“UMA ROSA É SEMPRE UMA ROSA”:
EXPERIMENTAÇÕES NO ESPAÇO PALAVRA E ARTE
Autores: Aída de Souza Dutra*, Nataly Netchaeva Mariz** e Natália Anachoreta
Molleri***
Introdução
“A vida é a imitação de algo transcendental com o qual a arte nos põe em
contato”. Inspirados nesse trecho de Artaud pretendemos, no presente trabalho,
discorrer sobre O Espaço Palavra e Arte. Realizado semanalmente, se propõe a criar um
ambiente favorável à leitura e a expressão, usando poemas como ponto de partida à
criação. Estimulando a atividade de leitura, do arranjo das palavras e da escrita, procurase oferecer um espaço para o dizer, para o fantasiar, onde o lúdico e o criativo são os
fios condutores das narrativas, favorecendo a organização simbólica e a ordenação do
eu no eixo do tempo e do espaço. Nesse contexto, o poema, caracterizado como uma
obra de poesia em verso, pode ser entendido como um dos veículos de acesso à emoção
e à criatividade, promotor da elaboração psíquica, além de um mediador, ou objeto
transicional entre a vivência subjetiva interna e o meio externo (Winnicott, 1975).
Numa cultura dominada pelos interesses utilitários, a arte possibilita variadas
formas de expressão. Sendo assim, conceitos e práticas winnicottianas como a
transicionalidade e o brincar estão intimamente ligados à valorização do “campo da
ilusão” que são a arte e a expressão poética.
A hora da poesia-poema
Por poesia compreendemos não apenas o que usualmente é como tal
definido ou rotulado – poemas curtos, com ou sem métrica, rimas, etc. – mas a
construção de uma imagem no espaço intrasubjetivo. Imagem apenas
esboçada em seus elementos plásticos principais, impregnada de afeto,
portadora de um significado entre palavra e não-palavra proporcionando a
descoberta de sentimentos possíveis. Nesse campo a poesia é tratada como
um exercício permanente de recriação do mundo através da linguagem – é a
criação de uma poesia concreta, visual numa ordem que não é plástica nem
poética, mas um híbrido não nominável e intensamente expressivo. Pode ser
criada ou recriada por meio da imagem que, devaneamos durante a leitura da
poesia. É a imagem que permite ao leitor esquecer que está apenas olhando
uma página e passe a “alucinar” o próprio texto. A recriação da imagem, pelo
leitor, constitui um processo ativo, há um deixar-se conduzir pela leitura.
Winnicott chama atenção para um novo estatuto do imaginário ao
incluir a ilusão como um dos momentos necessários para que haja o acesso à
realidade, já que o paradoxo percebido-criado ou realidade-ficção, para o
autor, não é algo a ser superado. A linguagem tal como nos apresenta Freud
em seu estatuto inaugural, de uma fala repleta de poder de criação de uma
nova subjetividade, uma palavra fundadora, criadora de sentido e significado
(Kon, 1996).
A atividade que propomos explorar destaca-se como um espaço lúdico que
procura incentivar um brincar com as palavras, pensadas como meios de expressão de
emoções profundas. É a partir desse “espaço para o fantasiar” que o sujeito tem a
experiência de “contar para o outro” abrindo-se um caminho para a simbolização,
procurando trabalhar a partir de poemas e, principalmente, de poesias – no sentido que
(nos) apresenta Lyra:
Se o poema é um objeto empírico e se a poesia
é uma substância imaterial, é que o primeiro
tem uma existência concreta e a segunda não.
Ou seja: o poema, depois de criado, existe per
si, em si mesmo, ao alcance de qualquer leitor,
mas a poesia só existe em outro ser:
primariamente, naqueles onde ela se encrava e
se manifesta de modo originário, oferecendose à percepção objetiva de qualquer indivíduo;
secundariamente, no espírito do indivíduo que
a capta desses setes e tenta (ou não) objetivá-la
num poema; terciariamente, no próprio poema
resultante desse trabalho
objetivador do
indivíduo-poeta. (LYRA, 1986).
De acordo com Winnicott o fenômeno da ilusão permite a criação de um objeto
subjetivo e o desenvolvimento da capacidade imaginativa. Entendemos que esse
“brincar poético” propicia um espaço preservado de elaboração de sensações subjetivas.
Podemos, então, dizer que o processo de interação-criação no Espaço Palavra e
Arte ocorre em diferentes tempos: primeiramente há uma preparação para a atividade
(um “entrar no clima”) que consiste num convite que é feito a cada paciente e a reunião
de todos; a atividade se inicia com a leitura, seguida por uma reflexão sobre o(s)
poema(s) lidos e o desfecho é dado a partir das produções escritas ou visuais
complementado pelas coordenadoras.
O desabrochar da rosa
Com este primeiro poema, que dá título ao trabalho, iremos elucidar esta
atividade, apresentando alguns fragmentos de grupos realizados pelas coordenadoras.
Há uma rosa caída
Morta
Há uma rosa caída
Bela
Há uma rosa caída
Rosa
... Uma rosa é sempre uma rosa, completa Denise na leitura do poema “Há uma rosa
caída” de Maria Ângela Alvim. Assim como a rosa, Denise permanece bela e ressalta
que uma rosa sempre levanta. Valeska chama atenção que, um outro participante do
grupo, leu uma parte que não existe. As coordenadoras apontam: houve uma criação
para além do que foi lido. Emerge uma nova poesia! Surge no grupo a questão “qual a
diferença entre poema e poesia?”. Denise, constrói uma imagem poética: “poesia é
pequena, poema é grande, isso é uma poesia”.
São pequenas construções poéticas que despontam do oceano de imagens que
nos traz um poema. Nossa Rosa, prestes a ganhar alta, mais uma vez se vê levantando e
cheia de projetos. Estes se cumprirão?... “Uma rosa é sempre uma rosa” dizem suas
palavras e seus traços delicados que retratam sua beleza, entendendo sua vida tal como
o poema, como uma rosa que poderia retomar as forças após “murchar”.
O eterno retorno do tempo: o tempo da poesia e o tempo do homem
Alguns meses depois falamos do tempo, sua passagem e suas lembranças:
Esta folha branca
me proscreve o sonho
me incita ao verso
nítido e preciso.
Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.
Como não há noite
cessa toda a fonte;
como não há fonte
cessa toda a fuga
como não há fuga
nada lembra o fluir
de meu tempo, ao vento
que nele sopra o tempo.
(Fragmentos da poesia Psicologia da Composição – João Cabral de Melo Neto)
Em “Psicologia da composição” acabamos entrando em uma psicologia do
tempo através de Marcos que, explicando para Roberto sobre o poema, nos diz que há
tempo para tudo: para comer, para dormir... Roberto completa: e para desenhar. Ambos
ressaltam o entendimento desse tempo como estações do ano. Marcos também fala de
um outro tempo; tempo de lembranças e tempo de sonhos que apontam para o desejo de
estar em um lugar tranqüilo, com a família, fazendo coisas simples como um piquenique
ou ir à praia. O tempo da poesia é o tempo do homem, pois segundo Anatol Rosenfeld
(1972), o homem não está para o tempo, o homem é o tempo. Portanto na palavra
poética o tempo se fragmenta e suas imagens se remetem a uma atemporalidade que faz
indefinido o passado, o presente e o futuro.
A dor como poesis
Há também o tempo da dor que, como Nietzsche nos ensina, não é preciso vivela como dor, mas transmiti-la em arte. É nesse sentido que a poesia “Rosa de Hiroxima”
fala da “dor poética”:
...
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
...
(Fragmento da poesia A Rosa de Hiroxima – Vinícius de Moraes)
Assim, a imagem poética cria um novo espaço, “subordinado” a um
novo tempo. Um tempo de criação que não se configura como tempo de
cronos. É um tempo no qual a poesia cria novos espaços temporais
transformando sentidos e sofrimentos em instantes intensos de vida. A criação
é a resignificação de novos sentidos e de novos “devaneios”. Se na Rosa de
Hiroxima há transmutação de dor em poesis, no tempo vivido no Espaço
Palavra e Arte, há criação de um tempo que torna possível outras esferas da
vida.
Considerações finais
Por fim, podemos dizer que este espaço de palavras fundadoras, de versos
expressivos, o Espaço Palavra e Arte, nos conduz a uma nova maneira de vivenciar o
sofrimento psicótico, com palavras e imagem que são meios de construção de uma
maneira mais lírica de conviver com o adoecimento. Se Freud (1905) ressalta que
“poesia lírica presta-se, sobretudo, para dar “fluidez” a uma sensibilidade intensa e
variada, como acontece também com a dança”, convidamos a todos a experimentar esta
dança das palavras na qual nos lançamos através da poesia.
* Terapeuta Ocupacional da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria HUPE/UERJ,
professora do curso de Terapia Ocupacional da Universidade Castelo Branco
** Residente do segundo ano em Psicologia Clínico-Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar – IP/HUPE/UERJ
*** Estagiária de Terapia Ocupacional alocada na Enfermaria da Unidade Docente
Assistencial de Psiquiatria HUPE/UERJ
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Referências bibliográficas
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
BACHELARD, G. Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo: Martins Fontes,
1990.
KON, N. M. Freud e seu duplo: reflexões entre psicanálise e arte. São Paulo:
EDUSP/Fapesp, 1996.
KONDER, Leandro. As artes da palavra: elementos para uma poética marxista. São
Paulo: Boitempo, 2005.
LYRA, P. Conceito de poesia. São Paulo: Ed. Ática, 1986
MORICONI, Ítalo. Org. Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2001.
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Trad. J. O A Abreu e V Nobre.
Rio de Janeiro: Imago, 1975.
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Por poesia compreendemos não apenas o que usualmente é como