O ordenamento urbano da cidade de Nazareth e o Código de
Posturas de 1893 no contexto da modernidade: pontos e
contrapontos
Lucas Santos Aguiar 1
PPGHIS/UNEB
[email protected]
RESUMO
Este trabalho reflete algumas leituras, estudos e o resultado processo de pesquisa acerca da
tentativa de regulamentação das vivências urbanas instituída pelo Código de Posturas de
1893, da cidade de Nazareth, Recôncavo Sul da Bahia. Buscamos assim, compreender como
as normas disciplinares instituídas pelo poder público estavam inseridas no contexto da
modernidade brasileira, bem como este instrumento leu e planejou a cidade. Discutimos ainda
a incidência destas normas na vida dos sujeitos sociais locais, sobretudo a população recém
saída do cativeiro, assim como o planejamento e novo cenário construído através do Código
de Posturas municipal, especialmente no que diz respeito ao ordenamento urbano, uso e
ocupação do espaço pelos diversos grupos sociais em Nazareth a partir do ano de 1893.
Palavras-chave: Posturas, Modernidade, Costumes, Estética Urbana, Nazareth.
1
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB) DCH - Campus V, Santo Antonio de Jesus.
O ordenamento urbano da cidade de Nazareth e o Código de
Posturas de 1893 no contexto da modernidade: pontos e
contrapontos
Calçamentos, cais, repartições públicas estruturadas, serviço de telégrafo, iluminação
pública foram alguns sinais da “modernidade” presentes nas primeiras décadas da segunda
metade do século XIX na cidade de Nazareth. Primeira cidade do Recôncavo a possuir
energia elétrica, abrigando já em 1917 a Cia Hidro Elétrica Fabril, cujo período marca o início
da chegada de indústrias a exemplo de tecidos e cigarros advindas do processo de
modernização, além de vários melhoramentos materiais, caracteriza a importância econômica,
social e política da cidade de Nazareth destacada pelo seu intenso trânsito comercial.
Importante centro comercial do Recôncavo, pólo regional de trocas e vendas de mercadorias,
rota de abastecimento da capital, a cidade de Nazareth conhecida, sobretudo, pela produção e
comércio da farinha destacou-se entre os séculos XVIII e XIX como uma das cidades
economicamente ativas2 (SACRAMENTO, 2007).
Não obstante este esforço para garantir estruturas urbanas condizentes com os valores
progressistas, era comum perceber pelos becos e pelas ruas da cidade o uso de hábitos e
costumes, bem como a presença de tradições herdadas das populações negras que faziam
parte do cotidiano dos munícipes, a exemplo dos sambas e batuques, que logo se tornaram
alvos das reformas impostas pelas posturas municipais. Destarte este contexto, foi levando em
consideração as críticas médico-higiênicas em voga na época, que os instrumentos
reguladores da vida citadina incorporaram tais valores e foram editados pelos municípios com
o objetivo de contribuir com o processo de modernização das principais cidades brasileiras.
Assim, o advento da modernidade no século XIX, que já pode ser reconhecida no
Brasil desde este período,3 trouxe consigo uma série de preocupações no que diz respeito ao
convívio social no mundo urbano. Preocupações de ordem higiênica e urbanística tomaram
conta do imaginário social e político da época, sob a égide das doutrinações da chamada
2
Na época, destacaram-se outros pontos de abastecimento no Recôncavo como as cidades de Cachoeira, São
Félix, Maragogipe, Santo Amaro e Valença, sendo esta última no Baixo Sul.
3
Rinaldo Leite assinala as primeiras evidencias de cunho modernizador do país através dos “investimentos na
construção de ferrovias, no aparelhamento portuário, em rede telegráfica, com o aparecimento incipiente de
indústrias e com a lenta urbanização de algumas cidades, que receberam melhorias em termos de transporte,
iluminação, abastecimento de água, etc”. (LEITE, 1996, p.8)
medicina social4 recém surgida na Europa e que ganhava espaço no Brasil associadas às
necessidades de desenvolvimento e planejamento apresentadas pelas cidades.
Através de um “processo civilizatório”, que pretendia tornar as cidades brasileiras
fisicamente “civilizadas”, inspiradas no modelo francês, o projeto modernizador das elites
republicanas pretendia atingir um padrão de civilização com base na adaptação do modelo
implantado nas cidades francesas, na tentativa de padronizar, para melhor controlar, as ações
e comportamentos dos sujeitos sociais.
É, portanto na primeira década do século XX, entre 1902 e 1906 que, no Rio de
Janeiro, o prefeito Francisco Pereira Passos, organizou um planejamento de reformulação da
cidade semelhante ao que Hausmann havia feito em Paris na segunda metade do século XIX
(CHALHOUB, 2001). Na Bahia, é, sobretudo na segunda década do século XX que os
projetos de remodelação urbana, através das mudanças materiais, estéticas e de hábito
compõem o projeto de modernização da cidade de Salvador. As intervenções nas estruturas
urbanas e nos costumes populares marcaram a administração de J.J. Seabra na Bahia entre
1912 e 1916, de modo que contando com a contribuição dos intendentes municipais, a cidade
de Salvador postulava à civilização como meio para o progresso (LEITE, 1996).
Foi, portanto, a partir do compartilhamento de experiências que se processavam nas
principais cidades brasileiras, sobretudo em Salvador, devido a aproximação geográfica e
contato imediato em função da circulação de bens e serviços que a cidade de Nazareth acabou
reivindicando propostas semelhantes. As iniciativas modernizantes na cidade de Nazareth se
materializaram, sobretudo, através da criação de leis, atos e resoluções instituindo normas de
controle social, onde o Código de Posturas reformulado e editado em 1893 foi o exemplo
maior da preocupação da administração pública com o município. Neste caso, tais iniciativas
seriam impostas pelas autoridades, que fariam uma campanha, em certa medida, repressora
visando promover a modificação de hábitos, costumes, comportamentos, disposições
urbanísticas e tributárias, buscando assegurar um controle físico e sociocultural do espaço
urbano e dos seus habitantes.
O instrumento do Código de Posturas tinha como objetivo a normatização dos
comportamentos no espaço urbano para garantir a idéia do progresso e civilização tão
reivindicada neste período (MATTOSO, 1992). Enquanto legislação, as posturas incidiam
4
Trata-se de um projeto político centrado nas ações físicas e comportamentais do homem, tendo como objeto a
intervenção medica na sociedade, tendo sido caracterizada pela prevenção. Ver: MACHADO, Roberto;
LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia (1978).
fundamentalmente na vida cotidiana da cidade, como um dispositivo regulador da estrutura
social, “atingiram incisivamente as classes populares no que diz respeito às suas práticas,
costumes e hábitos já incorporados à cultura e ao cotidiano urbano” (AGUIAR, 2012, p. 200).
Dessa maneira buscamos, através deste estudo, compreender como estas normas
disciplinares instituídas pelo poder público estavam inseridas no contexto da modernidade
brasileira, bem como a recepção destes instrumentos pelos sujeitos sociais locais, sobretudo a
população recém saída do cativeiro, especialmente em relação ao código de posturas
municipal. Considerando que esta legislação de caráter normativo propunha tornar
socialmente aceito e regulamentado o comportamento desejável, o objetivo é discutir em
perspectiva histórica, no plano da experiência, a incidência das leis no campo das relações
sociais locais e as formas pelas quais ela se incidia na vida dos sujeitos.
O Código de Posturas e o planejamento da cidade
Foi na sessão da intendência municipal de Nazareth do dia 24 de agosto de 1893, que a
administração publica aprovou o novo código de Posturas do município, a entrar em vigor
após três meses. Trata-se, talvez, do primeiro Código de Posturas do Recôncavo Republicano
que legisla e complementa disposições ausentes no Código Penal de 1890, ou mesmo o
reforça. Organizado em 9 capítulos e 165 artigos, o Código de Posturas de Nazareth se
apropriou de elementos estratégicos na tentativa de transformar a cidade com a perspectiva de
a civilizar, são eles: os hábitos e costumes urbanos, a higiene da cidade, a urbanização,
manutenção da ordem e controle das práticas comerciais.
Neste contexto de anseios civilizatórios, a questão da salubridade pública passou a
ganhar um espaço de notável importância, na medida em que as cidades brasileiras
apresentavam aspectos de incivilidade para as elites políticas e intelectuais, sobretudo no que
diz respeito às condições de higiene, sendo esta entendida como um dos elementos
definidores do grau de civilização de uma sociedade (CHALHOUB, 1996). Os grandes
problemas de surtos epidêmicos, proliferação das residências coletivas e a dificuldade de
atrair investidores internacionais em face dos problemas da higiene pública foram fatores
determinantes para a intensiva preocupação do poder público e das elites com esta questão no
país (LEITE, 1996).
As propostas de controle dos modos de vida e “civilização dos costumes” das classes
populares foram defendidas “segundo os pressupostos idealizados para a sociedade brasileira
pela elite burguesa dominante” (LEITE, 1996, p.12). Deste modo, as legislações editadas pelo
poder público, neste período, com o intuito de intervir nas estruturas urbanas estavam levando
em consideração as críticas medicas higienisticas formuladas na época como ponto
fundamental para o desenvolvimento dos ideais de progresso e civilidade defendidos pelas
elites republicanas, como foi o caso de Nazareth.
A medicalização da sociedade
5
foi a reivindicação de várias cidades que pretendiam
se civilizar, onde a intervenção nas estruturas urbanas foi o eixo estruturante do processo
civilizatório que se expressava sob os ditames do liberalismo econômico em voga. É neste
contexto que através de instrumentos como os Códigos de Posturas “muitas das práticas
populares e muitos dos usos que faziam da rua, para o lazer ou para o trabalho, passaram a
sofrer censuras e a conhecer formas de controle” (LEITE, 1996, p. 111). Destarte, entendemos
o choque entre estas censuras e as práticas populares que permaneciam como sinais da
emergência da proposta civilizadora das elites urbanas republicanas no Recôncavo sul, onde
se encontrava em voga um sistema político e sóciocultural incoerente com os novos
postulados de progresso.
Combater a incivilidade e remodelar a cidade
Entendendo que a questão da higiene pública figurava como um elemento essencial
para atingir o grau de civilização desejado, (CHALHOUB, 1996) o Código de Posturas tratou
de regular aspectos diretamente ligados a esta questão, bem como outras atividades que se
relacionassem com a higiene.
No que diz respeito às habitações coletivas, notamos que é a partir da segunda metade
do século XIX que as câmaras municipais estabelecem instrumentos legais para regular a sua
existência e definir as formas de intervenção do poder público naqueles locais. Considerando
que presença das habitações coletivas no espaço urbano representava um foco de irradiação de
epidemias e colocava em perigo a saúde da sociedade, as autoridades passaram a empenhar
esforços no sentido de controlá-las ou mesmo de eliminá-las. Deste modo, principalmente os
5
Trata-se da relativa organização do espaço urbano e das ações comportamentais a partir das formulações da
medicina social. Ver: MACHADO, op. cit.
cortiços e as estalagens, passaram a figurar nos atos normativos da municipalidade como
espaços que colocavam em risco as condições higiênicas da cidade (CHALHOUB, 1996).
No Código de Posturas de Nazareth, a preocupação das elites locais com as habitações
coletivas determinou a obrigação de que os proprietários mantivessem tais locais de morada
“sempre aceiadas e a dispozição das vizitas domiciliares das autoridades sanitárias,
commissões municipaes e fiscaes do municipio”, conforme expressa o artigo 36. Outrossim,
independentemente de ser habitação coletiva, as posturas obrigavam ainda que em tempos de
epidemias os moradores mantivessem limpos os quintais, latrinas e dependências das suas
moradias, fazendo a limpeza do exterior das propriedades seguindo as orientações do
intendente municipal. Parafraseando Chalhoub, os cortiços representavam uma espécie de
ameaça constante, um lugar inconveniente, mas não para as pessoas que ali residiam e sim,
para as classes dominantes (CHALHOUB, 1996, p. 53).
No que diz respeito à questão da saúde pública, o Código definiu a proibição do
exercício das profissões relacionadas à saúde sem apresentação ao conselho municipal do
titulo conferido pelas escolas médicas do país. Esta medida, já expressa no Código Penal de
1890, implicava mais proibições ao oficio de curandeiro ou à prática de meios curativos por
pessoas não habilitadas legalmente, ou que prescrevessem medicamentos, ainda que não
assinassem. 6 Esta proibição ratificava o que já estava previsto no artigo 158 do capítulo III,
título III do Código Penal que dispunha sobre os crimes contra a saúde pública.
A proibição expressa nesta norma revela o objetivo de extinguir costumes e tradições
populares que não estavam em sintonia com o saber científico, bem como com os ideais de
modernidade e civilidade propugnados pelas elites republicanas. A prática do curandeirismo
foi representada nos atos do poder público, emanados dos ideais republicanos, sobretudo após
o Código Penal de 1890, sob a perspectiva de desqualificação e descaracterização dos agentes
terapêuticos, com o objetivo de oficializar a medicina cientifica no país.
Ainda no que se refere a saúde e profilaxia urbana, o Código estabeleceu algumas
deliberações importantes a respeito das moléstias e epidemias e suas relações com o cotidiano
dos munícipes. Segundo as posturas municipais era dever do médico comunicar de imediato
ao intendente em caso de moléstia contagiosa no município, além disso, facultava à
6
APMN, Código de Posturas Municipal, artigos 18, 19 e 20.
fiscalização municipal o direito de visitar as casas onde tivessem ocorrência destes casos, bem
como tomar as medidas de desinfecção em caso de morte do enfermo. 7
As diversas regras de precaução e métodos de acompanhamento em caso de
epidemias na cidade evidenciam o pavor que estas epidemias causavam, sobretudo o temor de
que se alastrarem e contaminassem, sem distinção de classe, toda a população. Desse modo, a
preocupação era desinfetar, por meio do isolamento ou de medidas sanitárias, os transportes,
habitações, animais e pessoas que apresentassem suspeitas e/ou contato com alguma moléstia.
Para tanto, foi proibido desde a “venda de substancias comestiveis” por aqueles que sofreram
de moléstias até “introduzir nas cocheiras, pastos ou rebanhos infectados, animais novos até
15 dias depois do ultimo caso verificado”. 8
O temor das epidemias fez a municipalidade se preocupar efetivamente com a
possibilidade de surtos epidêmicos na cidade de Nazareth, sobretudo em virtude das
condições de salubridade da cidade e pelas notícias de casos como os ocorridos no Rio de
Janeiro a partir da segunda metade do século XIX, que teriam dizimado uma quantidade
significativa de pessoas. Registra-se ainda que no início da segunda década do século XIX o
Recôncavo sul foi atacado por uma epidemia, em que, em 1855, um surto de cólera tomou a
cidade de Nazareth, sendo até necessário a improvisação de novos cemitérios, uma vez que os
sepultamentos se sucediam, em princípio à noite, em seguida, dia e noite, em valas comuns,
estimando-se a morte de 2.000 pessoas (AUGUSTO, 1999) Esse medo causou histeria
principalmente nas elites locais.
As posturas trataram de regular também os comportamentos dos indivíduos, com o
intuito de promover os considerados desejáveis e extinguir aqueles que contrariavam a
marcha para o progresso, demonstrando uma intensa preocupação com a moralidade e a
instituição dos bons costumes. Isto pode ser identificado, por exemplo, na proibição de
“proferir em publico palavras obscenas, fazer gestos ou tomar atitudes indecorosas ou fazer
exibições de quadros ou figuras ofensivas”. 9 Assim, o objetivo era eliminar das vivências
urbanas as manifestações consideradas de desordem moral e corrupção dos costumes.
Inserido neste contexto, um discurso que se prolongou durante todo o século XIX foi
de desqualificação das expressões culturais da população negra; estudos já indicaram que
estas foram as mais duramente perseguidas. Num contexto de intensas revoltas escravas, a
7
APMN, Codigo de Posturas de Nazare de 1893, artigos 27 e 28.
APMN, Codigo de Posturas de Nazare de 1893, artigos 48 e 33.
9
APMN, Código de Posturas de Nazareth de 1893, artigo 48, §7º.
8
adoção de medidas de controle como posturas municipais destinadas a coibir certas
manifestações culturais da população negra significava uma estratégia para impedir o seu
ajuntamento, freqüentemente associado com a noção de desordem (SANTANA, 2008). Neste
sentido, elementos de ordem religiosa, dos hábitos de lazer, divertimento e até exercícios
profissionais foram duramente controlados. Tal como ocorria em outras cidades brasileiras, na
cidade de Nazareth encontravam-se hábitos e tradições do passado colonial e imperial que
foram reconstruídos e re-significados pela população negra no pós-abolição.
Sendo assim, o Código de Posturas, em seu artigo 48, proibiu “dar batuque ou
qualquer dança com algazarra que pertube o socego publico” com o fim de regular os
divertimentos populares da cidade de Nazareth, que em alguma medida estavam relacionados
à população negra da urbe. Na contramão do discurso civilizador que condenava certas
práticas evidentemente herdadas dos africanos, as danças, sobretudo as rodas de samba, eram
um elemento integrado ao lazer e às festividades da população negra. Os batuques, as danças
e as algazarras, (ALBUQUERQUE, 1999) presentes no universo urbano de Salvador desde o
século XVIII, que aconteciam nas ruas e terreiros e expressavam o fortalecimento das
relações sócio-culturais dos sujeitos escravizados vindos das diversas nações africanas,
(SANTOS, 1997) também estavam presentes na cultura popular de Nazareth, que fora uma
das cidades escravas da Bahia.
Entendendo que os hábitos, divertimentos e até mesmo os momentos de lazer da
população negra eram vistas como viciosos e perigosos, o projeto civilizador das elites
republicanas tratou de reprimi-los, por não coadunarem com as suas representações
preconizadas de modernidade urbana. Ao proibir sistematicamente essas práticas, associandoas à perturbação ao sossego público, tentava-se promover a remodelação do espaço social,
eliminando elementos da cultura que não estavam afinados com o ideal de civilização
projetado pelas elites para a sociedade brasileira.
Inseridos nos costumes populares, encontravam-se os eventos festivos que desde o
século XVII incorporavam o uso de máscaras, enquanto uma herança da colonização européia
e de costumes africanos, que eram bastante freqüentes entre os baianos em dias de celebrações
e festividades. Alguns estudos já destacaram também a presença das farras do entrudo nos
espetáculos, procissões e cortejos (ALBUQUERQUE, 1999). A este respeito, o artigo 48 do
Código de Posturas determinava a proibição da prática do entrudo no município e o artigo 49
proíbe “andar mascarado fora dos dias de carnaval”. Tal proibição estava relacionada ao
entendimento de que “era necessário livrar as ruas de práticas como batucadas e sambas de
roda, claras lembranças dos tempos da colônia e do império”, (ALBUQUERQUE, 1999, p.
24) comportamentos que não estavam coerentes com os ideais de civilização que se almejava
implantar. A questão era tática: desafricanizar às ruas, pois as elites achavam as manifestações
culturais destoantes dos padrões de civilidade e cidadania do Brasil republicano.
Também, no que diz respeito às edificações do espaço urbano, o Código estabelecia
muitas regulamentações que propunham construir uma estética urbana inspirada nos projetos
de urbanização implementados nos grandes centros urbanos. Deste modo, as posturas
determinavam que todos os prédios das ruas e praças fossem numerados em algarismo
arábico, e que nenhum prédio dentro do espaço urbano ou mesmo das povoações tivesse a
cobertura de palha. Além disso, obrigava os proprietários a fazerem, às suas próprias custas,
os passeios fronteiros aos seus prédios.
O Código definiu ainda que competia ao Conselho Municipal a elaboração de uma
planta geral do espaço público, a qual serviria para orientar as construções das ruas e praças
da cidade, assim como estradas em caminhos existentes e que seriam abertas. Incorporadas
aos projetos de reformas urbanísticas que foram implementadas nos centros urbanos, as
posturas também orientavam sobre as medidas das ruas da cidade e estradas. A proposta era
alargar as ruas, a partir da determinação de que as ruas centrais deveriam ter 15m de largura e,
respectivamente, as estradas 5m, consideradas as medidas mínimas. 10
Presumimos que as implicações destas medidas na dinâmica de vida dos indivíduos
locais ultrapassaram as obrigações de fazer a respeito das determinações urbanísticas. Os
alinhamentos e medidas corretas de organização espacial das ruas, avenidas, praças e estradas
significaram a tentativa conferir a estética urbana afinada com os valores considerados ideais
pelas elites. Portanto, um padrão estrutural urbano, sob a égide de um projeto disciplinar
burguês, foi desenhado para simbolizar um progresso, real ou imaginário, mas que ratificava a
desigualdade social na medida em que formulava estratégias de exclusão. Neste sentido, o uso
do espaço privado e público foi regulado através dos interesses das classes dominantes locais,
que priorizava por sua vez a “ornamentação” da cidade, de modo a eliminar da paisagem
social o espectro dos tempos coloniais e imperiais.
Dentre as posturas relacionadas às praticas comerciais, o artigo 109 estabelecia multa
aos “que tiverem casas de negocio desaceiadas, ou utensílios de pezos e medidas sujas, ou
usarem medidas de cobre para os liquidos” e o artigo 112 definia que “ninguem poderá ter
10
APMN, Código de Posturas de Nazareth de 1893, artigo 90.
amostras de gêneros de seo commercio ou industria expostos fora dos portões das lojas ou
vendas, de forma a encommodar o transito publico”. Visando manter a ordem, o asseio e o
controle público, o artigo 111 determinou a obrigatoriedade de que todos os negociantes,
ambulantes ou de qualquer espécie, tenham em mãos a competente licença, sob pena das
multas estabelecidas. Neste mesmo sentido, os negociantes de pequeno comércio de verduras,
frutas, peixes e ambulantes tiveram a permissão de vender seus produtos pelas ruas da cidade,
desde que não estacionassem nos passeios das ruas, mantendo a ordem. Assim regia as
posturas.
As obrigações e limitações presentes nas posturas expressam a preocupação do poder
público com as práticas e modos pelos quais a função do comércio e vendas vinham se
processando na cidade. Assim, a necessidade da garantia de uma cidade salubre passava, neste
sentido, também pelas medidas higiênicas nas casas comerciais fixas e a afixação de limites
para os vendedores ambulantes. Presumimos, por conta da situação de pobreza vivenciada
pelas quitandeiras e ambulantes, que a obrigatoriedade da licença municipal para o exercício
da função, tenha sido uma das medidas com maiores implicações em suas vidas.
Compreendemos também que a questão da alimentação também foi alvo de
normatizações. O artigo 120 determinou que o gado que seria destinado ao consumo só
poderia ser abatido no matadouro público. Este deveria ficar situado longe dos centros
povoados e passar por uma série de etapas de preparação antes e após o abatimento do gado,
orientadas pela intendência municipal, até chegar às casas de venda. Durante o processo de
abatimento dos animais haveria a devida fiscalização da municipalidade para atestar a aptidão
ou efetuar condenação dos animais ou das carnes impróprias para o consumo. Medidas como
o horário de abatimento, tempo necessário para o consumo, bem como o transporte da carne
também foram alvos de regulamentações, a exemplo da proibição de que as carnes possam
“ser carregadas sobre os hombros nus dos carregadores, evitando-se o contato com a pelle
delles”, expressa no artigo 136. Para seguir as normas higiênicas, as casas de venda de carne
ainda deveriam ser fechadas com grades de ferro, ter paredes azulejadas e chão cimentado,
com pesos e balanças areiadas, conforme regulamentava o artigo 121.
Assim, a excessiva preocupação com o abatimento e comércio de carnes deveu-se ao
fato de este ser um gênero alimentício destinado a todas as classes e que, diferentemente de
outros gêneros, não poderia ser comprado em outros locais onde pudesse ser assegurado o
asseio necessário e a garantia de estarem livres de infecções. Em contrapartida, a carne seca
vinda do Rio Grande estava presente nas casas comerciais locais. Logo, percebe-se que a
municipalidade não mediu esforços em adotar medidas higiênicas que garantissem à
população, mais precisamente às elites, a imunidade contra o perigo do contágio
resguardando-as assim da possível contaminação mediante o consumo da carne. As medidas
incidiam, sobretudo, em relação aos gêneros adquiridos no comércio local.
Considerações Finais
Os procedimentos teórico-metodológicos adotados neste trabalho passaram pela
análise das fontes encontradas e no diálogo com as discussões bibliográficas que fazem
referência aos estudos sobre o ideal de modernização, civilização, relações de poder, vida
cotidiana e espaço urbano no Brasil Republicano. Através da intensa leitura das fontes e
bibliografia, o que parece ficar evidente é a sintonia dos eventos que aconteciam em Nazareth
com os projetos modernizantes que estavam sendo implementados nas principais cidades do
país. As propostas que estavam pautadas nos ideais de progresso e civilização ficaram,
portanto, evidentes nos mais diversos instrumentos adotados para materializar no campo das
práticas sociais os postulados da modernidade. Assim, refletimos como estes elementos
tomaram corpo na cidade de Nazareth, através do Código de Posturas Municipal.
Verificamos, neste sentido, que no Código de Posturas encontram-se elementos
exigidos pelos ideais de modernidade, civilização e progresso, expressos em fins do século
XIX e inícios do XX, quais sejam a preocupação com a salubridade urbana, a saúde pública,
os hábitos e comportamentos populares, a habitação, as tradições herdadas, a urbanização e a
intervenção do poder público na vida privada. Sendo assim, conseguimos encontrar
referências a todos estes elementos nas referidas posturas, que procuram regulamentar
algumas dessas questões e criminalizar outras.
Na análise dos documentos, ficaram nítidas as propostas de intervenção do poder
público, com vistas a promover a regulamentação, a disciplina e a remodelação do espaço
físico e dos comportamentos urbanos, determinadas pelas elites intelectuais e políticas, no
mundo citadino. Pára além do objetivo de consolidar os “sinais da modernidade” em
Nazareth, já expressos através de algumas estruturas e serviços urbanos, a pretensão maior era
civilizar os costumes da população, sobretudo daqueles que contrariavam os valores aspirados
pela modernidade. Assim, os sambas, os batuques, as habitações coletivas, as moléstias e
epidemias, o comércio ambulante, o asseio público, a utilização do espaço, as imoralidades e
ações ritualísticas foram algumas das preocupações das elites, presentes no Código de
Posturas.
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THOMPSON, E.P. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
Fontes Manuscritas:
Arquivo Público Municipal de Nazaré
Código de Posturas de Nazareth, 1893.
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O ordenamento urbano da cidade de Nazareth e o Código de