BRANCA DE NEVE
De Lídia Jorge
Conto publicado na Alemanha pela editora Der Club RM Buch und Medien
Vertrieb, Verlagsgruppe Random House em 2002.
In “Vésperas de Natal”, colectânea de Contos, Ed. D. Quixote, 2002, ISBN: 972-20-2362-4
Haverá, por acaso, maior felicidade do que uma pessoa cumprir os seus
próprios objectivos e ter a consciência disso? Não, não há, sobretudo se
apenas se conta trinta e cinco anos de idade e já se iniciou uma carreira de
gerente bancária. Sobretudo se a jovem gerente, ao proceder ao último
balanço, verifica que alcançou os volumes de crédito previstos. Era isso,
precisamente, o que Maria da Graça constatava, ao encerrar a última pasta,
naquele fim de dia de infatigável trabalho.
Para lá do vidro, o relógio do Grande Hall marcava as horas e as duas
agulhas rodando pareciam falar da harmonia do Mundo. Oito horas. A
harmonia sobressaía do rosto do relógio em face dos números exarados na
primeira folha da última Pasta. Dentro do gabinete, fazia um frio quase intenso.
O chão de mármore parecia de gelo. O ar condicionado havia sido desligado, o
sistema informático havia sido libertado apenas para ela, visitante solitária das
instalações do Banco, naquele dia feriado, antes de vários feriados. De
véspera, todos se tinham despedido. Mas ela tinha continuado ali encerrada, a
cumprir a tarefa que a levaria a atingir o objectivo previsto. Por aquecimento,
apenas o café que saía da máquina e o casacão castanho de caxemira. Tinha
passado o dia enrolada nele e no silêncio ameaçador que um recinto habitado
por demasiada gente engendra, quando despovoado. Não fazia mal, ali estava.
Embrulhada, cansada, satisfeita, a terminar a tarefa. Durante toda a tarde,
tinha-se desfeito em telefonemas para clientes que viajavam para longe, para
outros que já se encontravam em estâncias distantes, pessoas a fugirem da
cidade, a procurarem repousos de sonho, locais iluminados por estrelas e
velas. E ela tinha-os alcançado, atingido, marcado encontros para dali a cinco
dias, assegurando assim os movimentos de crédito que lhe permitiriam
ultrapassar os objectivos previstos. Apenas um deles, cuja voz parecia emergir
de algum lugar imóvel, lhe tinha perguntado – «Ouça lá, num dia destes, o que
a fez mover?» E ela tinha-lhe pedido desculpa, desligando em seguida.
Conhecia-o, era um cliente rebelde, uma dessas criaturas amargas com o
Mundo. Sobre a secretária, ainda ela tinha o cartão que ele lhe havia deixado,
agarrado a uma garrafa de champanhe. O cartão representava um infalível
Jesus de olhos azuis, sorridente, como se tivesse nascido com três anos de
idade, de mãos no ar e joelhinhos dobrados. De qualquer modo, um Jesus,
uma imagem dessas sob as quais, as pessoas equilibradas costumam escrever
apenas Boas Festas, Feliz Natal. Mas ele, o cliente rebelde, como se fosse
insensível, tinha escrito em letra geométrica, trancada, própria dos severos e
agastados – Em que altura a criança troca a moeda de oiro da inocência pela
agulha da perversidade? – Silva Dias. Assim mesmo, sem mais nem menos,
como se espalhar a suspeita sobre os seres humanos fosse a sua prenda de
Natal. Pois o que queria o Engenheiro Silva Dias dizer com aquele arrazoado?
Que o Cristo de joelhinhos levantados ainda mantinha a moeda de oiro? Que
estava destinado a perdê-la, como qualquer ser humano? E que todo o
homem, por conseguinte, era perverso porque não havia outra saída possível
para a sua natureza? Também Cristo? À excepção de Cristo? - Não, não tinha
continuado o telefonema. Face ao enigma das palavras, Maria da Graça sentia
que era um descanso lidar com a lógica dos números. Crédito, não crédito.
Lucro, não lucro. Tinha desligado. E agora, ao sair para o frio móvel da rua,
não queria pensar mais nesse cliente bárbaro. As armações eléctricas
ofereciam uma floresta de luzes e brilhos, como num incêndio brando onde se
caldeassem em uníssono as boas intenções da vida. Estrelas e sinos, feitos de
lâmpadas acesas, falavam-lhe na urgência em que estava. Ainda tinha de
passar pela Pastelaria para arrecadar uma torta, ainda tinha de tomar um táxi
para ir buscar o carro que havia deixado a lubrificar. Ainda, ainda. E eram
quase nove horas. Já com a caixa na mão, Maria da Graça encerrou-se por
completo dentro do longo casaco de caxemira e avançou avenida fora.
Sim, a Avenida EUA, longa e larga, um corte de Nascente a Poente sobre
uma elevação considerável, essa não suportava enfeites a não ser os que
sobejavam de uma ou outra árvore alucinada, piscando no interior dos pátios.
Os prédios altos, as duas margens da via bem afastadas, entre as quais um rio
de trânsito passava, não o permitiam. Naquela noite, o vento que soprava do
Atlântico batia ali, a pleno galope, como se fosse feito de facas. No clima
ameno de Lisboa, onde nada de grandioso acontece, por aquela ocasião,
soprava um vento assim. Túneis na avenida, jardins intercalares intermináveis.
Papéis e pedaços de pinheiro levantados no ar. Por perto, não passava um
táxi. Então iria descer. Iria descer, acompanhando o movimento do trânsito
para poder chamar um carro livre, assim que surgisse. Entretanto, como
avançava rente às paredes, nem se importava. Fazia-lhe bem caminhar depois
de um dia de contínuo trabalho. Fazia-lhe bem respirar aquela aragem. O
mundo leve, as abas do casaco quente a protegerem-lhe o corpo, a
balouçarem no andamento. Via-se nos vidros das portas, o desenho do casaco
amplo a voar, os espelhos correndo paralelos à marcha. Espelhos ocasionais
pelo passeio da avenida abaixo. Ao largo, de momento para momento, a
situação mudava. Agora já pouca gente na rua, já poucos carros, nenhum táxi,
não fazia mal. Maria da Graça sentia-se levada pelas abas do casaco e pelo
conforto do seu cumprimento pessoal. Nem sentia nada, de concentrada que ia
na sua marcha. A certa altura, porém, sentiu. Era uma espécie de presença, o
cheiro dum outro, um bafo atrás. O fumo dum cigarro? Sobressaltou-se. Não
tinha que se sobressaltar. Virou-se e apenas dois garotos caminhavam como
ela, passeio abaixo.
«Dois garotos?» – pensou.
Os dois garotos tinham parado. Ela havia recomeçado a andar. Teriam
tido medo dela e por isso teriam parado? Sim, eram apenas dois garotos, em
sapatos de ténis, descendo, avenida abaixo, na mesma direcção. Não
importava. No dia trinta de Dezembro, quando houvesse a última reunião do
ano, ela, a gerente, teria atingido todos os objectivos. Teria ultrapassado o que
se havia proposto. Leve, leve. Saco na mão e torta ao peito. A presença atrás.
Então virou-se e percebeu que os garotos caminhavam mesmo no seu encalce
e não eram dois, mas três. Um deles, o mais próximo, mostrou a boca onde
luziam, na frente, dois dentes adultos a despontar. Mínimo, o garoto disse-lhe –
«Não tenha medo, dona, vamos aqui, abrigados na sombra do seu casaco...».
Maria da Graça recomeçou a andar. «Na sombra do meu casaco...» –
pensou. É como nas corridas. De facto, a pessoa da frente corta o ar e abriga
os outros, facilita a vida aos de trás. O da frente corta o ar, o frio ou o calor.
Naquele caso, três crianças procuravam o cone criado pela aba do seu casaco
para se abrigarem do vento frio. Então ela virou-se e viu que eram quatro.
Quatro garotos desciam a Avenida EUA, à sombra do seu casaco. Vista de
cima, que figura interessante, a sua pessoa não haveria de criar. Ela, a andar,
com quatro putos pequenos a seguirem-na, para se abrigarem. A imaginar-se
fora de si e a ver-se seguida por quatro crianças mínimas. Encheu-se de
ternura pela vida, pelo calendário litúrgico, pelos meninos que a seguiam.
Quatro. Avenida abaixo. O casaco de caxemira quase aberto, a andar de um
lado a outro, para poder criar um cone de protecção maior. Merecia, ela
merecia aquela surpresa maravilhosa, depois de um dia de trabalho intenso e
solitário, para cumprir as metas. Voltou-se, a rir, e viu. O garoto com dentes
nascentes, demasiado largos e demasiado curtos, continuava a ser o primeiro.
Os outros três caminhavam atrás.
«Para onde vão vocês?» – perguntou Maria da Graça, pensando que iria
alcançar o fim da Avenida, iria atravessar o Parque, e se eles precisassem,
naquela noite, noite simbólica da caridade entre os homens, ela, que atingia
objectivos de produtividade bancária, poderia colocá-los dentro do carro e leválos até próximo do seu destino. Se não mesmo ao seu destino. Os seus amigos
esperavam-na. Quando chegasse ao Restelo, pelas onze horas, poderia contar
como havia descido a Avenida EUA, com quatro crianças atrás do seu
casacão. Virou-se – «Eu vou atravessar o Campo Grande. E vocês?»
Intimidados, eles não diziam nada. Só a seguiam, pouco enroupados, as
mãos debaixo dos sovacos, os cotovelos rente ao corpo. O da frente, a rir
desabridamente. Parando, quando ela parava. Cada vez o trânsito rareava
mais. Os táxis passavam ao centro da avenida, longínquos, os sinais
desligados, a recolherem para qualquer lugar como animais para o amalho.
Maria da Graça pensou – «Vou atravessar por aqui, talvez eles venham
atrás...» Vamos fazer companhia uns aos outros. Se eles não viessem comigo,
eu não viria por aqui... Eu adiante, de casaco aberto, fazendo bandeira para
eles, e eles a fazerem-me companhia... Eu muito feliz, muito feliz. Aqui vou eu,
atravessando a direito, por entre as árvores do Parque. Depois de atravessá-lo,
seria só atingir o outro lado e meter-se no carro. Tinha ficado com uma
segunda chave, sentia-a na algibeira. A oficina havia encerrado nas já
longínquas cinco horas da tarde. E ela ali. Meninos que seguem o capote duma
gerente bancária, que cumpriu objectivos e atravessa a noite feliz.
«Meninos?» – Virou-se.
Estava no meio duma clareira do Parque, uma zona bastante iluminada.
Atrás dela não caminhavam apenas quatro meninos. Caminhavam mais,
embora a fila compacta não permitisse contá-los. Seria difícil. Até porque Maria
da Graça continuou em frente, entrou numa zona de sombra e teve a certeza
de que eram muitos mais. Eles tinham-na cercado. Não, não lhe faziam mal.
Estavam só à volta dela, e caminhavam agora abertamente a seu lado, a rirem
para ela, como se fossem a sua guarda pretoriana. O maior entre eles já
deveria fazer a barba, mas mesmo assim, era baixo, dava-lhe pelo ombro. O
dos dentes nascentes era mesmo mínimo. Os outros, mínimos também. Ela
tinha parado, tinha levantado a caixa da torta à altura do peito. «Eh! Eh!» –
disse ela, sem saber muito bem o que dizer, sentindo-os demasiado próximo.
Tão próximos que lhe levantavam as roupas, metiam as mãos pequenas por
baixo do casaco, atingiam-lhe o cós da saia. Para se proteger, Maria da Graça
tinha largado a caixa da torta. Ao debruçar-se para o chão, a fim de alcançá-la
e de se recompor, sucedeu que as crianças mínimas, precisamente, lhe
puxaram violentamente o saco, atirando-a por terra. E contudo, era tudo
silencioso, rápido, como num sonho. Não faziam ruído. Ela tinha-se precipitado
para o saco, mas eles afastavam-se, agitando-o, procurando, dentro dele, a
parte que lhes interessava. «Eh! Eh!» – continuava ela a dizer, em voz baixa,
incrédula. «Eh rapazes!» Eram seis à volta do saco e da carteira, entornada na
relva. O chefe, o atarracado, olhava em volta, assegurava-se que os carros
passavam apenas a dez metros de distância. Eram sete. O chefe, esse
mesmo, escolhia o conteúdo na relva. Levavam o que levavam. Lá dentro,
Maria da Graça sabia ter apenas uns brincos, uma caneta de aparo de prata e
restantes objectos pessoais. E a carteira com cartões e dinheiro. «Eh! Eh!» Por
favor, as minhas fotografias, a fotografia da minha mãe e do meu pai... «Eh!
Eh!» Maria da Graça estava sentada no chão e não sentia dureza nenhuma.
Era como se ainda estivesse em pé e levasse várias crianças acolhidas na
sombra da sua saia. Mas não, a verdade era outra. Em que altura a criança
troca a moeda de ouro da inocência? Em que altura? Sempre troca?
Totalmente troca? Ela gritou – «Seus filhos da puta, seus raspelhos malvados!
Aqui, as fotografias!» O vento, ali, na abrigada plana do Parque, não se fazia
sentir. Dava para ver tudo claro, enquanto, escondidos na sombra das árvores,
entre si, os miúdos lutavam. Um novelo de miúdos à volta de um saco. O chefe,
o mais velho, tomou-o pelas asas e fugiu, agitando-o no ar. Mas um deles, um
outro, esgueirando-se da luta, correu na direcção dela como uma flecha,
devolvendo-lhe, atirando-lhe a carteira esfrangalhada. Era o mais mínimo de
todos, o dos dentes nascentes, e por um instante, só por um instante, o mínimo
ficou parado em frente dela, a rir, a olhá-la de lado, de frente, a cabeça agitada
como um pássaro, pronto a fugir para outro lugar, ao menor sinal. Era o
primeiro que se havia aproximado, quando aquele sonho era bom e eles
seguiam atrás dela, na sombra do casaco. Era esse, de frente, de lado, ainda
ali, a olhar para ela, e já longe, a sumir-se no escuro da noite. Aliás, ele nunca
tinha chegado a dizer-lhe que lhe devolvia as fotografias porque ela as havia
reclamado, ele nunca chegou a dizer-lhe, aqui tem, senhora gerente, prazer em
conhecê-la, feliz encontro, Feliz Natal. Ela é que julgou que sim.
Ou não, não julgou. Maria da Graça quis antes que fosse assim. Procedeu
como habitualmente procedia com as operações do crédito bancário - rasurava
detalhes, dúvidas, simulações, arredores das causas e transformava-os em
percentagens, débitos, produtos, em função de projectos que ocupavam uma
única linha. Depois de um traço, uma ordem simples na complexidade
intrincada dos factos. Foi em tudo isso que ela pensou, duas horas mais tarde,
ao entrar na casa dos amigos que festejavam a Natividade, envergando ainda
o amplo casaco de caxemira, sujo da terra do Parque. Então Maria da Graça
contou de que modo o menino dos dentes incisivos nascentes tinha olhado
para ela, com simpatia por ela, e lhe havia dito – Desculpe, dona, aqui tem as
suas fotografias. Boa noite, feliz Natal. Só depois o miúdo teria desaparecido
por detrás das árvores, deixando-a no chão. Pois Maria da Graça, a jovem
gerente bancária, ainda a sacudir-se, na casa dos seus amigos, sem torta e
sem saco, achava que o Mundo não era só como era, era antes de mais aquilo
que dele se escolhia para ser contado no dia seguinte. E ela queria que fosse
assim – Sete miúdos haviam viajado na sombra do seu casaco, seis não
passavam de vis ladrões, mas um deles tinha-se salvo. Tratava-se de uma
percentagem pequena, atendendo a que tudo acontecera, numa noite de Natal.
Mesmo assim, era uma percentagem válida. Era ou não era?
«Oh! Maria da Graça!»
A casa dos seus amigos, enfeitada de velas, ao Restelo, parecia um cais.
Os próprios amigos, em seu redor, pareciam guardas. Só aí ela havia
estendido o braço, pedindo por favor um lenço de assoar.
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