ARTIGO
M A R I A
R E G I N A
S O A R E S
D E
L I M A *
O retorno da política
as duas últimas décadas do século que se findou, ocorreram
transformações com impacto significativo nas trajetórias políticoeconômicas dos países industrializados e, ainda mais drasticamente,
nas dos países em desenvolvimento.
No curto espaço de 20 anos, mudanças tecnológicas nas comunicações e a internacionalização dos
mercados de bens, serviços e capitais globalizaram a economia, aumentando a interdependência, já
bastante assimétrica, entre aqueles
dois grupos de países, bem como a
sensibilidade mútua entre todos.
Esse período assistiu assim à eleição de governos conservadores na
Europa Ocidental e na América do
Norte, à crise dos modelos de inserção internacional, à implementação de políticas austeras de estabilização macroeconômica na América Latina e ao colapso dos regimes
comunistas na União Soviética e
Europa do Leste, seguido do movimento na direção da economia de
mercado.
O conceito definidor desse período e dessas transformações foi o
de neoliberalismo, apontando para
um conjunto de políticas envolvendo a desregulamentação dos mercados, a descentralização do Estado, a abertura econômica e a diminuição da intervenção estatal nas
atividades econômicas em geral.
Esse fundamentalismo do mercado
foi, portanto, um projeto político
objetivando mudanças institucionais profundas em escala comparável ao que se observou no período imediatamente posterior à Se-
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gunda Guerra Mundial, uma vez
que diversas dessas práticas buscavam modificar o arcabouço institucional implantado naquela época. A coincidência no tempo entre
globalização e o fim da Guerra Fria
viu surgir nas teorias acadêmicas e
doutrinas governamentais, bem como no discurso das elites em geral
do mundo desenvolvido, duas projeções antagônicas, mas conver-
Excessos
liberalizantes
levaram a periferia
do capitalismo a
uma série de crises
cambiais
gentes nas suas implicações, a respeito da cultura política da nova
ordem mundial. De um lado, apostou-se na vigência da paz democrática a reinar nas democracias
ocidentais desenvolvidas, na virtuosa combinação de economia de
mercado e democracia liberal; de
outro, na persistência e agravamento do cenário hobbesiano, da guerra de todos contra todos, a imperar
na periferia do mundo harmônico
do Norte.
Passados mais de 20 anos do
início da implantação do projeto
neoliberal, estudos empíricos demonstram que esse conceito é bem
mais complexo do que sua versão
doutrinária fazia crer, e as experiências práticas sugerem a diversi-
dade de instituições, idéias e prescrições de política adotadas no
processo de ajuste às novas condições político-econômicas internacionais. Ao contrário do que se
previa naquele momento, não se
observou a tão propalada convergência na direção de instituições
neoliberais comuns; as mudanças
no marco regulatório da atividade
econômica tomaram a forma antes
de “re-regulação” do que de desregulamentação, e, mais importante,
as transformações na configuração
institucional do pós-Segunda Guerra não geraram comportamentos e
resultados mais eficientes.1 Na verdade, a partir de 1995, inaugurada
pelo México, sucedeu-se uma série
de crises cambiais — Ásia, Rússia e
LULA
Argentina — que acabaram levando
alguns dos principais economistas
do Norte, como Joseph Stiglitz, a
fazer mea-culpa pelos excessos liberalizantes a que foi conduzida a
periferia do capitalismo pelos novos doutrinadores do mercado.2
Emblematicamente, os atentados de 11 de setembro de 2001
constituem afirmação e simultânea
negação da globalização, com a irrupção dramática da política na
cena internacional. Possibilitadas
pelos mesmos instrumentos tec-
nológicos que têm permitido a
constituição de espaços extraterritoriais e a circulação sem precedentes de bens materiais, ativos financeiros, idéias e pessoas, as
redes terroristas transnacionais
constituem mais um desses atores
do mundo globalizado. Por outro
lado, se as fronteiras nacionais se
tornam mais porosas, ninguém
mais está livre das ameaças que
vêm de fora e nem mesmo a hiperpotência escapa ao terrorismo suicida. A resposta do governo Bush
1. Ver, por exemplo, a avaliação das conseqüências da adoção de políticas neoliberais efetuada por
John L. Campbell e Ove K. Pedersen (eds.), The Rise of Neoliberalism and Institutional Analysis,
Princeton: Princeton University Press, 2001. De uma perspectiva da mudança cultural, ver Peter L.
Berger e Samuel P. Huntington (eds.), Many Globalizations: Cultural Diversity in the Contemporary
World, Oxford: Oxford University Press, 2002.
2. Joseph E. Stiglitz, Globalization and its Discontents, Nova York: W.W. Norton & Company, 2002.
também pode ser entendida como
uma reação antiglobalização por
ter implicado o fortalecimento da
identidade nacional norte-americana e a reafirmação da soberania
exclusiva dos EUA. A despeito das
ameaças ponderáveis à estabilidade internacional da implementação da doutrina Bush, esta também se inscreve nesse movimento
de retorno da política à cena
mundial, ao priorizar as razões de
segurança sobre as necessidades
do mercado.
Em outro extremo ideológico e
diapasão político, mas convergente
no que representa de reação nacional ao “moinho satânico” — utilizando a já clássica expressão de
Polanyi — da hegemonia do mercado, a eleição presidencial de Luiz
Inácio Lula da Silva também exemplifica esse mesmo movimento de
reação ao determinismo econômico
e o retorno da política. Talvez o elemento que melhor sintetize a aspiração do eleitorado brasileiro
nessa escolha presidencial tenha
sido a expectativa de mudança e a
idéia de que um mundo diferente
do status quo é possível.
O significado do retorno da política pode ser expresso nas idéias
da prevalência da contingência, da
incerteza, do imponderável, do
agir. Ao contrário do bordão neoliberal, não existe um mundo predeterminado a que estamos inexoravelmente destinados, todos os
mundos são igualmente possíveis,
dependendo das escolhas efetuadas
em cada situação específica.
* Cientista política, professora titular
do Instituto Universitário de Pesquisas do
Rio de Janeiro — Universidade Candido
Mendes (Iuperj/Ucam) e do Instituto de
Relações Internacionais da PUC-Rio.
Coordenadora das subáreas de política,
sociologia e antropologia e da área de
Ciências Humanas da FAPERJ.
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