Gastos invisíveis
Zeina Latif – Economista chefe XP Investimentos
As políticas públicas no Brasil vão muito além das formas tradicionais de gasto
público. Há também um emaranhado de renúncias tributárias e benefícios
financeiros e creditícios para setores produtivos, regiões e setores da
sociedade. Refletem a intenção do governo de incentivá-los, protegê-los ou
eventualmente compensar gastos realizados que seriam de responsabilidade
do governo.
Um grupo de despesas indiretas importantes - muitas vezes ignorado pela
sociedade e desconsiderado no debate público – são os chamados gastos
tributários. São eles renúncias tributárias que decorrem de isenções, deduções,
anistias e benefícios de natureza tributária.
São mais de duas centenas de regras de isenção tributária para quase uma
centena de programas, tornando o sistema tributário ainda mais complexo.
Em tempos de crise fiscal, deveria haver esforço não apenas para avançar em
reformas que contenham o crescimento automático de gastos públicos
tradicionais, mas também para reavaliar os gastos tributários. E não apenas
para atender metas fiscais e conter o crescimento da dívida pública, mas
também para eliminar distorções e equívocos que minam o potencial de
crescimento do país e a equidade horizontal e vertical.
Ainda que haja políticas meritórias, é necessário fazer uma reavaliação de
cada renúncia tributária. Esta tem sido a agenda mundial. E não sem razão.
O gasto tributário é um tema importante que desafia os governos mundo afora,
e não apenas o brasileiro. Esses gastos deixam o sistema tributário mais
complexo, estimulando a evasão e sonegação e elevando a insegurança
jurídica e custo de atendimento das regras tributárias. No final, é necessário
carga tributária mais elevada para os demais para compensar os desvios.
São instrumentos politicamente atraentes, pois são menos sujeitos ao
escrutínio permanente do parlamento e da sociedade e têm pouca
transparência. Sua revogação é geralmente vista como aumento de impostos,
o que é um equívoco. Exemplo disso no Brasil foi a dificuldade de aprovar a
reoneração da folha este ano.
Por essas razões, crescem esforços de governos para disciplinar e reduzir os
gastos tributários. Há países impondo tetos por contribuinte (França), limites
para seu crescimento (Coreia) e mecanismos de compensação, com corte de
despesa ou aumento de receita para cada novo gasto tributário criado (EUA,
Coreia). O mesmo deve ser dito sobre procedimentos para a revisão frequente
de programas (França, Holanda), avaliação e correção de rumos (Austrália),
com destaque para o caso da Alemanha, onde uma organização independente
de pesquisa revê os 20 maiores programas que representam 92% do total.
Não há procedimento padronizado nas finanças públicas para distinguir gasto
tributário de regra tributária. Isso dificulta muito a comparação internacional.
Há, por exemplo, risco de subestimação desses gastos no Brasil, pois em um
sistema tributário complexo, facilmente se confundem as duas coisas.
De qualquer forma, vale citar algumas cifras. Nos extremos do espectro,
enquanto Reino Unido registra 13% do PIB de gastos tributários (2007), a
Alemanha tem ao redor de 1%, segundo a OCDE. Na América Latina, esta cifra
estaria em 4,6% (2012), segundo o CIAT e na OCDE, 4,9% do PIB. Importante
notar que a cifra no Brasil está em 5% do PIB, mas considera apenas o
governo federal.
Na direção contrária da experiência mundial ou mesmo da América Latina, os
gastos tributários no Brasil crescem desde 2007, ganhando ainda mais ímpeto
no pós crise de 2008. Houve um salto de 3,6% para 5% do PIB entre 2009 e
2015. São R$ 282,4 bilhões ou 21% da arrecadação. Em 2000, o gasto
tributário correspondia a algo como 1,6% do PIB.
Na abertura por região, certamente a região norte é a mais beneficiada
relativamente. São R$36 bilhões em 2015, sendo R$28 bilhões referentes aos
benefícios da Zona Franca de Manaus (ZFM), enquanto que a arrecadação
federal na região totaliza apenas R$32 bilhões. Em volume, mais da metade do
gasto tributário vai para a região sudeste (52%), totalizando R$148 bilhões.
O principais programas são: Simples Nacional (R$72 bi), ZFM (R$28 bi),
desoneração da cesta básica (R$25 bi), desoneração da folha de salários
(R$22 bi), entidades filantrópicas e entidades sem fins lucrativos (R$22 bi).
O foco principal dos gastos tributários é incentivo a setores e regiões, sendo a
menor parcela a compensação por gastos que seriam responsabilidade do
governo. Ilustra bem uma das faces do estado patrimonialista.
A grande maioria das políticas não tem prazo para acabar ou tem prazos
exageradamente longos após várias postergações, como é o caso da ZFM,
estendida até 2050 ou 2073, a depender do item do programa. Esse fato é
agravado pela ausência de procedimentos para a reavaliação constante dos
programas. Os que tem prazo definido totalizam apenas R$25 bi, sendo que
parte são programas que são sistematicamente renovados, como os fundos de
desenvolvimento – FINAM, FINOR, SUDAM, SUDENE.
Eliminar gastos tributários deveria fazer parte do atual esforço de consolidação
fiscal, inclusive para aprimoramento do regime fiscal. Ao ignorá-los, corre-se o
risco de estas cifras continuarem crescendo, minando os esforços de ajuste.
A necessidade de avanço institucional é bastante clara, apesar do pioneirismo
do Brasil, no contexto de América Latina, em aumentar a transparência das
contas públicas. Desde 2000, o orçamento deve identificar os gastos
tributários. Não se avançou, no entanto, nas medidas de compensação de
renúncias tributárias, conforme previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal. E
certamente o país carece de avaliação dessas políticas públicas.
Políticas econômicas tendem a ter um forte componente de inércia,
principalmente quando grupos de interesse lutam por sua manutenção. Muitas
vezes continuam sendo implementadas a despeito de serem desnecessárias,
ineficazes ou até contraproducentes. À luz do que ocorre no Brasil, onde
desequilíbrio macroeconômico e a crise fiscal comprometem nosso futuro,
possivelmente muitas delas já são contraproducentes.
O governo falha muito no cuidado com a alocação dos recursos públicos.
Enquanto havia espaço para aumento da carga tributária, foi possível driblar
essas fragilidades. A crise fiscal, no entanto, impõe o aprimoramento da gestão
da política fiscal. Precisamos aprender com as melhores práticas globais.
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Gastos invisíveis por Zeina Latif / XP Investimentos