1997). O objetivo do diagnóstico foi caracterizar o sistema de produção
de unidades agrícolas de produção familiar do município de Nova União. A abordagem dos
aspectos educacionais foi incluída no item infraestrutura, do roteiro de entrevistas.
Na segunda etapa, em trabalho de campo realizado em setembro de 1999, buscou-se
compreender as estratégias reprodutivas desenvolvidas pelos migrantes, incluindo as
5
Estradas vicinais
4
estratégias educativas a partir da identificação das aspirações dos pais quanto ao futuro dos
filhos. GABOARDI (1971) estudou as aspirações educacionais sob a perspectiva real e ideal,
verificando aspirações mais elevadas no alto estrato sócio-economico.
Foram coletados dados por meio da técnica de história de vida, complementada por
técnicas quantitativas, junto a 52 famílias de agricultores, instaladas em meados da década de
70, nas Linhas 40 e Linha 44 .
A história de vida “se define como o relato de um narrador sobre sua existência
através do tempo, tentando reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a
experiência que adquiriu”. Pesquisadores que utilizam a história de vida como técnica de
coleta de material, consideram que ela não pode ser utilizada sozinha numa pesquisa, porém,
deve ser complementada por material coletado de outra maneira (QUEIROZ, 1988).
As 52 famílias entrevistadas representam cerca de 50 % do total de famílias
originalmente assentadas nas Linhas 40 e 44. A maioria (63%) chegou a Rondônia entre os
anos de 1974 a 1976, originários principalmente dos estados de Minas Gerais, Bahia e
Espírito Santo.
O tratamento dos dados empíricos se deu com o desenvolvimento de uma análise
qualitativa do material coletado, à luz de um quadro teórico explicativo das estratégias de
reprodução dos agricultores familiares num contexto de migração para uma fronteira agrícola.
Adotou-se como base da análise uma linha teórico-metodológica que se situa entre os estudos
que privilegiam a compreensão dos novos atores, seus padrões de reprodução social, suas
condições de vida e de trabalho no sistema de agricultura familiar.
As variáveis orientadoras da análise estão relacionadas as estratégias dos agricultores
familiares, quanto ao futuro dos filhos , pelo investimento na formação de um capital
fundiário (investir na terra) ou formação de um capital cultural (investimento em educação) .
4. A INSERÇÃO DE AGRICULTORES FAMILIARES NO SISTEMA EDUCACIONAL
A história de vida dos migrantes em terras rondonienses tem em comum além de uma
longa e cansativa viagem, por estradas ruins e em caminhões paus-de-arara, o enfrentamento
de
uma paisagem natural (floresta virgem) não preparada
para o cultivo: “era mata
purinha”, na expressão de um agricultor. Passaram então a construir o seu espaço de
reprodução , para atender às suas necessidades socioeconômica e infraestruturais, abrindo
picadas , derrubando matas, construindo barracos e plantando lavouras.
5
Da chegada na área do PIC Ouro Preto até a instalação com a família na propriedade,
decorreu um período médio de 2,5 anos. Nesse período de transição, os que aguardavam obter
um lote do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e os que já tinham obtido
terra, prestavam serviços na condição de parceiros ou meeiros, nas grandes fazendas ou em
lotes de familiares ou conhecidos, ao mesmo tempo em que trabalhavam no seu próprio lote,
realizando uma pequena acumulação até que tivessem condições de levar a família para a
propriedade. As condições adversas do meio em que se instalaram, dificultaram em muito o
acesso ao estudo almejado pelos agricultores.
Inicialmente, nas Linhas só funcionavam escolas em regime multi-seriado, até a
quarta-série, obrigando as crianças a interromperem os estudos, pois nem todos os pais tinham
condições, ou interesse em encaminhá-los para estudar fora, seja no núcleo urbano de Nova
União ou em município circunvizinho.
A falta de condições de tráfego das estradas no
período chuvoso e as grandes distâncias entre a escola e a propriedade, foram outros fatores
que impediram o prosseguimento dos estudos, o que talvez explique o fato de haver um
contingente significativo de maiores de 14 anos que não concluíram a 4ª série e maiores de 18
anos que não concluíram a 8ª série do primeiro grau (COOPAMNU,1996). A necessidade de
incluir e intensificar a participação dos filhos, na mão-de-obra familiar é também um motivo
de evasão escolar.
“Todos estudaram até a quarta série, tem um que ainda está estudando em Nova
União. Eu queria que eles continuassem estudando, mas o pai deles que não quis,
tirou pra trabalhar na roça6
“O mais difícil aqui foi para os meninos estudar, eles iam daqui [Lh. 44] na
40 [ Lh. 40] de bicicleta. Tem um que está estudando ainda, ele faz o 2o. ano do
segundo Grau . Até agora ele ainda não escolheu o que pretende ser, ..ele até tinha
vontade de ser veterinário.... ele aplica injeção. Eles [três filhos rapazes, solteiros]
tiraram até a 5a. serie na escolinha daqui. Dois deles fizeram o 1o. grau e um está
fazendo o 2o. Grau. - Que eles estudassem, eu gostava que eles continuassem
estudando, mas depois que nos se separou [ela separou-se do marido] , aí eles já
tinham que ajudar a trabalhar para eles se manter né? E daí eles não tinham
estudo pra trabalhar fora, eles tinham que ficar trabalhando aqui, fazer um futuro
pra eles.7
Além das atividades agrícolas, uma das estratégias de sobrevivência adotada pelo
agricultor , ou membros do seu grupo familiar, foi a sua inserção em atividades extra-
6 Depoimento da Sra. E. A . , 53 anos, agricultora familiar (AF) na Linha 44.
7 Depoimento da Sra. C. N. T. , 50 anos , AF na Lh. 44.
6
agrícolas, dentre elas a de professor leigo, nas escolas da Linha. À falta de pessoal
qualificado, assumia-se essa função sem muitas exigências, bastava ter um mínimo de estudo:
“... tinha muitas criança e não tinha escola, os pais foram conversar para eu ensinar
as crianças. A mulher [esposa dele] tinha estudo até a 4a. série, foi ensinar [1975].
Está dando aula até hoje ... só tem a 4a. série!”8
A existência de professores leigos é uma situação que perdura. Quem não teve a
oportunidade de inserir-se nesse meio, lamenta-se, sobretudo porque teriam assegurado um
bom rendimento como funcionário público federal .
“Quando eu entrei (na Linha) quem tinha a 4a. série era professora, fazia um curso e
ia lecionando e estudando ... eu tenho duas amigas minhas, , lá de Minas, que hoje
são tudo federados9, elas começou com a 4a. série e foi estudando e lecionando e hoje
são professoras formadas e federais. 10
Quando questionado sobre as suas aspirações quanto ao estudo dos filhos, um produtor
ao mesmo tempo em que faz eco a esse lamento, mostra-se crítico e descrente em relação ao
ensino oferecido na comunidade:
“ ... aí já começa uma coisa difícil aqui na Linha, primeiro: tem um professor e uma
professora aqui na Linha que são semi-alfabetizados (são leigos né?) . Esse menino
[aponta um garoto , filho do segundo casamento] já está indo lá e aprendendo
errado, a palavra problema ele está aprendendo pobrema. O futuro dele o que é que
eu vou dizer? (...)...”11
A possibilidade de retomada , chegou recentemente (1999) , com a implantação na
comunidade do programa “Pro-Campo Recomeçar” , o qual tem oportunizado a continuidade
dos estudos além da 4a. série: “... com o Programa Recomeçar , muita gente voltou a estudar,
casado, solteiro, mesmo gente velho voltou a estudar” 12 . Esta iniciativa foi freqüentemente
referida com entusiasmo, pelos entrevistados.
“... eu não tive sorte com os meus filhos, teve dois mais velhos que desistiram . Essa
aqui [a filha casada que acompanhava a conversa] só fez a 4a. série, uma casada
também só fez a 4a. Só tem essa menina, a que está para escola, que fez a 4a. e agora
surgiu esse estudo tão bacana [Pro-campo Recomeçar], e eu sempre falo pra ela,
começar e terminar. “13
8
Depoimento do Sr. I.C. C. 60 anos, AF na Lh. 40
Funcionário público federal
10
Depoimento da Sra. M. P. A ., 49 anos, AF na Lh. 44
11
Depoimento do Sr. S. I., 51 anos, AF na Lh. 44
12 Depoimento da filha do sr. W. J. P. e Sra. G. S. P., AF na Lh. 40.
13 Depoimento da Sra. M. P. A . , 49 anos, AF na Lh. 44.
9
7
5. ESTRATÉGIAS DE ENCAMINHAMENTO DOS FILHOS: ESTUDO E TRABALHO.
As estratégias de encaminhamento dos filhos no caso estudado, são expressas sobre
duas lógicas: investir na acumulação ou manutenção de terras , formação de um capital
fundiário ou investir na educação dos filhos, formação de um capital cultural.
A principal aspiração com relação aos filhos é pautada pelo desejo de que “estudem
um pouco” e permaneçam “trabalhando a terra”. Ao não descartar inteiramente os estudos,
os depoimentos revelam uma rejeição dos pais ao seu próprio analfabetismo ou semialfabetização, uma vez que o nível educacional da maioria é baixo, 80% dos pais não
possuíam nenhum ano de estudo.
A conformação com “um pouco de estudo” é , mais freqüentemente, um argumento
do chefe da família, apoiado na falta de perspectiva de emprego, nas dificuldades de manter
os filhos estudando na “rua”14 e na intenção de manter as filhas na propriedade:
“ As meninas [três filhas] ficaram sem fazer a 5a. série. Tinham vontade de
estudar, mas o meu esposo sempre falava que pra quem mora no sitio bastava estudar
um pouco, pra não ficar sem estudo nenhum. Agora com o ProCampo Recomeçar elas
voltaram a estudar. 15
“... O pai não deixava estudar fora . Hoje em dia também, muita gente já é estudado,
o pai colocava na cabeça que quem era mais estudado não tinha emprego.16
“Estudaram um pouco. Pararam de estudar, mas todos sabem ler e escrever. Eu não
estudei, no meu tempo era difícil , lá onde eu morava. Agora, quanto a continuar
estudando é da idéia deles. 17
“ Meu gosto é que eles fiquem aqui. Eu penso que eles devem ficar aqui, trabalhar a
terra. Todos eles estudaram. São nove filhos no total, tem dois que estão pra roça
mais o pai [15 e 18 anos] , tem mais uma filha que está na escola... e outro
molequinho [ 7 anos] está pra aula também”.18
O investimento cultural, mesmo restrito, exigiu grande empenho do agricultor. No
esforço de fazer com que os filhos continuassem a estudar, houve quem usasse métodos nada
didáticos para o convencimento:
“ ... uns estudou um pouquinho. Esse caçula já pelejei com ele, lutando para estudar
mas ele não quis. Amarrava ele, judiava, levava pra roça, punha uma corrente no
14 Ir para a cidade, seja o núcleo urbano de Nova União, ou outros municípios.
15 Depoimento da Sra. A . T. A . , 48 anos., AF na Lh. 44.
16 Depoimento da filha do sr. W. J. P. e Sra. G. S. P., AF na Lh. 40.
17 Depoimento do Sr. A . F. de S. , 72 anos, AF na Lh. 44
18 Depoimento da Sra. M. A . dos S. , 48 anos, AF na Lh. 44
8
pescoço dele, dizia: você vai ficar aqui até à hora da aula. Mas ele não quis... agora
ele reclama que não aprendeu! 19
Uma estratégia para garantir melhores condições de estudo para os filhos, dá-se pelo
deslocamento dos mesmos para o núcleo urbano ou municípios circunvizinhos , isso implica ,
muitas das vezes, no êxodo de todo o grupo familiar, na venda de parte do lote para “fazer
dinheiro” e comprar “barraco” na sede do Município.
O deslocamento do grupo familiar é uma estratégia nem sempre bem sucedida , pela
dificuldade de conciliar a moradia na “rua” (cidade) com o trabalho na propriedade (campo) ,
ou mesmo pelo desinteresse dos filhos, que preferem o trabalho na terra aos estudos. Por
vezes a mãe vai com os filhos e o pai se desdobra entre os dois espaços de trabalho e de
morada. Quando a alternativa é deslocar apenas os filhos, os homens têm prioridade nesse
encaminhamento, as mulheres ainda que quisessem, eram impedidas de tentar continuar o
estudo na cidade, “não ia deixar filha moça solta no mundo” argumentou um produtor.
A volta à propriedade ,resulta de um insucesso no investimento cultural:
“ ... No sitio eles estudou a 4a. Série. A gente foi pra rua pra eles estudar, mas eles
não quiseram. - Não houve interesse. Passei 10 anos fora. A gente tocou um comércio
, barzinho, em Nova Uniao. Três deles não quiseram, [trabalham de empregado em
roça, gado e marcenaria] mas esse aqui (aponta o caçula) continua estudando.20
O produtor P. R., 55 anos , após os cinco filhos completarem a 4a série na Linha 44,
mudou-se com a família para Nova União: “ estudaram por pouco tempo, não deu certo ficar
lá”. Voltou com a mulher e o filho caçula para a propriedade, suas aspirações, quanto ao
futuro dos filhos, não corresponderam ao que ele planejou:
“Cada pessoa tem um destino, o que eu achei que crescesse em casa e pudesse tomar
o destino deles , que eu podesse ensinar um pouco da leitura pra eles, aí não foi bem
do jeito que eu pensei , eu não consegui, nenhum deles conseguiu se formar no 1o.
grau, mas também não ficaram analfabeto..21
Em ambos os casos, investir no estudo ou na terra, as aspirações dos pais nem sempre
foram correspondidas pelos filhos, evidenciando a perda da autoridade do pai, quando as
trajetórias traçadas pelos filhos não correspondem às suas aspirações. As decisões dos filhos
por uma trajetória individual se manifestam, não só quando rejeitam continuar os estudos,
19
Depoimento do Sr. A . S. , 72 anos, AF na Lh. 44
20 Depoimento do Sr. D.P., 46 anos , cujos quatro filhos, na faixa etária de 23 a 18 anos, retornaram à propriedade.
21 Depoimento do Sr. P. R. , 55 anos , AF na Lh. 44.
9
mas quando preferem permanecer na propriedade, ou traçar uma trajetória urbana, em
trabalho não qualificado.
Vários depoimentos, dão mostras dessa independência dos filhos, que na opinião dos
pais , cedo se manifesta : “... a partir dos 15 anos eles já estavam criando asa.22, “.. pela
minha vontade, era de ficar por aqui, trabalhar no lote, mas os filhos quando se pegam de
maior, ninguém consegue segurar, eles quer sair.23
“... eu falo pro meu filho: se a mamãe tivesse oportunidade que nem eu tô
dando pra vocês... Eu falo para eles que eu tive o sonho de meus filhos estudar , mas
eles não tiveram muito interesse”.24
“.... eles já eram todos os rapazes, não quiseram mais estudar, eu mesmo não podia
falar nada, ficou por isso mesmo” 25
“ O meu desejo era que eles fossem estudar para ser padre, mas não quiseram saber
de estudar, muitos não fizeram nem a 4a. série.”26
“ Lá no Paraná eles estudaram, mas aqui já estavam todos rapazes não quiseram
mais estudar, eu mesmo não podia falar mais nada, então... ficou por isso mesmo.27
“... os filhos não queriam estudar. Iam estudar, sabe que faziam? Danavam a brigar!
Hoje eles não tem estudo, agora tem que trabalhar na roça mesmo ...28
“ ... até a 4a. série foi poder do pai, uns não quiseram. Agora que veio a 5a. para a
roça29
Há uma nítida predominância das mulheres em continuar os estudos, cabendo aos
rapazes a maior aversão aos estudos:
“ Os filhos homens não quiseram estudar (só até a 3a. série), por isso vivem sofrendo
na roça. As moças estudaram mais: até a 4a. a outra continuando os estudos, com o
Projeto Recomeçar .30
A estratégia de promoção social foi pouco freqüente no grupo estudado, havendo
quem a coloque em confronto com a desvalorização do trabalho agrícola:
22 Depoimento do Sr. A . F . de S. , 72 anos , AF na Lh. 44.
23 Depoimento do Sr. Daniel Pedrosa , 46 anos.
24 Depoimento da Sra. Maria Pereira de Amorim, 49 anos .
25
Depoimento do Sr. Deusdécio Andrade, 67 anos.
26 Depoimento do Sr. Adão Firmino, 64 anos.
27 Depoimento do Sr. D. A . , 67 anos, AF na Lh. 40
28 Depoimento da Sra. Eva Chaves da Rocha, 66 anos, viúva.
29 depoimento da sra. Sra. Otenilza de Matos, 46 anos.
30
depoimento da Sra. Elita Borges, 43)
10
“ ... todos eles estudaram , só não se formaram porque aqui agora é que está tendo a
8a. serie. Hoje o que está dando é quem tem estudo. Se meu pai tivesse colocado a
gente no estudo, às vezes a gente podia até está ganhando um dinheiro bem mais
melhor . Porque o trabalho que a gente faz aqui na agricultura , trabalhando até a
noite, o que a gente faz é ... - como aconteceu agora - entregar um saco de feijão,
dar por 12 –13 conto, qui nem foi vendido agora, isso é que é uma injustiça né, um
saco de milho por cinco real, um saco de arroz custar 12 real, isso que é a coisa mas
difícil do mundo.
... então hoje muitos se saíram da agricultura por causa disso daí , por o que a pessoa
produzir não tem valor, então aí eles estão estudando, só que aquele ali começou
desistiu, diz ele que se trabalhasse lá na lavoura dele ia ganhar mais, só que eu tenho
certeza que ele está perdendo mais, porque hoje quem tem um bom estudo, sempre cai
pingando, e aqui quando a gente ganha é de ano em ano... a gente trabalha porque
não tem estudo o jeito é trabalhar mesmo. 31
Em oposição aos que investem no capital cultural estão aqueles que preferem investir
na formação de um capital fundiário, desacreditam na possibilidade de promoção social pelo
estudo e apostam que o futuro está na terra para trabalhar . A lógica de investimento na
acumulação de terras ou manutenção do lote para o trabalho dos filhos, é baseada , na falta de
perspectiva de emprego e na qualidade de vida oferecida pelo meio rural.
“... o que eu tenho dito é que nada aqui é meu ou dela [a esposa], o que nos fizemos é
pra fazer com que no futuro eles tenham onde trabalhar, porque hoje em dia não
adianta você se afastar de seu filho, botar para estudar e na escola da “rua” e aí a
droga está dentro do colégio, a violência está lá dentro do colégio, então não dá , não
tem como ...”32
“ ... a maioria dos que estudou, está sem serviço. Se estudo fosse bom, a gente não
estava no caminho do buraco, quem sabe se na mão de um analfabeto a gente não
estaria melhor. “33
“ ... melhor ter terra para trabalhar, emprego é mais difícil para filha mulher. Quem
mora na roça não pode dar estudo para eles [os filhos] , nem comprar as coisas que
precisa34
Também, nessa estratégia, ocorre a não correspondência dos filhos a aspiração dos
pais : “os três filhos adultos solteiros estudam em Ouro Preto , o meu marido “segurou”
terra para eles trabalharem, mas eles saíram para estudar”35
31 Depoimento do Sr. Antonio (Zinho,) Santos Fonseca , 51 anos.
32 Depoimento do Sr. S. I. S., 51 anos, AF na Lh. 44.
33 Depoimento do Sr. N. L. S. , 48 anos, AF na Lh. 44.
34 depoimento da a Maria Neuza Rodrigues dos Santos, 40 anos, AF na Lh 44.
11
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o estudo das estratégias reprodutivas dos agricultores familiares que migraram
para Rondônia , no contexto histórico e ambiental de colonização da fronteira agrícola,
obteve-se um conjunto de informações aqui analisadas sob a ótica da estratégia de
investimento cultural.
No âmbito das transformações ocorridas, nas dimensões tempo e espaço, tem-se um
produtor inserido em um espaço social propício para a reprodução da agricultura familiar,
modernizado, ligado ao mercado, com acesso aos meios de comunicação de massa,
cosmopolita e com fácil trânsito entre a realidade rural a urbana . Entretanto, no que se refere
a melhoria das condições de estudo para a família rural, as mudanças foram poucas e lentas,
tendo-se em conta que só no ano de 1999, um programa de governo , veio trazer a perspectiva
de continuidade de estudo, para jovens e adultos da comunidade.
Ainda que as estratégias familiares, implementadas em cada unidade familiar, possua
uma inegável especificidade, há uma oposição marcada entre os pais : permanecer na terra ou
investir nos estudos. Nas estratégias de encaminhamento dos filhos, pautadas pela lógica de
investimento no capital cultural, predomina a aspiração por “um pouco de estudo”, o que
revela uma rejeição ao analfabetismo dos pais. Tal proposição está associada ao desejo de
permanência no meio rural, trabalhando a terra, patrimônio duramente conquistado.
As aspirações dos pais , nem sempre foram correspondidas pelos filhos. Há uma falta
de identidade entre as aspirações dos pais e as trajetórias empreendidas pelos filhos, ao longo
do ciclo de vida, motivada por decisões dos filhos de não mais estudar evidenciando a perda
da autoridade do pai.
Para a maioria das famílias rurais entrevistadas a passagem pela escola básica rural (da
1a. a 4a. série) , foi a única oportunidade em suas vidas de adquirir as competências que lhes
permitiriam eliminar as principais causas internas do subdesenvolvimento rural. É preciso
considerar que as escolas, infelizmente, não estão cumprindo com esta importantíssima
função emancipadora de dependências e de vulnerabilidades; porque os seus conteúdos e
métodos são disfuncionais e inadequados às necessidades produtivas e familiares do meio
rural.
35 Depoimento da sra M. M. S. , 45 anos, AF na Lh .40.
12
As opções estratégicas descritas baseiam-se nas falas os entrevistados, ao descreverem
a trajetória educacional do grupo familiar. Considerando a especificidade e a natureza do
estudo, tais informações podem contribuir para a explicação do fenômeno das estratégias de
reprodução, tendo-se em vista a perspectiva de manutenção de agricultores familiares no meio
rural .
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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COOPAMNU . COOPERATIVA AGROPECUÁRIA MISTA DE NOVA UNIÃO (Nova
União, RO). Avaliação socioeconômica e ecológica de Nova União. Porto Velho:
COOPAMNU/ Instituto de Pesquisa em Defesa da Identidade Amazônica / Planafloro,
1996. 73p. (mimeo.)
GABOARDI, L. L., Aspirações educacionais e ocupacionais da família rural, GaribaldiRS, IEPE/FCE/UFRS Tese de Mestrado em Sociologia Rural, Porto Alegre, 1971.
MONTEIRO, R. P.; TOWNSEND, C. R. ; OLIVEIRA, V. B. V. ; FERNANDES, S. R. ;
GONZAGA, D. S. O . M. . Diagnóstico dos sistemas de produção dos membros da
Cooperativa Agropecuária Mista de Nova União. Porto Velho: EMBRAPA-CPAF
Rondônia, Documentos,38, 1997. 43p.
NEVES, D. P., Os dados quantitativos e os imponderáveis da vida social. In: Raízes, Revista
de Ciências Sociais e Economia, Campina Grande: UFPB, Campus II, Ano XVII, No.
17, Junho de 1998 (p. 64-78) .
QUEIROZ, M. I. P. Relatos Orais: do “indizível” ao “dizível”. In: Experimentos com
Histórias de Vida: Itália-Brasil. Org. e introd. Olga de Moraes von Simson – São Paulo
: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 14-43, 195p.
STANEK, O . As estratégias familiares. In: Agricultura Familiar II: do mito à realidade:
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SP: Editora UNICAMP, 1998. 348 p. (119-148) (Coleção Repertórios).
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ESTRATÉGIAS EDUCATIVAS DE AGRICULTORES FAMILIARES